UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA MESTRADO E DOUTORADO EM MÚSICA

O RAP DE MC CRIOLO ENTRE TALENTOS E TECNOLOGIAS

JOANA MALTA GOMES

RIO DE JANEIRO, 2016

O RAP DE MC CRIOLO ENTRE TALENTOS E TECNOLOGIAS

por

JOANA MALTA GOMES

Tese submetida ao Programa de Pós-Graduação em Música do Centro de Letras e Artes da UNIRIO, como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor, sob a orientação do Professor Dr. Silvio Merhy e coorientação da Professora Dra. Cristina Maria Carvalho Delou.

Rio de Janeiro, 2016

Gomes, Joana Malta. G633 O rap de MC Criolo entre talentos e tecnologias / Joana Malta Gomes, 2016. 211 p. ; 30 cm

Orientador: Silvio Merhy. Coorientadora: Cristina Maria Carvalho Delou. Tese (Doutorado em Música) – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.

1. Criolo, 1975-. 2. Música e tecnologia. 3. Rap (Música). 4. Talento musical. I. Merhy, Silvio. II. Delou, Cristina Maria Carvalho. III. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Centro de Letras e Artes. Curso de Doutorado em Música. IV. Título.

CDD – 781.54

Dedico esse trabalho à memória de meu pai Luiz Carlos Gomes

AGRADECIMENTOS

Mo dúpe àwon orisa mi, àwon ile mi! Mo dúpe Iowo Osun, rere iya, orisa mi!

É preciso dar um salve ao hip hop, essa cultura que fez desabrochar tantos talentos tornando possível esse estudo. Criolo, não tenho palavras para agradecer a sua disponibilidade, colaboração e o carinho em me receber e compartilhar um pouco da sua história. Caro Bituca, você não sabe, mas aquele show na Fundição Progresso em que o Criolo foi um de seus convidados foi o início do desfecho de toda essa pesquisa. Espero um dia poder lhe agradecer pessoalmente. Obrigado a seu assistente Danilo Nuha pelo contato da Beatriz. Obrigada à Beatriz Berjeaut, Alê Briganti e ao Edu por terem possibilitado o encontro com Criolo. Dona Maria Vilani, Seu Cléon, família e amigos, obrigada pela recepção no aniversário do Caps, todos vocês foram muito carinhosos. Welbe, foi um prazer conhecer você, Luciana e sua mãe Zizelia. Foi uma tarde incrível no Jardim Lucélia, ainda sinto o cheiro da costela do almoço. DJ Dandan, aquele fim de tarde, naquela praça, no centro de São Paulo foi inesquecível, aprendi muito com você. Obrigada por compartilhar todo o seu conhecimento e experiência adquiridos na caminhada do hip hop. Daniel Ganjaman, obrigada por me receber no glorioso estúdio El Rocha e compartilhar os mínimos detalhes da sua precoce formação musical. Marcelo Cabral, não sei se agradeço ou peço desculpas pelo frio que passamos no dia da entrevista, mas foi sensacional, sua história é surpreendente. DJ Marco, sua história é intensa, muito obrigada por compartilhar e obrigada também pela carona. Ricardo Rabelo, sua participação caiu do céu, sua história no samba das quebradas não podia faltar nesse estudo, obrigada por contribuir. Agradeço ao Pagode da 27, pela recepção naquele fim de tarde chuvoso. Obrigada a orquestra Abayomy pela abertura dos ensaios com Criolo para o Fela Day, em especial à Mônica Ávila, por mediar esse contato. Foi, sem dúvida, uma experiência incrível.

Obrigada meu pai Luiz, por ter me garantido a chance de continuar estudando. Desculpe se não terminei a tempo de a gente comemorar juntos. Olorum mo dúpe, minha Iya Beata, meu pai Adailton e toda a minha família de ase, por todo ase compartilhado durante essa empreitada. Agradeço a José Roberto Borges, companheiro fiel e colaborador até o último segundo, sempre de prontidão para traduzir em imagens as minhas ideias. Mateus, o que seria de mim se você não tivesse encontrado com o Criolo na rua? Obrigada por ser o “jovem tão carinhoso” que facilitou a nossa comunicação. Francisco, obrigada pela troca de ideias, paciência e compreensão. Suas dicas são sempre as mais sensatas. Vocês, meus filhos, são minha inspiração. Minha mãe Iaci, sua ajuda é crucial sempre: a sabedoria que traz luz às ideias escondidas nas sombras. Queridas Márcia e Alice, muito obrigada pela hospitalidade durante a pesquisa de campo em São Paulo. Obrigada minha comadre Fátima por assumir o meu lugar em casa no último ano de pesquisa. Sem esse apoio teria sido muito difícil. Querida amiga Cris, essa pesquisa não existiria se você não tivesse me convidado para assistirmos ao seu grande ídolo Milton Nascimento. Você foi o elo de tudo. Muito obrigada.

Caro professor Silvio Merhy serei sempre grata por ter aceito o desafio de orientar essa pesquisa no meio do caminho. Obrigada principalmente pela confiança, por acreditar e me ajudar a transformar ideias em resultados.

Querida professora Cristina Delou, a sua orientação mudou o rumo da minha vida. Obrigada por compartilhar todo o seu conhecimento, pela paciência e pelo suporte nos momentos difíceis. Um agradecimento especial à professora Mônica Duarte pelo meu ingresso no curso e orientação no início da pesquisa e às professoras Salomea Gandelman e Ediclea Mascarenhas pela composição das bancas de ensaio de tese e significativas contribuições para pesquisa.

Agradeço ao Programa de Pós-graduação em Música pelo acolhimento, à Universidade Federal do estado do Rio de Janeiro e finalmente à CAPES pelo financiamento que possibilitou esse estudo.

CRIOLO Poema de Maria Vilani Para seu filho Kleber

Sonho não sonhado, desejo acalentado Nos braços da ilusão, utopia... Realidade irreal, sonho da vigília. Medo da noite onde moram os sonhos.

Acordar os acordes do tempo, Pedir clemencia para um dia interminável. O tempo não passa... Acordo e vejo tudo Outra vez igual. Será verdade?

As chamas da noite convidam à alegria. Posso crer? É verdade o que está acontecendo? Temo despertar os acordes do tempo, Acordar e encontrar tudo como era antes.

Luta, sangue, suor e lágrimas... Na busca do sonho, portas fechadas. Janelas sem perspectivas, sonhos perdidos Na madrugada sombria da ilusão.

10 de junho, 2012

GOMES, Joana M. O rap de MC Criolo entre talentos e tecnologias. 2016. Tese (Doutorado em Música) - Programa de Pós-Graduação em Música, Centro de Letras e Artes, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.

RESUMO

Partindo do problema de pesquisa de como se dá a relação entre o talento musical e a eminência profissional, este trabalho obteve como produto teórico, o Modelo Analítico do Desenvolvimento do Talento Musical – MADTM, cuja função consiste em destacar a relação entre o material, recursos e comportamentos presentes em toda atividade musical, como constructos fundamentais da aprendizagem e determinantes do desenvolvimento do talento musical e consequente eminência profissional. Este modelo foi desenvolvido em diálogo com: 1) as ideias de Vygotsky acerca do desenvolvimento cultural, conceito que destaca a importância da mediação de dispositivos artificiais (tecnologias) no processo de desenvolvimento de habilidades e transformação do comportamento humano; 2) com a análise empírica da atividade musical do MC Criolo, cantor e compositor de rap, cuja trajetória artística foi impactada a partir do lançamento do seu segundo álbum, Nó na Orelha, resultando em significativa eminência na cena do rap e da música popular; e mais seis músicos, a saber: DJ Dandan, Daniel Ganjaman, Welbe Colombo, Marcelo Cabral, DJ Marco e Ricardo Rabelo, que participaram da sua trajetória artística até gravação do respectivo álbum. De acordo com Vygotsky, o desenvolvimento cultural acontece primeiro entrementes, ou seja, na interação entre pessoas de determinada cultura e meio social, para depois ser interiorizado e recriado por cada pessoa. A partir da análise do processo histórico e social de como o rap, no contexto da black music, se desenvolveu no Brasil, processo este descrito a partir das histórias de vida dos músicos participantes, foi possível perceber a relação entre os constructos: material, recursos e comportamentos, como determinantes da cultura musical hip hop tanto sob o aspecto social como individual, visto que o desenvolvimento do talento musical e formação de artistas eminentes se dá por meio de uma rede colaborativa de parcerias musicais. No que diz respeito ao desenvolvimento do talento individual, o constructo comportamento, o modelo conta com o instrumento AMCAM – Avaliação Molecular do Comportamento na Atividade Musical, voltado para análise das ações implementadas na atividade musical e do perfil de aprendizagem de cada do músico. O propósito desse instrumento é possibilitar a avaliação ou autoavaliação do aprendiz ou músico com relação a sua atividade musical, demonstrando que a atividade musical que cada músico exerce está relacionada a determinados perfis de aprendizagem que a pessoa assume durante seu processo de formação. O instrumento AMCAM foi utilizado na avaliação e autoavaliação dos músicos em estudo. A análise permitiu constatar que o encontro de talentos e tecnologias favoreceram a eminência profissional não apenas do MC Criolo, mas de todo o grupo de músicos parceiros relativo a cada perfil de aprendizagem. O impacto do álbum Nó na Orelha, enquanto uma tecnologia, interferiu diretamente na cultura musical de seu meio desencadeando a formação de novos talentos e contribuindo para manutenção da cultura hip hop. Para coleta de dados foram utilizadas duas abordagens metodológicas: 1) entrevistas ao MC Criolo e músicos parceiros, participação em shows e interação com o ambiente e pessoas (amigos, família, etc.) que fizeram parte da trajetória do MC Criolo e: 2) reportagens, entrevistas, documentários e depoimentos sobre MC Criolo e sua trajetória artística, disponibilizados na internet, além do modelo e instrumentos referidos anteriormente.

Palavras-chave: MC Criolo. Talento musical. Tecnologias na música. GOMES, Joana M. MC Criolo’s rap between talents and technologies. 2016. Thesis (Doutorado em Música) - Programa de Pós-Graduação em Música, Centro de Letras e Artes, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.

ABSTRACT

Starting from the research problem of how the relationship between musical talent and professional eminence occurs, this work obtained as a theoretical product, the Analytical Model of the Development of Musical Talent - AMDMT, whose function is to highlight the relation between material, resources And behaviors present in all musical activity, as fundamental constructs of learning and determinants of the development of musical talent and consequent professional eminence. This model was developed in dialogue with: 1) Vygotsky's ideas about cultural development, a concept that emphasizes the importance of the mediation of artificial devices (technologies) in the process of developing skills and transforming human behavior; 2) with the empirical analysis of the musical activity of MC Criolo, a singer and rap composer, whose artistic trajectory was impacted by the release of his second , Nó na Orelha, resulting in a significant eminence in rap and popular music; and six other musicians, namely DJ Dandan, Daniel Ganjaman, Welbe Colombo, Marcelo Cabral, DJ Marco and Ricardo Rabelo, who participated in his artistic career until recording the respective album. According to Vygotsky, cultural development takes place in the meantime, that is, in the interaction between people of a given culture and social environment, and then be internalized and recreated by each person. From the analysis of the historical and social process of how rap, in the context of black music, developed in , a process described from the life histories of the participating musicians, it was possible to perceive the relation between the constructs: material, resources And behaviors as determinants of culture both socially and individually, since the development of musical talent and the training of eminent artists takes place through a collaborative network of musical partnerships. With regard to the development of individual talent, the construct behavior, the model has the instrument AMCAM - Molecular Assessment of Behavior in Musical Activity, aimed at analyzing the actions implemented in the musical activity and the learning profile of each of the musician. The purpose of this instrument is to enable the evaluation or self-assessment of the learner or musician in relation to their musical activity, demonstrating that the musical activity that each musician performs is related to certain learning profiles that the person assumes during his / her formation process. The AMCAM instrument was used in the evaluation and self-evaluation of the musicians under study. The analysis showed that the meeting of talents and technologies favored the professional eminence not only of MC Criolo, but also of the whole group of partner musicians regarding each learning profile. The impact of the album Nó na Orelha, as a technology, interfered directly in the musical culture of its environment, triggering the formation of new talents and contributing to the maintenance of hip hop culture. To collect data, two methodological approaches were used: 1) interviews with MC Criolo and partner musicians, participation in shows and interaction with the environment and people (friends, family, etc.) that were part of MC Criolo's trajectory and 2) Interviews, documentaries and testimonies about MC Criolo and his artistic trajectory, made available on the Internet, in addition to the model and instruments previously mentioned.

Keywords: MC Criolo. Music Talents. Technologies in music. GOMES, Joana M. Le rap de MC Criolo entre talents et Technologies. 2016. Thèse (Doctorat en musique), Programme d'Etudes Supérieures, Centre des Lettres et des Arts, Université Fédérale de l'Etat de Rio de Janeiro.

RÉSUMÉ

Partant du problème de recherche de comment se présente la relation entre le talent musical et l'éminence professionnelle, ce travail a fourni comme produit théorique, le Modèle Analytique du Développement du Talent Musical - MADTM, dont la fonction est de mettre en évidence la relation entre le matériel, les ressources et les comportements présents dans toutes les activités musicales comme constructions fondamentales de l'apprentissage et déterminant le développement du talent musical et de l'éminence professionnelle conséquente. Ce modèle a été développé en dialogue avec: 1) les idées de Vygotsky sur le développement culturel, un concept qui met en évidence l'importance des dispositifs artificiels (technologiques) dans le processus de développement des capacités de la transformation du comportement humain; 2) avec l'analyse empirique de l'activité musicale de MC Criolo, chanteur et compositeur de rap, dont la carrière artistique a été reconnue dès le lancement de son deuxième album Noeud dans l'oreille, entraînant l'importancee significative de la scène du rap et de la musique populaire; et d'en plus six musiciens, à savoir: DJ Dandan, Daniel Ganjaman, Welbe Colombo, Marcelo Cabral, DJ Marco et Ricardo Rabelo, qui ont participé à sa carrière artistique et à l'enregistrement de cet album. Selon Vygotsky, le développement culturel se produit d'abord de façon opportune, à savoir dans l'interaction entre les gens d'une culture particulière et l'environnement social, pour ensuite être intériorisé et recré par chaque personne. A partir de l'analyse du processus historique et social de comment le rap, dans le contexte de la musique noire, s'est développé au Brésil, un procédé décrit dans les histoires de vie des musiciens participants, il était possible de percevoir la relation entre les constructions: matériel, ressources et comportements, comme déterminants de la culture musicale hip hop, tant du point de vue de l'aspect social qu'individuel, puisque que le développement des talents musicaux et la formation des artistes éminents est le résulat d'un réseau collaboratif de partenariats musicaux. En ce qui concerne le développement des talents individuels, à la construction du comportement de construction, le modèle s'appuie sur l'outil AMCAM - Évaluation Moléculaire du Comportement de l'Activité Musicale, tourné vers l'analyse des actions mises en œuvre dans l'activité musicale et du profil d'apprentissage de chaque musicien. Le but de cet instrument est de permettre l'évaluation ou l'auto-évaluation de l'apprenti ou musicien à propos de son activité musicale. Ce qui démontre que l'activité musicale que chaque musicien est liée à l’exercice des profils spécifiques d'apprentissage qui le personne assume au cours de son processus de formation. L'instrument AMCAM a été utilisé dans l'évaluation et l'auto-évaluation des musiciens de l'étude. L'analyse a permis de confirmer que la réunion des talents et des technologies a favorisé l'éminence professionnelle non seulement de MC Criolo, mais de l'ensemble du groupe de musiciens partenaires pour chaque profil d'apprentissage. L'impact de l'album Nœud dans l'oreille, comme une technologie, interfère directement dans la culture musicale et son environnement déclenchant la formation de nouveaux talents et contribue au maintien de la culture hip-hop. Pour la collecte des données, ont été utilisées deux approches méthodologiques: 1) entrevues avec MC Criolo et les musiciens partenaires, participation à des shows et interaction avec l'environnement de MC Criolo (amis, famille, etc.) qui faisaient partie de la carrière de MC Criolo. 2) Reportages, interviews, documentaires et témoignages sur MC Criolo et sa carrière artistique, mis à disposition sur Internet, en plus du modèle et des instruments mentionnés ci-dessus.

Mots-clés: MC Criolo. Talent musical. Technologies dans la musique LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Constructos do processo de aprendizagem e desenvolvimento do talento musical...... 71 Figura 2: Ações fundamentais da atividade musical representadas por átomos ...... 75 Figura 3: Átomos referentes aos perfis de aprendizagem...... 80 Figura 4: Filipeta de divulgação de um evento da Rinha dos MC’s ...... 127 Figura 5: Disco das ações fundamentais da atividade musical...... 134 Figura 6: Listagem dos perfis de aprendizagem ...... 134 Figura 7: Autoavaliação mediada – Criolo como MC e Compositor...... 138 Figura 8: Avaliação da pesquisadora – Criolo Compositor...... 143 Figura 9: Avaliação da pesquisadora – Criolo MC ...... 143 Figura 10: Autoavaliação – Dandan como DJ...... 147 Figura 11: Avaliação da pesquisadora – Dandan como DJ...... 147 Figura 12: Autoavaliação Daniel Ganjaman como produtor musical ...... 150 Figura 13: Autoavaliação – Daniel Ganjaman como instrumentista...... 151 Figura 14: Avaliação da pesquisadora – Daniel Ganjaman como instrumentista ...... 151 Figura 15: Avaliação da pesquisadora – Welbe Colombo como DJ...... 154 Figura 16: Autoavalição – Welbe Colombo como DJ...... 155 Figura 17: Autoavaliação Marcelo Cabral como “músico”...... 158 Figura 18: Autoavaliação mediada DJ Marco – produtor musical...... 161 Figura 19: Autoavaliação mediada DJ Marco – DJ de banda...... 162 Figura 20: Autoavaliação mediada DJ Marco – DJ solo...... 163 Figura 21: Autoavaliação Ricardo Rabelo...... 166 Figura 22: Printscreen do streaming da canção Não existe Amor em SP...... 186

ANEXO - LISTA DOS QUADROS

Quadro 1: Resultados da busca pela palavra talento em periódicos nacionais de música ...... 207 Quadro 2: Artigos que contém a palavra talento da revista Música Hodie ...... 208 Quadro 3: Artigos que contém a palavra talento da Revista Opus ...... 209 Quadro 4: Artigos que contém a palavra talento da Revista da Abem ...... 211

SUMÁRIO

Página INTRODUÇÃO...... 16

CAPÍTULO 1 - O DESENVOLVIMENTO DO TALENTO MUSICAL COMO UMA CONSTRUÇÃO HISTÓRICO-CULTURAL...... 52 1.1 O conceito de desenvolvimento cultural por Vygotsky...... 52 1.1.1 O desenvolvimento cultural sobre três constructos: material, recursos e comportamentos...... 60 1.1.2 O desenvolvimento cultural para explicar o talento musical ...... 66 1.2 Modelo analítico do desenvolvimento do talento musical – MADTM ...... 70 1.2.1 Sobre o material...... 72 1.2.2 Sobre os recursos ...... 73 1.2.3 Sobre comportamentos (Instrumento AMCAM) ...... 74 1.2.3.1 Ações fundamentais da aprendizagem de música ...... 75 1.2.3.2 Perfis de aprendizagem ...... 78 1.2.3.4 Considerações importantes sobre a aplicação do instrumento AMCAM ...... 84

CAPÍTULO 2 - CULTURA BLACK MUSIC: VELHAS TECNOLOGIAS, NOVOS TALENTOS...... 86 2.1 Músicas e tecnologias da infância...... 86 2.2 Em Trenchtown, no Bronx ou no Grajauex: Sound Systems comandam os bailes black e dão início ao hip hop ...... 97 2.3 Da diversão à formação profissional...... 116 2.4 Ponto de encontro: dos bailes black à Rinha dos MC’s...... 123 2.5 Roda de samba das quebradas: quando tradição e inovação caminham junto...... 127

CAPÍTULO 3 - AVALIAÇÃO MOLECULAR DO COMPORTAMENTO NA ATIVIDADE MUSICAL – AMCAM ...... 133 3.1 Descrição dos procedimentos de aplicação do instrumento AMCAM...... 133 3.2 Criolo...... 135 3.3 DJ Dandan...... 145 3.4 Daniel Ganjaman...... 148 3.5 DJ Welbe Colombo...... 153 3.6 Marcelo Cabral ...... 156 3.7 DJ Marco ...... 159 3.8 Ricardo Rabelo...... 164 3.9 Análise da eficácia do instrumento AMCAM...... 167

CAPÍTULO 4 - ENCONTRO DE TALENTOS E TECNOLOGIAS: CIRCUNSTÂNCIAS DA EMINÊNCIA DO ÁLBUM NÓ NA ORELHA...... 170 4.1 A circularidade do talento ...... 170 4.2 A confecção de um artefato...... 175 4.3 No Grajauex, Subirusdoistiozin: o prenúncio em vinil...... 182 4.4 Não existe amor em SP e o fenômeno viral...... 185 4.5 É o teste, é a febre é a glória...... 188 4.6 De volta para cultura ...... 191

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 195

REFERÊNCIAS...... 198

ANEXO...... 206

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INTRODUÇÃO

(...) obrigado por perguntarem do rap, esse senhor, esse jovem senhor maravilhoso. E ele tem uma força tão grande que eu, às vezes, não falo tanto, porque as pessoas sempre esperam estereótipos. O rap é uma energia cósmica que entra nos lares e só vai te trazer coisa boa. E se tem alguém te falando algo muito áspero, é porque essa pessoa quer que essa situação áspera mude, porque ela não aguenta mais conviver com coisas ruins (CRIOLO, 2012).1

Mote Estudar a música implica em entender a transformação do processo natural de se perceber e emitir sons, que é dado biologicamente ao ser humano, em alguma coisa que se distingui dentre outros comportamentos expressos e que se decidiu chamar de música. Então falar de música não é tratar de algo simplesmente dado pela natureza, mesmo que o ser humano seja algo inevitavelmente natural, mas sim falar dessa “coisa” que, ao longo da história humana, vem sendo reconhecida como música, mas que se corporifica em um ser. A despeito do fato de que, em cada momento histórico ou em cada região do planeta, os sons que compõe cada música sejam diferentes, organizados de formas diferentes, para diferentes propósitos, a música não deixa de ser música. Para aqueles seres que a criam e a expressam haverá sempre o reconhecimento desse comportamento comum, mas específico, como talento musical. A música pode ser percebida como o elemento agregador de todo acontecimento histórico, mesmo que em várias situações ela possa parecer apenas um produto para um fim único. Mas o fim de uma música, mesmo quando impressa em um disco de vinil ou em uma partitura, pode ser apenas o começo de outra que, por sua vez, desencadeia um novo processo de desenvolvimento de talentos e tecnologias, fazendo surgir novos artistas e novas músicas, dando continuidade à construção histórica de uma cultura musical sempre em expansão e transformação. Isso vale para qualquer música, mas neste trabalho será tratado o rap, síntese expoente da música preta, que favorece a ascensão cultural de maiorias desfavorecidas, não só no Brasil, mas em todo mundo, se tornando um meio comum de identidade universal.

1 CRIOLO [Entrevistado por Rede Minas] Perfil Criolo. TV [Data de upload: 21 maio, 2012]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=wStMfh59KUo&index=2&list=PLH__eLG01UkE6q7_iOdyBlvCUAmlo- aWY Acesso 15 junho, 2016. 17

Essa pesquisa é sobre pessoas “especiais” que se comportam diferente e fazem coisas inesperadas; aquelas cujas atitudes se destacam perante o grupo. Que criam, inventam, inovam, questionam e transformam conflitos em arte: expressam e amplificam vozes e inquietações de um meio social.

Talento musical: da natureza ou da educação? Por talento (dom natural) entende-se aquela excelência da faculdade de conhecer que não depende de instrução, mas da disposição natural do sujeito. Eles são o engenho produtivo (ingenium strictus s. materialiter dictum), a sagacidade e a originalidade no pensar (o gênio). (KANT, 2006, p. 117, [220], grifos do autor).

A noção de talento musical tem sido um problema que assombra o ensino da música desde sempre. O mito que gira em torno do talento musical pode ser justificado pela curiosa constatação de que determinadas pessoas parecem realizar com muita facilidade alguma ação musical, enquanto outras, demonstram mais lentidão no processo de aprendizagem ou até mesmo dificuldade ou impossibilidade de aprender. Isto implica em considerar o talento como um comportamento, visto que toda habilidade requer uma ação prática, uma atividade a ser realizada, uma performance. Só que na verdade o talento não é em si um comportamento, ou mesmo a habilidade, mas uma qualidade, um adjetivo atribuído a uma ação reconhecida como de valor. Contudo o valor de uma ação musical não é absoluto, mas sim o resultado de uma construção cultural e histórica. Pode-se dizer de uma forma simplória então, que o talento é um valor cultural atribuído socialmente a um comportamento percebido como habilidade com competência, uma ação que tem utilidade e eficiência, que parece ser bem feito e se destaca perante outros. Afinal, não seria possível falar de talento se todas as pessoas se comportassem da mesma maneira, seria suficiente falar de comportamento. Contudo, ainda não há um consenso se o talento diz respeito a uma habilidade inata, natural à pessoa, ou a uma habilidade adquirida em decorrência de um processo de aprendizagem. Houve o tempo em que o talento era realmente uma medida de valor, uma moeda, como consta na parábola do talento escrita na Bíblia por Mateus. Mas o talento da forma como é tratado hoje em dia pelo senso comum, diz respeito àquilo que a pessoa faz de melhor e se destaca perante seus pares. Ter talento ou ser talentoso não é um problema em si, pois a pessoa que apresenta aptidão para música, por exemplo, e consegue desenvolver suas habilidades com competência, não tem porque se sentir mal por isso. Mas no momento em que as pessoas são colocadas lado a lado e que se acredita que todas devem desenvolver habilidades de maneira

18 igual, como pretende a escola, aí surge o problema. O talento musical é um problema da educação institucionalizada em que a proposta é oferecer a mesma condição de ensino e aprendizagem para todos. Só que as crianças não são iguais e apresentam padrões diferenciados de aprendizagem, a começar pelas áreas de interesse. A pesquisa acadêmica no Brasil em torno do talento musical tem procurado evitar a discussão deste assunto que envolve o uso deste conceito, apesar do fato de que toda pesquisa que trata de música está tratando do talento musical direta ou indiretamente, mesmo que isso não fique explícito ou que se prefira utilizar outro conceito sinônimo, como expertise, habilidade ou competência, para citar alguns. Após uma revisão dos periódicos nacionais específicos da área de música2, do total de 21 periódicos examinados, apenas três continham artigos em que a palavra talento aparecia, a saber: Revista Música Hodie (16 artigos), Opus – Revista Eletrônica da Anppom (19 artigos) e Revista da Abem (3 artigos). É curioso que esta última, um periódico voltado para pesquisa em educação musical, tenha tão poucos artigos discutindo o problema do talento. A revista Abem foi fundada em 1992, com 35 volumes publicados até o final de 2015, e 10 artigos por publicação, somando um total de 350 artigos publicados. Encontrar apenas três artigos que utilizam a palavra talento significa que apenas de 1% dos artigos deste periódico tratam deste assunto. Esta proporção pode equivaler ao percentual de músicos eminentes considerados como “talentosos”. É uma ironia que o tema talento seja tão obscuro para pesquisadores dessa área. Esse resultado faz parecer que o talento não é um problema de pesquisa para educação musical, apenas um tabu. Contudo, há de se considerar que o talento musical tem sido abordado nos estudos com outro nome como expertise (GALVÃO et al, 2011). De certa forma, todas pesquisas voltadas para o estudo dos processos de aprendizagem de música dizem respeito ao talento musical, principalmente aquelas que tratam do aprendizado formal de instrumento, seja em projetos sociais ou no ensino especializado. Quando não há uma seleção previa das habilidades musicais, a própria atividade acaba por selecionar aqueles que se tornaram mais hábeis, visto que, quem não conseguem desenvolver as habilidades necessárias para se manter na atividade musical acaba desistindo. Já aqueles que conseguem progredir e se especializar, acabam por buscar a música como profissão (KLEBER, 2006). Ou seja, a própria atividade musical seleciona

2 Como ferramenta de busca foi utilizado o indexador – Amplificar: indexador da produção acadêmica em música no Brasil, criado por Renato Borges no curso de doutorado do PPGM/ UNIRIO, ainda em desenvolvimento (Disponível em: http://www.amplificar.mus.br/). Após coletar o nome dos periódicos cada um foi acessado via Sistema Eletrônico de Editoração de Revistas - SEER. Na ferramenta de busca da página de cada periódico foi inserido a palavra talento a fim de buscar artigos que tratassem desse tema. Os quadros com o resultado dessa coleta está em anexo. 19

talentos. Da mesma forma acontece com os cursos de graduação em música que exigem teste de habilidade específica. Se o talento musical está relacionado a habilidades musicais, toda pesquisa voltada para o estudo de habilidades trata direta ou indiretamente do desenvolvimento do talento musical, mesmo que não utilize esse conceito. Mas por que evitar o uso do conceito de talento? A discussão sobre o talento de uma forma geral perdura na literatura desde os primórdios da filosofia até os estudos mais recentes de neurociência. No final do século XIX, por influência dos estudos de Charles Darwin (1872/2008) sobre a origem das espécies, somado ao desenvolvimento de métodos estatísticos de pesquisa voltadas para o estudo do ser humano, iniciados por Francis Galton (1869; 1880; 1883), a discussão em torno do talento foi direcionada para um campo interdisciplinar que oscilava entre a biologia e a psicologia que procurava entender o comportamento humano em comparação ao comportamento animal. Aquilo que difere o ser humano dos outros animais é justamente a sua capacidade de aprender, pensar e desenvolver novas habilidades, tudo isso reunido no conceito de inteligência. A preocupação em entender essa peculiaridade humana levou alguns pesquisadores a desenvolver experimentos voltados para o estudo da inteligência humana. Assim como muitas descobertas no campo da biologia e da medicina, o comportamento humano começou a ser analisado a partir das deficiências, do defeito, daquilo que foge ao padrão da normalidade de desenvolvimento. Se enquadravam nesse grupo as pessoas com deficiências físicas, sensoriais e mentais. Além dos estudos comportamentais dessas pessoas em comparação as ditas normais, também se questionavam a origem de tais deficiências, se eram congênitas, transmitidas por herança genética ou se adquiridas por algum acidente ao longo do desenvolvimento. Sem dúvida a biologia, a medicina e a psicologia avançaram muito em termos de contribuição para manutenção da saúde humana por conta desses estudos, contudo, sua aplicabilidade social nunca caminhou na mesma proporção. E o maior “termômetro” das diferenças comportamentais entre as pessoas era justamente a escola. Foi por conta da dificuldade de aprendizagem de algumas crianças que os psicólogos franceses Alfred Binet e Theodore Simon (1905/1916), desenvolveram um instrumento para medir a inteligência, tendo como foco principal a avaliação da capacidade intelectual de crianças consideradas retardadas ou subnormais. Esse instrumento resultou no famoso teste de QI ou coeficiente de inteligência. Na verdade, sua popularização se deve a Lewis Terman (1916), um professor americano da universidade de Stanford, que criou uma versão do teste em língua inglesa, conhecida como escala Stanford-Binet (TERMAN, 1916).

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Apesar desse teste a princípio ter sido criado para avaliar a capacidade intelectual dos aparentemente menos capazes, ele acabou evidenciando que, assim como haviam crianças que não se saiam bem nos testes, haviam aquelas que eram muito proficientes. Foi aí que a questão das habilidades passou a ser parâmetro de inteligência e as crianças mais capazes passaram a ser rotuladas como gifteds, segundo expressão na língua inglesa e superdotadas segundo a versão brasileira. Sem ser utilizado necessariamente como sinônimo, o conceito de talento se mistura à noção de superdotação e, especificamente no campo da música foi utilizado por Carl Seashore (1919) em seu tratado The psychology of musical talent – em que desenvolveu um instrumento para medir o talento musical assim como o teste de QI media a inteligência “geral”. Se no início do século XX a preocupação com relação a inteligência e comportamentos humanos girava em torno de parâmetros quantitativos, a segunda metade do século fez justamente o contrário. Depois da segunda guerra mundial a noção de que algumas pessoas podiam ser mais inteligentes ou melhores que outras não era mais bem vista, pois abria espaço para validar o racismo, mesmo que não houvesse nenhum estudo científico que pudesse provar uma relação direta entre inteligência e constituição genética. Na verdade, se percebeu o contrário, que os testes para avaliar a inteligência avaliavam competências aprendidas e, quando aplicados a pessoas cujo meio cultural não proporcionava o desenvolvimento das capacidades previstas no teste, o resultado era falho. Lev S. Vygotsky foi um dos pesquisadores que apontou essa falha, mas por conta do regime político da União Soviética no governo de Stalin, seus trabalhos e resultados de pesquisa não puderam ser compartilhados com o resto do mundo no início do século e suas reflexões só conseguiram atravessar a fronteira da URSS em 1962 quando o Massachusetts Institute Technology – MIT, publicou a tradução de alguns textos da obra de Vygotsky sob o título Thought and Language.3 Apesar de o cerne da pesquisa desenvolvida por Vygotsky e seus colaboradores não constarem nessa primeira tradução, a originalidade de seu pensamento causou impacto no campo das ciências cognitivas, que àquela altura já ousava experimentos em inteligência artificial. Não foi por acaso que o MIT foi o primeiro a se interessar pela obra de Vygotsky. Desde então, passou a ser clichê falar que o ser humano se desenvolve na relação com o ambiente ou reconhecer a influência do ambiente no desenvolvimento humano. Passou a se valorizar a cultura não só como efeito da ação humana, mas como sua causa. Foi então Vygotsky quem destacou o papel da aprendizagem no desenvolvimento humano como

3 Disponível em: https://mitpress.mit.edu/books/thought-and-language Acesso em: 16 out, 2016. 21

condição, contradizendo todos os pesquisadores que acreditavam que a chave para o desenvolvimento humano estava dentro de cada indivíduo. Como pesquisador ele desenvolveu suas ideias a partir de estudos experimentais na área da defectologia, visto que foi contratado para dar conta de explicar o desenvolvimento desigual de crianças em idade escolar, principalmente as com deficiência física, sensorial, intelectual e as consideradas “difíceis”, aquelas que não são “educáveis” (VYGOTSKY, 1993). Naquela época ele já defendia que o talento podia coexistir com a deficiência, desde que o estímulo a aprendizagem fosse dirigido para as potencialidades da criança e não no reforço de suas deficiências, ou seja, ele já defendia uma educação escolar individualizada. Mas sua grande contribuição foi demonstrar que os estímulos para o desenvolvimento humano estão fora do próprio indivíduo, se encontram no ambiente que o cerca e na relação com outros indivíduos (VYGOTSKY, 1997). Com isso conseguiu explicar as diferenças de comportamentos e desenvolvimento, não só entre uma criança e outra, mas também entre culturas diferentes. Isso coloca a educação no centro do desenvolvimento humano que, nas sociedades industrializadas, cabe a escola regular. Coincidência ou não, desde que as ideias de Vigotski foram difundidas principalmente nos EUA, destacando a importância do meio histórico e cultural no processo de desenvolvimento humano, surgiram novos modelos para explicar a superdotação. A influência do ambiente no desenvolvimento da criança passou a ser reconhecida até mesmo para superdotados, que antes era visto como crianças que já nascem sabendo. Além disso, o foco de atenção foi transferido do coeficiente de inteligência geral ou acadêmico, para as diversas áreas de conhecimento ou talento, enfatizando o aspecto comportamental em contrapartida ao viés natural e hereditário. Em 1978, Joseph Renzulli (2011) escreve um artigo apresentando o modelo dos três anéis para explicar a superdotação e o desenvolvimento de talentos, em que ele defende que pessoas superdotadas tem como principais traços: habilidade acima da média em alguma área de conhecimento, criatividade e comprometimento com a tarefa. Ele explica que chegou a esse modelo observando que essas três características estavam presentes indissociavelmente nas pessoas superdotadas e que o coeficiente de inteligência geral não era o único fator determinante da superdotação (RENZULLI, 2011). Com esse modelo a identificação de pessoas superdotadas amplia os seus limites, pois passam a ser incluídas não somente as pessoas com altas habilidades acadêmicas, como eram medidas pelo teste de QI, mas também pessoas com altas habilidades em diferentes áreas de conhecimento, como nas artes e nos esportes. O modelo dos três anéis vem sendo utilizado como referência para identificação de superdotados até hoje e a legislação brasileira voltada

22 para o atendimento educacional especial para alunos com altas habilidades ou superdotação parece ter sido fortemente influenciada por essa teoria. Outra importante mudança na forma como Renzulli (2011) aborda a superdotação diz respeito ao fato de, no seu modelo, a superdotação ser considerada como um comportamento, pois os traços por ele destacados são comuns a pessoas superdotadas e estão relacionados aos comportamentos característicos que fazem com que elas se destaquem tanto em termos de aprendizado como de performance, levando à consequente eminência na sua área de interesse. Aplicando o modelo para área da música, uma criança cujas habilidades musicais estejam acima da média, e que, somado a isso, esteja comprometida com a atividade musical, no sentido de se dedicar espontânea e prazerosamente ao estudo da música e ao aperfeiçoamento de suas habilidades de forma criativa, poderia ser considerada como uma criança superdotada. Neste sentido, qualquer criança ou jovem que se dedica a uma atividade musical profissional se destacando perante outros, tem fortes indicativos para ser considerado como superdotados. Contudo, este rótulo só é útil dentro do sistema escolar, onde se faz valer a legislação da educação especial voltada para esse tipo de alunado. Fora da escola o que um jovem artista precisa é do reconhecimento de seu público e dos recursos necessários ao desenvolvimento da sua atividade musical. Sem considerar a questão da inteligência como um atributo a ser medido, a teoria das inteligências múltiplas de Howard Gardner (1994) procurou olhar a mente humana a partir de suas qualidades, ressaltando que não existe apenas uma única inteligência geral, mas inteligências específicas em diferentes áreas de conhecimento. Foi Gardner quem conseguiu demonstrar que a capacidade de fazer música corresponde a uma inteligência em particular. Ele pôde provar isso mostrando que pessoas com deficiência intelectual podiam ser exímios musicistas. Entre esses grupos inclui pessoas com autismo ou aqueles antes denominados de idiot-savant (GARDNER, 1994). Robert Sternberg & Elena Grigorenko (2003) com sua teoria da inteligência plena, identificam três tipos diferentes de inteligência: a analítica, criativa e prática. Estes autores demonstram que algumas habilidades podem ser irrelevantes, quando se trata de ser pragmático em relação aos objetivos e metas que temos que cumprir para alcançar determinado sucesso, seja ele qual for. Nesse sentido, ficar extremamente engajado numa tarefa criativa pode não render nenhum avanço, caso a produtividade seja algo mais valorizado socialmente do que a própria criatividade. Em outro livro Sternberg (1997) aborda o mesmo problema só que com outro nome. Ele considera que existem três estilos diferentes de pensar e que o sucesso está relacionado a cada um conseguir encontrar uma profissão que seja adequada ao seu estilo. Neste 23

livro ele analisa três casos de sucesso profissional em que cada sujeito conseguiu adequar suas escolhas profissionais ao seu estilo pessoal. O próprio autor faz referência a sua própria história, quando, por exemplo, fora muito bem-sucedido como estudante em determinado curso e malsucedido em outro. A questão do sucesso ou eminência profissional é um problema que assombra o campo da educação para superdotação, pois é comum pensar que se uma criança é muito inteligente ela será, sem sombra de dúvida, bem-sucedida. Este é um problema que fica ainda mais crítico se lembrarmos dos testes de QI ou do talento musical como desenvolvidos por Terman e Seashore, respectivamente. Rena Subotnik et al (2011) após uma extensa revisão do assunto, questionam a relação inequívoca entre superdotação e eminência profissional, procurando reforçar ou redefinir conceitos e princípios e apontar metodologias que possam atender com eficiência a demanda desse perfil de indivíduo, a fim de sanar as dúvidas e desconfianças com relação a esse campo de conhecimento e prática. O propósito da monografia de Subotnik et al (2011) foi de encontrar recursos para superar as dificuldades do campo da educação para superdotados, que se desfaz em inúmeras possibilidades de trajetórias, visto que cada pessoa superdotada, tem singularidades que não podem ser generalizadas. É claro que isso vale para qualquer pessoa e não apenas para aqueles considerados superdotados ou talentosos, mas como já foi dito, no momento que crianças ou adultos são rotulados dessa forma, cria-se uma expectativa maior com relação a sua performance e seu futuro profissional. Além de definir de forma ampla e inclusiva o que seria a superdotação os autores analisam cada problema polêmico relacionado tanto com a superdotação de uma forma geral, quanto ao desenvolvimento de talentos rumo a eminência; colocando sempre em destaque o aspecto individual de cada trajetória e os fatores externos e internos, como por exemplo, a oportunidade ou motivação, como determinantes desse processo (SUBOTNIK et al,2011). A consideração dos fatores externos e internos ao sujeito no que diz respeito ao seu desenvolvimento, é o que mais se destaca na teoria de Vygotsky como será mostrado no primeiro capítulo. Apesar de aparentemente não ter sido influenciado por Vygotsky, Françoys Gagné (1986), é um dos teóricos que coloca a influência do ambiente interno e externo no desenvolvimento do talento, como variável em destaque. Para explicar como se dá o processo de desenvolvimento do talento este autor construiu, o modelo – Differentiated Model of Giftedness and Talent (DMGT) – que tem como propósito diferenciar as habilidades naturais consideradas como gifts ou dom, do conceito de talento. Segundo Gagné, a literatura que trata desse assunto, ora considera o dom como sinônimo de talento, ora como algo superior, que

24 incorpora o talento como uma das suas características, mas não se restringe a ele. O autor acredita que diferenciando os conceitos de dom (gifts) e talento (talents) fica fácil explicar o processo de desenvolvimento do talento, que para ele “corresponde essencialmente a progressiva transformação de dons em talento” (GAGNÉ, 2008, p.1, grifos do autor)4. Outro ponto importante da sua definição é considerar que pessoas talentosas são aquelas que se destacam pela sua competência na proporção de 10 por cento. Isso significa que, além do desenvolvimento do dom em talento, o valor do talento é atribuído às pessoas comparativamente. Afinal muitas pessoas podem desenvolver habilidades musicais, mas serão reconhecidos como talentosas apenas uma parte delas. Além das definições dos conceitos, o autor percebe que o processo de desenvolvimento do talento é circunstancial a fatores que ele considera como catalizadores desse processo. Entre estes fatores ele coloca a condição intrapessoal, que vem de dentro da pessoa, seus interesses, personalidade, características físicas e mentais, motivações; e ambiental, que vem de fora, as condições do ambiente em que a pessoa nasce, cresce e vive, ou seja, a influência social e cultural do seu entorno. Ele também considera a chance como fator significativo no desenvolvimento do talento, que pode ser entendida também como o acaso, um acidente ou até mesmo a sorte. Na última revisão do modelo, esse fator é representado como pano de fundo de todo processo de desenvolvimento do talento. Come ele explica, apesar deste fator ter sido considerado desde a primeira versão do seu modelo, ele ocupava posições diferentes. Quando ele atribui ao fator chance, o papel de qualificar qualquer influência casual, ele inclui desde a constituição genética, os acidentes genéticos ou deficiências que podem interferir na constituição biológica de cada um, até o ambiente que a pessoa nasce, sua condição econômica, social e cultural. Os dons (gifts), para Gagné, correspondem a habilidades naturais que dizem respeito a diferentes domínios que, segundo o autor, são perceptíveis no comportamento da criança ainda na infância. Apesar de considerar esses domínios como habilidades naturais ele não os considera como inatos, e sim como comportamentos que podem ser observados na rotina da criança, na forma como ela interage nas brincadeiras, no convívio em família, com a vizinhança, enfim, habilidades que todas as crianças desenvolvem espontaneamente, sem haver ainda um processo de aprendizagem sistemático e direcionado ao desenvolvimento de um talento específico. Andar, falar, correr, subir e descer, desenhar, cantar, dançar, comer, jogar bola, nadar, etc. são atividades que precisam ser desenvolvidas pois dizem respeito a própria saúde

4 ”“corresponds essentially to the progressive transformation of gifts into talents” (GAGNÉ, 2008, p.1, grifos do autor). 25

da criança. O desenvolvimento desses domínios é comum a toda criança saudável e já estão “programados” para se desenvolver desde sua geração. Mas é claro que cada criança vai desenvolver essas “habilidades naturais” de forma diferente e de acordo com a demanda do seu ambiente cultural. É possível observar que, desde bebê, os domínios mais expressivos e menos expressivos em cada criança desde que haja estímulo ao seu desenvolvimento (GAGNÉ, 2009). Na pré-escola, quando as crianças são separadas por idade, é notável a diferença de uma criança para outra no domínio dessas habilidades. Algumas serão mais dadas a correr e jogar bola enquanto outras ficarão mais focadas em brincar com blocos ou quebra-cabeças. Umas andam mais rápido e falam tardiamente ou vice-versa. Quando determinadas aptidões começam a chamar atenção pela precocidade e intensidade, isto é, a rapidez como são desenvolvidas e com superior nível de qualidade, é o momento em que tais comportamentos podem ser qualificados como gifts, visto que parecem habilidades que já vem prontas como um presente. É o que acontece com o talento musical. Quando nós dizemos que a pequena Maria é uma pianista “nata”, nós certamente não estamos sugerindo que ela começou a tocar piano na maternidade, tampouco que ela estava apta a tocar um concerto nas primeiras semanas de aula de piano. Descrevendo seu talento como inato só fará sentido metaforicamente. Isso leva à ideia de que Maria progride rapidamente e aparentemente sem esforço através do seu programa de desenvolvimento de talento, em um ritmo muito mais rápido do que seus colegas aprendizes. O mesmo se aplica a habilidade natural. Crianças intelectualmente precoces desenvolvem suas habilidades cognitivas através dos mesmos estágios de desenvolvimento que outra criança. A diferença reside na facilidade e velocidade com a qual elas vão avançar através desses estágios sucessivos. O termo precoce diz tudo: Elas alcançam um nível dado de conhecimento e raciocínio antes da vasta maioria de aprendizes. E quanto maior o dom intelectual, mais cedo esses estágios sucessivos serão alcançados (GAGNÉ, 2009, p.73).5

Ainda sobre a questão do que é inato na superdotação, Gagné defende que seria preciso analisar as bases biológicas da constituição de cada um, que para ele se subdividem em fenótipos genéticos, fisiológicos e anatômicos. A constituição de cada ser desde as proteínas que compõe o gene até os processos bioquímicos necessários para o funcionamento do cérebro

5 When we says that little Mary is a “born” pianist, we are certainly not implying that she began playing the piano in the hospital nursery, nor that she was able to play a concerto within weeks of beginning her piano lessons. Describing her talent as innate only makes sense metaphorically. It will convey the idea that Mary progressed rapidly and seemingly effortlessly through her talent development program, at a much more rapid pace than that her learning peers. The same applies to any natural ability. Intellectually precocious children develop their cognitive abilities by going through the same developmental stages as any other child. The difference resides in the ease and speed with which they will advance through these successive stages. The term precocious says it all: They reach a given level of knowledge and reasoning before the vast majority of learning peers. And the higher intellectual giftedness will be, the earlier these successive stages will be reached (GAGNÉ, 2009, p.73).

26 são o que poderia ser considerado como inato e que subjaz o fenótipo comportamental. É interessante a descrição do exemplo acima, pois realmente não faz nenhum sentido a discussão sobre uma habilidade que já nasce com a criança. Pois até mesmo processos bioquímicos ligados ao processo de maturação de um organismo podem se alterar ao longo do desenvolvimento, e fatores externos sempre podem interferir, desde a desnutrição até situações de estresse. É interessante perceber que o exemplo escolhido por Gagné para ilustrar a eterna polêmica sobre o caráter inato do talento, tenha sido com relação ao aprendizado de música. De forma quase irônica, Gagné consegue alertar para insensatez da eterna discussão entre o que é inato e o que é adquirido ou aprendido, o eterno dualismo entre nature e nurture, como se fossem dois fatores contraditórios, opostos ou até mesmo impossíveis de coexistirem. Não se pode negar o aspecto biológico que subjaz todo comportamento humano, já que somos inevitavelmente seres biológicos. Portanto, insistir na polarização desses dois fatores essenciais ao desenvolvimento humano, é apenas um desgaste desnecessário que impede que a análise comportamental e circunstancial de todo processo de desenvolvimento de talentos evidencie os fatores que são realmente relevantes para melhorar de forma qualitativa a vida das pessoas que pretendem desenvolver suas habilidades, transformando talentos em competências profissionais, ou que, pelo menos, gostariam de aprender a lidar com elas, sem expectativas desnecessárias ou frustrações.

Onde está o talento musical na legislação da educação brasileira? Hoje em 2016, vinte anos após a sanção da Lei nº 9.394 de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, é possível perceber significativas mudanças com relação à tentativa de melhoria da educação básica escolar no que diz respeito ao olhar à diversidade e inclusão de crianças no sistema de ensino público regular (BRASIL, 1996). A necessidade de inclusão vem da constatação de que algumas crianças apresentam uma situação adversa de aprendizagem, que não se adapta ao padrão de ensino estabelecido para maioria, demandando atendimento educacional especializado. Este conceito aparece no Art. 4 (tópico III) da primeira redação da Lei nº 9.394, divulgada em diário oficial no dia 23 de dezembro de 1996, no Título III, que trata “do direito à educação e do dever de educar”, da seguinte forma: Art. 4º O dever do Estado com educação escolar pública será efetivado mediante a garantia de

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III- atendimento educacional especializado gratuito aos educandos com necessidades educacionais especiais, preferencialmente na rede regular de ensino (BRASIL, 1996, p. 27833, grifos meus).

Percebe-se que aquelas crianças que demandam atendimento educacional especializado são consideradas como educandos com necessidades educacionais especiais, contudo não é apresentado ainda na lei o que esses conceitos significam. Só em 2013, com a Lei nº 12.796, este tópico da lei foi alterado, com o propósito de especificar o que são educandos com necessidades educacionais especiais. III - atendimento educacional especializado gratuito aos educandos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação, transversal a todos os níveis, etapas e modalidades, preferencialmente na rede regular de ensino (BRASIL, 2013, p.1).

Apesar do conceito ter se desdobrado em três categorias diferentes, em nenhum momento da lei é explicado o que são educandos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação. A interpretação ou definição desses novos conceitos são dadas por resoluções do conselho nacional de educação a fim de operacionalizar o atendimento previsto pela lei. A resolução mais recente data de 2009 e define o público alvo da educação especial, compreendido nas três categorias apontadas pela lei são definidos como: I – Alunos com deficiência: aqueles que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, intelectual, mental ou sensorial. II – Alunos com transtornos globais do desenvolvimento: aqueles que apresentam um quadro de alterações no desenvolvimento neuropsicomotor, comprometimento nas relações sociais, na comunicação ou estereotipias motoras. Incluem-se nessa definição alunos com autismo clássico, síndrome de Asperger, síndrome de Rett, transtorno desintegrativo da infância (psicoses) e transtornos invasivos sem outra especificação. III – Alunos com altas habilidades/superdotação: aqueles que apresentam um potencial elevado e grande envolvimento com as áreas do conhecimento humano, isoladas ou combinadas: intelectual, liderança, psicomotora, artes e criatividade (BRASIL, 2009, p.17, grifo meu).

A terceira categoria de alunos com necessidades especiais, destacada em negrito, diz respeito àqueles considerados com altas habilidades ou superdotação. A música está compreendida nessa descrição como componente curricular específico da área de conhecimento artes, conteúdo obrigatório de ensino na educação básica conforme descrito na Lei nº 13.278 de 2016.6 Como dito no início, o olhar à diversidade compreende em perceber que, diante da

6 Em 2008 foi sancionada a lei nº 11.769 de 18 de agosto de 2008, que alterava o sexto parágrafo do artigo 26 com a pretensão de assegurar a música como conteúdo obrigatório do componente curricular do ensino de artes. Contudo, a redação deste parágrafo foi recentemente substituída pela lei nº 13.278 de 2016, que inclui além da música, as artes visuais, a dança e o teatro. É importante salientar que o ensino de artes já era obrigatório desde a

28 maioria das crianças que chegam à escola há aquelas que se diferenciam de alguma forma e que, por peculiaridades do seu desenvolvimento demandam um processo de ensino- aprendizagem especifico e especializado. O que seria então um educando que se diferencia da maioria por apresentar “um potencial elevado e grande envolvimento” com a música, enquanto conhecimento específico da área das artes? De volta à Lei nº 9.394 de 1996, ainda no artigo 4º do título III, consta também como dever do Estado, expresso no tópico V, o “acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um” (BRASIL, 1996, p. 27833, grifos meus). Este tópico se mantém inalterado até hoje e está diretamente relacionado às especificidades dos alunos com altas habilidades ou superdotação. Não pelo fato desses alunos serem privilegiados pelo direito ao “acesso aos níveis mais elevados do ensino”, mas em sentido inverso, por serem justamente, os educandos que demandam “níveis mais elevados de ensino”, os que devem ser identificados como educandos com altas habilidades ou superdotação. A preocupação com esse perfil de educando se faz ainda mais presente na legislação brasileira a partir da última alteração da Lei nº 9.394 de 1996, imposta pela Lei nº 13.234 de 29 de dezembro de 2015, na qual fica expresso o dever do Estado com a identificação precoce desse perfil de alunado e seu devido cadastro no censo escolar. Art. 59-A. O poder público deverá instituir cadastro nacional de alunos com altas habilidades ou superdotação matriculados na educação básica e na educação superior, a fim de fomentar a execução de políticas públicas destinadas ao desenvolvimento pleno das potencialidades desse alunado. Parágrafo único. A identificação precoce de alunos com altas habilidades ou superdotação, os critérios e procedimentos para inclusão no cadastro referido no caput deste artigo, as entidades responsáveis pelo cadastramento, os mecanismos de acesso aos dados do cadastro e as políticas de desenvolvimento das potencialidades do alunado de que trata o caput serão definidos em regulamento (BRASIL, 2015, p.1).

O motivo da lei descrita acima, tratar especificamente do cadastramento de alunos com altas habilidades ou superdotação, se deve ao fato deles terem ficado sistematicamente de fora do censo escolar. O cumprimento do dever com relação ao cadastramento destes alunos ainda é irrisório perto da tarefa de identifica-los nas salas de aula da escola regular. E essa identificação depende da teoria que embasa a avaliação pedagógica dos alunos. Por exemplo, algumas teorias da inteligência consideram apenas como característica da superdotação o bom

primeira redação da lei nº 9.394 conforme assegura o segundo parágrafo desde mesmo artigo. O fato de a música ter sido descrita em uma lei específica acrescentando o sexto parágrafo desencadeou a necessidade de acrescentar também as outras artes, uma vez que em uma lei não pode haver o destaque de uma arte em detrimento de outras. 29

desempenho em tarefas acadêmicas que dizem respeito a disciplinas como matemática, ciências ou línguas, não incluindo nem as artes nem os esportes. Se incluirmos essas duas outras áreas de conhecimento, a incidência de alunos com altas habilidades ou superdotação deve aumentar consideravelmente. A importância de se identificar e cadastrar o aluno com altas habilidades ou superdotação implica em questões administrativas e executivas importantes, pois como está previsto no Decreto nº 7611 de 2011, toda criança identificada como público alvo da educação especial tem direito a dupla matrícula, uma pela vaga em turma regular e outra pela vaga em sala de recursos de atendimento educacional especializado. Essa dupla matrícula implica que cada aluno computa para a escola onde está matriculada a verba proveniente do FUNDEB duplicada. Isso significa que a escola que têm alunos com necessidades educacionais especiais, teoricamente, tem mais recursos para investir na educação especial (BRASIL, 2011, p. 6). Os alunos com altas habilidades ou superdotação são os mais difíceis de serem identificados, pois a avaliação não se dá por um parecer médico como no caso daqueles com deficiências ou transtorno global do desenvolvimento. O parecer deve ser pedagógico, pois o que caracteriza um aluno com altas habilidades ou superdotação é a sua facilidade ou rapidez para aprender e a forma como se envolve com seu próprio processo de aprendizagem. Muitas vezes são alunos que passam desapercebidos por toda sua trajetória escolar, ou então, devido a não compreensão das suas necessidades educacionais pela escola, são rotulados como crianças problemáticas, hiperativas, com déficit de atenção, entre outros rótulos inadequados. No caso dos alunos que apresentam alguma habilidade artística, eventualmente pode haver o reconhecimento de suas habilidades como talento, contudo, na maioria das vezes, não é comum a escola estabelecer uma relação entre esse talento e as altas habilidades ou superdotação. Este é justamente outro fator que dificulta a associação do talento artístico ou esportivo com conceito de altas habilidades ou superdotação na forma como é expresso na lei, visto que essa expressão não é utilizada no senso comum. No campo das artes e dos esportes é comum utilizar a palavra talento para se referir as habilidades que uma pessoa demonstra com extrema competência. Seria as altas habilidades ou superdotação um sinônimo para o talento? De forma paradoxal, a palavra talento, no que diz respeito aos documentos emitidos pelos órgãos oficiais do governo brasileiro, aparece apenas em programas de fomento na área da ciências e não das artes, como o Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica no Ensino Médio (PIBIC-EM), promovido pelo CNPq7, que seleciona estudantes do ensino fundamental e médio

7 Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.

30 para participarem em projetos de pesquisas nas universidades ou Programa Jovens Talentos para a Ciência promovido pela CAPES8 que visa a iniciação a pesquisa cientifica de alunos recém ingressos na universidade. Mesmo que o estado brasileiro tenha demonstrado por meio de uma avalanche de leis e decretos voltados para educação especial, vistos aqui parcialmente, garantir o atendimento educacional especializado a alunos com necessidades especiais, nem tudo que está previsto em lei é viável de ser aplicado na prática, pois nem sempre as escolas contam com recursos humanos e tecnológicos suficientes para subsidiar uma prática pedagógica eficaz. Não é toda escola que tem professor de artes, material e recursos necessários para a realização das atividades artísticas. Nem toda escola tem espaço para o desenvolvimento de habilidades esportivas, mesmo que tenha um professor de educação física. E mesmo quando a escola conta minimamente com esses recursos, é limitada a capacidade do professor especialista de atender a demanda de alunos talentosos, que aprendem mais rápido e requisitam um aprendizado cada vez mais intenso e especializado. Em turmas com muitos alunos, cada qual com potencialidades e interesses distintos, é difícil o professor dá conta de todas as demandas de aprendizagem. É neste momento que a escola pública regular precisaria contar com o apoio de instituições parceiras que oferecessem serviços especializados. De certa forma é assim que alunos com altas habilidades, ou talentosos, vem sobrevivendo a educação escolar, mantendo- se na escola por falta de opção e procurando fora da escola um aprendizado que venha suplementar sua demanda por conhecimento. Para famílias que tem condições financeiras, já é tradição custear o ensino de música para seus filhos com professores particulares ou escolas especializadas, visto que na escola regular é muito difícil um ensino satisfatório que atenda as especificidades da formação musical ideal para cada aprendiz. Contudo, para as famílias que não podem pagar, crianças que têm interesse em aprender música, ficam ao encargo da sorte. Muitas vezes esse aprendizado se dá em casa, de forma autodidata com o auxílio de livros, vídeo, internet, etc. ou com ajuda de pessoas que estão ao seu redor, como familiares ou amigos. Também é comum o aprendizado acontecer em espaços como a roda de samba, um sarau, um baile, casa de amigos ou em espaços religiosos como igrejas ou terreiros. Neste sentido, existe ainda um outro problema: quanto mais a habilidade da criança se distancia dos conteúdos formais de aprendizagem na escola, menor é a chance de a criança poder demonstrar seu potencial na escola a ponto de serem reconhecidas suas “altas habilidades”. Um aluno que tenha, desde pequeno, se tornado Ogan (sacerdote guardião dos

8 Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. 31

terreiros, responsável pelos toques e cantigas dos cultos de matriz africana) e que seja um exímio tocador de atabaque não será reconhecido como uma criança talentosa na escola, pois a habilidade de tocar atabaque, da forma que acontece no culto sequer é reconhecida como habilidade musical quando comparado ao ensino formal de música que se apoia na tradição musical europeia. Sem contar o fato de que, pelas religiões de matriz africana sofrerem preconceito e discriminação, o aluno que é Ogan pode preferir esconder suas habilidades por medo ou vergonha. Já em igrejas de religiões cristã a educação musical segue o padrão europeu incluindo o ensino de instrumentos musicais convencionais, leitura e escrita de partitura. Muitos alunos que conseguem passar no Teste de Habilidade Específica (THE) exigido no acesso ao curso superior de música, tiveram sua formação musical iniciada nesses espaços. De qualquer forma, essas habilidades não chegam a serem percebidas pela escola, salvo em momentos de confraternização que acontecem a parte das atividades do ensino regular, como em festas, saraus, quermesses, bazares, etc. Por vezes os alunos participam dessas festividades dentro da escola e demonstram suas habilidades artísticas, mas estas não são reconhecidas como parte do processo de escolarização e não são levadas em conta como indicativo para avaliação de altas habilidades ou superdotação. Mas a arte de uma forma geral tem seus próprios métodos de educação, e quando as crianças reconhecem suas habilidades a partir de um desejo ou paixão e encontram em algum lugar, dentro ou fora da escola, a possibilidade de se desenvolver e se expressar, elas ultrapassam os obstáculos através das falhas do sistema educacional e criam seus próprios recursos de aprendizagem. Basta uma rápida reflexão sobre como os artistas da música popular brasileira desenvolveram suas habilidades musicais e atingiram determinada eminência, para se convencer que, no desenvolvimento da cultura musical brasileira a contribuição da escola com relação a formação musical dos artistas que fizeram sua história foi, na melhor das hipóteses, insuficiente.

O talento musical à margem da escola Então é... a escola é extremamente importante, talvez por isso ela esteja tão sucateada, né? Porque você mata é na raiz, né? Quando o feijãozinho germina ali, eu mato ele afogado, eu arranco ele do algodãozinho, né? Já que a gente tá falando de escola, a primeira referência que a criança tem de; “olha como é que é o lance”: vamos tentar levar um pouco de poesia pra coisa. É uma grande poesia essa primeira experiência científica. Então a pessoa sabe que é ela ali, porque depois que o tronco tá forte, sobreviveu a chuva, ao sol, dá mais trabalho, você ir lá e fazer o trabalho, entendeu? (sic) (Entrevista concedida pro Criolo à autora em agosto de 2016).

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A escola pública parece não favorecer o ensino de música de forma a ser possível observar um processo de aprendizagem e avaliação do desenvolvimento dos talentos dos alunos. Fora da escola parece ser bem mais fácil perceber a musicalidade das crianças, o engajamento em atividade musicais, a vontade de desenvolver habilidades técnicas e o sonho de se tornar um artista da música. Isso nos leva a questão de como as crianças vem desenvolvendo o talento musical e em que tipo de ambiente de aprendizagem. Fora da escola o talento não é um problema, nem um tabu. Na realidade, para aqueles que desenvolvem seus talentos sem uma educação formal, fora da escola regular ou mesmo fora de escolas especializadas em ensino de música, não há nenhum problema em se considerar talentoso ou reconhecer o talento de alguém que faz parte do seu meio social. Poderia se deixar o desenvolvimento de talentos ao encargo da sorte, do acaso ou da determinação pessoal de cada um. Mas a discussão conceitual a respeito do talento no contexto escolar se faz necessária no campo da educação musical no momento em que, como foi visto, nos documentos que legislam a educação brasileira, os alunos talentosos são aqueles que apresentam habilidades artísticas acima da média, e o conceito de altas habilidades ou superdotação é o que vem sido utilizado para se referir a esse tipo de alunado (BRASIL, 1996). Diante dessa circunstância, a identificação e desenvolvimento do talento musical de crianças e jovens em idade escolar deveria ficar ao encargo dos professores de música. Contudo, como já foi dito, a realidade da educação escolar pública brasileira pouco dispõe de recursos para a educação musical de crianças e jovens a altura do potencial que determinados alunos apresentam em relação ao talento musical. Isso se torna mais proeminente quando se percebe que a musicalidade de alunos que nascem e moram em comunidades marginalizadas sobressalta a olho nu, na sua forma de falar, gesticular, dançar, produzir e consumir música dentro das escolas. Contudo, essa musicalidade nem sempre é aproveitada e desenvolvida na prática do professor de música que, por falta de recursos físicos, como instrumentos musicais e equipamentos necessários ao ensino de música, tenta criar propostas pedagógicas que são sempre limitadas aos recursos disponíveis (PIZZATO & HENTSCHEKE, 2010). Na maioria das vezes, ao corpo da criança como instrumento musical ou a sucata, e nada mais. Outra barreira perceptível a educação musical nas escolas diz respeito a diferenças culturais com relação ao que se entende por música e principalmente ao que se entende por boa música. Pode-se dizer que se trata não só de uma questão de recursos e investimentos, mas também de uma questão cultural (como no exemplo dado do pequeno Ogan); e ideológica, em 33

que a educação musical foi pleiteada por uma elite como sendo obrigatória em todo o processo de escolarização, mas sem nenhum embasamento com relação ao tipo de educação musical que deve ser implementada, o conteúdo que deve ser passado, ficando ao encargo de cada professor aprender a lidar com esses desafios (GAULKE, 2013). Por outro lado, a prática musical dentro das favelas, por exemplo, é algo intenso e constante, que envolve toda a comunidade diariamente, sendo um produto de consumo, de aprendizado, de comércio, de educação, de valores e principalmente de identidade. Fora das escolas a realidade não é banal. Raramente os professores conseguem participar da realidade das ruas da comunidade, por estar aparentemente protegido pelos muros da escola, que separa o sistema institucionalizado de ensino do sistema marginal de aprendizagem. Enquanto planejam algo de música para ensinar a seus alunos, estes demandam muito mais do que uma educação musical, mais do que educação, demandam segurança, conforto, carinho, apoio, compreensão e perspectiva para se manter motivado a permanecer na escola. Em escolas que atendem crianças e jovens de comunidades onde a violência e a pobreza são sempre iminentes, dificilmente a educação musical como parte do currículo regular irá suplantar esses problemas sociais e fazer a diferença, salvo em situações pontuais. Atividades extracurriculares ou organizadas por organizações não governamentais fora da escola costumam fazer mais sucesso e ter maior capacidade de transformação. A música consumida nas favelas nem sempre é aceita dentro da escola, da mesma forma que nem todo professor de música está disposto a promover uma prática musical em que os alunos possam se expressar da maneira como aprendem fora da escola. Do lado de fora, nas ruas, o talento musical é produto de valor e comércio. Se tornar um MC de funk ou rap se transformou no sonho mais vendido e produtores musicais saem a busca de crianças e jovens talentosos para transformá-los em grandes estrelas. E acredite, o mercado “tá favorável”9 a esse tipo de atitude. A cultura musical das favelas se tornou algo de grande valor comercial, com retorno financeiro para os jovens que conseguem se projetar no mercado da música, e ganho social para a própria comunidade, que passa a ter o seu próprio produto cultural de consumo, não só consumo de música, mas de valores, comportamentos, estéticas e arte de uma forma geral. A Kondzilla Filmes, uma produtora de filmes e videoclipes criada pelo paulista Konrad Dantas, o “Spielberg do Funk” conseguiu estabelecer um padrão de qualidade tão alto na

9 “Tá tranquilo” é uma expressão usada no funk do MC Bin Laden, lançada final de 2015 que virou um jargão. In: MC Bin Laden - Ta Tranquilo Ta Favorável (Clipe Oficial) [data de upload: 18 de nov, 2015]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=vkJ5Lc0WwVw > Acesso em, 18 de out, 2016.

34 produção da imagem do funk nacional, que se tornou um dos canais brasileiros do youtube de maior visualização10. Os MCs que a Kondzilla promove, são jovens identificados como talentosos por empresas como a GR6, que além de garantir a produção musical de qualidade, mantém uma estrutura física de acolhimento aos jovens talentos, com “quadra poliesportiva, piscina, estúdio de gravação, aulas de música e consulta com psicólogos para preparar os MCs mirins e adolescentes para a carreira” (MALDONADO, 2015)11. Segundo o dono, Rodrigo GR6 como é conhecido, sua empresa é uma fábrica de sonhos. Em depoimento, Juninho Love, produtor executivo da GR6, afirma: Já perdi a conta de pais que chegam aqui na GR6 dizendo que gostariam muito que déssemos uma oportunidade para os filhos deles. Hoje, cantar funk é mais ou menos igual a ser jogador de futebol. É um atalho para sair da pobreza (LOVE, 2015)12.

É importante notar que o funk, apesar de ter sua raiz carioca, se profissionalizou a esse nível em São Paulo, não apenas pela “ostentação” dos MCs paulistas, mas principalmente por ter encontrado visibilidade através dos videoclipes e a acessibilidade que o youtube proporciona. Segundo Konrad Dantas no começo foi bem difícil, não tinha esse volume de conteúdo no youtube, muito menos pra videoclipe e pior ainda pro funk. Ninguém fazia videoclipe pra funk. Fiz o primeiro de funk, deu mais ou menos certo. Mandei pra um festival chamado “Curta Santos” e ele foi indicado. E no segundo videoclipe deu um milhão de exibições em um mês, só que eu achei que podia ser sorte. Aí fiz o terceiro videoclipe de funk, que foi o do MC Guimê, “Tá Patrão”, deu um milhão em duas semanas. Eu fale: “eu acho que eu tô no caminho certo” (DANTAS, 2016)

Como em um efeito dominó, quanto mais apresentável é a “cara do funk” nos videoclipes, mais popular o funk se torna e, além de conquistar maior audiência, passa a representar de fato uma realidade profissional muito mais promissora do que a escola pode oferecer. A competição com a escola é desleal, pois além de render um bom dinheiro, fama e diversão estão garantidas. Mesmo que a rotina diária de shows seja cansativa, a glória de ser um artista parece compensar, principalmente para jovens que de outra forma não teriam nenhuma perspectiva de qualidade vida, ou mesmo de sobrevivência. Independentemente do que se possa considerar como um desenvolvimento saudável para crianças e jovens, os artistas

10https://www.facebook.com/kondzilla/photos/a.216898575084523.46723.117431205031261/100494579627979 3/?type=3&theater 11 MALDONADO, Helder [reportagem para o site R7]. Funkeiro vira profissão dos sonhos na periferia e garante cachê de R$ 25 mil por show de dez minutos [Data de publicação: 11 setembro, 2015). Disponível em: http://entretenimento.r7.com/pop/funkeiro-vira-profissao-dos-sonhos-na-periferia-e-garante-cache-de-r-25-mil- por-show-de-dez-minutos-11092015 Acesso em: 21 maio, 2016. 12 Ibid.

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do funk, mesmo os mais novos, não vivem uma realidade artificial, pois o funk já faz parte do dia a dia das favelas. O baile de funk é o melhor entretenimento e mais esperado evento social, seja para quem está em cima do palco ou na plateia. A música “baile de favela” do MC João, por exemplo, descreve em poucas palavras e muito ritmo o que é diversão para esses jovens. Konrad Dantas conta como previu o sucesso dessa música garantido pela autenticidade dos acontecimentos que compôs o videoclipe. Tem coisa que a gente acha, tem coisa que a gente tem certeza. Igual eu falei: “eu tenho certeza que se eu fizer clip de funk vai estourar”, estourou. Mas tem muita coisa que eu erro também, é... “Baile de Favela” foi uma das poucas coisas que eu acertei assim de: “Opa, isso aqui vai estourar”. É um documental do que seria um fluxo, do que seria um baile de favela. Então... a letra é bem curta não tinha muito pra onde fugir, tinha que ir nas locações que ele citava na música. A gente saiu pra filmar o baile de favela uma vez e a tropa de choque tava na locação, tacando bomba, dando borrachada, e.... dispersando aquela galera, mas isso é comum, pô (sic) (DANTAS, 2016).

“Baile de favela” é o vídeo de maior popularidade do canal Kondzilla no youtube.13 Em oito meses alcançou mais de 114 milhões de visualizações. Talvez o fato de as imagens serem reais mostrando o movimento de pessoas que frequentam os bailes tenha contribuído para sua popularidade. Esse tipo de videoclipe que aproveita como locação o próprio ambiente que a letra descreve, já havia sido utilizado no rap, que tem como discurso principal mostrar a realidade da favela sem maquiagem. MV Bill, o mais influente cantor de rap do Rio de Janeiro, chegou a ser investigado por apologia ao crime, dado o grau de realidade que o videoclipe “Soldado do Morro” deixou transparecer.14 A associação de imagem à música já teve o apogeu garantido por Michael Jackson com o lançamento de Thriller, mas o que antes se levava muito tempo para perceber o efeito da popularidade, hoje é imediato. Apesar de ter ganho visibilidade com videoclipes de funk, a Kondzilla em maio de 2016 lançou o clip da música “Preto Zika” do último álbum dos Racionais MC’s, o primeiro grupo de rap nacional a se tornar popular no início da década de 90. Em três semanas o vídeo alcançou mais de 3 milhões de visualizações, mostrando que não é só a imagem do funk que sustenta a audiência do canal.

13 Em relato informal, uma professora de música de uma das escolas particulares mais caras do Rio de Janeiro me informou que constantemente seus alunos do 4º ano (9-10 anos de idade) pedem para que ela tocar a música Baile de Favela em seu instrumento. Isto cria uma situação delicada, pois se o funk é proibido em escolas públicas dentro de favelas, que dirá em escolas da elite carioca. Relatos como esse vem comprovar que a popularidade do funk não se limita mais ao espaço social em que ele surgiu inicialmente. 14 ESTADÃO [Reportagem] MV Bill deve depor em janeiro sobre clima polêmico. [Data de publicação: 27 dezembro, 2000]. Disponível em: http://cultura.estadao.com.br/noticias/musica,mv-bill-deve-depor-em-janeiro- sobre-clima-polemico,20001227p4398 Acesso em: 22 outubro, 2016.

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Mas a atual popularidade do rap nacional estreou com os trabalhos dos MCs Emicida e Projota15, que adquiriam a experiência como MCs em batalhas de freestyle. Ambos alcançaram a popularidade distribuindo suas músicas em mixtape ou EP16 de mão em mão e via internet. Se tornaram produtores de si mesmo e o empreendimento que começou de forma independente hoje é referência para quem quer se lançar no mercado como MC. Emicida junto com seu irmão Fióti começaram seu pequeno empreendimento de forma caseira: o selo, gravadora e produtora conhecido como Laboratório Fantasma se tornou um grande império na cena do rap e, consequentemente, um estímulo para que outros MCs de rap ousassem arriscar a carreira artística de forma independente. Para Daniel Ganjaman, o trabalho dele [Emicida] com o Laboratório Fantasma, é ele com o irmão dele [Fióti] e tal, é um case de sucesso assim, sabe, de dois irmãos que vieram, sabe, da periferia extrema, assim, sabe, e no trabalho de formiguinha conseguiram construir uma coisa que hoje em dia é muito muito grande. O último disco que eu produzi foi do Rael17, que eu produzi pra gravadora deles, né, do Laboratório Fantasma. Então pô, pra mim eles são um orgulho, assim, sabe, de... também uma resposta; quando eu digo uma resposta, na verdade quer dizer assim é... durante muito tempo, tentou-se enfiar goela abaixo um formato falido, assim, sabe de pagar jabá, de gravadora, de assinar e um determinado produtor produzir essa coisa. E aí o cara da gravadora que dava os palpites dele e enfim, acho que tentou-se enfiar isso aí goela abaixo durante muito tempo, mesmo quando já se identificou que isso aí era um formato falido. (...)E aí a reinvenção veio de outro lado. Veio das periferias, véio, literalmente, né? Das periferias assim... (Entrevista concedida por Daniel Ganjaman à autora em agosto de 2016). Apesar do rap e o funk se distanciarem principalmente pelo conteúdo das letras e o tipo de atitude política, eles são fruto da mesma cultura musical que chegou ao Brasil na década de 80 junto com os vinis de “black music” tocados pelos DJs18 em bailes a moda jamaicana. Por mais que os caminhos trilhados pelos funkeiros ou raperos, como diria MV Bill, sejam diferentes, em se tratando de música de favela, da música que é criada e consumida pela juventude periférica, o funk e o rap tem tido significativa contribuição na formação musical de muitos jovens, em sua maioria sem acesso ao ensino formal de música. A aprendizagem de música nesses contextos se dá pelo estímulo musical que vem do ambiente social, uma música

15 O vídeo mais popular do Projota alcança hoje mais de 67 milhões de visualizações. Já o vídeo do Emicida mais popular conta com a participação da Vanessa da Mata e alcançou em um ano mais de 20 milhões de visualizações. 16 Mixtape é um uma forma de apresentar um trabalho musical em algum tipo de mídia, que antigamente visava conseguir contrato com alguma gravadora. EP é a sigla para Extended Play, um formato menor que um álbum, e maior que um single. É a forma mais utilizada hoje em dia para apresentar a música de um artista novo, sendo o meio mais fácil de divulgação a internet por downloads gratuitos, contudo costuma-se produzir uma versão física cuja distribuição pode ficar ao encargo do próprio artista. 17 Rael é um MC integrante do grupo de rap Pentágono, que alcançou uma popularidade expressiva como artista solo. Seu vídeo mais popular alcançou mais de 30 milhões de visualizações em dois anos. Esse ano ele lançou um novo álbum produzido pelo Laboratório Fantasma. 18 Sigla para disc-jóquei: o músico que coloca os discos para tocar em uma festa. 37

que faz parte da vida dessa juventude desde a infância, que acompanha seu crescimento que acontece junto com desenvolvimento da cultura local. Assim como outrora o samba era a música do “morro”, hoje o funk e o rap nacional ocupam também esses espaços, e não apenas no Rio de Janeiro e em São Paulo, mas em todo o país. O que determina a aprendizagem de música em ambientes onde a cultura musical é muito intensa, como é o caso das periferias, é o envolvimento afetivo com a música que surge na cena como um entretenimento coletivo, talvez o principal entretenimento que acontece nesses ambientes, sejam em bailes, rodas de samba, festas familiares, religiosas, etc. O fato da educação musical escolar, quando presente, não contribuir significativamente para formação musical dos jovens que por venturam se destacam como profissionais da música nesses ambientes e para fora deles, não é um problema em si. Na verdade, percebe-se que a cultura musical que acontece fora das escolas não compartilha dos mesmos processos de desenvolvimento se comparado com o ensino de música da forma tradicional, que perdura na educação musical brasileira ainda com resquícios da tradição musical europeia, nos moldes de uma erudição que se apoia na cultura escrita e em um repertório mumificado como patrimônio. Hoje, com toda a instabilidade política do governo brasileiro que vem interferindo diretamente na educação escolar, na formação de professores e na sociedade de uma forma geral, provocando um clima de insegurança com relação ao tipo de educação que teremos daqui para frente, é preciso pensar em que medida a escola realmente contribui para a educação da juventude, principalmente aquela dependente do sistema público de ensino. A cultura periférica com seus valores, métodos, políticas e estratégias de sobrevivência tem se mostrado mais proeminente com relação a contribuição para o patrimônio cultural nacional sem mesmo contar com a ajuda da escola. A música, historicamente falando, em especial a canção, sempre contribuiu para formação crítica e política da sociedade brasileira, como aconteceu durante a ditadura militar, tendo sido censurada e desencadeado a perseguição de artistas que até hoje são ícones da música popular do nosso país. O papel da música na formação da consciência política não tem como ser separado do seu processo de aprendizagem, pois está diretamente relacionado a motivação, ao engajamento da juventude que vê na arte um meio pelo qual é possível se expressar, comunicar ideias e transformar comportamentos. A música que acontece fora da escola dá voz a milhares de jovens que conseguem enxergar. por cima da pobreza em que vivem, uma lógica cruel de manutenção da condição social a que estão submetidos. A escola é a instituição representante desse sistema que está mais próxima da juventude e cujo propósito parece ser justamente contribuir para essa manutenção, como é possível perceber a partir de uma análise da história dessa instituição. O estudo do

38 talento musical e do seu reconhecimento na educação escolar e pública é um campo de pesquisa espinhoso, já que, reconhecer os talentos da juventude oprimida e marginalizada implica em dar valor a comportamentos que podem corromper o próprio sistema vigente. Isso no que diz respeito aos talentos artísticos, pois como foi visto na revisão da legislação, há um grande incentivo em reconhecer o talento científico, aquele que vai ser desenvolvido e direcionado a favor das necessidades do sistema na descoberta de novas tecnologias, novos empreendimentos que venham dar subsídios a demanda de inovação e solução para os problemas intrínsecos a ele, na melhor das hipótese, ou apenas formar uma mão de obra especializada que atenda a demanda profissional do mercado. Diante dessa análise torna-se desnecessário formular questões do tipo: por que o talento musical não está sendo valorizado nas escolas? É preciso se perguntar, qual o papel do professor de música em um sistema social que não valoriza a música como profissão, apenas como produto, deixando a formação musical ao encargo da sorte. Contudo, desmerecer o papel do professor de música não vai contribuir para a construção do conhecimento de como se desenvolve o talento musical. Neste caso a questão chave para esse problema, ficaria melhor ser expressa da seguinte forma: como o talento musical vem sendo desenvolvido por crianças e jovens, independente da escola ou da educação musical formal, visto que a música está por todo lugar e, como produto social, tem seu valor?

Objetivo e Justificativa A partir dessas questões essa pesquisa objetivou averiguar as condições que favorecem o desenvolvimento do talento musical e a eminência profissional19 na cena do rap, a fim de propor uma nova abordagem metodológica para o ensino-aprendizagem de música a partir da construção de um modelo de análise do talento musical, tendo como matriz teórica as ideias de Vygotsky acerca do desenvolvimento cultural e como matriz empírica o estudo da trajetória artística de Kleber Cavalcante Gomes, MC, cantor e compositor conhecido pelo nome artístico Criolo e mais seis músicos parceiros que o acompanharam em diferentes momentos da sua trajetória, a saber: Cassiano Sena – DJ Dandan, (MC, DJ, compositor, cantor) Daniel Takara – Ganjaman (Produtor musical, arranjador, multi-instrumentista), Welbe Colombo (DJ), Marcelo Cabral (Produtor musical, arranjador e baixista), Marco Antônio de Souza – DJ Marco (DJ, produtor musical) e Ricardo Rabelo (Compositor, banjoísta e cavaquinhista).

19 Por eminência profissional na música entende-se um momento da trajetória artística de um músico em que ele consegue se estabelecer como músico profissional e alcançar visibilidade e reconhecimento em seu meio cultural. 39

A relevância desse estudo consiste em contribuir para área da educação musical com um novo olhar para o desenvolvimento do talento musical, na forma como acontece a margem da escola e do ensino formal de música, a fim de poder evidenciar elementos e circunstâncias que favorecem uma trajetória artística eminente. Não se trata apenas de um estudo de caso, mas da proposta de um modelo que possa servir para analisar o desenvolvimento do talento musical a partir da avaliação do comportamento de músicos profissionais, a fim de identificar fatores pessoais e circunstanciais que favorecem o desenvolvimento do talento de um músico ao mesmo tempo que interfere na cultura musical do meio em que surgem, reconfigurando a cena musical. Acredita-se: 1) que o resultado dessa análise favoreça ao entendimento da relação entre talento musical e aprendizagem de música da forma como ele acontece no meio social sem ensino formal de música; e 2) que esse entendimento desencadeie novas discussões no campo da educação musical a fim de refletir o papel do professor de música na escola regular e sua contribuição para o desenvolvimento do talento musical de crianças e jovens em relação a eminência profissional. O MC Criolo foi escolhido como pivô desse estudo devido a sua singular trajetória artística que, devido as dificuldades de não ter tido nenhum suporte para a aprendizagem e desenvolvimento do seu talento musical ou recursos financeiros para investimento em sua carreira, só conseguiu alcançar a eminência profissional tardiamente, a partir do lançamento do seu segundo álbum de estúdio, o Nó na Orelha, quando pretendia desistir da música como profissão.

A eminência que deu um Nó na Orelha da música brasileira Hey, no hip hop não existe rei E eu não fiz o rap, mas o rap foi que me fez Eu tô falando daquele que até a respiração sai rimando Dá vontade de chorar, me emociono, não tem como. O desperdício de talento feito água que foge do cano Quem fez o buraco eu não sei, mas o rap vai consertando. (Criolo, trecho da canção - Até me Emocionei, 2006).

Em 11 de janeiro de 2014, foi realizado o show de estreia da turnê “Clube do Milton”, cuja proposta do cantor e compositor Milton Nascimento era convidar amigos e parceiros para se apresentarem com ele. O palco era da Fundição Progresso20, lotada de fãs de todas as idades ansiosos por poder rever ou ver pela primeira vez o grande Bituca21 ao vivo, cantando suas canções. Um dos músicos convidados, Criolo, deveria cantar Travessia, composição de Milton Nascimento e Fernando Brant, que levou Milton ao reconhecimento nacional e internacional,

20 Casa de shows situada no bairro da Lapa, na cidade do Rio de Janeiro 21 Apelido de infância de Milton Nascimento.

40 lhe rendeu prêmio de melhor intérprete e o duvidoso segundo lugar no II Festival Internacional da Canção de 1967, promovido pela Rede Globo. Era para ser um dueto singelo, Milton e Criolo intercalando a interpretação das estrofes da canção. Mas tamanha foi a emoção de Criolo, que ele apenas conseguiu aparar suas lágrimas no ombro de Milton. É inevitável para qualquer fã, a emoção de ver seu ídolo no palco, cantar uma daquelas músicas que representa, não só a arte por ela mesma, mas um momento histórico da música brasileira. Aquela música que fica na memória, marcada pelo timbre de voz único, de um músico cuja contribuição para música popular é indiscutível. Uma música que traz lembranças pessoais, sejam elas quais forem, para cada um que já a escutou no passado. Se isso é emocionante para um fã protegido pela fronteira entre palco e plateia, imagina para quem está lado a lado com seu ídolo, somado ao desafio de interpretar Travessia. Olhando por esse prisma é compreensível a emoção do cantor Criolo ao lado de seu ídolo Milton Nascimento. A performance de Criolo ao palco pareceu um tanto curiosa, afinal – quem é Criolo? O que impressionou não foi apenas o seu estado emocional ao lado de Milton Nascimento, mas seu jeito de cantar, de dançar e a peculiaridade estilística das músicas de sua autoria, que interpretou junto com Milton; ele o ajudou a lembrar da letra de um samba que fala da “Turma da Mônica” e cantou para Ogum, em um rap com beats difíceis de precisar, referenciando Sabotage22, Chico Buarque, Mulatu Astatke23 e Fela Kuti24 de uma só vez. Para além da poesia e referências de suas músicas, era visível em seu comportamento um algo a mais, alguma coisa inexplicável para além da música e de suas habilidades musicais, que sobressaía através da emoção com que se colocou no palco ao lado de Milton Nascimento e mobilizou a todos. Poderíamos chamar isso de talento? O primeiro encontro de Milton Nascimento e Criolo, foi circunstancial, no teatro municipal da cidade do Rio de Janeiro, no 23º Prêmio da Música Brasileira em 2012, em que Criolo foi vencedor em três categorias, “‘Revelação’, melhor cantor e álbum na categoria Pop/Rock/Reggae/Hip-Hop/Funk” (DAMIÃO, 2012)25. Em 2013, Milton sobe ao palco do Circo Voador para dar um abraço em Criolo durante o show da turnê Nó na Orelha que resultou

22 MC, compositor de rap, e ator, cujo álbum, Rap é compromisso lançado em 1999 é reconhecido até hoje como um clássico do rap nacional. Sua trajetória artística no rap, apesar de eminente foi interrompida pelo seu assassinato em 2003. 23 Músico percussionista de jazz da Etiópia. 24 Músico nigeriano conhecido pelo criador do estilo aforbeat, que mistura jazz com ritmos percussivos característicos da música tradicional nigeriana. 25 DAMIÃO. Renato. Criolo vence em três categorias no Prêmio da Música Brasileira 2012. In: UOL Música [Data de publicação: 13 junho, 2012]. Disponível em: http://musica.uol.com.br/noticias/redacao/2012/06/13/organizacao-do-premio-da-musica-brasileira-2012- divulga-vencedores.htm Acesso em: 27 fevereiro, 2016. 41

na gravação do DVD – Nó na Orelha ao vivo no Circo Voador (CRIOLO, 2013). Mas a amizade e parceria entre os dois foi algo construído. A participação de Criolo no show de Milton na Fundição Progresso foi apenas o primeiro momento de uma parceria que deu certo, pois cinco meses depois, Milton Nascimento lançava a turnê Linha de Frente, nome de uma das canções do álbum Nó na Orelha de Criolo, com estreia no palácio das artes em Belo Horizonte. MILTON: Há um tempo atrás começou um movimento na minha casa. Então a rapaziada toda a falar do Criolo e um dia me levaram para ouvir o Criolo ao vivo... Bateu! Depois a gente se encontrou, no camarim, né? E aí, ficou “baiano”, que tal a gente fazer alguma coisa juntos, não foi assim? CRIOLO: É, foi justamente desse jeito... A música, né, a música faz com que a gente se encontre, e esse encontro foi muito maravilhoso. Eu fiz uma pequena participação quando você cantou na Fundição Progresso, que foi uma coisa linda um paredão de seis mil pessoas vibrando, mandando energia pra gente. MILTON: Nossa foi uma coisa assim, inesquecível! CRIOLO: Foi muito especial, cara! (MILTON E CRIOLO, 2014).26 Milton Nascimento é conhecido como um grande apadrinhador de novos talentos. Sua agenda de shows é repleta de apresentações em parcerias com músicos não tão famosos como ele. Mas quando ele conheceu pessoalmente Criolo, este já havia se tornado um músico eminente, com público cativo que transcendeu a fronteira do hip hop, meio em que Criolo se desenvolveu como poeta, compositor, MC e idealizador da famosa Rinha dos MC’s. Na entrega do prêmio VMB 2011 da MTV, teve a oportunidade de cantar sua música premiada Não existe amor em SP, ao lado de Caetano Veloso, no mesmo ano em que estreou a turnê do seu álbum Nó na Orelha. Recebeu Ney Matogrosso como convidado para cantar sua canção Freguês da Meia Noite, em show no Rio de Janeiro. Dividiu o palco do Koko27 em Londres com Mulato Astatke, músico citado em uma das suas canções, entre outros encontros que o lançamento do álbum Nó na Orelha lhe proporcionou. Em suas palavras ele conta um pouco desses encontros em entrevista cedida ao ator Lazaro Ramos no Programa Espelho: Recentemente eu e Emicida fizemos uma apresentação no espaço no espaço das américas e eu tive a honra, nós tivemos a honra de receber um dos maiores poetas do mundo, que é o Mano Brown28. Tem esse lance do Chico [Buarque]. Milton agora recentemente foi a um número musical no circo voador, Nei Matogrosso que pra mim é um dos grandes artistas do cosmos, vai gravar “Freguês da meia-noite”. Tive a honra de cantar uma canção do João Bosco numa festividade maravilhosa que é o prêmio da música brasileira e que celebrava naquele instante 40 anos de carreira do João Bosco. Eu já tive a honra de receber tantos MCs e DJs maravilhosos na Rinha dos MCs, então...

26 MILTON e CRIOLO [Entrevistados por Adriana Couto] Milton e Criolo - Metrópolis [Data de upload: 28 agosto, 2014]. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=qI_sqSm9a-4 > Acesso em: 5 outubro, 2016. 27 Casa de shows situada em Londres. 28 Um dos MC e compositor do grupo Racionais MC’s, responsável pela popularização do rap nos anos 90.

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e tantos outros anônimos maravilhosos que estão apenas esperando uma oportunidade... eu só agradeço. A honra de conhecer Mulatu Astatke, cantar com ele. A honra de conhecer Tony Allen29 que foi ao show em e deixou todo mundo muito feliz, com sua aparição. É tanta coisa cara. É você chegar no seu bairro e ver o Nenê Partideiro30 mostrando a parte de um samba maravilhoso. E você vê seu amigo da época do colégio, que trampa ali no açougue ou na padaria e que chega com um texto ou que chega contando as histórias dele, que ele constituiu família. Tudo tem valor cara. Tudo tem valor, entendeu? (CRIOLO, 2014).31

Mas ele não parou por aí. Em outubro de 2013 lançou mais uma música na web, o single Duas de Cinco (CRIOLO, 2013)32. Em março de 2014 lançou o vídeo clip curta-metragem Duas de Cinco + Cóccix-ência, com direção de Denis Cisma. O vídeo foi lançado em meio a um bate-papo ao vivo, via hangout do google plus, e disponibilizado no youtube. No final do mês de julho deste mesmo ano, ele começou a gravar novo álbum. Em 29 de outubro de 2014 ele lança o single– Convoque seu buda33 - no youtube. Cinco dias depois ele disponibiliza o álbum completo – Convoque seu buda – para download gratuito em seu site e streaming no youtube. Apenas dez dias após a disponibilidade do novo álbum, ele sobe ao palco do Sesc Vila Mariana em São Paulo para lançamento em show ao vivo. Segundo a crítica da revista Brasil, O clima era de tensão. Tanto por parte da banda, formada por baixo, bateria, guitarra, percussão completa, naipe de metais, DJ e teclado/MPC, quanto por parte de Criolo e da produção dele. A apresentação seria a prova de fogo para a primeira amostra da recepção do público em relação ao disco. Assim que as luzes foram apagadas e o mestre de cerimônias da casa anunciou o artista da noite, a plateia deixou as cadeiras marcadas do teatro e se aglomerou em frente do palco. Extremamente concentrado e deixando transparecer a ansiedade, o rapper entrou em cena ao som do single homônimo “Convoque Seu Buda” e ganhou uma recepção calorosa dos fãs que lotavam o local. Na canção que abre o álbum e o show, Criolo rima sobre as reintegrações de posse violentas que aconteceram em São Paulo, embalado por um beat com pegada oriental. Seguindo a ordem do disco, a canção seguinte foi “Esquiva da Esgrima”, em que ele cita nomes como Black Alien, Ferréz, Sartre, Nietzsche, Sabotage e Perrenoud, enquanto faz uma crítica ao preconceito racial (RABASSALO, 2014).34

29 Foi baterista da banda de Fela Kuti. 30 Nenê Partideiro é um amigo do Criolo, sambista e integrante do Pagode da 27, roda de samba tradicional no bairro do Grajaú. 31 CRIOLO. Criolo entrevistado por Lázaro Ramos no programa Espelho | Canal Brasil. [Data de Upload: 3 abril, 2014]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=eP86LuPwUYk Acesso em: 10 março, 2016 32 CRIOLO. Criolo "Duas De Cinco" (Lyric Video) [Data de upload: 14 outubro, 2013]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=QnCs2nsZGRk Acesso em 8 março, 2016. 33 Hoje o streaming do álbum completo disponibilizado pelo canal do Criolo no youtube, já atingiu mais de 8.019.927 visualizações e é o segundo vídeo mais assistido do Criolo, ficando atrás do “clip” Não existe Amor em SP. 34 RABASSALO, Luciana. [reportagem] Criolo é ovacionado, mostra versatilidade e convence no show de lançamento do álbum Convoque Seu Buda. In: Rolling Stone Brasil. [Data de Publicação: 14 novembro, 2014]. Disponível em: http://rollingstone.uol.com.br/blog/cultura-de-rua/criolo-e-ovacionado-mostra-versatilidade-e- convence-no-show-de-lancamento-do-album-iconvoque-seu-budai#imagem0 Acesso em: 8 março, 2016. 43

A recepção de Convoque seu Buda foi surpreendente pela rapidez com que seus fãs aprenderam suas músicas. As três primeiras cidades em que estreou a turnê, São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte rendeu um documentário35 dos melhores momentos dentro e fora dos palcos. Não passara nem um ano que Criolo havia subido ao palco da Fundição Progresso como convidado de Milton Nascimento, e lá estava de novo, com a casa lotada, lançando seu terceiro álbum, cujas canções tratavam das mais recentes aflições vividas pela sociedade brasileira nos últimos anos, entre política eleitoral e protestos nas ruas. O ano de 2015 seguiu com uma agenda repleta de shows marcados pelo Brasil e exterior. É claro que a dimensão da popularidade de Criolo, apesar de ter rompido com o virtual limite do rap underground não chega a altura de fenômenos como Michel Teló, por exemplo, cuja canção mais popular, Ai Se Eu Te Pego, alcançou 712.688.977 visualizações36 em 5 anos. Tampouco alcança os índices de visualização do MC João, cantor e compositor de funk, que alcançou em um ano 139.335.126 visualizações com o clip da música Baile de Favela,37 ou mesmo de MCs do rap como Projota, Emicida e Rael, apresentados antes. A canção mais ouvida de Criolo no youtube, Não Existe Amor em SP, publicada há 5 anos atrás, tem hoje 9.170.101 de visualizações. Sua popularidade foi estendida pela oportunidade pontual que teve de homenagear Tim Maia ao lado de Ivete Sangalo em um projeto da empresa Nívea Brasil. Em uma superprodução de shows gratuitos, Criolo foi desafiado a sair do conforto de cantar suas próprias canções para ser avaliado pela população brasileira, na interpretação nada fácil se comparado ao “vozeirão” de Tim Maia, ícone da música preta de outrora cujas canções são muito bem conhecidas. Foi alvo de críticas, afinal quem é Criolo para ter a honra de cantar Tim Maia para o Brasil todo? Mas sua performance não deixou em nada a desejar no padrão de qualidade musical e ficou registrada em vídeos dos shows e lhe rendeu mais um álbum. Mas seu sucesso não se limita a apreciação da sua música por parte dos fãs. Um outro dado que pode ser observado no youtube é a quantidade de vídeos de covers, publicados diariamente. Isto significa que sua música não é apenas ouvida e apreciada, mas interfere ativamente no desenvolvimento musical daqueles que se propuseram a aprendê-la para depois apresentar sua interpretação na web, ou até mesmo em shows, no caso de banda que já atuam

35 MANÍACO DA CÂMERA, Criolo - Lançamento Convoque Seu Buda (SP/RJ/BH). [Data de upload: 2 dezembro, 2014]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=LlS0vTaCmPE Acesso em: 8 março, 2016. 36 Pesquisa youtube – palavra-chave “Michel Teló” com filtro por contagem de visualizações. Disponível em: https://www.youtube.com/results?sp=CAM%253D&q=michel+tel%C3%B3 Acesso em: 5 outubro, 2016. 37 Este vídeo é uma produção da Kondzilla, uma produtora de vídeos de funk, que conseguiu estabelecer um padrão de qualidade na produção da imagem do funk paulista.

44 profissionalmente. É possível identificar mais de uma categoria de cover. Além dos vídeos serem apresentados pelo nome da música, também são indicados aspectos técnicos da interpretação, como linha de baixo ou versão para ukulele, por exemplo. Neste sentido fica notável o uso da música como recurso para aprendizagem e desenvolvimento de habilidades musicais, o que a coloca no patamar de tecnologia, de know how, e não apenas de produto para consumo. No entanto, popularidade em si não é o que torna a trajetória de Criolo singular, mas sim o fato de sua eminência na cena da música brasileira coincidir com o momento em que ele pretendia se aposentar como MC. A trajetória de Criolo passou por um período intenso nos últimos cinco anos, desde a gravação e lançamento do álbum Nó na Orelha em 2011. Mas sua carreira como MC de rap começou em 1989, quando pela primeira vez ele cantou um rap em um evento de caridade do seu bairro. Tampouco o álbum Nó na Orelha foi o seu primeiro álbum de estúdio. Em 2006 e já havia lançado o álbum Ainda Há Tempo, com a ajuda de alguns amigos. Ele já era um músico veterano, com 22 anos de carreira como MC e compositor de rap, e pensava em desistir dos palcos quando surgiu a oportunidade de registrar tais canções. Foi esse ato, a gravação do álbum Nó na Orelha que mudou radicalmente sua trajetória artística, interferiu significativamente na vida dos músicos que fizeram parte desse processo e consequentemente na cultura musical do meio que foi afetado pela sua música. A partir do Nó na Orelha, o que fez a diferença?  O que fez com que a música de Criolo ultrapassasse as fronteiras do rap para ser classificada como MPB?  Por que tantos músicos de renome como, Caetano Veloso, Chico Buarque, Milton Nascimento, Ney Matogrosso, Mulatu Astatke, entre outros, se interessaram por sua música e o apoiaram em sua trajetória?  Quais foram as variáveis que determinaram a eminência tardia do MC Criolo e suas músicas na cena da música nacional e internacional?

Existem diferentes abordagens epistemológicas e metodológicas possíveis para responder as questões acimas. É claro que, em se tratando de uma projeção cultural de nível nacional e internacional, devem haver circunstâncias sociais e econômicas por trás desse evento que justifiquem a eminência de um MC e seu álbum de rap. O próprio destaque do rap na cena da música brasileira, de uma forma geral, pode justificar a projeção do trabalho do Criolo, cuja eminência de forma alguma se distancia da trajetória de outros MCs, que também se projetaram na cena, até mesmo antes dele, como o Emicida e o Projota, por exemplo. Contudo, uma 45

distinção dada ao álbum Nó na Orelha é justamente a mistura de gêneros e a interlocução com artistas da MPB. Na verdade, o contexto em que esse álbum surge, condiz com o momento de revival da soul music e da luta contra o racismo no Brasil, desde a virada do milênio, como conclui Carlos Palombini (2014). O rap surge como a expressão musical de um movimento cultural político de caráter contestatório, o hip hop; que por sua vez tem que dar conta de problemas sociais históricos como o racismo, em sociedades que, apesar do fim da escravidão, não conseguem superar a desigualdade econômica e social entre brancos e pretos. Músicas com esse perfil, não podem ser estudadas sem levar em consideração o seu texto em todo esse contexto. Por outro lado, é justamente pelo fato do rap enquanto expressão musical partilhar desse contexto, que se pode falar de cultura musical e não apenas de um gênero ou estilo musical. O próprio hip hop é fruto da cultura black music, como mais um jeito de se fazer música para animar as festas black, onde a identidade negra de ascendência africana foi revigorada pela música e todos os comportamentos que com ela caminhavam: o jeito de se vestir, o penteado, a dança, as críticas sociais, a consciência política, etc. buscando a superação da discriminação por um suporte coletivo à autoestima de cada pessoa preta. A música é o meio que viabilizou uma mobilização em prol da identidade negra, reafirmando o racismo como prática social de intolerância que se associa à segregação da pobreza nas periferias de grandes cidades “brancas” pelo mundo afora. A raiva e a força política que marca a dicção hip hop parece vir não de um suposto modismo importado, mas da consciência de ser um gênero que congrega e articula um fórum supranacional de jovens negros e pobres que empunham a bandeira da resistência. Digamos que o hip hop poderia ser visto como uma espécie de esperanto musical dos excluídos em busca de formas alternativas de organização supranacionais ou globalizadas. Visto por este ponto de vista, o hip hop ecoa um pouco o tom e a lógica mais elitizada dos novos Fóruns Sociais Mundiais (HOLLANDA, 2012, p.138).

Esse encontro de uma identidade negra através das raízes musicais africanas se alastrou da mesma forma que a própria diáspora. Se outrora pessoas de pele preta foram dispersadas para diferentes lugares do mundo, agora a música preta refaz esse trajeto e reescreve a história a partir de uma dominação estética e ideológica em resposta a dominação física do passado, uma dominação que ultrapassa as fronteiras de nacionalidade, classe, gênero ou raça. Pois a cultura musical agrega valores que já não podem ser medidos por uma ou outra qualidade. Não basta ser preto na pele para pertencer a ela. É preciso ser preto na mente. Os recursos pelos quais pessoas de lugares distantes, de sociedades distintas, com línguas diferentes têm construído uma mesma identidade, valores, hábitos, conhecimento, atitudes políticas e tudo que está presente em uma cultura musical como a black music, devem-

46 se a criação de ferramentas distintas, como a gravação de áudio nos diferentes tipos de mídia e que favorece a circulação dessa tecnologia que permite a conexão de sinais (música) e comportamentos (resposta à música) entre pessoas que talvez nunca vão se conhecer, mas que se comportam da mesma forma. Sejam em vinis, fitas K7, CDs ou arquivos de MP3, a música preta, desde o Rhythm & Blues, passando pela soul music, pelo o funky norte-americano em intercambio com reggae jamaicano, com um toque de rock e punk inglês. Todos essas expressões musicais e tecnologias serviram de base instrumental para o desenvolvimento da arte do rap, que circulou por entre os ouvidos da juventude de diferentes lugares, diferentes nacionalidades, mas com os mesmos problemas sociais. E se há 50 anos atrás, a troca de informação, de música, de tecnologias já era intensa, que dirá hoje em dia, com o recurso da internet? Há um consenso de que um microfone na mão de um MC é uma arma, ressoando o slogan de Fela Kuti: music is the weapon! E, para juventude periférica, como já foi dito, o microfone é a melhor alternativa em resposta a criminalidade que assedia e angaria todos os dias crianças e jovens ansiosos por sobrevivência. Do ponto de vista material (da constituição, e não do uso), não há diferença entre um microfone e uma arma de fogo, ambos são ferramentas que potencializam o comportamento humano em algum sentido. A diferença está justamente no tipo de potencial, a primeira pode ajudar a construir, agregar e transformar, por amplificar a voz de pessoas que procuram pensar sobre seu meio em busca de soluções, já o potencial da segunda, se restringe a coerção, contenção ou destruição. A partir dessa constatação é difícil considerar um ponto de partida, pois se por um lado os problemas sociais são um fato histórico que não se pode ignorar, as tecnologias, enquanto meio de comunicação e transformação do comportamento, também fazem parte da história, ou melhor, são as ferramentas com que a história é construída. Não tivesse sido inventada a música gravada em vinil, toca-discos, e todo o equipamento necessário para amplificação do som, não seria possível a “exportação” de comportamentos que favorecessem a possibilidade de uma identidade cultural musical por pessoas de diferentes lugares no mundo. A palavra, “social” como aplicada ao nosso assunto, tem um amplo significado. Primeiro de tudo, no sentido mais geral, ela significa que tudo que é cultural é social. Cultura é ao mesmo tempo um produto da vida social e da atividade social do homem, e por essa razão, a própria formulação do problema do desenvolvimento cultural do comportamento já nos conduz diretamente para o plano social do desenvolvimento. Além disso, nós pudemos indicar o fato de que o sinal encontrado fora do organismo, como 47

uma ferramenta, é separado do indivíduo e serve essencialmente como um órgão social ou significado social (VYGOTSKY, 1997).38

O assunto de que trata Vygotsky e seus colegas, diz respeito ao desenvolvimento cultural, um conceito que consegue explicar o desenvolvimento humano sob o aspecto histórico-cultural (VEER, 2006). Trata-se da percepção da capacidade do ser humano de controlar o comportamento a partir das ferramentas psicológicas que ele mesmo cria; que como qualquer ferramenta tem a função de mediar um processo de aprendizagem, em um primeiro momento, ou a atividade, quando a habilidade foi aprendida. Assim o ser humano transforma não só o meio em que vive, os materiais dados pela natureza ou objetos por ele já transformados, mas também o seu próprio cérebro, no momento em que a aprendizagem favorece o desenvolvimento de novas funções cerebrais, novas habilidades que, por sua vez, são expressas no comportamento. A abordagem adotada neste trabalho para responder as questões com relação a eminência profissional do MC Criolo, foi centrada no conceito de desenvolvimento cultural, procurando investigar como se deu a aprendizagem de música e o desenvolvimento do talento musical do MC Criolo e de músicos parceiros envolvidos em sua trajetória até o lançamento do álbum Nó na Orelha. Considerando nesta análise que a formação musical de profissionais da música acontece por vias distintas, não sendo o objetivo categorizar a aprendizagem como formal ou informal, mas sim descrever as circunstâncias em que ela acontece, os materiais, recursos e comportamentos que estão presentes nesse processo e que estão diretamente relacionados tanto ao desenvolvimento do talento musical como a eminência profissional. A cultura musical em que esses músicos desenvolveram seus talentos e suas competências profissionais é o contexto histórico necessário para compreensão desses processos. A eminência profissional desses músicos sobressai como resposta aos estímulos que tal cultura musical proporciona e como um novo estímulo desencadeia novas respostas e contribui para continuidade dessa mesma cultura musical. A partir dessas reflexões é possível extrair a seguinte hipótese: a eminência profissional é circunstancial ao encontro de talentos e tecnologias determinado pela cultura musical de um meio e, ao mesmo tempo, determinante desta mesma cultura, como parte de um processo histórico.

38 The word, “social”, as applied to our subject, has a broad meaning. First of all, in the broadest sense, it means that everything cultural is social. Culture is both a product of social life and of the social activity of man and for this reason, the very formulation of the problem of cultural development of behavior already leads us directly to the social plane of development. Futher, we could indicate the fact that the sign found outside the organism, like a tool, is separated from the individual and serves essentially as a social organ or social means (VYGOTSKY, 1997).

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É diante dessa constatação que este trabalho buscou investigar a formação musical dos sete músicos MC Criolo, DJ Dandan, Daniel Ganjaman, DJ Welbe Colombo, Marcelo Cabral, DJ Marco e Ricardo Rabelo, tratados aqui pelos nomes artísticos, a fim de verificar o processo de aprendizagem e desenvolvimento do talento musical ao longo de suas trajetórias, culminando nas circunstâncias que garantiram a eminência profissional do MC Criolo e projeção na cena do rap e da MPB através do álbum Nó na Orelha e; desenvolver um modelo analítico do desenvolvimento do talento musical em diálogo com o conceito de desenvolvimento cultural de Vygotsky (1997), como uma nova abordagem metodológica para o estudo e avaliação da aprendizagem de música e desenvolvimento do talento musical em contextos diversos.

Como estudar o talento de músicos profissionais? Essa preocupação é pra quem está estudando e quer arrumar uma desculpa para falar que [o talento] não é nosso. É só isso. Porque no final é isso, quando você estuda demais, demais uma coisa, com um olhar... Qual é esse olhar? É o olhar de celebração ou o olhar pra dizer que isso não é isso tudo mesmo? Né? Porque por mais cientista que o cara seja, em algum momento ele se encontra com o espelho dele, né? E como vai ser? Porque quando chega; você fez até duzentas páginas e saber que tem mais... Como que vai ser você com isso? O que que é isso? Porque você também se transforma nesse processo, se redescobre, se esconde... (sic) (Entrevista concedida pro Criolo à autora em agosto de 2016).

A princípio parece impossível estudar o talento musical, entendido aqui como consequência de um processo de aprendizagem, em relação à eminência profissional de músicos que já passaram por este processo. Contudo, o processo de aprendizagem pelo qual todo aprendiz de música passa não difere muito da sua atividade musical enquanto músico profissional. Toda performance musical, mesmo dos músicos mais experientes, pressupõe um ensaio, que por sua vez pressupõe um estudo e algo a aprender ou aprimorar. Se um instrumentista precisa tocar um novo arranjo, ele terá que aprender. Se um produtor musical precisa compor uma nova base instrumental, terá que experimentar algumas possibilidades até criar a nova música. Se um compositor compõe uma nova canção, ele terá que ensaiar e gravá- la junto com a base instrumental criada para ela. Não importa o quão talentoso e competente seja o músico, na sua prática diária ele está sempre aprendendo, memorizando, treinando ou aperfeiçoando diversas habilidades musicais, por vezes até extramusicais, que lhe são exigidas em uma atividade musical. Contudo, até mesmo para aprendizes em pleno processo de aprendizagem, a avaliação não é uma coisa simples, pois ao longo do processo de estudo muitas são as dificuldades, incertezas e, por vezes, frustrações. Não existe uma receita que garanta que um aprendiz com 49

aptidão para música vá se tornar um músico talentoso e eminente. A depender do tipo de atividade musical exercida, por vezes não existe um método que possa ajudar no processo de aprendizagem, como é o caso do compositor, por exemplo. No que diz respeito a música que se aprende sem escola e sem professor, como será possível avaliar este processo? Um dos principais parâmetros de avaliação do talento musical tem sido a própria eminência. Se um músico faz sucesso, não importa sua idade nem como ele desenvolveu seu talento, ele simplesmente conseguiu se projetar no mundo artístico como músico profissional. Na verdade, a eminência em si, por mais que represente o agrado de determinada audiência, pouco elucida o tipo de competência musical que favoreceu o reconhecimento. E como música é sempre uma questão de gosto, um músico bem-sucedido em determinado meio musical, pode não ser reconhecido como competente em outro. No que diz respeito ao talento, a situação é ainda mais complicada, pois nem sempre a noção de talento é tida de forma consensual. Mas o objetivo desta pesquisa é justamente abordar esse problema e para isso foram necessários uma combinação de diferentes abordagens metodológicas

Coleta de dados A abordagem metodológica para coleta de dados contou com os seguintes recursos: 1. Entrevista pessoal aos músicos em estudo com roteiro semiestruturado 2. Modelo Analítico do Desenvolvimento do Talento Musical - MADTM 3. Instrumento de Avaliação Molecular do Comportamento na Atividade Musical – AMCAM39 4. Reportagens retiradas da internet 5. Entrevistas, depoimentos ou documentários retirados da internet 6. Participação em shows, ensaios e festas em que os músicos atuaram. 7. Acompanhamento da interação dos artistas com os fãs via redes sociais 8. Visita ao bairro Grajaú em São Paulo e conversa com parentes e amigos do Criolo.

Apesar do tipo de entrevista realizada se assemelhar a metodologia “história de vida”, não é possível dizer que essa foi a metodologia empregada, pois tanto nos procedimentos de entrevista como na análise dos dados foi utilizado como suporte o modelo MADTM e o instrumento AMCAM, visto que esses recursos foram desenvolvidos justamente com esse propósito. Neste caso a metodologia empregada nessa pesquisa é também resultado dela, visto que ambas ferramentas foram testadas na medida em que foram utilizadas. Recorrer a qualquer

39 O modelo MADTM e o Instrumento AMCAM serão apresentados no primeiro capítulo.

50 outro método pré-formatado de coleta de dados impossibilitaria a demonstração da aplicação do modelo e instrumentos desenvolvidos para esta pesquisa As entrevistas realizadas foram gravadas em áudio, sendo que, as partes em que foi aplicado o instrumento AMCAM, foi filmada para poder complementar o áudio com imagens nos momentos em silêncio do processo de autoavaliação. Os participantes autorizaram a filmagem apenas para efeito de análise realizada pelo pesquisador, ou seja, essas imagens não podem ser apresentadas publicamente. Foram realizadas as transcrições integrais das entrevistas, também para efeito de análise, cujas partes selecionadas foram apresentadas ao longo do texto em formato de citação. As reportagens em páginas da web foram fotografadas utilizando a ferramenta printscreen e salvas como arquivo de imagem. Foi criado um canal no youtube a fim de organizar os vídeos em playlists40 com o propósito de arquivar aqueles que poderiam ser utilizados na pesquisa. A palavra-chave utilizada na busca foi “Criolo” e, a depender da necessidade, foram aplicados os recursos de indexação por contagem de visualizações ou por data de upload. Esses recursos permitiram ao longo de três anos acompanhar diariamente a quantidade de vídeo que são publicados no youtube que fazem referência ao Criolo ou sua música e também acompanhar a popularidade de álbuns ou canções. Todos os vídeos foram assistidos e alguns selecionados para análise e transcrição.

Revisão da literatura Foi realizada uma revisão da literatura e documentários sobre as origens do rap no mundo e mais especificamente no Brasil e uma revisão da literatura que trata do conceito de talento em diferentes campos científicos, a saber: educação musical, educação para superdotados, psicologia e neurociência, procurando relacioná-las as ideias de Lev S. Vygotsky que constam no quarto volume das suas obras coletadas, na versão de língua inglesa editado por Robert W. Rieber, intitulado – The History of the development of higher mental functions, utilizada como matriz teórica deste trabalho (VYGOTSKY, 1997). Além do volume da obra de Vygotsky citado acima, outros dois volumes da mesma coletânea e edição serviram de apoio: o volume dois que trata de assuntos de defectologia, que equivale ao que chamamos de educação especial, e o volume cinco que trata dos estudos de pedologia do adolescente foram indispensáveis para compreensão do método que Vygotsky desenvolve no volume quatro e do conceito de desenvolvimento cultural.41

40 A playlist dos vídeos relacionados ao Criolo está disponível em: https://www.youtube.com/playlist?list=PLH__eLG01UkE6q7_iOdyBlvCUAmlo-aWY. 41 Os volumes dois e quarto foram adquiridos em verão e-book. O volume cinco, em versão impressa. 51

É importante ressaltar que não existe ainda uma tradução dos textos reunidos nas obras coletadas de Vygotsky em seis volumes conforme edição russa para língua portuguesa, por isso a opção pela versão em língua inglesa. É claro que uma tradução sempre carrega a interpretação dada pelos seus tradutores. Até mesmo a versão russa corre esse risco visto que muitos dos textos de Vygotsky eram manuscritos que só foram editados após sua morte. De uma forma ou de outra, o raciocínio, as ideias e todo o conhecimento produzido nestes textos não deixam de ser significativos pelo fato de ter sido relido e talvez reinterpretado a cada releitura. O importante é que as ideias se mantem contemporâneas e passíveis de serem estudadas a fim de contribuírem para criação de novas ideias ou modelos teóricos que possam nos ajudar a compreender o desenvolvimento humano.

Organização do texto O primeiro capítulo apresenta a revisão das ideias de Vygotsky acerca do conceito de desenvolvimento cultural a fim de embasar o Modelo Analítico do Desenvolvimento do Talento Musical – MADTM, que é apresentado nesse mesmo capítulo junto com o instrumento de Avaliação Molecular do Comportamento na Atividade Musical – AMCAM. O segundo capítulo contém a análise da aprendizagem de música e formação profissional dos músicos em estudo a partir do processo histórico do rap nacional, destacando as tecnologias utilizada nessa atividade musical como diferenciais do processo de aprendizagem. No terceiro capítulo é apresentado o procedimento de aplicação do instrumento AMCAM e os resultados da avaliação molecular do comportamento na atividade musical dos músicos em estudo. O capítulo quatro apresenta a análise do processo de construção do álbum Nó na Orelha desde o momento inicial que levou a sua produção até seu lançamento destacando as circunstâncias que favoreceram o encontro de talentos e tecnologias, ou seja, encontro dos músicos que participaram da confecção do álbum e das tecnologias necessárias para sua produção e divulgação acarretando na eminência do álbum na cena da música brasileira e consequentes desdobramentos.

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CAPÍTULO 1 O DESENVOLVIMENTO DO TALENTO MUSICAL COMO UMA CONSTRUÇÃO HISTÓRICO-CULTURAL

(…) o processo de desenvolvimento cultural basicamente depende da aquisição de ferramentas psicológicas culturais, que foram criadas pela humanidade durante seu desenvolvimento histórico em que operações psicológicas apareceram. Assim como todas as outras operações psicológicas superiores, todas as formas superiores de atividade intelectual somente se tornaram possíveis dado o uso de tipos semelhantes de ferramentas culturais (VYGOTSKY, 1997).42

1.1 O conceito de desenvolvimento cultural por Lev Semenovich Vygotsky Tradicionalmente, no campo da filosofia, psicologia ou educação, entre outras áreas das ciências humanas, perdura a noção de que o ser humano e seu processo de desenvolvimento vive um eterno conflito entre o ser natural e o ser cultural. Isso engloba todo o meio que o cerca, seja de coisas naturais ou artificiais, estas como resultado daquilo que se convencionou chamar de “cultura”; um conflito no processo de ser e existir no mundo dividido entre nature e nurture. Ou bem é possível pensar em um ser humano natural, como parte da natureza e que dela se alimenta mantendo sua sobrevivência, ou se acredita que o bem da humanidade está justamente em o ser humano ser o único animal capaz de se afastar da natureza e se tornar artificial; dominar seus instintos animais por meio da educação, da “nutrição” de saberes ou hábitos que vão sendo desenvolvidos e transmitidos ao longo da história, de geração em geração, de civilização para civilização, chegando hoje a um estado em que parece não haver mais nada de natural em ser humano: a natureza existe de um lado e a humanidade de outro. A unilateralidade e erro da visão tradicional dos fatos sobre o desenvolvimento das funções mentais superiores consiste primeiramente e principalmente na incapacidade de olhar para esses fatos do desenvolvimento histórico, na consideração de um lado deles como processos e formações naturais, na fusão e não distinção do natural e o cultural, o essencial e o histórico, o biológico e o social no desenvolvimento mental da criança; em

42 (…) the process of cultural development basically depends on acquiring cultural psychological tools, which were created by mankind during its historical development and which psychological operations appear. Like all other higher psychological operations, all the higher forms of intellectual activity become possible only when given the use of similar kinds of cultural tools (VYGOTSKY, 1997).

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suma – em um incorreto entendimento básico da natureza do fenômeno em estudo (VYGOTSKY, 1997).43

A partir de uma revisão crítica do que já existia no meio científico com relação ao estudo do comportamento e desenvolvimento humano, Lev. S. Vygotsky construiu o conceito de desenvolvimento cultural para tentar incluir no processo de desenvolvimento de cada indivíduo (ontológico), assim como no processo de desenvolvimento das sociedades de indivíduos, da humanidade (filológico), a função daquilo que é artificialmente criado pelo ser humano, como resultado do seu desenvolvimento natural. Ou seja, tudo que é artificial, todos os artefatos e recursos criados pela humanidade são, em sua gênese, uma função determinada pela condição orgânica do ser humano de ser afetado pelo mundo que o cerca, interferindo nas suas reações ou comportamento, em um movimento de fora do organismo para dentro, e não apenas a partir das condições orgânicas internas ao organismo. Para Vygotsky esse processo acontece na infância primeiramente através da fala, como principal “ferramenta psicológica cultural”, mas também no de ferramentas como as tecnologias que presentes no ambiente da criança, como brinquedos o qualquer objeto que lhe seja útil para alguma ação. É por isso que, para estudar o que ele chama de higher mental functions, geralmente entendidas como pensamento racional, aquele que distingue o ser humanos dos outros animais, ele e seus colegas dedicaram seus experimentos ao estudo do comportamento da criança. Para Vygotsky (1997) a fala vem a ser o recurso mais importante no desenvolvimento da criança que, quando internalizada, se transforma em pensamento possibilitando não só a representação do mundo em conceitos, mas a possibilidade de desenvolvimento da lógica na solução de problemas.

A história das funções mentais superiores é impossível sem um estudo da pré- história dessas funções, suas raízes biológicas, suas propriedades orgânicas. As raízes genéticas de duas formas culturais básicas do comportamento são estabelecidas na idade infantil; usando ferramentas e a fala humana; essa circunstância em si coloca a idade infantil no centro da pré-história do desenvolvimento cultural (VYGOTSKY, 1997).44

43 The one-sidedness and erroneous of the traditional view of facts on development of higher mental functions consist primarily and mainly in an inability to look at these facts of historical development, in the one-sided consideration of them as natural processes and formations, in merging and not distinguishing the natural and the cultural, the essential and the historical, the biological and the social in mental development of the child; in short – in an incorrect basic understanding of the nature of the phenomena being studied (VYGOTSKY, 1997). 44 The history of higher mental functions is impossible without a study of the prehistory of these functions, their biological roots, their organic properties. The genetic roots of two basic cultural forms of behavior are stablished at the infantile age: using tools and human speech; this circumstance in itself places the infantile age at the center of prehistory of cultural development (VYGOTSKY, 1997).

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Segundo Vigotski (1997) o desenvolvimento humano, e todas as competências que o diferencia de outros animais, só é possível dada a plasticidade do cérebro humano que nasce imaturo, ainda por formar. Essa formação é moldada pelas ações humanas que, por sua vez, são desencadeadas pelos estímulos ambientais que os cercam, por dentro e por fora, já que o corpo se mantém como ambiente necessário para que qualquer transformação aconteça. No entanto, isso não significa dizer que o ambiente em que onde se nasce, determina o desenvolvimento humano, já que o nascimento só é possível no momento em que um ser biológico compreende em si mesmo todo potencial para o qual ele foi gerado. Tampouco significa dizer que aquilo que o ser humano se torna é determinado pelas características orgânicas, visto que muitas delas são superadas ao longo do desenvolvimento. A depender do meio social em que um ser nasce, ou do momento histórico, o desenvolvimento se dará de um jeito ou de outro. Pelo que parece, a espécie humana ainda se desenvolve da mesma forma ao longo da sua existência. Ainda não consta nenhum registro de mutação de espécie, o que garante que a nossa genética é a mesma que a dos nossos antepassados mais longínquos. Então o que faz a diferença no desenvolvimento de uma criança que nasce nos dias de hoje das nascidas na pré- história? Assim como acontece atualmente, as crianças do passado nasciam e eram cuidadas pelos seus pais ou por adultos que os substituíssem quando necessário. Mas também interagiam com outras crianças. E em um pequeno grupo de seres humanos, todos interagiam entre si. É neste processo de interação que, saberes, práticas, crenças, hábitos, valores ou costumes foram desenvolvidos. Mas a interação não se dava apenas entre os seres, mas também entre o ambiente. E essa cultura que emergia da interação entre seres e ambiente foi transformada e transmitida de geração em geração. Por isso todo cultura é histórica e toda história é cultural, pois trata da continuidade no tempo de uma cultura que está em constante transformação. As “funções superiores” do comportamento humano são construídas primeiramente entre pessoas, ou como poderia se dizer, entrementes, como uma “categoria intermental” para depois serem internalizadas pelo indivíduo. Nós podemos formular uma lei genética geral do desenvolvimento cultural como a seguir: cada função no desenvolvimento cultural da criança aparece no estágio duas vezes, em dois planos, primeiro, o social, e depois o psicológico, primeiro entre pessoas como uma categoria intermental, e depois na criança como uma categoria intramental. Isso diz respeito igualmente à atenção voluntária, à memória lógica, à formação de conceitos e ao desenvolvimento da vontade. Nós nos justificamos em considerar essa tese apresentada como uma lei, pois entende-se que a transição de fora para dentro transforma o próprio processo, muda suas estruturas e funções. Geneticamente, relações sociais, relações reais das pessoas, está por trás de 55

todas as funções superiores e suas relações (VYGOTSKY, 1997, grifos meus).45

A lei definida acima, por Vygotsky e seus colegas, contradiz a linha de pensamento não só dos filósofos e psicólogos contemporâneo a eles, mas também dos que desenvolveram suas ideias ao longo do século XX, sem terem tido contato com o seu trabalho. Pois quando ele diz que o desenvolvimento do pensamento da criança começa de fora para dentro, “entrementes”, para depois se tornar o seu pensamento interno, ele também defende que essas funções do pensamento, a que ele chama de funções superiores, só são possíveis a partir do outro. Uma criança, apenas pelas forças da sua natureza biológica, não desenvolve determinadas funções sozinha, como a própria fala, a escrita ou o pensamento abstrato necessário para se desenvolver a capacidade de solucionar problemas. Pois mesmo que a criança tenha naturalmente o aparato fisiológico para emitir sons, ela só transforma esses sons em fala, e fala em escrita, por meio da imitação de um modelo. A prova disso é que pessoas surdas não falam pois não tem um modelo sonoro para imitar, visto que não escutam. Essa sutileza do entendimento do processo de desenvolvimento humano por Vygotsky, significa que a aprendizagem é pré-requisito para o desenvolvimento, e não uma consequência dele. Isso é realmente uma mudança de paradigma que muda completamente o entendimento do processo de desenvolvimento do ser humano. Antes o desenvolvimento era visto como um processo passivo, isto é, um processo em que basta esperar a natureza agir e o desenvolvimento acontecerá. Mas Vygotsky não enxerga o desenvolvimento humano desta forma, em sua opinião, temos apenas que estender o conceito de desenvolvimento para o seus limites legítimos, nós temos somente que assimilar a ideia de que o conceito de desenvolvimento certamente inclui não apenas mudanças evolucionarias, mas também revolucionárias, regressões, lacunas, ziguezagues, e os conflitos, a fim de ver que introduzindo a criança na cultura, se dá o desenvolvimento no verdadeiro sentido dessa palavra, embora seja o desenvolvimento de um tipo diferente do desenvolvimento do feto humano dentro do útero (VYGOTSKY, 1997).46

45 We can formulate the general genetic law of cultural development as follows: every function in the cultural development of the child appears on the stage twice, in two planes, first, the social, then the psychological, first between people as an intermental category, then within the child as an intramental category. This pertains equally to voluntary attention, to logical memory, to the formation of concepts, and to the development of will. We are justified in considering the thesis presented as a law, but it is understood that the transition from outside inward transform the process itself, changes its structure and functions. Genetically, social relations, real relations of people, stand behind all the higher functions and their relations (VYGOTSKY, 1997, grifos meus). 46 have only to extend the concept of development to its legitimate limits, we have only to assimilate the idea that the concept of development certainly includes not just evolutionary but also revolutionary changes, regression, gaps, zigzags, and conflicts, in order to see that introducing the child into the culture is development in the true sense of that word, although it is development of a type different from development of the human fetus within the womb (VYGOTSKY, 1997).

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Percebe-se que Vygotsky não considera o desenvolvimento humano de forma evolucionária, linear e pré-determinada como acontece com o embrião humano, cujo processo de desenvolvimento já está determinado desde a concepção no gene. Mas de forma revolucionária, conflituosa, com idas e vindas, avanços e regressões. O desenvolvimento cultural é, portanto, a aprendizagem que acontece a partir do meio em que a criança nasce em função da cultura que lhe é apresentada. Aprender é conhecer as coisas que existem no mundo ou desenvolver habilidades que outras pessoas já desenvolveram. Só se aprende aquilo que já existe, pois para o que não existe não há aprendizagem e sim criação ou invenção, quando não, apenas imaginação. Na infância, independente do lugar, da coordenada geográfica que a criança tenha nascido, sempre haverá uma quantidade significativa de coisas a aprender, hábitos a adquirir, ferramentas a utilizar e saberes a conhecer, determinados pelo meio social que se materializa no conceito de cultura. Não existe para a criança algo que seja particular a ela, pois todo significado dado às coisas e atitudes que a cercam, em um primeiro momento, é construído socialmente. A infância é um período intenso de transformação neurológica, pois a cada nova experiência, a cada novo aprendizado a criança desenvolve novos circuitos neurais. Quanto mais rico de experiências e oportunidades de aprendizagem for o ambiente em que a criança cresce, maior será a sua capacidade de construir novas estruturas neurológicas. Para Vygotsky, esse desenvolvimento não é apenas um processo de multiplicação de células, como acontece com o corpo da criança de uma forma geral durante a fase de crescimento, mas um desenvolvimento qualitativo no que diz respeito ao tipo de estruturas neurológicas, que serão responsáveis não somente pela sua saúde e mobilidade, mas pelo seu pensamento e capacidade de sobreviver no mundo que está posto. Vida social cria a necessidade de sujeitar o comportamento do indivíduo a requisitos sociais e juntamente com isso, cria complexos sistemas de sinalização, meios de comunicação que orientam e regulam o desenvolvimento de conexões condicionadas no cérebro de cada pessoa. A organização da atividade nervosa superior cria os pré-requisitos necessários, cria a possibilidade de regulação externa do comportamento (VYGOTSKY, 1997).47

47 Social life creates the need to subject the behavior of the individual to social requirements and together with this, creates complex signalization systems, means of communication that guide and regulate the development of conditioned connections in the brain of each person. The organization of higher nervous activity creates the necessary prerequisites, creates the possibility of external regulation of behavior (VYGOTSKY, 1997). 57

O mundo que é apresentado para criança já é um mundo cheio de coisas e conceitos. Para se desenvolver em um mundo pré-definido pela cultura é preciso esforço e, às vezes, um empurrão. Os obstáculos que o meio social impõe à criança, impulsionam seu desenvolvimento, favorecendo o surgimento de forças criativas que podem assegurar a sua adaptação ao meio em que vive. As condições sociais em que uma criança deve tomar raiz compreendem, por um lado, todo o escopo do estado de uma criança inadaptada e servir como a gênese do desenvolvimento de suas forças criativas; os obstáculos que impulsionam o desenvolvimento de uma criança estão enraizados nessas condições do meio social no qual supostamente ela deve crescer. Por outro lado, todo o desenvolvimento da criança é orientado para alcançar um nível social necessário. Aqui, nós temos o início e o fim, o alfa e ômega do seu desenvolvimento (VYGOTSKY, 1993).48

Não importa o quanto os seres humanos possam ser parecidos em termos de biótipo, nem mesmo o quanto a condição ambiental, cultural ou social que lhes cabem é semelhante. Em uma mesma família, filhos de um mesmo casal, até mesmo gêmeos univitelinos, podem se desenvolver de forma diferente no que diz respeito a sua capacidade intelectual, emocional e principalmente com relação a sua personalidade. Um ambiente hostil, sem conforto, onde as necessidades básicas para sobrevivência como alimento e abrigo sejam escarças pode, por um lado, prejudicar o desenvolvimento de uma criança, e por outro, ser um estímulo para que ela busque soluções, recursos ou caminhos diferentes para sua vida. É nesse sentido que Vygotsky destaca a vontade (the will) como uma força propulsora do desenvolvimento cultural. Mas não apenas uma vontade desencadeada por um estímulo ambiental qualquer. A vontade de que trata Vygotsky é aquela que rege o comportamento humano em direção ao desenvolvimento de “funções superiores”; que transforma os estímulos ambientais em estímulos próprios; aquela quando a criança já é capaz de perceber o ambiente e dele selecionar aquilo que lhe interessa, criando um novo estímulo, a que Vygotsky chama de “estímulos artificiais” (artificial stimuli) que lhe servirão como um recurso e, a partir disso, conseguir realizar uma nova ação a serviço da sua vontade. Cada estágio específico no controle das forças da natureza, corresponde necessariamente a certo estágio no controle do comportamento, em submeter os processos mentais à vontade do homem. Adaptação ativa do homem ao ambiente, a mudança da natureza pelo homem, não pode ser baseada em sinalização, passivamente refletindo conexões naturais de todo tipo de agente.

48 The social conditions in which a child should take root comprise, on the one hand, the entire scope of a child’s unadapted state and serve as the genesis of his development creative forces; the obstacles which thrust a child forward developmentally are rooted in those conditions of the social milieu in which he is supposed to grow. On the other hand, the child’s whole development is oriented toward achieving a necessary social level. Here, we have the start and the finish, the alpha and omega of his development (VYGOTSKY, 1993).

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O homem introduz estímulos artificiais, dá significado ao comportamento, e com sinais, agindo externamente, cria novas conexões no cérebro. Em assumindo isso, nós devemos introduzir na nossa pesquisa um novo princípio regulatório do comportamento, um novo conceito de determinação da reação humana que consiste no fato de que o homem cria conexões no exterior do cérebro, controla o cérebro e através delas, seu próprio corpo (VYGOTSKY, 1997).49

Isso explica o processo criativo e inovador do ser humano. Aquele que o move e está sempre cirando coisas novas, procurando novas soluções, novos caminhos, por não se contentar em simplesmente responder aos estímulos do ambiente de forma passiva. A vontade é o que propulsiona o desenvolvimento do ser humano significando suas ações e o levando a agir de uma forma ou de outra; a escolher aquilo que lhe convém, a transformar materiais do ambiente natural ou artificial e com eles criar recursos (sinais ou ferramentas) que lhe são úteis. O desenvolvimento do ser decorre de sua qualidade humana: a capacidade de transformar sua própria estrutura mental adquirindo novas “conexões no cérebro” que se mantém conectadas aos recursos que ele mesmo cria externamente, servindo como extensões do seu próprio comportamento. Isso se aplica desde o mais simples recurso de amarrar uma linha no dedo para se lembrar de algo importante, até os mais complexos dispositivos a serviço da memória ou da aprendizagem. Hoje em dia, com tantas tecnologias é muito fácil perceber essa conexão entre o cérebro humano e os recursos utilizados no dia a dia. Por exemplo: quantos estímulos diferentes não são possíveis criar hoje em dia a partir de um dispositivo como o celular? Desde lembretes, agenda, calendário, mensagens, calculadoras, até os artifícios de entretenimento como a música, jogos, leitura que são utilizados como distração em situações de estresse do cotidiano urbano, como um trem lotado, que se não fossem por esses estímulos, talvez fosse impossível suportar. A mente humana da atualidade permanece a maior parte do tempo conectada em dispositivos auxiliares, dependente de estímulos artificiais para conduzir o seu comportamento em meio as vicissitudes da vida. Percebe-se que na teoria de Vygotsky prepondera a noção de que todo comportamento, enquanto ação ou melhor, enquanto uma reação, é desencadeado por um estímulo inicial. Mas

49 Each specific stage in mastering the forces of nature necessarily corresponds to a certain stage in mastering behavior, in subjecting mental processes to the will of man. Man’s active adaptation to the environment, the change of nature by man, cannot be based on signalization, passively reflecting natural connections of all kinds of agents. Man introduces artificial stimuli, signifies behavior, and with signs, acting externally, creates new connections in the brain. Together with assuming this, we shall tentatively introduce into our research a new regulatory principle of behavior, a new concept of determinacy of human reaction which consists of the fact that man creates connections in the brain outside, controls the brain and through it, his own body (VYGOTSKY, 1997).

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a contribuição de Vygotsky está em mostrar que, diferente das teorias behavioristas que preponderavam nos estudos psicológicos da sua época, a relação entre estímulo e resposta, esta compreendida como reação, não se dá apenas em uma direção, em um único caminho no formato: estímulo → resposta A reação se abre em outras direções a cada vez que, ao ser sensibilizado por um estímulo qualquer o ser humano cria um novo estímulo para mediar o comportamento transformando o estímulo em recurso: estímulo do ambiente → resposta = estímulo artificial → resposta Percebe-se que o estimulo artificial apesar de ser uma resposta ao estímulo ambiental é ao mesmo tempo um novo estímulo que vai interferir no comportamento final. Entender o papel dos estímulos artificiais que o ser humano cria e controla o comportamento a serviço da própria vontade, é fundamental para entender a ideia primordial presentes nos estudos de Vygotsky, com a qual ele consegue explicar não só o desenvolvimento ontológico de cada ser humano como o desenvolvimento filológico da humanidade. Percebe-se, ao longo dessa análise que, em sua teoria para explicar o desenvolvimento cultural Vygotsky defende uma ideia principal: a capacidade do ser humano de interferir em seu próprio comportamento ou de outras pessoas por meio da criação de novos estímulos. Essa interferência se dá no sentido de mediar as ações humanas que, por sua vez, são guiadas pela vontade. A vontade seria uma força propulsora que move a pessoa na direção de buscar uma resposta para aquilo que necessita. Toda resposta é um comportamento, uma ação, mesmo quando ela acontece apenas em pensamento. Nesse sentido, ele enfatiza que os estímulos a que ele se refere não são apenas ferramentas, objetos, mas também sinais, ideias que, quando tomadas como significativas auxiliam o processo de escolha, interferem diretamente na decisão de se tomar um caminho ou outro; em dar essa e não aquela resposta, em acertar ou errar, se esta for a questão. Como uma pessoa que lança uma moeda creditando a esse objeto o seu destino. Não é difícil perceber que todo comportamento é uma resposta a um estímulo. Difícil é perceber que para cada estímulo existem infinitas possibilidades de comportamentos. E quando a própria reação ao estímulo se desdobra na criação de um novo estímulo que interfere no processo, a complexidade desse fenômeno desafia ainda mais o entendimento humano. Mas esse fenômeno nada mais é do que o próprio desenvolvimento humano que, por sua vez, como percebeu Vygotsky, é resultado de um processo de aprendizagem em que estão envolvidos

60 diversos comportamentos em constante transformação, sensibilizados pelos estímulos que existem e por aquele que são criados durante o processo.

1.1.1 O desenvolvimento cultural sobre três constructos: material, recurso e comportamento Ferramentas como dispositivos de trabalho, dispositivos para controlar o processo da natureza, a língua como dispositivo para o contato social e a comunicação, dissolvem-se no conceito geral de artefatos ou dispositivos artificiais (VYGOTSKY, 1997).50

Todo e qualquer processo de aprendizagem acontece na relação do indivíduo com seu meio. Tanto com o meio social, isto é, com as pessoas que estão a sua volta, como também com o meio material, seja ele natural ou artificial: tudo o que existe no mundo além das pessoas: as tecnologias, recursos e conhecimentos criados até então para mediar a sobrevivência do ser humano neste planeta. Se uma criança nascer hoje, o seu desenvolvimento terá como ponto de partida a influência do meio com tudo o que já foi criado pelo ser humano e que está disponível ao seu redor. Na maioria das sociedades da atualidade, as primeiras pessoas a interferirem no desenvolvimento da criança pertencem à sua família, em seguida à vizinhança e por fim, a escola, que é o primeiro contato da criança com o sistema social institucionalizado. O desenvolvimento cultural de cada criança será o resultado dos recursos que ela teve acesso ao longo de sua infância. Mas em que sentido o conceito de recurso pode ser aplicado neste caso? Um recurso é tudo o que é utilizado como meio para se atingir um fim. O recurso não é em si um objetivo, uma ação, nem tampouco um objeto ou material utilizado para conseguir algo, mas um instrumento para se conseguir realizar uma ação movida pela vontade ou necessidade. A palavra recurso pode em certos momentos parecer sinônima de instrumento ou ferramenta, mas ela se torna conveniente por poder englobar tudo o que exerce a função de mediador de um processo de aprendizagem e que nem sempre é concreto como como um martelo, e pode ser tão abstrato como um modelo teórico, um desenho ou um encadeamento harmônico, incluindo até mesmo pessoas que servem como modelo ou mediadores da aprendizagem. A palavra recurso compreende aquilo que Vygotsky convencionou chamar de dispositivos auxiliares ou estímulos artificiais. Entende-se que o dispositivo enquanto o objeto ou ideia utilizado como mediador do processo e o estímulo, aquilo que o dispositivo gera e afeta o comportamento, são aspectos de um mesmo propósito que estão contidos em uma mesma

50 Tools as devices of work, devices for mastering the process of nature, and language as a device for social contact and communication, dissolve in the general concept of artifacts or artificial devices (VYGOTSKY, 1997). 61

“coisa”. É essa “coisa” que convém chamar de recurso, pois esta palavra simplifica a compreensão sem comprometer sua função. Criando e usando estímulos artificiais como dispositivos auxiliares para o controle de suas próprias reações, também servem de base para uma nova forma de determinação do comportamento que distingue o comportamento superior do elementar. A presença de estímulos criados junto com os estímulos dados, parece para nós ser a característica distinta da psicologia humana. Nós chamamos de dispositivo-estímulos artificiais introduzido pelo homem em uma situação psicológica onde ele cumpre a função de autoestimulação - “sinal”, dando a esse termo um amplo, e ao mesmo tempo, mais preciso senso de uso comum. De acordo com nossa determinação, todo estímulo condicionado criado artificialmente pelo homem que seja um meio de controle do comportamento – de outra pessoa ou o seu próprio – é um sinal (VYGOTSKY, 1997).51

Por exemplo, quando uma criança percebe que os sons que ela produz de alguma forma provocam determinadas reações nas pessoas que cuidam dela, ela começa a utilizá-los como recurso para conseguir algo, movido por uma necessidade ou vontade. O choro, que no recém- nascido é um ato reflexo, ou seja, não voluntário, passa ao longo do desenvolvimento do bebê a ser um recurso de manipulação no momento em que ela percebe que seu ato de chorar afeta o comportamento de seus cuidadores. No uso dos sons como recurso, a criança desenvolve a fala, primeiro de forma mimética, depois criativa, a fim de poder interagir com as pessoas do seu convívio. Esses sons emitidos pela criança funcionam como sinais, com os quais ela consegue controlar o comportamento dos adultos que a rodeiam. O momento em que isso acontece no desenvolvimento da criança seria o ponto inicial do desenvolvimento das funções superiores de que trata Vygotsky e seus colaboradores. Isso coloca o som como um estímulo essencial no desenvolvimento humano, com exceção daqueles que não tem, por alguma deficiência orgânica, a audição comprometida, é claro. Nas atividades musicais, um instrumento musical é sempre um recurso para se produzir música. É claro que em determinadas circunstâncias, o prazer de tocar o instrumento pode superar o desejo de ouvir a música que resulta desta ação. Mas na maioria das atividades musicais o exercício de tocar um instrumento apenas pela ação só se completa quando o ato de

51 Creating and using artificial stimuli as auxiliary devices for controlling one’s own reactions also serves as a basis for the new form of determinacy of behavior that distinguishes higher behavior from elementary. The presence of created stimuli together with the given stimuli seems to us to be the distinguishing characteristic of human psychology. We call artificial stimuli-device introduced by man into psychological situation where they fulfill the function of autostimulation “sign”, giving this term a broader and at the same time a more precise sense than in common usage. According to our determination, every conditioned stimulus created artificially by man that is a means of mastering behavior – that of another or one’s own – is a sign (VYGOTSKY, 1997).

62 tocar passa a ser o meio para se fazer música e a música o objetivo para o qual se fez necessário aprender a tocar um instrumento. De qualquer forma, o que definirá se um objeto ou ação é um recurso para determinado fim é sempre relativo ao desejo e objetivo inicial. A invenção do fonógrafo como um recuso para registro da música foi circunstancial, pois Thomas Edison tinha em mente desenvolver uma tecnologia para estender o alcance das linhas telefônicas (GOMES, 2014). A gravação do som em cilindros de cera tinha como objetivo inicial registrar a voz falada e, mesmo que o registro de música constasse na lista de utilidades prevista por Edison, foi preciso muitas melhorias para que a gravação sonora pudesse ser percebido como um importante recurso para o campo da música. O gramofone de Emile Berliner substituiu o fonógrafo e os cilindros de cera evoluíram para discos, primeiro de “goma-laca”, depois de acetato e vinil (GOMES, 2014). Sendo o objetivo da gravação apenas registro e reprodução, nenhum desses inventores poderiam pensar que os mesmos discos seriam utilizados posteriormente para se criar um novo jeito de fazer música. Os discos de acetato e vinil possibilitaram aos DJs utilizar as gravações para compor novas músicas, dubs, ou os scratches indispensáveis no acompanhamento do rap. Cada um desses recursos compreende uma tecnologia que favorece à cada atividade musical de forma diferenciada, pois nenhuma tecnologia carrega em si um único fim previamente determinado e definitivo. Isto é, desenvolvemos novas tecnologias com um ou outro propósito, mas jamais saberemos o uso que dela poderá ser feito. É possível considerar essa liberdade de ação como uma subversão das tecnologias. A diferença mais significativa do sinal a partir da ferramenta e a partir da divergência real das duas linhas é diferente do efeito de um e do outro. A ferramenta serve para conduzir a atividade do homem, é dirigida para o exterior, deve resultar em uma mudança ou outra no objeto, é o meio para a atividade externa do homem voltada para subjugar a natureza. O sinal não muda nada no objeto controlando o próprio homem; o sinal é dirigido para dentro (VYGOTSKY, 1997).52

A diferença entre ferramenta e sinal, para Vygotsky, está na condição de que a função da ferramenta é transformar o meio, o objeto, a natureza externa, já a função do sinal está em transformar o comportamento humano, sua mente, sua forma de agir, sentir e pensar. Neste

52 A more substantial difference of the sign from the tool and the basis of the real divergence of the two lines is the different purpose of the one and the other. The tool serves for conveying man’s activity, it is directs outward, it must result in one change or another in the object, it is the means for man’s external activity directed toward subjugating nature. The sign changes nothing in the object mastering man himself; the sign is directed inward (VYGOTSKY, 1997).

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sentido, se um gramofone e os discos são a ferramenta, a música que resulta deles é o sinal, um som carregado de sentidos compreendidos como música que foi gravado em determinada circunstância e reproduzido em outra. Como sinal a música é dirigida para dentro da pessoa e só internamente, fará algum sentido. Enquanto material são apenas moléculas vibrando em diferentes frequências. No que diz respeito as tecnologias, pode-se dizer que um recurso é a transformação de um material dado na natureza em ferramentas (instrumentos) ou sinais, capazes de transformar não só o meio, como também o comportamento. Quando a primeira flauta foi inventada, ela surgiu a partir da transformação de um material, um osso, em um recurso para se produzir sons. Mas para que a flauta de osso pudesse servir para aquilo que aparentemente foi inventada, se fez necessário também desenvolver a habilidade de tocá-la. O mesmo vale para a criação das primeiras armas e outras ferramentas que fizeram a diferença na sobrevivência da humanidade na pré-história. A pedra lascada não é só um material transformado em recurso para obtenção de comida ou defesa pessoal, duas necessidades essenciais para sobrevivência do ser humano, mas também um recurso para mudança de comportamento. No ato de esmerilar uma pedra existe um processo de desenvolvimento do comportamento em habilidades e competências que antes não existiam. Isso também vale para o ato de utilizar a pedra lascada com ferramenta. Um recurso não surge no mundo como recurso. Um instrumento musical, para o luthier é seu produto final, e para construí-lo ele fez usos de outros recursos, desde cálculos para desenhar a melhor forma a ferramentas que precisou utilizar para transformação de uma matéria-prima dada pela natureza, como a madeira, por exemplo, em um instrumento para se fazer música. Pode-se dizer que um recurso é a transformação de alguma coisa em outra coisa que não ela mesma. Mesmo que um cajon continue sendo apenas uma caixa de madeira, em sua forma de caixa oca ele é utilizado como recurso para se produzir som. Um Cajon sozinho, mesmo que em seu melhor design, não é nada além de madeira se não tiver alguém que consiga com ele produzir sons que fação sentido e soem como música. Neste sentido o recurso não diz respeito apenas a transformação de uma matéria-prima em material, ou de um material em outro material, mas também a transformação do comportamento humano na ação de utilizar o recurso para algum fim. Um dia, na história da música, alguém resolveu registrar os sons em papel, utilizando como recurso, não apenas o papel e tinta, é claro, mas desenhos, sinais que simbolizavam os sons, os transformando em escrita musical. Mas o fim de uma partitura não é o registro em si, e sim a música. Então a partitura musical nada mais é do que um recurso para se registrar um som. Ou seja, serve como um estímulo artificial para lembrar de uma organização de sons e

64 poder guardá-la de forma a substituir artificialmente a memória. Essa capacidade de o ser humano interferir em seu próprio comportamento a partir de um estímulo artificial que ele mesmo coloca para si, funciona como um recurso que o possibilita fazer coisas que não poderiam serem feitas sem isso. Para Vygotsky este recurso não só interfere no comportamento, mas na formação de novas e diferentes estruturas neurológicas. Quando uma pessoa, em uma leitura à primeira vista, transforma os sinais de uma partitura em música ela transforma a si mesmo, no processo de aprendizagem e desenvolvimento das habilidades necessárias para produzir aqueles sons que estavam subentendidos nos sinais da escrita musical. Dada a necessidade de registro de músicas para serem lembradas depois, a partitura musical surgiu como um recurso que vem a ser uma extensão da própria memória. É claro que, para uma criança que aprende hoje a ler uma partitura, existe uma distância histórica entre a sua necessidade de aprendizado e a intenção inicial para qual esse recurso foi criado inicialmente. Com a criação de outros recursos pala relembrar uma música como a gravação por exemplo, o recurso da partitura pode até ser dispensável em determinada fase da aprendizagem ou a depender do tipo de repertório musical, o que faz com que o aprendiz não perceba a partitura como um estímulo relevante, se comparado com quem a criou. Se por um lado os recursos são criados com o objetivo de alcançar determinada performance, por outro, eles ditam as habilidades que precisamos desenvolver para utiliza-las. Afinal de que adiantaria inventar a partitura musical se ninguém fosse capaz de decifrá-la? Só que o desenvolvimento de habilidades promovido pelos recursos vai além daquilo para o qual foram criados. Não foi Beethoven quem inventou a escrita musical utilizada em sua época, mas foi porque aprendeu a utilizá-la que ele pode compor suas obras. E foi graças às suas obras que outros compositores puderem desenvolver novos estilos de composição musical. Ou até mesmo a teoria musical para poder ensinar as regras da estrutura e representação da música. A mesma lógica serve para o desenvolvimento de habilidades técnicas necessárias à execução instrumental. Quem inventa uma nova técnica instrumental? O instrumentista ou o compositor? O piano veio em substituição ao cravo por qual necessidade? A do temperamento da afinação ou da sustentação da intensidade do som? E a partir do piano, por que tantos instrumentos começaram a ser temperados? Qual instrumento dita a afinação em um duo de piano e violino? Se começarmos a especular mais nesta direção vamos perceber que nosso comportamento musical é moldado pelos recursos tecnológicos que temos disponível para fazer música, até que alguém resolva transgredir o uso para o qual um recurso foi criado. A guitarra foi temperada pelos trastes e o bend foi uma das técnicas capazes de transgredir esse 65

temperamento. Também foi pela transgressão das tecnologias de gravação em fita magnética surgiu a música concreta, que “materializa” som e escuta em um “objeto sonoro” passível de ser manipulado (SCHAEFFER, 1993). Pode-se dizer que, historicamente, os recursos desenvolvidos até hoje para a atividade musical são de certa forma facilitadores da aprendizagem, pois para aquelas pessoas que não tem facilidade para decorar uma música, por exemplo, há o recurso da partitura. Para aquela que não domina a habilidade de leitura musical, há o recurso da gravação, e assim por diante. Contudo, partitura musical não é só um recurso, pois torna-se também um material para criação de outros recursos. Por exemplo, uma partitura de uma obra musical qualquer, pode ser utilizado como material para criação de um novo arranjo. Neste caso o arranjo será o recurso necessário para um novo fim que poder ser uma atividade musical diferente, para uma formação instrumental diferente, que acarretaria na transformação de comportamentos necessários à nova atividade. Poder-se-ia especular infinitamente o que pode ser considerado recurso ou material para se chegar a um fim, mas de um jeito ou de outro, a transformação de comportamentos sempre estará presente ao longo desse processo. Desde o comportamento inicial que levou uma pessoa a selecionar determinado material transformando-o em recurso, até ao comportamento daqueles que farão uso do novo recurso para transformar seu próprio comportamento. No caso da prática musical, quem utiliza qualquer recurso para fazer música transforma seu comportamento em um comportamento musical. E o que é a transformação de um comportamento em algo reconhecido como musical se não o resultado de um processo de aprendizagem e desenvolvimento musical? Tudo o que possuímos no mundo pode ser compreendido em termos de material, recursos e comportamentos que foram utilizados e desenvolvidos ao longo do tempo em cada lugar do planeta, contribuindo não só para construção das sociedades e todos os aparatos que delas provêm, mas também para sua própria história. Os recursos são históricos porque estão fora da matéria biológica, fora de nossos cérebros, de nossos corpos, mas preservados como herança cultural por nossos antepassados e mantidos em uso e tradição ao longo das gerações de cada sociedade. Por isso a perspectiva histórica é imprescindível. Como foi visto até aqui, o conceito de desenvolvimento cultural é fundamental para entender como funciona a mente humana no que diz respeito a construção do conhecimento e desenvolvimento de habilidades necessárias à sobrevivência da espécie, em um primeiro momento, mas que historicamente superou essa necessidade primordial dada a quantidade de recursos, de dispositivos artificiais ou ferramentas que o ser humano criou e que hoje são

66 indispensáveis na vida humana, mesmo que seu uso não esteja relacionado diretamente à sobrevivência. A música está entre esses recursos que, de certa forma, não parece estar relacionado a uma questão de vida ou morte. Portanto, há de se questionar qual a função da música na vida humana. Afinal, se a música fosse supérflua, dispensável, porque estaria tão presente na vida das pessoas de todas as sociedades? Não seria a música justamente um estímulo artificial criado pela vontade humana? Qual é o valor da música para humanidade? E como isso pode ajudar a entender o desenvolvimento do talento musical?

1.1.2 O desenvolvimento cultural para explicar o talento musical O que me fez diferente foi aceitar meu talento Rimadores com flow, pra aliviar seu tormento O que eu digo é de coração, amigo Se eu tivesse que parar, já tinha parado, mas eu sigo. Porque a arte liberta, esse é o meu desejo Talento deus deu, do metalúrgico ao cozinheiro (CRIOLO, trecho da canção Ainda Há Tempo, 2006)

A teoria que Vygotsky apresenta acerca do desenvolvimento cultural, por ser uma teoria, possibilita explicar o desenvolvimento humano em sua gênese independente do contexto ou dos experimentos que serviram de meio para validá-la. Isto significa dizer que o conceito de desenvolvimento cultural que embasa a teoria de Vygotsky sobre como se dá o desenvolvimento humano em sua gênese deve valer para qualquer contexto que se queira analisar e compreender. Pois caso contrário não seria uma teoria, e sim um estudo de caso restrito às circunstâncias experimentais em que as ideias foram criadas. Apesar dos experimentos de Vygotsky e seus colegas terem sidos interrompidos pelas circunstâncias políticas e principalmente pela sua morte precoce, suas ideias registradas até então foram suficientemente claras e fidedignas a ponto de sugerir uma teoria. Tanto é assim, que muitos pesquisadores se interessaram pela sua obra assim que tiveram contato com ela. A atualidade das ideias de Vygotsky se mantém até hoje pois ainda não há, mesmo com os avanços tecnológicos na área da neurociência, nenhuma outra teoria que consiga explicar o desenvolvimento humano com relação ao seu aspecto natural, aquilo que já vem definido em sua natureza animal e o cultural, aquele que diz respeito ao que é aprendido. A velha discussão entre nature e nurture, que perpassa pelos conceitos de inteligência, razão, habilidade, competência, genialidade e, no que cabe a esse trabalho, o conceito de talento, em especial, o talento musical. A maior dificuldade de se explicar o talento musical consiste no fato de que o processo de aprendizagem e o desenvolvimento de habilidades que conferem a uma pessoa a qualidade 67

de talentosa, parecem imperceptíveis. Contudo, essa é uma impressão apenas a “olho nú”. Pois a dificuldade real consiste em se perceber o início do processo de aprendizagem que leva a determinada pessoa a adquirir habilidades tão competentes que lhe conferem o atributo de talentosa. Esse atributo é construído socialmente a medida em que as habilidades expressas têm algum valor para o meio em que elas surgem. Isso seria uma análise do ponto de vista do conceito de talento, que surge na intenção de qualificar e destacar o comportamento musical de determinadas pessoas. Contudo, considerar apenas o aspecto conceitual do talento musical não ajuda a compreender como determinadas pessoas desenvolvem habilidades musicais a ponto de serem reconhecidas como talentosas. Pois o talento não é creditado a qualquer pessoa que aprende música ou que se engaja em alguma atividade musical. Para Gagné (2008) o talento é desenvolvido na proporção de 10%, ou seja, para cada cem pessoas que se dedicam a atividades musicais, apenas dez serão consideradas talentosas. Mas por que apenas algumas pessoas são consideradas talentosas e outras não? Por que das ditas talentosas, apenas algumas alcançam a eminência profissional? O que faz a diferença no processo de desenvolvimento de uma pessoa para outra que a torna talentosa e eminente? Essas são perguntas difíceis de responder, pois para cada caso há uma circunstância diferente a ser analisada. Ou seja, não tem como explicar o talento musical sem considerar o ambiente cultural em que ele surge. Da mesma forma que não dá para explicar o talento sem considerar a pessoa que o desenvolve. De um lado há uma pessoa que nasce e cresce em determinado ambiente e desenvolve determinadas habilidades, de outro um ambiente cheio de estímulos que interferem direta ou indiretamente no desenvolvimento de todas as pessoas que habitam aquele meio. O ambiente visto de fora parece o mesmo, mas para cada pessoa ele é diferente, pois, como percebeu Vygotsky, a principal característica natural do ser humano está em poder controlar ele mesmo o seu próprio comportamento decidindo sobre os estímulos que lhe servirá ou não, aqueles que lhe afetará positiva ou negativamente. O conceito de desenvolvimento cultural vem ajudar a explicar como a aprendizagem se dá a partir da vontade de cada aprendiz e dos recursos criados para o controle do comportamento, guiando então o processo a partir dos estímulos gerados. Explica a aprendizagem que acontece no meio social, sem que necessariamente haja um mestre, um professor ou educador em especial. O meio com as coisas e as pessoas influenciam na aprendizagem, mas quem determina o processo inevitavelmente é o próprio aprendiz. Na forma como a educação institucional está estruturada na sociedade, não é assim que acontece, pois, o aprendiz jamais tem a opção de poder decidir sobre a sua educação.

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Os conflitos do desenvolvimento cultural de uma criança surgem na medida em que sua vontade sozinha não determina suas ações, pois ao lado dela vem a vontade de outros. A vontade da família prepondera sobre a criança pequena e a vontade da “escola” enquanto instituição representante da vontade da sociedade, prepondera sob a forma de educação. A vontade de uma única pessoa pode ser propulsora do seu desenvolvimento, mas a união de vontades alheias, se não forem concordantes, ao invés de ajudar pode atrapalhar o processo gerando frustação ou fracasso. Analisando por essa ótica é compreensível que, o talento musical enquanto um atributo dependente dos valores sociais, seja atribuído a poucas pessoas e de forma seletiva. No entanto, a ideia de desenvolvimento cultural da forma como Vygotsky desenvolveu, coloca o aprendiz no centro da aprendizagem, como o primeiro responsável pelo seu processo, no momento que considera a sua vontade como principal força motriz. Nesse sentido, o desenvolvimento do talento musical enquanto resultado de um processo de aprendizagem deve ficar ao encargo do próprio aprendiz. Este, precisa perceber seus interesses, encontrar os estímulos e buscar o desenvolvimento das habilidades que lhe serão necessárias para atividade musical que lhe convém. O desenvolvimento do talento musical não pode estar vinculado a um processo de ensino aprendizagem que não seja voluntário, que seja imposto sem que o aprendiz aceite o desafio. Isso explica porque na maioria das histórias de vida de musicistas talentosos e eminentes, a aprendizagem de música não acontece dentro da escola em função da obrigatoriedade do ensino de música. Para que um aprendiz de música venha a desenvolver habilidades musicais é preciso primeiro que ele tenha vontade. A vontade é a sua motivação, aquilo que lhe guiará durante seu processo, que o ajudará a superar as dificuldades e buscar a competência. O talento musical será sempre a consequência de um processo bem-sucedido. Em suma, o desenvolvimento do talento musical depende basicamente de três fatores: 1. Que a vontade do aprendiz prevaleça a vontade dos outros 2. Que lhe seja acessível os materiais e recursos necessários à aprendizagem de música 3. Que suas ações sejam dirigidas para esse aprendizado

A aprendizagem de música não acontece se não é vontade do aprendiz aprender música, independente do quanto ele demonstre aptidão para isso. Também não adianta ter vontade sem ação. Um aprendiz em potencial pode desejar muito se tornar um compositor, cantor ou instrumentista, mas se ele não implementa nenhuma ação nesse sentido, ficará só na vontade. E não existe a possibilidade de alguém substituí-lo nesse processo, pois habilidades musicais 69

só são desenvolvidas a partir de ações, comportamentos que no processo de aprendizagem vão se transformando qualitativamente até atingir um nível de competência satisfatório, não só em relação aos valores do aprendiz, mas em relação aos valores do grupo social do qual ele faz parte. A partir dessa análise se faz necessário redefinir alguns conceitos: 1. A aprendizagem de música é toda atividade musical que pressupõe uma transformação do comportamento e resulte na aquisição de habilidades musicais, no aperfeiçoamento de técnicas ou na construção de experiências musicais e, consequentemente, no desenvolvimento do talento musical. 2. Já a atividade musical pode ser entendida como toda ação que resulta em música e aprendizagem. Pois qualquer ação musical que uma pessoa realiza fica registrada em sua mente como habilidade, visto que a aprendizagem é justamente a habilidade que a pessoa adquire a partir de suas ações. É claro que em uma atividade musical cujo resultado musical não seja satisfatório, talvez não haja a aquisição de nenhuma nova habilidade, mas com certeza fica registrada a experiência do que não deu certo ou não ficou bom, e os erros são partes indispensáveis do processo de aprendizagem. 3. O talento musical é um conjunto de habilidades expressas por uma pessoa em uma atividade musical, que despertam a comoção social no meio em que se apresenta em destaque com relação aos pares. Um aprendiz com talento não é apenas aquele que domina com proficiência as habilidades musicais, mas aquele que domina seu próprio comportamento tendo a capacidade de controlar o seu desenvolvimento de forma que ele demonstre o melhor de si em sintonia com a sua vontade e com isso consiga gerar uma comoção social a ponto de seu comportamento ser reconhecido como talento. A contribuição do meio nesse processo é restrita aos recursos, pois mesmo que um aprendiz esteja disposto a se dedicar a aprendizagem, sem material e recursos necessários, seu processo ficará mais restrito. Neste sentido, as limitações do desenvolvimento do talento musical e principalmente da eminência profissional são encontradas no meio, na falta de recursos necessários ao desenvolvimento, já que o material para se fazer música, como será mostrado adiante, é fácil de encontrar no ambiente externo ou na própria mente do aprendiz. Como Vygotsky e seus colegas perceberam, a transformação do comportamento e das estruturas cerebrais que configuram o desenvolvimento do ser humano está diretamente conectado aos dispositivos e estímulos disponíveis no meio. O modelo que será apresentado adiante se baseou nesses princípios.

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1.2 Modelo analítico do desenvolvimento do talento musical – MADTM53 O mecanismo desse modelo consiste em destacar os constructos material, recurso e comportamento como engrenagens da aprendizagem de música e desenvolvimento do talento musical tendo a vontade como força motriz a vontade. Acredita-se que a dificuldade de se descrever a aprendizagem está em conseguir colocar de forma linear e bidimensional um processo que é dinâmico e complexo, já que não é possível saber qual é o ponto de partida. O que se sabe é que existe um ambiente natural e cultural, e nesse ambiente a criança nasce e se desenvolve por meio da interação com os estímulos que a cercam e com aqueles que ela mesma cria para si. Há de se questionar se a vontade surge antes do estímulo, depois ou ao mesmo tempo. Ou em que momento a criança começa a selecionar os estímulos sonoros que a afetam e de que forma. A linearidade, apesar de ser uma tendência do pensamento humano na tentativa de organizar e descrever um fenômeno, não é suficiente para explicar o próprio pensamento humano. Para afastar a noção de linearidade é preciso pensar uma outra forma de compreender a aprendizagem de música que subjaz toda atividade musical. A figura 1 utiliza a imagem de engrenagem para tentar ilustrar a interação entre esses três constructos54. Percebe-se que o constructo comportamento é a engrenagem maior que vai movimentar os outros dois constructos, o material e o recurso, já que toda atividade musical começa no comportamento, assim como qualquer atividade humana. O material e os recursos só farão parte de uma atividade musical se forem selecionados por meio de uma ação, ou seja, pelo comportamento. A vontade em si não é um comportamento, pois é possível haver vontade sem ação. Contudo a recíproca não verdadeira, pois não há ação sem vontade, mesmo que seja uma vontade contrariada. Pode-se pensar que a vontade como uma emoção, uma força que vem de dentro da pessoa e que não necessariamente se forma como pensamento ou sentimento de forma consciente, mas que está ali presente impulsionando os comportamentos em uma direção ou em outra.

53 Esse modelo foi inicialmente elaborado a partir de uma experiência com oficinas de música no Curso de Verão Para Alunos Superdotados, nos anos de 2014 e 2015, realizadas na Universidade Federal Fluminense (UFF), pelo Programa de Atendimento a Alunos com Altas Habilidades/Superdotação (PAAAH/SD). A versão apresentada nesta tese foi aperfeiçoada e adaptada para análise do desenvolvimento do talento musical tanto de aprendizes como de músicos profissionais em qualquer tipo de atividade musical. 54 Apesar de a ideia de engrenagem não ser a representação ideal para ilustrar o a interação entre os constructos por não excluir a noção de linearidade intrínseca ao movimento circular, ela foi escolhida por transmitir a ideia de força e movimento. Acredita-se que no futuro seja possível criar uma imagem mais adequada que represente a força e o movimento de uma forma menos mecânica que possa ser compreendida sem muitas explicações. 71

recurso

material

comportamento

Figura 1: Constructos do processo de aprendizagem e desenvolvimento do talento musical

No que diz respeito ao material e recurso, não há dificuldade em se identificar e descrever. Por exemplo, para um aprendiz de guitarra elétrica que quer tocar rock, seu principal recurso é a guitarra uma tecnologia que só funciona com outro recurso que é o amplificador. Existem recursos adicionais como pedais de efeito, botões de equalização do som e tudo mais, que farão diferença no resultado sonoro da atividade musical do aprendiz. Da mesma forma que a qualidade do equipamento também fará diferença. Existem guitarras boas e guitarras ruins. Uma guitarra pode estar empenada e por isso não atingir a afinação adequada. Esses são fatores que precisam ser acompanhados, pois podem interferir no processo de aprendizagem e no resultado final da performance, qualificando o aprendiz com relação ao sua habilidade e competência, enfim, com relação ao seu talento. Contudo são fatores externos ao aprendiz e podem ser facilmente corrigidos, adquirindo um equipamento melhor, se for o caso ou coisa parecida. Já no que diz ao comportamento, as ações implementadas pelo aprendiz na atividade musical, a “correção” é um tanto mais delicada. Pois é preciso perceber o que o aprendiz está fazendo ou como está fazendo em relação a performance musical que ele pretende realizar, para poder avaliar se a ação empreendida está adequada ou não. É nesse momento que outras pessoas participam como recurso para mediar esse processo. As ações musicais presentes em uma atividade musical devem ser sempre relativas ao objetivo que se quer chegar, seja ele: apenas a aprendizagem em si, uma performance, a composição, ou qualquer outra forma de expressão musical. Neste sentido, tudo precisa ser ajustado de acordo com a vontade do aprendiz. Por exemplo, uma banda de cover precisará ajustar sua performance de forma que o resultado

72 musical pareça o mais próximo possível do original da banda que se pretende imitar. Já quando o objetivo é criar, o único limite é a imaginação de quem cria. A vontade deve ser o motor de todas as ações, seja em uma direção ou em outra.

1.2.1 Sobre o material Não é possível fazer música sem som. O som é a matéria-prima de toda música. A escuta musical é o ponto de partida para a aprendizagem de música. Antes mesmo de se pensar em aprender música de forma voluntária, toda criança já teve seu processo iniciado por meio das atividades sonoras e musicais que estão presentes em seu entorno. A medida que a criança vai criando consciência desse meio ela vai selecionando o tipo de som ou música que mais lhe agrada. Mesmo sem passar por um processo formal de ensino de música, uma criança criada em um ambiente musical pode aprender e desenvolver seu comportamento musical apenas por observar e imitar as pessoas que estão a sua volta. Crianças que, motivadas pela vontade escolhem modelos musicais para seguir, podem desenvolver o talento musical sem que as pessoas que fazem parte do seu convívio percebam como isso foi possível. O som, seja ele música ou não é único material fundamental para aprendizagem de música, o primeiro material a ser selecionado, não importa por meio de que recurso ele será utilizado na aprendizagem. Quando se aprende música de ouvido, isto é, através da escuta, o som é o material da aprendizagem. Mas quando se aprende uma música lendo uma partitura, por exemplo, além do som que ali está representado, há também a partitura, que apesar de ser um recurso de registro do som não deixa de ser um material a ser selecionado para o processo de aprendizagem. Contudo não é só de som que se faz música. As canções enquanto um tipo específico de música tem como material essencial o texto, palavras em versos cantados, pois senão não seria canção. O texto abre para canção uma infinidade de materiais possíveis de serem utilizados. Pois se o repertório de palavras de uma única língua já é extenso, imagina a quantidade de sentidos que uma determinada combinação de palavras pode trazer. E se considerarmos as figuras de linguagem, as gírias e outras peculiaridades da linguagem, as possibilidades tendem ao infinito. Sem contar que, para cada fonema articulado é possível escolher uma infinidade de sons. Definitivamente, o material para aprendizagem de música é muito amplo e a seleção desse material é uma etapa fundamental no processo. Por isso a seleção mais uma vez, torna-se uma ação fundamental que, a serviço da vontade possibilita que o processo de aprendizagem tenha um ponto de partida, um recorte e uma meta, mesmo que as possibilidades de materiais e recursos disponíveis, sejam infinitas. 73

1.2.2 Sobre os recursos O desenvolvimento do talento está diretamente relacionado aos recursos mediadores que viabilizam o processo de aprendizagem. Esses recursos podem ser divididos em duas categorias: a) Pessoas: família, professores de música, professores de diversas áreas, colegas, pessoas que ensinam através de vídeos tutoriais disponibilizados na web, artistas de referência, etc. todas as pessoas que servem como modelo, que se coloca como exemplo a partir de suas atitudes, gestos, posturas em uma atividade musical ou que interfere diretamente no comportamento do aprendiz orientando com relação a melhor forma de agir. b) Tecnologias: a música, instrumentos musicais convencionais ou não, partituras, gravadores de áudio, livros, manuais, câmeras de vídeo, computadores, softwares de edição de áudio, internet, etc. As pessoas podem ser consideradas como recursos de aprendizagem quando são tidas como um modelo a ser imitado, ou quando elas interferem diretamente dando suporte a ação que está sendo empreendida, como por exemplo, quando um professor de violino ajuda a segura o arco ou o violino até que a criança consiga fazer sozinha. Como Vygotsky ressalta, o desenvolvimento cultural só é possível dada a vontade de cada um em selecionar os seus próprios dispositivos de aprendizagem. Nesse processo são necessárias algumas ações a serem implementadas pelo aprendiz. O ambiente social é composto de diversos estímulos prontos e quanto mais complexa é a sociedade, maior é quantidade de estímulos disponíveis para aprendizagem e desenvolvimento. As pessoas são mediadoras da aprendizagem a partir do momento em que interferem na vida de cada criança direcionando os seus interesses, impondo limites e restringindo a quantidade de estímulos a que as crianças são expostas constantemente. Isso torna o desenvolvimento um processo extremamente artificial, pois ele é moldado pelas circunstâncias impostas pelo ambiente social. Já as tecnologias são tantos os artefatos utilizados para fazer música direta ou indiretamente, como a própria música. Pois toda tecnologia pressupõe um saber, não somente um saber teórico, mas um saber prático, o know-how, saber como fazer. Isso significa dizer que não só os instrumentos musicais, artefatos necessários para se fazer vários tipos de música, são tecnologia. Pois a música em si, carrega junto com ela saberes e técnicas que são necessárias de serem compreendidas e apreendidas, tanto por quem a faz, quanto por quem a escuta ou pretende aprendê-la. Para Vygotsky a aprendizagem acontece quando os recursos são internalizados. Então, se em um primeiro momento um aprendiz de guitarra utiliza esse instrumento para fazer música, quando ele se torna um guitarrista, mesmo que ele não tenha a

74 guitarra na mão, ele tem internalizado todas as habilidades necessárias para tocar guitarra. Mas isso só é possível depois que habilidades foram desenvolvidas a partir da “tecnologia guitarra” e uma pessoa como modelo para imitar. O recurso não é o fim, mas o meio para aprendizagem de música e desenvolvimento do talento musical que, quando interiorizado passa a ser um meio de expressão. Aquelas pessoas que tem a capacidade de interiorizar determinados recursos rapidamente são aquelas que surpreenderão pelo seu talento, pois um recurso interiorizado se torna imperceptível.

1.2.3 Sobre comportamentos (Instrumento AMCAM) Identificar os comportamentos que estão presentes no processo de aprendizagem é justamente o maior desafio para compreensão de como o talento musical se desenvolve. Mesmo sabendo que todo aprendizado envolve ações, ou seja, comportamentos, é preciso identificar primeiro quais ações estão presentes no processo de aprendizagem e que são indispensáveis na atividade musical. Pois não é possível separar a aprendizagem de música da própria atividade musical, visto que, toda atividade musical pressupõe um processo de aprendizagem necessário para que ela aconteça e vice-versa, o próprio processo de aprendizagem é em si uma atividade musical. Diante dessa complexidade é que se fez necessário desenvolver um instrumento de avaliação do comportamento na atividade musical para poder destacar os comportamentos presentes no processo de aprendizagem que subjaz o talento musical. Para além dos três constructos, material, recurso e comportamento, esse modelo que aqui está sendo proposto compreende um instrumento de avaliação do comportamento. Esse instrumento foi construído de forma a evitar uma representação linear dos comportamentos presentes na atividade musical, uma vez que, como já foi dito, é difícil saber a ordem em que eles acontecem, ou até mesmo se essa ordenação existe a nível mental. Em função disso, optou-se por utilizar a imagem de uma molécula como metáfora, considerando o comportamento como um átomo que forma a molécula e que representa a ação empreendida pelo aprendiz ou músico na atividade musical. O instrumento – Avaliação Molecular do Comportamento na Atividade Musical que será referenciado a partir da sigla AMCAM, propõe dois parâmetros distintos para avaliação do comportamento: a) Ações fundamentais da atividade musical b) Perfis de aprendizagem 75

Tanto as ações como os perfis devem ser representadas como átomos, com o propósito de evitar qualquer reação linear, possibilitando considerar que os comportamentos, quando ainda são apenas pensamento, podem surgir ao mesmo tempo, de forma caótica e dinâmica.

1.2.3.1 Ações fundamentais da atividade musical Após cuidadosa reflexão sobre as ações que são implementadas em uma atividade musical, foi possível identificar cinco ações fundamentais: imitação, seleção, experimentação, criação, expressão.

Figura 2: Ações fundamentais da atividade musical representadas por átomos

Na atividade musical, seja ela uma atividade profissional ou de aprendizagem, essas ações podem estar presentes simultaneamente em todo processo, ou não, assim como podem várias em função da atividade musical que está sendo realizada. Alguns aprendizes podem realizar apenas algumas delas ou todas, ou mesmo ter preferência por uma e não outra, o que acaba caracterizando o seu perfil de aprendizagem. Mas de uma forma geral elas são a base da aprendizagem musical e consequentemente de toda atividade musical.

A imitação é uma capacidade humana indispensável para sobrevivência. A maioria das coisas que aprendemos na infância aprendemos por imitação. A música é um estímulo que incita a imitação naturalmente, no sentido de que, uma vez exposto a um estímulo musical todo ser humano reage de alguma forma tentando imitar algum aspecto da música, nem que seja apenas a pulsação. Mas não é só por imitação que se aprende a música e mesmo o ato de imitar pode ser precedido pelo ato de selecionar aquilo o que se quer imitar. É nesse sentido que Vygotsky considera a vontade como o divisor de águas no desenvolvimento humano. Se a aprendizagem de música se restringisse apenas a imitação,

76 não haveriam músicas nova. Isso vale para qualquer atividade humana. A imitação é uma etapa fundamental em todo processo de aprendizagem, mas o ser humano só se torna um ser cultural quando ele deixa de imitar para experimentar e criar coisas novas, que por sua vez depende da capacidade do aprendiz selecionar em meio a todos os estímulos musicais, aquilo que ele vai imitar ou não, e de que forma permanecerá fiel a imitação.

A seleção é uma ação imprescindível, pois ela está diretamente ligada à vontade, àquilo que motiva a aprendizagem. Na atividade musical é uma ação relacionada a escuta. Não é propriamente a escuta, pois é possível escutar sem selecionar. A escuta é um comportamento que sempre está presente, já o até de selecionar é seletivo, está vinculado ás escolhas e acontece apenas em determinados momentos da atividade musical, principalmente aquele voltados para experimentação ou criação. Também é uma ação necessária para aqueles que não participam ativamente da atividade musical, mas escolhem observá-la ou escutá-la. O músico ou aprendiz que se coloca nessa situação passiva inevitavelmente seleciona aquilo que quer observar ou escutar.

A experimentação é um caso em particular, pois ela oscila entre a imitação e a criação. Ao experimentar tocar alguma coisa em algum instrumento, sempre aparecem padrões musicais que já existem e estão sendo imitados e outros que não existem, são frutos da criação, da invenção de novos padrões que acontece naquele momento. Da mesma forma que alguns aprendizes apreciam mais aprender por imitação outros podem preferir atividades de criação. E ainda há aqueles que vão se contentar apenas com a experimentação. Há uma singela diferença entre experimentar e criar. Quando se cria uma música, essa criação terá uma forma definida que caracterizará aquela música como única. Na experimentação, não há uma preocupação com a forma final, apenas o processo. Não que no meio de uma experimentação, não surja uma ideia que possa levar a uma criação. Mas a experimentação é uma ação que não se compromete em criar nada, apenas experimentar. É uma ação comum em alguns tipos de atividade musical como no jazz, no rock, na prática do DJ, ou da música experimental, entre outras. Mesmo que a liberdade de experimentar possa ser limitada a harmonia, como no caso do jazz e do rock ou ao ritmo, como no caso do DJ. Mas basta ter vontade, para que uma atividade musical possa ser inteiramente construída por experimentação, sem regras, limites ou padrões combinados entre os músicos. 77

A expressão musical é inevitável, pois se não há expressão não há música. É a ação necessária para que uma atividade musical aconteça; se um compositor cria uma música, mas não a expressa, não há atividade musical, não há ações, não há comportamentos. A expressão é então imprescindível para quem participa ativamente de uma atividade musical. Ela só não é necessária para quem observa a atividade. Contudo é preciso considerar o aprendizado que não é expresso, mas a atividade musical só acontece com música, então em algum momento, a expressão será necessária para caracterizar o processo como atividade musical. Muitos aprendizes e músicos costumam fazer música na cabeça, apenas com pensamentos. Músicas que são criadas ou imitadas constantemente, mas que não são expressas. Pode até haver aprendizagem, quando por exemplo, um aprendiz aprende mentalmente tudo o que deveria aprender, mas na hora de expressar, se recusa. Mas sem expressão não há música. Sobre essa peculiaridade, não é possível avaliar, apenas uma autoavaliação permitirá que uma pessoa avalie as ações que implementa apenas em pensamento. Os métodos de ensino de música, por vezes falham na educação de um aprendiz, caso não levem em consideração essas cinco ações. Por exemplo, o método Suzuki, tem como critério principal de aprendizagem a imitação. Imitação de gestos e de músicas que são organizadas em um repertório selecionado pelo próprio Suzuki. Para aqueles aprendizes que não tem a imitação como um estímulo, o método Suzuki pode vir a ser um suplício. Contudo, para aqueles cuja aptidão maior está justamente na capacidade de aprender a música ouvindo e imitando os gestos, este método será um sucesso, caso o repertório seja do agrado, é claro. Já em outro extremo, propostas pedagógicas como a de Hans-Joachim Koellreutter, o estímulo a experimentação e criação passa a ser o meio principal para o desenvolvimento musical (BRITO, 2015). Da mesma forma que alguns aprendizes podem não se sentir motivados em aprender por imitação, outros podem se sentir desconfortáveis em ter como ponto de partida a experimentação. A sensação de liberdade para fazer música pode ser adequada a aprendizes que de alguma forma já tem ideias a expressar ou curiosidade em experimentar, mas para aqueles que não se sentem seguros ainda em arriscar a ser músico por experimentação, esse tipo de atividade pode limitar sua expressão ao invés de libertar. Até porque quando u aprendiz já tem definido aquilo que quer fazer com música, o tipo de música que quer tocar ou o instrumento que quer aprender, para esse aprendiz o melhor método será aquele que lhe forneça as técnicas e conhecimentos necessários para o desenvolvimento de suas habilidades musicais. Percebe-se que a dificuldade de adequar o ensino de música à demanda do aprendiz não se restringe ao método em si. O problema está em não se perceber o perfil de aprendizagem do

78 aluno. É comum ouvir dizer que aprender mais de um instrumento de uma vez só não é bom, pois acaba que não se aprende nenhum direito. Contudo, para um aprendiz que gosta de experimentar a música, poder experimentar mais de um instrumento pode ser essencial para o seu aprendizado, e não ter essa possibilidade, por alguma limitação como, não ter dinheiro para comprar mais de um instrumento, ou porque as pessoas não lhe aconselham seguir por esse caminho, pode gerar frustração. O aprendizado formal de música geralmente começa com o aprendizado de um instrumento. Quando não há instrumentos disponíveis, se inicia com o aprendizado do canto ou aulas de musicalização. A depender de como é conduzida a aprendizagem, ou por quem ela conduzida, se por um professor, um colega ou de forma autodidata, poderão estar presentes no processo todas as cinco ações ou pelo menos três delas. Pois mesmo que a estratégia de aprendizagem seja aprender por imitação algum repertório, é preciso primeiro selecionar o repertório que se pretende aprender. O aprendiz seleciona a música que deseja aprender, ou o tipo de música, da mesma forma que seleciona o instrumento quando lhe é dada a opção.

1.2.3.2 Perfis de aprendizagem A depender do tipo de ação que acontece durante a aprendizagem é possível perceber um perfil para cada aprendiz. Por exemplo, para um aprendiz que tem facilidade em aprender por imitação, poderíamos considerar que ele apresenta um perfil mimético. Para o aprendiz que constantemente prefere experimentar, poderia se dizer que ele apresenta um perfil experimentador. O perfil de aprendizagem é um padrão de comportamento que o aprendiz apresenta na atividade musical e que só pode ser percebido a partir das ações implementadas. Em função do tipo de ação que o aprendiz realiza é possível induzir a um tipo de perfil de aprendizagem. Em correspondência com o conceito de desenvolvimento cultural, as ações compreendem o aspecto intermental do comportamento, pois acontecem para fora da pessoa na interação com o meio, objetos e as pessoas que estão a sua volta. O perfil de aprendizagem é o aspecto intramental, aquele que vai modificando e construindo novas funções mentais a partir das ações implementadas, mas que de alguma forma está conectada com a vontade do aprendiz. É como se o aprendiz, a partir da sua vontade apresentasse uma tendência a implementar determinadas ações e não outra, como no caso daquele que prefere imitar e não experimentar ou criar, e vice-versa. Essas ações repetidas nas atividades musicais que o aprendiz se engaja acabam por “marcar” o seu perfil de aprendizagem, pois a medida que um padrão de comportamento se repete, mais ele fica registrado no cérebro, uma conexão mais expressiva e mais difícil de apagar. 79

Quanto mais o padrão tende a se repetir, mais claro fica o perfil de aprendizagem, contudo esse padrão não pode ser considerado como algo absoluto. Há aprendizes que conseguem agir de maneiras diferentes a depender do tipo de atividade musical que participa. Como se pudesse assumir diferentes perfis como músico. É o caso, por exemplo do DJ que, quando está discotecando uma festa, pode agir como solista, experimentar, criar, improvisar, tendo apenas a sua vontade como limite. Mas quando o DJ tem que acompanhar um grupo de rap ou fazer parte de uma banda, ele terá que agir de outra forma, com menos liberdade. Isso vale para qualquer músico instrumentista que atua ora como solista, ora como músico de banda. É um perfil mais comum em atividades de música popular, pois na música de concerto mais tradicional, de uma forma geral, não há muita liberdade de atuação. No entanto, pode-se considerar que quando o aprendiz escolhe tocar determinado instrumento ou atuar em determinada atividade musical, ele de alguma forma, tende a se guiar pelo seu perfil de aprendizagem. Não que isso seja algo consciente, que o aprendiz perceba antes mesmo de escolher como irá se relacionar com a música, mas algo que resulta das suas experiências bem-sucedidas ou frustrantes. Talvez um aprendiz comece a aprender um instrumento como o violino, por exemplo, a partir do repertório tradicional para esse instrumento, por algum método específico, mas no meio do caminho ache chato o aprendizado, por ter que tocar determinadas músicas ou fazer determinados exercícios repetitivos. Por outro lado, o prazer de tocar o instrumento é algo positivo e ele descobre que é possível tocar sem ter que imitar as músicas que já existem e começa a experimentar ou compor novas músicas. Esse mesmo aprendiz talvez perceba que, para ser um instrumentista experimentador ele precisará se engajar em uma atividade musical diferente daquela tradicional para seu instrumento, ou seja, seguir um percurso de aprendizagem diferente da maioria dos violinistas. Mas para que isso aconteça esse aprendiz precisa do apoio daqueles que estão a sua volta dando o suporte para sua aprendizagem. Precisa que sua vontade prevaleça a vontade de outros como professores, familiares ou colegas e mais do que isso, precisa encontrar um grupo de pessoas que compreendam a sua forma de agir, que aceitem e que possibilitem ele ser um “violinista diferente”. Não é muito difícil visualizar essa situação, nem mesmo especular quantos violinistas aprendizes desistiram da música por não se adequarem ao perfil de aprendizagem que é exigido no ensino tradicional de violino. É nesse sentido que perceber o perfil de aprendizagem de um aprendiz é muito importante para poder avaliar que tipo de material ou recurso será mais eficaz como mediador do seu processo, evitando experiências frustrantes que afastem o aprendiz da atividade musical.

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No instrumento AMCAM são considerados oito perfis comportamentais, a saber: analista, articulador, colaborador, colecionador, especialista, experimentador, mimetista e observador.

Figura 3: Átomos referentes aos perfis de aprendizagem55

Analista O aprendiz com perfil analista é aquele que antes de se envolver com a atividade musical analisa a situação para saber como irá interagir. Sua participação depende daquilo que considera relevante em função do seu interesse pessoal. Interage de acordo com sua conveniência, sua vontade, podendo se manter de fora da atividade musical por algum tempo, a depender das circunstâncias do momento. É muito comum em uma aula de música encontrar aprendizes com esse perfil. O perfil analista não representa um aprendiz que não quer participar ou que não tem interesse em aprender música. Tampouco significa que ele não tem capacidade para participar da atividade musical proposta, por alguma dificuldade, ou por insegurança. Simplesmente condiz com um tipo que se mantém atento procurando um equilíbrio entre a sua vontade e aquilo que está sendo oferecido como proposta.

55 Não existe uma relação de valor entre o tamanho dos átomos conforme foi representado aqui. Os átomos referentes aos perfis de aprendizagem são um pouco maiores apenas para diferenciar dos átomos das ações apresentadas no tópico anterior, contudo o tamanho é meramente ilustrativo. 81

Articulador O perfil articulador, como o termo mesmo sugere, diz respeito aquele aprendiz que na atividade musical em grupo, toma as decisões procurando articular a prática. Condiz com o perfil de um regente de orquestra ou mesmo de um produtor musical que irá dar as coordenadas e conduzir a atividade conforme suas ideias, interesses e princípios. Quando sozinho, um aprendiz com este perfil não terá dificuldades de articular seu próprio aprendizado. No caso de ter um professor particular, provavelmente tentará ele mesmo conduzir a aula. Aprendizes com esse perfil são difíceis de lidar se o professor não percebe essa sua qualidade. Geralmente não se adaptam em outro lugar senão o do líder da atividade. Quando colocado em uma situação em que não pode liderar, não pode articular a dinâmica da atividade musical, provavelmente ele irá sempre interromper de alguma forma. Se em uma atividade musical pedagógica tiver mais de um aprendiz com esse perfil, será preciso que haja um acordo entre eles para que juntos possam articular a prática. Geralmente eles mesmo entram em acordo visto que é do seu perfil tomar o comando da situação.

Colaborador O perfil colaborador condiz com o aprendiz ou músico que além de participar colabora mediando a aprendizagem de outros aprendizes ou músicos envolvidos na mesma atividade musical. O colaborador é a pessoa que intervém no processo de aprendizagem contribuindo com a criação de recursos técnicos visando facilitar a performance dos colegas ou parceiros. Pode ser aquele que ajuda tanto em que questões práticas, como providenciar partituras quando novos arranjos surgem em alguma atividade, organizar os instrumentos e ligar os equipamentos, quanto em dicas técnicas de como tocar, corrigir ou melhorar algum aspecto da música.

Colecionador Colecionador é todo músico ou aprendiz que demonstra interesses múltiplos, tanto com relação ao tipo de música que gosta como aos tipos de atividades musicais. Seria o perfil eclético ou multi-instrumentistas. É muito comum história de pessoas que quando criança se interessavam por aprender diferentes tipos de instrumentos e por vezes, eram censuradas, sob o argumento de que, a vontade de aprender a tocar muitos instrumentos podia resultar em não

82 tocar nenhum direito. Contudo, não são todas as pessoas que tem essa vontade, e tampouco aquelas que investiram em aprender mais de um instrumento são músicos incompetentes. Na verdade, pessoas com esse tipo de comportamento apresentam um perfil colecionador: colecionador de instrumentos musicais, colecionador de música, de gêneros ou estilos diferentes, colecionadores de técnicas, colecionadores de artefatos da música como discos de vinis. O perfil colecionador favorece a diferentes atividades musicais. Um DJ por exemplo, será mais proficiente na sua atividade, quanto mais diversificado for seu universo musical. Não tem como ser DJ sem ser colecionador de músicas. Par um compositor, por exemplo, ter oportunidade de aprender diferentes instrumentos pode auxiliá-lo em suas composições, lhe proporcionando uma noção da possibilidade técnica de cada instrumento. Para professores de iniciação musical, em práticas de musicalização, poder conhecer mais de um instrumento facilitará a ele poder oferecer atividades musicais diferenciadas. Se um professor que é cantor, por exemplo, não se sentir seguro em tocar algum instrumento, será muito difícil para ele propor uma atividade musical que envolva instrumentos musicais e sua prática pedagógica pode ficar restrita a habilidade musical que ele domina. Neste caso, um professor com perfil colecionador terá mais recursos de propiciar uma iniciação musical mais diversificada. O mesmo vale para o professor que conhece diferentes tipos de música. Quanto maior for seu repertório de conhecimento, mais recursos ele terá para desenvolver uma atividade pedagógica mais abrangente.

Especialista O especialista já detém um conhecimento autônomo como músico, seja cantor, compositor ou instrumentista e está sempre procurando novas técnicas ou atividades musicais em que possa se aprimorar dentro da sua especialidade. Como aprendiz é aquele que procura seguir um plano de aprendizado especifico a partir da escolha de um instrumento ou estilo musical. Na performance opta sempre pela especialidade que domina não tendo interesse em aprender outro instrumento musical ou estilo musical diferente. Contudo, um especialista em um instrumento não é necessariamente um especialista em algum estilo musical. É possível ser especialista em tocar bateria, por exemplo, mas gostar de tocar ritmos diversos. Isso garante que seja possível uma única pessoa ser especialista e colecionadora ao mesmo tempo. Nas atividades de música popular é muito comum essa combinação. Já em atividade de música de concerto predomina o perfil especialista tanto para o instrumento musical como para o repertório de interesse. 83

Experimentador Como o nome já sugere, perfil experimentador diz respeito aquele aprendiz ou músico que experimenta o instrumento musical relacionando-se com o som. Não tem restrição quanto ao uso da técnica do instrumento ou da estética sonora, evitando seguir padrões estéticos já definido. Dedica-se plenamente à criação ou invenção por meio da experimentação, não se importando com a adequação da sua performance à atividade musical. Apresentar um perfil experimentador não significa não ser capaz de reproduzir padrões musicais já existente. Contudo, músicos com esse perfil tem preferência por atividades musicais em que haja uma liberdade para experimentação e criação, pois essa é a sua melhor forma de expressão musical. De uma certa forma músicos experimentadores preferem tocar músicas de sua própria autoria, ou em que haja a possibilidade do improviso, como acontece no jazz, por exemplo.

Mimetista

A qualidade do mimetista está em aprender instantaneamente por imitação; ao contrário do analista, não procura avaliar seu interesse na prática, simplesmente imita o que lhe é proposto sem receio e com perfeição. Esta qualidade é essencial para instrumentistas de orquestra ou da música de concerto de uma forma geral. Ter aprendiz um perfil mimetista não significa que sua interpretação será simplesmente uma cópia, mas sim a qualidade de ter prazer em reproduzir uma música já conhecida e poder dar o seu melhor na interpretação. Essa qualidade torna-se essencial também para aqueles que aprendem música de ouvido, no entanto, é necessária também quando a música é aprendida com o recurso da partitura, pois a referência auditiva não deixa de ser um guia para performance. A qualidade mimetista pode ser percebida no aprendiz que reproduz padrões musicais sem nenhuma dificuldade e sem precisar de muitas repetições. É uma qualidade que pode ser desenvolvida, mas que em alguns aprendizes são evidentes desde o início do processo de aprendizagem. O perfil mimetista contrasta com o experimentador que, sempre que pode tenta transforma os padrões experimentando novas técnicas ou ideias diferentes. O aprendiz ou músico mimetista é aquele que se satisfaz em reproduzir a música que gosta não sentindo a necessidade de criar ou modificar. Sua intervenção está na perfeição com que reproduz uma música que já existe e não na criação de novas músicas.

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Observador

Observa a atividade sem participar ativamente. Aprecia, analisa e aprende sem interferir. É convicto da sua postura de observador, ao contrário do analista, que está sempre avaliando se deve ou não participar. Ter um perfil observador não significa não ser músico ou aprendiz, significa apenas que em determinada atividade musical ou parte dela, a pessoa se colocou como observadora, sem participar ativamente. O ato de observar é um comportamento importante e necessário no processo de aprendizagem e desenvolvimento do talento. Assistir a concertos ou shows faz parte do aprendizado de todo músico, mesmo quando já se tornou profissional. Além do entretenimento, o músico observador assiste a performance de outros músicos com um olhar atento aos detalhes a fim de aprender algo que possa contribuir também para sua performance. O perfil observador também se adequa a pessoas que não necessariamente se tornam aprendiz ou músico profissional, mas interagem com a música como ouvinte ou crítico musical. Isso não significa que essa pessoa não possa aprender música por falta de capacidade, ser observador é uma opção de interação com a música em que a escuta musical é satisfatória.

1.2.3.4 Considerações importantes sobre a aplicação do instrumento AMCAM A atividade musical não deve ser vista como algo determinante da vida de um músico ou aprendiz, pelo contrário, é preciso percebê-la como um momento. Na história de vida dos músicos que será apresentada nos capítulos seguintes é possível identificar diferentes momentos em que eles tiveram que assumir perfis diferentes a depender da necessidade imposta por cada atividade musical. É importante perceber que a avaliação trata da história de vida de cada um a partir de sua personalidade própria, que não é desconectada de um ambiente social e um momento histórico-cultural. Como foi dito na introdução, a cultura black music e o movimento hip hop com todo material sonoro e ideológico, com suas tecnologias e comportamentos, é o ambiente social em que essas histórias pessoais se desenvolveram desde a infância e que se mantém até hoje. A análise da formação musical de cada um foi feita levando em consideração os constructos destacados nesse modelo. Os resultados da avaliação molecular do talento musical que será apresentado no terceiro capítulo diz respeito a atividade musical que cada músico exerce no momento atual, mas que é resultado do processo de aprendizagem vivido em cada trajetória. Como será mostrado adiante, apesar do MC Criolo ser o músico em destaque, sua 85

eminência está vinculada a eminência dos músicos parceiros que ao longo de sua trajetória contribuíram para sua formação musical, e vice-versa.

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CAPÍTULO 2 BLACK MUSIC: VELHAS TECNOLOGIAS, NOVOS TALENTOS

Músicas e tecnologias da infância Infância é um período de ineptidão social, “inferioridade”, assim como um momento para compensação por tirar vantagem da sua força; um momento para conquista de posição em relação ao grupo social. Nesse processo de conquista, um ser humano como um biotipo específico é transformado em um ser humano como um sociotipo; um organismo animal se torna uma personalidade humana. O controle social desse processo natural é chamado educação (VYGOTSKY, 1997).56

A infância é um momento delicado da vida de todo ser humano pelo simples fato de que muitas transformações acontecem tanto sob o aspecto orgânico como comportamental. Mas nem todas as transformações são perceptíveis, e quando menos se espera, uma criança apresenta comportamentos inusitados. Eu cresci num ambiente de, da Black Music, de música negra... era muito presente, né? Eu sou de Diadema, do bairro chamado Campanário, mais conhecido pelos mais antigos de Caixote em Pé. Eram ruas de terras e muitos barracos, mas a música negra sempre teve presente ali, então eu meio que cresci nesse ambiente, porque o meu pai ia pros bailes, né, dos anos 70, meu tio, ele era meio que DJ: na época não falava DJ, falava discotecário, e sempre tinha uns discos em casa, sempre tinha. Então, eu aos quatro, cinco anos de idade, eu gostava de sentar do lado do toca-discos e ficar colocando palito de fósforo em cima do rótulo, porque eu curtia muito, eu sem saber eu já imaginava que se eu colocasse no disco, ia bater na, na, no bracinho [da agulha]; na época era vitrola, a gente chamava de vitrola; eu sabia que ia bater, então eu deixava no rótulo, porque eu achava muito legal no rótulo ali, junto com as letrinhas, e eu ficava viajando nisso. E aí eu tenho comigo que eu absorvi muita música nessa época, porque eu ficava sentadinho do lado, ali ouvindo as músicas, mas colocando palito ali o tempo todo, era minha diversão... (sic) (Entrevista concedida por DJ Dandan à autora em agosto de 2016).

É curioso que uma criança de quatro ou cinco anos tome para si como diversão, ficar olhando palitos de fósforos rodando no selo do vinil que os adultos a sua volta gostam de

56 Childhood is a period of social ineptness, “inferiority”, as well as a time for compensation by taking advantage of one’s strength; a time for the conquest of position in relation to the social whole. In the process of this conquest, a human being as a specific biotype is transformed into a human being as a sociotype; an animal organism becomes a human personality. The societal mastery of this natural process is called education (VYGOTSKY, 1997).

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escutar. Sem dúvida a vitrola ou toca-discos é uma tecnologia atraente para qualquer criança, afinal é um disco rodando sem parar e que, de alguma forma, tem relação com a música que soa pelo ar. Mas existem várias formas de interagir com o ritual de escutar um vinil. Pode ser com o toca-discos, com as capas dos vinis ou apenas com a música. Pode ser um momento que passe completamente desapercebido para maioria das crianças, que talvez se sintam atraídas por outro tipo de atividade ou distração. Ou o interesse da criança pode se justificar pelo fato do ritual de escutar um vinil ser um grande evento familiar. De uma forma ou de outra, o pequeno Dandan participou ativamente desse momento familiar, não apenas ouvindo as músicas, mas desenvolvendo experiências com aquela tecnologia um tanto atrativa. O toca-discos também foi uma tecnologia fundamental na infância de Daniel Ganjaman. Ainda muito pequeno, ele tinha um hábito, segundo o pai lhe contava, de subir na estante em que ficava o toca-discos. Era um hábito recorrente que instigou seu pai a registrar esse momento com uma fotografia57. Ganjaman conta: Aí eu subia, escalava a parada [estante] pra mexer no toca discos que tinha em casa. Devia ter dois anos de idade, provavelmente nem falava direito. Mas eu já era completamente aficionado por música. E aí tem a marca dos meus dentes na estante. Porque eu prendia com os dentinhos assim [faz o gesto], pra poder ficar com a mão livre e mexer no toca discos. Era muito engraçado. Meu pai falou que era um negócio, que ele olhava e falava: “não é possível um negócio desse” (sic) (Entrevista concedida por Daniel Ganjaman à autora em agosto de 2016). É claro que tanto para família de Ganjaman como para família do Dandan, o hábito de ouvir discos era uma rotina. Como Dandan disse em seu relato, seu pai e seu tio eram discotecários, os DJs da época e o pai de Ganjaman, apesar de já não trabalhar como músico na época em que ele nasceu, havia sido músico profissional outrora. A gente sempre teve um ambiente musical em casa, porque meu pai foi músico na década de 60. Mas quando eu nasci, ele já não era músico há um bom tempo. Mas, ele tinha guitarra, tinha baixo. Basicamente a gente tinha guitarra e violão em casa. Meu pai as vezes tocava, ali e tal, mas daí a gente realmente começar... a gente quando eu falo, eu coloco meus irmãos no mesmo pacote, apesar de eu ser o mais velho e ter começado antes, eles vieram logo na sequência e começaram a estudar música também e aí a gente, junto, foi o que acho que deu uma impulsionada legal assim, dá gente né, trocar experiências. Mas acho que, mais do que qualquer coisa, a gente sempre teve um ambiente muito musical em casa e meu pai é... meu pai foi o cara que me mostrou provavelmente as coisas que eu mais gosto de música até hoje, assim, sabe. Foi o cara que me apresentou, jazz, foi o cara que me apresentou rock, e foi o cara que me apresentou soul, bossa nova e samba e tudo mais. Então, é... isso com certeza fez uma diferença muito grande e quando ele me perguntou o que que eu queria tocar, na época eu falei até que eu queria tocar reco-reco, de tão pequeno que eu era, não sabia nem o que era provavelmente o reco-reco direito, mas eu falei pra ele; ele ficou meio frustrado, falou: “Pô, sério

57 Essa foto foi disponibilizada por Daniel Ganjaman em seu perfil no Instagram.

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mesmo?” (Entrevista concedida por Daniel Ganjaman à autora em agosto de 2016). A influência musical caseira provinda da escuta de rádio e vinis também foi decisiva na vida do DJ Marco que, apesar de não ter músicos na família, o hábito de escutar música também era uma constante. Enquanto DJ Dandan se distraía com palitos girando no selo do vinil, DJ Marco passava o tempo sintonizando estações de rádio a busca de lançamentos. Apesar da idade, é notável que suas lembranças com relação às músicas que ouviam naquela época, sejam marcadas pelos nomes dos artistas e das músicas que mais despertaram a sua “vontade” de escutar música. Eu não tenho músicos na família, né? Eu sempre gostei de música desde criança, minha mãe ouvia muito rádio, ela ouvia muito rádio, então eu me lembro que a primeira vez que uma música me chamou atenção assim, deu gostar do que eu estava ouvindo e querer ouvir mais, eu ouvi Rita Lee, Doce Vampiro tocando no rádio. Aí eu prestei atenção naquela música, devia ter sei lá 4 anos de idade, 4 pra 5 e eu prestei atenção e gostei muito. Depois ouvi: Don’t Stop ‘til You Get Enough, do Michael Jackson. Essas duas músicas eu tenho certeza que eu ouvi e elas me despertaram a vontade para escutar música, me despertaram para a música, é… Depois em Ribeirão Preto minhas tias é…; primeira vez que eu fui em Ribeirão Preto elas fizeram festa com churrasco e tudo, mas colocaram Clara Nunes, botaram o disco da Clara Nunes para rolar do começo ao fim e eu gostei muito, de Clara Guerreira, foi a primeira vez que eu vi um disco de vinil, e dali em diante eu nunca mais parei de, de fuçar É, na casa das minhas tias em Ribeirão Preto. Eu comecei a fuçar, fuçar, fuçava em rádio, eu ficava o tempo que eu tinha livre em casa... (eu estudava em creche, né?) O tempo que eu tinha livre, ninguém mexendo no som, que eu podia mexer, eu ficava de uma estação para outra… Aí, quando eu já tinha 6 para 7 [anos] eu ficava mexendo no rádio o tempo inteiro, ficava de uma ponta até a outra do rádio tentando ouvir música nova, lançamentos, né? (Entrevista concedida por DJ Marco à autora em agosto de 2016). Se nessa idade Marco já era aficionado por música em busca de lançamento, depois de conhecer um disco de rap apresentado por um amigo, foi inevitável a necessidade de começar ele mesmo a sua coleção de vinis. Um camarada, o Júlio César, finado Júlio César, me mostrou um disco do Run DMC que chama: Raising Hell, que tem a música Walk This Way. Ali mudou minha vida. Ali mudou, porque eu vi mesmo o Rap de verdade, o Rap cru, batida pesada, o cara rimando, scratch… aí eu já comecei a me envolver muito mais, comecei a procurar disco, com 11 anos eu comecei a trabalhar, o meu dinheiro eu ajudava em casa, mas pelo menos um disco em podia comprar no mês, aí eu comecei a ir atrás…(Entrevista concedida por DJ Marco à autora em agosto de 2016). Mas não era só de rádio e vinil que se fazia um ambiente musical. Nas lembranças de Marcelo Cabral, o carro do seu pai cheio de “fitinhas” foi algo marcante em sua experiência musical de infância, assim como os vinis que seu pai comprava e os shows que ia com ele. Eu acho que tem uma coisa forte em todo mundo assim, que é, é antes de estudar. Eu fui estudar música na verdade, começar a estudar mais velho 89

assim, não foi aquela coisa assim de criancinha, sabe? Músico na família... não tem nenhum músico na minha família, então fui começar a estudar com 19 pra 20 assim... mas tem uma coisa de formação assim, tipo, meu pai era muito fanático por música, de ouvir, então isso já, já é uma bagagem assim, né, se você tem um filho ou se você tem uma casa, um ambiente musical, tipo: se você entrasse no carro do meu pai, ia ter sempre as fitinhas dele, né? Na época da fitinha. Ele ouvia muito [vinil], muito jazz, muita música brasileira, aquela música dos anos 50, 40, 60... tipo: este período assim, sabe? Minha mãe também gostava bastante de música, mas quem comprava, ficava pondo e ouvindo em casa, assim alto sabe; adora música, ia em show, eu ia em show com ele, era meu pai (Entrevista concedida por Marcelo Cabral à autora em agosto de 2016).

O interesse profissional pela música veio mais tarde para Marcelo, pois aos sete anos de idade ele se interessou pelo skate e se tornou skatista profissional. Mas para ele, a experiência com o skate também é uma vivencia musical, visto que a música e o skate “rolam” juntos. Seja em vídeos, campeonatos, nas pistas, ou na mente dos skatistas, a música é um elemento que não pode faltar. O que eu fazia antes era que eu andava de skate. Skate é um... um ambiente também muito musical, dos vídeos de skate, dos campeonatos de skate não existe sem música, né? Sempre tem. Aí, dali, já tem um monte de coisa de formação, tô falando isto porque as vezes você, você vai, você estuda, estuda, estuda. Estudar música é um negócio, né? Que, que você pode aprender, né? Mas assim, por exemplo: como eu iria depois de anos com, sei lá... quando a gente foi fazer o disco do Criolo... 2009, 2010, né? Que a gente começou a produzir. Tipo, por mais que você estude, eu não iria fazer um disco de Rap, né? Consegui me envolver com aquilo, só consegui, porque eu venho escutando desde 86, 87, tipo, nunca parei, fui ouvindo assim, sempre. É uma bagagem que você vai ouvindo, você vai ouvindo sons, sabe? Sem você querer, você está absorvendo assim, né? Tipo: isto aqui, isto aqui, isto aqui está no seu ouvido, você conhece os estilos dentro do [rap], né? Tem mil estilos dentro do [rap]... caminhos né? Dentro do rap, como existe no samba (Entrevista concedida por Marcelo Cabral à autora em agosto de 2016).

Assim que Marcelo deixou de ser skatista profissional ele se dedicou a estudar música formalmente em uma escola de música particular chamada Groove, que tem um curso de formação musical completo voltado para música popular. Esta escola dirigida pro Levy Miranda, e apesar de não ser considerada como uma graduação, o nível de ensino que é desenvolvido equivale ao de uma faculdade de música. Eu acho que tem uma coisa forte em todo mundo assim, que é, é antes de estudar. Eu fui estudar música na verdade, começar a estudar mais velho assim, não foi aquela coisa assim de criancinha, sabe? Músico na família... não tem nenhum músico na minha família então, fui começar a estudar com 19 pra 20 assim... já tinha acabado o colegial, num sabia direito o que fazer...aí gostava de tocar, tinha uma vontade assim, mas eu achava assim, tinha aquele, aquele mito assim, né? De achar que tocar é só para quem toca desde pequeno e tem aquele super ouvido e não sei o quê... Mas aí eu entrei numa escola e descobri assim que eu, uma escola chamada Groove, uma

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escola em Pinheiros, boa pra caramba! É, uma escola de música, dum Mestre que chama Levy Miranda, aí lá que bateu assim, aí eu falei assim... tipo na primeira aula eu já, eu vi assim... Fui assistir, nem era a primeira aula assim oficial, fui lá só pra conhecer, e falei: nossa, é isso que eu quero fazer, e tipo, bateu assim tudo... (sic) (Entrevista concedida por Marcelo Cabral à autora em agosto de 2016).

Para Ganjaman, a “cultura do skate” também favoreceu sua formação musical. Ele começou a estudar música aos seis anos de idade em um curso de teclado oferecido por uma das marcas de órgãos vendidos na época. Nessa aula, em conjunto com pessoas de todas as idades, ele aprendeu a tocar com o acompanhamento do órgão de ouvido, apesar do curso propor o aprendizado por meio da leitura e teoria musical. Depois de dois anos saiu das aulas de teclado e começou a tocar violão e guitarra por conta própria. Ele aprendia esses instrumentos tirando músicas de “rock pesado” que curtia desde pequeno. Essa atividade musical acompanhou sua infância caminhando para um “punk rock hardcore” na adolescência. A música punk permeava a cena underground de São Paulo e segundo conta Ganjaman, o skate tem sua cota de contribuição nisso. Olha, o meu background musical, se você for ver desde; pensando que eu comecei a estudar música com seis anos, eu gostava de rock pesado, e aí disso eu fui pra uma coisa mais, um punk rock, hardcore, uma coisa mais, porque era a forma fácil de você tá no, não, eu tinha uma identificação direta, muito por causa do skate. O skate acho que foi a coisa que mais me abriu a mente assim, não tanto o skate como esporte, mas tudo o que tinha em volta daquilo, a cultura do skate, que é muito rica. Envolve artes plásticas, envolve música, desde jazz até, sabe, tudo assim, é uma coisa muito maluca. Todo mundo tem muito preconceito com a coisa do skate, mas ele tem uma visão artística muito ampla (sic) (Entrevista concedida por Daniel Ganjaman à autora em agosto de 2016). Depois de passar mais alguns anos tocando guitarra de ouvido ele teve aulas particulares de violão e que aprendia principalmente harmonia ligada ao repertório de bossa nova, jazz, ou MPB, algo bem diferente da sua experiência como guitarrista hardcore, mas que veio contribuir em muito para sua formação musical de uma forma geral. Mas esse cara, o que foi pra mim, foi muito importante na, é que ele falava muito a mesma língua. Era um cara da noite, né? Era um cara que tinha uma banda é e aí ele me passava coisas assim que eram coisas que eu gostava, né? Tanto essa parte de bossa nova e samba, que eu sempre gostei, mas também umas coisas de rock outras coisas, e as coisas que a gente conversava. Eu lembro uma vez que ele fez, por exemplo, esse teste cego uma vez comigo assim, falando sobre acorde. Virou: “que acorde é esse?” bá. Na época que eu tava com aquilo bem na cabeça, eu fui falando tudo certinho, pra ele. Ele falou: “teu ouvido, é...”Sabe? E aí, eu lembro de, por exemplo: teve uma vez que foi muito doido assim, na aula, a gente conversava sobre tudo, música, ia longe, as vezes a gente passava a aula inteira só conversando. E ele falou uma vez pra mim, ele tava falando sobre alguma... ele falou: “É, tem, aquela linguagem meio tipo do Thelonious Monk” Sabe? Aí ele iu que eu olhei com uma cara assim. Ele falou: “Você não conhece Thelonious Monk?” Eu fale: “não!” Aí 91

ele foi lá e escreveu no caderno: Thelonious Monk. “Olha, aí, dá uma pesquisada, fala pro seu pai lá, ele deve ter alguma coisa”. Fui eu ouvir, cheguei em casa já morrendo de vontade de entender o que era aquilo e pra mim hoje em dia é uma referência pra vida, Thelonious, é uma das coisas que eu mais amo na vida. Então era uma cara que tinha esse olhar, assim, sabe de: conforme ele foi entendendo quais eram as minhas... o que que eu gostava, por onde eu ia, ele, ele entendia muito isso, assim. Tirava umas coisas, quando eu pedia. Falava: “Pô, Stevie Wonder, gosto pra caralho...” Ele ia lá e tirava a música e passava pra mim, sabe? Então é... é... e foi uma cara que além da parte técnica, me abriu muito a cabeça pra várias coisas legais sabe, de música... (sic) (Entrevista concedida por Daniel Ganjaman à autora em agosto de 2016). Apesar de nunca ter tido a oportunidade de estudar música formalmente, a infância do Criolo também foi repleta de estímulos musicais. O fato de ele nascer em uma favela na periferia de São Paulo formada por migrantes de todo o país favoreceu a diversidade musical com a qual ele teve contato desde criança. Acho que a primeira recordação que eu tenho é a minha mãe cantando em casa. Minha mãe cantando suas canções prediletas e eu cantando junto na rebarba. (sic) (CRIOLO, 2014)58.

Ela sempre cantou canções de Clara Nunes, de Elis Regina. Ela é completamente apaixonada por Clara Nunes e tinha muito samba de breque em casa, por causa do meu pai. E, em cada barraco tinha uma pessoa, uma família de algum lugar do Brasil. Tava todo mundo tentando a sorte no sudeste, né? Então eu acabava escutando música também de todo lugar do país (CRIOLO, 2013).59

Contudo, os recursos de sua família eram limitados pela condição social. Seus pais, Dona Maria Vilani e Seu Cleon, se mudaram de Fortaleza para São Paulo, e os primeiros anos da vida de Criolo e seus irmãos foram de muita privação. Meus pais saíram do Ceará, da cidade de Fortaleza, né? E no início da década de 70, fugindo da situação em que eles passavam ali, o medo de passar fome. O medo de passar fome fez com que eles saíssem da terra natal deles. Quando chegaram aqui em São Paulo, enfim, nós moramos num porão por uns dois anos, e depois eu fui morar na favela do Jardins das Imbuias, onde eu fiquei por mais seis anos, né, poderia se chamar um terreiro também, aquele barraco, porque eu me recordo bem que meu pai e os amigos ficaram dois dias batendo no barro pra que quando chovesse o chão não se dissolvesse. E... foi assim os meus primeiros seis, sete anos de vida

Tínhamos um poço. E não tinha agua encanada. O banheiro era fora e tinha um poço no quintal, então as relações humanas, elas apareciam na hora de usarmos o banheiro, puxarmos água do poço e pularmos o córrego (CRIOLO, 2013).60

58 CRIOLO. Criolo entrevistado por Lázaro Ramos no programa Espelho | Canal Brasil. [Data de Upload: 3 abril, 2014]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=eP86LuPwUYk Acesso em: 10 março, 2016. 59 CRIOLO. Hans Ulrich Obrist entrevista Criolo na Escola São Paulo (legendado), [Data de upload: 25 julho, 2013]. Disponível em:

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Percebe-se na riqueza de detalhes na descrição de Criolo o quanto as condições ambientais em que se desenvolveu durante a primeira infância, ficaram marcadas não apenas como lembranças, mas como um estímulo que continua lhe influenciando até hoje. As experiências que ele viveu quando criança ainda são sua motivação, uma força que inspira e impulsiona suas atitudes em determinada direção. E o fato da música estar presente por meio do canto de sua mãe, com o suporte do afeto que o ato de cantar para filhos proporciona a qualquer criança, foram marcas positivas em sua formação musical. Eu acredito que as canções que minha mãe emitia naquela época, fazia com que a gente não olhasse muito pra, pras vielas e não prestasse a atenção nos barulhos da noite eu acho que essa foi a primeira coisa que fez com que a música tivesse uma tentativa de salvar a minha alma (CRIOLO, 2013).61

Sandra Trehub (2001) afirma que a criança, desde o nascimento, demonstra uma predisposição para perceber diferentes contornos melódicos e padrões ritmos de sequências sonoras, seja da música ou da fala. A voz da mãe é percebida pela criança em todas as suas nuances ficando registrada em sua memória. Pode-se dizer que a aprendizagem de música começa nessa relação intermental, como diria Vygotsky, em que os sinais sonoros são tidos como estímulos artificiais positivos que se sobrepõem aos estímulos negativos do ambiente a sua volta. Nesse sentido, toda vizinhança, e não só seus pais, contribuíram para formação das suas primeiras experiências musicais. Da mesma forma que a música servia de recurso para suportar as dificuldades do lugar que vivia, como comenta Criolo no depoimento acima, o lugar, a disposição das casas com o poço e o banheiro compartilhados, ou seja, o tipo de convívio social condicionado pelos recursos disponíveis (ou falte deles), favorecia a circulação de músicas, potencializando os estímulos musicais nesse ambiente. Você acaba escutando mesmo isso que seus pais cantam ou o que os vizinhos tão cantando ou que tá tocando na rádio deles, porque a gente não tinha rádio. Ah, nós... a gente não tinha dinheiro pra ter um rádio, então eu recebia diretamente informação do que cantarolavam meu pai e minha mãe. E, é muito louco isso porque, algumas melodias te visitam e você nem percebe que recebeu uma visita, né? Acho que isso é... cada vez acho que é mais raro, né? E quando você é criança, você tem sorte, né, de ser criança, porque as coisas lhe visitam e não vem uma série de modelos ou de questionários dizendo como que você tem que ouvir a coisa, ou de que jeito você tem que ouvir a coisa e o que que é bom o que é ruim. É sensacional (CRIOLO, 2013).

Um ambiente musical estimulante não é suficiente para determinar que as crianças encontrem na música uma forma de expressão. Criolo vem de uma família de cinco filhos, sendo ele o segundo mais velho. Seus irmãos e irmãs também dispuseram da mesma influência

61 Ibid. 93

musical de seus pais e vizinhos, contudo, cada um seguiu um caminho diferente no que diz respeito a forma de se expressar. Mesmo que, de alguma forma, a influência de sua mãe tenha contribuído para musicalidade de todos, pois como ela mesmo comentou em uma conversa informal, “todos lá e casa tem muita facilidade para criar poesias e melodias” (Conversa com Maria Vilani em agosto de 2016). Mas foi o pequeno Kleber, quem mais se sensibilizou com o ambiente musical a ponto de escolher a música como um recurso para superação da realidade em que vivia. Quando eu completei onze anos de idade eu vi um colega de sala fazendo um verso, e eu achei aquilo mágico, e quis fazer também. A vontade de fazer parte de alguma coisa, a vontade de contribuir, a vontade de querer construir alguma coisa, né? Lógico que quando você é criança você não tem esse pensamento de saber descrever isso, mas um desejo absurdo de querer fazer parte do mundo, entende? Porque da onde eu venho, ninguém vai falar textualmente que o mundo não é pra você, mas todos os dias você, alguém, alguma situação tá falando que nada é pra você. Então, a sua vontade de querer ser alguém é maior. E quanto mais eu ia envelhecendo, e talvez não seja esdrúxulo falar envelhecer, uma criança de treze anos, dependendo da onde você nasce; então quanto mais eu ia envelhecendo mais eu ia percebendo que realmente existem alguns paradoxos aí, né? Porque você nasce num planeta que absolutamente ele não é seu e aí a arte vem pra lhe dar a beleza da desgraça, sabe? A beleza da desgraça! A beleza, a beleza da desgraça! Talvez possa ser: hoje se perceber e ver verdadeiramente que a sua alma não faz parte dos números. E como o que importa são os números, nós acabamos não existindo. Ao mesmo tempo disso tudo, é muito bonito, com todo esse peso, é muito bonito você olhar pra um pedaço de papel e ver que ele não tá mais em branco por uma intervenção sua (CRIOLO, 2013).62

Criolo também destaca a “vontade” como força motriz. A sua autoavaliação é bem lúcida tanto no que diz respeito a como a realidade que o cerca o afeta, quanto a sua capacidade de transformar seu sentimento em motivação para se tornar compositor. Ele começou escrevendo versos com a “mágica” da rima e essa ação que, em um primeiro momento era só uma forma de combinar as palavras registradas em um papel, tomou força quando ele descobriu que a arte de rimar combinava com a possibilidade de se expressar e falar dos seus problemas, que não eram só seus, tampouco da sua vizinhança, mas problemas da própria sociedade em relação a forma como ela estruturou sua economia historicamente. As aflições de Criolo pareciam só dele e de sua família, até ele perceber que pessoas de lugares diferentes passavam pelas mesmas dificuldades. Até determinado momento eu, eu, percebia que estávamos completamente isolados, aí eu percebi que existiam pessoas cantando, falando, pensando parecido e que moravam num lugar muito longe do meu lugar e aí a mágica, ela se fez mais uma vez entendeu. E aí, eu acho que, pela primeira vez eu percebi a importância, dessa mágica entende.

62 Ibid

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Você sai de uma década de setenta, e começa uma década de oitenta e você tem resquícios ainda de uma ditadura e você tá na condição de um homem invisível, de um bairro invisível, obviamente com direitos invisíveis. E o rap, pelo menos para mim, ele foi uma ferramenta que me abraçou e disse que eu era capaz de me expressar com o mundo, e acredito que mais importante do que se expressar com o mundo externo, me expressar com o universo infinito que existe dentro da minha cabeça (CRIOLO, 2013).

Esse momento a que se refere Criolo coincide com o fim da sua infância, quando a criança percebe que o mundo é muito maior do que aquilo que está no seu entorno. Essa percepção só acontece quando há uma troca de experiências que transcendem o espaço familiar ou mesmo o escolar. Quando a criança já tem independência para selecionar no ambiente aquilo que desperta seu interesse e direcionar as suas ações na busca da sua identidade de forma autônoma. O que caracteriza esse momento é justamente o movimento da própria criança em querer conhecer o mundo e compreender a sua participação nele. Quando surgem os questionamentos, as incertezas, e a criança já não se satisfaz mais com aquilo que está posto. Esse momento pode chegar precocemente para algumas crianças. Esse parece ter sido o caso do Criolo, que com onze anos já sentia a necessidade de se expressar e com treze já estava profundamente preocupado com as injustiças sociais a ponto de transformar suas reflexões e sentimentos em arte e tentar amplificar suas ideias tendo como recursos o microfone e os bailes Black. Enquanto Criolo se movia pela sua vontade buscando no rap o recurso para suprir a necessidade de se expressar e se sentir parte da sociedade, do outro lado da Represa Billings que separa o bairro do Grajaú da cidade de Diadema, DJ Dandan, com o suporte de parentes que já eram engajados no Movimento Negro, mesmo sendo ainda um “molecote” teve o privilégio de assistir de perto o início do movimento Hip Hop no Brasil. A gente pegou uma fase do rap que foi importante, que era um bagulho em que a ideologia era essencial, sabe? ... falar da questão racial era muito forte, então você tinha uma juventude que andava com broche escrito “morena, negra é!”. Então tipo Zumbi dos Palmares, então você tinha essa força, né? Que foi importante pra minha formação ideológica inclusive, um dos lugares que eu frequentava. E aí, véio, tá vendo, muita coisa aconteceu na minha vida e um dos lugares que eu ia, nessa época, minha tia, a Deise Benedita, é uma das fundadoras do MNU [Movimento Negro Unificado] ela fazia parte do GELEDÉS63, Instituto da Mulher Negra, que existe até hoje e minha tia fazia parte lá no começo dos anos 90, aí a minha tia começou a me levar neste lugar, e lá tinha um projeto chamado “RAPensando a educação” que era uns grupos de rap, lá tinha o DMN, tinha o Racionais, a galera tudo jovem ainda, que fazia algumas ações, algumas intervenções dentro de escolas. Por isso que é “RAPensando a educação”. E eu tava ali, molecotezinho, absorvendo aquelas ideias que aquela juventude tinha, os caras eram um pouco mais

63 Informações a respeito do coletivo Geledés disponível em: http://www.geledes.org.br/ Acesso em: 8 nov, 2016. 95

velhos, eu era meio tímido e tal, eu tenho até algumas coisas ainda, eu acho, lá em casa, umas letras do DMN, os caras escreviam lá e tal. Isso foi muito importante pra minha formação como afrodescendente. Eu nem participei, nem como aluno nem nada, eu era um observador, minha tia me levava, e eu ficava ali de boa, absorvendo tudo aquilo, porque minha tia sabia que eu gostava, que eu ia pra baile e tudo o mais, ela resolveu me levar, e tal, então, tipo, me influenciou pra me introduzir no Hip Hop também, então foi importante pra mim (sic) (Entrevista concedida por DJ Dandan à autora em agosto de 2016).

Por mais que nunca tivesse tido uma formação musical formal, sua qualidade de observador somada a oportunidade de participar de ambientes em que a cultura hip hop estava sendo discutida, foi o início de uma formação que se expandia para além da música, uma formação que começou com ações e intervenções diretas no seu ambiente, com a perspectiva de, através de um movimento que tinha a música como sua maior expressão, poder mudar a realidade do seu bairro, da sua cidade. A gente tinha, nos anos 90 tinha uma coisa chamado 'posse', que era uma, eram grupos de pessoas do hip hop, independente do elemento, seja pessoal do grafite, pessoal da dança, pessoal dos DJs, dos MCs que compactuavam com a mesma ideia e que se juntavam pra fazer ações nas comunidades ou na sua comunidade e a gente chamava de “posse” porque a gente ocupava um lugar tomava posse daquele lugar pra poder fazer as ações pra comunidade, normalmente era um local onde não se fazia quase nada pra comunidade , que era pra fazer , e não fazia, então a gente tomava posse daquele lugar pra poder fazer alguma ação, é, então a gente tinha uma ideia de fazer a nossa posse no CJC do Campanário, (Centro Juvenil de Cultura), na época era esse nome, depois mudou o nome e a gente foi ocupar esse lugar. Ao mesmo tempo com a mesma ideia, com a mesma intenção tinha um pessoal do outro bairro que era o bairro do Inamar, Eldorado, que também tava com a mesma ideia de fazer isso. A gente, sem saber o que era dar aula de dança ou de coisa parecida, a gente, dia de semana, tudo à toa. A gente conseguia reunir uns 90 moleques que tavam à toa na quebrada, já ficavam lá, com a gente, nós ouvíamos som, ensinava os moleques a cantar rap, sei lá, do nosso jeito lá, ensinava os moleques dançar, a gente ensinava uns aquecimentos maluco, ficava correndo no pátio do negócio lá, mas a gente queria poder fazer algo, né, a gente sempre fazia reuniões e tudo o mais e aí o governo da época, começou a se ligar, falar: “Pô, a molecada tá se organizando, a galera adolescente, tudo novo, um ou outro é de maior, mas molecadinha se organizando com umas ideias de... pô, vamos ver esses moleques”, e chamou a gente pra trocar uma ideia: “que que vocês querem?” (sic) (Entrevista concedida por DJ Dandan à autora em agosto de 2016).

DJ Dandan explica que o objetivo da “posse” era também intervir junto à comunidade, eles precisavam fundamentar suas ações e quando surgiu a oportunidade do governo em contribuir com as oficinas de hip hop que eles já haviam iniciado com atividades artísticas, eles optaram por “fortalecer o conhecimento”. A gente tudo tímido, né, sem muitas grandes pretensões, e tudo o mais, a gente falou “Oh, a gente quer fortalecer mais, dentro do nosso conhecimento, então a gente quer se aprofundar mais em qualquer temática que puder,

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principalmente na questão racial, a gente quer saber mesmo quem que é Zumbi dos Palmares, a gente quer saber quem que é João Candido mesmo, a gente quer saber o que é Reforma Agrária, e então a gente falou isso, a gente quer ter alguém que possa nos orientar. Nessa, o governo achou interessante, convidou a Sueli Chan que fazia o RAPensando, a educação lá no GELEDÈS e aí a Sueli Chan reuniu um time pra poder fazer essas tais oficinas de hip hop e primeiro sábado de setembro de 1993 nascem as primeiras oficinas de hip hop da América Latina, lá em Diadema e aí tinha os dois grupos, que era: O Centro Cultural do Campanário e o Centro Cultural Inamá, que se reunia, então veio pra dar oficina pra gente o Wilson Roberto Levi, Sueli Chan, Nelson Triunfo e Toninho Crespo. Toninho Crespo a parte de música, Nelson Triunfo era a dança, Sueli Chan e Levi que eram pessoas que também ajudaram a fundar o Movimento Negro Unificado também, que veio dar essa parte temática pra gente (sic) (Entrevista concedida por DJ Dandan à autora em agosto de 2016).

É curioso que jovens de 17 anos, idade de Dandan nessa época tenham tido tanta vontade de se organizar e construir algo que é lembrado até hoje como um marco na história do hip hop, que deu sequência à primeira iniciativa de passar a ideologia do hip hop, quando os Racionais MC’s, entre outros grupos, participaram do projeto RAPensando. Por mais que houvesse o apoio de alguns setores do governo, incitados por lideranças do Movimento Negro, o aprendizado nunca foi formalizado e a construção do conhecimento foi orientada pelo desafio de poder absorver toda a informação que estava sendo disponibilizada. E foi muito louco, porque acabou existindo uma pequena rivalidade entre os bairros porque a gente sempre, tinha uma vez por mês que a gente se encontrava, aí a gente estudava alguma temática durante os três primeiros sábados e o último sábado a gente se reunia pra discutir, pra debater aquela temática e era foda que tipo assim, a gente tinha que conhecer mesmo, porque os caras de lá podiam saber mais que nós então era uma disputa até que saudável, por mais que a gente tinha uma rixa, era uma disputa saudável, então a gente tinha que : pá, ler, “mano, sábado a gente vai encontrar os caras, os caras não podem derrubar nós não, nós temos que derrubar os caras nas ideia”, era isso, aí a gente se encontrava e tinha o debate e a gente : Pá, esses bagulhos que a gente vê, na esses negócios que a gente vê na que tem muito na gringa64, de debate, né, de faculdade, né, era um bagulho meio desse jeito aí, a gente se reunia, só que a gente sempre teve a coisa da circularidade, né, a gente nunca gostou de ficar em fila, em coisa, circularidade, né de circular as energias, então a gente abria uma roda, e fazia as coisas tudo na roda, então a gente olhava, todo mundo se olhava ali, então não tinha nuca, todo mundo se olhava, então falava e tal e debatia (sic) (Entrevista concedida por DJ Dandan à autora em agosto de 2016).

A forma como cada um desses músicos teve contato com a música na infância foi fundamental para o desenvolvimento da personalidade que se configurou a partir das experiências e escolha profissional que cada um tomou para si. A música despertou o interesse, mas o caminho que cada um seguiu para culminar na profissão de músico foi distinto, pois as

64 Gíria que se refere a tudo que acontece ou vem de fora do Brasil. 97

circunstâncias externas eram diferentes. A realidade do bairro de Pinheiros e Perdizes na zona oeste de São Paulo em que cresceram Daniel Ganjaman e Marcelo Cabral era muito diferente da periferia. É curioso que o rap, apesar de estar mais presente na periferia e ter sido um recurso apropriado pelos jovens pobres e negros que encontraram nessa arte um viés para sua identidade, chega aos bairros de classe média através do skate. Mas sem dúvida a experiência é diferente. Enquanto criança, Cabral participava de campeonatos de skate, Ganjaman passava o dia tocando guitarra e Criolo escrevia versos esperando a próxima oportunidade de cantar um rap em público. Dandan se aprofundava no conhecimento da cultura hip hop buscando uma formação como “afrodescendente” e Marco trabalhava para poder comprar vinis. Welbe estava no auge dos bailes de escola e Rabelo não perdia uma roda de samba, como será contado nos próximos tópicos. O que une a histórias dessas sete crianças é o amor pela música e as circunstâncias que levaram cada um deles a se encontrar em determinado momento de suas vidas fazendo parte da cultura musical que se configurava na cidade de São Paulo, mas que era apenas o reflexo de um movimento que começou em outra época e lugar.

2.2 Em Trenchtown, no Bronx ou no Grajauex: Sound Systems comandam os bailes black Porque você não forja um MC Você nasce um MC (CRIOLO, trecho da canção Até me Emocionei, 2006).

O rap é a arte de falar de forma rítmica em que as palavras soam batidas. Pode haver ou não variação das alturas ou do timbre da voz, mas nem sempre é possível distinguir uma melodia de alturas definidas. É um tipo de música que exige a habilidade de falar cantado ou cantar falado, em um ritmo preciso em que é preciso manter o folego, com argumentos contundentes e rimados. Essa é apenas uma descrição técnica do que é o rap desde que surgiu no mundo para fazer parte da história da música. Uma arte desenvolvida em função de uma necessidade também técnica, a de manter a animação dos bailes durante a troca de disco. Era assim que acontecia na Jamaica desde os anos 50, uma ilha caribenha ainda sob colonização inglesa que encontrou nos bailes sua maior expressão cultural, sua principal identidade, a busca da diversão em contrapartida à hostilidade social que era vivida pela população negra e marginalizada pela escravidão. As tecnologias eram “brancas”, mas a forma de utilizá-las nunca mais foi a mesma depois que alguns poucos jamaicanos começaram a montar os “Sound Systems”, uma “grave” potencialização da reprodução de discos de acetatos com a “alma” da música “afro-americana” importada de primeira mão.

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‘Sound systems’ são grandes discotecas móveis com amplificadores enormes projetados para produzir o som de graves pesados que definiu a música popular jamaicana desde os anos 60. Os primeiros sound systems apareceram nos anos 50 e tocavam Rhythm and Blues americanos ou imitações jamaicanas desse estilo. Mais tarde, dos anos 60 em diante, os sound systems começaram a tocar SKA – uma mistura jamaicana de Mento, Rhythm and Blues e Jazz – e em seguida, Rock Steady e reggae, quando essas formas musicais desenvolveram no final dos anos 60. No entanto, o ponto importante a se lembrar sobre os primeiros sound systems, é que eles já tinham um ‘deejay residente’, que deveria colocar os discos para tocar, como todo deejay deve fazer, mas também preencher os espaços entre um disco e outro chamando a atenção dos ‘patrões’ [donos do equipamento] do sound system. O deejay geralmente conseguia fazer isso improvisando um conjunto de ‘catchphrases’ que deveria facilitar a troca de disco. Assim, o deejay foi (e ainda é), para usar a frase de Roger Abrahams, um "homem de palavras" e ele teve que usar bem as palavras para agradar a multidão (DOUMERC, 2004, p.131).65

Antes conhecido como toasting, ou a arte de brindar ao microfone, com intuito de manter a animação das festas, a habilidade rapping se desenvolveu na sequência, graças ao fato de o lado B dos vinis virem com a base instrumental da música (dub) gravada no lado A. Há quem diga que foi por acaso que os “dubs” começaram a ser utilizados nos bailes, coincidindo com o momento em que os discos de acetato começaram a ser produzidos na Jamaica. Acaso ou não, a verdade é que a arte de improvisar ou criar uma nova música em cima da instrumental já conhecida, era o clímax dos bailes. O nascimento do ‘dub’ foi acidental, sua propagação foi alimentada pela economia, e se tornaria um diagrama para a música hip hop. Um espaço tinha sido aberto para o ‘break’, a possibilidade. E, rapidamente, ruídos surgiram das ruas para preencher o espaço, ‘centric toasts’, gemidos sofridos, ecos analógicos – o som da história do povo, histórias em ‘dub’, versões não representadas na versão oficial. À medida que a competição musical era ofuscada por uma violenta competição política, o ‘dub’ tornou-se o som de uma rápida fragmentação de uma nação preocupante, estranhos, trágicos, sábios retratos do colapso social em movimentos lentos (CHANG, 2005).66

65 ‘Sound systems’ are large mobile discotheques with huge amplifiers designed to produce the heavy bass sound that has defined Jamaican popular music since the 1960s. The first sound systems appeared in the 1950s and played American Rhythm and Blues or Jamaican imitations of them. Later, from the 1960s on, the sound systems started playing Ska — a Jamaican mixture of Mento, Rhythm and Blues and Jazz — and then Rock Steady and reggae when these musical forms developed in the late 1960s. However, the important point to remember about these early sound systems, is that they already had a ‘resident deejay’ who was supposed to play records, as any deejay is supposed to do, but also to fill the gaps between the records by grabbing the sound system’s patrons’ attention. The deejay usually managed to do that by improvising a set of catchphrases that would ease the transition to the next record. So the deejay was (and still is), to use Roger Abrahams’ phrase, a ‘man-of words’ and he had to use words well in order to please the crowd (DOUMERC, 2004, p.131). 66 Dub’s birth was accidental, its spread was fueled by economics, and it would become a diagram for hip-hop music. A space had been pried open for the break, the possibility. And, quickly, noise came up from the streets to fill the space – yard – centric toasts, sufferer moans, analog echoes – the sound of people’s histories, dub histories, versions no represented in the official version. As musical competition was overshadowed by violent political competition, dub became the sound of a rapidly fragmenting nation-troubling, strange, tragic, wise slow-motion portraits of social collapse (CHANG, 2005). 99

E foi graças ao Sound System exportado para o Bronx pelo jamaicano Clive Campbell, mais conhecido como DJ Kool Herc, que deu início ao que se convencionou chamar de hip hop. É claro que a história não é simples assim, tanto a periferia da Jamaica como a periferia de Nova Iorque passaram por intensos conflitos em que o contraste na condição social de brancos e pretos, historicamente separados pela política econômica da escravidão, não podia se mascarado por nenhuma falsa democracia racial. A luta pela independência na Jamaica e a guerra pelo poder político pós independência, não garantiram nenhuma qualidade de vida para aqueles cuja cor da pele era justificativa suficiente para manutenção da desigualdade social, segregação e criminalização. Porém, a criatividade era o viés da alforria. A música que antes era apenas reproduzida nos hits de R&B passou a ser recriada aos poucos. Mudou-se o ritmo na marcação do contratempo do SKA, que foi aos poucos sendo desacelerado para culminar no andamento lento do reggae que, sustentado pela ideologia Rastafári, deu novo conteúdo as letras, delatando o massacre da polícia, “Babylon”, a população negra (BRADLEY, 2000, p. 432). A situação na Jamaica ficou tão crítica que a imigração de jamaicanos para o Reino Unido e Estados Unidos foi inevitável, mesmo que nesses países a condição de ser negro continuasse a mesma, ou fosse até pior, quando somada a condição de imigrante. Nesse momento a música jamaicana já não era apenas música, mas atitude política de protesto. Da mesma forma que a juventude branca, filhos da classe operária londrina, encontrou no movimento punk uma forma de delatar a sua condição social, a juventude negra jamaicana transformou o reggae na sua arma e supreendentemente conseguiu, através da personalidade de Bob Marley atravessar continentes levando a sua mensagem. Mas esses acontecimentos aconteciam em paralelo. Se a comunicação entre Jamaica e Londres era mais fácil, o mesmo não acontecia na conexão com o Bronx, e como conta Jeff Chang (2005), DJ Kool Herc precisou perder o sotaque jamaicano para ser incluído e não sofrer bullying na escola (CHANG, 2005). Contudo foi justamente o “sotaque” do Sound System a moda jamaicana de Herc que fez a juventude negra do Bronx viver temporariamente um momento de trégua, curtindo os bailes promovidos pelo DJ Kool Herc e sua irmã. Quando eu comecei a discotecar lá atrás no início dos anos 70, era apenas algo que a gente fazia por diversão. Eu vim da “escolha do povo”, da rua. Se o povo gosta de você, ele vai te dar suporte e seu trabalho vai falar por si mesmo. As festas que eu dei aconteceram para popularizar. Elas se tornaram um rito de passagem para juventude no Bronx. Então, a nova geração veio e começou a colocar sua energia naquilo que eu comecei. Eu apresentei o esquema e todos

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os arquitetos acrescentaram num nível ou noutro. Rapidamente, antes mesmo da gente saber, aquilo começou a se expandir (DJ KOOL HERC, 2005, p.xi).67

Foi Kool Herc quem aperfeiçoou o Sound System acrescentando mais um toca-discos e utilizando uma mesa com oito canais como mixer, além de poder conectar microfones. Também foi ele quem percebeu que o clímax da festa era o momento em que os dançarinos faziam seus solos de dança, que aconteciam sempre no interlúdio instrumental das canções. Essa parte da canção era chamada de break, pois também é a parte que os instrumentistas exibem seu virtuosismo. A fim de estender o clímax, Kool Herc criou a técnica “Merry-Go-Round” colocando dois discos iguais nos dois toca-discos e emendando o final do break em um disco com o início no outro, “estendendo cinco segundos de intervalo em cinco minutos de fúria” (CHANG, 2005, p.79)68. No começo do hip hop a conexão entre música e dança era o que agitava os encontros. Mas aí o que acontece: esse pessoal veio da Jamaica e eles foram pros guetos de Nova Iorque. Eram os bailes dos guetos de Nova Iorque, começaram a ter uma... rolou um outro lance. Um encontro cultural. Em determinado momento você tinha o Disc Jockey, o cara que rolava o som. Aí um cara inventou o scratch e isso já foi uma coisa maravilhosa. E as pessoas tinham orgulho do seus DJs do seu bairro. E, às vezes, haviam encontro de DJs de outros bairros e rolavam esses versos um contra o outro. E aí depois, de tanta gente, tanta gente [nas festas], houve a necessidade de se comunicar verbalmente. Aí esses DJs, começaram a se comunicar verbalmente, quem que anima mais a plateia, quem que brinca mais, [para] manter o clima (Entrevista concedida por Criolo à autora em agosto de 2016).

Como se a história pudesse ser clonada e transportada, o que aconteceu na Jamaica nos anos 60, aconteceu no Bronx nos anos 70 e chegou ao Brasil nos anos 80, movimentando a juventude negra e periférica invisibilizada pela ditadura. A importação da tecnologia dos Sound System trouxe junto os talentos: a dança, o break, as habilidades dos DJs, a animação dos MCs e para ilustrar tudo isso a transgressão do grafite. Só que cada lugar reinventa aquilo que importa. Não é uma simples cópia ou reprodução de técnicas e comportamentos, mas uma ressignificação de ideias que cabem como uma luva, visto que a demanda social é a mesma. Liberdade de expressão, identidade racial e direitos civis. Na independência da Jamaica, na luta pela igualdade racial nos Estados Unidos e no fim da ditadura militar no Brasil é difícil ignorar uma semelhança em processos históricos separados pela tempo e espaço. Mesmo que naquela

67 When I stared DJing back in the early ‘70s, it was just something that we were doing for fun. I came from “the people’s choice”, from the street. If the people like you, they will support you and your work will speak for itself. The parties I gave happened to catch on. They became a rite of passage for young people in the Bronx. Then the young generation came in and started putting their spin on what I had started. I set down the blue print, and all architects started adding on this level and that level. Pretty soon, before we even knew it, it had started to evolve (DJ KOOL HERC, 2005, p.xi). 68 “extending a five-second breakdown into a five minute loop of fury” (CHANG, 2005, p.79). 101

época, a comunicação não fosse tão instantânea quanto hoje, a ponto de cada evento político ser compartilhado em rede sociais despertando a especulação e comoção alheia. Mas de alguma forma, o que não era comentado na grande mídia era transmitido nas letras das canções e assim se construiu a consciência daqueles que só esperavam uma brecha para poder protestar a sua condição. Percebe-se que o rap surge em um cenário histórico-cultural determinado não apenas por uma estética musical, mas pelas tecnologias da música disponíveis no momento. Os vinis contendo música dos mais diversos lugares foram a ferramenta pela qual crianças das regiões mais pobres da cidade puderam interagir com músicas do mundo todo. E assim como aconteceu em Trenchtown e no Bronx os Sound Systems foram para as ruas do Grajaú, da Vila Mercê, ou de Diadema, movimentando a juventude e contribuindo para formação musical de Criolo, DJ Marco e DJ Dandan. Eu lembro que um dos caras mais influentes pra mim, de história de música mundial é um cara chamado Hood. Eu chamo ele de mestre Hood. E... ele trampa na Bola Branca (empresa de ônibus). O que que esse cara fazia? Ele tinha os equipamentos de som, botava o som na rua e chamava a molecada. Tinha uma pá de disco pirata, uma pá de disco nacional, alguns internacionais. Falava: “Oh, esse aqui é música da Jamaica” Esse aqui é música de não sei quem...” (sic) (CRIOLO, 2016).69

Eu já tinha uns oito anos de idade, e aí todos os domingos, a gente ia brincar na Praça da Moça que era no centro de Diadema. E lá no centro de Diadema, dia de domingo, tinha uma matinê que era num salão chamado Xereta. Depois veio a se chamar Clube da Cidade, mais pra frente, mas era Xereta. Aí quando dava umas dezoito horas, a gente ia pra porta, porque ele começava antes, a gente ia lá na porta, trocava uma ideia com o Segurança pra deixar a gente entrar pra ouvir um som, pra curtir. “vai lá, molecada, vai lá fica uns 20 minutos lá e tá tudo certo”. Aí a gente entrava e ficava ali curtindo. Na época já tava tocando uns sons, que tipo... é... a gente não conhecia como rap. Os caras falavam que era um funk falado, que era uma batida funk, mas que tinha um cara falando, não cantando exatamente, mas ele falava, então o pessoal falava que era um funk falado (Entrevista concedida por DJ Dandan à autora em agosto de 2016).

Na Zona Sul aonde eu morava na Vila Mercês tinha um pessoal que montava som, né? Montava duas paredes de caixa, botava o som lá. Tocava James Brown, tocava War70, funk, soul. E eu não sabia o que que era aquilo. Aquilo não tocava na rádio, né? Só tocava ali, aqueles caras tocavam aqueles discos. E eu já pirei ali, naquilo. Aí eu mudei de vila, fui morar numa outra vila que era o Jardim Maristela que todos os moleques dali daquela quebrada, eu já tinha 9, 10 anos... todos eles já ouviam música em casa, porque os irmãos mais velhos já ouviam James Brown mesmo, Michael Jackson mesmo, né? Já ouvia

69 CRIOLO. Entrevista Criolo - Rap Nacional [Data de upload: 6 junho, 2016]. Disponível em: Acesso em: 7 junho, 2016. 70 War é o nome de uma banda americana dos anos 70 que misturava vários gêneros, funk, rock, jazz, soul, reggae.

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mesmo, de curtir, ir pro baile e tudo mais. (Entrevista concedida por DJ Marco à autora em agosto de 2016). A diversidade musical do repertório de vinis, viabilizada pelas tecnologias de gravação do som, foram as condições que possibilitaram a criação de um ambiente musical propício para expressão musical de pessoas que não tinham nenhum outro instrumento além da voz, para cantar e do corpo para dançar. É possível que o rap tenha se tornado uma expressão popular, pelo fato dos recursos necessários à sua expressão serem apenas o próprio pensamento e comportamento, no ato de criar versos em uma métrica definida pelas batidas das gravações, recursos esses, econômica e ecologicamente acessíveis em lugares onde a música gravada já era difundida. DJ Marco conta como o rap entrou na sua vida e lhe apresentou o scratch. Aí nos anos 80, ali 83, 84, eu lembro que começou a tocar, já na rádio, o que veio a ser o Rap, né? Começou a tocar Malcolm Mclaren, e eu ouvia, a primeira vez que eu ouvi eu já pirei, porque tinha batida, tinha scratch, tinha o cara rimando, né? Nunca tinha ouvido nada parecido com aquilo, aquilo chamou muita atenção, né? Nunca tinha ouvido nada. Não existia, né, o rap tava começando. A gente nem sabia que era rap, né, aquela época. E aí tinha um programa na Rede Record em 84, do Barros de Alencar aqui de SP que começou a passar uns trechos de vídeo clip, né? Do Malcolm Mclaren na música Buffalo Gals71 e ali mostrava o DJ, um pedacinho, mostrava o DJ mexendo o disco, né? Indo pra frente e pra trás. Que era o scratch. Eu já ouvia o scratch, mas não sabia exatamente o que era. Aí ali eu comecei a me ligar e hipnotizou, aquilo hipnotizou, né? Não tinha aquilo. Tudo era bateria, baixo, guitarra, alguém cantando; ou você via os programas de televisão, geralmente era playback, né? Você não tinha muito acesso. Eu não tive muito acesso a instrumento, né? O, o... meu lance com a música já começou com toca disco e disco já, como eu falei. (...) aí um camarada, o Júlio César, finado Júlio César, me mostrou um disco do Run DMC que chama: Raising Hell, que tem a música Walk This Way. Ali mudou minha vida. Ali mudou, porque eu vi mesmo o Rap de verdade, o Rap cru, batida pesada, o cara rimando, scratch… aí eu já comecei a me envolver muito mais, comecei a procurar disco, com 11 anos eu comecei a trabalhar, o meu dinheiro eu ajudava em casa, mas pelo menos um disco em podia comprar no mês, aí eu comecei a ir atrás… Comprava no Carrefour da Via Anchieta. Tinha uma loja de discos e o próprio Carrefour vendia disco né, vendia vinil lá (Entrevista concedida por DJ Marco à autora em agosto de 2016). Além da técnica “Merry-Go-Round” inventada pelo DJ Kool Herc, o desafio do DJ de rap, enquanto instrumentista, é saber fazer os scratches, a arte de “arranhar” os discos produzindo um ritmo, um som percussivo que se encaixa no meio da música provocando um diálogo entre a música e a dança, entre o DJ que quebra o ritmo no improviso, e o dançarino precisa responder a esse estímulo, expressando o mesmo ritmo com seu corpo. Além de saber lidar com diferentes tecnologias, o Deejay ou Disc Jockey (DJ) que cria e executa os beats que acompanham o Mestre de Cerimônia – MC, a parte instrumental do rap, precisa ter amplo

71 Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=9SgvJY9xxcA > 103

acervo musical disponível, para escolher e recortar os samples72 que irão ser manipulados em cada performance. Não existe rap sem sample, nem MC sem DJ. Mas nem todo recurso necessário para prática do DJ ou MC, sempre esteve disponível na cena do rap. O grande lance da tecnologia realmente fez muito diferença. Porque, naquela época você ter um toca-disco, isso já era uma coisa absurda, você ter dois, você dobrou suas possibilidades. É muito difícil você falar pra alguém hoje, dessa tecnologia muita avançada onde você coloca cem mil músicas num computador, é difícil você explicar pra ele a importância de você ter um toca disco, né? As instrumentais de rap, antigamente eram feitas em duplo deck, né? Você escolhia aqueles quatro segundos, colocava no duplo deck, gravava os quatro segundos e voltava na mão. E você tinha que achar o ponto certo, pra não pular. Primeira vez que eu cantei foi assim. Fiz minhas duas instrumentais assim. Quatro segundos, gravou? Volta essa do ponto, põe. Olha, escuta pra ver se tá certo. No ponto de novo, outro ponto. Mas uma tecnologia a favor da sua criatividade. A tecnologia enquanto ferramenta, não o contrário, a ferramenta te usar. Que hoje eu acredito que acontece isso, a ferramenta te usa (Entrevista concedida por Criolo à autora em agosto de 2016).

Antes da invenção do MP3 e da popularização dos programas de edição de áudio, não era uma coisa simples coletar os samples para compor uma base instrumental. Como descreve Criolo, suas primeiras “instrumentais” foram compostas por meio da gravação em fitas. A base instrumental é o acompanhamento musical para que o MC apresente seu rap. Também é possível cantar um rap a capela ou com o acompanhamento de beatbox (ritmos cantados com a boca). Mas na cena dos bailes de black music e da chegada dos primeiros raps americanos, um bom MC precisava cativar sua plateia não só com suas rimas, mas com um sample que pudesse ser reconhecido por todos. Não é à toa que os primeiros raps gravados na língua portuguesa, foram paródias, como a Melô do Tagarela, gravado em 1980 pelo humorista Miele, parodiando o rap Rapper’s Delight de 1979 do grupo The Sugarhill Gang.73 Uma outra paródia famosa foi, Lagartixa na parede (1989), versão de Ndee Naldinho para o rap DJ Innovator (1988) do MC

72 Sample é o nome dado ao uso de um trecho de uma música já existente que é copiada e colada na base instrumental de um rap. Pode ser adicionada também ao vivo, quando o DJ deixa rolar o trecho de uma música em um toca discos por cima de outra música que está rolando no outro toca discos. 73 Segundo contou DJ Dandan, esse rap foi um marco que simbolizou a diferença entre o MC e o rapper. Ele explica que os MCs tinham um compromisso com o hip hop e quando as gravadoras começaram a assediá-los para gravarem suas músicas eles hesitaram em aceitar a proposta se o grupo todo que envolvia DJ, MCs e dançarinos não fossem contratados também. Na necessidade de encontrar cantores de rap que não tivessem esse compromisso, eles cunharam o termo rapper para diferenciar do termo MC. Segundo Dandan, Rapper’s Delihgt “foi o primeiro Rap a explodir no mundo. E aí os caras eram rappers porque os caras não tinham nenhum compromisso com nenhum grupo. Não tinha compromisso com o Hip Hop. Eles eram do Hip Hop, mas eles não tinham este compromisso que o MC tinha. O Mc defendia a cultura. Ele tinha este compromisso. Então o rapper é uma coisa criada pela indústria. E aí a diferença do rapper pro MC é esta. Que o MC ele tem um compromisso mais cultural, o Rapper não, o Rapper é: “ Tô aqui, tô ganhando o meu dinheiro, é isto mesmo e é nóis! Se eu quiser ajudar, eu ajudo, se eu não quiser também não ajudo’(Entrevista concedida por DJ Dandan à autora em agosto de 2016)..

104 americano Chubb Rock. Criolo faz referência a esse vinil quando nos seus primeiros contatos com o rap. Depois escutei no vinil do Chubb Rock, né? Aí depois escutei também a versão do Naldinho, né? Lagartixa na parede, Essa mulher de quem é... Aí já é, se falaram que era o rap... aí depois é MC Jack, Pepeu, quando fui ver cara, eu também tava querendo fazer isso aí, porque me dava maior autoestima, eu era um daqueles cara que... tá ligado aquele último cara que é escolhido pra jogar bola? Eu era esse último cara, tá ligado? (...) aí o rap foi meio assim, eu comecei a esquecer essa neurose do início da adolescência e tinha um bagulho para eu me apegar, tá ligado? Tinham muitas coisas que me incomodavam também e eu tinha muita necessidade de me expressar, sempre tive, né? (sic) (CRIOLO, 2009).

Percebe-se que, no caso do Criolo, a experiência de ouvir um rap não foi só uma questão estética, mas de identidade, algo que ele desejou para si, algo que se sentiu seguro em fazer e poder se expressar, resgatando sua autoestima. Algo que ele pudesse ser bom, diferente do futebol, por exemplo. Assim como ele, milhares de jovens de periferia, nesse período se sentiram dessa forma. Uns se identificaram com a possibilidade de cantar e expressar suas ideias, como Criolo e outros com o desafio de “rolar uns discos” e aprender a arte do scratch como DJ Marco. O movimento hip hop com todas as suas expressões artísticas, o grafite, a dança, o DJ e o MC foram apropriados pela juventude negra da periferia que já tinha, nos bailes de black music, a sua maior referência de entretenimento. Era comum, nessa época, as escolas realizarem bailes para angariar dinheiro para formatura dos alunos do ginásio e colegial. Esses bailes eram organizados por equipes de som da própria localidade formado por jovens menores de idade que já curtiam o movimento da black music que acontecia em grandes eventos espalhados pela cidade de São Paulo. Através dos bailes de pró-formatura, como eram chamados, a juventude da periferia que não tinha condições de frequentar os famosos bailes black que movimentaram as noites de São Paulo nos anos 80. Welbe Colombo, amigo de Criolo conta como começou sua própria equipe de som e se tornou DJ. Eu montei uma equipe de som, com dois amigos da rua de cima aqui, com mais três amigos. Aí nós falamos: “ vamos começar a fazer festa? Vamos. ” Aí nas escolas, em todas as escolas da região, tinham os bailes pró-formatura, então quem tinha equipe de som, eles davam uma data pra fazer o baile. Aí primeiro nós fomos, pesquisamos: caixa, potência, é... toca-discos, que na época era só vinil e compramos o básico pra começar. E pegamos a primeira data e fizemos o primeiro baile, foi até lá no Washington, numa escola lá, que lá tinha muito... é que na época, que nem o próprio Kleber falou mesmo, na época, era mais dança, não era rap. Eram mais passinhos nos baile e grupo de rap era quase escasso. Aí depois começou a aparecer, os grupos de rap, né? Aí, a partir daí nós começamos a nos profissionalizar mesmo, falamos: “já que nós vamos entrar de cabeça, vamos fazer o negócio profissional”. Aí nós pesamos de som. Aí nós... as caixas, nós fomos pesquisar as caixas, que era, 105

no momento, na época, acho que lá no Rio mesmo acho que tem, as BL dá Furacão 2000, aqueles montes de BLs. Aí nós compramos as BL da época, e botamos os bailes, nós fazíamos os bailes pesado... (sic) (Entrevista concedida por Welbe Colombo à autora em agosto de 2016).

O desafio maior para quem se iniciava na arte do rap estava em garantir os recursos necessários para atividade musical, que em um primeiro momento ficava ao encargo das equipes de som dos bailes nas escolas, na rua ou em casas noturnas. Para se tornar um verdadeiro integrante do movimento hip hop, era necessário descobrir seu talento, investir tempo, desenvolver habilidades e aperfeiçoar a técnica para poder fazer a diferença. Contudo a arte do MC, DJ, da dança de rua e do grafite não se aprende na escola. E não há arte que não precise ser aprendida. A primeira vez que Criolo cantou como MC foi em um baile, uma festividade no meu bairro, no jardim Manacá, chamada associação dos moradores do Jardim manacá que fica entre o Manacá e o Icaraí, no Vale das Canas, na Zona Sul de São Paulo, e era um dia em que a associação ia receber doação de comida e de roupa e eu pedi pra cantar duas músicas, sabendo que uma equipe de baile, que fazia os bailes no Esther Garcia [escola], que era onde eu estudava, ia fazer um som pra deixar o clima gostoso, eu pedi pra cantar duas músicas que eu já tinha escrito há um tempo e foi assim, a primeira vez foi assim (CRIOLO, 2013).74

A carreira de Criolo como MC foi construída aos poucos, a cada oportunidade de poder cantar e expressar suas ideias. A aprendizagem acontecia no decorrer da atividade musical, que começava no ato de compor. A experiência só podia ser adquirida na própria performance que, no caso do MC, dependia da colaboração do DJ. Para Criolo, os bailes black proporcionados por equipes de som formadas por jovens amantes de vinis, como seu amigo Welbe, foi fundamental para sua formação musical. Ambiente de baile eu fui ter no primeiro colegial no Esther Garcia, no colégio, Jardim Reimberg [bairro], que ali havia uma cultura da black music. Então não é que a escola proporcionou. Por uma situação de arrecadar fundos pra ajudar na formatura de quem se formava em oitava [série] e terceiro colegial, as equipes de baile, ofereceram: “tem um pátio, vamos fazer um baile de domingo, tanto é pra gente, tanto é pra escola, tanto vai pra formatura”. E essa parte do bairro era muito ligada a black music, muito ligada ao rap, muito ligada a música negra, então isso fez diferença pra mim. Mas eu já cantava. Isso foi em 90, 1990, eu comecei a curtir o bailinho do colégio, era uma felicidade, era um orgulho, você queria tá bem vestido, você queria aprender algum passinho, ensaiava algum passinho, alguma coisa pra cantar, pra dançar e isso me influenciou muito, mas não necessariamente a ideia era da escola, entendeu? Houve uma questão outra. E pra minha sorte! Por aquele lugar do bairro, as pessoas amarem tanto a cultura do vinil, a cultura da black music. Isso me influenciou bastante. De pesquisa de som, de entender que existe outras formas de se cantar, e de entender que existem outros países no mundo,

74 CRIOLO. Roberta Martinelli entrevista Criolo. [Data de upload: 29 novembro, 2013]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=LLs56Gx8hAw Acesso em: 1 abril, 2016.

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né? Porque por mais que você veja no mapa mundi, quando você escuta um cara cantando um inglês meio que jamaicano, ou inglês da Inglaterra ou inglês dos Estados Unidos, você vê que tem diferença, que tem uma marca cultural, que tem um porquê, que tem uma força o ritmo escolhido pra cada um. Então isso me influenciou muito. Bastante, muito, muito (Entrevista concedida por Criolo à autora em agosto de 2016).

A cultura black music foi vivenciada nesses ambientes, fazendo da música o elemento agregador, mobilizador e centralizador não só das atividades musicais, como a dança, o canto e a reprodução de discos importados e nacionais, mas também de interação social, reflexão e construção do conhecimento. Como ressalta Criolo, a “black music” sempre esteve vinculado a atitudes políticas de protesto contra o racismo e marginalização da população preta e pobre. Esse é o background do rap como expressão musical da cultura periférica, aquela que se desenvolve as margens do sistema ou pela rebarba dele, a partir de uma lógica própria e autônoma. Na troca de informações sobre músicas, artistas, discos, bailes, passinhos e tudo que compunha essa atividade musical, também se falava das questões sociais que permeavam a vida daquelas pessoas. Porque também você tinha um ambiente, e é isso que eu falo pra você, nunca era música desconectado de uma busca outra. Porque as pessoas também se encontravam pra falar do bairro, se encontravam pra falar da escola; o que que tá errado, o que que tá certo, o que que você gostou ou o quê que não gostou. Falava-se muito sobre a luta contra o racismo, luta dos seus direitos civis. Tudo isso naquele bailinho, com criança de 14 e 15 anos. Por isso que eu digo que é natural, lógico que alguém em algum momento puxou isso. Mas aquela batida, aquelas pessoas, aquele ambiente, tudo o que você tá vivendo... e alguns davam o click pra isso, pra outros não. Tem pessoas que não se reconhecem negras. Tem pessoas que não se reconhecem, que morou em bairro de periferia mesmo morando nele. Tem pessoas que quando faz uma entrevista de emprego não fala o nome do seu bairro. Mas nessa parte aí eu até entendo, porque não davam o emprego pra gente mesmo. Eu até entendo... Mas até pessoas que conseguiram passar por essa peneira desleal, muitas pessoas, até hoje, têm vergonha de falar de seu bairro de origem ou bairro que moram. Muitas pessoas não compreendem sua diáspora africana, não compreendem uma série de coisas e esse não compreender nós tempos que ter carinho, temos que ter solidariedade com essas pessoas e a música oferece o ambiente. Também ninguém vai te perguntar nada. Curta esse ambiente, curta essa energia e deixe ela fluir no seu corpo. E muitas coisas vão acontecer naturalmente, né? Naturalmente... (Entrevista concedida por Criolo à autora em agosto de 2016).

O ambiente era o mesmo, a música para todos, mas a forma como cada morador do Grajaú, periferia da Zona Sul de São Paulo percebia as questões raciais e sociais que motivavam as festas; o modo como percebiam a identidade africana na música preta importada da América, era singular. Se para o jovem Kleber essa identificação com tudo que estava acontecendo a sua volta foi crucial para tudo o que sucedeu na sua vida a partir daquele momento, essa experiência 107

não pode ser estendida para todos, mesmo que o ambiente musical e social seja o mesmo. A música, para ele, foi o recurso, o meio pelo qual foi possível expressar seus sentimentos, ideias, passar uma mensagem que, antes de mais nada, precisou fazer sentido para ele mesmo. É porque, assim: é muito difícil você querer fazer algo que não tem sentido, né? O que faz sentido pra você, né? Quando eu escutei uma música e no final daquela música o locutor falou que aquilo se chamava rap, uma música gigante; e aquilo, aquele, aquela rima, aquele texto, parecia que ele falava da minha casa, do meu bairro, de um tanto de como eu já enxergava o mundo, então eu me senti naquilo. Então não era apenas mais a mágica do encontro de palavras, mas a mágica do encontro das ideias, encontro de ambientes. Que também existe uma grande diferença entre encontro de ideias e encontro de ambientes. Assim, brutal, né? E aí isso fez sentido pra mim. E eu quis reproduzir, eu quis fazer também. Eu achei um modo de como eu conversar comigo mesmo, conversar com o mundo e era através daquele jeito de rimar (Entrevista concedida por Criolo à autora em agosto de 2016).

Como Vygotsky ressalta, o desenvolvimento cultural é uma via de mão dupla, e tão importante quanto o estímulo do ambiente em que a pessoa se desenvolve, é a atitude, o comportamento, a resposta que a pessoa vai dar para tudo aquilo que está a sua volta. Essa resposta vem da sua vontade, do desejo, ou como disse Criolo, do sentido que a pessoa dá para aquilo que está vivendo. É possível curtir vários bailes de black music na periferia, sem tampouco se preocupar com as críticas sociais que perpassam nessa atmosfera. É possível usar penteados como tranças, dreads ou Black Power sem necessariamente saber o que a estética do cabelo representa politicamente. É possível curtir um rap americano, sem nunca saber do que trata a letra. Mas o movimento hip hop e o desenvolvimento do rap nacional não se deu de forma passiva, pelo viés estético ou pelo modismo. A busca do conhecimento era essencial para formação musical dos jovens que estavam se comprometendo com essa cultura e todos os valores sociais e políticos que ela agrega. Ao relembrar os seus primeiros grupos de rap, Criolo ressalta a importância da pesquisa e da influência de seus parceiros na sua formação como MC e compositor de rap. o primeiro nome era Relações Públicas e depois virou reação P. Aí depois disso, houve um encontro com... uma mistura com mais dois jovens do bairro que tinham um outro grupo, chamado testemunha do Holocausto, nós nos juntamos em 2000 para fazer um grupo chamado Pacto Latino: O Célio, o TH Drez, eu e o Netinho, todos do Grajaú. Foi em 2000 esse encontro. Esse encontro foi um encontro muito rico pra mim, porque o André é uma pessoa extremamente politizada, naquela época ele já falava em francês, já falava em espanhol e já trazia pra gente as questões sócio econômicas da América Latina; ele falava que era uma coisa muito maior o que moviam essas peças, pra ser como é o nosso bairro; como o que afeta o nosso bairro, não são só as coisas que acontecem no país, mas em toda América Latina e no mundo todo. O Célio, um grande pesquisador, Netinho um grande DJ e pesquisador, enfim, muito rico. [a pesquisa] é natural, viu, do hip hop. Natural, independente se você vai fazer uma música ou não. O hip hop ele propõe, não apenas algo que

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já é muito rico, que é você vivenciar todas essas expressões de arte que o hip hop acaba promovendo, mas também uma pesquisa muito intensa, tanto pra música, quanto pra textos, é natural, independente se o cara é MC ou não. O hip hop, ele oferece esse ambiente pra você (Entrevista concedida por Criolo à autora em agosto de 2016).

Seria a pesquisa natural do hip hop ou natural do ser humano? Aquilo ao que Criolo se refere como sendo natural diz respeito ao que Vygotsky (1997) considera como vontade, um impulso que vem de dentro da pessoa que, diante dos estímulos externos a leva a tomar uma atitude e não outra. Seguir por um caminho e não outro. Sendo que, o que vai caracterizar sua escolha, são os “sentidos” atribuídos, que a pessoa toma para si como meio para transformar o seu comportamento e se fazer presente nesse processo histórico-cultural. E ele explica: É natural, porque se eu tô conversando; a gente tá indo pra um encontro de hip hop, vamos ver um grupo de dança se apresentar ou um grupo de rap cantar, o que que eu vou conversar com você? Não é só entretenimento. É muito conteúdo, é muita coisa; é o que acontecia também muito, é: eu tô indo pra te escutar, eu tô indo. Eu canto rap, eu tô indo ver um show de rap, não é porque eu tô interessado em conversar com alguém pra ver se eu canto também. Isso também, porque você quer mostrar seu trampo. Mas você ia muito pra ouvir o outro, aprender com o outro. Então determinados temas, determinadas palavras, o cara descia, a gente ia lá e perguntava pro cara: “mas que que é isso que você tá falando?” “De onde você tirou isso?” “Isso aqui eu achei interessante, isso aqui eu não entendi, você pode me explicar?” “Isso aqui eu acho que não é isso aí” e ninguém enxergava isso como algo negativo, porque não era um embate, era uma troca de ideias extremamente positiva. Então é isso, é natural pra nós. E quem já opta um tanto, pelo menos do que eu vivi da minha época de 87, 88, 89 até um pouco antes de ver os outros fazendo, antes de eu fazer, era muito, era muito, muito natural esses jovens envolvidos com isso já terem no sangue uma busca por conhecimento. Uma busca por querer saber do mundo, como é que você tá nesse mundo, como são as coisas realmente, será que é só isso aí que tá na escola, que a gente tá vendo no primeiro colegial, segundo colegial? (Entrevista concedida por Criolo à autora em agosto de 2016).

A primeira compreensão para a ideia de natural, da forma como descreve Criolo, condiz com o comportamento naturalizado em um ambiente social, aquele que não é estranho para as pessoas, que é um costume ou mesmo uma conduta esperada. Mas quando se refere aos jovens que, como ele, optaram pelo rap, ou seja, escolheram o rap como uma opção de vida, já terem no sangue uma busca por conhecimento, ele acredita que o MC compositor de rap tem, em sua natureza, uma propensão a buscar o conhecimento. A natureza neste caso diz respeito ao aspecto biológico, pois está no sangue, diferente da naturalização de um comportamento que se desenvolve como hábito em meios aos costumes de um grupo social. Isso é o que diferencia determinadas pessoas que frequentam o ambiente de rap daquelas que fazem o rap, indicando que, em uma mesma atividade musical é possível se assumir perfis comportamentais diferentes. 109

Uma parcela das pessoas ficará contente em observar, cantar ou dançar. Já outra parcela, irá procurar aprender, conhecer músicas novas, refletir sobre novas ideias, como em uma busca de um alimento, de uma necessidade que seu organismo lhe impõe para fazer aquilo que lhe é vital e que nesse contexto condiz com a possibilidade de se expressar. Criolo: Porque o natural é a sua sede. [Silêncio]. Sentir sede é natural. É isso. Joana: Então você tá querendo dizer que, da mesma forma que a gente sente a sede e beber agua é vital pra gente, a sede pelo conhecimento, ou talvez por.. Criolo: Ou por você expressar alguma coisa que alguém diz que você tem um talento, se você não expressar isso é como se você não tivesse bebendo água. Porque isso é natural, sentir sede. É natural você colocar pra fora aquilo que existe em você. (Entrevista concedida por Criolo à autora em agosto de 2016).

Na história do rap nacional, foram diversas as maneiras de aprender. Não houve um método, receita, curso ou escola que conseguisse dar conta de suprir a necessidade de conhecimento da juventude sobre o movimento e as artes do hip hop. Cada um descobriu seus caminhos, suas técnicas, seus recursos para poder desenvolver as habilidades necessárias para se apresentar como um artista do hip hop, ou como diria o DJ Dandan, “um arteiro”. Ele conta que, no seu primeiro grupo de rap chamado DNR “Diga Não ao Racismo”, ele começou como dançarino. Mas graças a um curso de DJ que ele assistiu como ouvinte, ele acabou assumindo a função do DJ dentro do grupo. O Edson, ele já tinha vontade de ser DJ, então ele foi fazer um curso de DJ lá no nosso bairro, Campanário, com o DJ Guiná, na escolinha de DJ do DJ Guiná e eu acompanhava o Edson. Eu não tinha grana pra pagar, mas o Edson trabalhava já, né? E ele pagava esse cursinho pro Guiná e eu ficava só observando o que o Guiná ensinava pra ele. Meu pai tinha um 3 em 1 em casa, e eu tentava desenvolver tudo aquilo que o Guiná ensinava pra ele, eu tentava desenvolver no 3 em 1. Tinha fita K7, então você ouvia aqueles programas de rádio que tinha DJ tocando, a gente gravava e tentava imitar o que os DJs dos programas de rádio faziam e aí eu fui desenvolvendo essa parte de DJ dessa forma. E aí como o DNR ele tinha uma problemática com DJ, nunca conseguia um DJ mesmo, eles resolveram me colocar como DJ, me tirou de dançarino, e me colocou como DJ e aí entrou o Borrão [dançarino] no meu lugar (Entrevista concedida por DJ Dandan à autora em agosto de 2016).

Apesar de ele mesmo não está matriculado no curso, participando apenas como observador ele foi capaz de aprender. Sem tem os recursos ideais, ele adaptou o “3 em 1” para tentar fazer aquilo que ele viu o professor ensinando. Além disso, teve a iniciativa de selecionar músicas na rádio, gravar, ouvir e imitar. Pode-se dizer que a formação de Dandan como DJ foi autodidata, mesmo que ele tenha estado presente em um curso, já que não chegou a ter a interferência do professor no seu processo de aprendizagem. E sua formação não parou por aí. O conhecimento musical adquirido na prática de DJ fez com que ele sentisse a necessidade de ajustar as letras dos rap compostos pelo grupo para encaixar nas instrumentais que usavam.

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Diante dessa necessidade ele acabou escrevendo novas letras e se tornou também compositor. Comecei a tocar com o grupo, e aí eu comecei a mexer nas letras dos grupos, porque a galera escrevia...eu comecei a mexer nas letras, porque a gente usava muito instrumental gringo, não tinha instrumental, não tinha ainda produções brasileiras que você tinha um cara ali, fazia um beat (a gente chama de beat) fazia um beat pra você e você rimava em cima, não tinha isso, era difícil você gravar uma fita cassete, tinha uma dificuldade muito grande de você gravar uma fita cassete. Então a gente vinha aqui na galeria 24 de maio, nas lojas, pegava um disco, um single de algum grupo americano, e o single que era uma música de trabalho, às vezes vinha um instrumental, além da vocal tinha instrumental, então a gente cantava em cima desses instrumentais, que aí eram vários que existia, a gente escolhia um: “Oh, esse dá pra essa música” – “legal, vamos fazer nessa”. Às vezes, a letra já tava feita, normalmente a letra já era feita, só precisava escolher a base que hoje todo mundo chama de beat, na época a gente falava base, verdade, tem esse detalhe, a gente falava base, não falava beat, beat é hoje que a galera fala... Então é: “essa base encaixa nessa letra, então vamos fazer”, mas às vezes não é que encaixava, é que a sonoridade que você usava era legal para aquela base e aí eu comecei a me ligar, como eu já tava aprendendo negócio de compasso e tudo o mais, eu comecei a me ligar que, certas partes nas músicas americanas, mudavam, aquela parte do refrão mudava alguma coisa na música, e aí os meninos cantavam, e às vezes passava a letra em cima do refrão da base americana, ou faltava pra chegar no refrão, que seria hoje a gente chamaria de o B, sei lá, tem o A, parte A, parte B, não sei o que lá. E aí eu comecei a mexer nestas letras, porque eu já manjava de compasso, eu falava pros caras: ”Oh, tem que tirar aqui, porque tá caindo em cima do refrão aqui, tal, do instrumental (Entrevista concedida por DJ Dandan à autora em agosto de 2016).

Percebe-se que as composições de rap naquela época passavam por um processo de experimentação, pois afinal, ninguém sabia ao certo como fazer aquilo. Para quem analisa a situação de fora, parece até que era uma coisa muito simples, mas ao perceber os detalhes, nem tudo era tão intuitivo. No grupo que Dandan participava, foi ele quem percebeu que a letra não cabia na base instrumental. Foi com a técnica de contagem de tempo que havia aprendido observando o professor Guiná no curso de DJ, que ele pôde concertar os arranjos. Então não era simplesmente escrever um texto e sair rimando por cima de uma base instrumental. Tão curioso quanto a capacidade de Dandan em aprender uma técnica e aplicá-la em outra situação é a incapacidade de outros em perceber que uma letra não encaixa no ritmo da música. Sobre a dificuldade de perceber o ritmo, Ganjaman relata uma experiência de quando era criança e frequentava um curso de teclado. Eu ficava muito impressionado, que tinha uma moça, que vez ou outra a gente batia de tá no mesmo horário no curso, e as vezes o professor pedia pra pessoa, depois que já tava memorizado ou já tinha estudado a música, pedia pra pessoa tocar, ali, né? E eu ouvia ela tocar, e ela soltava o ritmo e ela tocava tudo perfeito, só que completamente fora do tempo. Isso aqui [marca o tempo com estados de dedos], o que tava tocando, tun-ti-ta-ta tun-ti-ta-taI [canta o ritmo]. E aí eu lembro que uma vez eu perguntei pro meu pai isso. Eu falei: “pô pai, porque que ela não...” [risos] Porque pra mim era tão automático, sabe, então, 111

que... aí meu pai falou isso, falou: “Olha tem gente que tem uma dificuldade muito grande com ritmo, simplesmente não tem essa... essa coisa tão, é... intuitiva que você tem. Você entra e já sai tocando” (Entrevista concedida por Daniel Ganjaman à autora em agosto de 2016).

A percepção do ritmo pode ser intuitiva para a maioria das pessoas. São raras as pessoas que não conseguem acompanhar a pulsação de uma música com algum gesto corporal, seja bater o pé no chão, balançar o corpo ou parte dele. Essa é uma habilidade que é possível observar em bebês mesmo antes deles conseguirem andar (TREHUB & HANNON, 2005). Contudo, transpor a percepção da pulsação para performance musical, já é um processo um pouco mais complexo, pois não se trata apenas de perceber o ritmo, mas de executar uma ação que exige habilidades motoras, como no caso do exemplo dado por Ganjaman, a dificuldade de tocar o teclado dentro desse ritmo. Mas é compreensível a surpresa do pequeno Ganjaman, pois se ele mesmo conseguia, porque ela não? Porque algumas pessoas conseguem e outras não? Porque ele, com seus seis anos de idade em um curso, em que ele era a única criança, conseguia com tanta facilidade aprender a tocar uma música no teclado dentro da base rítmica sem errar? Essas são questões que perpassam a noção de talento como algo que já vem pronto. O próprio Ganjaman acredita que a musicalidade vem determinada no DNA. Porque, coisa de música, eu acredito que é assim, cara: tem um predeterminante que é praticamente necessário pra você tocar um instrumento. Que tá dentro do cara, tá no DNA, tá! Tem gente que não tem ritmo. Eu acho que é... são coisas que você não adquiri, sabe? Eu acredito nisso (Entrevista concedida por Daniel Ganjaman à autora em agosto de 2016).

Welbe também acredita no dom como algo difícil de ensinar. Ele aprendeu a ser DJ sozinho, nunca frequentou nenhum curso, seu único parâmetro era a necessidade que ele impunha para si mesmo de ser profissional, de fazer bem feito sem medir esforços para isso. Ele conta que sua equipe de som era composta por mais três amigos, e ele era o mais perfeccionista deles, e por conta desse perfeccionismo ele foi desenvolvendo suas habilidades. Quando lhe perguntaram como ele aprendeu a ser DJ, ele respondeu sem hesitar. Então, isso aí eu acho que é dom. Você tem que ter pelo menos um pouco de dom, porque eu conheço, eu tenho alguns amigos que foi lá na DJ shop na [Avenida] Paulista, pagou curso caro e isso e aquilo, mas não foi, meu, não foi! Eu acho que cada um tem que tentar se encontrar. Às vezes você tem vontade de ser DJ, mas você não tem o dom pra isso. Às vezes você tem o dom pra outra coisa, pra ser um esportista, pra ser, sei lá... um... enfim, então foi um pouquinho de dom, não foi 100% dom, mas foi um pouquinho de dom, que eu tive aí, que eu obtive aí (Entrevista concedida por Welbe Colombo à autora em agosto de 2016).

Apesar de reconhecer uma porcentagem de dom na sua habilidade de DJ, ele também relata a dedicação ao treino. Conta que a equipe só tinha um par de MK, um modelo de toca-

112 discos próprios pra DJ da marca Technics. Então cada semana as MKs ficavam na casa de um dos quatro DJs. Quando ficava na casa dele, ele acordava bem cedo para treinar as viradas e por volta das dez da manhã os outros DJs estavam na sua porta esperando para treinar também. A maestria do DJ está em conseguir combinar sons diferentes, emendar uma música na outra utilizando um mixer e, no meio dessa performance aplicar os scratches sem perder o ritmo, pois a dança não pode parar. É que nem, assim, não que eu vou desmerecer quem faz curso, é lógico que o curso ele profissionaliza a pessoa, mas tem, tem que, só que realmente tem pessoas que não vai. Entendeu? Lógico, que vamos supor de 10 pessoas que faz o curso de DJ que seja, umas cinco ou seis vai se dar bem ali, umas cinco talvez e uns dois, três que não vai. Entendeu? E se você tiver o, pelo menos um pouco do dom, aí você consegue. Porque pra tocar a música você tem que ter a noção de batida, de compasso e o cara que faz curso, ele fica muito marcando o passo. O Cara que é DJ, ele coloca o fone aqui, oh, ele tá desencanado, ele tá olhando pra você aqui, oh: foi. Pegou, vira o mixer, foi [gesticula essas ações com as mãos]. E o cara que faz curso, ele fica marcando o passo, batendo pé, batendo dedo, alguma coisa, pra hora que acabar a contagem, ele virar, tipo como se fosse um negócio cronometrado, ali, robótico, meio... tem que ser quando der os oito compasso virar. E aí, o que acontece, o cara que é DJ, ele desencana, ele faz acontecer. Eu pegava os KRS One [se refere à música do grupo de rap norte-americano], eu nunca fui de fazer os scratches monstrão, mas na virada, eu pegava aquele, a instrumental do KRS One, eu virava a Cidade Negra [música do grupo de reggae brasileiro] em cima: Amor que não se pede, amor que não se mede [cantando] Aí eu virava Skank [música do grupo de reggae brasileiro], tudo em cima das músicas de batida black, e o pessoal endoidava nos baile (sic) (Entrevista concedida por Welbe Colombo à autora em agosto de 2016).

Welbe faz referência a necessidade de ter a “noção de batida, de compasso” que ele demonstra como sendo algo intuitivo, que não dá tempo de pensar ou contar, que é preciso “desencanar” para não ficar “robótico”. Ele relata que sua maior habilidade não era os scratches, mas a arte de combinar sons diferentes mantendo o ritmo da “batida black” que agitava o baile. Para Welbe o ritmo é tão intuitivo quanto para Ganjaman. Já Marcelo Cabral acredita que é possível desenvolver a habilidade rítmica, apesar de concordar que para algumas pessoas é muito fácil, como quando alguém senta pela primeira vez na bateria e já sai marcando uma levada sem erro e com uma “pegada” que chama a atenção. Óbvio que tem o negócio do talento, tem gente que realmente você vê, sentando na bateria pela primeira vez, a postura, o jeito que o cara pega… ele já tira o som melhor que o outro, já toca com um pouco mais de, de, já tem um estilo assim, as vezes… primeira vez que o cara tá tocando, já tem uma pegada boa, um ritmo legal, mas as vezes o outro ali que não é tanto assim, se dedica mais e consegue ir mais longe que o outro. Mas aí se o que tem talento estudar... aí fica um negócio… (Entrevista concedida por Marcelo Cabral à autora em agosto de 2016). 113

Como Cabral chama a atenção, independente do dom parecer ou não inato, o processo de desenvolvimento essencial até mesmo para que demonstra a “pegada” ideal desde a primeira vez que experimenta tocar um instrumento. E o processo de aprendizagem vai exigir tanto a dedicação do aprendiz quanto os recursos necessários. Para se desenvolver como baterista é preciso ter pelo menos a bateria e a dedicação. Mas sem dúvida que um professor como mediador desse processo pode acelerar ainda mais o aprendizado. Mas nem sempre é possível ter o instrumento, que dirá pagar um professor ou curso. É nesse sentido que a formação musical de determinados músico não dependem unicamente do dom, e as vezes nem mesmo a vontade de aprender é suficiente. Como Gagné (2008) destaca em seu modelo, o ambiente interfere diretamente no desenvolvimento do talento no sentido de fornecer os recursos necessários. Para quem não pode financiar os custos da formação musical é preciso contar com a colaboração de outras pessoas, com a sorte ou o acaso de conhecer pessoas que possam dar algum suporte nesse processo. DJ Marco conta que quando começou a tocar nos bailes da vizinhança ele não tinha ainda muitos discos e por isso começou a fazer festas com fitas cassete. Com esta idade, 13, 14, 15 eu já fazia os bailezinhos na minha quebrada. Eu gravava fita do rádio, não tinha dinheiro para comprar vários discos, só tinha poucos discos. Então eu gravava fita do rádio, gravava as músicas do rádio é… e saía sexta, sábado à noite na minha vila com a calça e a blusa cheia de fita... Podia estar o calor que fosse, que eu saía de blusa, só para carregar as fitas. E eu mais meus amigos, a gente entrava de penetra nas festas e ainda ia lá e dominava o som…[risos] (Entrevista concedida por DJ Marco à autora em agosto de 2016).

Mas por sorte ele acabou sendo convidado a fazer parte de uma equipe de som que tinham discos, mas não tinham toca-discos profissionais e tocavam com “aparelho três em um”, um conjunto de toca-discos, amplificador, radio e toca-fitas que era vendido para uso doméstico. Eu, lá na minha vila a gente montou uma equipe de baile que não andava muito, a gente era muito moleque e tal, aí tinha um pessoal mais velho que tinha equipe, que me viu tocando… e aí me chamaram pra entrar na equipe deles. Aí eu comecei a tocar mesmo, com eles, assim, sempre tinha alguma coisinha para tocar, um aniversário, um casamento, lá na vila mesmo ou perto. Mas só que eles já tinham disco mesmo, eu ia para tocar com eles disco, nos discos deles… J: Com dois tocas discos? M: É, três em um, aparelho três em um, não tinha toca disco, sempre dois três em um, né? Eu tinha um três em um e eu levava também, mas eles também tinham... (Entrevista concedida por DJ Marco à autora em agosto de 2016). Assim que pode, DJ Marco começou a frequentar a Galeria do Rock, na rua 24 de maio o centro da cidade de São Paulo, conhecida como marco zero do hip hop nacional, onde Nelson Triunfo começou as rodas de dança de rua (KASEONE & MC WHO?, 2016). Para DJ Marco,

114 nem sempre era possível comprar discos, mas esse hábito foi fundamental para sua formação como DJ, pois com a colaboração de alguns vendedores das lojas ele pode conhecer mais disco, ampliando o seu repertório musical. Eu comecei muito a vir aqui para a galeria. Pegava o busão, não pagava passagem… Ia pra escola, trabalhava, e dava um jeito de vir aqui no sábado. Chegava aqui no sábado de manhã logo cedo...vinha com os amigos também da vila… até eu começar a trampar de office boy. Aí vim trabalhar de office boy aqui no Centro, aí meu, na hora do almoço eu tava aqui na galeria, então eu tava aqui na galeria todo dia. Eu comecei a sacar todos os discos, eu sabia todos os discos que chegavam, eu sabia tudo que era novidade, e comecei a sacar as músicas antigas também...Às vezes eu estava na loja e chegava alguém para procurar um disco e eu sem ser o vendedor eu já sabia onde estava, mas eu fui muito ajudado pelos vendedores aqui das lojas, sabe? Disco Mania, Truck’s. Eu não sei muito, não tenho um bom inglês, mas naquela época não tinha nada, e eles me falavam o que os rappers norte americanos estavam falando… os MCs tavam falando. Eles me mostravam muita coisa, e as vezes eu vinha aqui de chinelo, e pedia para ouvir uma música e tinha cara que falava assim: “ Você vai comprar o disco?” E eu falava:” Não, só quero conhecer…”, aí ele falava: “ Então não vou tocar!” Mas tinha o vendedor de outra loja que falava: “ Se quer ouvir, então eu toco!” , “ E este aqui , você conhece este outro?” e aí ele ia lá e abria e então… Tive um ensinamento, né? A gente tem, né? Quando a gente procura, sempre aparece alguém que tá vendo e que te dá uma dica, que te mostra, que te mostra o caminho, né? E assim, eu aprendi muito dentro desta galeria, da 24 de Maio, muito, de verdade… (Entrevista concedida por DJ Marco à autora em agosto de 2016).

Além do “ensinamento” que adquiriu frequentando as lojas de discos, ele teve a sorte de conhecer um colecionador de discos que produzia fitas cassetes para vender. Quem lhe apresentou o Raimundo foi seu parceiro Juarez, um dos membros da equipe de som que trabalhava. Segundo conta DJ Marco, Este Rai, ele tinha na época que eu conheci, ele tinha 15.000 títulos de vinis diferentes na casa dele. Tinha disco no corredor, na sala, no banheiro, na cozinha… Aí ele tinha 3 sistemas de som… dentro da casa dele. Aí ele trabalhava com isto. Ele gravava fitas, ele tinha uma clientela gigante de fita cassete. A pessoa ia lá e falava: “ Eu quero uma fita, por exemplo, eu quero uma fita só de Tim Maia”, ia outro cliente e : “Eu quero uma fita só de música italiana” “oh, eu quero uma fita só de blues” aí ia outro e cantava um pedacinho desta música: ”Sabe esta música?”, assim. Aí ele ia lá buscava o disco e falava: “É esta música aqui?”, “ É, é esta música aí mesmo.” “Quero uma fita só de música nesta onda aí.” . Aí este Rai, precisava de funcionário. Ele tinha só um funcionário, e aí ele começou a me recrutar para trabalhar lá com ele. Ele falava: “Você vai gravar de cinco a seis fitas num dia”. Não podia errar, não podia pular, não podia errar, se errar tinha que voltar e gravar de novo… Você gravava como se fosse no baile, mixando, de uma para outra. Eu não sabia mixar muito bem naquela época. Mas sabia mais ou menos. Quando eu cheguei na casa dele, ele tinha duas caixas gigantes de rap, aí ele falou: “Você gosta de rap?” “Eu gosto muito...” aí ele falou: “Tá vendo estas duas caixas aqui, são só de rap.” Eu falei: “Bicho, beleza!”. E ele falou assim: “ Se você tocar a mão nesta caixa eu vou quebrar sua mão! Rap você já conhece. Você conhece blues, você conhece jazz, você conhece rock’ n roll?” “É, eu 115

gosto, conheço alguma coisa.” “ Mas você conhece os nomes? Sabe as capas dos discos? O ano em que foi lançado? A banda? Quantos discos tem? Samba? Samba rock?” E eu não conhecia nada. Aí ele falou: “Então você vai aprender isto aqui, além de você trabalhar e ganhar um dinheiro, você vai aprender sobre os discos, sobre as músicas…” (Entrevista concedida por DJ Marco à autora em agosto de 2016).

Não há dúvida que a experiência de trabalhar com o “Rai” foi crucial na formação musical do DJ Marco. Encontrar um colecionador com um acervo de 15.000 vinis disposto a lhe oferecer emprego e dar a oportunidade de conhecer todo tipo de música com referências completas, não é algo que acontece com muita frequência. A situação ideal para aprendizagem é quando a vontade coincide com a oportunidade, e pelo visto o DJ Marco não perdeu a chance de poder trabalhar com música e aprender ao mesmo tempo. Sua dedicação a esse trabalho lhe rendeu ainda mais uma oportunidade, a de poder se tornar um DJ de verdade. Aí eu fiquei mais de um ano ali com ele, e ele alugava disco. Ele tinha tanto disco que ele alugava discos para outros DJs fazerem festas. E aí eu comecei a ir à noite para tomar conta dos discos dele. Aí eu comecei a tocar, porque os caras falavam: “ Oh, começa o baile aí!” . O Grandmaster Ney, que é um dos grandes DJs aqui de São Paulo, toca até hoje; o Grandmaster Ney e o finado Natanael Valença, os dois eram da Chic Show, a maior equipe que teve aqui, uma das maiores equipes do Brasil. Eles saíram da equipe naquela época, eles eram recém-saídos da Chic Show. Eles montaram uma equipe que chamava SP DJ, aí eles alugavam discos do Rai, e eu ia tomar conta. Aí o Grandmaster Ney falava: “Se quiser pode tocar no começo da festa, quando as pessoas estão entrando ainda e tal, para ir perdendo o medo...” Eu tinha medo de tocar para uma festa para três mil pessoas. Aí comecei a tocar e comecei a acompanhar aonde eles iam. Aonde eles iam eu dava um jeito de ir também, mesmo que eu não fosse tocar, eu dava um jeito de ir. Aonde tinha SP DJ eu tentava ir junto (Entrevista concedida por DJ Marco à autora em agosto de 2016).

A partir daí a sorte já estava lançada e, com o apoio da equipe SP DJ, a profissão de Marco como DJ foi consagrada assim que passou em um concurso para famosa equipe de som Os Carlos. Graças aos recursos disponibilizados por essa equipe de som ele pode organizar um grande evento de rap na FEBEM que levou os grupos Racionais MCs, Região Abissal e DMN, grupos que na época estavam começando a sua trajetória e hoje são referência do rap nacional. Na companhia do MC Rappin Hood, que conhecia desde a infância, frequentou bailes black e shows de rap e black music produzidos pela principal equipe de São Paulo a Chic Show. Quando Rappin Hood começou a organizar o grupo Posse Mente Zulu, convidou Marco para ser DJ, que na época já tinha um outro grupo de rap chamado Camorra com o irmão do KL Jay, DJ do grupo Racionais MC’s. Mas o convite de seu parceiro Rappin Hood era irrecusável e ele acabou deixando o grupo Camorra para ser o DJ do Posse Mente Zulu. A partir daí ele foi conhecendo outros meios musicais, trabalhou como produtor musical, fez trilha sonora em estúdio, mas nunca deixou de ser DJ de festa.

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quando eu fiz o…. na Febem eu acabei tendo uma amizade muito forte com o KL Jay e os irmão deles e eu frequentava muito a casa do KL Jay na época que o Racionais tava começando assim, lançou o primeiro disco e tal, e ele me ensinou muita coisa assim também em relação ao Rap com relação a técnica e tal, porque eu era DJ de baile, era um DJ de festa, não era DJ de performance. O KL Jay me ensinou muita coisa também, fiquei muito anos ali aprendendo muita coisa com ele tanto que a gente tem a festa até hoje, que é o Sintonia, a gente ta junto praticamente toda semana, ta junto… mas de 20 e tantos anos de amizade enfim... (sic) (Entrevista concedida por DJ Marco à autora em agosto de 2016).

A partir daí ele foi conhecendo outros meios musicais, trabalhou como produtor musical, fez trilha sonora em estúdio, mas nunca deixou de ser DJ de festa. Além da festa sintonia que faz junto com KL Jay ele, desde 2012, comanda a Discopédia junto com DJ Dandan e DJ Nyack, da banda do Emicida. A Discopédia é uma festa cuja proposta é só tocar vinil. É um resgate da cultura dos Sound System, da forma como Kool Herc começou em seu apartamento no Bronx em 1973. A festa acontece das sete as onze da noite, no formato happy- hour, toda terça-feira no centro de São Paulo, uma esquina adiante do marco Zero do rap nacional, onde Nelson Triunfo começou a roda de dança, o break. É uma festa 100% vinil e 100% black no som e na estética das pessoas que lá frequentam. Jovens trabalhadores em sua maioria, que tem por uma fração de tempo a oportunidade de viver um ambiente musical que volta no tempo. Para os mais velhos é pura nostalgia. A Discopédia e todas as demais festas black que acontecem pelas cidades do Brasil simbolizam hoje um marco da resistência negra que junto com a ascensão social do rap e do funk em paralelo, como irmãos gêmeos contagiam a cultura musical brasileira de forma irreversível.

2.3 Da diversão à formação profissional Quando DJ Marco conheceu Criolo e DJ Dandan ele já era um músico veterano e eminente com muitos eventos artísticos e parcerias em seu currículo. A diversidade de experiências profissionais que teve como DJ de festa ou de grupos de rap, ou como produtor musical trabalhando em estúdio, somada a sua paixão por músicas de todos os tipos colecionadas em formato de vinil garantiram uma formação musical de habilidades múltiplas. Pode-se dizer que no processo de aprendizagem de música sem escola, sem um padrão de ensino, lançado ao acaso, a multiplicidade de possibilidades de expressão musical decorre tanto da vontade que orienta cada músico a seguir por um caminho ou outro, mas também pela necessidade de se adaptar a oportunidade de trabalho que lhe é oferecida. No meio musical de produção independente a profissão de músico começa cedo, como um trabalho informal, as vezes até pelo prazer ou diversão, mas como uma opção de sustento em que o útil se soma ao 117

agradável. A dedicação e persistência de Marco em trabalhar com música lhe rendeu uma carreira sempre em ascensão. De scratch em scratch, de festa em festa, entre gravações e produções ele conseguiu se estabilizar profissionalmente e não precisou mais complementar sua renda com vendas. Fazia produção e gravava scratch também...foi aí, nesta de fazer jingle, eu acabei conhecendo a Céu e os caras mostraram o disco da Céu pra mim com duas músicas aí eu sai gravando, já tinha gravado Zélia Duncan também...aí sai gravando, e já logo de cara, já na mesma noite que eu gravei eu conheci a Céu a gente acabou saindo para uma festa junto… o Antônio também, o Antônio Pinto… e aí eu falava pro Roberto Vilares: “Mano, você tem que gravar o disco desta mina, mano” Aí os caras: “ Nós já tamos no esquema para gravar o disco dela…” aí eles acabaram gravando… em parceria com o francês, o dono da Hugo Jungle… E aí eu gravei quase todas as músicas do primeiro disco… além de ter ajudado na produção também… aí no final do disco a Céu falou: “Meu, não tem como você não entrar na banda, porque você gravou em quase tudo… você topa entrar?” eu falei: “Pô, demoro!” Entrei como DJ na banda da Céu… aí fiquei 10 anos com a Céu, aí nestes dez anos eu toquei seis anos com o Max B.O. que era o apresentador do Manos e Minas e fazia os shows, depois, um pouco mais para frente fazia aqueles shows do Criolo um pouco depois que ele lançou o Ainda Há Tempo, naquela época da Rinha dos MCs, aí, tava ali sempre alternando.. Aí acabei entrando para a banda do Rodrigo Campos também…(sic) (Entrevista concedida por DJ Marco à autora em agosto de 2016). A dedicação e persistência de Marco em trabalhar com música, e a sua versatilidade em se adaptar a qualquer tipo de trabalho, de DJ de festa a produtor musical, lhe rendeu uma carreira sempre em ascensão. De scratch em scratch, de festa em festa, entre gravações, shows e produções ele conseguiu se estabilizar profissionalmente. Já, para Welbe que se especializou apenas em DJ de festa, o que foi sua fonte de renda durante a adolescência e início da vida adulta, depois que as escolas da sua região ficaram impossibilitadas de realizar “bailes pró- formatura”, a sua atuação profissional se reduziu a festas particulares, casamentos e aniversários, que ele faz até hoje, mas que manteve sempre como um trabalho complementar. A sua experiência como DJ de festas de “black music” somado a sua qualidade de “DJ eclético” foi o seu principal cartão de visita: seu show era sua melhor propaganda e que lhe garantiu, até os dias de hoje, a sua clientela. Porque eu sou um DJ eclético, hoje em dia você pega um DJ novo, o cara só sabe tocar funk, eletrônico e black, e eu não, eu sou um DJ bem completo. É que nem eu falei, eu faço festa evangélica, faço debutante, faço casamento e toco tudo o que o pessoal quer ouvir, entendeu. Por isso que nunca precisei fazer um cartão de visita, nem nada, é tudo retorno do meu próprio trabalho. Eu só não fiquei bem, porque eu tenho potencial, mas eu não acreditei 100% eu não entrei firme. Eu deixei secundário, sempre tive meu trabalho fora (Entrevista concedida por Welbe Colombo à autora em agosto de 2016).

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Já Marcelo Cabral, desde que deixou de ser skatista profissional e optou por estudar música de verdade em uma escola particular chamada Groove no bairro de pinheiros em São Paulo, começou a trabalhar como professor particular e fazer todo e qualquer tipo de show que aparecesse. Parei de competir em 90 e em 94 eu comecei a estudar música, sério assim, né? De falar não, é isto. Aí eu estudava o dia inteiro, depois dava aula. Vivia de dar aula e começar a tocar assim aos poucos, e estudava, estudava, estudava...era isto assim...Eu fui tocando aos poucos com cantoras, ou música instrumental, bem aos pouquinhos assim, das coisas mais... toquei muito em festinha, casamento, hotel, piano bar, é... evento não sei aonde...destes caras de triozinho de Jazz assim sabe? Baixo acústico, piano e bateria, aí ia lá de terninho, baixo acústico, amplificadorzinho, chegava lá, tocava uma hora, duas horas... Toquei muito praça de alimentação... qualquer lugar que você imaginar eu toquei. Muito, muito, muito. Em qualquer lugar, qualquer pessoa que me chamasse, a vontade era de tocar, sem nem querer saber, era só tocar, tocar. Aí junta, tocando de segunda a segunda, né? Um dia um cachezinho de reais, outro de 100, em outro de 80, o outro não sei o quê. De repente tem um show mais bacana, mas já toquei bastante em hotel, às vezes roda de samba, ia tocar aqui, ia tocar lá no Rio, as vezes também...lá no Carioca da Gema, com uma cantora (Entrevista concedida por Marcelo Cabral à autora em agosto de 2016).

Mas Cabral não se restringiu a ser instrumentista e a sua curiosidade o levou a querer mexer com produção musical. Ele investiu em um modesto home Studio e com a colaboração de amigos foi aprendendo a mexer nos softwares de edição de música. Começou a aproveitar a oportunidade de ajudar amigos com gravações simples e quando percebeu já estava produzindo de artistas novos que se lançavam na cena. Aí eu comecei a fazendo e aceitando também qualquer ajuda que qualquer um precisasse sabe, cantora que precisasse de uma ajudinha, eu falava, não deixa pra mim, traz aqui eu abro aqui, não sei o que lá...acho alguma coisa, fico induzindo, apertando mil coisas assim… aí quando surgiu em… não lembro quando foi...um amigo meu que a gente já tava fazendo um monte de coisinha junta, de publicidade, gravando junto as coisas assim também, o Daniel Ozi, que a gente fez o disco da Lurdes e o do Sombra. Aí o primeiro que eu fiz foi o da Lurdes. Ele falou: - “Pô tem uma menina aqui com um disco pra gente produzir, você não ta afim da gente fazer junto?” Aí eu falei: Muito! (Entrevista concedida por Marcelo Cabral à autora em agosto de 2016).

Apesar de ter estudado música em escola particular a sua formação como produtor musical foi autodidata e só contou com a colaboração de colegas tanto para lhe ensinar a mexer nos recursos como lhe convidando para produzir junto. A profissionalização acontece ao mesmo tempo que a aprendizagem em um processo experimental que dá certo. E cada experiência vira referência para próxima. Assim o currículo do músico vai sendo construído sem um planejamento prévio, por acaso, de acordo a vontade e a oportunidade que surge a sua frente. 119

Não queria nem saber assim, tava só: “Pô, vamos fazer isto aí!” Aí comecei a entender a prática, mas já tinha umas coisas na cabeça do que eu gostaria, do que eu queria, já tinha fuçado bastante em casa, mas como primeira produção assim, foi este. Foi da Lurdes. Aí você começa, igual a também aprender a tocar, você também começa a tipo: quem são os produtores legais e também os que eu vou gostar também, de repente o cara é bom e não tem tanto haver com você assim, mas eu vendo, não sei o que, eu podia ir na casa de um, ou passar no estúdio dum cara bom aonde eu ficava quietinho ali e vendo como é que o cara fazia, como ele pensava sabe? Ah isto é legal, isto não é legal, e o cara falando...ah sabe? “- A agora isto é legal, isto não é.” Ou as vezes sem falar nada você já vê o cara fazendo, e você já tá aprendendo pra caramba… (Entrevista concedida por Marcelo Cabral à autora em agosto de 2016).

Com 18 anos de idade Daniel Ganjaman acabou a escola e saiu de casa para morar no estúdio de ensaio que montou em um sobrado alugada, localizado no bairro de Pinheiros. O investimento que contou com o apoio do pai e dos irmãos não foi em vão, pois a demanda era grande. Para ele nunca houve uma intenção consciente de se tornar produtor musical. Segundo ele, isso aconteceu por causa do estúdio, porque precisava de alguém para pilotar isso aqui. E eu era o maluco, na época por música, e aí coisa de instrumento timbre e tal, já tinha uma fixação por isso. Quando eu entre pra essa onda de engenharia de áudio, pra mim foi, porque aí eu era aficionado pelo negócio, ficava o tempo inteiro mexendo nos equipamentos, tentando entender o que cada equipamento fazia. Aí pegava as bandas que iam ensaiar, na época o estúdio era só de ensaio, era um sobrado, uma garagem, praticamente. E aí eu pegava as bandas que tavam ensaiando, microfonava, começava a tirar som, gravava, falava “nossa, olha só, o negócio é por aqui mesmo...” tal e aí, com isso eu comecei.... (Entrevista concedida por Daniel Ganjaman à autora em agosto de 2016).

Mas a sua “loucura” por querer aprender e entender os recursos de engenharia de áudio somada a sua habilidade como músico lhe garantiu a oportunidade de ser convidado para trabalhar primeiro como diretor musical e logo em seguida como produtor musical. O Apollo Nove, que é produtor, produtor do Otto, na época o Otto tava lançando o primeiro disco dele e ele me chamou, falou: “cara, eu pensei em você pra fazer a direção musical desse trabalho aí do Otto, que acho que você tem a linguagem que tem a ver com o negócio”. Eu virei produtor musical por causa disso aqui, por causa desse estúdio. Porque nessa época ele me chamou assim: “queria que você encabeçasse a parada da banda”. Aí ele mesmo pensou numa banda, montou, chamou umas pessoas e a partir dali eu via o que tava legal, não tava legal do que ele tinha montado e dei continuidade e eu fiz a direção musical do trabalho do Otto mesmo, na raça, assim. Fui, fiquei dez anos trabalhando com o Otto. E foi o, pra mim foi o grande turning point, assim, sabe? O momento de ruptura de uma coisa, que aí eu comecei a trabalhar, foi a primeira vez que eu entrei numa gravadora, sabe, é, pra falar sobre um trabalho que é a Trama, era a gravadora que ia lançar o Otto e foi aí que eu comecei, dei uma profissionalizada mesmo na história. E na mesma reunião, eu conheci o Zé Gonzales que é produtor também, aí a gente produziu muita coisa juntos. Trabalhou com Racionais, fizemos MV Bill, Nega Gizza, 509-E, Sabotage. O Zé foi um cara pra mim, foi meu padrinho mesmo nessa

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história, ele que me chamou pra começar a produzir com ele, e foi aí, e foi uma época que muita coisa tava acontecendo e a gente produziu muito, eu produzi muito. Ali eu realmente encarei a coisa de produção musical (Entrevista concedida por Daniel Ganjaman à autora em agosto de 2016).

Apesar de nunca deixar de tocar, seja nas gravações dos trabalhos que ele mesmo produziu, ou participando da banda nas apresentações ao vivo, hoje ele reconhece que o trabalho de produção musical é onde ele consegue concentrar todas as suas habilidades que vão desde criar um beat ou gravar algum instrumento até o domínio da engenharia de mixagem. Para Dandan, apesar de ter se engajado cedo no movimento hip hop, o seu trabalho como MC e DJ não garantiram o seu sustento e de seus filhos. Durante um tempo ele precisou trabalhar formalmente e a música passou a ser uma atividade que acontecia em paralelo. Até que, graças ao apoio de Nelson Triunfo, surgiu a oportunidade de se tornar um professor da cultura hip hop através de um projeto do governo de São Paulo. Essa foi a sua chance de se manter empregado sem ter que se afastar da música e do movimento hip hop. Eu fazia uns bailes na quebrada, né? DJ, fazia uns bailinhos na quebrada, então tipo uns bailinhos, dava um troquinho, né? E já tentei trabalhar formalmente já, eu já trabalhei de: eu fiz um meio curso de marcenaria, fui trabalhar com meu tio duas semanas na marcenaria. Depois eu tentei vender livro, fiquei três dias vendendo livro, muita humilhação bater na porta dos outros, os outros desfazer de você, olhar feio, te xingar, coisa parecida. É, depois eu fui vender produto de limpeza, foi primeira sujeira na minha carteira que teve, carteira de trabalho, que os caras foi lá, levou minha carteira, voltou, sujou só minha carteira, que eu aí fiquei lá só algumas semanas (risos). Não dava... e aí eu sempre nesse paralelo com som, com música, e aí, eu fui trabalhar mesmo, foi em 99, em 99 tinha um negócio de frente de trabalho, 99 eu já tinha umas crianças já, né? Meu primeiro filho, eu tinha 19 anos de idade, meu filho agora em novembro faz 21, é, e aí eu tinha me inscrito na frente de trabalho, aí depois me chamaram, fui trabalhar no Zoológico, fui trampar no zoológico, minha filha tinha acabado de nascer e aí eu fui trampar no zoológico e fazia de tudo lá. Em 2000 eu fiz uma inscrição pra trabalhar como agente de saúde aí eu consegui passar, por causa das minhas ideias loucas, de comunidade, e aí fui ser agente de saúde. Mas aí o Nelson Triunfo olhou pra mim e disse: “Meu, que você tá fazendo?” “Eu estou trabalhando de agente de saúde” “O quê?” “Tô trabalhando de agente de saúde e tal não sei que lá...” “Não! Faz o projeto assim, assim, assado… vai lá na Secretária de Educação em São Paulo, deixa lá no Projeto Arquimedes” deixei lá e aí… fui aprovado, e eu comecei a dar oficina no Ermelino Matarazo, foram minhas primeiras oficinas… eu me introduzi na arte e educação… E fui lá para a Emílio Matarazzo cara, e foi difícil pra ‘carai’. Sair lá de Diadema para Matarazzo era pesado. Mas eu ia toda terça e quinta. Era minha oficina. E eu dava oficina de DJ e MC. (sic)(Entrevista concedida por DJ Dandan à autora em agosto de 2016).

Mas não foi por acaso que seu projeto foi aprovado, pois ele sempre se manteve engajado não apenas com a música, mas também com a ideologia que perpassava o hip hop desde adolescente e já tinha em seu currículo a experiência com oficinas da posse do Campanário que fundou em Diadema, como foi relatado anteriormente. Em 2001 quando 121

começou a trabalhar dando aulas em Matarazzo ele já era um MC experiente, já tinha tido alguns grupos de rap e organizado eventos e festivais. Além de fazer o percurso que todos faziam na época de frequentar bailes. Foi pelos bailes das quebradas que ele conheceu Criolo, conheceu o trabalho do grupo Pacto Latino do qual Criolo fazia parte, que chegou a participar do festival Hip Hop festival 2000, que ele organizou. Como explica Dandan a intenção do festival era gravar um CD com os grupos ganhadores. É foi um festival e tal, e aí na final não foi... eles foram pra final, mas não, não rolou…. Não rolou do Pacto Latino gravar. E a gente continuou sendo parceiro e tudo mais. Mas o que deixou a gente mais grudado mesmo, foi 2005 para 2006, foi quando a gente começou a pensar na Rinha dos Mc’s, começamos a pensar este projeto. Ele já tinha saído do Pacto Latino já e tava começando a gravar o Ainda Há Tempo, eu acompanhei algumas coisas, mas o que deixou a gente mais junto foi a coisa da Rinha dos MC’s, e aí da Rinha dos MC’s a gente não se largou mais (sic) (Entrevista concedida por DJ Dandan à autora em agosto de 2016).

O Pacto Latino foi o último grupo de rap que Criolo participou. Logo depois de sair do grupo, ele começou a reunir composições para gravar seu primeiro álbum como MC solo. Sobre o álbum, Ainda Há tempo (CRIOLO DOIDO, 2006)75, Criolo diz: (...) esse álbum que foi lançado em 2006, ele começou a ser costurado em 2003. Eu já tinha todas as canções e fui ao estúdio em 2003, pra começar a gravar ele. Fiquei um ano e meio gravando, depois esse álbum, com a ajuda de muitos amigos, todas as, os beats foram presentes de amigos, e depois que esse álbum ficou pronto ele ficou mais um ano e meio engavetado porque eu não tinha dinheiro pra lançar. E quando lancei, lancei apenas 500 cópias (CRIOLO, 2012).76

Quando lançou este álbum Criolo já tinha 31 anos de idade e 20 de carreira, visto que começou a compor aos 11 anos. Ele já era um MC e compositor de rap veterano, contudo a falta de recursos para investir na produção do seu trabalho era um fator limitador. Como diz DJ Marco, lançar um CD naquela época não era tão fácil quanto hoje, em que é possível disponibilizar o áudio na internet e compartilhar com o mundo todo. O álbum Ainda Há Tempo nem sequer chegou a ter um evento de lançamento, e quando o CD ficou pronto se esgotou instantaneamente. As músicas que compõe o álbum já eram conhecidas do público, pois ele já as apresentavas nos eventos de rap. Hoje é possível conhece-las graças a pirataria. O áudio do álbum é disponibilizado no youtube e em sites de download. Não fosse a tecnologia da pirataria somada ao recurso da internet seria impossível um jovem de hoje ter acesso a essa obra prima.

75 CRIOLO. Criolo Doido - Ainda Há Tempo (2006) [FULL ALBUM] [Data de upload: 21 março, 2014]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=gGP2fQenAiY Acesso em: novembro, 2016. 76 CRIOLO. Hans Ulrich Obrist entrevista Criolo na Escola São Paulo (legendado), [Data de upload: 25 julho, 2013]. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=pAMPqT3GrNY Acesso em: 13 outubro, 2016.

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Nem o próprio Criolo tem esse CD. Foi no mesmo ano que saiu o CD que Criolo e Dandan deram início a Rinha de MC’s. Mas a trajetória profissional do Criolo não se restringiu ao rap. Assim que acabou o colegial, antigo ensino médio ele ingressou em uma faculdade de licenciatura em artes e no ano de 1994 ele começou a dar aulas de arte em uma escola pública, o “Eurípedes” no Jardim Lucélia, mesma escola que Welbe fazia os bailes. Segundo Welbe ele mudou o ritmo da escola, aí que entra. Porque todos os professores são de mais idade e ele chegou um professor novo. Ele chegou um professor novo, ninguém falava que ele era professor. Ele ficava com os alunos, ele se misturava, ele parecia aluno, então aí já... e como ele era um cara novo, ele já entendia a mesma linguagem da juventude e ali ele revolucionou a escola. Vixe! Antes dele cantar nos bailes, é antes dele cantar ele já tinha conquistado o pessoal, os alunos e tudo. Aí foi quando ele viu eu no baile, ele falou que cantava rap e pediu pra cantar, aí a partir daí, foi um negócio que a amizade já bateu sem a gente saber (sic) (Entrevista concedida por Welbe Colombo à autora em agosto de 2016).

Em uma reportagem para revista Trip Criolo fala sobre seu trabalho como educador social em ONGs, um projeto de resgatar crianças e jovens da rua77. Também trabalhou como “empacotador, caixa, repositor, vendedor de roupas de porta em porta, homem-placa” e que “abandonou a faculdade de artes (e, em uma segunda oportunidade, a de pedagogia) por perrengues financeiros”, segundo reportagem da Revista Rolling Stones78. Esse tipo de “corre” também foi necessário para DJ Marco que mesmo com todas as oportunidades que teve de trabalhar como DJ quando jovem, sempre precisou complementar sua renda com um trabalho informal. Ele diz que era “marreteiro”, a pessoa que vende de tudo na rua. Ele explica que era um trabalho adequado pois não interferia na sua rotina de shows e festas. Ele podia trabalhar a tarde como marreteiro, de noite como DJ e tinha as manhãs para descansar. Se tivesse que trabalhar em um emprego formal não conseguiria conciliar os horários. A informalidade do trabalho profissional do músico é um atestado de que a música não é valorizada como profissão. Até mesmo quando o músico se torna um artista de renome, uma celebridade, sua estabilidade profissional é carregada pelo seu talento, pois se sua arte não agradar a muitos, quer dizer, se não houver um público pagante nos shows, o cachê não é suficiente para garantir uma renda mensal a todos os profissionais que estão envolvidos em um

77 CRIOLO. [Reportagem por Bruno Torturra Nogueira] Criolo: Hora da prova In: Revista Trip #203 [Publicado em: 22 setembro, 2011. Disponível em: http://revistatrip.uol.com.br/trip/criolo Acesso em: 6 nov, 2016. 78 CRIOLO. [Reportagem por Gustavo LIMA]. Um em um Milhão: Alheio ao sucesso, CRIOLO começa a sentir os efeitos de uma carreira promissora que já extrapola o universo do rap. In: Rolling Stone Ed. 59 – Agosto, 2011. Disponível em: http://rollingstone.uol.com.br/edicao/59/um-em-um-milhao#imagem0 Acesso em: 6 novembro, 2016.

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show, sejam eles músicos ou não músicos. Isso vale tanto para quem toca música popular como para os que tocam música de concerto. Tirando os contratos como músico de orquestra, só resta o vínculo como professor da educação básica ou do ensino superior. Contudo, ser professor de música não é ser um musicista e, entre professores de música há uma significativa parcela de músicos que se tornaram professores apenas pelo fato de não conseguirem se sustentar apenas com a sua arte. Para o músico popular, é preciso mais do que apenas habilidade e talento para conseguir sobreviver de música. Como Marcelo Cabral relatou ele já tocou em todo tipo de ambiente e somando um cache com outro foi aumentando a sua renda. Mas a profissão de instrumentista não foi suficiente e ele começou a trabalhar como produtor musical e arranjador. Ganjaman sempre teve o funcionamento do estúdio como suporte, e empreendeu ao longo de sua carreira todo tipo de atividade, desde instrumentista à organizador de eventos, como a festa Seleta Coletiva, que organizou durante alguns anos em São Paulo. Na verdade, criar eventos musicais, acaba sendo uma alternativa lucrativa que junta o útil ao agradável. Além da bilheteria, existe a possibilidade de ficar com o lucro do bar, vender produtos como camisetas, bonés, discos e DVD, sem se distanciar do ambiente da música. O músico, independente do seu talento, tem de desenvolver outras competências para ter sucesso como empreendedor de eventos de música. A Rinha dos MC’s foi um empreendimento de sucesso que garantiu, durante um tempo um bom trabalho para Criolo e DJ Dandan.

2.4 Ponto de encontro: dos bailes black à Rinha dos MC’s Na zona sul caramba, talentos que não desistem Amor pela música nos caminhos que vivem Sucesso é ter saúde e respeito onde pisem O Slim fez o beat, o Criolo se organize (CRIOLO, trecho da canção Breaco, 2006).

A Rinha dos MC’s é um caso à parte tanto na trajetória do MC Criolo e do DJ Dandan quanto na de muitos jovens que foram atraídos pela arte do rap. Se nos anos 80 e 90 os bailes black com a estrutura dos Sound System foi o ambiente em que o rap nasceu, as batalhas de MC uma prática de rap freestyle, onde os MCs improvisam o texto em um duelo de perguntas e respostas, se tornou uma verdadeira escola para formação de novos MCs. Em entrevista a Pedro Gomes Criolo descreve como surgiu a ideia de criar esse evento. A ideia da Rinha nasceu na festa de aniversário na casa do Slim, Slim Rimografia, um grande poeta. E o pessoal de lá sempre gostou muito de fazer freestyle. O Slim é conhecido como um grande cara do freestyle, certo? Então na casa dele teve o aniversário, aí os caras quiseram fazer uma batalha de freestyle e aí, eu falei: “tá, então eu vou apresentar essa batalha” (...) aí rolou.

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Aí depois que acabou a festa, aí, foi a maior felicidade, todo mundo se divertiu, tá ligado? E é uma coisa boa a gente se divertir, porque a gente sofre tanto cara. Então, essa nossa arte nos proporcionar esse momento de diversão, é muito legal (sic) (CRIOLO, 2009).79

Como conta Dandan a Rinha é uma semana mais nova que a batalha de Santa Cruz. Uma roda de hip hop que acontecia todo sábado em frente à entrada desse metrô da estação Santa Cruz em São Paulo. Só que a Rinha dos MC’s da forma como foi planejada passou a ser mais do que apenas uma batalha de MC’s, como explica Criolo juntou a sua vontade de “ver o pessoal fazendo o freestyle” com o “desejo do Dandan, tocar o som em vinil, porque ele sempre achou que era algo forte, importante que tava se perdendo, um tipo de som que tava se perdendo, né, naquela época e a valorização do tocar com vinil” (sic) (Entrevista concedida por Criolo à autora em agosto de 2016). Ele ainda salienta que São Paulo era o berço do rap mas faltava esse tipo de evento, ele faz referência ao fato de no Rio de Janeiro a prática das batalhas de MCs ter começado primeiro. Em outra entrevista e conta que A rinha nasceu também da gente ter visto a Brutal Krew e a Liga dos MCs nascer no Rio de Janeiro, que naquela época também tinha a Batalha do Real, então esse foi um grande exemplo pra nós. Quando a gente viu eles fazendo aquilo, a gente falou “Pô a gente gostaria de fazer algo, também fazer em são Paulo. É.. então a gente só fez um ambiente pra que os jovens se encontrasse, e a gente sabia que a mágica ia acontecer. Porque o irmão não sabe que o cara do lado dele é fotografo, ou que o sonho dele é ser fotógrafo. O outro cara que faz o rap, não sabe que o outro irmão toca um violão, um teclado ou uma sanfona que pode contribuir na construção do que ele tá fazendo. O outro cara é escultor, o outro cara gosta de escrever história em quadrinhos. Então a gente só criou um ambiente no nosso bairro para que os jovens pudessem se encontrar e a partir daí, com a ajuda do time do logo, do pessoal do Pentágono e tantas outras pessoas, que sozinho, ninguém consegue nada, a gente tinha certeza que a mágica ia acontecer. E o rap é algo extremamente forte pra nós, pelo menos pra nossa geração. Imagina você escrever uma poesia, você saber que tem a oportunidade de você cantar e seu som sair na caixa de som e tem alguém vendo. Tô falando de um jovem de 12, 13, 14 anos de idade. Então isso traz uma energia pra você de esperança de algo, que te dá uma energia pra você continuar a passar os dias, você começa a construir sonhos. E os nossos sonhos, o que que eram os nossos sonhos? Poder escrever a melhor letra possível, descrevendo nossa realidade e mostrar pro nosso vizinho (CRIOLO, 2016).80

79 CRIOLO. [entrevistado por PEDRO GOMES]. Criolo Doido - Programa Bastidores na Tv UOL. [Data de upload: 6 dez, 2012] https://www.youtube.com/watch?v=w9upZl6V-ao&nohtml5=False Acesso em: 7 junho, 2016. 80 CRIOLO [entrevistado por Ronald RIOS]. Histórias do Rap Nacional | Criolo, DJ Dandan e Rinha dos MCs | Episódio 6 [Data de upload: 4 março, 2016] Disponível em: Acesso em: 7 junho, 2016. 125

Como foi possível observar a partir dos depoimentos, a motivação para a criação da Rinha dos MCs veio de várias formas, desde a experiência da brincadeira na festa de aniversário até o exemplo do que já acontecia na cidade vizinha. Mas o sonho, apesar de ter se transformado em realidade, passou por algumas dificuldades. No começou eles precisaram utilizar a estrutura que havia disponível, mesmo que não fosse a ideal para a festa que planejavam criar. É, começou aqui num lugar onde as pessoas guardavam cavalo, né? Porque quando a gente fala de rap, fala de hip hop e autoestima as pessoas parece que... parece que não bate: favela, samba, rap não bate com coisa positiva. Então a gente vem ocupando os espaços que nos é dado e a gente ressignifica, né? (CRIOLO, 2011).81

Além de ressignificar o espaço que eles tiveram disponível de início, ainda havia mais uma motivação para a criação desse evento e que provavelmente foi o que favoreceu não só a viabilidade do projeto, mas também o seu sucesso. Ele explica: (...) eu tinha uma outra necessidade em particular que é o seguinte: as pessoas da minha comunidade não têm condição de ficar transitando muito nas festas que rolam no centro. As vezes por valores materiais, as vezes não tem aquela grana, ou porque trampa muito mesmo, tem que ajudar a família, não dá, tem que acordar cedo num outro dia... eu falei então: “vou fazer uma festa, com esse mesmo por cento de qualidade pras pessoas, num preço justo”. No início começou um preço irrisório, três reais, tá ligado, e mulher não paga, era assim. Hoje nós estamos estourando, cinco reais, mulheres três. Você vê que o rap tá forte, tá bombado. (sic) (CRIOLO, 2009).82

Mas a rinha foi crescendo conforme sua popularidade e alcançando novos espaços para fora do celeiro, do Grajaú e até mesmo da Zona Sul. Hoje a rinha é um ponto cultural da cidade, sai em agendas da prefeitura, sai em agenda do pessoal do Ação Educativa, que deu uma força muito bacana. É um ponto cultural, não vai só quem gosta de rap e hip hop, vão todas as pessoas e gente do Brasil todo, a gente fica feliz. Eu queria ressaltar também que lá é um espaço onde as pessoas podem se encontrar e se confraternizar, independente da música que gosta (sic) (CRIOLO, 2009).83

Segundo Dandan, A rinha na verdade, foi o start, foi a vitrine para tudo isto que acontece na nossa vida hoje. Talvez se não tivesse Rinha dos MC’s, talvez não tivesse acontecido isto. Porque a intenção da Rinha dos MC’s era só eu e a rapaziada para ouvir um som e dar espaço para a garotada que gostava de rimar, fazer uns improvisos lá, rimar e tal, fazer as paradas, e aí foi se transformando em outra coisa, né? Na época já estava surgindo os fotógrafos de quebrada, tinha muito grafiteiro ali no Grajaú é forte a cena do grafite. E aí a gente começou

81 CRIOLO. [Entrevistado por TATIANA IVANOVICI] Criolo, o MC fala sobre sua trajetória – Data de upload: 7 julho, 2011. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=3EzejiS4TVA Acesso em: 20 maio, 2014. 82 CRIOLO. [Entrevistado por PEDRO GOMES]. Criolo Doido - Programa Bastidores na Tv UOL. [Data de upload: 6 dez, 2012] https://www.youtube.com/watch?v=w9upZl6V-ao&nohtml5=False Acesso em: 7 junho, 2016. 83 Ibid.

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a fazer alguma coisa de exposição. Dar espaço para os caras poderem fazer exposição. Expor o trabalho e tal...E aí mais para a frente tinha o pessoal do Xemalami, tinha oficina de xadrez, que era sensacional também as oficinas de xadrez. E aí a Rinha dos MC’s acabou sendo vitrine. A gente foi criando situações na Rinha dos MC’s, por conta do que a gente vivia. Mas tinha dia que não tinha, porque eram oito Mc’s só que tinha dia que não tinha 8 MC’s, tem 6 MC’s, aí a gente inventou um bagulho chamado Double Three. Que que era: você tem 6 MC’s, vai sobrar 3, como é que vai fazer? Os três vão batalhar entre eles.... Então eles batalham. É este que batalha com este, com este...Tipo assim, 1 vai ter de enfrentar 2. Vai indo revezando. E aí a gente falava, o piorzinho sai. Saía e ia os 2 para a final (sic) (Entrevista concedida por DJ Dandan à autora em agosto de 2016).

DJ Marco considera que a Rinha dos MC’s foi vitrine não só para o Criolo, mas para outros MCs. Ele conta como acabou fazendo parte dessa história. a Rinha dos Mcs ficou, veio aqui pro centro, ficou num lugar ali perto do Anhangabaú um tempo e aí parou. Acabou a casa, acabou fechando e acabaram ficando sem ter lugar pra rolar e é uma puta festa, é a Rinha dos MCs era muito foda assim, puta bagulho louco, puta vitrine pra vários MCs, né? A Rinha dos MCs trouxe Projota, Hashid, o Emicida. Meu, a Flora foi lá rimar. Vários MCs, o Cem Porcento, vários MCs apareceram na Rinha né? Então é uma festa que não podia parar. Aí eu tava morando aqui no centro e apareceu uma casa pra eu fazer festa e eles queriam mais festas numas outras datas. Eu falei: “oh, vamos fazer essa festa que é legal de eu fazer de segunda- feira, e tem uma festa que eu acho que é boa de vocês fazer que é a Rinha dos MCs”. Aí troquei ideia com o Criolo, troquei ideia com o Dandan levei eles lá na casa, eles conversaram na casa. Só que a casa não tinha toca discos e eu morando aqui no centro, eu tinha toca discos e os caras falaram: “Meu, a gente não tem toca-discos, como é que vai fazer?” eu falei: “Eu empresto pra vocês, toda vez que eu tiver aqui e tiver o toca-discos, vocês podem pegar e fazer a festa”. Aí eles me chamaram pra tocar aqui também. Puta, era lógico que eu queria, o que eu mais queria era tocar na Rinha dos MCs com os caras (sic) (Entrevista concedida por DJ Marco à autora em agosto de 2016).

Mais uma vez a necessidade da tecnologia adequada a atividade musical foi a circunstância que garantiu o encontro de talentos, a construção de parcerias que são mais do que amizades, são uma verdadeira irmandade. Uma corrente de pessoas que reunida pelos seus talentos concentram esforço em prol de um bem comum, neste caso, a manutenção da cultura hip hop. Os veteranos criam oportunidades para os mais novos desenvolverem seus talentos, habilidades que são aprendidas na troca de experiências, no convívio, na disputa e na resiliência. 127

Figura 4: Filipeta de divulgação de um evento da Rinha dos MC’s84

2.5 Roda de samba das quebradas: quando inovação e tradição caminham junto Enquanto nos anos 80 os bailes black invadiam as quebradas e o rap se tornava a maior expressão da juventude periférica, lá já se localizavam as tradicionais rodas de samba. A infância de Ricardo não foi muito diferente de todos. Morando na Vila Joaniza até seus 18 anos, um bairro localizado na Zona Sul de São Paulo, Ricardo cresceu ouvindo as músicas que seus pais ouviam. Assim, na verdade, é... desde muito cedo já tive a influência dos meus pais, musicalmente falando, dentro de casa, né? Não digo como músico, mas como influência pras coisa que eu escutava. Minha mãe sempre gostou muito de cantar, é... Clara Nunes, Dona Ivone Lara. Meu pai sempre foi, é, sempre foi assim mais, troncudão, mais sertanejo, aquele sertanejo conservador. Então, nas influências que vinham do meu pai, era, Tião Carreiro, Trio Parada Dura, aquela turma lá que fazia uma música que era raiz, que na verdade se torna raiz pra nós hoje. Essa raiz... (sic) (Entrevista concedida por Ricardo Rabelo à autora em outubro de 2016). Como a mãe de Criolo, sua mãe também gostava de cantar Clara Nunes e seu pai curtia música sertaneja. Mas foi graças a um primo que Ricardo se “iniciou” na música, apenas por participar lado a lado da roda de samba que seu primo tocava. E aí eu passei a ter o meu primeiro contato, é, como músico de verdade, nas rodas de samba que aconteciam na própria Vila Joaniza, eu 12 anos de idade, meu primo fazia parte de uma roda de samba, de um grupo de samba lá da Vila Joaniza. E aí ele, talvez por medo de não me deixar solto na minha rua, pra ter a minha presença perto dele, porque lá era um bairro muito perigoso, ele, quando ele ia fazer as rodas de samba ele me levava e me colocava do lado. Ele chegava ali, e colocava, e na época não..., hoje se tem tantan. Tem o tantan de corte, que é o tantan menor, e tem o tantan grande que faz o papel que hoje o Surdo faz, o Surdo substitui o tantan. Na época era timba, Eram timbas. É aquele instrumento que vai fazendo como se fosse um timbal... E na época tinha timba de corte, e o timbão fazia a parte do surdo. E aí ele sempre colocava aquela timba de corte no meu colo. Aí ele pegava na minha mão e

84 Foto extraída da página da Rinha dos MC’s do Facebook. Disponível em: https://www.facebook.com/RinhaDosMcs/photos/a.287143831366135.69780.276084472472071/378486485565 202/?type=3&theater

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falava: “É assim, assim, assim. Para eu poder pegar o ritmo. Depois de uns 4 meses que eu já estava indo para esta roda de samba. Tinha um momento ali que já era a minha canja. Sabe oh! Aí todo mundo vibrava, um moleque, né?! Tinha eu e um outro menino da mesma idade, 12 anos, 13 anos no máximo. Ele pegava a timba maior, eu pegava a timba de corte e a gente tocava na roda de samba. Então, o contato com a música mesmo veio através dos meus pais, certo? Questão de ouvir a música, mas o contato com o instrumento mesmo, comecei a fazer parte de uma roda de samba aos meus 12 anos de idade na Vila Joaniza, uma roda de samba que o meu primo que é um pouco mais velho fazia lá na Vila Joaniza (sic) (Entrevista concedida por Ricardo Rabelo à autora em outubro de 2016). Sua iniciação musical começou na roda de samba, tocando percussão. Ele já era convidado para tocar percussão em todas as rodas de samba da Vila Joaniza, quando a família resolveu se mudar para o Grajaú. Segundo Ricardo, a mudança foi difícil pra ele, apesar de ter sido boa pra família que se livrou do aluguel. Mas para ele que tinha construído suas amizades na Vila Joaniza, se distanciar dos amigos e principalmente das rodas de samba foi um custo. Ele ficou por um ano ainda frequentando as rodas de samba de lá, até resolver encarar o Grajaú de frente e procurar saber o que esse bairro tinha a lhe oferecer. Foi graças a seu irmão mais velho que sua formação musical deu um passo adiante. Eu tenho um irmão que ele é mais velho, né? Um ano mais velho do que eu. E ele já vivia nas rodas de samba. Ele já tinha me mostrado um cavaquinho, desde a época da Joaniza ele já tinha um cavaquinho. Eu ficava vendo ele fazer aquilo. Só que ele não deixava eu pôr a mão! Porque era um xodó: “Não vai pôr a mão...” Aí eu ficava naquela... Diferença de um ano: “Pô, como é que pode, um cara com diferença de um ano, falar para mim que eu vou quebrar, porque eu sou criança...” [risos]. Aí o que que aconteceu? Aí a gente veio para o Grajaú, e chegando no Grajaú ele já tocava bem. Não profissionalmente, mas ele já desenrolava. Aí ele falou: “Vamos montar um grupo.” Aí eu falei: “Como assim vamos montar um grupo?” “Vamos montar um grupo.” Ele falou: “E este grupo vai se chamar Procedimento”. Eu falei: “Sério?” Eu: “Beleza!” Aí eu cheio de razão falei: “Agora eu vou pegar o meu, vou tocar o repique de mão, vou tocar uma timba que serve para mim. Aí eu falei: “ Eu vou de repique!” Ele falou: “Não! Você vai tocar banjo!” E eu disse: “ Mas eu não sei nem pegar! Cadê o banjo, o que que é banjo?” (Entrevista concedida por Ricardo Rabelo à autora em outubro de 2016).

Sem nem saber direito o que era um banjo Ricardo aceitou o desafio de seu irmão. E como não podia faltar, não é possível se tornar um instrumentista sm um recurso principal, o instrumento. Ricardo com o apoio de sua mãe mais o esforço do seu trabalho conseguiu um banjo para iniciar sua carreira de banjoísta. Aí foi onde me despertou aquele negócio, eu já conhecia as músicas do grupo Fundo de Quintal... que a minha referência é o Fundo de Quintal. Apesar de eu ser um cara paulista e tal, eu sou um cara que a minha referência é o Fundo de Quintal, Arlindo Cruz. Porque eu cresci ouvindo aquilo. E aí: “Vai pro banjo!” “Vai pro banjo!” Ele não perguntou se eu queria. Ele falou: “Vai pro banjo!” Eu falei: “Tá Bom.” “E agora? Como eu vou comprar um banjo? Aí entra minha mãe na questão. “Não, você quer um instrumento para você 129

aprender? Eu vou te dar a metade do instrumento” Não me deu o instrumento todo. “ Vai lá e vê quanto custa.” É tanto. Trezentos Reais... na época. “Eu te dou 150,00, os outros 150,00 você” Eu já trabalhava na época né? “ Os outros 150,00 você guarda das suas economias e compra, dá o seu jeito. Porque se eu te der o instrumento todo você não vai dar valor” Aí eu falei: “ Olha aí, ta vendo?” E hoje em dia eu vou entender as coisas. Aí, que que aconteceu? Peguei e falei: “ Beleza, vamos lá comprar” Aí meu irmão foi lá escolher, porque eu nem sabia nem...” Aí eu fui pegar, fui estudar Fundo de Quintal, fui pegar aquelas bolachonas de vinil e: “Aí mano, preciso de escutar, tentar entender o que é que este instrumento faz ...” (sic) (Entrevista concedida por Ricardo Rabelo à autora em outubro de 2016). Em um primeiro momento seu aprendizado foi autodidata. E nesse processo mais um recurso se fez necessário, o vinil e o toca-discos. Mas Ricardo não se satisfez apenas com esses recursos e se inscreveu em uma escola de música particular, no Grajaú mesmo, a vinte metros da sua casa. Ele queria alguém que pudesse lhe mostrar o melhor caminho para tocar bem. R: Aí os caras eram especialistas em samba. Aí eu falei: “Era tudo que eu precisava na minha vida!” Aí fui, peguei, paguei minha mensalidade, fiquei 2 meses, só 2 meses. J: Aprendeu tudo em 2 meses? R: Não. Assim eu aprendi aquele, aprendi a pelo menos o: “ Oh, o caminho é aqui, mas o que eu vou encontrar por ele , eu ia ter que descobrir.. J: Os acordes.. R: É, eu peguei todas as sequências maiores e menores, aí peguei um pouquinho a noção de transporte de acordes... estas paradas. J: Em 2 meses? R: Em 2 meses. J: Pegou rápido, né? R: Mas também o professor chegou para mim e: “ Eu vou te passar uma sequência, mas se você chegar na próxima aula e não aprender, eu vou fazer você passar vergonha na frente de todos os outros alunos. J: A aula era um grupo? R: É tinham vários alunos. Aí eu falei : “O que, vou passar vergonha? Não! Chegava em casa, chegava do meu trabalho, ia para a escola direto, escola de música. Arrepiava. Descia da escola para casa, tomava um banho, comia alguma coisa e, meu instrumento (sic) (Entrevista concedida por Ricardo Rabelo à autora em outubro de 2016). Ele estudou apenas dois messes e se sentiu seguro para dar continuidade a sua formação musical sozinho. O grupo com o seu irmão começou fazendo rodas de samba em casa de amigos. Não satisfeito ele começou a participar de outras rodas de samba. Então aí, toca aqui, toca aqui toca lá... e aí começamos a pegar gosto pela coisa, ouvir muito grupo Fundo de Quintal, tirar de ouvido, eu comecei a tirar música de ouvido. Aí que que aconteceu? Eu comecei a ingressar nas rodas de samba que tinham fora, fora do grupo , eu comecei a ingressar nestas rodas de samba que tinham pelo Grajaú. Comecei a descobrir:” Tem uma roda de samba aqui, tem um roda de samba ali.” Quando pensa que não, eu já estava

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organizando a minha roda de samba. Mas não era a roda de samba do Rabelo, sabe? Aquilo lá eu pô: “ Rapaziada, vamos fazer uma roda de samba todo Domingo. Meio dia. A gente faz do meio dia até umas cinco da tarde. Acabou, vamos para casa.” Mais para que? Par tomar cerveja e se divertir ali, né? Não tinha comprometimento cultural. Entendeu? Aí o que que aconteceu? Destas rodas de samba surge o? J: Pagode da 27. R: Por que? Porque o Pagode da 27 , ele surgiu de uma roda de samba que a gente fez na própria 27. Porque a gente tocava sempre num bar que era na avenida. E aí a gente marcou com o cara tudo certinho, chegamos lá Domingo com os instrumentos o bar fechado. Como é que pode? Aquele monte de gente lá querendo ouvir o samba.. aí falei pra rapaziada: “ Rapaziada, tem um barzinho ali embaixo na 27 em frente a casa da minha mãe, que eu conheço o cara, vamos lá.” Cheguei lá: “ Você empresta uma mesinha, que a gente vai ficar aqui fora, você só dá uma cervejinha aqui para gente tomar, o pessoal da roda de samba. “ Ele falou: “ Pode fazer.” Aí nesta roda de samba começou a aparecer umas 20, 30 pessoas, aí ele falou: “ Domingo que vem aqui de novo?” O dono do bar gostou, né? (Entrevista concedida por Ricardo Rabelo à autora em outubro de 2016).

O Pagode da 27 foi criado em 2005 e é hoje uma roda de samba de referência na cidade de São Paulo, uma roda que Criolo faz questão de divulgar sempre que tem uma oportunidade. Ricardo e Criolo se conheceram através de um amigo em comum e desde então não se separaram mais. Conta Ricardo que sempre gostou de compor e começou a querer cantar os seus próprios sambas no pagode da 27. Mas sempre foi reprimido, pois o criticavam dizendo que ele faz samba de velho. Então, eu tentava implantar nas rodas de samba, e os caras falavam: “ Não vem com esta músicas inéditas não!” Aí eu estava com aquela convicção, tipo: “Mano! Não quero simplesmente ser um músico para contar história, contar assim, ser um narrador de uma coisa que já existe. Eu quero participar desta história aí também”. Entendeu? “Eu quero muito participar desta história” Então eu acredito que o modo mais certo de você participar de uma coisa é você criar. Então eu sempre começava a fazer as minhas músicas a mostrar para os meus irmãos: “Pô meu, vocês não estão entendendo!” Eu tinha um apelido entre os irmãos, que eu era o Velho. “Sai daqui tiozinho!” Porque eu chegava com samba né?! Mostrava para eles: “ Pô, bonito irmão! Isto aí é música de velho!” “Pô, como assim música de velho?” “Eu cresci ouvindo Tião Carreiro... Você quer que minha referência seja qual?” Entendeu? E aí comecei a implantar estas músicas minhas inéditas, só que eu comecei a trazer pessoas para o meu lado. “Nego, vem compor aqui comigo, vem você compor comigo. E aí comecei a trazer o pessoal para o meu lado, né? Aí o outro menino queria pegar alguma coisa de banjo. Tocava bem pouquinho, e eu já tava tocando, já tava com o instrumento ali voando, né? Estudava todo dia. “Não vem cá!” Comecei: “ Vai lá em casa. Você escreve? Pô Tem um livrinho tem caderninho lá que eu escrevo as coisas” “Deixa eu dar uma olhada” Aí eu pegava e mostrava para ele e pronto. O pessoal começou a falar: Pô!” Aí eu comecei a trazer o povo para o meu lado. Mas eu tive que trazer desta forma. Convidando eles para serem meus parceiros musicais, assim, no samba assim. E aí, quando a roda de samba, era formada geralmente por umas 8 pessoas, os 131

8 já eram meus parceiros, então (Entrevista concedida por Ricardo Rabelo à autora em outubro de 2016).

É interessante notar que para Ricardo, fazer parte da história significa contribuir com a sua música, suas ideias e não apenas reproduzir a música dos outros. Pelo que ele contou acima, essa era uma necessidade que ele tinha e não os outros. Sua estratégia de ser aceito foi estimular os outros músicos a compor também. Mais do que um banjoísta ou cantor de samba ele se tornou um professor, um mediador que levou os outros músicos a se dedicarem a composição também. Talvez tenha sido essa característica de Ricardo, seu ímpeto para composição que favoreceu a amizade com Criolo, desde o primeiro momento em que um amigo em comum levou o Criolo na sua casa.

Ricardo: “Tudo bem?” “Tudo bem. Sou o Kleber.” “Eu vou fazer um suco aqui para a gente” Fiz um suco e tal, um café, bem à vontade. E o caderninho bem ali. O caderno fica exposto com a caneta em cima. Para quem quiser. J: E aí, já rolou uma parceria? R: Uma? Rolou onze. J: Onze? R: Rolou onze em um dia. Nós fizemos onze músicas. Claro que música para a gente analisar, concertar e aparar as arestas. Mas a gente fez onze músicas. Neste dia ele não me abandonou nunca mais. Depois deste dia. Aí tudo que tinha de novo. Quando ele compôs Grajauex ele correu na minha casa e disse: Pô preciso te mostrar uma coisa. “Se liga nesta música aqui.” “Poxa vida, mas você é maluco mesmo, hein?!” Eu disse para ele: “Você é maluco mesmo hein!? Estas músicas aí, você é maluco.” Porque eu sempre fui um sambista daqueles, que preserva mesmos as raízes e tal e aí o cara chega, cantando aquelas músicas todas doidas. “Você é doido, não sei o que..” [risos] Mas tudo que ele fazia ele aparecia lá. Aí ele começou a frequentar o Pagode da 27. Mas ele ia tipo: “Ah, vou mais cedo, vou na sua casa aí.” Chegava lá, mostrava umas músicas para mim, e depois descia para ajudar a gente a montar a estrutura. Esticar a lona, fazer as coisas todas (Entrevista concedida por Ricardo Rabelo à autora em outubro de 2016).

Assim como Ricardo nunca deixou de frequentar os bailes black das quebradas como todo jovem, pelo fato de ser sambista, Criolo, que a essa altura já tinha lançado seu primeiro álbum, o Ainda Há Tempo, já tinha começado a Rinha dos MC’s e já era um MC veterano reconhecido no mundo do hip hop, também encontrava o seu prazer nas rodas de samba. E aí ele chamou para conversar. Falou: “Poxa vida! Vocês tão fazendo uma coisa que eu sempre tive vontade de fazer no bairro, mas eu não tinha força, porque eu sou um só. Uma pessoa só. E aí não tem como eu segurar este fardo sozinho. Que ele nem era o Criolo, Criolo. Ele era o Criolo Doido. Do rap radical. E aí ele viu aquilo e ficou maravilhado e aí a gente começou a compor samba. “Vamos compor samba” Aí ele começou a compor samba. “ Rabelo, eu tenho uma ideia aqui de compor samba, fazer um samba para a enchente de Campão, lá! Tô querendo fazer um samba que retrate a situação do pobre

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na favela.” Eu: “ Pô, vamos lá, o caderninho ta aí, oh!” (Entrevista concedida por Ricardo Rabelo à autora em outubro de 2016).

Como Criolo sempre faz questão de ressaltar quando lhe perguntam como pode ele, uma MC de rap compor em tantos estilos diferentes, ele sempre responde que o ambiente em que viveu, com os Sound Systems nas ruas, nos bailes, com os DJ lhe mostrando a música de diferentes partes do mundo, lhe influenciaram, mas esse mesmo ambiente é também formado pelas rodas de samba, pelos pagodes, pelo forró, por tantas atividades musicais de entretenimento quando o é hoje uma festa de rap. A tecnologia dos Sounds Systems, foi “importada”, paras as quebradas, mas não veio para substituir o que lá já existia. Em São Paulo o samba é tradição, que se fez valer na eminência de Adoniran Barbosa, dos Demônios da Garoa. Que em sua época já retrata o descaso com a população periférica como é bem nítido em “saudosa Maloca”. Como constatou Vincenzo Cambria (2012), em sua pesquisa na favela da Maré, situada no Rio de Janeiro, o samba, o forró, o funk e a música evangélica se fazem presentes em um mesmo espaço em que fica difícil classificar as pessoas pelo tipo de música que as entretém. A música é uma arte invasiva, pois não dá para fechar os ouvidos e não escutar. Mesmo sem querer, as influências musicais do ambiente invadem a mente de cada pessoa que dele participa. O pagode da 27 não é a primeira e única roda de samba do Grajaú, tampouco a única roda de samba que Criolo participou ao longo de sua vida. O samba é uma influência para todo brasileiro e, mesmo que não esteja presente na esquina da sua casa, ele chega pelo rádio, pela televisão e também pelo vinil. Está presente no samples que compõem os beats e na discotecagem mixados com outros ritmos ou em destaque. A parceria entre Ricardo e Kleber, ou melhor, entre Rabelo e Criolo foi complementar. Eles não abrem mão da oportunidade de falar da comunidade para comunidade e para o mundo; de trazer um pouco da reflexão do rap para as letras de samba, ou acrescentar o ritmo de samba ao universo do rap. O diálogo entre gêneros musicais nada mais é do que fruto da relação entre pessoas, entre artistas que escolhem o tipo de música que mais lhe afeta para expressar a mensagem que mais lhe importa. Esse encontro de talentos contrastantes foi mais uma circunstância determinante tanto da eminência do Criolo na cena da música brasileira quanto da eminência do Pagode da 27 como roda de samba de destaque na cena paulista.

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CAPÍTULO 3 AVALIAÇÃO MOLECULAR DO COMPORTAMENTO NA ATIVIDADE MUSICAL – AMCAM

3.1 Descrição dos procedimentos de aplicação do instrumento AMCAM A avaliação molecular do comportamento na atividade musical, instrumento AMCAM foi aplicado na avaliação dos músicos participantes dessa pesquisa, cuja formação musical foi descrita e analisada no segundo capítulo. Conforme apresentado no primeiro capítulo, é um recorte, uma fotografia do comportamento do aprendiz ou músico em alguma atividade musical, que pode tanto representar um momento específico do processo de aprendizagem, como um padrão que se repete. Como já foi explicado, optou-se por representar essa “fotografia” a partir da imagem da molécula como uma metáfora. Cada categoria seja das ações fundamentais da aprendizagem de música ou dos perfis de aprendizagem têm um átomo como símbolo que, quando selecionados na avaliação, são colocados juntos a fim de formar a molécula. A representação em si é apenas um registro do resultado da avaliação. O propósito do instrumento é promover uma reflexão acerca dos comportamentos que cada músico ou aprendiz apresenta na atividade e poder avaliar se o padrão representado pela molécula condiz com a trajetória artística de cada músico. Dos sete participantes, foi possível fazer uma avaliação prévia realizada pela pesquisadora de apenas três deles: Criolo, DJ Dandan e Daniel Ganjaman com o propósito de comparação com a autoavaliação que só aconteceu no momento da entrevista. A avaliação prévia da pesquisadora for realizada a partir da análise dos dados coletados em entrevistas (disponibilizadas na internet) ou na observação da atuação dos músicos nos shows ou em festas (ao vivo ou gravados em vídeos e disponibilizados no youtube). Não foram encontrados dados suficientes dos outros participantes para que pudesse ser feita avaliação pela pesquisadora. Já no caso do Welbe, a avaliação realizada pela pesquisadora foi feita após a entrevista, a partir dos dados extraídos do seu relato. A autoavaliação foi realizada pelos participantes ao final de cada entrevista, sendo facultativo a cada participante realizar ou não. Salvo a autoavaliação do Welbe que foi feita a distância conforme será explicado adiante. O instrumento AMCAM foi apresentado para cada um deles em duas imagens impressas em folhas de papel, uma contendo

134 as cinco ações fundamentais da aprendizagem e outra contendo os perfis aprendizagem, conforme figuras abaixo:

Figura 5: Disco das ações fundamentais da atividade musical

Figura 6: Listagem dos perfis de aprendizagem 135

As categorias foram descritas e explicadas oralmente, a fim de agilizar o processo de avaliação. Contudo, alguns participantes optaram por ler integralmente, enquanto outros preferiram se orientar pela explicação oral. As imagens dos átomos referentes a cada categoria serviram de guia para que o participante, ao se auto avaliar, pudesse desenhar a sua molécula da aprendizagem em uma folha de papel a parte contendo um título sugerindo uma atividade musical específica, como por exemplo: DJ, MC, compositor, idealizador da Rinha de MCs, instrumentista, produtor musical.

3.2 Criolo Diferente do que você tá pensando Eu sou trabalhador e vou prosperando Porque eu tenho noção do meu talento E da proporção do amor que eu carrego aqui dentro (CRIOLO, trecho da canção – No Sapatinho, 2006).

O primeiro participante a se autoavaliar foi o próprio Criolo, o primeiro a ser entrevistado. A entrevista foi agendada por email, através do contato da equipe de produção e realizada no escritório da produtora Oloko Records em São Paulo. A entrevista deveria acontecer em uma hora, pois ele tinha outras entrevistas agendadas para hora seguinte. A entrevista durou uma hora e seis minutos. Ao término da entrevista, lhe foi apresentado o instrumento AMCAM. As categorias foram descritas oralmente e apresentada na versão impressa do instrumento. Lhe foi oferecido três folhas, cada qual com um título referente a uma atividade musical especifica, a saber: MCe compositor. A ideia é que ele pudesse representar uma molécula a partir dos perfis e ações que correspondesse a cada atividade musical sugerida. A primeira ressalva que ele fez foi questionar por que a atividade como MC estava separada do compositor. Para ele essas atividades são uma só. Porque mesmo que você esteja descolado de tá pensando uma melodia ou pensando uma rima pra fazer um rap, você enquanto um MC que está dialogando com as pessoas você também tá criando naquela hora isso. Você também está compondo não necessariamente na, na, dentro de um formato: isso aqui é uma música, né? Mas o Mestre de Cerimônia é o cara que também canta a pedra do bingo, é o pastor, é toda pessoa que tá em algum lugar dialogando com aquele tanto de pessoas que ali estão, é esse Mestre de Cerimônia (Entrevista concedida por Criolo à autora em agosto de 2016).

Em seguida ele optou por ler as descrições das categorias nas imagens que apresentei e apesar de apontar algumas categorias, hesitou em concluir sua autoavaliação, pois questionou

136 o fato de sua atividade como compositor não ser algo racional, sugerindo que as categorias lhe pareciam muito racionais. Ainda assim ele disse assim: (...) talvez alguém me visitando a pessoa vai saber. Alguém me visitar nesse momento de construção. Uma pessoa vai chegar e vai saber: ‘Oh, ele vem aqui e aconteceu isso, isso e isso’ [aponta para as categorias impressas no papel] (Entrevista concedida por Criolo à autora em agosto de 2016).

Em seguida, para dar um exemplo, ele descreveu como compôs a canção Não existe amor em SP85, a fim de mostrar como o seu processo é espontâneo e não racional. Não é racional, embora exista muita racionalidade, né? Mas assim, não é racional, por exemplo: quando eu escrevi Não existe amor em SP, eu estava vindo do trem, do Grajaú, linha Grajaú/ Osasco, desci aqui na Hebraico/ Rebouças, pra poder vir no estúdio. E mesmo sendo um horário um pouco mais dito fora do horário de rush, né, que dão esse nome, né? Um nome internacional pra isso. Tava muito sofrido. E eu passei por muitos escombros, muitas coisas porque eles tavam começando a fazer uma construção de metrô e trem, enfim. E aquilo me tocou muito e eu, de todo aquele ambiente, acho que veio muita coisa do que eu vivi, que eu passei na minha vida e saiu a música. Então não é que eu parei e pensei melodia, aí depois da melodia, que letra eu vou fazer. E não é que eu pensei letra e agora que melodia eu vou fazer. Então veio tudo junto de uma vez e desaguou nisso. Eu lembro que eu fui escrevendo no que eu tinha na mão e quando eu cheguei no estúdio eu cheguei pro Marcelo e pro Daniel e falei: “Gente, eu fiz uma coisa aqui, eu gostaria de cantar pra vocês.” E tentei de algum jeito registrar aquilo né? Mas já registrei com aquela melodia na cabeça. Então eu não sei onde se enquadra...e foi uma coisa de três minutos, cinco minutos, entende? Não que eu fui buscar uma referência, por exemplo: algo que emociona, algo que eu vou escutar tantas coisas e nesse volume de coisas vai surgir algo que; ou o que se pode falar de São Paulo, o que que é. Mas ao mesmo tempo desagua naquela fração de segundo da sua vida todos esses sentimentos seus e de tantas pessoas, e de tanto que São Paulo te oferece e não te oferece e como que você tá com ele ou você tá sem ele, sem ela, a cidade (Entrevista concedida por Criolo à autora em agosto de 2016).

Após esta descrição decorreu o seguinte diálogo entre ele e a pesquisadora: Joana: Entendi. Então, seu fosse mediar o seu processo. Nesse processo você fez uma seleção, porque você pegou daquela informação toda ali, você selecionou aquele material, que eram os escombros, com o sofrimento, com o transito, com o drama, com o não sei o que, né e já foi pra criação e pra expressão. Acabou. Porque o seu processo ele é muito imediato. Criolo: Isso, aí então eu acho que... Joana: Você entendeu? É que o negócio é difícil é complicado...

85 Letra da canção Não existe amor em SP: Não existe amor em SP/ Um labirinto místico onde os grafites gritam/ Não dá pra descrever/ Numa linda frase de um postal tão doce/ Cuidado com doce, São Paulo é um buquê/ Buquês são flores mortas/ Num lindo arranjo, arranjo lindo feito pra você/ Não existe amor em SP/ Os bares estão cheios de almas tão vazias/ A ganância vibra, a vaidade excita/ Devolva minha vida e morra afogada em seu próprio mar de fel/ Aqui ninguém vai pro céu/ Não precisa morrer pra ver Deus/ Não precisa sofrer pra saber o que é melhor pra você/ Encontro tuas nuvens em cada escombro, em cada esquina/Me dê um gole de vida/Não precisa morrer pra ver Deus. CRIOLO, 2011. In: Nó na Orelha. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=f35HluEYpDs 137

Criolo: Não é muito simples, eu falei e você já detectou, muito simples, bem simples (Entrevista concedida por Criolo à autora em agosto de 2016). Percebe-se que utilizando o exemplo que ele descreveu foi possível utilizá-lo como guia para mediar a sua avaliação. No primeiro momento que ele entrou em contato com o instrumento, pareceu sem sentido a autoavaliação, mas utilizando o exemplo que ele mesmo teve a iniciativa de apresentar, ou seja, não lhe foi sugerido em nenhum momento que ele descrevesse o seu processo de composição, as categorias do instrumento AMCAM começaram a fazer sentido para ele. Essa situação sugeriu que a autoavalição pode não ser para algumas pessoas um processo imediato, principalmente quando se tem pouco tempo para conhecer o modelo. Mas quando as categorias são relacionadas com comportamentos “de verdade”, quer dizer, comportamentos que realmente aconteceram, como os que ele descreveu no seu processo de compor a canção Não Existe Amor em SP, o processo ficou simples, como ele mesmo afirmou. O exemplo dado pelo próprio Criolo funcionou como um estímulo auxiliar86 para que fosse possível analisar com um olhar de fora do processo, as ações que ele implementa como compositor. Ele poderia ter identificado as ações apenas relembrando a situação que descreveu, mas no momento em que ele compartilha essa lembrança descrevendo para outras pessoas como um exemplo, no caso a pesquisadora, ele facilita o processo de avaliação, pois ela pode ser feita em conjunto a partir de um diálogo reflexivo, como o que segue: Joana: Aí eu, na minha avaliação, nesse caso você não fez a sua autoavaliação, né? Nesse perfil, né, você é especialista, porque, por exemplo: no caso do Não Existe Amor Em SP você já era um compositor com anos de carreira, então quer dizer sua prática já estava bem.... Criolo: Bem experimentada Joana: [risos] experimentada? Criolo: Um tantinho experimentada Joana: E aí a coisa do, talvez, do colecionador porque você traz em uma composição várias estéticas... Criolo: Muita coisa que foi pensado, experimentado, vivido, mas não necessariamente foi racionalizado no processo de criação. Joana: É, você foi colecionando ao longo de sua vida, eu pensei um pouco nisso, você vai colecionando aquelas experiências e acaba então que no seu momento de expressão você acaba apresentando aquilo (sic) (Entrevista concedida por Criolo à autora em agosto de 2016). Foi curioso que, enquanto a pesquisadora analisava o seu perfil de aprendizagem, ele complementou com a palavra “experimentada” que consta no modelo tanto como uma ação “experimenta” como um perfil “experimentador”. É possível perceber pelo diálogo que houve

86 Segundo a definição de Vygotsky apresentada no primeiro capítulo.

138 uma sintonia no processo de reflexão, a comunicação fluiu no sentido de que, o que um dizia era reforçado ou complementado pelo outro. Apesar de não ter sido uma autoavaliação espontânea, pode-se dizer que foi uma autoavaliação mediada, pois houve uma concordância com a análise da pesquisadora demonstrada no diálogo. A molécula dessa autoavaliação mediada está representado na figura abaixo.

Figura 7: Autoavaliação mediada Criolo – MC e Compositor

Um outro dado interessante é perceber que para identificar o perfil é preciso contar com informações que não estão presentes na descrição. Essa autoavaliação só pode ser mediada pelo fato da pesquisadora conhecer a música a que ele referiu e a sua história de vida, como o fato de ele compor música de gêneros diferentes. Em algumas entrevistas disponibilizadas na internet, quando lhe perguntam de onde veio a ideia de gravar um álbum como o Nó na Orelha que reúne música de estilos diferentes, ele mesmo dá como justificativa as suas influências musicais, o fato de ser brasileiro, ter trilhado o caminho do rap e ser guiado sempre pelo seu “coração”. Criolo: Porque é meio complicado, quer dizer, o cara canta rap. O cara chega: “você meu filho, você canta rap”. Aí já rola: “Nossa, rap” Aí vai ver o disco: “Pô, mas o disco desse cara tem samba, tem reggae, tem bolero, será que esse cara tá atirando pra tudo quanto é lado, ele tá desesperado?” [risos] Sobretudo pra quem tá me conhecendo agora. Marília Gabriela: Eu entendo quando você fala de desespero, mas não é um desespero musical, senão uma apreciação, eu imagino? O que é essa experimentação com outros ritmos, outras linhas melódicas? Seria isso ou não? Criolo: Quando você diz dessa arte da música, das linhas musicais isso sempre esteve latente no meu coração, sou filho de nordestinos e viajei o mundo todo, com os DJs de baile, os DJs de festinha de escola, que tinham aqueles vinis e falavam: “Vem aqui Klebinho; isso aqui é da Jamaica. Isso aqui é da França. Isso aqui é de não seio o quê.” Então tudo isso esteve presente na minha vida, mas só que o rap foi o que me abraçou, foi o que não teve preconceito comigo, que falou: “Vem, porque você tem valor”. E hoje eu digo: o rap me fez ser o homem que sou e minha poesia, ao dizer que sou um homem livre, pelo menos 139

em minha poesia. Daí saiu isso aqui [mostra o CD Nó na Orelha]. Um dia eu posso fazer um maxixe, eu posso fazer um forró, eu sou brasileiro. Tá tudo bem. Agora como você constrói isso e o pra quê de você construir, aí já é uma outra história. (CRIOLO e MARÍLIA GABRIELA, 2012).87 Ah, eu toco o que meu coração pede. Eu venho de uma base artística musical muito sólida e muito respeitosa que é o rap no meu país. E o rap do Brasil é um rap muito sério, muito forte, muito intenso, muito plural. Então essa bagagem me ajudou a compreender também um pouco mais o meu coração e o que ele pedia. Daí a liberdade de poder cantar em tantos ritmos e estilos musicais, que é uma coisa muito do Brasil, nós somos um pouco de muita doçura, de muita beleza, de muita entrega e de muita luta também e isso acaba se refletindo na pluralidade musical desse nosso continente chamado Brasil (CRIOLO, 2015).88

Nas duas entrevistas que aconteceram em momentos distintos: a entrevista com a jornalista Marília Gabriela, realizada no programa “de frente com Gabi” produzido pela rede de televisão SBT, foi ao ar em janeiro de 2012, quando Criolo estava no auge da turnê do disco Nó na Orelha. Já o segundo depoimento foi dado para o site Berimbau Drum no festival Womad realizado no Reino Unido durante a turnê internacional do álbum Convoque seu Buda em 2015. Apesar de falar em contextos diferentes ele enfatiza o fato de ser brasileiro assim como o seu sentimento, fazer o que seu coração pede, como se sua vontade fosse guiada pela sua emoção, mais do que pela razão. Como ele mesmo argumentou no início da avaliação, é difícil para ele racionalizar um processo que é emocional. Nessa mesma entrevista com a Marília Gabriela ele também descreve o seu processo de composição dando um outro exemplo: Marília Gabriela: Como é que se dá a sua inspiração? Criolo: (...) uma vez eu fui a um lugar muito bonito e me receberam e eu comi uma comida tão gostosa... pessoas sensíveis... mas tinha um sininho na mesa que eu fiquei pensando, o porquê daquele sino. E quem ia aparecer em cena e depois sair da cena, por conta desse sino e foi o que ocorreu. E depois eu não consegui ir para casa dormir direito aí eu fiz: [cantando] Chove, é o céu que está chorando, agò89 Vejam vocês, eles vão nos iludir mais uma vez E é tanta dor, quem se esconde nas sombras não merece amor Um sino vai tocar e uma porta vai se abrir Pra recolher, o que da mesa sobrou E é tanta dor, quem se esconde nas sombras não merece amor Marília Gabriela: É muito, muito bonito e que bom, quer dizer, eu sempre tive a imagem de inspiração, como a musa mesmo, que de repente viesse e de maneira incontrolável. Me parece que é como funciona com você.

87 CRIOLO [Entrevistado por MARÍLIA GABRIELA]. De Frente Com Gabi - Criolo - Parte 3 [Data de upload: 19, janeiro, 2012]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=aabDlWBLBUY Acesso em: 4 novembro, 2016. 88 CRIOLO. Criolo at WOMAD UK 2015. [Data de upload: 27 julho, 2015]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=KthLDC5sJQs Acesso em 29 março, 2016. 89 Agò é uma palavra da língua ioruba que significa desculpa ou licença.

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Criolo: Às vezes ela vem num belo vestido, às vezes ela vem espancada, às vezes ela vem com uma faca pra te cortar, mas ela sempre vem (CRIOLO e MARÍLIA GABRIELA, 2012).90 O processo de composição do Criolo, assim como de tantos outros compositores pode ser entendido como “inspiração” ou uma “musa” como salienta Marília Gabriela, contudo, na descrição do Criolo é possível observar as mesmas ações presentes no processo de composição de Não existe Amor em SP, descrita anteriormente. A sua perplexidade diante do sino na mesa e do que aquilo simbolizava, no caso a servidão de uma pessoa que deve responder ao chamado de um sino, foi o material textual selecionado para compor a canção. Mas o que lhe motivou a criar a canção não foi seu sentimento, talvez de indignação, com relação aquela situação que lhe impediu de dormir. Mesmo que ele não tenha transformado essa canção em um produto, registrado em um disco, ela ficou guardada em sua mente e ele não hesitou em expressá-la com texto e melodia, a capela, no momento da entrevista. Em entrevista para o canal da defensoria pública do Rio de Janeiro no youtube realizada pela jornalista Thathiana Gurgel ele conta o que lhe levou a compor a canção Casa de Papelão do seu terceiro álbum –Convoque se Buda – lançado em 2014. Novamente a motivação vem do testemunho da injustiça. Eu fiz uma apresentação na cidade de São Paulo, na praça Júlio Prestes, e foi pela manhã. E, ao lado da praça Júlio Prestes tem a cracolândia, isso foi em 2013, eu acredito. Então tinham muitas pessoas ali tomadas por o que eu acho que é uma questão de saúde, né? Então tinham muitas, muitas, muitas, muitas, muitas pessoas nas ruas da cracolândia, mas muitas, de você não conseguir ver o chão. Estava acontecendo um lance ali, que já vinha acontecendo alguns anos e foi se acentuando cada vez mais de um modo muito brutal, a especulação imobiliária que já vem de muito tempo. Então você via em algumas ruas próximas alguns tapumes já avisando de um novo empreendimento, e na rua ao lado, e na mesma rua e na calçada, as pessoas passando por toda aquela condição difícil né? Então começou naquela fração de segundo; aquilo tudo que eu já sei que é real, porque eu se dessa realidade da minha cidade, isso não é uma coisa, não é uma surpresa pra mim. Então isso, junto a lembrança de ser um homem-seta que eu já fui um homem-seta, né? Aonde você fica 12 horas em pé por 25 reais, sem almoço e sem a condução, você que se vire. E uma série de outras coisas que eu passei na minha vida e coisas que eu vi na minha vida, veio essa canção, ela veio de uma vez só. [canta] Olhos nos olhos, sem dar sermão/ nada na boca e no coração/ meus amigos são [interrompe o canto e fala] – ou seus amigos são porque eu também sou esse e ele sou eu, né? Aí acho que é que eu percebo onde existe um lance de: qual, onde está e onde não está o pertencimento das minhas responsabilidades. Onde está e onde não está essa divisão das nossas

90 CRIOLO [Entrevistado por MARÍLIA GABRIELA]. De Frente Com Gabi - Criolo - Parte 3 [Data de upload: 19, janeiro, 2012]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=aabDlWBLBUY Acesso em: 4 novembro, 2016. 141

fragilidades [volta a cantar] prédios vão se erguer/ e o glamour vai colher corpos na multidão (CRIOLO, 2016)91

A sua “inspiração” parece ser despertada pelo sentimento de que alguma coisa está errada, e o ato de compor parece ser a forma dele lidar com as injustiças do mundo. Ou seja, quando ele fica mobilizado com algo de errado, algo que não sai da sua cabeça, ele transforma essas imagens e sentimentos em texto e melodia. Não é mágico, pois se analisarmos a partir do conceito de desenvolvimento cultural de Vygotsky, o ato de compor é o “estímulo artificial” que ele cria constantemente como recurso para ressignificar coisas ruins que acontecem a sua volta. Isso entra em acordo com os relatos sobre a sua infância, conforme descrito no início do segundo capítulo, em que ele tinha a sensação de que o fato de sua mãe cantar para ele e seus irmão parecia diminuir a hostilidade do ambiente e das dificuldades que eles passavam. Também condiz com o fato de ele estar sempre criando textos e melodias, compondo canções, mesmo que nem toda composição seja algo que ele queira compartilhar com os outros. Como ele mesmo diz: Eu tô sempre compondo né? Sempre compondo, não que seja algo que, tudo que eu venha escrever seja algo que valha tomar o tempo de uma pessoa, né? Mas eu tô sempre compondo assim, tudo aquilo que eu sinto que vai me emocionar que, meio que eu sinto que tá tendo um vulto ali, de um pensamento ou algo que me emociona muito, que emociona minha família, essas coisas vão fazendo... Agora mesmo eu tava aqui escrevendo alguma coisa, esperando dar a hora da apresentação. Então é esse carinho, esse cuidado de..., porque todos nós temos esse ato da construção, em todos os momentos. A poesia ela se faz presente de muitas formas, e não necessariamente em verso e em momento feliz (CRIOLO, 2013).92

Mas assim, de quando eu tinha trinta anos, pra agora quando eu tenho 40, como era escrever com 30 anos e agora escrever com 40, ah, o que me move continua sendo a mesma coisa, algo que me emociona, de sorrir, ou de uma lagrima que vem pro rosto de alegria ou uma lágrima de algo que te magoa. Algo que você vê que tá acontecendo ao seu redor, algo que tá acontecendo longe mais que também tá te emocionando e que não é tão longe assim, porque tido que acontece com o ser humano é alguém da sua espécie né? Tá acontecendo com alguém da sua espécie então acontece com você também, né. Eu acredito muito nisso, todo bem que você é capaz de produzir, as vezes você acha que não é importante, que ninguém tá vendo, mas essa energia vai pro mundo e alcança, alcança as outras pessoas, né? Então eu continuo sendo movido pelas coisas que me emocionam (CRIOLO, 2016).93

91 CRIOLO [entrevistado por Thathiana Gurgel para o canal da Defensoria Pública RJ]. Entrevista exclusiva com o Criolo. [Data de upload: 26 setembro, 2016] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=xcj4anTTXoM Acesso em 7 novembro, 2016. 92 CRIOLO entrevistado por MICHELE M. MOR. Diarioweb entrevista Criolo. [Data de upload: 29 abril, 2013]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=kcB32zpsMpg Acesso em: 19 março, 2016. 93 CRIOLO. PÁG.1 - CRIOLO (10 Anos - Ainda Há Tempo). [Data de upload: 25.08.2016] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=wouUS3vkThs Acesso em: out, 2016.

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Mas nem sempre o processo de composição do Criolo acontece de forma espontânea e sem previsão, ou por temas exclusivamente selecionado por ele. A canção Chuva Ácida do álbum Ainda Há Tempo foi composta para um concurso sobre meio ambiente, o que significa que o tema foi sugerido pelo concurso, contudo ele consegue deixar presente na letra o problema que lhe é comum e pessoal no que diz respeito a descaso com a natureza e as pessoas. Já no processo de gravação do seu terceiro álbum, o Convoque seu Buda, ele também passou por uma experiência de composição diferente, como ele mesmo descreve. Nós tivemos... um dos últimos dias de estúdio eu fiquei no canto escrevendo algumas canções e o Marcelo Cabral e Daniel Ganjaman ficaram produzindo algumas coisas e a gente combinou que nesse dia seria diferente: no final do dia nós íamos nos encontrar e ver o que cada um produziu. E assim fizemos. No final do dia eles foram passando as instrumentais pra mim, eu fui escutando, escutando, aí passaram por essa do Cartão de Visita, bem rapidinho. Aí tocou outro trem, eu falei: “não, volte aquela”. Quando voltou, eu falei: “rapaz, deixa tocar mais um pouco”. Me veio esse refrão na cabeça. Aí já pensei na Tulipa, automaticamente. Aí já comecei a tecer a primeira parte do texto, e eles jamais imaginaram que eu fosse escrever numa instrumental daquela, que até então eu não tinha me desafiado a mexer naquele tipo de instrumental, né? Algo novo pra mim (sic) (CRIOLO, 2015).94

Na descrição acima o que incitou a composição foi a base instrumental composta pelos produtores, mesmo que, como ela relata, a “imagem” da canção tenha sido automática vindo acompanhada da imagem da cantora interpretando o refrão. As ações – seleciona, cria e expressa – se mantem nesse processo e o que muda é apenas o estímulo para compor naquele momento. Ou seja, assim como algumas canções surgem em seu pensamento inesperadamente sem nenhuma necessidade iminente de compor, um compromisso ou um prazo de entregar uma composição pronta, como aconteceu com Não existe amor em SP e o exemplo dado a Marília Gabriela, elas também aparecem quando há um prazo a se cumprir, como participar de um concurso, ou um tema sugerido de fora, como o tema do meio ambiente que levou a composição de Chuva Ácida ou a instrumental pronta sobre a qual ele compôs Cartão de Visita para ser interpretada com a Tulipa Ruiz. Comparando a avaliação realizada junto com o Criolo e a avaliação prévia da pesquisadora não há muito contraste, até porque, como foi uma autoavaliação mediada a indução a imagem que a pesquisadora já havia construído é inevitável. Contudo há uma diferença de perspectiva, pois logo de início Criolo interviu com relação ao recorte da avaliação considerando as atividades de compositor e MC como uma só, e a avaliação da pesquisadora

94 CRIOLO. Criolo na Vibe. [Dada de upload: 23 janeiro, 2015]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=QyaarjACD9c&index=15&list=PLH__eLG01UkE6q7_iOdyBlvCUAmlo- aWY Acesso em: 19 outubro, 2015. 143

havia sido pensada a partir de duas moléculas, a do compositor e a do MC. Enquanto a autoavaliação mediada do Criolo originou uma molécula, a avaliação da pesquisadora originou duas conforme mostra as figuras abaixo:

Figura 8: Avaliaçãoda pesquisadora Figura 9: Avaliação da pesquisadora – Criolo Compositor – Criolo MC

O motivo pelo qual a avaliação prévia realizada pela pesquisadora separou a atividade de MC da atividade de compositor se justifica pelo fato de que, quando ele atua como MC no palco ele implementa mais uma ação, pois como ele mesmo já havia dito, a atuação do Mestre de Cerimônia compreende um processo de criação de um diálogo entre o MC e o público, para manter a animação da festa. Mas do ponto de vista da pesquisadora, esse processo é uma experimentação, pois o MC precisa se conectar com o seu público e experimentar palavras ou frases que podem ou não provocar a reação esperada. Não há como prever a reação do público e nesse sentido a criação desse diálogo passa mais pela experimentação, visto que não é um argumento fechado em uma ideia central. Como disse o próprio Criolo, para uma MC, “todos os dias é um grande improviso de como deixar o ambiente interessante. Que cada dia é uma história diferente” (Entrevista concedida por Criolo à autora em agosto de 2016). Independente da sua competência como compositor e cantor, o grande diferencial de Criolo parece estar na sua qualidade de MC. Isso fica expresso apenas na sua performance ao vivo, uma característica que chama a atenção de quem está presente em seus shows. Para Daniel Ganjaman esta é a qualidade que faz ele ser um artista diferenciado. É, eu acho, porque eu acho realmente que tem uma coisa de artista, que é diferente, o artista ele tem que ter determinadas características, um brilho, que o Criolo tem de sobra. Talvez dos artistas que eu tenho trabalhado, o que eu mais vi isso de forma muito descarada assim. É um cara que, ele tá no palco... acabou, assim, sabe? É um cara que, ele tá no palco... acabou, assim, sabe?

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Ele... ele no show dele, assim sabe, é um negócio que, a forma com que ele fideliza a plateia, é um negócio que, pô aí também entra nessa mesma coisa, entendeu? Não tem uma teoria ou uma questão técnica que vá... não é porque ele tá cantando pra cacete, não é porque... é porque é ele é um negócio, uma luz ali que acontece que ele fideliza muito, a conexão dele com a plateia as vezes tira ele do palco, assim, sabe? Você vê que ele tá ali dum jeito as vezes até ignorando o que a gente tá fazendo. Mas é muito interessante, uma coisa que é única! (sic) (Entrevista concedida por Daniel Ganjaman à autora em agosto de 2016). É interessante que Ganjaman usa a expressão “fidelizar” para se referir ao fato do Criolo conseguir um público fiel. Seria então essa capacidade de fidelizar o que fez com que ele fosse conquistando cada vez mais novos fãs e ampliando a sua audiência? Seria essa qualidade que fidelizou não só os fãs, mas outros artistas que dele se aproximaram, como o Milton Nascimento que chegou a criar uma turnê para cantar com ele? Segundo a impressão de Bruno Torturra Nogueira em sua reportagem sobre o Criolo para Revista Trip, É ao vivo, arrisca o repórter, que se entende melhor os tantos holofotes sobre o rapaz. Ele tem real domínio do público e de sua voz. Sabe se colocar ao mesmo tempo como líder e como um mero membro de uma súbita congregação. Mesmo entre boleros, raps, afrobeats, covers de Nelson Ned, é difícil não pensar que paira sobre as mãos erguidas e as vozes em uníssono um ar de culto, de igreja. Criolo não assume, nem é besta de admitir, a presença e o pique de profeta. Mas, por conta de frequentes, e sinceros, arroubos metafísicos e hiperbólicos, o rajneesh do Grajaú ganhou entre os mais chegados o apelido de Criosho (NOGUEIRA, 2011).95

A referência ao aspecto religioso do show também é ressaltada pelo o ator Lázaro Ramos ao entrevistar o Criolo para o programa Espelho do Canal Brasil:

RAMOS: Eu fui ver seu show. Fiquei muito emocionado durante o show todo, que você sabe que é quase uma celebração religiosa. Eu faço meus adjetivos, tá? [risos]. CRIOLO: É, os adjetivos deixo por sua conta. RAMOS: E a plateia, em vários momentos eu olhava, eu saí de você eu olhava pras pessoas te olhando assim, as pessoas quase rezando, as pessoas comungando das palavras que você tava dizendo no palco. (CRIOLO e LÁZARO RAMOS, 2014).96

A “celebração religiosa” a que Lázaro Ramos se refere não é exclusiva do show do Criolo, mas de todo artista que tem um público cativo. Pode-se dizer que chega a existir uma certa histeria coletiva, uma comoção levada ao extremo quando fãs se reúnem para assistir seu ídolo. Um show de rap geralmente é um momento de muita comoção e energia. O ritmo da música somado ao teor das letras favorece o envolvimento coletivo expresso em padrões de

95 NOGUEIRA, Bruno Torturra [Reportagem] Criolo: Hora da prova In: Revista Trip #203 {Data de publicação: 22 setembro,2011]. Disponível em: http://revistatrip.uol.com.br/trip/criolo Acesso em: 6 nov, 2016. 96 CRIOLO. Criolo entrevistado por Lázaro Ramos no programa Espelho | Canal Brasil. [Data de Upload: 3 abril, 2014]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=eP86LuPwUYk Acesso em: 10 março, 2016. 145

comportamentos que se tornaram universais, como colocar as mãos para cima (balançado no ritmo da música ou pular no tempo. Não é possível pular um show inteiro de rap, pois isso exigiria tanto dos MCs quanto da plateia um preparo físico sobre humano. Deste modo, há um consenso sobre a hora de pular que é instigada pelo movimento corporal dos MCs que estão no palco. Para quem já conhece as músicas é imprescindível cantar junto. Contudo, letras de rap são muito extensas, complexas, tendo alguns trechos com muitas articulações em um só compasso. Não é todo mundo que consegue decorar e cantar junto um rap inteiro, mas essa habilidade é uma referência para quem vivência a prática do hip hop. Contudo, há passagens da letra, como no refrão ou algumas frases mais contundentes, geralmente ao final de uma estrofe, que o público participa cantando e isso já é ensaiado pelo MC que nesse momento não canta, esperando a resposta da plateia97. Existe uma conexão ativa entre público e artista. Essa conexão é necessária para manter a qualidade do show. Se o artista não se conecta com seu público e vice-versa, a performance fica apática e a sensação de que o show não está agradando é notável. Mesmo que essa conexão se dê por atributos não musicais, a música é o elo principal. O ritmo da música conecta a todos que estão no evento, seja cantar músicos ou ouvintes, fazem vibrar numa só frequência estabelecendo a base dessa conexão. A intensidade dessa conexão cresce na medida que o público conhece as músicas. Quanto maior afinidade com a música maior é a conexão com a performance. Ou seja, independente da habilidade de “fidelizar” o público por meio do diálogo que é estabelecido pelo MC, o texto e a música precisam já ter conquistado o interesse do ouvinte, precisa já ter comunicado a mensagem e desenvolvido no ouvinte, comportamentos, respostas cognitivas e emocionais semelhantes aquelas que desencadearam o processo de composição. Quando o público canta em uníssono a canção Não existe Amor em SP com a mesma emoção que Criolo, significa que os sentidos das palavras, da melodia e do arranja foram compreendidos e aceitos como se o argumento do Criolo fosse o argumento de quem “comunga” das suas ideias e sentimentos.

3.3 DJ Dandan O segundo entrevistado foi o DJ Dandan, contudo, dos participantes ele foi o primeiro a ser contatado pessoalmente: uma vez ao final de um show no Circo Voador, quando ele passou seu email e, em um segundo momento, na Discopédia. Contudo a entrevista foi agendada em

97 Ao acompanhar o ensaio de Criolo com a banda Abayomy, foi possível verificar que na performance da música Mariô, ele não canta o verso que o público costuma cantar: “eu odeio explicar gíria” (In: CRIOLO, Nó na Orelha. Oloko Record: 2011).

146 um terceiro momento, por email, e realizada ao ar livre na praça das artes em frente ao teatro municipal de São Paulo. Essa entrevista teve duração de uma hora e quarenta minutos. Após a entrevista, na medida em que os perfis de aprendizagem do instrumento AMCAM foram sendo descritos pela pesquisadora, DJ Dandan reconheceu um deles como característica do hip hop de uma forma geral. O Hip Hop, o Hip Hop é muito experimentador... O Hip Hop nasce de misturas, né?! Se você pega cada elemento ele tem misturas, né?! Se você pegar a dança, a dança tem ali Ginástica Olímpica, tem Capoeira, tem Artes Marciais... Você vai ver neste filme a influência das Artes Marciais, do Bruce Lee, que tem muito neste filme. Que a dança tem muito influência de todas estas paradas... Então ele é mistura. Então quando você vem pro Rap, a música Rap em si, ela é construída a base de misturas... de músicas que existem que a gente chama de samplers que corta um pedaço daqui, outro pedaço dali e mistura e faz surgir uma outra... Entende? Que se você pegar Lion Man, Lion Man vem de uma outra música... Entende? E aí para construir a Lion Man, você precisou entender aquela música sentir ela e criar a Lion Man. Eu vou te mostrar aqui para você entender como é que é isto... É tem este aplicativo aqui chamado Roll Sampler. É eu vou te mostrar o universo do sampler na verdade. A arte de samplear... Ouça e identifique a canção...[põe a música para tocar no celular] (sic) (Entrevista concedida por DJ Dandan à autora em agosto de 2016).

Além de relacionar o perfil experimentador ao hip hop, ele apresentou um exemplo de como foi feito o beat da música Lion Man, composição de Criolo do álbum Nó na Orelha, para exemplificar o quanto a cultura hip hop é experimentadora no sentido de misturar diferentes elementos, estéticas, técnicas e músicas. Em seguida lhe foram descritas as cinco ações, e nesse momento, a pesquisadora utilizou o exemplo dado por ele mesmo, de como foi construído o beat de Lion Man, para explicar cada ação, considerando o ato de selecionar a música da etiópia para dela selecionar um trecho que será experimentado e transformado criando uma nova música. Em função dessa explicação, decorreu o seguinte diálogo: Dandan: Você está fazendo o hip hop sem saber, isso aí é tudo hip hop! [risos] Joana: É assim: eu vejo isso um pouco do que seria a estrutura da aprendizagem de música de uma forma geral, mas eu acho que no hip hop ela fica muito expressiva. Dandan: Ela tem mais essa liberdade. (Entrevista concedida por DJ Dandan à autora em agosto de 2016).

Finalizada a descrição do instrumento AMCAM ele apontou quais perfis se identificava: observador, experimentador e colecionador e comentou: Aí que eu sou o observador bastante. Eu sempre gosto, por exemplo, de chegar antes, se eu vou tocar numa festa, eu não gosto de chegar na hora que eu vou tocar, eu gosto de chegar antes. Porque eu preciso saber, eu preciso entender, porque tudo tem a ver com a discotecagem, a iluminação que tem, as pessoas, como elas tão vestidas, quando aquele DJ toca determinada música como é 147

que a pessoas reage. O eu que as pessoas tão bebendo, porque eu preciso entender a situação que as pessoas vão tá quando eu for tocar, entendeu? Eu tipo observo tudo, eu gosto de chegar antes, assim (Entrevista concedida por DJ Dandan à autora em agosto de 2016).

No momento de selecionar as ações ele hesitou um pouco e concluiu que a única ação que ele não executa na sua atividade musical como DJ é a criação. A autoavaliação do DJ Dandan resultou na seguinte molécula.

Figura 10: Autoavaliação – Dandan como DJ A avaliação da pesquisadora não diferiu muito da autoavaliação. Os perfis, experimentador e colecionador, coincidem nas duas moléculas, que se diferenciam pelo perfil observador identificado por Dandan, e o perfil de especialista, identificado pela pesquisadora. Outra diferença está na ausência da criação na molécula da autoavaliação.

Figura 11: Avaliação da pesquisadora – Dandan como DJ

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A intenção em considerar o DJ Dandan como especialista deriva do fato da atividade como DJ sobressair as outras atividades que ele exerce ou já exerceu ao longo de sua trajetória, como a de MC e compositor. A atividade como DJ é aquela Dandan em que ele se sente mais realizado. Não por acaso, mesmo permanecendo como segundo MC e DJ da banda do Criolo desde a época da Rinha dos MC’s, ele sentiu falta de atuar como DJ de festa e por isso, junto com o DJ Marco e DJ Nyack, criou em 2012 a festa Discopédia, mencionada anteriormente. A Discopédia, um dos motivos de eu ter criado, além de todo o histórico e tal, é que eu queria criar uma situação que eu pudesse tá sempre perto das pessoas. Que a coisa do Criolo tava crescendo muito, né. “Pô, preciso criar uma situação onde eu possa tá sempre perto das pessoas”. E eu não quero ser mito, eu não quero ser intocável. Eu não quero ser uma pessoa que quando eu aparecer num lugar, as pessoas ficam desesperada pra tirar uma foto comigo porque nunca me vê. Não véio! Você sabe onde me encontrar, toda terça-feira eu tô ali. Você entendeu? Toda terça-feira eu tô ali, velho. Eu não quero ser isso, entende, por isso quando eu falo: eu não sou artista eu sou arteiro, porque eu vivo essa arte, tá entendendo? Eu tô ali no dia a dia. Tô aqui, oh: tô aprendendo aqui com vocês alguma coisa. Eu tô aprendendo algo aqui com vocês (Entrevista concedida por DJ Dandan à autora em agosto de 2016).

3.4 Daniel Ganjaman A entrevista do Daniel Ganjaman foi marcada diretamente com ele por telefone. Foi realizada em sua sala de gravação no estúdio El Rocha. A duração foi de uma hora e quarenta minutos. Seguinto o mesmo protocólo das outras duas entrevistas, após ele contar como foi sua formação musical lhe foi apresentado o instrumento AMCAM oralmente e impresso. Ganjaman optou por ler integralmente as descrições escritas antes e duarante a sua autoavaliação. Ele optou por se autoavaliar como produtor musical e instrumentista. As outras opções dadas a ele diz respeito as atividades de arranjador e compositor, mas para eles essas atividades fazem parte da própria produção musical. Olha, eu não, eu tenho composições minhas que acabaram sendo muito em função de de, enfim, porque no rap, isso é uma discussão também bem, bem subjetiva, né? O produtor, muitas vezes ele entra como produtor da faixa, porque...; convoque seu buda, né, por exemplo, música que abre o segundo disco que a gente fez junto com o Criolo, eu fiz a base, aí entreguei pro Criolo, aí o Criolo fez a música em cima (sic) (Entrevista concedida por Daniel Ganjaman à autora em agosto de 2016).

A sua primeira autoavaliação foi como produtor musical. Ele leu e releu as categorias várias vezes antes de apontar com quais ele se identificava. Nesse meio tempo a pesquisadora interviu com algumas perguntas a fim de mediar o processo. D: bom, eu acho que assim, na coisa como produtor musical, acho, articulador, né, com certeza. Bom aí eu acho que é isso, assim, de todas essas eu acho que é como eu me vejo. 149

J: Você vê mais alguma? D: Na coisa de produção musical? J: É... ou não, né? D: Na coisa de produção musical, talvez um pouco da parte do analista também. Eu acho, são as duas partes que cabem dentro dessa coisa do... porque J: E aí nas ações... D: [lendo] É, expressa acho todo mundo expressa, o criar acho que também. J: Você cria nesse processo? D: No processo de produção, sim, bastante. [ele permanece relendo as descrições] Eu acho que... é porque na verdade é uma coisa tão...é... J: Você diria que você faz alguma outra ação? D: Não, na verdade acho que a gente acaba que faz um pouco de tudo, acho que a gente acaba que, como produtor você acaba que cria um pouco, você experimenta. Sabe, nesse caso, é um pouco isso, porque você se expressa, você cria, você experimenta, você imita também. J: Você acha que teria alguma outra ação...? D: Não, mais no caso de produção musical acho, é muito importante, inclusive, que você use, que você tenha isso quase como uma cartilha (sic) (Entrevista concedida por Daniel Ganjaman à autora em agosto de 2016).

Dado o tempo que Daniel Ganjaman se dedicou a ler e reler as categorias, fez parecer que ele não se identificaria com nenhuma. Contudo ao final ele acabou por concluir que as ações fundamentais da atividade musical poderiam até servir como uma cartilha para o produtor musical. Lhe foi perguntado duas vezes se teria alguma outra ação que ele implementa na sua atividade como produtor que não estaria no instrumento, mas ele realmente considerou que o intrumento contemplava todas as ações de um produtor musical. Isso foi gratificante, pois assim como DJ Dandan reconheceu as categorias do instrumentos como ações do hip hop, daniel Ganjaman as reconheceu como essenciais no trabalho de produção musical. O mais curioso foi que a sua autoavaliação como produtor coincidiu plenamente com a avaliação prévia realizada pela pesquisadora.

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Figura 12: Autoavaliação Daniel Ganjaman como produtor musical De todos os três músicos que contaram com uma avaliação prévia realizada pela pesquisadora a fim de comparar com as autoavaliações, Daniel Ganjaman foi o único cuja molécula coincidiu plenamente. É possível se especular se esta coincidência é fruto do acaso ou da coerência lógica do instrumento. O perfil de articulador é realmente uma categoria que condiz com atividades como a do produtor musical ou de um regente que assumem a função de liderar a atividade musical. Já o perfil analista é uma característica difícil de ser percebida para quem vê de fora. Ela foi identificada a partir de certos depoimentos em entrevistas que Ganjaman demonstra a preocupação em produzir artistas ou trabalhos que realmente lhe interessam e agradam do ponto de vista não só estético, mas da viabilidade, como por exemplo ele considerar se o artista tem talento ou não. Isso implica no fato de ele nem sempre aceitar produzir qualquer trabalho. Ele também se identificou como analista na sua autoavaliação como instrumentista. Daniel: Bom, vamos lá...Aí aqui... eu me vejo muito com certeza como analista [relê a descrição dos perfis] ... e colecionador. Aí aqui... [relê a descrição das ações] ... eu me vejo mais, expressa, né sem dúvida, cria, experimenta, nem tanto, não é muito a minha... seleciona talvez mais na parte de produção musical, não tanto como instrumentista. Eu acho que é mais cria, expressa e imita. Inevitavelmente. Joana: O analista, como você se vê assim um analista, um instrumentista analista? Você nem sempre participa, seria isso? Daniel: É! Exatamente! Porque... não eu realmente acho que eu sou um instrumentista bastante limitado. Entendeu, mas ao mesmo tempo eu acho que eu tenho o meu borogodózinho ali pra algumas coisa. Então quando eu acho que cabe o borogodózinho, sebe, é... porque eu acho que instrumento musical, basicamente o que diferencia os instrumentistas é a aptidão pro instrumento, sem dúvida, quem é melhor na habilidade, né, e o sotaque, né? Que cada um 151

tem um (sic) (Entrevista concedida por Daniel Ganjaman à autora em agosto de 2016). A autoavaliação como instrumentista ficou conforme a molécula abaixo.

Figura 13: Autoavaliação – Daniel Ganjaman como instrumentista No caso da atividade como instrumentista, a avaliação da pesquisadora foi diferente, pois ela não considerou o seu perfil analista enquanto instrumentista, além de considerar as cinco ações como parte dessa atividade.

Figura 14: Avaliação da pesquisadora – Daniel Ganjaman como instrumentista

As ações “experimenta” e “cria” ficam bem notáveis quando ele conta sobre a oportunidade de experimentar um MPC emprestada. Mais uma vez é preciso destacar o papel da tecnologia no desenvolvimento de habilidades, na transformação do comportamento. É

152 preciso ter um MPC para aprender a utilizá-la, tanto quanto ser capaz de se manter engajado na atividade, possibilitando o seu processo de aprendizagem. O seu comprometimento com a tarefa, somada a criatividade e altas habilidades compões as características comportamentais que Renzulli (2011) considera essenciais na identificação de pessoas superdotadas ou talentosas. Isso corresponde também ao que Mihaly Cskszentmihalyi (1990) teorizou sob o conceito de flow (CSKSZENTMIHALYI, 1990; 2007). Graças a sua capacidade de ficar concentrado por dias a fio, “fuçando”, experimentando e aprendendo a utilizar uma MPC, que surgiu uma obra prima do rap nacional, o rap Um bom Lugar do MC Sabotage. É, conheço, por intermédio até do Planet Hemp, sempre fui muito amigo do Rafa, guitarrista do Planet. Aí comecei a circular um pouco com esse pessoal e tal e o Nuts [DJ], foi gravar umas coisas no meu estúdio, nesse meu estúdio precário pra caramba. Foi gravar a primeira demo do projeto dele que chamava Nitro, que era ele e o Paulo Napoli e esse foi o primeiro contato que eu tive com uma máquina é... de sample sequência, que no caso era uma SP 1200. Logo aí o rafa tinha, o rafa era do Planet Hemp, o rafa tinha uma MPC, tava meio parada e eu falei: “Rafa, deixa essa MPC comigo uns dias?” Ele: “claro!” Aí eu peguei e não dormi, sei lá, uns três quatro dias, fiquei ali... fuçando e coisa e dali já saíram uns beats, inclusive, Um Bom Lugar, que foi acho que o primeiro beat meu é..., assim, 100% meu que... entrou num disco, depois o Quincas Moreira que é um menino que ajudou bastante na produção do Rap é Compromisso [álbum do Sabotage], ele deu um talento ali também na base junto comigo. Mas o primeiro beat mesmo, que partiu de uma história minha foi Um bom lugar, e foi dentro desses três quatro primeiros dias que eu peguei a MPC pra trabalhar (GANJAMAN, 2014).98

Já o perfil colecionador diz respeito tanto ao tipo de música que ele escuta... Eu escuto de tudo, sacô, é até difícil falar de referência musical porque eu realmente escuto de tudo. Em casa eu tenho disco desde..., meu, tudo o que você pode imaginar, cara, rock... menos música clássica que é uma coisa que eu não tenho realmente muito interesse, assim, acho meio, meio alemão demais. Assim eu gosto de música de preto, sacô? No geral, incluindo rock, que eu acho que tudo isso, tá dentro dessa onda de música de preto (GANJAMAN, 2009).99

... como também a diversidade de instrumentos que ele toca, principalmente quando está produzindo. J: Quando você vai criar alguma coisa, você pega o instrumento ou você já faz tudo na programação? D: Não, pego o instrumento. No geral pego o instrumento. Mas eu toco, por exemplo, acabei de produzir o disco do Rael e... tem uma música que agora que a gente tava fechando a ficha técnica, que o produtor, o Fióti, né que é o

98 GANJAMAN. Ep. # 8 | Daniel Ganjaman, Nave, DJ Nyack, Bitrinho, Amiri e M.Sário [O Rap Pelo Rap - A Série] [Data de upload: 21 outubro, 2014]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=rJAgqwEzgjg Acesso em: 6 junho, 2016. 99 GANJAMAN. BEM NA FITA COM GANJA MAN. [Data de upload: 6 outubro, 2009]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=RU44636tJaI&nohtml5=False Acesso em: 6 junho, 2016.

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empresário do Emicida, do Rael e tal, ele pegou, a gente tava fechando, essas coisas burocráticas, né? E falou: “essa música aqui, você tocou tudo?” Aí eu li, olhei: “Puta, toquei tudo”. Então assim, naquela música eu toquei, baixo guitarra, teclado, e programei o beat, e não era uma coisa só... porque muita vez você faz tudo, mas você na frente do computador, vai lá programa e tal. Nessa música eu toquei tudo mesmo, toquei o baixo, toquei a guitarra, toquei tecla... piano, toquei órgão, programei os sintetizadores todos e tal (sic) (Entrevista concedida por Daniel Ganjaman à autora em agosto de 2016).

3.5 DJ Welbe Colombo A entrevista do Welbe surgiu no meio do processo. O contato aconteceu por acaso através de um comentário em um vídeo de uma reportagem sobre o Criolo no youtube. O Welbe havia comentado que conhecia o Criolo e o seu trabalho como professor, o chamando de professor Kleber. Isso aconteceu na semana seguinte a entrevista do Criolo. A pesquisadora comentou em reposta a ele que informando que estava fazendo uma pesquisa acadêmica sobre o Criolo e perguntou se ele poderia participar concedendo uma entrevista. Ele respondeu que sim, desde que o Criolo permitisse. Passados alguns dias ele entrou em contado de novo confirmando a sua possibilidade de conceder uma entrevista que foi marcada na mesma semana da entrevista dos outros participantes. Welbe recebeu a pesquisadora em sua casa. A princípio a entrevista tinha o propósito de conhecer um pouco mais a história do Criolo, e por isso não foi planejada a autoavaliação. Mas logo no início da entrevista ficou claro que sua história de vida tinha muito a contribuir com a pesquisa de uma forma geral, principalmente no que diz respeito a sua experiência com os bailes de escola e as festas de black music que ele frequentou nos anos 80. Em função dessas circunstâncias sua avaliação foi realizada pela pesquisadora a partir da descrição de seu comportamento em seu depoimento, ao longo da sua atuação com DJ. No começo da entrevista, Welbe conta como ele, assim que decidiu ser DJ procurou imediatamente se profissionalizar. Quer dizer, ele não se contentou em fazer um trabalho sem qualidade e assim que possível investiu no melhor equipamento, caixas de som adequadas para garantir o melhor som. Além disso ele sempre se colocou como um DJ especialista em festa, ele nunca se interessou, por exemplo, em ser DJ de grupo de rap. Tampouco ele optou pela atividade de DJ como profissão, preferindo tocar apenas nas horas vagas. Ou seja, além do perfil especialista, ele só toca de acordo com a sua conveniência o que condiz com o perfil analista. Além disso, conforme passagem citada no capítulo anterior ele se considera um DJ eclético por tocar todo o tipo de música. Isso o identifica também com o perfil colecionador. Outra característica diz respeito a sua qualidade de observador, pois era assim que ele aprendia a arte do DJ e “corria” atrás de lançamentos, indispensáveis para ser um bom DJ.

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Então, aí nós íamos pro baile da Chic Show. Aí ia no baile da Chic Show, o Grelo, o Tiano e eu, né. Mais o Grelo e o Tiano, eles iam pra ficar aprendendo a tocar mesmo, que o Grandmaster Duda, ele arregaçava e os cara ficava o baile inteirinho lá. E eu ficava na frente das caixas, que eu gostava de ver os ‘gravão’ batendo, eu ficava na frente das caixas. Aí que que acontece, quando, que nem tem a música do KRS One [canta a introdução da música Step Into a World no falsete], não sei se vocês conhecem essa música, aí essa música lançou de primeira mão, a Chic Show. Quando desceu o telão que tocou essa música, eu subi a milhão as escadas. Baile lotado, “da licença, dá licença, da licença” subi lá quando eu meti o olho na cabine lá, o vinil, como era exclusivo dos cara, eles tiravam o rótulo, o rótulo ele tirava100, não dava pra ver. Aí eu perguntei pra um dos DJ lá e falei: “quem que é esse som aí?” Ele falou KRS One. Poxa, na segunda feira eu: Truck’s Discos [loja na Galeria do Rock, centro de São Paulo]. Aí não tinha. A Truck’s Discos ela importava tudo. Aí eu encomendava, numa semana pra vim de fora, pra depois eu buscar (sic) (Entrevista concedida por Welbe Colombo à autora em agosto de 2016). Quanto as ações, foi possível perceber em seu relato que na sua atividade de DJ ele seleciona, cria e expressa, não dando espaço para experimentação, como quando ele fala de como misturava canções pop brasileiras com uma base instrumental de black music. A sua avaliação pode ser expressa da seguinte forma:

Figura 15: Avaliação da pesquisadora – Welbe Colombo como DJ

Assim como Criolo, a aprendizagem de Welbe parece ser imediata e “natural”: ele cria e expressa um som novo na sua performance como DJ selecionando músicas de estilos diferente e mixando com propriedade sem perder o ritmo. Mas que nem, oh, nós pegávamos uma base dessa aqui [coloca o instrumental “Busterloop” para tocar no celular] eu jogava Skank, Cidade Negra, samba e virava tudo, tipo, você ouvia a base casar um Jorge Bem, você vai e faz casar,

100 A tática de tirar os rótulos dos vinis para manter a exclusividade da música é uma prática que remonta à Jamaica desde dos anos 50 segundo Lloyd Brandley (2000, p.16). 155

faz casar a batida e vai que vai, entendeu? É aquele negócio de talento e vai, é natural de você fazer (Entrevista concedida por Welbe Colombo à autora em agosto de 2016).

Apesar de ser possível deduzir essas categorias a partir do relato de Welbe, ela não substitui a autoavaliação. Isso levou a pesquisadora a experimentar um outro procedimento a fim de conseguir sua autoavaliação a distância. O primeiro passo foi conversar com ele pela ferramenta Messenger do Facebook, perguntando se ele aceitaria participar. Em seguida lhe foi enviado a imagem contendo os perfis de aprendizagem. Ele após a leitura respondeu que se identificou como analista. Ao perguntar se ele se identificava com mais outro perfil, ele respondeu que sim, com os perfis observador e colaborador. Lhe foi perguntado como ele se via no perfil de colaborador enquanto DJ, e ele explicou: “No caso, é estar junto com os outros DJs pra fazer o trabalho junto e aprender novas performances” (sic) (Entrevista concedida por Welbe Colombo à autora em agosto de 2016). Com relação as ações ele identificou que todas estão presentes em sua atividade.

Figura 16: Autoavalição – Welbe Colombo como DJ

Ao contrário da avaliação da pesquisadora Welbe considerou que implementa todas as ações na sua atividade de DJ. Quanto aos perfis observador e analista foram comum às duas avaliações. É curioso que ele não tenha se identificado com o perfil colecionador visto que esse perfil está descrito como aquele que “condiz com o gosto musical eclético”. De uma forma ou de outra, o instrumento pareceu funcionar também no formato de avaliação a distância. Se por um lado na avaliação presencial a explicação oral pode facilitar a compreensão das categorias, por outro, a autoavaliação tende a ser menos imparcial, pois inevitavelmente a pesquisadora

156 acaba interferindo de alguma forma. Na avaliação a distância o músico conta apenas com a descrição das categorias que precisa ser suficiente para compreensão. Neste caso o instrumento obteve sucesso, pois mesmo que Welbe tenha deixado passar o perfil colecionador, ou realmente não se identifica mais dessa forma, os perfis analista e observador foram coincidentes.

3.6 Marcelo Cabral A entrevista de Marcelo Cabral foi agendada pela ferramenta Messenger do Facebook. Foi combinado um encontro em uma praça no bairro de Perdizes em São Paulo. No dia da entrevista estava muito frio e chuviscando. Foi necessário interromper a entrevista uma vez a procura de um lugar protegido da chuva. Contudo o clima não chegou a atrapalhar e ele conseguiu realizar a autoavaliação sem problemas. Assim como Criolo, Marcelo questionou o fato de se autoavaliar a partir de atividades diferentes. Lhe foi proposto as seguintes atividades: produtor musical, instrumentista e arranjador. Marcelo: Mas fazer um para cada? Porque na minha cabeça eles se misturam assim...sabe? A coisa de você ser produtor, instrumentista, arranjador...

Joana: Então seria só o Marcelo Cabral músico?

Marcelo: É porque a maneira que eu toco, tem a ver com a maneira que eu produzo e que eu arranjo.

Joana: Então você teria um perfil só? Tá ótimo, isto já é um resultado.

Marcelo: - Com certeza, estaria… me comporto e presto atenção nas mesmas coisas assim, tanto quando eu tô produzindo quando… se você for me chamar para mim tocar baixo com você ou alguém que pede ah, queria um baixo, ou vou de guitarra, ou um violão, eu vou me portar da mesma maneira como arranjador, como produtor ou como instrumentista, sabe? De falar, de dar opinião, n.um sei o que: “Oh, pensei em fazer uma introduçãozinha assim… (Entrevista concedida por Marcelo Cabral à autora em agosto de 2016).

Após a descrição das categorias Joana: Então você se identificou assim com algum perfil neste caso assim? Marcelo: Colecionador e colaborador e experimentador. Estas três aqui. Pelo que você me falou, que eu me lembre assim. Joana: Então você faz as bolinhas.... Marcelo: Mas eu faço alguma principal assim? Mimetista eu nunca fui, eu lembro que foi uma coisa lá na escola que eu falava: “Cara!”. Tem gente que é bem isso assim...o cara toca e, principalmente aula de percepção assim: pin, pon, e o cara já: “sétima maior, não, sétima menor..”, depois meu ouvido foi chegando nisto, mas tem gente assim que já faz como se fosse, né? E é engraçado, é louco que isso, é óbvio que é ótimo você ter um super ouvido, 157

você tem que ter um ouvido mínimo senão você não, simplesmente não vai tocar...não é possível, né? Mas aquele mito do ouvido do ouvido absoluto, não tem a menor relação se você vai tocar bem... Nada assim, nada! Muito louco isto! Não quer dizer que você tem um super ouvido e você vai fazer uma música bonita assim, sabe? (Entrevista concedida por Marcelo Cabral à autora em agosto de 2016).

Percebe-se que Marcelo Cabral realcionou o perfil mimetista com a percepção musical exemplificando o caso de músicos que rapidamente identificam acordes, o que para ele significa ter um “super ouvido” ou um ouvido absoluto, uma característica que ele não tem. Para ele, a questão do ouvido absoluto é um “mito” no que diz respeito a ser um bom músico. Além dos perfis: colecionador, colaborador e experimentador, ele ainda se identificou com mais um perfil enquanto desenhava as “bolinhas” no papel; Marcelo: Vou usar várias cores, colaborador, quantas bolinhas pode? Joana: Ué, quantas você quiser. Marcelo: Eu acho que articulador também tem isto... Não consigo ficar quieto em ensaio… Joana: Sem dar palpite? Marcelo: É. Mas eu também tenho uma coisa de aprender a não dar palpite...também, isto eu tenho aprendido [risos] Você tem que deixar assim também...às vezes, principalmente na parte de você juntar: na semana passada eu tava ensaiando para criar arranjos para um disco, então você junta com todo mundo, fica tocando, tem tal música, então peraí… aí você fica ali, criando umas linhas de baixo, o baterista não sei o que, todo mundo junto, aí fica tocando aquela música, ah pensei numa introdução, aí tem horas que você tem uma ideia, que as vezes é bom você esperar um pouquinho: “peraí que o negócio ainda falta, peraí que…” se você ficar muito aqui, é ruim porque você tem que deixar o negócio ficar… naturalmente o cara vai se soltar, você vai entender melhor a voz dele, como ele se posiciona, né? Aí tocando você vai soltando também: “ah, aqui tem negocinho daqui pra cá…acho que agora eu posso descansar um pouco muda região do grave pro agudo, posso sair...esta parte aqui ...bateria e voz...” Sem você falar você já tá, você não precisa exatamente falar, para propor, você pode só fazer assim…(sic) (Entrevista concedida por Marcelo Cabral à autora em agosto de 2016). Ao descrever como ele atua como articulador durante o ensaio ele comenta que tem aprendido a se manter distante e até mesmo calado, experando o desenrolar das ideias, dando liberdade para o cantor se adaptar e propondo suas ideias apenas com a sua performance, sem necessariamente precisar argumentar com palavras. No que diz respeito às ações, enquanto ele ia identificando ele ia exemplificando com sua Marcelo: Eu acho que a expressão já está implícita... Engraçado que é tudo né? É muito tudo…Que eu fico por exemplo agora assim...esta semana eu fiquei assim...fiquei duas semanas, teve ensaio teve umas coisas, mas foi um período um pouco mais tranquilo, teve show, não sei o que, mas teve alguns dias livres assim, Olimpíadas [risos], mas aí eu fiquei na MPC pra caramba...MPC, MPC, MPC...

158

Joana: Experimentando? Marcelo: Experimentando e vendo tutorial, aí você fica nessa de imitar assim, “ ah o cara faz isto aqui e pá!” vou ver se eu consigo...voltando lá atrás como se estivesse aprendendo a tocar.., sabe? Indo atrás, ou você começa também junto com esta seleção né? Começa a ver um vídeo, e “-Ah, não gostei deste cara explicar, ou o estilo dele…” e caça outra pessoa assim...experimentação pra caramba assim, começa a fazer igual quando eu vou compor, ou quando eu vou fazer uma linha de baixo, começo meio sem me importar nem se aquilo vai ficar bom, tipo só ver estas coisas aqui…”, experimentando um monte de coisa assim, sem nem, aí quando começa a se formar, aí legal...vou ver por aqui, aí você já começa a limpar um pouquinho para aquilo virar algo assim… Joana: Da experimentação você seleciona então? Marcelo: Normalmente, de tudo que eu faço, eu acho que brota da experimentação, nunca venho com algo tipo assim: “já vou fazer algo super”. Às veze acontece também, né? Você começa e já: Bum! Nossa! Pra mim ali já foi! [risos] ‘Expressa’ eu acho que não devia nem por.. Se não tiver expressão, escolhe outra coisa para fazer…(sic) (Entrevista concedida por Marcelo Cabral à autora em agosto de 2016). Apesar da expressão ser uma ação imprescindível na atividade musical, é possível haver uma molécula sem expressão. Quando o DJ Dandan se autoavaliou ele considerou que ele não cria nada enquanto DJ, contudo ele comentou que escreve muito. Escrever letras de rap, poesia ou qualquer coisa e não apresentar para ninguém é uma atividade em que a criação, talvez a experimentação e a seleção, mas não há expressão. Da mesma forma que um beatmaker que produz beats mas não consegue vender ou encontrar um MC que contribua com a sua voz. Um beat guardado em um arquivo no computador é um trabalho de produção musical sem expressão. O mesmo vale para todas as composições que Criolo considerou que não valesse a pena compartilhar. São composições sem expressão. A molécula, ao final, ficou assim:

Figura 17: Autoavaliação Marcelo Cabral como “músico”. 159

Um aspecto relevante da autoavaliação de Marcelo Cabral é que ele sempre destaca no seu processo a aprendizagem. Quando ele descreve suas características de experimentador ele enfatiza a aprendizagem e ressalta que tudo o que faz parte da experimentação. Essa observação reforça a ideia proposta pelo instrumento que considera os perfis como perfis de aprendizagem, pois como foi dito no primeiro capítulo, não dá para separar a aprendizagem da atividade musical e vice-versa. O relato de Cabral vem ilustrar essa afirmação. “Mas como este negócio de computador gravar, não sei o que, deve ser legal assim…” Ficava este mistério assim… Aí minha irmã estava lá fora e ela trouxe pra mim um laptop e uma plaquinha de som para eu poder plugar ali os instrumentos. Aí eu comecei a fazer isto e vi que eu gostava muito de fazer isto, sabe? De ficar cortando, picando, jogando pra cá, não sei o que, experimentando mil sons assim da guitarra, do baixo, da voz… Mas aí você fica pegando dicas, né? Oh, faz isto aqui, pra você gravar, aprende só isto aqui…pá, pá... É muita coisa, você vai… primeiro você aprende a fazer isto, como que eu espeto aqui o, a guitarra aí grava. Tá bom da próxima vez... Aí a gente vai pegando as aulinhas...enchendo o saco de um monte de amigo (sic) (Entrevista concedida por Marcelo Cabral à autora em agosto de 2016).

Como foi dito no início desse capítulo, não foi realizada uma avaliação previa do Marcelo Cabral pela pesquisadora, pois as únicas informações obtidas antes da entrevista é que ele era produtor e baixista, não tendo sido encontrada nenhuma entrevista em que ele descrevesse a sua formação musical.

3.7 DJ Marco O primeiro encontro com DJ Marco aconteceu na Discopédia. Lá ele passou seu telefone para que fosse combinado um horário para entrevista, que só poderia acontecer quando ele voltasse de viagem. A entrevista acabou sendo realizada na própria Discopédia uma semana depois do primeiro encontro. A festa acabou por volta das onze horas da noite, mas a entrevista só pode ser iniciada assim que a casa começou a esvaziar, para que não houvesse muitos ruídos na gravação. A entrevista precisou ser interrompida algumas vezes, pois depois da meia noite a casa seria fechada. DJ Marco propôs de continuar em algum restaurante, contudo, foi preciso esperar ele conceder uma entrevista para dois jovens que faziam uma reportagem sobre o álbum Ainda Há Tempo e estavam ali, naquele momento, para entrevistar o DJ Marco e o DJ Dandan. Isso acontecia na avenida São João no centro da cidade de São Paulo. Enquanto os jovens entrevistavam DJ Dandan, Marco sugeriu que continuar a entrevista dentro do seu carro, pois estava muito frio do lado de fora. Logo em seguida foi preciso interromper a entrevista de novo para que os jovens pudessem entrevistá-lo, o que foi feito do lado de fora do carro. Assim que acabou, ele sugeriu dar uma carona até a Vila Madalena a fim de encontrar um restaurante para

160 finalizar a entrevista. Contudo, concluímos que poderia continuar no carro enquanto se dirigia para Vila Madalena. Já passa de uma da manhã, quando ao chegar na Vila Madalena decidiu- se acabar a entrevista ali mesmo. DJ Marco encostou o carro em um posto de gasolina e foi nesse momento que ele pode realizar a sua autoavaliação. Diante das circunstâncias descritas acima, é preciso considerar que a autoavaliação ficou um pouco comprometida devido à falta de espaço e iluminação adequadas para que ele pudesse ler as categorias do instrumento com tranquilidade. Como de praxe, as categorias foram descritas pela pesquisadora oralmente e a primeira ressalva apontada por DJ Marco foi com relação a forma como ele se coloca em cada atividade. Lembrando que, como foi descrito no capítulo anterior, são várias as atividades musicais que DJ Marco participa atuando em cada uma delas de forma diferente. Então, eu acho que são momentos, né? São momentos… você tem que saber o momento que você tá vivendo...onde você se encaixa...assim, o que eu penso com relação ao que eu já vivi, né? Se eu preciso articular, ou se eu preciso só analisar...por exemplo: eu estou numa banda agora de rock’n roll que é do Tatá Aeroplano, o lançamento do terceiro disco é agora sexta feira. Na primeira formação eu estava articulando muita coisa. Agora eu estou só esperando o meu momento, o que eu vou fazer, né? Eu tô articulando muito menos, enfim... Acho que cada situação, você tem que saber onde você se encaixa. Eu penso assim, porque nem sempre você, por você ser um articulador, você tem que articular, por exemplo, eu sou um articulador, mas na banda da Céu eu não posso ser um articulador, eu estou ali fazendo um papel, foi ali que eu aprendi inclusive a tocar com uma banda, nunca tive este ensinamento (sic) (Entrevista concedida por DJ Marco à autora em agosto de 2016). Apesar de todas as intercorrências ao longo da entrevista e das circunstâncias do ambiente em que estava sendo realizada a autoavaliação, pelo primeiro comentário do DJ Marco, foi possível perceber que ele compreendeu a proposta do instrumento. Como durante seu relato DJ Marco fez referência a diversas atividades, na hora da autoavaliação, deferente das outras, não lhe foi sugerido uma atividade musical específica como parâmetro e provavelmente, por conta disso ele mesmo concluiu que o seu perfil é relativo a cada momento de cada atividade. Então, eu acho que são momentos, né? São momentos… você tem que saber o momento que você tá vivendo...onde você se encaixa...assim, o que eu penso com relação ao que eu já vivi, né? Se eu preciso articular, ou se eu preciso só analisar...por exemplo: eu estou numa banda agora de rock’n roll que é do Tatá Aeroplano, o lançamento do terceiro disco é agora sexta feira, por isso que eu falei que eu tenho ensaio amanhã e que a gente poderia se ver... na primeira formação eu estava articulando muita coisa. Agora eu estou só esperando o meu momento, o que eu vou fazer, né? Eu tô articulando muito menos, enfim...Acho que cada situação, você tem que saber onde você se encaixa (sic) (Entrevista concedida por DJ Marco à autora em agosto de 2016). 161

Percebe-se que ele, apesar de se identificar com os perfis analista e articulador, considerou que é preciso saber como se portar em cada momento. Esse momento condiz com aquele em que ele pode atuar como produtor musical.

Figura 18: Autoavaliação mediada DJ Marco – produtor musical

Para ele a avaliação é ainda mais complexa, pois como ele explica, no seu trabalho como DJ da banda da cantora Céu ele assumia perfis diferentes de acordo com a música.

M: Eu penso assim, porque nem sempre você, por você ser um articulador, você tem que articular, por exemplo, eu sou um articulador, mas na banda da Céu eu não posso ser um articulador, eu estou ali fazendo um papel, foi ali que eu aprendi inclusive a tocar com uma banda, nunca tive este ensinamento. J: Na banda por exemplo, que situação? Você como DJ, se colocaria como? M: É muito louco, porque dependendo da música eu sou um, ou sou outro… e o tempo inteiro trocando...e o tempo inteiro trocando… J: Você se identifica com todos os perfis? M: É exatamente, o tempo inteiro trocando…Com relação a isto, eu lembro que minha mãe falava uma coisa, minha mãe é budista. Eu fui numa reunião budista uma vez e me falaram na reunião que no mundo existem três tipos de pessoas, três tipos de pessoas, vamos reduzir aqui...a primeira pessoa é a que faz, a segunda pessoa ela não faz, mas ela dá continuidade, e a terceira pessoa não faz nada, ela só observa… E eu falava para minha mãe: “Mas eu sou os três” J: [Risos] M: Eu sei que eu sou os três. Porque hora eu crio, hora eu dou continuidade do que está sendo feito, por exemplo: o disco do Criolo eu não criei nada da carreira dele, eu só ajudei a dar continuidade na carreira dele. A carreira da Céu por exemplo, no começo da carreira dela eu articulei muito, muita coisa, e depois com a banda formada eu segui vários papéis ali dentro, saca? Então eu penso muito isto: eu me identifico muito com…

162

J: Todas? M: Todas [risos] Eu não sou um só aqui com certeza mas… Então, pelo o que eu penso, você tem que ter a liberdade, mas você tem que ter … eu acho… a experiência me trouxe isto… eu saber a hora que eu preciso...articular e a hora que eu preciso ficar quieto na minha...e deixar acontecer, e eu só participar a hora que eu posso fazer alguma coisa que eu ache legal e imitar e trazer para cá...por exemplo né? Eu tô numa banda de rock e eu vou trazer uma coisa bem legal que eu trouxe do jazz, que eu vi fazendo e eu vou fazer aqui, funciona legal por exemplo… (sic) (Entrevista concedida por DJ Marco à autora em agosto de 2016). Já como DJ de banda em que o DJ equivale a mais um instrumentista, ele não pode se colocar como articulador a todo momento, neste caso ele é assume o perfil analista pois precisa estar sempre analisando a forma como deve contribuir para atividade musical. Porque, por exemplo: eu tocava na banda da Céu, com o Criolo é diferente, né? Com o Criolo eu fico com a parte instrumental toda ali na minha responsa, mas por exemplo, na banda da Céu: tinha hora que eu fazia o back vocal, soltava o back vocal, tinha hora que fazia a guitarra e fazia o solo da guitarra, tinha hora que fazia o teclado, tinha hora que fazia o beat. Então tinha hora que quem estava coordenando era eu. Tinha hora que eu estava esperando o meu momento… cada música eu era um instrumento diferente, saca? Eu era o baixo, era a guitarra, o era o back vocal ou era o eu mesmo… Então, e antes disso, isto foi muito difícil para mim… Porque eu fazia show de rap, e show de rap era todo na minha responsa… e eu nunca tive uma aula de música para saber, que tocar numa banda, tinha uma hora que você ia tocar só em dois compassos, só. Você não ia tocar mais. Dentro da própria banda era difícil saber o que eu ia fazer. Sabia que eu precisava fazer as coisas porque não tinha dinheiro suficiente para ter um naipe de metal… para pagar back vocal...né? Não tinha esta grana. Meio que dava para fazer isto. Mas como fazer? Ninguém sabia também. A gente foi se construindo (sic) (Entrevista concedida por DJ Marco à autora em agosto de 2016).

Figura 19: Autoavaliação mediada DJ Marco – DJ de banda

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A postura do DJ de banda e do DJ de show de rap é bem contrastante, visto que na banda não há tanto a liberdade de criar ou experimentar como na performance de rap em que o instrumental é por conta do DJ Porque o DJ precisa ter um conhecimento musical realmente. Saca? Para saber que nem tudo é solo. Porque para a gente tudo é solo. Precisa ter um conhecimento musical realmente. No nosso show de rap DJ e MC. tudo que a gente for fazer é um solo. Eu vou soltar uma voz, um scratch de voz, vai ser um solo. Na banda não, você não vai fazer solo o tempo inteiro. Talvez você faça um solo. Talvez. Mas no geral você vai tocar junto com a banda. E aí, isto é um negócio que não se ensina em nenhuma escola (sic) (Entrevista concedida por DJ Marco à autora em agosto de 2016). Já como DJ solo, sua atuação como DJ de rap que pode também ser estendido ao DJ de festa, ele tem mais liberdade, até mesmo para selecionar todo tipo de música, pois como ele afirma, eu gosto de música no geral, eu sou do rap mesmo, mas eu gosto de música no geral, tenho muita influência de tudo, eu gosto de rock’n roll, gosto de punk, gosto de samba, ouço tudo, eu gosto de música…é o que eu costumo falar: “ Para mim só tem dois tipos de música: Não tem música boa, ruim e boa como todo mundo fala: ‘Ah.. Aquela música é boa…’ eu num tenho esta pretensão, para mim só existe dois tipos de música: a que eu gosto e a que eu não gosto. Então eu não divido muito, eu ouço rock, eu ouço samba… na sequência.. Gosto muito de fazer isto… Então eu sempre misturo... com certeza eu misturo… o show... eu sendo DJ eu sou mais livre. Mesmo errando, com relação a afinação a nota e tal… posso concertar depois, fico mais livre, vou fazer, posso tentar. Então eu prefiro continuar sendo DJ dentro da música, né? (sic) (Entrevista concedida por DJ Marco à autora em agosto de 2016).

Figura 20: Autoavaliação mediada DJ Marco – DJ solo

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Devido ao estender da hora e da complexidade da sua autoavaliação a pesquisadora considerou que não seria necessário o DJ Marco desenhar suas “moléculas”. Neste sentido é preciso considerar que houve uma mediação da pesquisadora na hora de construir as moléculas em acordo com a avaliação que ele fez oralmente. Nesse processo foi importante a diferenciação de DJ Marco fez da atividade do DJ em diferentes atividades musicais, cujo contraste pode ser percebido na diferença das moléculas.

3.8 Ricardo Rabelo A entrevista de Ricardo Rabelo foi a ultima a ser realizada, pois no momento que que a pesquisadora visitou a roda de samba do Pagode da 27 não foi possivel realzar a entrevista. S segunda oportunidade surgiu quando Ricardo, acompanhando Criolo em uma viagem paro o Rio de Janeiro, para participar de odis shows como convidado, o primeiro foi um show de aniversário de um grupo de samba cuja apresentação seria na Fundição Progresso; e o segundo foi em uma hmenagem a Fela Kuti, o Fela Day que acontece em diferente lugares do mundo e que no Rio de Janeiro foi organizado pela Orquestra Abayomy no Circo Voador. A entrevista de Ricardo rabelo acontecu no camarim do Circo Voador durante a passagem de som do Criolo com a Orquestar Abayomy. Após a entrevista lhe foi apresentado o instrumento AMCAM. É interessante demonstrar o diálogo abaixo, pois comforme iam sendo descritas as categorias Ricardo foi acompanhando e concordando com os exemplos dados pela pesquisadora. J: Vamos lá então. O que que eu percebi? Na aprendizagem a gente tem algumas cinco ações que a gente faz: A gente seleciona a música que vai tocar. Desde o instrumento que você seleciona que vai tocar, até o tipo de música que você seleciona. A gente imita, né? Porque a gente tira de ouvido... R: Claro, a gente tira já tá imitando... J: A gente experimenta, que é você ficar testando. Você pode criar uma coisa de uma vez, ou pode ficar experimentando. R: Ou pode ficar experimentando, eu experimento toda hora! J: E o criar, né? Que quando você cria, experimentou e definiu, né? Isto aqui é minha nova música. E a expressão que é o tocar, né? E cantar, né? Então estas são as cinco ações. E aqui são os perfis: o analista é o perfil daquele músico ou da criança, que chega, e ele está sempre analisando se ele vai participar ou não. Um cara que chegou lá na roda de samba, ele até tem o instrumento dele, sabe tocar, mas: “Será que eu vou tocar?” “Será que eu vou tocar nesta roda...? Será que está bom para mim...?” R: Isto acontece muito... J: Não acontece? R: Muiiiito! 165

J: “É não sei talvez” aí ele fica testando, fica um tempão ali observando para ver se ele vai se dar bem. Não porque ele não saiba, mas por uma questão de ver se vai ser conveniente ou não. O articulador, é o cara que meio que (vou fazer sempre no contexto da roda de samba que acho melhor para a gente entender.) “ Não, não , não, você senta aqui, é melhor você tocar isto daqui hoje” ou então: “vamos começar daquela..” É o cara que vai fazer o troço fluir. R: Certo. Como se fosse o diretor musical da situação. J: É, ou se fosse numa orquestra seria o regente. É o cara que vai fazer a prática funcionar no ensaio e tal. Este é o Articulador. O colaborador é aquele cara que está ali disponível. Ele vai dar o apoio pro cara que esta com uma dificuldade, ou ele vai dar um suporte, vai ensinar ou vai trazer a partitura, ou vai trazer alguma coisa que vai ajudar tecnicamente ou em alguma questão necessária. R: Certo! J: O colecionador é um perfil que eu percebi que é um pouco que eu me identifico, que por exemplo: eu adoro instrumento, todos, se eu pudesse eu tinha todos os instrumentos musicais do mundo, e eu tenho vontade de tocar, e se eu ver um instrumento eu vou pegar e vou tocar. Então o colecionador é tipo um colecionador, tanto de instrumentos musicais quanto também, aquele colecionador de gênero. Que vai curtir todo tipo de som, né? R: Curtir tudo. J: O especialista é este cara que tipo assim: “Eu gosto deste instrumento” “Você toca banjo, eu não vou nem entrar na percussão. Nem pego no pandeiro.” “ R: Entendi. J: O experimentador, já é um perfil de um cara que assim: a onda dele é experimentar. Ele não quer saber de compor, entendeu? Ou compõe pouco, ou no final, vai estar sempre assim, aquele cara que gosta de improvisar. R: Certo. J: O mimetista é aquele cara que imita, tem uma facilidade para imitar. Não sei quem tocou lá: ele foi e tocou igual. Entendeu? R: Entendi. J: E o observador é o cara que não interage na atividade musical. É aquele que de repente vai para a roda de samba e fica só curtindo. R: É, que tem bastante também. J: Não quer dizer que ele não tem uma musicalidade, que ele não pudesse cantar, não pudesse tocar. R: Às vezes ele vai para uma roda de samba, mas não é pra ouvir o samba. J: Às vezes ele fica na palminha, não sei o quê. E até canta junto e tal e enfim... Entendeu? Este é o observador. E aí: que eu queria ver se você se identifica com algum destes perfis e destas ações qual você implementa (sic) (Entrevista concedida por Ricardo Rabelo à autora em agosto de 2016). Após a descrição lhe foi explicado que cada categoria seria representada por um átomo e que ele teria que desenhar na folha de papel. Nesse momento o ensaio do Criolo já tinha acabado e ele estava no camarim ao lado do Ricardo apenas aguardando o término da avaliação

166 para poderem voltar pro hotel. Em função disso a pesquisadora procurou facilitar a autoavaliação a fim de não atrasar mais. R: Então, eu escolho um deste aqui? Escolho não, vou ver qual eu me enquadro. Eu sou aqui, eu sou o articulador. J: Então você coloca o AR. R: Eu coloco grande? J: E só como articulador? R: E eu entro aqui também, como experimentador, pois eu não posso ver um instrumento, que eu já tô doido para pôr a mão. [risos]. Aí eu coloco como? Coloco coladinho? J: E nestas ações, qual que você se identifica? Eu pelo que você falou, eu acho que você faz todas né? Que é o experimenta, o seleciona, tipo você seleciona música, você imita, cria e expressa, eu acho que pelo que você contou... R: É, isto aí! J: Então tá, não precisa nem fazer a bolinha para não tomar o seu tempo. R: Ah, é só isso? J: É só isso. (sic) (Entrevista concedida por Ricardo Rabelo à autora em agosto de 2016).

Figura 21: Autoavaliação Ricardo Rabelo

Ricardo foi muito convicto quanto aos perfis que se identificou. Ele realmente apresenta um perfil articulador como foi possível testemunhar no show do grupo de samba que se apresentou na fundição progresso, mencionado anteriormente, em que ele e Criolo participaram como convidados. Em um momento ele e Criolo começaram a cantar canções que não estavam previstas no repertório como Filhos da favela, um samba de sua autoria em parceria com Nenê 167

Partideiro, outro integrante do grupo Pagode da 27. Ricardo em determinado momento, parou no meio da performance para ensinar o refrão para o público que desconhecia esse samba. Ensinou algumas vezes até o público conseguir cantar corretamente. Isso com muita maestria enquanto a banda segurava o ritmo e a harmonia. Na maioria das apresentações do Pagode da 27 é sempre ele que se pronuncia organizando ou apresentando o que for necessário. Já o perfil experimentador, como ele mesmo disse, vem da curiosidade de experimentar instrumentos e novas composições por meio da experimentação.

3.9 Análise da eficácia do instrumento AMCAM e possibilidades de aplicação Controle do comportamento é um processo mediado que é sempre realizado através de certo estímulo auxiliar (VYGOTSKY, 1997).101

A utilidade do instrumento AMCAM na análise comportamental de músicos profissionais consiste em poder mostrar que existem perfis diferentes de músico e que a eminência é relativa a forma como cada músico se engaja na atividade musical. Não há eminência de um único músico na história, existe sempre um grupo de pessoas envolvidas, um ambiente propício, as tecnologias necessárias para cada atividade que possibilitam que um trabalho artístico tome a forma de um produto. Neste sentido, a avaliação molecular do comportamento dos sete músicos mostrou que cada um, guiado pelos seus interesses, pela sua vontade, encontrou o recurso necessário para se expressar musicalmente ao longo de suas trajetórias. O talento foi desenvolvido na proporção da interação dos músicos com as tecnologias da música da cultura do momento, que vão desde a própria música que se fez presente em suas vidas ainda na infância; que neste caso era veiculada por discos de vinil e rádio, outras duas tecnologias indispensáveis nesse processo histórico-cultural, até os equipamentos mais óbvios, como o toca-discos, o mixer e o próprio instrumento musical, a guitarra, o órgão, o banjo, o baixo, a MPC, para relacionar os que foram citados. Contudo, é preciso perceber que a avaliação diz respeito a músicos que não tiveram a aprendizagem direcionada por um ensino “formal” fechado em um método ou modelo. Mesmo no caso de Marcelo Cabral, que estudou na escola de música Groove, este é um caso à parte, pois sua metodologia garante a liberdade do estudante poder direcionar o seu processo de aprendizagem de acordo com seus interesses, ou seja, de acordo com o seu perfil de aprendizagem.

101 Mastery of behavior is a mediated process that is always accomplished through certain auxiliary stimuli (VYGOTSKY, 1997).

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O fato de músico profissionais com muitos anos de experiências em atividade musicais diversas se identificarem com as categorias do instrumento AMCAM sugeriu que existe uma coerência entre o instrumento a realidade da atividade musical profissional, assegurando que as categorias que o compõe são lógicas por condizerem com comportamentos característicos que puderam ser deduzidos facilmente. Todos os participantes conseguiram se identificar com algum perfil de aprendizagem e reconhecer as ações fundamentais propostas como ações que eles empreendem diariamente em suas atividades musicais. Como foi possível ver na análise dos resultados das autoavaliações, alguns músicos já tinham consciência do seu perfil, que as categorias do instrumento cumpriram o papel representar. Para outros a consciência de seu processo de aprendizagem, de seu comportamento, surgiu durante autoavaliação. Como foi dito no primeiro capítulo, o problema do talento diz respeito a dificuldade de se perceber um processo de aprendizagem por traz de habilidades que parecem vir prontas. Para os músicos que participaram desta pesquisa, a eminência profissional já é um fato consumado, uma consequência do reconhecimento de seus talentos, ou vice-versa. Mas ao longo de suas vidas houveram momentos em que alguns deles se questionaram a respeito da sua capacidade de poder trabalhar com música e poder se sustentar financeiramente. Por uma circunstância ou outra, externa aos seus talentos, é que eles conseguiram se manter como músicos e alcançar o patamar profissional em que se encontram atualmente. A aplicabilidade do instrumento será realmente válida se for estendida para além de uma análise retrospectiva, como a realizada pelos músicos nesta pesquisa, mas uma análise em tempo real, principalmente no início da formação musical. Acredita-se que a autoavaliação é importante em qualquer processo de aprendizagem, mas no desenvolvimento do talento ela se torna essencial, pois um talento desenvolvido em desacordo com o perfil de aprendizagem do aprendiz pode resultar em frustração. Com a avaliação molecular é possível identificar que ações estão presentes ou ausentes na atividade musical e o resultado dessa avaliação servir como parâmetro para que o aprendiz controle o seu comportamento, que oriente suas ações de acordo com a sua vontade. Como Vygotsky coloca, o desenvolvimento cultural é resultado da capacidade do ser humano controlar o comportamento, o seu próprio ou de outras pessoas. E nesse processo é fundamental a criação de estímulos artificiais que ajudem a mediar a aprendizagem. O instrumento AMCAM vem cumprir esse papel de “artificial stimuli”, que pode ser utilizando tanto no autocontrole, como no controle mediado por um professor, por exemplo. A diferença entre o comportamento musical de uma criança e a sua capacidade de transformação deste comportamento através da aprendizagem é que vai definir o tipo de ensino técnico necessário relativo a música. Os comportamentos que definem se o processo de 169

aprendizagem é mais rápido e eficaz ou não, devem ser analisados não só com relação ao objeto de aprendizado, no caso a música a partir de seus vários aspectos, mas também com relação a forma como a criança interage com a música, os comportamentos necessários para garantir o seu interesse no aprendizado, a sua motivação ou desejo de aprender mais. Esses comportamentos devem compor o perfil de aprendizagem de cada criança e podem orientar quanto ao ensino, se deve ser mais específico ou mais abrangente, por exemplo. Algumas pessoas talentosas podem ter muita facilidade em aprender música, mas não tem o autocontrole para se dedicar plenamente ao aprendizado. O autocontrole e a perseverança pareceu ser uma característica comum a todos os músicos pesquisados, o que contribuiu para eminência profissional. Como foi possível notar na avaliação desses músicos, a dedicação era sempre fruto de uma vontade muito forte, de uma paixão, do amor pela música e principalmente pela atividade musical. Marcelo Cabral contou que na semana que ele teve momentos de folga, que não ficou na correria de trabalho, tocando com alguma banda ou gravando em estúdio ele ficou espontaneamente envolvido com a MPC, como se fosse um brinquedo, nas suas horas vagas ele se dedica a aprender a utilizar a tecnologia que ainda não domina. Mais espantoso foram as noites em claro do Daniel Ganjaman, também com uma MPC, que resultou em uma obra prima do rap nacional. A nenhum deles foi imposto a necessidade de aprender a utilizar a MPC. A curiosidade, uma faceta da vontade, foi a força motriz para dedicação ao trabalho. Já no caso do Criolo, sua força motriz vem de seus sentimentos, da sua razão em não aceitar as injustiças que ele testemunha diariamente. Seu instrumento é seu pensamento, como Vygotsky explica, “uma ferramenta psicológica”, internalizada, mas que não deixa de ser ferramenta, não deixa de ser o meio, o recurso pelo qual ele controla seu comportamento transformando sensações ruins em arte. A autenticidade desse processo é que gera comoção. A hipótese de Criolo para explicar a eminência de seu álbum Nó na Orelha apresentada na introdução desse trabalho é válida, pois realmente, todos os músicos envolvidos no processo fazem música com amor e por amor. A energia e dedicação é mesma de quando eram apenas jovens tentando se divertir. O reconhecimento social é fruto

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CAPÍTULO 4 ENCONTRO DE TALENTOS E TECNOLOGIAS CIRCUNSTÂNCIAS DA EMINÊNCIA DO ÁLBUM NÓ NA ORELHA

O disco do Criolo foi uma coisa totalmente fora da curva, assim. A gente não pensou em nada. O Nó na Orelha foi um disco que a gente fez da forma com que as músicas iam chegando a gente ia botando, a gente não pensou em nada, inclusive a expectativa não era... sabe? (Entrevista concedida por Daniel Ganjaman à autora em agosto de 2016)

4.1 A circularidade do talento Porque pra quem tá preparado pra não ser feliz, é muito duro a gente falar que é possível a felicidade... (CRIOLO, 2016)102

É muito difícil acreditar que a vida é bela, que o rap é popular ou que o amor pela música pode realmente levar a eminência e garantir “seis refeições ao dia”. É difícil acreditar que o talento possa ser suficiente, que “o amor existe” e que o reconhecimento de todos esses fatores seja possível. O ambiente era para ser desfavorável. Tinha tudo para dar errado. Mas por força das circunstâncias, como num passe de “mágica”, um gesto solidário mudou radicalmente a vida do MC Criolo. O que parecia ser o fim de uma longa caminhada pela estrada do hip hop, se tornou o começo de um novo caminho rumo a projeção como uma personalidade da música brasileira, até então obscurecida pelas circunstâncias hostis da cena musical. Kleber Cavalcante Gomes, antes conhecido como Criolo Doido, deixou o “Doido” de lado para ser apenas Criolo. Para alguns um novo cantor na cena, para outros, um rapper veterano, mas para ele, o mesmo MC de sempre. O marco dessa mudança significativa na forma como a música de Criolo passou a ser recepcionada e mediada na cena da música nacional e internacional se deu a partir de um único artefato: o álbum Nó na Orelha. A intenção inicial de Criolo era apenas registrar canções que não eram propriamente raps, um outro tipo de composição musical que ele há muito se dedicava a compor, mas que era, até então, desconhecida no meio do hip hop.

102 CRIOLO [Reportagem de Fabiano Alcântara para o site Vírgula]. Exclusivo: “Cautela é amor, mas também te põe pra baixo”, diz Criolo. [Data de publicação: 10 fevereiro, 2016]. Disponível em: http://virgula.uol.com.br/musica/exclusivo-cautela-e-amor-mas-tambem-te-poe-pra-baixo-diz- criolo/#img=1&galleryId=1041142 Acesso em: 11 fevereiro, 2016. 171

Sou aquele cara que, se eu tô escrevendo alguma coisa, eu gosto muito de dividir com os amigos e dentre esses amigos um especial chegou pra mim e falou: “pô bicho, tem tantas outras coisas que você faz já há tantos anos, né?”... Que as minhas canções, os meus sambas, já tem uns dez anos que eu componho, né? Mas pouca gente sabe disso. Ele falou: “pô vamos fazer um registro disso, vou te apresentar um cara que é um amigo meu de infância e é um baita de um músico, vamo vê o que que dá”. Aí através desse amigo que é da Matilha Cultural, eu conheci o Marcelo Cabral e através do Marcelo Cabral eu conheci o Daniel Ganjaman... (CRIOLO, 2011).103

Marcelo conta que seu “melhor amigo” Ricardo tem uma relação bem próxima com o mundo do rap, de ouvir muito, de frequentar “´só, rap, rap, rap”. Foi por conta dessa afinidade com o rap e em especial com o Criolo, que Ricardo insistiu para que Marcelo o conhecesse. Aí ele era um cara, é um cara bem próximo de toda esta cultura assim do hip hop assim. E aí ele me falou assim: “Pô, tem um cara que você tem que conhecer, que ele é espetacular que ele é muito foda, vocês têm que fazer alguma coisa juntos. Aí me falou só assim, aí uma vez, aí duas vezes, aí três vezes...aí falando assim, aí outro dia eu fiquei lembrando que uma coisa que ele mais falava assim do Criolo, ele falava: “Pô mano, ele tem uma coisa com a letra com a verdade assim, na maneira de dizer…” que eu lembro que era uma das coisas que ele mais chamava mais atenção do Criolo, né? Aí eu falei: Pô demais, vamos marcar, vamos se encontrar, né? Aí a gente combinou e fomos lá na Matilha, e fomos se encontrar, eu e o Criolo. Aí a gente se conheceu e aí ele já tinha um monte de música, né? (Entrevista concedida por Marcelo Cabral à autora em agosto de 2016).

Daniel Ganjaman fala da intensidade de Criolo ao apresentar suas canções, já no primeiro encontro após receber o convite de Marcelo Cabral para trabalharem juntos na produção musical do disco. (...) “vai rolar um esquema pra gente produzir o disco do Criolo e tal eu queria te chamar pra produzir junto comigo” [cita fala de Marcelo Cabral]. E como eu já conhecia o trabalho dele [Criolo], sempre admirei muito o trabalho dele: “pô, o cara quer fazer um disco de canções, a ideia dele não é fazer exatamente um disco de rap”. (...) Aí fizemos uma reunião e foi assim, .... pô, nessa reunião a gente já viu que o negócio ia ser sério, assim sabe, porque ele já chegou... ele é muito intenso, é uma pessoa extremamente intensa e tal, e ele já chegou com todas as músicas, cantando, uma melhor que a outra, sabe, a gente já ficou super empolgado (sic) (GANJAMAN, 2011).104

No depoimento acima, do produtor Daniel Ganjaman, percebe-se um pouco de surpresa com relação à forma como Criolo se apresentou na reunião e principalmente com relação às músicas que apresentou. Na sequência dessa entrevista Criolo explica como foi esse momento para ele.

103 CRIOLO e GANJAMAN. Criolo e Daniel Ganjaman - Entrevista ao Portal R7 [Data de upload: 9 outubro, 2011]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=6Oc7GBszdbM. Acesso em: 15 dezembro, 2015. 104 Ibid.

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Cheguei com eles, pra eles, com umas setenta canções... tava com muita vontade de fazer esses sambas, muita vontade de fazer outras coisas, coisas que minha mãe cantava pra mim, coisas que eu via que meu pai gostava quando ele colocava os discos dele na vitrola, enfim... a gente é um ser humano em construção, né? Quando você tem 15 é uma coisa, 25 é outra coisa, 35 é outra coisa... embora a essência seja a mesma, a gente procura evoluir pra se permitir vivenciar outras coisas (sic) (CRIOLO, 2011).105

O depoimento acima, mostra que Criolo, enquanto músico, tinha muito mais para oferecer, mas que nunca teve oportunidade de mostrar. Talvez pelo fato do hip hop não oferecer os recursos necessários para performance de outros estilos musicais. Então as pessoas riam de mim quando eu chegava num músico e falava “olha, eu faço um rap, eu gostaria de cantar essa música pra você, você poderia contribuir com seu contrabaixo? Você pode contribuir com seu violão, os caras riam da . Mas riam de verdade, riam de tirar você. Porque ninguém acredita que um moleque de favela, com 15 anos de idade tá fazendo algo que é do coração e que é uma construção artística. Pô, não precisa ter, lógico, esse pensamento todo pra chegar nisso. Mas quanto meus irmãos da minha época, deixaram de fazer um rap, por passar humilhação desses caras. Então quando eu me deparei com o Ganja, um cara consagrado e o Cabral que é um maestro, e esses caras de coração escutando tudo que eu tava cantando e falando: “Vamo, vamo bora, vamo fazer essa parada toda aí” ... Então eu já tenho essa gratidão eterna, isso aí, só isso ai já me... já basta. E aí depois a vivência, né? Porque pra mim e pro Dandan é tudo muito novo. São cinco anos que a gente tá vivendo do Nó na Orelha pra cá, mas é tudo muito novo pra gente. O que tem ao redor do universo da música, não tem nada a ver com a música (CRIOLO, 2016)106.

São muitos os depoimentos que Criolo enfatiza que, o diferencial de Nó na Orelha se deve a participação dos excelentes músicos que, por solidariedade, complementaram seu texto com seu conhecimento musical. Analisando os depoimentos do Criolo em entrevistas disponibilizadas na web, é possível destacar três justificativas dadas por ele mesmo, para explicar o que aconteceu. A primeira ele atribuiu ao rap, como uma entidade que o abraçou e lhe mostrou as ferramentas. eu digo às pessoas que se não fosse o rap, lá atrás em 89, me abraçando e falando que existia a possibilidade de eu me expressar eu acho que nada disso que tá acontecendo hoje, iria acontecer (sic) (CRIOLO, 2012).107

O rap, o rap ele mostra para você as ferramentas que você tem (CRIOLO, 2012, 3:33’).108

105 Ibidem. 106 CRIOLO [entrevistado por RONALD RIOS]. Histórias do Rap Nacional | Criolo, DJ Dandan e Rinha dos MCs | Episódio 6 [Data de upload: 4 março, 2016] Disponível em: Acesso em: 7 junho, 2016. 107 CRIOLO. Criolo fala sobre sua música. [Data de upload: 12 abril, 2012]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=XJdABORV8xU&index=12&list=PLH__eLG01UkE6q7_iOdyBlvCUAmlo -aWY Acesso em: 19 março, 2016 108 CRIOLO. Criolo - "Nó Na Orelha" International Tour 2012 Ep.09. [Data de upload: 12 julho, 2012]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=JkhGtKsb9AY Acesso em: 15 junho, 2016. 173

A segunda diz respeito a oportunidade que lhe foi oferecida por um amigo de registrar suas canções. eu acho que alguém estendeu a mão par mim aos 48 do segundo tempo e o nome desse cara é Ricardo. Ele faz parte de um coletivo chamado Matilha Cultural. Depois de 20 anos de estrada, eu ia continuar no universo da música, porque senão eu morro se eu tiver longe dele, mas de outras formas. E esse meu amigo pediu para que eu fizesse um registro das minhas canções. E aí eu fiz um registro que acabou se transformando num álbum no meio do caminho... (sic) (CRIOLO, 2012).109

na verdade o Nó na orelha, foi uma oportunidade que meu amigo Ricardo me deu de fazer um registro de canções pra ficar pra mim e pra minha família. Então, tem canções ali de dez anos atrás, 15 anos atrás e a ideia dele era justamente essa, que eu tivesse um registro que ficasse pra mim, de tantas coisas que pouquíssimas pessoas sabiam que passava pela minha cabeça (CRIOLO, 2013).110

A terceira ele atribui aos músicos “especiais” que participaram da gravação do álbum e formaram a banda que o acompanhou em todo esse percurso e que fazem música por amor. (...) eu conheci esse cara iluminado, que é o Ricardo e me apresenta o Marcelo. Aí o Marcelo me apresenta o Daniel. E aí o Marcelo e o Daniel começam a me apresentar esses músicos, esses seres humanos especiais, porque falar músico da impressão de que o cara ele é um todo, né. Esses seres humanos especiais, (...) aí você tem a honra de ter o Thiago França do seu lado, a honra de ter o Marcelo Cabral, Sérgio Machado, o Maurício Badé, o Gui Held, o Daniel Ganjaman, o DJ Dandan, ah..., aproveito até o espaço aqui pra agradecer esses caras, porque pra mim estar com essas pessoas é o grande aprendizado. Porque eu e Dandan a gente já tá junto há 17 anos. Ele é uma pessoa muito especial, o senhor Cassiano Sena. Ele é um ser iluminado. E no decorrer do caminho ter a oportunidade, pra mim e pra ele, a gente ter a oportunidade de conviver com esses músicos, tão especiais e tão sérios, né, você vê que são; você fala com o Thiago, com o Marcelo, com o Daniel, com esses todos esses nomes, o Gui, enfim, todo mundo, você vê que são pessoas que são, que dedicaram, dedicam a sua vida a música, amam música. (CRIOLO, 2013, grifos meus).

Ou seja, as justificativas de Criolo apontam três variáveis como determinantes da sua eminência. 1. O rap como formação musical 2. A oportunidade de registrar suas “canções” 3. O encontro de músicos que fazem música por amor.

109 CRIOLO [Entrevistado por Rede Minas] Perfil Criolo. TV [Data de upload: 21 maio, 2012]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=wStMfh59KUo&index=2&list=PLH__eLG01UkE6q7_iOdyBlvCUAmlo- aWY Acesso em: 15 junho, 2016. 110 CRIOLO entrevistado por MICHELE M. MOR. Diarioweb entrevista Criolo. [Data de upload: 29 abril, 2013]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=kcB32zpsMpg Acesso em: 19 março, 2016.

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Contudo estas variáveis estão interligadas. A circunstância que levou o seu amigo a lhe oferecer a oportunidade de registrar suas canções foi o próprio rap, visto que foi no contexto do rap que surgiu esta amizade. A experiência com a Rinha dos MCs, uma festa promovida junto com o DJs Dandan e apoio do DJ Marco. Da mesma forma o encontro com os músicos: Marcelo Cabral baixista e produtor musical que convidou Daniel Ganjaman, para ajudá-lo na produção, visto que Ganjaman tem longa experiência como músico e produtor de rap, já sendo renomado nessa área. Todos os outros músicos que vieram fazer parte da banda chegaram através dos produtores. Pode-se dizer que, mesmo que o encontro desses músicos seja circunstancial, ele está inserido em uma mesma cultura musical. Mas não se pode afirmar que a cultura musical que favoreceu esse encontro seja apenas o rap, pois os músicos que fizeram parte da gravação do álbum têm outras experiências musicais. Tampouco o álbum Nó Na Orelha é um disco 100% rap, já que cinco faixas são canções de outros gêneros, como bolero, reggae, samba, afrobeat, pop, o que justifica a categorização do álbum pela mídia, como MPB. Neste sentido, a cultura musical de Criolo também não se limita ao rap, mesmo que o rap tenha sido o meio pelo qual ele conseguiu as “ferramentas” para desenvolver seu talento musical. A diversidade de gêneros musicais é uma variável importante deste processo, pois foi graças aos diferentes recursos técnicos e instrumentais próprios de cada gênero musical, que as músicas que compuseram o álbum Nó na orelha puderam ser produzidas. Os “músicos especiais” a que Criolo se referiu, foram indispensáveis na produção do álbum Nó na Orelha, que foi concebido para ser apresentado por uma banda de carne e osso, e não apenas por samples e efeitos como é feito em uma apresentação tradicional de rap com DJ e MC. Sem dúvida, a participação de músicos instrumentistas na gravação do álbum e principalmente na performance ao vivo são variáveis importantes que podem justificar a boa receptividade do álbum na cena da MPB. Contudo, de nada adianta um bom arranjo se a ideia musical e principalmente, no caso do rap, o texto, não estiver à altura da produção musical. Assim como os recursos instrumentais se tornam uma tecnologia indispensável para transformação do som em música, os atributos especiais dos músicos, reconhecido pelo Criolo, podem ser entendidos como talento. Já o amor, diz respeito a forma comprometida com que os músicos se relacionam com sua atividade musical. Contudo, de forma paradoxal, as palavras de Daniel Ganjaman, colocam o Criolo e a sua personalidade de “artista” como explicação para o sucesso alcançado. (...) eu não lembro de ter conhecido um artista como o Criolo, ter tido o prazer de produzir, ou a honra de tá trabalhando junto, desde, sabe, anos atrás, 175

trabalhei com vários artistas, vários grupos e tal, mas a intensidade e o frescor de um artista novo como o Criolo, pra mim foi um baque muito grande e eu acredito que muito do sucesso do trabalho do Criolo, se deve ao próprio Criolo, ao artista incrível que eu considero que ele seja (sic) (GANJAMAN, 2012).111

Se por um lado Criolo atribui à produção musical e aos músicos o seu reconhecimento, Ganjaman, um dos produtores não tem dúvida de que o resultado é fruto daquilo que o Criolo é como artista. São essas percepções em que estão envolvidas emoções e sentimentos que fazem da música e do desenvolvimento do músico um processo difícil de ser explicado, caso se tente ignorar o aspecto afetivo da prática musical, mas que, de uma forma geral parece estar contido no conceito de talento. De uma forma ou de outra, o álbum Nó na Orelha, pode ser considerado um artefato, um produto resultante do encontro de músicos e seus talentos desenvolvidos, somados aos recursos necessários para a gravação do álbum, tanto com relação as tecnologias necessárias – estúdio, equipamento de gravação, instrumentos musicais, etc. – como o custeio de toda a produção. Contudo, o valor do álbum enquanto um artefato agrega muito mais do que custo de sua produção, visto que o desenvolvimento do talento musical de cada pessoa que participou da gravação do álbum é resultado de uma vida de dedicação à música, do acúmulo de experiências e habilidades desenvolvidas com competência, sendo o álbum Nó na Orelha, apenas um retrato de todo esse processo. Assim como Criolo afirma ter aprendido e desenvolvido a sua competência como músico através do rap, todos os músicos que participara da gravação desse álbum também tiveram a sua história pessoal de formação musical, que se deu em determinada cultura musical. Ou seja, não dá para separar do resultado musical do álbum Nó na Orelha toda a experiência musical que antecede a sua produção, experiência essa construída historicamente a partir da experiência de cada músico participante, com a cultura musical de seu entorno.

4.2 A confecção de um artefato Nó na Orelha, o porquê? Acho que nasceu desse jeito que eu tenho de ficar enchendo o saco de todos os meus amigos de acabei de escrever uma coisa já sair cantando, né? E o rap, me deu essa base, me deu essa força, me deu essa autoestima e falou: vai lá e não desista dos seus objetivos (CRIOLO, 2011).112

111 GANJAMAN, Daniel. Ideias Online - Música na Rede [Data de upload: 30 maio, 2012]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=1Kc0S9oHHtY&nohtml5=False Acesso em: 5 junho, 2016. 112 CRIOLO. [MANÍACO DA CÂMERA]. Lançamento do disco "Nó na Orelha" – Criolo. [Data de upload: 3 junho, 2011]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=xbZEh8qMh-I. Acesso em: 23 junho, 2016.

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O ponto de partida para confecção do álbum Nó na Orelha foi garantido por um amigo em comum chamado Ricardo da Matilha Cultural. O Ricardo que apresentou o Marcelo que apresentou o Daniel. Essa foi a circunstância que possibilitou a gravação do que seria um registro de canções para guardar de lembrança para família. Canções que Criolo insistia em cantar ao pé da orelha de seus amigos, toda vez que compunha. Canções que se diferiam do rap em sua “musicalidade”, mas não abandonava o mesmo teor das letras. Verdadeiros raps escritos em ritmo de samba, reggae, bolero, marcha e afrobeat, com melodias distintas e entonações que ultrapassaram a estética do canto falado do rap sem abandonar os trejeitos de timbres e efeitos de voz que um MC utiliza para invocar a sua mensagem. Na hora que estava mixando o disco eu comecei a olhar com outros olhos. Assim, falar: “põ, esse disco aqui, acho que pode dá um caldo” sabe? “Pode ser legal”, era isso que a gente estava pensando assim. Eu estava otimista assim tipo: “pô, vai ser bacana, acho que vai fazer um barulhinho”, não que ia ser o disco mais aclamado do ano, ali, sabe? Que foi, nas listas todas mais importantes, foi o primeiro lugar. Ganhou 16 prêmios, se eu não me engano, esse álbum. Foi um negócio inacreditável, assim foi... foi o artista do ano sem dúvida, foi a nova cara, o novo nome assim que despontou. Tanto que chamou atenção, né? Do Chico, do Caetano, do Ney Matogrosso, o Milton, foi tudo meio, foi impactante nessa época, né? (sic) (Entrevista concedida por Daniel Ganjaman à autora em agosto de 2016). Não tem como retirar as circunstâncias e os encontros da história de sucesso do álbum Nó na Orelha. As condições para gravação do álbum não foram as melhores, não houve sequer planejamento, apenas a vontade de três músicos construir esse artefato. Vontade garantida pelo amor a música, por músicos que mesmo que dependam da remuneração da sua arte fazem música por amor. Lá no Rocha antigo, a gente tinha essa sala de ensaio e tinha uma sala de gravação também. Aí pra fazer o trabalho do Criolo, como a gente não tinha muita verba, não dava pra ocupar o estúdio, eu montei uma sala com os meus equipamentos que a gente tinha em casa. E a gente ficou trabalhando lá sem ar condicionado. Criolo ia gravar voz a gente punha fone de ouvido. O disco do Criolo Nó na orelha foi concebido desse jeito, tá ligado (risos), foi feito de um jeito muito doido. O disco ele tem um pouco isso, sabe? Ele tem esse suor (GANJAMAN, 2014).113

Um trabalho “suado” que foi pago, mas nem de longe o dinheiro investido na produção do disco alcança o seu atual valor cultural. É importante ressaltar esses aspectos, pois a estrutura montada para a gravação do Nó na Orelha diz respeito aos recursos utilizados, quer dizer, as tecnologias disponíveis e os talentos para utilizá-las. Em um primeiro momento, antes de se

113 GANJAMAN. Daniel. Perfil Daniel Ganjaman - Manos e Minas [Data de Upload: 10 setembro, 2014] Disponível em: Acesso em 20 maio, 2016. 177

pensar em lançamento do álbum ou como seria apresentado esse disco, ele era apenas um artefato, um registro de música em CD, talvez em vinil, mas sem a pretensão inicial de, a partir desse artefato, se pensar em um espetáculo, em uma performance com uma banda de 16 músicos e toda a infraestrutura necessária para isso. O início da confecção do álbum Nó na Orelha contou apenas com um núcleo de três músicos: Criolo, Marcelo Cabral e Daniel Ganjaman: Ficou só nós três, o disco Nó na Orelha foi inteiro feito só nós três. Num quartinho, um computador e a gente foi fazendo tudo. Pegando música a música e… e aí? O que a gente faz com essa, e aqui? Foi fazendo uma a uma. Mas já tinham umas que eram certeza absoluta assim, sabe? Nossa essa música é muito boa (Entrevista cedida por Marcelo Cabral à autora em agosto de 2016).

Três músicos, três talentos distintos com perfis de aprendizagem diferentes como foi possível constatar nos capítulos anteriores. E nessa história quem “avaliou” primeiro foi Ricardo, o melhor amigo de Marcelo, amante da cultura hip hop, profundo conhecedor de rap, cuja “orelha” o Criolo deu um “nó” de tanto cantar suas canções e seu ouvido, sem parar. Ricardo foi o principal mediador desse processo, que percebeu o talento de Criolo, assim como o talento de Marcelo Cabral e sentiu que o encontro poderia ser complementar. A Matilha queria bancar um disco do Criolo. Porque onde ele colava ele estava sempre querendo mostrar as músicas dele diferente do rap, né? Ele sempre chamava e falava: “Oh, escrevi essa daqui. Pá, e cantava um pedaço”. Oh escrevi essa outra aqui. “Caramba, mas isso aí não é rap!” “É eu fiz uns sambas aí. Fiz um reggae também”. Ele sempre tinha uma coisa nova diferente, né? Ele acabou cantando lá e os caras piraram na ideia e aí rolou essa parceria dele com a Matilha e o Cabral. E o Cabral enxergou a possibilidade de chamar o ganja que viu que ele tinha mais letra de rap pesado também e o Ganja é amigo do Cabral já estava mais familiarizado com esse tipo de produção. Então ele pensou em somar (DJ MARCO, 2016).114

Criolo tinha a ideia, a mensagem reunida em texto e a melodia e muita vontade de se expressar, de transformar as canções que saíam de sua mente em alguma coisa que valesse a pena compartilhar. Mas ele não tinha mais recursos além dos recursos internos de transformar dor em arte. Mas Marcelo Cabral, tinha. O conhecimento da música, das notas, da harmonia, um estúdio com as tecnologias necessárias para acrescentar às composições de Criolo cantada a capela, o som, a harmonia, os timbres, o ritmo e tudo o que fosse necessário para complementar o texto e a melodia de tantas canções. Mas Cabral não se contentou em fazer isso

114 DJ MARCO. PÁG. 1 - DJ Marco (10 Anos - Ainda Há Tempo). [Data de upload: 08 setembro,2016] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=8lX6fLf5apI Acesso em: outubro, 2016.

178 sozinho e procurou Daniel Ganjaman que a essa altura já era referenciado como produtor de rap, entre outros gêneros musicais. Marcelo Cabral conta que Criolo, no início, não queria realmente gravar rap assim, não queria gravar nenhum [rap]. Eu lembro já o primeiro encontro assim, eu falei: “Ganja ele não está querendo gravar nenhum rap, a gente vai gravar, né? ” Ele falou: “Não, não, não, vamos fazer…” Tipo, como o legal é você unir tudo né? E não tipo, ah não. E não era tipo assim, deixando para trás, era: “Já fiz né? Já fiz o Ainda Há Tempo, estou com estas canções, quero ir agora para este outro lado, já fiz minha contribuição…” e a gente não aceitando isto, né? E aí quisemos regravar o Grajauex e o Sucrilhos e ainda propusemos de fazer também o Lion Man. Uma do zero, pô, brotou assim, sabe? Tem muita coisa para sair daqui! Uma coisa do cara, que tem propriedade absoluta para fazer assim, né? Domina ali o que fazer (sic) (Entrevista concedida por Marcelo Cabral à autora em agosto de 2016).

Assim como o amigo Ricardo, os produtores Cabral e Ganjaman reconheceram o talento de Criolo não só com relação a sua habilidade de compor em diferentes estilos, mas principalmente na sua habilidade de compor rap. Se por um lado Criolo já se sentia satisfeito com o seu primeiro álbum Ainda Há Tempo e não desejava mais gravar rap, Daniel e Marcelo ainda viam no rap do Criolo algo que não era possível deixar de fora. Grajauex e Sucrilhos já eram hits na cena do rap, mas ganharam uma nova roupagem no álbum Nó na Orelha. Os primeiros versos de Lion Man, o rap composto especialmente para esse álbum como explicou Cabral, retratam exatamente aquele momento que ele estava vivendo: E se fosse pra ter medo dessa estrada Eu não estaria há tanto tempo nessa caminhada Artista independente leva no peito a responsa tiozão E não vem dizer que não (CRIOLO, 2011)

Os raps do Criolo não podiam faltar, mas o álbum tinha muito mais a oferecer, segundo Cabral parecia estar virando uma verdadeira “salada”, só que uma salada temperada com a verdade, com a vida, ou melhor com a personalidade de Criolo. E aí, a gente foi juntando tudo isso, às vezes eu dava risada disto tudo achando: “Que puta salada que a gente tá fazendo aqui, né?” Tinha Freguês, Grajauex e Linha de Frente, e Mariô, tinha umas coisas tipo Não Existe Amor em SP… tipo um disco: ‘Cara... o que que a gente tá fazendo?!” Mas ao mesmo tempo, tinha uma unidade, porque era a gente que estava fazendo, com a voz dele, o texto dele, não era negócio de gravadora que vê repertório pro cara assim, né? Era um negócio todo assim que tudo se delineava mesmo. Um assunto que ele está falando no Freguês ele ta falando no Grajauex, no Sucrilhos assim… tudo está… Ele, o assunto, a vida dele, a verdade ali está presente todo momento, né? (sic) (Entrevista concedida por Marcelo Cabral à autora em agosto de 2016).

O álbum Nó na Orelha não se limita ao rap ou somente a música, mas se configura na forma de Criolo perceber e sentir o mundo. Forma esta que está presente na sua performance, 179

na energia que coloca ao expressar suas ideias que foram potencializadas pela energia das ideias musicais contidas nos arranjos que seus novos amigos estavam construindo. A complementariedade do trio pode ser percebida no relato de Ganjaman ao tentar descrever como acontece a parceria entre eles. As ideias musicais de Criolo chegam prontas, e são expressas no seu canto e fazer um arranjo para suas músicas nem sempre é um processo fácil. O Criolo tem uma coisa característica, que pra mim assim é um lance que é inexplicável. Porque ele não tem base teórica, nem até em termos de conhecimento musical mesmo assim, não é um cara que tem, é... putz; um cara muito é, é... com uma, com uma... um repertório grande, sabe, de conhecer muita música, tal, ele não é. É um cara que tem um repertório, bastante... eu diria, é... peculiar, assim, porque ele pinça coisas aqui, aqui e ali, o que é ótimo também, né, porque com certeza enriquece. Mas ele, tem uns sambas dele, por exemplo, que ele canta pra mim, e eu fico ouvindo e falando “gente do céu! Da onde?” Porque tem uma complexidade harmônica que as vezes até a gente, até eu e o Cabral que estamos mais do lado dele; Cabral é um cara mais estudado mesmo, né? E ele, é, às vezes até ele tem dificuldade na coisa de harmonizar as músicas que o Criolo chega, pela complexidade daquilo. E a gente vê que faz todo o sentido, sabe? Porque é isso, né, o cara chega cantando, você tem n possibilidades harmônicas pra harmonizar aquilo, né, pra fazer o arranjo (sic) (Entrevista concedida por Daniel Ganjaman à autora em agosto de 2016). O Ricardo da Matilha Cultural não abriu somente as portas do estúdio El Rocha para o Criolo ao lhe apresentar o Marcelo Cabral, abriu infinitas portas para que o talento do Criolo pudesse atravessar e encontrar novos parceiros, outros talentos que pudessem se complementar. Como ele mesmo diz no refrão de Lion Man “o Criolo quer colar, pra somar” (CRIOLO, 2011). E ele “colou” também com Kiko Dinucci, músico guitarrista, violonista e compositor que compõe canções na língua ioruba e integra o trio Metá Metá. A gente fez este disco lá no Rocha, né? A gente tava numa sala, e na salinha do lado tava o Metá Metá115 também gravando o primeiro disco deles, que ainda era sem banda, eram só os três. O Tiago, a Juçara e o Kiko, né? Violão, sax e voz. E a gente já era amigo, conhecia os três, já tocava junto...em outras formações assim. Já eram amigos mesmo, assim. Já tocava junto diariamente assim. E aí foi surgindo algumas coisas e eu fui falando: “Nossa, isto é a cara do Kiko, né?” Tipo, eu lembro quando ele começou a cantar Mariô, cantarolando alguma coisa neste estilo assim, sabe? Indo pra este lado aí eu disse: “Vou chamar o Kiko” e ele tava na porta do lado, assim sabe? Tum, assim, abre a porta e ele estava ali. “ É vocês têm que se conhecer”... aí nós gravamos ali a base pro Kiko - “Oh! Faz aí. Aí o Kiko fez o refrão, né? Aí dali seguiu. Aí a gente foi montando o que tinha para cada música, né? Vendo que pessoas que poderiam participar… (sic) (Entrevista concedida por Marcelo Cabral à autora em agosto de 2016).

O “estilo” de Mariô, a que Cabral se refere, diz respeito a intenção de Criolo em compor alguma coisa que fizesse referência à religião de matriz africana. Mariô é um rap cujo refrão

115 Uma banda de música popular contemporânea.

180 reverência o orixá Ogun em ioruba. Criolo não possui nenhum vínculo religioso, ele afirmou para revista Rap Nacional, que a música é sua religião (DOMINGUES, 2013, p. 60). Essa referência vem da própria tradição do rap nacional que, desde o primeiro disco lançado em 1989 no Brasil, HIP-HOP cultura de rua, cuja primeira faixa, Corpo fechado da dupla Thaíde e DJ Hum trazia o tema religioso como um resgate da ancestralidade africana. O álbum Sobrevivendo no Inferno (1997) dos Racionais MC’s abre com uma saudação a Ogun, seguido da interpretação da canção Jorge da Capadócia, do compositor Jorge Ben Jor (1975). Sabotage, quem Criolo tem como “um mestre”, sempre faz referência a religiosidade ligada aos cultos de matriz africana nas suas composições (DOMINGUES, 2013, p. 60). Kiko Dinucci é um estudioso da língua Ioruba e da música africana de uma forma geral. Sua contribuição foi significativa para o álbum, pois abriu mais uma porta de comunicação do rap de Criolo com aqueles que compreendem o que o refrão em ioruba representa. Mariô abriu caminhos para o Nó na orelha, da mesma forma que Ogun abre caminhos por dentro das matas. Politicamente falando, essa canção elevou Criolo ao status de mais um representante da luta contra a intolerância religiosa, uma causa autêntica dentro do movimento hip hop. No álbum Convoque seu Buda lançado após o Nó na Orelha ele repete a receita e compõe uma canção em Ioruba saldando Exu. Em entrevista à Vibe ele explica o porquê da homenagem as religiões de matriz africana. Ah, nós estamos no Brasil, né? Existe uma diáspora africana maravilhosa, e com ela não só a dança, a culinária, mas toda uma energia cósmica, através de suas religiões. Assim como os rituais indígenas né? Tão pouco falados, que são nativos nesta terra e só ganha o nome de índios porque os caras estavam procurando as índias, né? Então você tem um tanto de história aí mas, é..., é tentar apenas fazer um aceno e dizer que todo o credo, todo querer de fé, merece respeito, e porque não falarmos também das religiões de matriz africana? (CRIOLO, 2015).116

Percebe-se que a diversidade estilística do álbum Nó na Orelha em nenhum momento rompeu com a cultura da black music e os princípios do hip hop. Pelo contrário, manifestou uma musicalidade que sempre esteve presente por traz das duras palavras e de batidas fortes. A diferença está na tecnologia. Um beat, por mais que seja composto por samples de diversos gêneros, não é a mesma coisa que o som de instrumentos musicais. Eram só três músicos comandando a confecção de Nó na Orelha, mas cada faixa contou com a participação de outros músicos que contribuíram com seu talento e o timbre de seu instrumento.

116 CRIOLO. Criolo na Vibe. [Dada de upload: 23 janeiro, 2015]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=QyaarjACD9c&index=15&list=PLH__eLG01UkE6q7_iOdyBlvCUAmlo- aWY Acesso em: 19 outubro, 2015.

181

Eram músicos que estavam por perto e que dispuseram de seu tempo vago para gravar apenas com ajuda de custo. O cavaquinho de Rodrigo Campos, o violão e voz de Kiko Dinucci, o sax de Thiago França, a guitarra de Guilherme Held, a percussão de Mauricio Badé (do grupo Nação Zumbi), além do baixo (acústico e elétrico) de Marcelo Cabral e teclados de Daniel Ganjaman. Sem falar nas vozes de Juçara Marçal e Verônica Ferriani. O disco contou com a participação de Rubinho Antunes e Guilherme Guizado no trompete, mas no show de lançamento quem tocou foi o trompetista Gustavo Souza. No sax barítono, Anderson Quevedo na gravação e Hugo Hori no show de lançamento, Barítono, nas cordas: Renato Rossi na viola e Luiz Gustavo Nascimento no violino e Samuel Fraga na bateria. E como não podia deixar de estar presente, o DJ Dandan comando ora as pick-ups, ora como MC. São muitos nomes, e cada nome um talento, uma habilidade que esteve presente seja na gravação o na performance ao vivo corporificando cada música. Isso para falar das pessoas que estavam à frente do palco. Mas por traz de todo espetáculo há sempre um staff que faz a coisa acontecer. A Matilha Cultural pretendia custear a gravação de canções como um registro “para família e amigos”. Mas ao longo do processo o projeto tomou outro rumo e não faltaram esforços para fazer “a coisa” acontecer O Criolo, foi desde o início um empenho muito grande, assim: eu e o Cabral produzindo, aí depois quando a coisa começou a andar, eu conversei com a Biba [Beatriz Berjeaut], na época ela era minha mulher, e aí ela já tinha esse selo, mas estava meio parado, estava trabalhando um pouco com distribuição, mas estava meio desanimada, aí eu falei: “oh, esse menino aqui, acho que vai ser legal hein! Se você quiser retomar a parada com algum artista, esse cara aqui é uma cara que vai valer a pena” O estúdio na verdade foi a Matilha Cultural, né? É, foi a matilha que pagou... mas a Matilha não queria nada em troca. Na verdade, eles iriam pagar provavelmente uma prensagem pequena e a coisa iria ser distribuída na ‘boca a boca’, mas aí, logo no começo já a Biba falou eu vou assumir e fazer. Foi ela que investiu. Foi ela que acreditou e prensou vinil, prensou CD. Pagou assessoria de imprensa tal. Desde então é ela que cuida dele, da carreira dele toda (sic) (Entrevista concedida por Daniel Ganjaman à autora em agosto de 2016).

Os esforços não foram em vão e o investimento da Oloko Records, selo de Beatriz Berjeaut, foi recompensado pois, mesmo que o álbum tenha sido disponibilizado para download gratuito, as vendas aconteceram, não só do produto álbum em CD ou vinil, mas principalmente do produto show. A música quando não se torna um produto, não se materializa em algo vendável, permanecendo apenas um comportamento difícil de ser comercializado. A carreira profissional do músico não pode ficar limitado à sua arte, pois não é assim que sociedade funciona. Para arte ser realmente uma atividade profissional é preciso haver remuneração. A remuneração só acontece na troca do produto arte por dinheiro, mas para que isso aconteça é preciso ter dinheiro para investir na arte. Essa é a lógica que vem perdurando no sistema

182 econômico vigente. Seria possível haver um produto sem as tecnologias necessárias para sua produção? Ou seria possível um produto artístico capitalizar tanto, sem os talentos incorporados nesse produto? Entre passos e tropeços, o percurso trilhado desde o início da confecção de Nó na Orelha até o show de lançamento, apesar de não ter sido planejado a priori, e sim, surgido ao longo do processo, foi determinante de sua eminência, como veremos adiante.

4.3 No Grajauex, Subirusdoistiozin: o prenúncio em vinil A primeira iniciativa de divulgação do álbum Nó na Orelha, foi a de compartilhar em um vinil duas canções do álbum: Subirusdoistiozin no lado “A”, inédita até então, que dá nome ao single; e Grajauex, no lado “B”, um rap já gravado como extra, no DVD Criolo Doido Live in SP (CRIOLO, 2009)117. O produtor Daniel Ganjaman, conta como surgiu a ideia de lançar o vinil em meio as dificuldades de produção do álbum. A gente começou a trabalhar o disco e, tecnicamente era pra gente ter lançado o disco em 2010 mesmo. A ideia era ter ficado no estúdio três meses e lançar no fim do ano, só que, enfim, foi ficando em estúdio, trabalhando, tal, tava uma loucura, pouco recurso, a gente não tinha muita grana. Todo mundo que participou do disco, participou por ajuda de custo. Então, é conforme a gente ia trabalhando conforme as coisas vão pintando, né, conforme os buracos de tempo de todo mundo iam pintando e com isso a gente chegou ao fim do ano, sem o disco pronto, mas com duas músicas fechadas, que era o Subirusdoistiozin e o Grajauex. Então eu falei: “vamo fazer um vinil disso”. Era uma grana, fazer um vinil, mas no caso a gente tinha um respaldo ali da Matilha Cultural, que, foi a Matilha Cultural que bancou todo o projeto do disco do Criolo e eles se prontificaram: “a gente banca esse vinil também”, e a gente fez esse vinil e fizemos um lançamento na Matilha Cultural do vinil. Só, um show de DJ e MC, só e tal. (...) o disco veio da república tcheca, e a gente só tinha recebido 250 cópias e acabaram, acabou a cerveja de todos os bares da rua, foi um absurdo assim, foi muita gente. E eu comecei a ter noção de que aquilo realmente poderia...... isso porque a gente só colocou uma coisa muito próxima do que era o Criolo Doido ainda, dentro do cenário do rap, que ele sempre teve um respeito muito grande, mas a gente não tinha dado um cheiro do que viria a ser o disco como um todo, que tinha um passeio gigantesco por vários estilos musicais e tal (GANJAMAN, 2012)118.

Quando Ganjaman chama a atenção para o fato de que o lançamento do vinil ainda não anunciava a diversidade musical do álbum Nó na Orelha, por se tratarem de dois raps ainda no “estilo” Criolo Doido, ele pretende enfatizar que, independente das inovações estilísticas das canções que levou Criolo a lançar este álbum, ele era um artista que já demandava um

117 CRIOLO. [Arranca Tampa Produções, 2009] DVD Criolo Doido Live in SP. [Data de uploada: 14 novembro, 2012]. Disponível em: Acesso em: 22 junho, 2016. 118 GANJAMAN, Daniel. Ideias Online - Música na Rede [Data de upload: 30 maio, 2012]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=1Kc0S9oHHtY&nohtml5=False Acesso em: 5 junho, 2016. 183

expectativa com relação a composição de raps do público do hip hop, que há muito ansiava por um novo álbum, por novas músicas, novas ideias e, até mesmo, velhas performances. Para quem acompanha um MC de rap, todo show é relevante. As pessoas que curtem o rap são fieis e seguem seus MCs favoritos como profetas, como mestres. Pois não é só um público em busca de diversão. Um show de rap é uma oportunidade de aproveitar um pouco mais da música e da mensagem que o MC e DJ passam, um ambiente para se confraternizar, trocar ideias e principalmente aprender. Todo MC e DJ são mestres em potencial, principalmente aqueles que já estão há “tanto tempo nessa caminhada” (CRIOLO, 2011). O Lançamento desse vinil foi realizado na galeria de arte da Matilha Cultural, um espaço cultural no centro de São Paulo, no dia 20 de dezembro de 2010, sem palco, apenas com os recursos de DJ + MC, com uma pick-up comandada pelo DJ Marco e dois MCs ao microfone: Criolo e Dandan, parceiros desde antes do lançamento do primeiro álbum de Criolo Doido, o Ainda Há Tempo. Essa formação DJ Marco, Dandan e Criolo começou na Rinha dos MC’s e ficou registrada da gravação do DVD. A performance contou com um repertório de raps conhecidos, além dos dois raps que estavam sendo lançados no vinil. O evento foi registrado em vídeo no formato de documentário produzido pelo Coletivo Instinto119. Nas imagens do vídeo é possível perceber a emoção de Criolo diante da importância que o evento representa para toda sua trajetória até o momento. Ele declara a satisfação de poder dividir com as pessoas essa conquista em sua careira como músico, e destaca o valor da amizade e apoio daqueles que o acompanharam até ali. Em fala emocionada ele diz: Um colega meu, pai de família hoje, tem uma família linda, tá ligado? Trabalha no comércio do meu bairro, tá ligado? Ele ganha 800 reais por mês, tá ligado? Ele pagou 80 reais pro amigo dele cobrir ele, pra ele poder vir hoje na festa. Não tem troféu que banca isso .... é nois,... é nois! (Sic) (CRIOLO, 2010).

Entre as músicas apresentadas registradas nesse vídeo constava Sucrilhos, em versão antiga disponibilizada em streaming no youtube, e Cerol, música que até hoje ainda não foi gravada. Durante a performance dessas duas músicas foi possível perceber que o público cantou junto a letra inteira, como é comum acontecer em shows de rap. Cerol, em especial, é um rap que se tornou uma espécie de hino do Hip Hop. Na sequência ele interpreta a capela sua paródia de Cálice120, canção de Chico Buarque e Gilberto Gil. Esta versão foi gravada em 2010,

119 CRIOLO. Lançamento do vinil - Criolo Doido. [Data de upload: 24 dezembro, 2010]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=hZHfqLYAyoA Acesso em: 12 jun, 2016. 120 CRIOLO. Criolo Doido - Cálice – [Data de upload: 9 setembro, 2010]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=akZY0-6Rs0A Acesso em: 2 março, 2016.

184 informalmente, por um amigo, que postou o vídeo no youtube sem muita pretensão. O vídeo acabou virando um meme121 da internet. Outra canção cantada a capela foi Lantejoula, canção ainda não gravada e cantada em ritmo de baião. Na sequência do evento, quando foi possível escutar os primeiros sons da introdução da música Grajauex, o público grita em uníssono, ao reconhecer os beats da primeira versão como consta no DVD de 2009122 e já apresentada também, em outras performances. Ao perceber a euforia do público, Criolo não consegue conter sua emoção e, chorando, não consegue cantar, apenas começa a falar emocionado, relembrando as dificuldades que passou pra chegar até ali e chamando a atenção dos jovens, para importância da coragem de não desistir do rap: O brilho dos carros, o brilho das motos e das bicicletas. Os moleque faz o maior corre e não tem dinheiro pra entrar na festa de rap. A noite inteira bebendo água de torneira que nem eu fiquei, tá ligado, mano. O rap tá na mão de vocês mano, quem tem 15 anos de idade, 20 anos de idade. Eu tô indo pra 36 anos de idade e os irmãos também [se refere aos DJ Dandan e DJ Marco]. A gente fez o que a gente pode fazer mano. Demorô pra acontecer os bagulhos. Não cobram nada de nós manos, não sejam covardes. Tá na mão de vocês de cada um de vocês ... (sic) (CRIOLO, 2010).

Após a fala emocionada, Criolo canta com o público os primeiros versos do refrão de Grajauex e depois se vira pro DJ Marco pedindo pra tocar a base da música para nova versão. Em outro vídeo que documentou o evento é possível ver o momento em que o DJ Dandan interrompe completamente a música Grajauex dizendo “para, para, não é esse instrumental, não é esse! (DJ DANDAN, 2010)123 e em seguida chama a atenção do público para escutar a introdução da nova versão que já rolava no toca-discos do DJ Marco. Ao final da música, Criolo sai de cena e o som do vinil preenche o final da performance ao toque do DJ. A reportagem realizada por Adriana Couto para o programa Metrópolis da TV Cultura, também descreve o aspecto emocional da performance de Criolo e a resposta do público. Dia de lançamento na Matilha Cultural e oh, tá lotado! Sabe por quê? Criolo Doido vai lançar seu single hoje. (...) No palco o Criolo Doido é só emoção. O MC da Zona Sul parece sentir cada rima que canta. Deve ser por isso também que o povo delira quando Criolo apresenta os clássicos. São vários. O criador da Rinha, uma batalha de improviso, é certeiro em usar as gírias da rua nas músicas. Mas hoje é dia de música nova, depois de 23 anos contando as histórias das quebradas, como o bairro do Grajaú onde vive e cresceu, ele

121 Meme foi um conceito criado por Richard Dawking (2006) na intenção de descrever as ideias ou atos que se replicam culturalmente (isto será revisto no primeiro capítulo deste trabalho). Um meme de internet é um conteúdo que é compartilhado e assistido por muitas pessoas. 122 CRIOLO. [Arranca Tampa Produções, 2009] DVD Criolo Doido Live in SP. [Data de uploada: 14 novembro, 2012]. Disponível em: Acesso em: 22 junho, 2016. 123 DJ DANDAN. Criolo Doido lançamento do single "Subirusdoistiozin/Grajauex" [data de upload: 21 dez, 2010] Disponível em: A cesso em: 19 junho, 2016. 185

agora se prepara pra lançar o segundo álbum. Um single do disco, já está na rede e sai também em vinil. (...) E a música Subirusdoistiozin já mostra o Criolo mais melódico. Esperem mais novidades no disco, prometido pra março do ano que vem (COUTO, 2010).124

Adriana Couto pergunta ao Criolo sobre a apresentação do single em vinil, e ele responde: “esse vinil é uma exaltação aos DJs maravilhosos, que eu acredito que se não tivesse DJ o que seria do hip hop supremo que temos hoje” (CRIOLO, 2010).125 O detalhe do vinil é um aspecto importante para a cultura hip hop, como salientou Criolo, visto que foi assim que começou a arte do rap, junto com os DJs e seus vinis.

4.4 Não existe amor em SP e o fenômeno viral A canção Não existe amor em SP é um ‘fenômeno’ a parte do álbum Nó na Orelha. Como Criolo contou em sua autoavaliação, esta foi uma canção que foi surgiu no meio do processo de gravação do álbum, quando ao se dirigir para o estúdio Criolo a compôs enquanto estava dentro do trem se dirigindo para o estúdio El Rocha. Daniel Ganjaman conta essa história a partir do seu ponto de vista. Ah, a gente chegou, o estúdio era em outro lugar, em Pinheiros e aí era próximo, ele vinha pelo metrô; aí muitas vezes ele chegava mais cedo, as vezes chegava um pouco mais tarde. O Criolo é realmente muito bom com essa coisa de horário assim, e geralmente ele chegava mais cedo. E aí ele chegou, ele estava sentado na escada assim, ali meio pensativo tal. Aí chegou, eu e o Cabral, a gente chegou praticamente junto, eu fui abrindo a porta do estúdio ele falou: “Cara, fiz uma música nova”. “Pô, massa! Como é que é?” Aí ele começou a cantar a música, inteira. A gente “pô, musicão, hein!”. Aí: “é, vim pensando nisso e me bateu essa música no caminho”. Aí a gente já pegou já, eu peguei um loopzinho de bateria, ele gravou a voz, a gente meio que deixou em cima disso assim, fez umas harmonizações e tal e depois que a gente produziu ela com calma. Mas ele realmente apareceu com a música pronta. Foi bem, bem... e a gente estava no meio do processo do disco. Ou seja, todas as músicas dele estavam, todas não, todas as que a gente tinha alguma vontade de colocar no disco, estavam entregues ali, né, a gente estava trabalhando em cima delas. E essa música surgiu no meio do processo (Entrevista concedida por Daniel Ganjaman à autora em agosto de 2016). Para Ganjaman é surpreendente que essa música tenha causado tamanha repercussão, pois do ponto de vista musical, seria a última música que ele utilizaria para anunciar um novo disco. Ele considera muito lenta e intimista para ter “um perfil de uma música de trabalho”, aquela que é escolhida como o hit do álbum. Contudo, depois do sucesso do lançamento o single Subirusdoistiozin em vinil, ele sentiu a necessidade de soltar uma música

124 Ibid. 125 CRIOLO. [Reportagem de ADRIANA COUTO]. TV Cultura Programa Metrópolis (Criolo Doido - Subirusdoistiuzin). [Data de upload: 22 dez, 2010]. Disponível em: Acesso em: 18 junho, 2016.

186 que fosse bem diferente dos raps do Criolo Doido. Ere queria apresentar o novo Criolo e da forma mais amadora fez o upload da música para o youtube em um streaming montado com imagens que ele achou na internet. Depois, quando a gente voltou a trabalhar no disco eu falei, cara vamo lançar uma música que sintetiza mais o menos o disco na net, só pra gente sentir a coisa, sentir como que a coisa iria rolar, né? E aí eu mesmo montei um clipe super tosco, assim com fotos que eu peguei na internet de pichações de alguns, se eu não me engano são dois ou três artistas plásticos que fazem intervenção em São Paulo. (...) Eu montei, assim, eu peguei um programinha que vem no sistema operacional do computador e coloquei, sobrepondo fotos ali e tal, e montei e coloquei. E as pessoas acham que é videoclipe. Hoje, até antes de vir pra cá eu dei uma olhada tava como 1.486.000 views, sei lá alguma coisa assim, absurdo. E eu fico até assustado de ver, porque eu fiz a coisa numa expectativa tão baixa e é o clipe com mais visualização do Criolo, assim. É claro que é muito por causa da música, que eu acho que é a música mais forte do disco (sic) (GANJAMAN, 2012).126

Figura 22: Printscreen do streaming da canção Não existe Amor em SP 127

126 GANJAMAN, Daniel. Ideias Online - Música na Rede [Data de upload: 30 maio, 2012]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=1Kc0S9oHHtY&nohtml5=False Acesso em: 5 junho, 2016. 127 CRIOLO. Criolo - "Não Existe Amor em SP" [data de upload: 28, março, .2011]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=f35HluEYpDs Acesso em: 3 novembro, de 2016.

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Tanto para Ganjaman como para Dandan essa canção reflete um sentimento de insatisfação da população paulista com a hostilidade das políticas públicas do governo da época. Ela surge no mesmo momento de indignação que levou a juventude às ruas protestando por direitos que estavam sendo tolhidos pelo prefeito. Para Ganjaman essa canção virou um hino, pautou um monte de situações assim, inclusive porque veio junto com todo um sentimento. Acho que essa foi uma época importante, assim, na sociedade mesmo aqui em São Paulo, foi uma época importante, que começou a ter muita coisa mesmo de ocupar as ruas, tal. Foi quando, inclusive, logo na sequencia disso o Haddad ganhou e eu acho que teve muito a ver com essa movimentação das pessoas começarem a querer ter uma sensação de pertencimento, assim maior na cidade, sabe? É que a gente vinha, na verdade aqui em São Paulo a gente vinha de um governo assim né, um prefeito que a jurisdição do cara foi muito opressora, sabe? Tirou artista de rua, da rua. Sabe? Proibiu que artistas que, qualquer tipo de manifestação artística na rua, ou seja, palhaço, malabarista de sinal, sabe, tudo isso. E quando isso aconteceu eu lembro que foi um choque muito grande. Começou a ter umas coisas em São Paulo, uns focos de gente se juntando pra fazer coisa na rua, sabe? E, logo antes do Haddad ser eleito, a gente fez um festival grande também, na praça Roosevelt, entendeu. Juntando só a galera nossa assim também, aí juntou vinte mil pessoas, foi incrível (Entrevista concedida por Daniel Ganjaman à autora em agosto de 2016).

Esse festival foi realizado no dia 21 de outubro de 2012, ano de eleição para prefeito e foi marcado pelas hashtags: #ExisteAmorEmSP e #AmorSimRussomannoNão, segundo reportagem noticiada por Pedro Sanches no blog Farofafá128 da revista Carta Capital online. O evento que foi documentado em vídeo129 pela equipe de produção do Criolo tinha uma proposta apartidária e contou com a performance do Emicida e da cantora Gaby Amarantos, além do próprio Criolo e banda. Neste vídeo é possível perceber o empenho do Criolo de passar a mensagem para o público da necessidade de mostrar para a “cidade” que eventos de rap não causam perturbação da ordem pública. A periferia veio ao centro participar de um evento auto-organizado, autogerido e autorregulado, que não registrou um incidente sequer, apesar da mistura considerada explosiva por políticos e gestores públicos conservadores. Enquanto isso, no Facebook, rodinhas de jovens conservadores se reuniam para revalidar o hábito de desdenhar esse tipo de (re)encontro, sob o velho pretexto racista maldisfarçado de resmungar que “só tem gente feia”.

“Vamos pra casa em paz, mano, NÃO DÁ MOTIVO!”, Criolo enfatizava repetidas vezes ao final de sua apresentação. Talvez a mensagem não significasse tanto para públicos de classe média e alta (também presentes), mas significa TUDO para a periferia e para o rap – e para o tecnobrega, o

128 SANCHES, P. O rap recupera o centro de São Paulo. Disponível em: http://farofafa.cartacapital.com.br/2012/10/22/o-rap-recupera-o-centro-de-sp/ Acesso em: 2 novembro, 2016. 129 CRIOLO. Criolo - Festival #ExisteAmorEmSP [Data de upload: 25 outubro, 2012]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=MNPpDslLttw Acesso em: 2 novembro, 2016.

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forró, o funk, o axé, o arrocha, o lambadão, as periferias paraenses, nortistas, nordestinas, sulistas etc. ali reunidas-simbolizadas numa pessoa só, a de Gaby Amarantos (SANCHES, 2012, grifos do autor).130

Não é possível dizer que a mobilização é incitada por uma canção, mas sim que a insatisfação coletiva dos paulistanos é também uma insatisfação do próprio Criolo enquanto cidadão paulista. Para Savazoni (2016) fenômeno como esse aponta para o surgimento de um território ciberpolítico em que os sentimentos das pessoas são articulados por redes sociais, incitados pelas hashtags e desencadeando em movimentações de rua, e neste caso a música veio a ser um catalizador de sentimentos e ações. A arte da canção está na capacidade de reunir em letra e melodia um sentimento que é compreendido por outros. Um sentimento que é expresso não só nas palavras, mas também na música que se arrasta em ritmo de balada com o apelo do arranjo de cordas. A música neste caso é o recurso ideal para deixar gravado na memória das pessoas a ideia do texto. O slogan Não Existe Amor em SP não faria nenhum sentido não fosse a música o seu veículo.

4.5 É o teste, é a febre é a glória...131 Além das iniciativas de lançar um single em vinil e postar no youtube um “clipe super tosco” da canção Não existe amor em SP, como disse Ganjaman em seu relato acima, outro importante passo estratégico que precedeu o show de lançamento do álbum Nó na Orelha, foi “esquentar” a “banda do Criolo” em uma festa chamada Seleta Coletiva. Ele explica como a partir da sua experiência com o Instituto, um núcleo de produção musical do qual fazia parte, ele criou uma festa chamada Seleta Coletiva que acontecia na casa de show Studio Sp, que ficava na Rua Augusta, na cidade de São Paulo. O Instituto é um núcleo de produção musical, são três produtores, eu, o Rico Amabis e o Tejo Damasceno. A gente se juntou, final dos anos 90, começo de 2000. A partir de um certo tempo eu comecei a desenvolver a Seleta Coletiva como se fossem shows do Instituto com alguns temas. Muito orgulho de ter trazido ao palco grandes nomes, pessoas que eu admiro muito assim: Tulipa Ruiz, Kamau, Emicida, Talma de Freitas, Carlos da Sé, Marco Ribas... o próprio Criolo, a primeira vez que Não existe amor em SP foi executada ao vivo foi numa Seleta Coletiva. Enfim, pra mim aquilo era um laboratório muito importante (GANJAMAN, 2014).132

130 SANCHES, P. O rap recupera o centro de São Paulo Disponível em: http://farofafa.cartacapital.com.br/2012/10/22/o-rap-recupera-o-centro-de-sp/ Acesso em: 2 novembro, 2016. 131 Trecho do refrão da música É o teste do álbum Ainda Há Tempo (CRIOLO DOIDO, 2006). 132 GANJAMAN. Daniel. Perfil Daniel Ganjaman - Manos e Minas [Data de Upload: 10 setembro, 2014] Disponível em: Acesso em 20 maio, 2016. 189

Percebe-se que a estratégia de Ganjaman em criar esta festa era justamente abrir um espaço para o lançamento de novos artistas, além de funcionar como um laboratório, um lugar onde os músicos pudessem experimentar seu som ao vivo, composições, novas formações de banda, etc. No vídeo que documento esta festa, Ganjaman e Kiko Dinucci comentam sobre o aspecto eclético da festa que propiciou o encontro de músicos de “escolas diferentes, mas com alguma “identidade”. Daniel Ganjaman: Eu acho legal o fato da Seleta ser uma festa que não é fechada num estilo musical só... Kiko Dinucci: quebrou barreiras botou gente de escolas diferentes tocando junto... Ganjaman: ...e que de certa forma tem um pouco de uma identidade. Dinucci: E esse disco, com essa mistura de gente, com essa mistura de pessoas e estilos... Ganjaman: Na minha opinião, assim, tem um retrato de um momento, assim da música que tá acontecendo no momento aqui em São Paulo e por consequência no Brasil (...) O próprio rap acho que vive um momento de quebra de paradigmas, assim, sabe, aí isso eu acho que rola na música. (sic)(GANJAMAN e DINUCCI, 2011).133

É possível perceber no depoimento dos dois músicos que, de certa forma, a apresentação de Criolo nessa festa se adequava ao seu caráter, não apenas pelo fato de Ganjaman ser seu produtor ao mesmo tempo que é o idealizador da festa, mas também pelo caráter eclético que ambos, “festa Seleta Coletiva” e “álbum Nó na Orelha” agregam. A ideia era fazer um esquenta do que vai ser a banda do Criolo, pro lançamento do disco, assim, a gente fazer um show, pra dar uma esquentada um pouco nessa formação e ver como é que isso iria rolar. (...) E assim, essa Seleta Coletiva tem um motivo muito importante, assim, sabe, que é essa coisa de a gente tá coroando a ligação de todo mundo que tá aqui junto, trabalhando junto e acaba que tendo o Criolo, meio que no centro dessa história toda. Então, pô, eu tô bem feliz. Ele, você pode ver não tá muito [a câmera foca o perfil de Criolo, pensativo], mas eu tô bem feliz. [Risos dos músicos em volta] (sic) (GANJAMAN, 2011).134

Talvez por ser a primeira vez que Criolo participava dessa festa, ou por ser ele o pivô desse encontro de músicos e motivo para o qual a festa estava sendo realizada, tenha o deixado um pouco apreensivo, sem poder, naquele momento, comemorar com a mesma alegria e descontração de Daniel Ganjaman. Contudo, foi fato que aquela festa em especial, representou um marco importante na cena da música paulista, do rap e consequentemente da música

133 GANJAMAN, Daniel e DINUCCI, Kiko. SELETA COLETIVA @ Studio Sp (Criolo+Tulipa Ruiz+Kiko Dinucci+Juçara Marçal+Verônica Ferriani [Data de upload: 2 maio, 2011] Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=Yq5pxCdaxO0 > Acesso em: 22 junho, 2016. 134 Ibid.

190 brasileira. O depoimento do Criolo deixa transparecer ainda mais a sua apreensão e responsabilidade com o acontecimento. Cada pessoa que tá aqui entregou sua vida pra música. Ninguém aqui tá brincando, entendeu? Eles respiram música, vivem música, vão atrás do seu ganha pão, tem família, entendeu? (CRIOLO, 2011)

Dos músicos que participaram da festa, apenas a Tulipa Ruiz não participou do show de lançamento do Nó na Orelha. Além da sua apresentação solo ela cantou sua música Só sei dançar com você junto com o Criolo. Depois desse primeiro encontro houveram outras situações em que os dois voltaram a cantar juntos, como na música Cartão de Visita do terceiro álbum de Criolo, o Convoque seu Buda, canção que ele disse ter composto pensando nela como segunda voz. Das performances que ficaram documentadas no vídeo, foi possível identificar performance Criolo cantando Subirusdoistiozin; um Solo de guitarra pelo guitarrista Júnior Boca; performance de Rainha das Cabeças, da banda Metá Metá, composta por Kiko Dinucci, Juçara Marçal e Thiago França; Verônica Ferriani cantando Um sorriso nos lábios, composição de sua autoria; Tulipa Ruiz interpretando Aqui e Só sei dançar com você, junto com o Criolo, como já foi dito. Por último a performance de Criolo cantando Não existe amor em SP. O documentário é encerrado sem imagens no vídeo, apenas o som da plateia aplaudindo o final da performance de Não existe amor em SP e a declaração de Ganjaman em off: “Nasce um clássico. Criolo eu te amo! Eu te amo, Criolo, muito... muito!” (GANJAMAN, 2011).135

Diante da emoção do ‘ensaio’ da banda se preparando para o lançamento do Nó na Orelha, só restava esperar o show de lançamento de verdade. A expectativa era grande pois como conta Ganjaman, a primeira leva de ingressos se esgotaram em questão de horas. eu mesmo bati no sesc Vila Mariana, com os contatos que eu tenho lá e falei: “olha, tô lançando um artista o Criolo, provavelmente vocês aí do sesc não conhecem ainda, mas acredita em mim, vai rolar” Aí a mulher do sesc lá que fecha tudo chegou pra mim, falou: “Ganja, olha lá, hein”. Falei: “ não, confia em mim”. Aí, acabaram, os ingressos acabaram, puta, em questão de horas assim, do teatro do Vila Mariana que cabem, sei lá, 800, mil pessoas, acho que é uma coisa assim. Acabou em questão de horas e ela me ligou e falou: “Meu Deus do céu Ganja, por que você não me avisou, eu tinha feito o fim de semana inteiro”. Eu falei: “eu avisei, eu não sabia também que ia ser isso”. E abrimos

135 GANJAMAN, Daniel. SELETA COLETIVA @ Studio Sp (Criolo+Tulipa Ruiz+Kiko Dinucci+Juçara Marçal+Verônica Ferriani [Data de upload: 2 maio, 2011] Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=Yq5pxCdaxO0 > Acesso em: 22 junho, 2016.

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em uma data extra e esgotou também em um dia, enfim foi... e o show também foi maravilhoso, foi lindo, foi incrível (sic) (GANJAMAN, 2012).136

Depois de todo o percurso para chegar ao show de lançamento do álbum Nó na Orelha, a única preocupação deveria se dar com a qualidade da performance. Este show foi documentado em vídeo pelo Instituto e apresenta alguns depoimentos do público: Entrevistador: O que mais chamou atenção na banda do Criolo: Entrevistados Anônimos (1) acho que a irreverencia, né? Muita musicalidade. (2) Mostrou que o rap não é só o rap, né? Várias formas de agir, várias formas de pensar, formas de cantar (3) Os metais, achei bem bacana. Ele também, a performance dele, roupa e tal (4) sensacional (5) Banda é banda, outra fita (6) Mano, os caras são uns monstros, foi lindo, foi lindo, foi lindo. (7) Merecido pra caramba esses arranjos aí. (8) eu gostei muito [criança] (9) essa é a revolução do MC né brother... (10): Já nasceu clássico e vai sempre ser clássico [mostra o vinil autografado]. E o show sensacional. Porra emocionante o show, véio. Ele retrata bem isso daí, né? É uma cidade fria precisa de mais amor mesmo, é isso que ele quer passar na letra, mais amor (INSTITUTO, 2011).137

O Show de lançamento foi apenas o primeiro de muitos outros que compuseram a turnê Nó na Orelha, e que se estendeu por palcos pelo Brasil a fora e para fora do país, até 2014, quando ele lançou seu terceiro álbum, o Convoque seu Buda, para Criolo, uma celebração de encontros, encontro de talento que fizeram história.

4.6 De volta para cultura O Nó na Orelha, na minha opinião teve a coisa da hora certa, o lugar certo, teve muito isso... também. O acaso tem muito a ver com tudo isso também, principalmente no que diz respeito a mercado e tal, hoje em dia não tem regra nenhuma, não tem... né? As coisas acontecem, mas eu acredito muito nos artistas que tem algo pra apresentar de relevante, acredito muito que hoje em dia a gente tá vivendo o nosso melhor momento, porque, com a facilidade que a gente tem de propagar isso, é... só facilitou que os bons talentos mesmo, aparecessem (Entrevista concedida por Daniel Ganjaman à autora em agosto de 2016, grifo meu). A “facilidade” a que se refere Daniel Ganjaman diz respeito às tecnologias da comunicação, dos recursos derivados do advento da internet. Com as novas tecnologias de edição de áudio, os “home studios” e a disponibilidade infinita de música em arquivos de MP3, nunca foi tão fácil se produzir uma música, principalmente quando a música do momento já tem por tradição esse tipo de composição “bricolada”, ou por meio da “gambiarra”, como diria Guilhermo Caceres et al (CACERES; FERRARI; PALOMBINI, 2014). Os primeiros Sounds

136 GANJAMAN, Daniel. Ideias Online - Música na Rede [Data de upload: 30 maio, 2012]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=1Kc0S9oHHtY&nohtml5=False Acesso em: 5 junho, 2016. 137 MANÍACO DA CÂMERA. Lançamento do disco "Nó na Orelha" – Criolo. [Data de upload: 3 junho, 2011].Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=xbZEh8qMh-I Acesso em: 23 junho, 2016.

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Systems da Jamaica eram verdadeiras gambiarras, assim como o sistema de dois toca-discos e um mixer montado por Kool Herc no bronx. Se naquela época já era viável corromper as tecnologias para transformar a música, como os scratches produzidos pelos DJs a fim de estimular os dançarinos, hoje em dia, tudo é possível. No entanto, de nada adianta os recursos se os comportamentos não se fizerem presentes. As tecnologias sozinhas não fazem nada, são apenas objetos, materiais em potencial, nada mais. É no comportamento que uma tecnologia se torna recurso para criação de algo que só pode ser expresso pelo comportamento. E quanto mais expressivo for, maior a comoção. Por isso que Ganjaman acredita que hoje, mais do que nunca, as tecnologias favorecem os “bons talentos”, pois só se destacam aqueles que conseguem utilizar os recursos a seu favor, potencializando suas habilidades, expressando seu talento e fazendo chegar sua arte na mente de cada um. Mas não é só isso que as tecnologias da comunicação permitem hoje. A ferramenta youtube virou um grande palco, um palco inclusivo e democrático que da mesma forma que serve de plataforma para artistas se lançarem, favorece artista amadores que com a ajuda de um celular e um computador podem gravar suas performances, interpretações das músicas que estão em voga. Não existe amor em SP não é só um viral com relação a quantidade de visualizações que o streaming postado pelo Ganjaman contabiliza. A viralização pode ser percebida na quantidade de covers que essa canção tem. Pessoas que tiveram o trabalho de deduzir a harmonia da música, aprender a letra e a melodia e preparar um pequeno show dentro do seu próprio quarto, sem glamour, mas com autenticidade, para compartilhar na internet. Esse fenômeno só é possível devido a facilidade de criar um bom vídeo com câmeras embutidas em celulares ou computadores. O youtube é uma plataforma que qualquer pessoa pode ter um canal e fazer uploads de vídeos. E isso tem sido tão aproveitado de uma forma geral, que hoje em dia alguns youtubers, como são chamados, pessoas que criaram um canal e se tornaram populares na rede, recebem dinheiro para manter o seu canal popular e consequentemente a popularidade da própria ferramenta que fatura por meio da publicidade. A youtuber, cuja performance de Não existe amor em SP tem mais visualizações, é a Mariana Nolasco, que ao que tudo indica, se mantem como “artista youtuber”, mas não poderá recusar apresentações ao vivo para seus fãs, como sugere a reportagem ao site Globo.com intitulada: “Banquinho, violão e selfies: Mariana 193

Nolasco é fenômeno na web aos 16” (ORTEGA, 2014).138 Seu canal tem hoje mais de 2 milhões de inscritos.139 E quanto mais pessoas postam vídeos de performances musicais amadoras, mais pessoas tomam coragem para se expor dessa forma. É possível ser artista por poucos minutos e atingir um público sem limite de tempo e espaço. Isso representa a transformação de um artefato em tecnologia, em recurso para aprendizagem e desenvolvimento de habilidades musicais, possibilitando o despertar de talentos que, não fosse a democratização propiciada por essa ferramenta, talvez nunca pudessem se projetar para além do seu quarto. Quando o álbum Nó na Orelha contribui com canções que são aprendidas, rearranjada para algum instrumento musical e expressa por alguém, ele se torna mais uma tecnologia da cultura musical do momento, assim como os vinis de black music foram outrora; o youtube faz hoje o papel do rádio que de forma gratuita veiculava música para a população, sem o privilégio que o jabá garantia àqueles que podiam pagar. Além disso, a diferença é que, hoje, quem é o DJ é o próprio ouvinte, que seleciona a música que quer escutar. A escolha favorece talentos que talvez não fossem escolhidos pela grande mídia e provavelmente é por essa brecha que o rap e o funk saíram dos guetos. No rastro de Projota, Emicida, Criolo, Rael, entre outros, novos MCs vem alcançando eminência e fortalecendo a cultura do hip hop. MCs pioneiros como os integrantes do grupo Racionais MC’s e Thaíde, despertaram para o movimento que parecia adormecido. As próprias batalhas de MC, como a Batalha do Real, que no Rio de Janeiro inauguraram a prática do rap freestyle, mas por algum motivo saíram da cena por um tempo, estão tomando folego nessa nova maré ressurgindo com apoio da prefeitura. MC’s quarentões, cinquentões, tentando resgatar suas origens. É preciso reaprender e reinventar a forma de se apresentar como um MC de rap. Sem a censura da grande mídia que não consegue controlar a internet, a juventude negra e periférica consegue receber a mensagem e se enxergar na história daqueles que conseguiram trilhar o caminho da vitória com muita dificuldade, bebendo água de torneira nos eventos de rap ´por não ter dinheiro para comprar uma bebida, como disse Criolo. Isso nos leva de volta a hipótese apresentada na introdução de que a eminência profissional é circunstancial ao encontro de

138 ORTEGA, Rodrigo. [Reportagem para globo.com]. Banquinho, violão e selfies: Mariana Nolasco é fenômeno na web aos 16. [Data de publicação: 3 novembro, 2014]. Disponível em: http://g1.globo.com/musica/noticia/2014/11/banquinho-violao-e-selfies-mariana-nolasco-e-fenomeno-na-web- aos-16.html Acesso em: 12 novembro, 2016. 139 Canal de Mariana Nolasco no youtube. Disponível em: https://www.youtube.com/channel/UCTOSI18KyJSZWouZM5kADvg Acesso em: 12 novembro, 2016.

194 talentos e tecnologias determinado pela cultura musical de um meio e, ao mesmo tempo, determinante desta mesma cultura, como parte de um processo histórico. Como Criolo costuma dizer, o álbum Nó na Orelha foi disponibilizado gratuitamente para download na internet, porque ele recebeu de graça. Ele não se refere só ao fato de alguém ter pago o custo da produção, mas também a sua formação como compositor e MC que frequentou a escola de música da rua, cujo mestre foi o rap e nunca lhe cobrou nada por isso. Todas as tecnologias relacionadas favoreceram a democratização da música da periferia, aquela que fala de uma realidade que não pode ser vista na teve. A cultura musical que os estudantes encontram quando saem da escola. O rap já passou pela censura e repressão que o funk proibidão ainda passa (CACERES; FERRARI; PALOMBINI, 2014). A mensagem do texto não é bem-vinda ainda, e a ascensão do rap nacional na cena da música brasileira parece mais um furo de reportagem, algo que fugiu do controle. O status de popular da MPB não é e nunca foi suficiente para dizer que a música é do povo, pelo contrário, historicamente esse status segregou a música do povo destacando a música de uma pequena elite. Mas a sigla MPB agora é designada para Música Periférica Brasileira, como pode ser contemplada na composição da MC Yzalú, ou Música Preta Brasileira como diria Heloisa Buarque de Hollanda (2012). A “nova” MPB é a cena que acena para a sociedade dos excluídos.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho procurou estudar a relação entre talento musical e eminência profissional na cena do rap a partir das trajetórias do MC Criolo, DJ Dandan, Daniel Ganjaman, DJ Welbe Colombo, Marcelo Cabral, DJ Marco e Ricardo Rabelo, cujas histórias de vida e processo de formação musical foram analisados a partir do Modelo Analítico do Desenvolvimento do Talento Musical – MADTM e do Instrumento de Avaliação Molecular do Comportamento Musical – AMCAM criados para esse propósito. O ponto de partida para esse estudo e a construção desse modelo foi pensar a aprendizagem de música e desenvolvimento do talento musical a partir do conceito de desenvolvimento cultural definido por Vygotsky (1997) que destaca a importância dos dispositivos artificiais criados pelo ser humano no intuito de controlar o comportamento. Esses dispositivos podem ser entendidos como recursos, tecnologias que mediam a aprendizagem e interferem diretamente no comportamento e no desenvolvimento de novas estruturas mentais que, quando expressas são reconhecidas como habilidades. O conceito de tecnologia abrange não só os objetos que são utilizados como recursos para aprendizagem, como também os sinais, as ideias, as imagens e o próprio pensamento, considerado por Vygotsky, como ferramentas psicológicas que são interiorizadas ao longo do desenvolvimento humano, sendo a infância, a partir do momento em que a criança começa a falar, o ponto inicial desse processo. A música enquanto sinal ou imagem sonora pode ser compreendida como uma tecnologia que, quando interiorizada, funciona como recurso de aprendizagem para o desenvolvimento de habilidades musicais. Por meio da imitação as crianças aprendem a cantar e tocar instrumentos. Através da experimentação conseguem criar novas possibilidade de expressão musical. Mas esse processo não acontece isolado, ele se dá em um meio social em determinado momento histórico. A cultura desse meio se constitui a partir dos materiais, recursos e comportamentos presentes. A música é apenas um aspecto da cultura que é definida pelas tecnologias criadas que possibilitam a sua permanência ao longo do tempo. A cultura musical vai sendo transformada na medida que novas tecnologias são inventadas. E da mesma forma que tecnologias são criada por pessoas, por meio da aprendizagem pessoas desenvolvem habilidades, talentos e competência a partir do uso de cada tecnologia. Uma pessoa se torna musical a partir do uso das tecnologias da música desenvolvidas de diferentes formas por cada cultura em cada momento histórico. É a peculiaridade de como cada grupo de pessoas ou sociedades inteiras desenvolvem comportamento e tecnologias musicais que configura uma cultura musical.

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A cultura musical em destaque neste trabalho é a black music que foi vivenciada pelos músicos participantes dessa pesquisa e puderam contar como essa cultura se desenvolveu historicamente no Brasil culminando no movimento hip hop, ao mesmo tempo que contribuiu para formação musical de cada um. Diante dos Sound Systems, dos vinis e toca-discos, cada músico encontrou na música uma possibilidade de expressão, de motivação e identidade. O desenvolvimento dos talentos desses sete músicos é resultado direto da interação entre eles e a cultura em que estavam inseridos, ou seja, entre eles e os recursos disponíveis compreendendo não só as tecnologias, mas também o comportamento de outras pessoas que ao longo do processo puderam mediar a aprendizagem ao servirem de modelo. No encontro de talentos e tecnologias cada músico pode desenvolver suas habilidades se tornando músicos profissionais. A eminência de cada um é relativa ao perfil de aprendizagem e as ações implementadas em cada atividade musical, favorecendo a eminência da própria cultura musical a partir de uma rede de encontro de talentos, habilidades artísticas reconhecidas que em meio à comoção social redefinem a estética musical do momento. É em função dessas circunstâncias que o álbum Nó na Orelha, deixa de ser apenas um artefato para se tornar uma tecnologia que incorporou o talento de todos os músicos envolvidos no processo se tornando uma ferramenta para o desenvolvimento de novas habilidades, novas estéticas, desencadeando novos comportamentos e, consequentemente, contribuindo para continuidade da cultura musical que possibilitou a sua origem. O rap de MC Criolo, entre tantos outros, circulou pela cultura musical paulista comovendo pessoas e conquistando amigos, parceiros que junto alcançaram destaque se projetando para fora da cultura musical em que se desenvolveram, em um efeito de expansão cultural e ascensão social que se volta para o ponto de partida, fortalecendo o movimento hip hop em todas as suas dimensões. Com o modelo MADTM e o instrumento AMCAM foi possível identificar o material, recursos e comportamentos envolvidos na atividade musical que favorecem ao desenvolvimento do talento. Acredita-se que esse modelo possa ser aplicado a qualquer realidade de aprendizagem de música não só como ferramenta de análise, mas como um diagrama para construção de propostas pedagógicas de ensino de música que, com a ajuda do instrumento AMCAM, possam garantir ao aprendiz uma formação musical plena que esteja de acordo com a sua vontade e o seu perfil de aprendizagem, evitando métodos de ensino de música fechados que podem ser adequados para determinado perfil de aprendiz, mas para outros não. A aprendizagem de música não acontece em função da obrigatoriedade do ensino, mas sim na conquista do desejo do aprendiz. O talento musical só se torna expressivo a ponto de comover, quando o aprendiz se sente à vontade naquilo que faz. Neste sentido é preciso pensar 197

uma educação musical, aconteça ela na escola ou fora dela, em que haja um “empoderamento” do aprendiz para conduzir o seu próprio processo de aprendizagem, cabendo ao sistema de ensino fornecer os recursos necessários, as tecnologias indispensáveis para a atividade musical, que não dependa apenas do corpo do aprendiz. Mas para que o sistema forneça os recursos é preciso que os professores não se contentem com a precariedade da educação musical nas escolas públicas, em que o ensino de música acontece de forma medíocre pela falta de recursos. As leis parecem garantir o ensino de arte, agora não mais extensivo ao ensino médio desde a recente alteração da LDBEN, mas não há garantia dos recursos necessários. Não há salas de música adequadas, as turmas são lotadas, não tem instrumentos musicais nem sequer aparelhos de som. O professor é mal remunerado, a carga horária extensiva e como se não bastasse, o alunado é massacrado pela sua condição social e sequer consegue dar conta do processo de alfabetização. A educação musical com seu corpo docente não pode ser cumplice desse descaso. Os alunos estão ocupando as escolas, realizando oficinas, fazendo música na escola por conta própria (e fora dela) decidindo sobre sua própria educação, e os professores... A música é, assim como qualquer outra área de conhecimento, um caminho para realização profissional como os músicos desse estudo mostraram, contudo, nesse “caminho” ainda persistem muitas “pedras”, muitos obstáculos que impedem que o talento musical das “maiorias” desfavorecidas sobreviva. A aprendizagem de música é um universo amplo que dentro de uma escola fica restrito à desenvoltura de cada professor, que, tampouco, tem recursos de avaliar a aprendizagem de seus alunos. O modelo analítico e instrumento de avaliação desenvolvidos nesse trabalho, testado na avaliação de músicos profissionais, pretende colaborar com o campo da educação musical no sentido não só de ser utilizado como uma ferramenta, da forma como foi proposto, mas principalmente contribuindo para que o ensino de música possa ser repensado, voltando o olhar para o aprendiz e a forma como a música participa do seu desenvolvimento. Não há a pretensão de que as categorias que compõe o modelo sejam exclusivas, mas que sejam capaz de instigar a possibilidade de se pensar outras categorias, outra lógica, novas ideias para reinvenção do ensino de música e o reconhecimento do talento musical a partir de diferentes perfis de aprendizagem como um fator preponderante na qualidade desse processo.

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REFERÊNCIAS

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CRIOLO [Entrevistado por Rede Minas] Perfil Criolo. TV [Data de upload: 21 maio, 2012]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=wStMfh59KUo&index=2&list=PLH__eLG01UkE6q7_i OdyBlvCUAmlo-aWY Acesso em: 15 junho, 2016.

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CRIOLO [entrevistado por RONALD RIOS]. Histórias do Rap Nacional | Criolo, DJ Dandan e Rinha dos MCs | Episódio 6 [Data de upload: 4 março, 2016] Disponível em: Acesso em: 7 junho, 2016.

CRIOLO. Entrevista Criolo - Rap Nacional [Data de upload: 6 junho, 2016]. Disponível em: Acesso em: 7 junho, 2016.

CRIOLO. PÁG.1 - CRIOLO (10 Anos - Ainda Há Tempo). [Data de upload: 25.08.2016] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=wouUS3vkThs Acesso em: out, 2016. 205

CRIOLO [entrevistado por THATHIANA GURGEL para o canal da Defensoria Pública RJ]. Entrevista exclusiva com o Criolo. [Data de upload: 26 setembro, 2016]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=xcj4anTTXoM Acesso em 7 novembro, 2016.

CRIOLO e GANJAMAN. Criolo e Daniel Ganjaman - Entrevista ao Portal R7 [Data de upload: 9 outubro, 2011]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=6Oc7GBszdbM. Acesso em: 15 dezembro, 2015.

DJ DANDAN. Criolo Doido lançamento do single "Subirusdoistiozin/Grajauex" [data de upload: 21 dez, 2010] Disponível em: A cesso em: 19 junho, 2016.

DJ MARCO. PÁG. 1 - DJ Marco (10 Anos - Ainda Há Tempo). [Data de upload: 08 setembro,2016] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=8lX6fLf5apI Acesso em: outubro, 2016.

GANJAMAN, Daniel. BEM NA FITA COM GANJA MAN. [Data de upload: 6 outubro, 2009]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=RU44636tJaI&nohtml5=False Acesso em: 6 junho, 2016.

GANJAMAN, Daniel. Ideias Online - Música na Rede [Data de upload: 30 maio, 2012]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=1Kc0S9oHHtY&nohtml5=False Acesso em: 5 junho, 2016.

GANJAMAN. Daniel. Perfil Daniel Ganjaman - Manos e Minas [Data de Upload: 10 setembro, 2014] Disponível em: Acesso em 20 maio, 2016.

GANJAMAN, Daniel. Ep. # 8 | Daniel Ganjaman, Nave, DJ Nyack, Bitrinho, Amiri e M.Sário [O Rap Pelo Rap - A Série] [Data de upload: 21 outubro, 2014]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=rJAgqwEzgjg Acesso em: 6 junho, 2016.

GANJAMAN, Daniel e DINUCCI, Kiko. SELETA COLETIVA @ Studio Sp (Criolo+Tulipa Ruiz+Kiko Dinucci+Juçara Marçal+Verônica Ferriani [Data de upload: 2 maio, 2011] Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=Yq5pxCdaxO0 > Acesso em: 22 junho, 2016.

MANÍACO DA CÂMERA. Lançamento do disco "Nó na Orelha" – Criolo. [Data de upload: 3 junho, 2011].Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=xbZEh8qMh-I Acesso em: 23 junho, 2016.

206

ANEXO

207

QUADRO 1: RESULTADOS DA BUSCA PELA PALAVRA TALENTO EM PERIÓDICOS NACIONAIS DE MÚSICA PERIÓDICOS RESULTADO BUSCA LINK DA REVISTA “TALENTO” 1 A TEMPO Sem ferramenta de busca 2 CLAVES 0 http://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/clave s/search/search?simpleQuery=talento&searc hField=query 3 DEBATES 0 http://www.seer.unirio.br/index.php/revistad ebates/search/search 4 EM PAUTA 0 http://seer.ufrgs.br/index.php/EmPauta/searc h/search?query=talento&authors=&title=&a bstract=&galleyFullText=&suppFiles=&dat eFromMonth=&dateFromDay=&dateFromY ear=&dateToMonth=&dateToDay=&dateTo Year=&dateToHour=23&dateToMinute=59 &dateToSecond=59&discipline=&subject= &type=&coverage=&indexTerms=talento 5 ICTUS 0 http://www.ictus.ufba.br/index.php/ictus/sea rch/advancedResults 6 MÚSICA E 0 http://musicaecultura.abetmusica.org.br/inde CULTURA x.php/revista/search/search 7 MÚSICA E 0 http://www.periodicos.ufes.br/musicaelingu LINGUAGEM agem/search/search?simpleQuery=talento&s earchField=query 8 MÚSICA EM 0 http://periodicos.unb.br/index.php/Musica/se CONTEXTO arch/search 9 MÚSICA EM 0 http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs/index.php/musica/s PERSPECTIVA earch/search?query=talento&authors=&title =&abstract=&galleyFullText=&suppFiles= &dateFromMonth=&dateFromDay=&dateFr omYear=&dateToMonth=&dateToDay=&d ateToYear=&dateToHour=23&dateToMinut e=59&dateToSecond=59&discipline=&subj ect=&type=&coverage=&indexTerms= 10 MÚSICA HODIE 12 http://revistas.ufg.emnuvens.com.br/musica/ search/search?query=talento&authors=&title =&abstract=&galleyFullText=&suppFiles= &dateFromMonth=&dateFromDay=&dateFr omYear=&dateToMonth=&dateToDay=&d ateToYear=&dateToHour=23&dateToMinut e=59&dateToSecond=59&discipline=&subj ect=&type=&coverage=&indexTerms= 11 MÚSICA POPULAR 0 http://www.publionline.iar.unicamp.br/index EM REVISTA .php/muspop/search/results 12 OPUS 19 http://www.anppom.com.br/revista/index.ph p/opus/search/search 13 PER MUSI 0 (busca via pagina da http://www.scielo.br/cgi-bin/wxis.exe/iah/ revista no SCIELO) 14 PERCEPTA 0 15 REV. BRAS. DE Sem ferramenta de busca http://rbm.musica.ufrj.br/br/edicoes.html MÚSICA 16 REV. BRAS. DE 0 (ferramenta de busca http://www.revistademusicoterapia.mus.br/ MUSICOTERAPIA interna do Google) 17 REV. ELET. DE Ferramenta de busca com MUSICOLOGIA defeito 18 REVISTA DA ABEM 3 http://www.abemeducacaomusical.com.br/re vistas/revistaabem/index.php/revistaabem/se arch/results

208

19 REVISTA DO 0 https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.ph CONSERVATÓRIO p/RCM/search/search?simpleQuery=talento DE MÚSICA DA &searchField=query UFPEL 20 REVISTA DO EIMAS Revista não encontrada 21 REVISTA MÚSICA 0 http://www.usp.br/poseca/index.php/musica/ search/results 22 REVISTA MÚSICA 0 http://abemeducacaomusical.com.br/revistas NA EDUCAÇÃO _meb/index.php/meb/search/results BÁSICA 23 REVISTA VÓRTEX 0 http://periodicos.unespar.edu.br/index.php/v ortex/search/search

QUADRO 2: ARTIGOS QUE CONTÉM A PALAVRA TALENTO DA REVISTA MÚSICA HODIE 140 TÍTULOS AUTOR DADOS DA LINK ARTIGO PUBLICAÇÃO 1 O PROCESSO DE Éliton Vol. 7 - Nº 1 - 2007 http://revistas.ufg.br/musica/arti SOCIALIZAÇÃO NO Pereira e cle/view/1763/12192 CANTO CORAL: UM Miriã ESTUDO SOBRE AS Vasconcel DIMENSÕES PESSOAL, os INTERPESSOAL E COMUNITÁRIA 2 EDUCAÇÃO PIANÍSTICA: Rita de Vol. 6 - Nº 1 - 2006 http://revistas.ufg.br/musica/arti O RIGOR PEDAGÓGICO Cássia cle/view/1866/11999 DOS CONSERVATÓRIOS Fucci Amato 3 MÁRIO DE ANDRADE: Sonia Ray Vol. 6 - Nº 1 - 2006 http://revistas.ufg.br/musica/arti DUAS ABORDAGENS cle/view/1873/12007 CONTEMPORÂNEAS 4 CIÊNCIA E ARTE – Maria Vol. 8 - Nº 1 - 2008 http://revistas.ufg.br/musica/arti TEORIA E VIVÊNCIA Cláudia cle/view/4564/12307 MUSICAL COMO AUXÍLIO Mendes À FORMAÇÃO DE Caminha FONOAUDIÓLOGOS Muniz/ Charleston Teixeira Palmeira 5 VILLA-LOBOS A PARIS: Resenha Vol. 9 - Nº 1 - 2009 http://revistas.ufg.br/musica/arti UNECHOMUSICAL DU por Marcos cle/view/10757/7144 BRESIL DEANAÏS Câmara de FLÉCHET Castro 6 O CHORO EM BELO Marcos Vol. 10 - Nº 1 - http://revistas.ufg.br/musica/arti HORIZONTE: ASPECTOS Flávio de 2010 cle/view/12820/13138 HISTÓRICOS, Aguiar COMPOSITORES- Freitas/Fau INTÉRPRETES E SUAS sto Borém OBRAS 7 A INTERPRETAÇÃO Beatriz Resumos (p. 105- http://revistas.ufg.br/musica/arti MUSICAL: UM ESTUDO Licursi 109) cle/view/19896/11520 CENTRADO NA PERCEPÇÃO E MEMORIZAÇÃO DE ESTRUTURAS MUSICAIS

140 Revista Do Programa De Pós-Graduação Stricto-Sensu Da Escola De Música E Artes Cênicas Da Universidade Federal De Goiás 209

8 QUARTETO DE CORDAS Paulo de V.12 - n.1, 2012 http://revistas.ufg.br/musica/arti Nº 02DE VILLA-LOBOS: Tarso cle/view/20175/12611 DIÁLOGO COM A FORMA Salles CÍCLICA DE FRANCK, DEBUSSY E RAVEL 9 O PRÉLUDE DA SUÍTE Danieli V.12 - n.1, 2012 http://revistas.ufg.br/musica/arti PARA PIANO SOLO LE Verônica cle/view/20178/12721 TOMBEAU DE Longo COUPERINDE MAURICE Benedetti RAVEL: CONSIDERAÇÕES COMPOSICIONAIS E INTERPRETATIVAS 10 A MÚSICA NO Vera Lúcia V.12 - n.1, 2012 http://revistas.ufg.br/musica/arti CURRÍCULO OFICIAL: UM Gomes cle/view/21554/12669 ESTUDO HISTÓRICO PELA Jardim PERSPECTIVA DO LIVRO DIDÁTICO. 11 A EDUCAÇÃO MUSICAL Marisa V.12 - n.1, 2012 http://revistas.ufg.br/musica/arti BRASILEIRA E TRÊS Trench de cle/view/21594/12678 MODELOS EXPLICATIVOS Oliveira DE MUNDO: EM BUSCA Fonterrada DE SIGNIFICADOS 12 A PRÁTICA MUSICAL NA Fausto Vol. 11 - Nº 1 - http://revistas.ufg.br/musica/arti INICIALIZAÇÃO E AS Kothe et al 2011 cle/view/21727/12796 QUEIXAS MUSCULOESQUELÉTICAS 13 UMA BREVE DISCUSSÃO Ricieri V.12 - n.2, 2012 http://revistas.ufg.br/musica/arti SOBRE TALENTO Carlini cle/view/23511/13798 MUSICAL Zorzal 14 LA IMPROVISACIÓN Santiago V.13 - n.1, 2013 http://revistas.ufg.br/musica/arti RÍTMICA DESDE UNA Pérez cle/view/25808/14813 MIRADA Aldeguer MULTIDISCIPLINAR 15 A PRÁTICA DO CHORO: Grazielle V.13 - n.1, 2013 http://revistas.ufg.br/musica/arti TECENDO M. L. de cle/view/25810/14815 CONSIDERAÇÕES SOBRE Souza PERFORMANCE, INTERPRETAÇÃO E IMPROVISAÇÃO. 16 A ANADIPLOSE Jorge V.14 - n.1, 2014 http://revistas.ufg.br/musica/arti APLICADA À ESTRUTURA Antunes cle/view/32865/17433 MUSICAL

QUADRO 3: ARTIGOS QUE CONTÉM A PALAVRA TALENTO DA REVISTA OPUS141

TÍTULO AUTOR DADOS LINK DO ARTIGO PUBLICAÇÃ O 1 CAPITAL CULTURAL VERSUS DOM Rita de Cássia v. 14, n. www.anppom.com.br INATO: QUESTIONANDO Fucci Amato 1(2008) /revista/index.php/op SOCIOLOGICAMENTE A us/article/view/237/2 TRAJETÓRIA MUSICAL DE 17 COMPOSITORES E INTÉRPRETES BRASILEIROS

141 Revista Eletrônica da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música - ANPPOM

210

2 BRASILIDADE E SEMIOSE MUSICAL José Luiz v. 12 (2006) http://www.anppom.c Martinez om.br/revista/index.p hp/opus/article/view/ 317/296 3 ENTREVISTA COM O COMPOSITOR Vladimir Silva v. 13, n.2 www.anppom.com.br AMARAL VIEIRA (2007) /revista/index.php/op us/article/view/299/2 78 4 RIGIDEZ MÉTRICA E Marcia Kazue v. 13, n. 2 http://www.anppom.c EXPRESSIVIDADE NA Kodama (2007) om.br/revista/index.p INTERPRETAÇÃO MUSICAL: UMA Higuchi, João hp/opus/article/view/ TEORIA NEUROPSICOLÓGICA Pereira Leite 310/285 5 DO TOCAR AO ENSINAR: O Teresa v. 13, n. 2 http://www.anppom.c CAMINHO DA ESCOLHA Mateiro (2007) om.br/revista/index.p hp/opus/article/view/ 309/284 6 O CANTO CORAL COMO PRÁTICA Rita Fucci v. 13, n. 1 http://www.anppom.c SÓCIO-CULTURAL E EDUCATIVO- Amato (2007) om.br/revista/index.p MUSICAL hp/opus/article/view/ 295/273 7 ARTE MUSICAL E PESQUISA Silvio v. 13, n. 1 http://www.anppom.c HISTORIOGRÁFICA: UMA Augusto (2007) om.br/revista/index.p REFLEXÃO TENSA DE CARL Merhy hp/opus/article/view/ DAHLHAUS EM FOUNDATIONS OF 290/268 MUSIC HISTORY 8 ALGUMAS IDEIAS DE PAULO Guilherme v. 14, n.2 http://www.anppom.c BOSÍSIO SOBRE ASPECTOS DA Romanelli, (2008) om.br/revista/index.p EDUCAÇÃO MUSICAL Beatriz Ilari, hp/opus/article/view/ INSTRUMENTAL Paulo Bosísio 242/222 9 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES A Rejane Harder v. 14, n. 1 http://www.anppom.c RESPEITO DO ENSINO DE (2008) om.br/revista/index.p INSTRUMENTO: TRAJETÓRIA E hp/opus/article/view/ REALIDADE 240/220 10 REFLEXÕES SOBRE UNIDADE EM Lucas de v. 14, n.1 http://www.anppom.c MÚSICA Paula Barbosa (2008) om.br/revista/index.p hp/opus/article/view/ 236/216 11 EDUCAÇÃO E MÚSICA: Maria Goretti v. 14, n.2 http://www.anppom.c DESVELANDO O CAMPO Herculano (2008) om.br/revista/index.p PEDAGÓGICO-MUSICAL DA UFC Silva, Marco hp/opus/article/view/ Antonio Silva, 249/229 Luiz Botelho Albuquerque 12 A APLICAÇÃO DA TEORIA DA César Albino, v. 14, n.2 http://www.anppom.c APRENDIZAGEM SIGNIFICATIVA DE Sônia Albano (2008) om.br/revista/index.p AUSUBEL NA PRÁTICA de Lima hp/opus/article/view/ IMPROVISATÓRIA 248/228 13 MÚSICA POPULAR E Ana Carolina v. 15, n.2 http://www.anppom.c APRENDIZAGEM: ALGUMAS Nunes Do (2009) om.br/revista/index.p CONSIDERAÇÕES Couto hp/opus/article/view/ 256/236 14 POR QUE VAMOS ENSINAR MÚSICA Ana Carolina v. 15, n. 1 http://www.anppom.c NA ESCOLA? REFLEXÕES SOBRE Nunes do (2009) om.br/revista/index.p CONCEITOS, FUNÇÕES E VALORES Couto, Israel hp/opus/article/view/ DA EDUCAÇÃO MUSICAL ESCOLAR Rodrigues 265/245 Souza Santos 15 OS ESTILHAÇOS DA ORQUESTRA Marcos v. 15, n. 1 http://www.anppom.c Câmara de (2009) om.br/revista/index.p Castro hp/opus/article/view/ 260/240 211

16 POR UMA NOVA Eduardo v. 17, n. 2 http://www.anppom.c CONTEXTUALIZAÇÃO DA OBRA DE Henrique (2011) om.br/revista/index.p HENRIQUE OSWALD Soares hp/opus/article/view/ Monteiro 198/178 17 DODECAFONISMO, NACIONALISMO Ernesto v. 17, n.1 http://www.anppom.c E MUDANÇAS DE RUMOS: UMA Hartmann (2011) om.br/revista/index.p ANÁLISE DAS 6 PEÇAS PARA PIANO hp/opus/article/view/ DE CLÁUDIO SANTORO E DAS 212/192 MINIATURAS N. 1 PARA PIANO DE GUERRA-PEIXE 18 A APRENDIZAGEM Pablo da Silva v. 17, n. 2 http://www.anppom.c AUTORREGULADA DA PERCEPÇÃO Gusmão (2011) om.br/revista/index.p MUSICAL NO ENSINO SUPERIOR: hp/opus/article/view/ UMA PESQUISA EXPLORATÓRIA 204/182 19 THE PSYCHOLOGY OF MUSIC, Ricieri Carlini v. 21, n. 3 http://www.anppom.c EDITADO POR DIANA DEUTSCH, 3ª Zorzal (2015) om.br/revista/index.p EDIÇÃO: RESENHA DOS QUATRO hp/opus/article/view/ CAPÍTULOS FINAIS 273/330

QUADRO 4: ARTIGOS QUE CONTÉM A PALAVRA TALENTO DA REVISTA DA ABEM142

TÍTULO AUTOR DADOS LINK DO ARTIGO PUBLICAÇ ÃO 1 O MÚSICO: DESCONSTRUINDO MITOS Sílvia v. 12. n. 10 http://www.abemeducaca Cordeiro (2004) omusical.com.br/revistas/ Nassif revistaabem/index.php/re Schroeder vistaabem/article/view/36 8/297 2 ANALFABETOS MUSICAIS, Eduardo v.12 n. 22 http://www.abemeducaca PROCESSOS SELETIVOS E A Luedy (2009) omusical.com.br/revistas/ LEGITIMAÇÃO DO CONHECIMENTO revistaabem/index.php/re EM MÚSICA: PRESSUPOSTOS E vistaabem/article/view/22 IMPLICAÇÕES PEDAGÓGICAS EM 5/157 DUAS INSTÂNCIAS DISCURSIVAS DA ÁREA DE MÚSICA 3 A MÚSICA E O CÉREBRO: ALGUMAS Beatriz Ilari v. 11. n. 9 http://www.abemeducaca IMPLICAÇÕES DO (2003) omusical.com.br/revistas/ NEURODESENVOLVIMENTO PARA A revistaabem/index.php/re EDUCAÇÃO MUSICAL vistaabem/article/view/39 5/322

142 Associação Brasileira de Educação Musical