169 desde abril de 2000 O jornal de literatura do Brasil

Curitiba, maio de 2014 | WWW.rascunho.com.br arte: D ê almeida arte:

A literatura nos dá o poder de sonhar, especialmente na infância. Existe também a literatura que dói e que faz enxergar a dor do outro. Nada mais necessário do que o exercício da empatia nos dias de hoje, esses tempos de egoísmo.” Socorro Acioli • 4/5

Inédito • Limão > Motojiro Kaijii • 28 169 • maio_ 2014 2

eu recomendo quase-diário : : affonso romano de sant’anna : : Luiz Rebinski Collor, Itamar e FHC

Uma 18.5.1991 tou no Itamaraty, na recepção de reabertura do la, relaxada. Dividida em três partes. Peguei-o

UEM SOMOS CONTATO ASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO CARTAS UEM SOMOS CollorCONTATO esteveASSINATURA na DOBiblioteca JORNAL IMPRESSO Nacional.CARTAS Uma Palácio enquanto Museu. Diplomatas por todo no passeio público quando chegou pontualmen- confraria semana de grandes emoções, preparações. Há lado. Gente importante. Diário de Minas me te com Ruth, às 11 horas, mostrei-lhe a fachada

EDIÇÕES ANTERIORES COLUNISTAS DOM CASMURRO ENSAIOS E RESENHAS ENTREVISTAS PAIOL LITERÁRIO PRATELEIRAEDIÇÕESNOTÍCIAS ANTERIORESOTRO OJOCOLUNISTASuns 15DOM dias, CASMURRO tiveENSAIOS que E RESENHAS enfrentarENTREVISTAS PAIOL uma LITERÁRIO AssembleiaPRATELEIRA NOTÍCIAS OTRO OJOdeu as primeiras ideias sobre o texto jornalísti- refeita, entramos no salão recém-reformado, de centenas de funcionários, que pressionados co. Eu vinha, na ocasião de Juiz de Fora, saben- apresentei-o ao Joaquim Falcão (Fundação de tolos pela CUT queriam entrar em greve de duas ho- do quase nada de jornal. ) e Ricardo Gribel (Banco ras por dia, mais o sábado. Estão pensando em — Mauro, lhe digo, há uma situação en- Real), que possibilitaram a reforma. Falei-lhe, gnatius J. Reilly, protagonista tumultuar a vinda de Collor. Como a BN se tor- graçada. Depois que o Itamar virou presidente, enquanto caminhava, algo sobre a história da de Uma confraria de tolos, é nou a mais visível das instituições da cultura, não consigo falar com ele. Os ministros morrem biblioteca. Depois fomos ao 4º andar onde o es- um Quixote que ainda espera por isto atrai outros interesses. Foi tensa a reunião, de ciúme. O Antonio Houaiss quase se demitiu perava a minha diretoria para uma conversa de Ireconhecimento. Uma verdadeira mas afastei o perigo de greve e consegui que re- por isto. Com o Collor, que não conhecia, tive quinze minutos, para expor projetos, mostrar- injustiça, porque em certos momentos cebessem o aumento de 75% que estava preso, alguns contatos. -lhe alguns livros. Embora o protocolo mande do livro de John Kennedy Toole, Ignatius relativo ao dissídio de 1989. — Ah é? deixa comigo, disse ele (que é que ele sente na cabeceira, nos sentamos, com parece o neto de Quixote que suplantou A recepção de Collor era delicada. Foi o quem faz os discursos de Itamar). os outros, face a face. Mostrei-lhe o livro que a verve nonsense do antepassado com cenário escolhido para ele anunciar a mudan- Lá pelas tantas se aproxima e me diz: editamos sobre a Feira de Frankfurt; contou que altas doses de cultura e um egocentrismo ça política na área cultural, a primeira visita a — O presidente está na casa. passando pela Alemanha visitou duas das nos- sem limites, o traço mais interessante da um órgão da cultura. Eu havia dito ao Rouanet Saímos andando. Vejo a uns 30 metros sas exposições: de arte primitiva e de arte negra. personalidade do herói em questão. Ig- quando ele assumiu que a única maneira de o o presidente e sua comitiva passando pelos Ruth sempre simpática, autografando natius é glutão, preguiçoso e pesado de- presidente mudar sua imagem era fazer um dis- salões. O cerimonial abrindo passagem para seus livros, ela e FHC e Weffort — para a Se- mais para fazer qualquer coisa além de curso mudando sua política e ir pessoalmente à conduzir o presidente a uma sala para receber ção de Obras Raras. FHC e Ruth (e os paulistas teorizar contra o caos da modernidade, BN dizer isto e dar, por exemplo, um milhão de cumprimentos. Mauro me conduz para a tal em geral) não conheciam a Biblioteca Nacional. a abjeta cultura pop e a desonestidade dólares para reformas. sala. Lá três pessoas: o cardeal D. Eugenio Sal- Depois fomos aos grandes armazéns, vários an- do mundo — sobra até para os beatniks. Lá estavam autoridades várias, Brizola, go- les, o ex-ministro Saraiva Guerreiro e creio que dares de livros, uma visão que deixou a todos É um intelectual incompreendido, que vernador que aguardou Collor na porta, ao meu uma autoridade militar. O presidente chega e encantados, a verdadeira Biblioteca de Babel ainda mora com a mãe e nunca teve PIS. lado, conforme o cerimonial. A segurança passou em vez de se dirigir às autoridades vem a mim sonhada por Borges. Marcelo Alencar (gover- Mas a maré muda e Ignatius é obrigado toda a semana ensaiando exaustivamente tudo. como se a gente se conhecesse desde sempre. nador) perguntando por que não abríamos essa a arranjar emprego. Primeiro como ven- Colocaram do lado de fora uma viatura até com A última vez que falei com ele deve ter mais de parte aos leitores (coisa tecnicamente impossí- dedor de cachorro-quente, depois em CTI, além de Corpo de Bombeiros. Até médico 30 anos, nos tempos de Juiz de Fora. Pois ele vel). FHC perguntando sobre o peso daqueles uma fábrica de calças onde se mete em pessoal do presidente veio para as inspeções. veio, começou a falar sobre o Granbery, Juiz andares todos de livros e eu brincando que ago- um escândalo e acaba procurado pela Foi ótima a presença dele. Estava atento, de Fora, o Cine Central, lembrou-se de Carlos ra temos uma moeda de peso — o real, piada polícia. No final, aos vinte e tantos anos, delicado e seguro. Visitamos os grandes arma- (meu irmão), que era seu colega e fazia alguma que ele repetiu para os demais. foge de casa. Basicamente, é isso. Mas zéns (vários andares de livros) onde pude lhe estripulia trepando nas árvores da avenida Rio Depois de tomar uns sucos, fomos para quando se tem um Ignatius é o suficien- mostrar a beleza da arquitetura e as obras e os Branco (em Juiz de Fora), perguntou por ele , Seção de Obras Raras onde estavam também te. Até para ganhar um Pulitzer. estragos causados pelas chuvas, justificando as- mandou-lhe um abraço, falou que tinha estado “raros” convidados especiais, representan- sim sua visita e a verba de 300 milhões (1 mi- com a Aizinha e Renault, que foram colegas de do áreas diferentes da cultura: Ana Botafogo, lhão de dólares para os consertos). turma com Carlos. Cacá Diegues, Luiz Schwarz, Sérgio Machado, Luiz Rebinski Impressionante o carinho e delicadeza de As pessoas olhavam surpresas. Quan- Ênio Silveira, Tonia Carrero, Mario Machado. É jornalista e editor do jornal Cândido. Brizola com Collor. Quem diria? Descendo a do me despedi, várias se acercaram de mim. Dona Ruth logo descobriu Marina que havia escadaria, no final, Brizola ainda lhe disse algo Mauro Durante — secretário da presidência — sido sua colega no Conselho das Mulheres nos sobre a vaia encomendada pela CUT e PCdoB o mais efusivo, falando também sobre o Cine anos 80. O presidente pôde conhecer o projeto no passeio defronte: “Não ligue, sr. presidente, Central, da minha entrevista nem sei onde e me de digitalização da fantástica coleção de ma- tem ali um pessoal da CUT”. prometendo mandar uma cópia… pas antigos, experimentou computadores que E Collor: “Ah, isso é desenho animado, já executa as partituras das músicas que temos Cartas conheço”. E desceu tranquilo. 21.01.1995 no nosso acervo. Os jornais deram maior destaque. Idem Fernando Henrique foi à BN acompanha- Ficou meia hora mais do que o previsto, : : [email protected] : : TV. Só a Folha no lugar de ressaltar a impor- do de Dona Ruth, Weffort (ministro) e Marcelo tudo tranquilo, ele fazendo um discurso final tância política e cultural do evento, preferiu dar Alencar (governador). É o segundo presidente de agradecimento. Foi importante sua visita. foto da manifestação. que recebemos. O primeiro foi Collor, quando Tem um valor simbólico. Colocar o livro/leitu- começou a fazer as pazes com a cultura e os in- ra/bibliotecas no centro da política do governo UEM SOMOS CONTATO ASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO CARTAS Importante 21.05.1994 telectuais, sendo Rouanet então secretário de — essa é minha intenção ao trazer autoridades EDIÇÕES ANTERIORES COLUNISTAS DOM CASMURRO ENSAIOS E RESENHAS ENTREVISTAS PAIOL LITERÁRIO PRATELEIRARascunhoNOTÍCIAS OTRO OJO tem sido um dos Nesta semana, encontro com Itamar. Es- Cultura. Itamar não foi possível. Visita tranqui- federais aqui. mais importantes divulgadores da literatura brasileira atual, ao apresentar novos talentos, abrir campo para a discussão : : do texto literário e para o translato eduardo ferreira debate de idéias entre nós. Parabéns a toda a equipe! Wander Melo Miranda • Reminiscências de uma leitura de Pompeia Belo Horizonte — MG tradução não é exatamente exercício A tradução como lava que lava com fogo ao palavra — sondando suas tantas cavidades. vertiginoso. A proliferação de senti- seu redor. A limpeza abrasiva da calcinação, que Transitar pelo texto com donaire. Empe- UEM SOMOS CONTATO ASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO CARTAS Sábio dos, sim. Mas o ofício — o velho ofício abre todo um campo novo para a nova escritura, nhar a pena com firmeza e elegância — e trans- — mais aposta na observação cuidado- tradução. miti-las ao novo texto. Requisitos do tradutor. EDIÇÕES ANTERIORES COLUNISTASADOM CASMURRO ENSAIOS E RESENHAS ENTREVISTAS PAIOL LITERÁRIO PRATELEIRA NOTÍCIAS OTRO OJO Dica de belo presente: sa, na captação criativa do momento — instantâ- Irrupções, a tradução. Traz lá de baixo os Não deixar nada ao acaso, mesmo quando se opta uma assinatura anual do neo que congela em lâmina singular o leque de sentidos submersos, para fazê-los brilhar sob pelo texto aberto, de linhas grossas. Rascunho, de (PR), tão múltiplos significados. nova luz. Fino, grosso, o fio de tradução que tece o um dos melhores dedicados O sentido descansa na letra — um átimo Tradução, a linguagem se fragmenta. Mes- novo texto. Tradução, então, como criação. ao jornalismo literário. que seja — e já propicia a ocasião da colheita. Co- mo antes, na leitura. Em palavras, em ideias? Se- Ou talvez tradução simplesmente como te- Luiz Claudio Lins • via Facebook lhe o tradutor o sentido que ali sobeja — como mentes da tradução. atro de sombras. A velha ideia da cópia. Jato de que exsuda, minando em gotas o que lhe enche O gosto pelo jogo, a linguagem. Jogo de luz forte no escuro e a projeção das palavras do Comemoração as cavidades. palavras, até cansar. Gosto pelos calembures, original no anteparo da página. Projeção do ori- Palavras e suas cavidades, reentrâncias ciladas da literatura. Tão difícil de traduzir... Já ginal sobre nova página, a tradução. Hoje (08/04) um dos melhores — onde se alojam significados múltiplos. Seu poten- não sabe se grava o sentido ou a dinâmica poética Tradução como sombra, a sombra do origi- e um dos poucos sobreviventes cial é miríade. Ao tradutor cabe a colheita — ras- (não sabe se fotografa os deslizes desse som). O nal. Não deixar que esse esplim espúrio — a tris- — jornais literários do país par o sentido que descansa na superfície da letra. gosto por traduzir o jogo: alma de tradutor. teza de que é feita toda sombra — amorteça a tua está no berço completando Das cavidades, a erupção. Erupções de sen- Ah, tantos dilemas que surgem nessa tra- pulsão, tradutor. Não deixar que o arrufo surdo 14 anos. Rapaz robusto, que timentos — dádiva da literatura, certamente. Ir- ma. A trama da vida toda no texto. Tecer, sem te arraste e afunde. Ver a bocaina não como de- traz em si as melhores críticas rupção dessa gorda prenhez de sentidos. dúvida, mas não se sabe com fio fino ou grosso. pressão, mas como passagem ao novo texto. que tenho visto nas letras Pressentir o quase gesto do autor cavilo- A quem cabe a decisão? Imprimir delicadeza de Viajar essa viagem da tradução — ir seguin- brasileiras. Acompanho desde so. O sentido que se pressente, mesmo que não filigrana e caprichar no detalhe ou traçar linhas do no vento, seja austro ou minuano. Que o texto 2010 e vale a leitura de cada mês. se anuncie. Captar a ideia no nascedouro, para largas e deixar que o leitor preencha as tantas la- é vento viajado, vem de longe, origem incerta, O melhor, para os que optam em adestrá-la enquanto ainda é tempo. Possível, im- cunas? Dilemas da tradução. atemporal. não assinar: eles disponibilizam possível? Patinar na disjuntiva elíptica. Texto, perfuração de agulhas no papel. A dis- Não deixar que as disjuntivas — e são tan- todas as suas edições para Preservar sentidos ou adotar a estratégia tância entre os pontos, a finura (grossura) da linha. tas ao longo desse longo texto — abatam teu âni- download. Façam bom proveito de terra arrasada? Tabula rasa? Perfuração também da membrana tênue e tensa da mo. Original ou tradução. e vida longa ao Rascunho! Ricardo Silva • via Facebook rodapé : : rinaldo de fernandes Reverente

Maior admiração e respeito por esse trabalho do Rascunho. Anotações sobre romances (9) Eduardo Lacerda • via Facebook atsby (de O grande Gatsby, de F. Estudar eletricidade etc. – 7h15-8h15 Eis, repita-se, o cotidiano administrado Scott Fitzgerald) é metáfora e base Trabalho – 8h30-16h30 dos que vieram para “vencer”. Mas O grande UEM SOMOS CONTATO ASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO CARTAS Envie carta ou e-mail para esta seção com nome da ideologia do Novo Rico. Gatsby é rico Beisebol e esportes – 16h30-17h Gatsby é ainda o romance da tragédia — da completo, endereço e telefone. Sem alterar o sem ter origem na riqueza — daí a ne- Praticar elocução, postura de corpo e como adquiri-la – fortuna que vira desgraça. Algo metaforizado conteúdo, o Rascunho se reserva o direito de EDIÇÕES ANTERIORES COLUNISTASGDOM CASMURRO ENSAIOS E RESENHAS ENTREVISTAS PAIOL LITERÁRIO PRATELEIRA NOTÍCIAS OTRO OJO cessidade de manusear símbolos típicos dos ricos no livro não só pelo assassinato de Gatsby, mas adaptar os textos. As correspondências devem 17h-18h ser enviadas para: Al. Carlos de Carvalho, 655 tradicionais (como o fato de, segundo afirma ao Estudar invenções necessárias – 19h-21h sobretudo pela casa vazia, pela ausência dos an- conj. 1205 • CEP: 80430-180 • Curitiba - PR. narrador Nick, ter frequentado Oxford). Mas o per- tigos convivas no velório e enterro do protago- Os e-mails para: [email protected]. sonagem também incorpora a ideologia daqueles RESOLUÇÕES GERAIS nista (é dramática a cena de Nick convocando que estão “fadados a vencer”. Exemplo disso é o ro- as pessoas a comparecerem ao funeral). Gatsby, teiro (roteiro dos que, pela disciplina diária, podem Não desperdiçar tempo no Shafters ou [um nome, in- assim, é o importante que, de uma hora para ou- “chegar lá) escrito num livro que o protagonista ti- decifrável] tra, se apaga. É o grande que vira pequeno. Daí nha quando criança e mostrado para Nick Carraway Deixar de fumar e de mascar chiclete a forte ironia do título e que está na estrutura na tarde do velório de Gatsby pelo pai deste último: Tomar banho dia sim, dia não desse complexo e apaixonante livro, que lê o ma- Ler um livro ou uma revista edificante por semana terialismo de uma época e os valores que lhe dão Assinatura anual por apenas 84 reais Levantar da cama – 6h Economizar 5 dólares [riscado] 3 dólares por semana base de forma aguda, penetrante. [email protected] Exercício com halteres e escalada de parede – 6h15-6h30 Ser melhor para com os pais 169 • maio_ 2014 3

o jornal de MANUAL DE GARIMPO : : Alberto Mussa literatura do brasil fundado em 8 de abril de 2000

Rascunho é uma publicação mensal da Editora Letras & Livros Ltda. O fiel e a pedra Rua Filastro Nunes Pires, 175 • casa 2 CEP: 82010-300 • Curitiba - PR 41 3527.2011 [email protected] UEM SOMOS CONTATOalvez nãoASSINATURA haja DO JORNAL IMPRESSOna literaturaCARTAS brasileira temático tenha escrito, além de teledramaturgia, Bernardo pressente que Miguel, depois de passar www.rascunho.com.br obra ficcional tão heterogênea quanto a as comédias Lisbela e o prisioneiro, levada às as escrituras, será assassinado, fato que ocorre tiragem: 5 mil exemplares EDIÇÕES ANTERIORES COLUNISTAS DOM CASMURRO ENSAIOS E RESENHAS ENTREVISTAS PAIOL LITERÁRIO PRATELEIRA NOTÍCIAS OTRO OJO do pernambucano Osman Lins, falecido telas com muito sucesso, e Guerra do cansa- pouco depois. Sugerindo que houve crime (e não Tprematuramente em 1978, com 54 anos. -cavalo, ambas auridas nas tradições populares acidente, como o corpo caído da escada sugeria), ROGÉRIO PEREIRA Seu livro mais famoso (e provavelmente me- nordestinas, como fizeram, por exemplo, Joaquim Bernardo passa a ter no novo dono do engenho um editor nos lido) é o romance Avalovara, de 1973. Cons- Cardozo e . perigoso inimigo. E apesar de achar que Creusa tituído por oito linhas narrativas aparentemente Tal diversidade é ainda mais surpreendente não merece, defende os interesses da viúva. SAMARONE DIAS independentes, que correspondem às oito letras quando lemos o primeiro Osman Lins, o da novela Começa, então, a luta de Bernardo contra os editor-assistente da mais impressionante frase palíndroma do mun- O visitante e dos contos de Os gestos, expoentes capangas de Nestor, que quer expulsá-lo do enge- do (sator arepo tenet opera rotas), Avalovara da nossa melhor tradição introspectiva e macha- nho. A narrativa é densa e culmina com cenas de JOÃO LUCAS DUSI pretende ser a súmula da experiência existencial diana. sítio e tiroteio. É quando surge a figura inesperada estagiário humana, sobre o jogo lógico das interseções da es- É entre essas duas últimas vertentes, a da co- de um estranho, Ubaldo, que se agiganta no fim. piral (que simboliza o tempo) e do quadrado (re- média e a dos contos, que se situa um outro Osman Osman Lins conseguiu escrever, a despeito COLUNISTAS presentando o espaço). Lins, o do romance O fiel e a pedra. Entramos da contemporaneidade, um livro que trata de he- Affonso Romano de Sant’Anna Romance que explica o próprio processo de aqui num terreno raro nas letras vernáculas, por- róis. E que não perde, por isso, sua grandeza, sua Alberto Mussa sua composição, acaba sendo também a celebra- que mais próximo de certo romance de ação típico complexidade. Eduardo Ferreira Fernando Monteiro ção do inominável, das realidades que escapam à das literaturas de língua inglesa. O fiel e a pedra, originalmente publicado João Cezar de Castro Rocha própria literatura, tanto que uma das personagens Bernardo Cedro, o protagonista, vai trabalhar em 1961, teve edições da Martins, da Melhoramen- José Castello fundamentais é designada por um signo impro- no engenho de Miguel Benício, que é casado com tos, do Círculo do Livro e, recentemente, da Com- Luiz Bras nunciável, irredutível às letras do alfabeto. Creusa, cujo comportamento adúltero é conhecido panhia das Letras. Embora a última ainda esteja Raimundo Carrero Com Avalovara Osman atinge o auge da sua de todos. Para obter o desquite sem deixar bens em catálogo, é raro encontrá-la nas estantes das Rinaldo de Fernandes fase experimental e geométrica, que conta ainda para a mulher, Miguel propõe a Bernardo a com- grandes redes livreiras. Nos sebos, devem ser ga- Rogério Pereira com as novelas de Nove, novena e com o roman- pra simulada e fraudulenta de seus imóveis — que rimpados os exemplares a partir da segunda edi- ce A rainha dos cárceres da Grécia. o empregado recusa, preso a seus princípios éticos. ção, de 1967, pois o texto da princeps foi revisto ILUSTRAÇÃO Curioso que esse mesmo autor cerebral e ma- Miguel Benício, então, procura Nestor. E por Osman. A R$ 15,00 estão bem pagos. Bruno Schier Carolina Vigna-Marú Dê Almeida Fabiano Vianna Fábio Abreu Felipe Rodrigues vidraça : : joão lucas dusi Hallina Beltrão Leandro Valentin divulgação Marco Jacobsen Osvalter Urbinati Novos talentos Rafa Camargo Rafael Cerveglieri Ramon Muniz UEMForam SOMOS divulgadosCONTATO ASSINATURA os DO dois JORNAL IMPRESSO vencedoresCARTAS da edição 2013/2014 do Prêmio Rettamozo Sesc de Literatura. A jornalista e mestranda em culturas midiáticas Ricardo Humberto EDIÇÕES ANTERIORES COLUNISTASDéboraDOM CASMURRO Ferraz,ENSAIOS de E RESENHAS 27 anos,ENTREVISTAS venceuPAIOL LITERÁRIO naPRATELEIRA categoriaNOTÍCIAS OTRO Romance OJO com Robson Vilalba Enquanto Deus não está olhando. E Parafilias, do bancário Tereza Yamashita e psicólogo Alexandre Marques Rodrigues, de 34 anos, ganhou na Theo Szczepanski categoria Conto. Em seu livro, Débora aborda a relação pai e filha, a Tiago Silva perda e a insegurança de ingressar na idade adulta sem preparo. Já Rodrigues, que “escreve sobre o cotidiano”, tratou da solidão sob a FOTOGRAFIA abordagem das perversões sexuais. Os autores receberão o prêmio em Matheus Dias cerimônia na Academia Brasileira de Letras, prevista para julho de 2014, e participarão da programação do Centro Cultural Sesc Paraty durante a PROJETO GRÁFICO Flip. As obras serão publicadas pela Record. e PROGRAMAÇÃO VISUAL Rogério Pereira / Alexandre de Mari colaboradores desta edição divulgação André Caramuru Aubert Em expansão Carlos Eduardo de Magalhães A revista literária Substânsia, Clayton de Souza editada por Nathan Matos e Felipe Franco Munhoz Roberto Menezes, chegou a sua Gabriela Silva segunda edição e segue aberta para Gisele Eberspächer autores que desejam ter seus textos Guilherme Pavarin publicados. Seguindo a mesma linha Haron Gamal de ampliação do cenário literário, Luiz Guilherme Barbosa surge a Editora Substânsia. Luiz Horácio Idealizada pelo editor Nathan Marcelo Antinori Matos, em parceria com Madjer Marcos Pasche de Souza Pontes e Talles Azigon, Martim Vasques da Cunha estreará com O núcleo selvagem Maurício Melo Júnior ( , de Madjer. Motojiro Kaijii do dia foto) Nelson Shuchmacher Endebo Paulo Andrade Paulo Rosenbaum Rodrigo Casarin Pulitzer para Donna Rodrigo Gurgel A escritora norte-americana Donna Tartt venceu o Pulitzer na categoria Vilma Costa Ficção, com o romance The Goldfinch. Nele, acompanhamos a trajetória de Theo Decker, um nova-iorquino de 13 anos que sobrevive a um acidente Prêmio Brasília em que morre sua mãe. O livro é centrado justamente na pintura Goldfinch, O 2º Prêmio Brasília de Literatura anunciou os 16 autores premiados de 1654, do holandês Carel Fabritius. No Brasil, a Companhia das Letras entre oito categorias: Biografia, Conto, Crônica, Infantil, Juvenil, Poesia, Lei 8.313/91 (Lei Rouanet) já publicou da autora A história secreta (1995, romance de estreia) e O Romance e Reportagem. Aos primeiros lugares, R$ 30 mil; aos segundos, Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac) amigo de infância (2004). The Goldfinchdeve sair ainda neste ano. R$ 10 mil. Ganhador do Telecom 2013, O sonâmbulo Na categoria Poesia, 3 sections, do indiano radicado nos Estados Unidos amador, de José Luiz Passos (foto), ficou em primeiro lugar na categoria Vijay Seshadri, levou o Pulitzer. Os versos exploram a consciência humana Romance. Em segundo, Ana Miranda com O peso da luz — Einstein do nascimento à demência, alterando entre vozes graciosas e graves. do Ceará. Na poesia, Roberval Pereyr levou o primeiro lugar com Nenhum livro do autor foi publicado no Brasil. Mirantes; Samarone Lima ficou na segunda posição, comO aquário desenterrado. Antonio Prata ganhou novamente na categoria Crônicas, com Nu, de botas. O segundo lugar ficou com Labirinto da palavra, Novidades no Jabuti de Claudia Lage, cujas crônicas foram publicadas no Rascunho de 2008 Apoio O Prêmio Jabuti está com inscrições abertas. Este ano, um pouco diferente: a 2011. No conto, Noemi Jaffe venceu com A verdadeira história do a curadoria passou a ser da escritora e professora Marisa Lajolo; a alfabeto. Em segundo lugar, a coletânea Garimpo, de Beatriz Bracher. cerimônia de entrega do Jabuti, realizada durante oito anos na Sala São Paulo, desta vez será no Auditório Ibirapuera, dia 18 de novembro; e, por fim, a criação de uma 27ª categoria, onde o British Council irá laurear a melhor tradução de obra literária inglês-português e o vencedor participará de um evento literário no Reino Unido, em 2015. Mais informações no site Em Ribeirão Preto www.premiojabuti.com.br Entre 16 e 25 de maio, Ribeirão Preto (SP) se torna o principal cenário patrocínio literário do país. A 14ª Feira Nacional do Livro contará com 600 atrações gratuitas em 14 espaços diferentes. Com um espetáculo inédito, a bailarina O conto em Floripa e coreógrafa Deborah Colker abre o evento; para o encerramento, o De 19 a 25 de maio, Florianópolis (SC) recebe a 4ª edição do Festival maestro João Carlos Martins rege a orquestra Bachiana Filarmônica do Nacional de Conto, único evento da América Latina dedicado a esse gênero. Sesi. Dentre os escritores convidados, Antonio Prata, Cristovão Tezza, O escritor homenageado será o carioca Sérgio Sant’Anna, quatro vezes Ignácio de Loyola Brandão e Ruy Castro. Ao todo, serão 98 escritores

realização vencedor do Prêmio Jabuti. Entre outros, completam a programação nacionais, 113 escritores locais e seis internacionais. Programação no site Daniel Pellizzari, Noemi Jaffe, Cíntia Moscovich e Altair Martins. Os www.feiradolivroribeirao.com.br. encontros acontecem no Teatro Sesc Prainha. Editora Letras & Livros Investigações na McSweeney’s Literatura no sertão A edição 46 da revista norte-americana McSweeney’s traz 13 contos O Congresso Internacional do Livro, Leitura e Literatura n o Sertão policiais contemporâneos de autores latino-americanos. Participam da (Clisertão) chega à 2ª edição. Acontece em Petrolina (PE), de 5 a 10 de edição o brasileiro Bernardo Carvalho, o mexicano radicado no Brasil Juan maio. Entre os convidados, José Luiz Passos, Rogério Pereira, editor do Pablo Villalobos, a argentina Mariana Enríquez, o cubano Jorge Enrique Rascunho, e José Castello. Lage, entre outros. 169 • maio_ 2014 169 • maio_ 2014 4 5

: : entrevista : : Socorro Acioli

nhado em entender. Tratava de cada escritor consiga viver de direitos au- mercado de literatura infantil e ju- sua própria voz, isso é o que mais me personagem até esgotar as possibili- torais no Brasil. O que tem ajudado venil no Brasil. Eventos de editoras impressiona. Não temos uma produ- dades. Sugeria, cortava, pensava com muito é o número de eventos literá- voltados para o público jovem lotam ção em bloco, aquela série de livros Cheia de força no que poderia melhorar. Por rios no país inteiro, que pagam ca- as livrarias do Brasil, assim como as parecidos. Adriana Lisboa, Tatiana cinco dias, ele nos deu o melhor que chês e ajudam na receita mensal dos tardes de autógrafos de autoras como Salem Levy, Daniel Galera, Michel Abençoada poderia nos dar: seu talento e experi- autores. O problema é que viver via- Thalita Rebouças, Paula Pimenta, Laub, cada um tem seu caminho ência. A outra coisa que me marcou jando para dar palestras destrói essa Bruna Vieira. Estamos falando de nú- próprio, seu projeto literário muito histórias foi a coragem dele, que me contagiou. rotina de método e silêncio que todo meros e nesse sentido, o momento é bem fundamentado. Já na literatura :: Gabriela Silva García Márquez precisou de muita escritor precisa ter para trabalhar nos de otimismo. infantojuvenil surgem muitos auto- pOrto Alegre – RS força para enfrentar um sem número livros. Muitos autores encaram o dile- res novos todos os dias. A maioria de obstáculos na vida, inclusive a op- ma cruel de ter um emprego para es- • De que maneira você auxilia vem copiar o que já deu certo, o que abriel García Márquez e Guimarães Rosa gostariam de ção de ser escritor. crever sem preocupações ou viver só sua filha a se formar uma boa é uma pena. Uma minoria de muita entabular uma conversa sobre A cabeça do santo, de de escrever, mas sofrer a cada final de leitora? qualidade oferece uma voz original. Socorro Acioli, por diversos motivos. O primeiro é a his- cozinha • A cabeça do santo tem uma mês. A falta de respeito e desconheci- Tenho algumas regras com ela. A pri- Isso sim, me anima. Gtória — essencialmente boa. Samuel é um jovem que co- linguagem aparentemente mento diante da profissão também é meira é nunca negar livros que ela meça a narrativa num estado miserável de existência. Ele vaga pelas muito simples — uma das qua- terrível. A pergunta “você trabalha ou queira comprar. Nunca. A segunda é • Você circula com muita de- estradas do interior do Ceará, pelas cidades de Juazeiro, Candeia, divulgação lidades da narrativa. Como se só escreve?” é o mínimo que se escu- não censurar as leituras. Ela escolhe senvoltura pelas mídias digi- Canindé para cumprir a promessa feita à mãe às vésperas de sua deu a construção da voz narra- ta. Eu coleciono frases de uma gros- o que quiser ler, mesmo que eu ache tais, com seus blogs, facebook, morte: encontrar a avó paterna Nicéia e o pai Manoel e acender velas tiva para esta história com tra- seria absurda, especialmente como uma bobagem, eu compro. Comigo twitter. De que maneira o mun- aos pés dos santos de sua devoção. E num fragmento de tempo a vida ços de realismo fantástico? autora de livros infantis. Já me convi- não tem essa de mandar que com- do digital facilita ou atrapalha do protagonista muda. Os outros motivos de que falo vão surgindo O objetivo era essa mesmo: o mais daram para eventos onde esperavam pre com mesada, eu invisto mesmo. a vida dos escritores? ao longo da narrativa e da nossa leitura. Mas posso enunciar alguns, simples que eu pudesse fazer. Eu que eu cantasse e dançasse, coisa que E digo sempre às mães que façam a Facilita muito porque é mais rápido não todos, para que o leitor possa descobrir as qualidades do texto, A literatura infantil é arte, é feita por um queria um narrador onisciente e não faço. Sou escritora. O que sei mesma coisa. Cada leitor tem seu ca- encontrar pessoas. Editores, jornalis- como eu fiz em cada nova página. sensível, que soubesse muito, mas fazer diante de um grupo de crian- minho. Ela viaja comigo para eventos tas, críticos, estão todos ali, ao alcan- Samuel vive uma série de peripécias, de desenlaces, desco- autor sensível a determinado tema, ciente soubesse dosar as informações. Meu ças é conversar sobre meu processo literários desde pequena, acompanha ce de um clic. Basta ser amigo virtual brindo fatores de sua própria vida e acessando as suas origens. Fi- foco, na Cabeça do santo, foi dar criativo, contar coisas engraçadas ou minhas palestras e me vê sempre len- e a porta está aberta para ver e ser lho de Mariinha com Manoel Vale, fora criado pela mãe, expulsa e da escolha do seu universo de palavras. conta de amarrar essa narrativa surpreendentes, ler o texto, respon- do e falando de livros. Agora me pediu visto. Divulgar eventos pelo facebook renegada pelo pai, pela gravidez e a vergonha de ter sido desonrada. cheia de subenredos. Há um eixo der perguntas. Confundem literatu- um Kobo e eu comprei. Acabou de ler e twitter é maravilhoso e é pelas redes Sobrevivem, mãe e filho, a custa da ajuda de pessoas boas e do tra- principal (Samuel indo a Candeia ra infantil com animação de palco, a trilogia Jogos vorazes e começou sociais que os leitores chegam ao blog. balho com palha que Mariinha realiza. Doente, portadora de sífilis, procurar o pai e a avó) e vários ou- às vezes. Para ser honesta, acho que O cão dos Baskervilles — está Atrapalha porque toma muito tempo. que Samuel julga ter sito transmitida pelo pai, ela morre, deixando tros eixos que caminham à margem com dez anos de estrada eu já consigo ado­­­­­­rando. Sim, ela é uma leitora. E porque o risco de se expor demais os pedidos ao filho. (o passado da sua mãe, Mariinha, tirar de letra. Tenho respostas ótimas Acho que tomei boas decisões nes- é enorme. É preciso saber dosar bem Ao contar a trajetória de Samuel, Socorro incorpora elementos o passado da cidade, a história de para perguntas desrespeitosas sobre se processo. quando se posta uma informação que que vão ficando evidentes na construção do romance. Um deles é Fernando, de Rosário, etc.). Eu pre- a profissão. mil pessoas vão ler. Eu confesso que a religiosidade. Santos que estão presentes no imaginário do povo cisava de um texto claro e limpo para • O que seria um bom leitor? É gosto bastante, tenho muitos amigos nordestino e que funcionam como fonte de fé e misticismo servindo desenvolver essas tramas todas. De • Ao ler em média de seis a doze possível defini-lo? que conheci pela internet. Adoro re- de eixo para histórias contadas de geração a geração. Padre Cícero, outra forma, eu não teria consegui- livros por mês, você, obvia- Talvez seja o que lê com prazer, por- ceber os recados dos leitores, espe- Santo Antônio e São Francisco formam a tríade divina que compõe a do. Por enquanto, pretendo seguir mente, é uma leitora muito aci- que gosta, porque não sabe viver sem cialmente as coisas engraçadíssimas base da narrativa. Cada um no pedido da mãe deve receber uma vela, escrevendo assim, um texto simples ma da média. O que você busca livros. Um por mês, que seja. Talvez que os adolescentes postam. Mas aos seus pés, para salvar a sua alma. a serviço de enredos complexos. na leitura de ficção? seja o leitor que pensa sobre o que transito com muito cuidado por esse O místico em A cabeça do santo não fica apenas na crença Nem sempre consigo esse máximo de leu, que sabe compreender os livros terreno virtual. dos milagres dos santos. A mãe de Samuel, assim como todas as mu- • Ao ganhar o prêmio Jabuti, no doze livros, mas leio muito e sempre. dentro dos seus contextos, que enten- lheres de sua família possui o dom de prever a própria morte. Essa ano passado, você afirmou que O que me ajuda bastante é o advento de o lugar de cada autor no seu tempo • Como transformar uma ideia característica do romance se expande no protagonista. Ele mesmo “o prêmio chega na hora mais fantástico do ebook. Tenho um Kobo e sua posição e contrastes diante dos em boa literatura? tem a capacidade de ouvir vozes. Após ser expulso da casa da avó, ele certa possível”, mas que seguirá alimentado por uma biblioteca incrí- demais. Talvez seja o que surta nas Com muito trabalho. No meu caso, vai por ordem dela mesma, alojar-se em uma gruta mais afastada. “na vida caseira, lendo muito, vel e aproveito cada minuto livre que livrarias, compra mais do que conse- com um planejamento intenso até A gruta é na verdade a cabeça degolada de uma estátua enorme de pensando muito, demorando tenho. Tenho metas de leitura, anoto gue ler, ama os autores loucamente. encontrar a estrutura adequada ao Santo Antônio, padroeiro da cidade de Candeia. pra escrever, publicando com tudo que leio, faço estatísticas, é um Existem inúmeros tipos de bons lei- texto. A ficção exige uma série de Atacado por cães, escondido, doente, Samuel cautela”. Como é a sua rotina de negócio divertido e meio nerd. Mas tores, não existe um gabarito. tomadas de decisão por parte do ouve as histórias contadas pelas vozes que vertem criação e contra quais equívo- isso não faz de mim uma erudita, por- autor. Onde acontecerá a história? das paredes da cabeça. Auxiliado por um garoto, cos um escritor deve lutar? que leio muita, muita bobagem. An- • Na introdução de Aula de leitu- Quem são os personagens? O que Francisco, ele se recupera e acaba achando uma uti- No momento, tomei a decisão de só tes de dormir, geralmente, opto por ra com Monteiro Lobato, você eles querem? O que os impede? Vão lidade para as vozes que falam o tempo todo. Ele se :: Rogério Pereira poderia, sim, ter dobrado a esquina tos. A literatura infantil é arte, é feita beça do santo? trabalhar em um projeto de cada vez. livros que contem uma boa história e afirma que “escrevi este livro conseguir? Em quanto tempo tudo torna um Mensageiro do santo, fazendo com que as Curitiba – PR e feito do meu protagonista, Samuel, por um autor sensível a determinado Foi um convívio muito rápido, apenas Como eu disse antes, sou muito len- não tenho o menor problema em es- porque acredito, a cada minuto acontecerá? Quem contará a histó- mulheres resolvessem seus problemas amorosos. apenas um rapazinho brincalhão, tema, ciente da escolha do seu uni- cinco dias de aula, mas a importância ta, detesto as primeiras versões de colher algo mais leve e nem de perder da minha vida, que a literatura ria, um narrador onisciente? Será E então a narrativa toma rumos diferentes: o ocorro Acioli acaba de es- mas essa não era a história que eu verso de palavras. Ela pode e deve foi decisiva. O livro só nasceu por cau- tudo que escrevo e preciso de tempo tempo com best-seller. Muitas vezes pode salvar o mundo”. Por que em primeira pessoa? Quais as ver- místico torna-se o começo de descobertas e desve- trear na literatura adulta queria contar. Por outro lado, fico falar de morte, dor, tristeza, alegria sa desse contato com ele. Procurei um para maturar enredo e texto. A rotina eu sigo as indicações das minhas lei- esta crença na literatura? dades ou as perguntas que movem lamentos sobre a história de Candeia, suas persona- com A cabeça do santo, me perguntando se, mesmo com cri- porque tudo isso faz parte da con- tema para mandar e concorrer a uma de cada texto começa com a escolha toras adolescentes e compro os suces- Uma vez a Fundação Nacional do Li- esse texto? Essas são apenas algu- gens e a vida de Samuel. escrita a partir de uma ofi- me, crueldades, adultério e amores dição humana. Enfim, as diferenças vaga na fabulosa oficinaComo contar do tema, depois o desenvolvimento sos do momento — a maioria dos tex- vro Infantil e Juvenil organizou uma mas das perguntas que o livro pre- Sobre a cidade, descobrem-se as irregulari- S A cabeça do cina literária com Gabriel García proibidos, esse livro não poderia ser caminham mais no terreno da esco- um conto e foi assim que encontrei da narrativa — traçado em um ca- tos me irrita, mas eu leio. Ao mesmo exposição chamada Santos Dumont cisa responder. O que aprendi com santo dades de um prefeito, a história de um santo mal Márquez. É apenas uma nova fase lido por um jovem. Penso que pode, lha dos temas. Ao menos para mim, e decidi investir na cabeça do santo. derno — e sempre, sempre, sempre tempo, andei numa fase obsessiva leitor de Julio Verne. Fiquei impres- cursos de roteiro e escrita criativa Socorro Acioli construído e da morte de uma comunidade. Por su- em uma trajetória literária de mais sim. Tanto que a editora inglesa Hot escrever exige muito trabalho, não Ter o aval do García Márquez e ouvir começo tudo de uma pesquisa. Isso por autores africanos — , sionada com aquilo, com o poder da me ajudou muito a facilitar o pro- Companhia das Letras perstição dos moradores e por descaso da prefeitura. de dez anos, iniciada na literatura in- Key Books está lançando o mesmo interessa o destinatário do texto. dele que eu tinha um material mara- vem da minha formação como jor- Agualusa, Luandino Vieira, Pepetela, literatura como condutora da vida de cesso. Juntando os cursos, o estudo 176 págs. Samuel é odiado e perseguido pelo poder local, que fantojuvenil. Ganhadora do prêmio livro, o mesmo enredo, no seu selo vilhoso em mãos foi o que me deu co- nalista. Quase tudo que escrevi veio Ondjaki, Armenio Vieira. Tive uma um inventor. A boa literatura dá sen- e minha experiência, tenho pro- não deseja responder pelas suas ações erradas e inér- Jabuti 2013 com Ela tem olhos para o público juvenil. A cabeça do • Quais desafios você se impõe ragem para não desistir. Em termos de um fato real, mas o que produzo paixonite pelo Ian McEwan, pelo tido à vida, no mínimo. Nos melho- movido oficinas de construção de cia em relação à cidade, assim como a ressurreição de um espaço que de céu, Socorro é otimista em rela- santo, portanto, estaria na categoria ao iniciar o projeto de um novo práticos, ele sugeriu coisas importan- são reportagens inventadas. Só de- Murakami. Ano passado fui à Argen- res casos, alimenta grandes ideias. narrativa para tentar iluminar esse julgavam morto: Candeia não era mais a cidade abandonada. ção ao momento literário brasileiro, que o mercado internacional chama livro? tes. Por exemplo: eu estava na dúvi- pois da pesquisa eu consigo traçar o tina pela primeira vez e me preparei O querido Bartolomeu Campos de caminho entre a ideia e a literatura. As personagens vão se desdobrando, mostrando suas histórias sempre mantendo um olhar crítico, de crossover — um texto que pode É muito bom começar um projeto da se o personagem Samuel deveria eixo principal da história, o que vai lendo Borges. A paixão do momento Queiroz disse uma vez que é a ima- particulares, origens. E toda a trama vai se encaixando, como as pe- principalmente em relação à produ- agradar a adolescentes e adultos. É novo, cheia de esperanças. Na ver- ouvir só as orações das mulheres ou acontecer com os protagonistas do é o Valter Hugo Mãe. O que eu busco ginação que movimenta o mundo. • Qual a importância dos prê- ças que compõem a própria imagem do santo. Histórias de amor, ção voltada a crianças e jovens. Nes- o que tenho visto com o retorno dos dade, é talvez o segundo melhor mo- também os pensamentos do santo. começo ao fim. Sem isso, nem sento na ficção depende do momento. Es- Esse computador onde eu escrevo mios literários para os auto- morte, abandono e esperança, todas depositadas na possibilidade de ta entrevista concedida por email, leitores que me escrevem nas redes mento — o primeiro é receber o livro García Márquez disse que eu deveria para começar. Preciso saber como colher um livro é fazer um pacto com e esse outro de onde você me lê só res? E qual a importância no que o dom de Samuel e das vozes ouvidas consiga resolver. Socorro a autora cearense fala de sua breve sociais, todos os dias. pronto. Quando decido por um novo optar pelas rezas, já que conhecer se- vai terminar — mesmo que depois ele, olhando nos olhos da capa. Para existe porque alguém imaginou. E a seu caso específico? nos apresenta um quadro vasto de personalidades a que são atribu- convivência com García Márquez, tema, a primeira providência é com- gredos de amor das mulheres de uma eu mude de ideia. Costumo planejar alguns eu digo: “ok, eu quero rir um literatura nos dá isso, esse poder de Prêmios conferem uma visibilidade ídas características como solidariedade, esperança, afetuosidade e das dificuldades em ser escritor no • No momento da construção prar um caderno, onde anoto tudo cidade é uma forma de poder. Outra os capítulos, usando um método de pouco com você e esquecer da vida, sonhar, especialmente na infância. imensa para o livro e o autor. Para o outras ruins, mas que também fazem parte tanto das personalidades Brasil, do mercado editorial, da for- da narrativa, há diferenças o que interessa para a construção coisa que ele repetiu várias vezes pra fichas que aprendi na minha forma- por favor”. Diante de outros eu reve- Existe também a literatura que dói público leitor, é uma legitimação do ficcionais como reais: ganância, avareza, rancor e tantas outras. mação de leitores e de sua paixão entre escrever para criança, do texto. São muitos desafios. Para turma toda e que me serviu muito foi ção para escrever roteiros de cinema. rencio o autor e digo: “Nada menos e que faz enxergar a dor do outro. trabalho, um atestado de qualidade. Samuel encontra seu pai, que de forma circular contribuí- pela gastronomia. jovem ou adulto — leitores, su- mim, ao menos, um dos maiores é a frase: “Conte sua história como se Tenho uma ficha para cada capítulo que arrebatamento, é o que espero”. Nada mais necessário do que o exer- O Jabuti foi o meu primeiro prêmio ra para a decadência da cidade. A história vai se misturando à de postamente, diferentes? não repetir o que já fiz antes. Não re- contasse a da Chapeuzinho Verme- e nele eu determino o lugar dos fatos. cício da empatia nos dias de hoje, es- nacional e o salto da minha posição Candeia e o passado torna-se mais claro e o presente assume um • Após 10 anos de uma bem- Para mim todos exigem muito tra- petir temas e estruturas. É difícil, é lho”. Ou seja: o seu mundo ficcional Isso é ótimo, porque se eu resolver • Da sua experiência com jo- ses tempos de egoísmo. no mercado foi estrondoso. Muitas sentido próprio. -sucedida carreira como auto- balho, muito mesmo. Não escrevo arriscado. O mais certo — pensando tem que ser claro e só quando conse- contar algo só mais à frente, basta vens leitores, é possível buscar portas se abriram, muitos convites, Descobre entre as vozes, a história de Rosário. Que herdara da ra de livros infantojuvenis, vo- facilmente, inspirada pela Musa. Eu no mercado — é repetir o que já fun- guimos definir tudo em um parágrafo mudar de lugar. Eu ia começar A ca- explicações para as dificulda- • Ao percorrer o Brasil em fei- muito reconhecimento. Tudo fica mãe africana o hábito de cantar às cinco da manhã e às cinco da tar- cês estreia na literatura adulta sofro um bocado. E não acho que cionou bem, mas não é o que eu que- é que temos o domínio da história. beça do santo contando o passado des em formar mais leitores no ras, festivais, encontros com mais fácil depois quando o autor tem de. É a voz que acalma o coração de Samuel, todos os dias. A beleza com A cabeça do santo. Quais texto infantil é fácil e adulto, difícil. ro para a minha carreira. Já escrevi Quando estive com García Márquez, de Candeia, porque a estátua não foi Brasil? Quais seriam as princi- leitores, como você avalia o um Jabuti no currículo. Na vida real, da voz — associada ao mistério das canções em uma língua que oscila as inquietações que a levaram Não chamo livro infantil de livrinho. ensaios biográficos, livro infantil em eu só tinha o começo da ideia do li- concluída. Mas depois vi que eu de- pais barreiras? momento literário brasileiro ao menos pra mim, não muda mui- entre o português e outra desconhecida — vai despertando em Sa- a escrever um romance voltado O que muda é o universo ficcional prosa, em verso, livro juvenil, ensaio vro. À época, queria fazer um roteiro veria começar com Samuel, manter a É um quadro complexo. O que cer- do ponto de vista de mercado? ta coisa. Continuo batalhando mui- muel o que mais tarde se descobriria como amor. ao público adulto? de cada um. Alguns temas impor- acadêmico, romance. Não sou exce- de cinema e insisti nessa linguagem pergunta no leitor e explicar depois. ca um leitor em potencial? Família É possível viver de literatura? to, lutando no dia a dia para seguir Atendendo aos pedidos da mãe, reforçados pela avó, ele Esse assunto rende uma resposta tantes para adultos não fazem par- lente em todos os gêneros, mas ado- por quatro anos. Em 2010, por um Foi só mover a ficha de lugar. Depois e escola. Sem incentivo desses dois Para alguns autores, sim. Uns têm a escrevendo, estudando, pensando completa o sentido da sua missão, cumpre a sua jornada de herói. cheia de desdobramentos, já que a te do espectro de interesse de uma ro experimentar e aprender. Outro conselho do diretor Lula Buarque de de organizar a estrutura, vem a hora pilares da sua formação, fica difícil sorte de viver só de vendas de livros, meus projetos, correndo muito para Samuel vivencia a pobreza e a dor pela perda, constrói amizades, definição de idade do público leitor criança. A linguagem também exige desafio é o tempo. Sou muito lenta, Hollanda, desisti de escrever um ro- de escrever uma primeira versão do tornar-se leitor. Existem iniciativas o melhor dos mundos. Outros con- dar palestras, fechar as contas no fim ajuda a reconstruir uma cidade, a bondade de um santo e o passa- é algo muito complexo. O que me uma atenção, tanto em coisas mais levo anos em um projeto e o prazo teiro e comecei a trabalhar no livro, texto e assim prosseguir. Mais à fren- fantásticas no Brasil. Aplaudo de pé o seguem cumprindo uma agenda de do mês. Valorizo muito os prêmios do de sua família. fez decidir a linguagem e a identi- visíveis, como vocabulário, quando apertado costuma me atrapalhar de verdade. Há influência do García te chegam os leitores que me ajudam programa Agentes de Leitura, criado muitas viagens por mês, nas condi- que já recebi, me fizeram feliz e es- É aos pés dos santos que ele encontra o que procura: Santo An- dade desse livro foi o próprio tema. na composição de metáforas e pon- muito. Tento organizar o tempo de Márquez no texto, mas vejo uma filia- muito — minha agente, Lúcia Riff, os pelo educador Fabiano dos Santos, ções mais diversas. Mas de qualquer pero que venham mais. Porém, eles tônio lhe entrega o pai, exilado na estátua degolada; São Francisco Fui arrebatada pela imagem de uma tes de narrativa que talvez um lei- escrita a fim de cumprir os cronogra- ção muito mais forte com Jorge Ama- editores, preparadores de texto. Sou que leva livros de casa em casa. Tam- forma, temos um número razoável não mudam quem eu sou. lhe entrega o caminho para Rosário, que agora lhe acalmaria o cora- cabeça oca, gigantesca e inacabada tor mais jovem não consiga captar. mas, mas nem sempre consigo. Mais do e Ariano Suassuna, por exemplo. grata por esse momento, é o fim da bém sou entusiasta da Fundação Na- de escritores vivendo de literatura e ção não apenas com a voz, mas com a sua presença. de Santo Antônio que vi em uma Infelizmente, tenho visto critérios uma questão é a linguagem. Gosto Escrevemos a partir do nosso reper- solidão e o começo do trabalho em cional do Livro Infantil e Juvenil, que isso é muito bom. Do ponto de vista • Por que manter um blog de Lendo a biografia de Socorro Acioli, percebemos que ela pro- matéria de jornal. O texto falava dos absurdos nesse julgamento da qua- de dar um espaço entre um texto e tório de leituras e experiência de vida. equipe para fazer o livro existir. Mas mantém diversas ações impressio- do mercado, é um momento aqueci- receitas gastronômicas? curou aprender para exercer o que lhe sobra: talento. A cabeça do problemas causados pela cabeça no lidade no livro infantil. Já vi profes- outro para ler mais e aprender com o Não posso negar que o Realismo Má- isso tudo é só um lado da minha vida nantes envolvendo autores, ilustra- do. Muitos eventos, muitos autores Por prazer. Adoro cozinhar, pesqui- santo é a carta fiadora de Socorro: confiamos nela como autora. meio da rua e um deles era o fato soras dizendo que um bom livro para bordado dos grandes autores que te- gico me marcou, mas não é isso que profissional. Tenho ainda a carreira dores, editores, família e professores. surgindo, muitos livros de sucesso sar receitas, conhecer ingredien- Confiamos na elaborada trama composta por elementos fantásticos de ter servido de morada para um crianças não pode falar de morte, nho conhecido. Já entendi que meu estou tentando fazer agora. de professora em construção. Acabei Se eu tiver de arriscar um caminho, vendendo bem nas livrarias do Bra- tes novos, reproduzir em casa as (nos fascinam tanto), sistemas de encaixes entre passado e presente homem qualquer. Imediatamente, não pode ter palavras de quatro si- forte como autora não tem nada a meu Doutorado e estou ministrando creio que a saída para o problema é o sil, vários editais para compras de comidas que aprendo nas viagens. e uma circularidade que nos assombra e nos deixa curiosos. Por 168 percebi que tinha um tema e um labas ou que sejam muito distantes ver com reinvenção de linguagem, • O que mais a marcou na con- cursos livres de Construção de Nar- investimento na formação do profes- governo por ano, concursos, prê- Minhas malas voltam cheias de in- páginas de texto, conhecemos Samuel e sua história, uma narrativa personagem muito fortes para cons- do vocabulário natural da criança. ao menos por enquanto. Busco o tex- vivência com García Márquez? rativa. Além, é claro, das rotinas de sor leitor. Eu já dei uma palestra para mios literários, etc. gredientes e utensílios. Faço comida pungente de sobrevivência, de amor e, sobretudo de esperança. Se a truir um romance a partir dali. Ao Dizem, ainda, que o bom livro infan- to mais simples enquanto dou san- A generosidade e a coragem. Acho in- dona de casa, de cuidar da família, um público de professores às 20h e todos os dias para minha família e é literatura é o exercício artístico de representar a vida real, ou basear- desenvolver a narrativa, decidi que til é o que ensina alguma coisa — a gue no enredo mais surpreendente crível que um Prêmio Nobel de pres- da vida toda ao redor. perguntei quantos ali tinham dado • Você acompanha a produção nesse momento que surgem ótimas -se nela, Socorro fez isso com habilidade. esse homem teria o poder de ouvir tal alcunha de paradidático. Costu- possível. Aliás, surpreender o leitor é tígio internacional, lido, admirado e mais de dois turnos de aula. A maio- literária brasileira? O que mais ideias para a literatura. De vez em as orações das mulheres pedindo mo fazer palestras para professores um desafio gigantesco. querido no mundo inteiro, disponha- • Você já afirmou que ser es- ria levantou o braço. Perguntei quem te chama a atenção na literatu- quando eu penso que, um dia, pode A AUTORA Socorro Acioli por casamento e que armaria uma e tento conversar sobre a diferença -se a passar uma semana sentado a critor no Brasil é muito difícil. trabalhava aos sábados e todos levan- ra atual? surgir um projeto literário daí, mas confusão com as informações que entre livro para criança e literatura • Qual a importância do con- serviço de autores iniciantes. No pri- Quais as principais dificul- taram o braço. Quando esse professor Acompanho, claro. Como leitora e nada concreto ainda. Por enquanto, Nasceu em 1975, em (CE). É jornalista e doutora em estudos de tinha em mãos. Pensei em adultério, infantil. O livro pra criança é aquele vívio com Gabriel García Már- meiro dia de aula ele anunciou que dades que um autor enfrenta vai ler? E sem ter, ele próprio, uma como amiga de muitos autores — a é prazer e distração. literatura pela Universidade Federal Fluminense. Foi aluna do prêmio Nobel crimes, segredos, amores proibidos e que as bienais vendem aos quilos por quez, em 2006, na oficina “estava ali para ouvir”. Isso é raro. num país como o Brasil? vida de leitor, como vai transmitir maioria que vou conhecendo pela Gabriel García Márquez na oficinaComo contar um conto, em . Entre nada disso caberia em uma narrati- cinco reais, que ensinam as cores e Como contar um conto, em Durante a fala de todos os alunos, ele Instabilidade financeira e desrespeito esse gosto para os alunos? Por outro estrada das feiras e festas literárias. leia entrevista completa no seus livros publicados estão A bailarina fantasma e Ela tem olhos de céu, ganhador do prêmio Jabuti de literatura infantil em 2013. va infantil ou juvenil, a princípio. Eu os tipos de formas de amarrar sapa- Cuba, para a escritura de A ca- estava de fato concentrado, empe- diante da profissão. É raro que um lado, vemos um aumento imenso no Os autores sérios estão em busca da www.rascunho.com.br

UEM SOMOS CONTATO ASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO CARTAS

EDIÇÕES ANTERIORES COLUNISTAS DOM CASMURRO ENSAIOS E RESENHAS ENTREVISTAS PAIOL LITERÁRIO PRATELEIRA NOTÍCIAS OTRO OJO 169 • maio_ 2014 6 Vozes autônomas Poemas de Alice Sant’Anna e Mário Alex Rosa trazem a composição de um sujeito melancólico

OS AUTORES : : Luiz Guilherme Barbosa quadrinhos que Zuca Sardan; a Alice Sant’Anna autonomia da voz em sua Via fér- – RJ editora lança dois outros, os se- rea é duramente conquistada sob gundos livros de poemas de Alice Nasceu no Rio uma dupla condição: desenvolver s coleções de livros de Sant’Anna e Mário Alex Rosa. de Janeiro um exercício de metalinguagem do poemas, desde a década O que atravessa ambos os li- (RJ), em poema de modo a dizer mesmo que de 1980, são um instru- vros talvez seja a composição de 1988. Poeta, sem as palavras adequadas, e cui- estreou com mento de leitura da poe- um sujeito melancólico, que, a par- dar para que a luz, o clarão do po- A Dobradura sia brasileira. Não só fazem o poe- tir de um olhar contemplativo às em 2008. ema não dissolva o sujeito. Assim é ma se acompanhar de um projeto pequenas coisas do cotidiano, pro- Também publicou que num dos mais pungentes poe- Rabo de baleia gráfico colecionável, que se inscre- jeta uma série de reminiscências em edições independentes mas — e, no livro, a dor está sempre Alice Sant’Anna ve na memória da leitura dos po- ou imagens que progressivamente Bichinhos de luz (2009) e, em alta — lê-se “a inevitável lembran- Cosac Naify coautoria com Armando Freitas emas, como também intervêm na 64 págs. desfiguram a paisagem do entorno. ça/ daquele pássaro que um dia ‘se legibilidade da poesia, ao lançarem Trata-se, portanto, de dois projetos Filho, Pingue-pongue (2012). esfacelou na asa do avião’”. O poe- novos poetas, acolherem poetas líricos para o poema. Tratam-se de ma lembrado, Confissão, de Carlos bissextos, revisarem poetas me- poemas que parecem poemas, o Mário Alex Rosa Drummond de Andrade, é “transfe- nos lembrados, acompanharem as que deve chamar a atenção à leitu- rido para o presente”: o poema, “jo- trajetórias mais comemoradas. De ra, principalmente se lembrarmos Nasceu em São gado à própria sorte, tenta se des- fato são muitos os elementos que que o texto de apresentação do livro João Del-Rei viar de si até onde pode/ e já pode intervêm na maior ou menor legi- de Mário Alex Rosa foi composto (MG), em muito pouco”. O poema dificilmen- bilidade da poesia, e eles incluem a por Armando Freitas Filho, o mes- 1966. Poeta, te desvia de si, talvez se esfacelasse publicou curadoria da coleção, a audácia do mo poeta que, em 2012, publicara na asa do avião, mas não: apesar de Ouro editor em lançá-la, a viabilidade da uma bonita plaquete em coautoria sua parca potência desviante, o po- Preto em editora, os prêmios almejados ou com Alice Sant’Anna, Pingue- 2012. Também ema, “entre um talvez e um se, pode alcançados pelo livro. Esses gestos Via férrea -pongue. O mesmo poeta que em publicou poemas para esperar ou retardar a confissão”. A críticos, mais ou menos fortes, são Mário Alex Rosa seu último livro, Dever, dedica crianças em ABC Futebol sua “camisa de força” (este é o títu- muitas vezes decisivos para que o Cosac Naify versos ao livro de Angélica Freitas, Clube e outros poemas lo do poema) é uma ética calcada poema alcance uma espécie de pa- 64 págs. o poema Cuidado: “Tormento lê- (2007) e Formigas (2013). nos valores do poema moderno, de tamar de legibilidade. -lo assim/ sacudido, na superfície/ certo poema moderno: a confissão Parece, portanto, que as cole- sem ir até o fundo/ por não saber é adiada como se o poeta resguar- ções de poesia, decorrência do ama- nadar/ na sua água desobediente”. dasse assim o poema de sua disso- durecimento do mercado editorial O tormento experimentado na su- lução, como um recuo estratégico — o que, diga-se de passagem, re- perfície desobediente da água dos para preservar a linguagem poética presenta para as editoras compen- no país. Mas ainda aqui seria opor- poemas montados com frases do das turbinas horrorosas que, no entanto, são aquilo mesmo que torna o pás- sar o encalhe dos livros de poemas tuno lembrar a leitura de Flora Google por Angélica Freitas, das saro memorável. Por isso a valorização do rascunhar na preparação dos poe- por meio das vendas de romances Süssekind, que considera boa parte canções que cantam a mulher gor- mas, por isso a insistência na palavra que “não sai. Mata-me mas não sai”, e best-sellers, livros paradidáticos ou da obra de Leminski “em diálogo da que incomoda muita gente ou sobretudo por isso a valorização do tempo cotidiano e vazio: segundas-feiras, obras clássicas com poder de ven- constante com hagiografias diver- a mulher insanamente bonita que sábados, domingos, os dias da semana se sucedem e, mesmo que a palavra da a longo prazo —, simbolizam, ao sas”, o que inclui “mesmo seu gosto vai ganhar um carro, contrasta não saia, o poema se escreve, e se erige neste paradoxo: “Tentativa 1: eu./ mesmo tempo, a produção de outro pelo apostolado, por uma intensa fortemente com a ambiência deli- Tentativa 2: neutra./ Tentativa 3: silêncio”. olhar para o poema. É que a pu- exposição pública, mesmo quando cada e melancólica e reflexiva dos No caso de Alice Sant’Anna, a palavra sai, a sintaxe das frases joga blicação do livro numa coleção de a cirrose já se encontrava em es- poemas de Mário Alex Rosa e Alice com os cortes dos versos e com a ausência de pontuação, produzindo assim poesia inscreve-o numa série que tado avançado”. Seja no caso em Sant’Anna. O que talvez esteja em o ritmo de um acontecimento experimentado ou rememorado, como se o sugere certo olhar sobre o poema que o poema se expõe multicor nas jogo nessa diferença sejam as forças poema filmasse a percepção misturando-se à imaginação, adensando grada- contemporâneo, certo posiciona- vitrines alugadas das grandes livra- que constituem a voz de cada poeta, tivamente a experiência de leitura. Há, portanto, uma afirmação da poesia mento sobre o que significa fazer rias, seja no caso em que circula in- ora narrativizando as angústias e os que se encontra com o mundo, este não a ameaça. O lirismo, novamente, poesia, certa escolha entre os poe- visível, sob encomenda, em paco- diversos afetos que possam compor paga um preço: dessa vez, o da imprecisão (onde, quando isso acontece? mas que serão publicados e aqueles tes de papel pardo da editora à casa a subjetividade poética mais ou me- que jacas são essas?), o do anonimato dos personagens (m. ou d.), o do po- que, por algum motivo, não chega- do leitor, é supérfluo mostrá-lo ou nos definida numa obra (a demora eta invisível (que, ao se encontrar com o próprio assassino: “que pena! que rão ao livro ou às livrarias. De um escondê-lo. Tanto faz, porque o po- em responder uma carta, o fim de desencontro! que perda!/ ela não mora mais aqui”). Estratégias, enfim, de modo ou de outro, no limiar do visí- ema não chega na hora certa para semana na casa dos primos, em preservação da voz. Não à toa impressionam mais os poemas que não neces- vel, a poesia preserva a ambiguida- o leitor, mesmo que a encomenda Alice Sant’Anna; a “sombra” que sitam desfigurar uma paisagem conhecida, uma lembrança familiar, uma de que, desde as edições fantasmas não atrase e as metas de venda se- engole o tempo, as “tardes” inter- viagem de trem pela Europa, pois, neles, a voz consiste na figuração precisa de pequenas tiragens dos poetas jam atingidas ou superadas. mináveis, as lembranças “inevitá- de um evento que não se enquadra na moldura da memória de um sujeito. É modernistas, às edições raras da A Cosac Naify lança, sob a veis”, de Mário Alex Rosa), ora dra- o caso do poema Há aquilo que fica firme (um poste), que termina: poesia concreta, às edições mimeo- coordenação de Heloisa Jahn, dois matizando as vozes díspares que grafadas da poesia marginal, como volumes da coleção Poesia contem- possam decompor a subjetividade mas há também o que se movimenta um espectro, o poema parece guar- porânea brasileira. Depois dos 14 poética e pô-la em xeque na obra (o rápido demais na moldura da janela: um pássaro dar na vida cultural. volumes da coleção Ás de colete, humor e os jogos de escrita em An- sempre pode ser uma andorinha ou uma águia A não ser que se recorde a série bolso, coordenada por Carlito gélica Freitas; os cantos indígenas e e um avião nunca sabemos poesia reunida de Paulo Leminski, Azevedo; depois dos dois volumes a experiência tradutória em Josely de onde parte para onde segue que desbancou, em março de 2013, excelentes de Josely Vianna Bap- Vianna Baptista). Ora vozes autô- uma série de romances best-sellers tista e de Angélica Freitas; depois nomas, ora vozes autômatas. Pois parece ser essa indeterminação de origem e destino, para quem vê tornando-se o livro mais vendido ainda de Ximerix, a quimera em No caso de Mário Alex Rosa, a o avião no céu, o horizonte de beleza desses versos, dessa voz.

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Lucila Wroblewski Literatura crua e

O AUTOR André Sant’Anna urgente Nasceu em 1964, em Belo Horizonte (MG). É músico, roteirista, Em O BRASIL É BOM, André Sant’Anna mostra publicitário e escritor. Filho do também o valor da ironia em tempos de tensão social escritor Sérgio Sant’Anna, cresceu no Rio de Janeiro, onde tocou no grupo : : Guilherme Pavarin sugere Sant’Anna, entre as ideias musical Tao e Qual São Paulo – SP atordoadas de um doente mental e durante a década de um homem são da classe-média. 80, e hoje mora em udera, enquanto resenho, Como mostra desde o lança- São Paulo. Estreou na ser visto de terno e tom si- mento de Amor (1998), que acaba literatura como livro sudo, pela tevê. Se me per- de ser relançado pela Oito e Meio, e Amor, de 1998, e mitissem, pediria empres- Sexo (1999), o autor sabe destrin- depois publicou Sexo, P em 1999, ambos de tado a voz de apresentador de um char como poucos a inconsistência contos. Em 2006, lançou desses programas de crimes/entre- das atuais reflexões sobre a socie- seu primeiro e único tenimento, cercado de helicópteros, dade brasileira. Parte disso pode romance, O paraíso choro e berros, urgente. Não estra- ser explicada pelo seu ofício fora da é bem bacana, e, nhe além do necessário. Peço, por literatura. Redator de publicidade, em 2009, lançou um parágrafo, o alarmismo. A cena, André Sant’Anna tem, segundo seu Inverdades, de contos. imagine: nossa aeronave sobrevoa currículo online, larga experiência um vilarejo miserável. Imagens, eu com marketing político. Não é exa- pediria. Me dê imagens desse ab- gero concluir que, desse processo de tentativa rápida de conscientizar o lugares conhecidos, sem descrições surdo! O que vocês verão – pausa; maquiar a realidade, de inserir ele- leitor desses tempos de homens e pormenorizadas: o andaime, a Baía tiro os óculos, preocupado; esfrego mentos persuasivos em campanhas, discursos partidos. de Guanabara, o trânsito, a portaria, os olhos – é impressionante. Corta por vezes de modo forçoso e artifi- o brejo, o estádio. Se na perspectiva para lá, gritaria. Na tela! cial, o autor tenha se armado para O estilo cru e a romântica, a atmosfera acontece Seria a vez de apresentar os realizar o movimento inverso, de poesia desleixada pela ausência de detalhes, no estilo personagens, os entrevistados: o desnudamento. O material cru — os No meio do fogo cruzado, o de Sant’Anna, ultrarrealista, o cli- comunista de classe-média que fatos, a opinião popular, a semiótica grande mérito de Sant’Anna é não ma dos contos ocorre por meio de odeia a classe C por invadir sua destrinchada — está ao seu alcance, se ater à ironia; com habilidade, ele traços descritivos desleixados, car- O Brasil é bom praia com carros, som alto e alga- pronto para ser reconstruído. A sub- consegue em alguns textos elevar o regados de sentidos amplos, como André Sant’Anna zarra; o nacionalista que culpa o versão, para ele, se torna uma via Companhia das Letras humor cáustico à poesia, ao subli- “uma cara meio assim, pensando, direitos humanos pelo atraso do dupla: como publicitário, Sant’Anna 190 págs. me. Fica evidente em contos como o babando, muito triste poesia”. A país; o fã de futebol que atribui o joga a favor dos partidos, dos clien- excelente Lodaçal, que já havia sido técnica, quase uma camuflagem, sucesso da seleção de 70 à ditadu- tes; como escritor, contra todos. publicado pela mesma Companhia, um esforço para não coser demais ra; aquele que se sentencia supe- no volume Essa história está di- o texto, tem efeito particularmente rior por ouvir jazz e planejar “uma A ironia como LEIA TAMBÉM ferente – Dez contos para can- eficaz e devastador em contos de te- viagem inesquecível para uma ilha gás lacrimogênio ções de , inspirada mática político-social. Outra vez, é na Indonésia que só ele conhece”; Não há, na produção literá- na música Brejo da Cruz, uma crítica o meio como mensagem. o torcedor cuja terapia é transferir ria de Sant’Anna, quem escape da à fome e à miséria infantil, tema ao as frustrações para o time do co- ironia corrosiva. Políticos, pobres, qual Sant’Anna se mantém fiel. A repetição. A repetição. ração; o pastor falso otimista em ricos, empresários, hippies, todos No conto, os pequenos Chi- O leitor de primeira viagem busca do dízimo, entre outros. Um são colocados na lupa do ridículo e quinho e Toninho, dois meninos talvez estranhe o número de vezes a um, eles discursam em primeira da falta (ou do excesso) de sentido. do Brejo da Cruz que não têm o que uma mesma palavra é escri- pessoa, com o aspecto sóbrio, de E o mérito do mineiro é saber inserir Amor que comer, fumam charutos de ta numa página. Não se trata de quem tem consigo a segurança de essa técnica discursiva em uma es- André Sant’Anna maconha sob o luar e imaginam maneirismo. A repetição é quem um futuro melhor. São, afirmam, a crita sincera, direta. Sua ironia não é Oito e meio como seria o mundo fora dali, “da articula as tramas de Sant’Anna. reserva moral do país. vazia — a tal ironia pela ironia, a qual 92 págs. aldeia”, “do lodaçal”. Eles vão se Nomes e situações são repetidos à Intercalados, esses homens e tantos críticos culturais americanos transfigurando em personagens ur- exaustão. Um traço traz de volta mulheres que poderiam participar se opõem. A ironia de Sant’Anna banos e deslocados, vários Chiqui- outros traços. Como um jazz, o mo- de qualquer programa televisivo tem meio (estilo) e finalidade (men- nhos e Toninhos da cidade, como o vimento é circular, não-linear, mu- sensacionalista são, a bem dizer, sagem crítica). É sua poética. peão-de-obra, o valentão do bar, o sical. Há também um componente alguns dos protagonistas dos con- Faz-se necessário um contex- mendigo, o ator homossexual nor- estético aí: a repetição carrega um tos de O Brasil é bom, do mineiro to. Para muitos ensaístas e pensa- destino, o lateral-direito que passa estigma de tédio, de um tempo em André Sant’Anna. Cheios de vícios dores da cultura atual, a ironia não verter, anular, apontar para a nega- despercebido por times pequenos, que os discursos não se desenro- de linguagem, opinam sobre os passa de um escudo, um fácil me- tividade impregnada no pensamen- o jornalista de baixa autoestima lam com facilidade. Sant’Anna problemas nacionais por meio de canismo de defesa que permite ao to do brasileiro, seja lá sua classe. que não sabe interagir com os mais brinca com isso o tempo todo e ideias confusas, contraditórias, pre- artista se isolar num lugar seguro: Talvez a melhor definição da abastados, o policial embrutecido, tem, como auge dessa experimen- conceituosas e mal ruminadas. Por- acima da inocência do mundano e, ambivalência desse tipo de ironia o ladrão maconheiro, o evangélico tação, o livro Sexo, em que longos tam-se como se educados por uma por outro lado, longe do sublime, tenha sido proferida pelo crítico inerte, o homem que aparece na te- parágrafos são repetidos com pou- cultura violenta de mídia, aquela duma obra sincera e redentora. De cultural americano Lewis Hyde. Ele levisão sem saber por quê ca ou nenhuma mudança de pala- em que o porta-voz – a exemplo do uns anos para cá, vê-se um apelo diz: “a ironia só tem emprego emer- vras. Como quem diz: a vida segue tal apresentador eufórico evocado por uma arte nova, capaz de evoluir gencial. Com o tempo, ela se torna a O Chiquinho na televisão, – repetindo-se, engessada. linhas acima – ensina que a tru- sem a interferência da ironia vazia voz do enjaulado que passou a gos- num programa de televisão que O grande defeito de O Brasil culência e o pragmatismo radical e do niilismo que assola muitos au- tar da cela”. No caso de Sant’Anna, o Chiquinho nunca tinha visto, o é bom é, por certo, a expectativa. os tornam mais esclarecidos, “de tores pós-modernos. A literatura, lemos uma ironia urgente. O autor Chiquinho no programa de tarde O leitor de outras viagens talvez bem” e ativos em seus meios. Eles ressalta(ra)m escritores como Da- revela isso ao exibir o turbulento sendo ridicularizado pelo apre- esperasse mais. Melhor: talvez es- falam mal, muito mal. vid Foster Wallace (1962 – 2008), cenário político e social brasileiro: sentador por ter desafinado de- perasse se surpreender mais. Por A intenção de Sant’Anna é deve se aproximar mais da criação o consumo como forma de inclusão mais quando tentou cantar aquela mais que Sant’Anna reforce sua voz clara: mostrar, via clichês orató- do que da destruição; deve elevar o social, a educação pífia, uma nação música do Chico Buarque. O apre- e seu estilo, não se nota evolução rios e frases feitas, que conhecemos espírito humano, não rebaixá-lo. de comentaristas que quase não lê, sentador do programa de televi- de seus trabalhos anteriores para alguém com discurso similar. A Nenhum amante das artes a cega busca por ídolos na fé e no são ainda deu um chute na bunda cá. A fórmula é a mesma dos seus missão é bem-sucedida. Os contos questionaria tal preceito. Mas a esporte, os protestos difusos, o po- do Chiquinho, assim, bem de leve, lançamentos anteriores de narrati- inaugurais são desenvolvidos por questão é que a ironia de Sant’Anna der de compra como indicador de só de brincadeira, antes do Chi- vas curtas. O melhor conto do livro, meio de pensamentos tolos e impe- faz sentido no momento de ten- felicidade, entre outras críticas di- quinho sair do palco meio enver- vale lembrar, não é inédito, fora pu- rativos que costumam pulular por sões sociais e culturais em que se retas e retas, que não exigem esfor- gonhado, meio achando legal ter blicado em 2010. Seria interessante redes sociais, propagandas e co- encontra o Brasil, esse país que ços de interpretação. Não há meio aparecido na televisão. que o autor procurasse equilibrar mentários de notícias, a exemplo de não é ruim. É evidente, na obra do melhor para tratar desses temas do mais seu inegável talento estilísti- “consuma produto nacional”, “bas- mineiro, como a ironia funciona que um jogo de oposições, contras- Há diversas passagens em que co com narrativas que apostam no ta que cada um faça sua parte” e, para criar um processo dialético, tes e sarcasmo. O trunfo, aqui, é Sant’Anna transforma a forma irôni- sublime, como Lodaçal, e/ou pes- como sugere o sarcástico título do uma construção e uma suspensão conseguir fazê-lo por meio de uma ca em conteúdo sentimental – uma soais, como o belo relato A história livro, “o Brasil não é ruim”. O efei- permanentes, resultantes da con- escrita franca, imediata. sensação poderosa porém nunca do futebol, em que ele, o próprio to é dum cinismo progressivo que tradição. Com a ironia, abre-se, E o recurso irônico-emergen- muito clara ou bem definida. O lei- André, conta sua história ao se me- chega ao ponto máximo no conto para citar Hegel (e deixar essa re- te de Sant’Anna não está só no con- tor se constrange com a decadência tamorfosear em craques como Jair- O que será que passa na cabeça de senha mais prepotente, desculpe), teúdo. A forma como ele constrói dos personagens e, em certos mo- zinho, Manfrini e Rivelino. um sujeito nessas condições?, cujo a possibilidade de mostrar que uma seus contos, com erros de grafia e mentos, consegue também se inspi- Talvez a razão para não se interlocutor é um esquizofrênico, realidade sem valor não pode ser concordância, pouco vocabulário, rar com a criação do autor. Poderia notar um crescimento do autor no que, mesmo incapaz de seguir uma tomada a sério, e deve ser a todo raciocínios tacanhos e idas e voltas chamar a técnica de ironia rica, que livro seja a urgência de publicar o lógica, dispara, entre delírios e te- momento invertida e pervertida. de trechos revela uma emergência gera efeito poético e reflexão. É uma livro. É de se compreender. orias desconexas, lugares-comuns Eis o efeito o que o autor busca em dentro da própria literatura. É qua- expressão arriscada e bem por isso Sant’Anna é sem dúvida uma como “é preciso haver uma hie- cada conto ao falar de um esquer- se um manifesto contra o escrever valiosa – maldita, ácida e bela. das vozes mais originais da litera- rarquia”, “separar o joio do trigo”, dista que se sente incomodado por bem onde mal se lê. Trata-se de Outra característica forte tura nacional. Precisa ser ouvido. e impropérios como “não gosto de pobres ou de um homem que não uma produção literária de guerra, mantida por Sant’Anna é que a no- E, para isso, precisa falar e, sobre- neguinha”. Não há muita diferença, suporta os direitos do outro: sub- para não dizer de protesto. Uma ção de espaço se dá por nomes de tudo, voltar a se arriscar mais. 169 • maio_ 2014 8

INQUÉRITO : : Godofredo de Oliveira Neto cometido pelo movimento negro mais tarde quase destroem a literatura de um dos maiores escritores brasileiros (mas já está havendo uma reabilitação do genial simbolista).

• Um livro imprescindível e um descartável. Direto do beco , de Flaubert, e, como descarte, todos os li- Madame Bovary vros de autoajuda.

UEM SOMOS CONTATO ASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO CARTAS lguns versos, ao descobrir o amor na pré- não cair no redemoinho do real, que puxa a gente com força • Que defeito é capaz de destruir ou comprometer um EDIÇÕES ANTERIORES COLUNISTAS DOM CASMURROadolescência,ENSAIOS E RESENHAS ENTREVISTAS foramPAIOL LITERÁRIO combustívelPRATELEIRA NOTÍCIAS OTRO suficiente OJO pra baixo. Abraço do real é abraço de afogado! livro? para o catarinense Godofredo de Oliveira Escrever pensando na opinião dos colegas escritores. É letal Neto voltar-se para a literatura. Nasceu • Que leitura é imprescindível no seu dia-a-dia? para a obra. emA Blumenau (SC), em 1951. Começou a ler cedo, A leitura do real — jornais e revistas — e romances e textos entre 13 ou 14 anos. Sempre hábil em português, teóricos que mostram a ausência do mundo como o verdadei- • Que assunto nunca entraria em sua literatura? ro mundo. Leio um dia sim e o outro também trechos da obra Qualquer tema que visasse, conscientemente, alterar a ordem quando estava no cursinho, passou por uma situação de Proust. Tenho uma edição maravilhosa, da Gallimard, de moral ou histórica do leitor visto como um bobinho. Mas a li- que definiria seu futuro acadêmico: uma redação 2.500 páginas num só volume, que cabe numa só mão, papel teratura denuncia sempre as representações ideológicas que não foi bem aceita devido ao conteúdo e o jovem superfininho. Proust ao alcance das mãos! aparecem na linguagem comum, como clichês, preconceitos, autor precisou prestar contas com a polícia. Na ideologias, dogmas, etc. universidade, foi chamado duas vezes a depor. O • Se pudesse recomendar um livro à presidente Dil- clima já começava a ficar pesado, e Godofredo via ma, qual seria? • Qual foi o canto mais inusitado de onde tirou inspi- , de Graciliano Ramos. Ela veria que Paulo Ho- seus amigos apreensivos; uma amiga, inclusive, S. Bernardo ração? nório, o narrador, apesar de sair vitorioso como gestor de uma Canto? Meu cantinho ou minha música? Se for meu canto é o desapareceu. Para alguém que considera a literatura fazenda, é depressivo e angustiado. É que não dá para ser feliz Vale do Itajaí, em Santa Catarina, o único universo que existe. sinônimo de libertação, o que poderia ser pior do sozinho! Se for música, hoje foi I put a spell on you, do Creedence, ou- que estar vivendo a opressão da ditadura? Infeliz tro dia foram os Beatles, Stones, Chico, Gil, Caetano, Paulinho com a situação, partiu para França. Em Paris, na • Quais são as circunstâncias ideais para escrever? da Viola, outro ainda The Cure. Em horas introspectivas, Bee- década de 1970, graduou-se e virou mestre em Espaço de muita paz às vezes, espaço de música alta e vinho thoven e Chopin misturados com Villa Lobos. Eles estão todos Letras pela Universidade da Sorbonne. De volta ao por outra, muita emoção invariavelmente. Tem que chorar, ali quietinhos no Menino oculto. rir, se excitar, se apavorar, se emocionar com o próprio texto. Brasil, instalou-se no Rio de Janeiro (RJ), onde se Mas nem sempre a gente consegue. • Quando a inspiração não vem... tornou Doutor em Letras pela UFRJ. Seu primeiro Se trabalhar e suar e se angustiar, ela vem. A voz interior surge é livro Faina de jurema, de 1981. Entre outros, • Quais são as circunstâncias ideais de leitura? do nada, cavernosa, ditando regras e passando sabão na gente. é também autor de Menino oculto (premiado Luz não natural. O sol maravilhoso é para brincar de casteli- no Jabuti 2006), Amores exilados (lançado nho de areia, de balde e pazinha na praia de Piçarras; ou em • Qual escritor — vivo ou morto — gostaria de convi- originalmente em 1997 como Pedaço de santo) Camboriú, em Santa Catarina, antes de se tornar Hong Kong. dar para um café? e O bruxo do contestado (1996). A ficcionista O Graciliano autor do S. Bernardo, talvez o maior romance • O que considera um dia de trabalho produtivo? da literatura brasileira, junto com Brás Cubas, do Machado, (2013) é seu romance mais recente. Atualmente, Quando a personalidade de artista vence o simples indivíduo. e Grande sertão, do Rosa. vive no Rio de Janeiro e leciona na UFRJ. Se tiver conseguido, beleza. • O que é um bom leitor? • O que lhe dá mais prazer no processo de escrita? O que se deixa levar pela onda da narrativa. Daí ele vai en- • Quando se deu conta de que queria ser escritora? Ler o parágrafo que acaba de escrever e achar que o texto não tender que a literatura é sinônimo de liberdade, já que ela traz O poder de ilusão está na cabeça de todo mundo, todo mundo é teu. para o palco iluminado a ilusão consentida. Me lembrei do escreve ou escreveu. O mais comum é o poeminha quando da sobre o dinheiro: o dinheiro compra tudo, descoberta do amor na pré-adolescência. Também comecei as- • Qual o maior inimigo de um escritor? até amor sincero! A literatura também. sim. Depois a vida vai te levando para becos e ruelas decisivos É deixar a memória racional se sobrepujar à memória invo- ou não para ações futuras, como ser escritor. Depende então luntária. Perfumes, sons, tocares ou paladares é que te fazem • O que te dá medo? dessas estradas. Os meus becos me levaram para a escrita des- encontrar o eu mais profundo. Medo de acordar e não ter mais utopias. de muito cedo. Vida leva eu! • O que mais lhe incomoda no meio literário? • O que te faz feliz? • Quais são suas manias e obsessões literárias? F.P. (fofocas e perfídias). Construir algo que seja menos a singularidade do eu e mais a Nunca perder de vista que a obra literária não é um documen- libertação da palavra e do desejo de todos. to. A emoção estética deve ter prioridade. Daí a gente pode • Um autor em quem se deveria prestar mais atenção. buscar a verdade histórica. A obsessão é fazer de tudo para Cruz e Sousa. O racismo no início e o equívoco interpretativo • Qual dúvida ou certeza guia seu trabalho? Realização 169 • maio_ 2014 10 Pássaro de fogo Artista múltiplo e rebelde, Torquato Neto completaria 70 anos em novembro

: : Paulo Andrade década (60/70). Araraquara – SP A linguagem dos ensaios “te- óricos” da revista também é expe- este ano Torquato Neto rimental, com ausência de pontua- completaria 70 anos. O ção, mistura de fontes entre outras poeta, nascido em Te- “infrações linguísticas”. O artista Nresina (PI) em 9 de no- plástico Hélio Oiticica defende num vembro de 1944, cometeu suicídio artigo a desintegração dos “concei- na madrugada da data de seu ani- tos de pintura escultura obra (de versário em 1972. Às vezes me per- arte) acabada display contemplação gunto, sem resposta, como o anjo lineariedade”. Já que o experimen- louco da Tropicália circularia neste tal não tem fronteiras — “os fios espaço contemporâneo se não ti- soltos do experimental são energias vesse cometido suicídio. Continua- que brotam para um número aberto ria sendo o poeta inadaptado à re- de possibilidades?”, conclui. alidade e que desafinava o coro dos contentes ou seria engolido pela O poeta rebelde máquina da indústria cultural? Torquato Neto não apenas Olhando em retrospectiva internalizou os problemas e as a vida e a obra de Torquato Neto, tensões político-sociais dos anos nota-se que em seus 28 anos de 60/70, mas viveu atormentado pe- existência, ele lidou com diferentes los próprios fantasmas interiores, linguagens: poesia, letra de músi- traduzidos em seu modo particular ca, cinema, televisão, jornal, atu- de ver e sentir o mundo. Encontra- ando, inclusive, em vários veículos mos na obra do poeta piauiense a de comunicação. representação do estilhaçamento O livro Os últimos dias de Torquato Neto por Robson Vilalba que, por entre caminhos e desca- paupéria, organizado, postuma- minhos, arrisca-se à palavra escrita mente, pela viúva Ana Maria Silva como resistência. Posicionando-se Duarte e pelo amigo Waly Salo- sempre à margem de qualquer tipo mão, oferece ao leitor um conjun- de discurso dominante, o herói re- to de poemas e escritos que vão qualquer modelo político ou cultu- A cronista da belde evita cristalizar o pensamen- O AUTOR do lirismo sensível e intimista à Torquato Neto ral capaz de superar a exploração geleia geral to com base em alguma ideologia. parodia tropicalista, até atingir, do homem pelo homem. Como jornalista, foi um crí- Torquato viveu pouco, mas pós-68, níveis radicais de experi- Nasceu em 9 de novembro de Adotando um humor tragi- tico combativo na coluna “Geleia com intensidade. Por isso, Waly Sa- mentalismo construtivo. 1944, em Teresina (PI). Estudou cômico e uma atitude anárquica, Geral”, do jornal Última Hora, en- lomão definiu a sua trajetória como A sua obra composta por poe- no Colégio dos Irmãos Maristas, a proposta de intervenção cultural tre 71 e 72, atacando o pacto do ci- “um pássaro de fogo, naquele sen- mas, letras de música, textos jorna- onde conheceu tropicalista acabou por configurar nema com a ordem político-social tido de Stravinski, de iluminação e, por meio deste, , lísticos, anotações de diários do sa- um painel histórico do país, por no início da década, em especial e queima ao mesmo tempo. Uma Carlos Capinam, Maria Bethânia, natório e experiências não verbais, , Duda Machado, entre meio de citações, jargões, fragmen- as produções de filmes históricos, dose muito grande de antropofagia parece documentos autônomos, outros. O cinema era o centro tos de discursos. Uma das letras- eficazes para contar a história do acompanhada de grande intensida- mas em essência, os textos se com- de interesse da turma. Desistiu -síntese da imagem tropicalista do ponto de vista oficial. Seus princi- de de autofagia”. A linha fronteiriça plementam e constituem forte uni- de tentar a carreira de diplomata Brasil é Geleia geral, musicado por pais alvos foram e que separa a sua vida e obra é tão su- dade interna. Seus escritos são re- e decide-se mudar para o Rio Gilberto Gil. A expressão foi cunha- Gustavo Dahl que, em 71, vincula- til que se torna difícil esta separação. gistros de um diálogo permanente de Janeiro, em 1962, para cursar da por Décio Pignatari: “na geléia vam seus filmes a uma linguagem Essa fragilidade de fronteiras entre entre vida e arte e estão inseridos Jornalismo. É aprovado no geral brasileira, alguém deveria do espetáculo: com as superprodu- arte/vida ficou mais evidente com num amplo projeto de contestação vestibular na Universidade do exercer a função de medula e osso”. ções históricas, patrocinadas pela o suicídio, cujos indícios estão em Brasil (hoje a UFRJ). Mas desistiu da sociedade dos anos 60/70. Ao construir um panorama Embrafilme, transformavam o ci- vários poemas, profetizam a morte do curso no segundo ano. Em 9 Em todas as áreas que atuou, de novembro de 1972, sai com crítico do país, por meio da jus- nema em mera diversão. prematura. Muitos textos de Os úl- Torquato manteve uma atitude de os amigos para comemorar o taposição de imagens díspares (o O cronista escreve a partir das timos dias de paupéria ilustram resistência, assumindo seu incon- aniversário num restaurante. bumba-meu-boi, a mass media, o margens, criando espaços de resis- a metáfora do jovem poeta abatido formismo. Foi um defensor do ci- Voltaram para casa às 4h30. jornal, a cultura pop, o folclore), tência dentro do sistema. Reite- em pleno voo, sina semelhante à de nema super-8, por, além de barato Quando sua mulher vai dormir, os versos evitam qualquer tenta- ram-se, em seus textos as palavras muitos mitos românticos. e fácil de manusear, sua linguagem Torquato veda todas as saídas tiva de conciliação ou unificação de ordem para continuar “ocupan- O suicídio tornou possível permitir um testemunho vivo da de ar do banheiro, abre o gás das diferenças, assumindo as con- do espaços”, numa época em que uma releitura da obra de Torqua- realidade, diferente das produções do aquecedor, e escreve um tradições, tanto como elementos os espaços estavam cada vez mais to, como sugere Waly Salomão: bilhete num caderno espiral que contavam a história “oficial” em constitutivos da estética do grupo, restritos e proibidos. Na coluna de “Muitas vezes escrever um livro ou enquanto espera a morte. filmes subsidiados pelo governo. quanto para criticar o discurso na- 30 de novembro de 1971, o cronis- fazer um filme representa adiar um Todas as frentes as quais Tor- cionalista e os clichês ufanistas. ta dirigia-se ao leitor, ensinando-o suicídio, mas no caso de Torquato quato aderiu apontaram um desejo Retomando o viés crítico dos a “ocupar espaços”, infiltrando-se, Neto pode-se afirmar que o suicí- vital e dramático de registrar com modernistas de 22, Torquato atua- “pelas brechas”, minando o siste- dio precedeu e originou a ‘obra’”. invenção e inconformismo o con- liza a leitura das contradições entre ma pelos seus interstícios. “Ocupar Como poeta, optou por viver texto de sua época. a cultura popular e a cultura urbana espaço, (...) Não tem nada a ver no limite. Nenhum emblema tra- e sofisticada. Com justaposição de com subterrânea (num sentido lite- duz tão bem esse comportamento O poeta da canção imagens opostas, o poeta desenha ral), e está mesmo pela superfície, como a imagem do vampiro. Não Torquato aderiu ao Tropica- o cenário cultural antropofágico de noite e com muito veneno.” por acaso ele encarnou, de modo lismo transformando-se num dos do Brasil: “formiplac e céu de anil”, provocativo, a figura lendária ao seus principais articulistas, por referência à indústria e à natureza Navilouca: o diálogo protagonizar o super-8 Nosferato meio dos manifestos, roteiros de es- nacional, “carne seca na janela”, ou entre as artes no Brasil (1971), de Ivan Cardoso. petáculos letras de música. Entre as faz alusão ao período da pré-colo- Outra publicação valiosa para Nesse cult pouco conhecido, Tor- contribuições do movimento para a nização (“tumbadora na selva sel- entender o período pós-68 é a revista quato configurou seu destino de cultura brasileira, destaca-se a sín- A biografia de vagem/ pindorama, país do futu- Navilouca, organizada e coordenada poeta-suicida, reivindicando para tese entre música e poesia. Apesar Torquato Neto ro”). Este último constitui uma das por Torquato Neto e Waly Salomão. si o mito do vampiro. Depois dessa de o movimento ter promovido in- Toninho Vaz sínteses da contradição arcaico/ Tendo como subtítulo “Almanaque atuação, a imagem de maldito ficou Nossa Cultura tenso diálogo com as artes plásticas moderno. Pindorama, mito edêni- dos Aqualoucos”, foi publicada em amalgamada à figura do poeta. 408 págs. (Rubens Gerchman, Hélio Oiticica, co, citado várias vezes no Manifesto 1974, dois anos após a sua morte, Do mito vampiresco, na tela Lígia Clark), o cinema (Glauber Ro- Antropofágico, é o nome pelo qual reunindo trabalhos do próprio Tor- e na vida, desdobra-se a metáfora cha), o teatro (José Celso), é na mú- os índios tupi-guarani se referiam quato, Rogério Duarte, Waly Salo- do escorpião, pertencente à mes- sica popular que emerge sua força, ao Brasil, já a locução adjetiva “país mão, Duda Machado, Jorge Salomão, ma matriz de agressividade e au- já que seus protagonistas eram mú- do futuro”, reforça a galeria de este- Stephen Berg, Luis Otávio Pimentel, todestruição. Nascido sob o signo sicos ou poetas-letristas. reótipos nacionais. Óscar Ramos, Luciano Figueiredo, de escorpião, o poeta reescreve em Entre os avanços estéticos com o poema completo, como Ge- Geleia geral parodia ainda o Chacal, Ivan Cardoso, Caetano Velo- versos o rito de morte que, ao mes- trazidos pelos tropicalistas, em 67- leia geral. Não mudei uma vírgula, Hino à Bandeira, Gonçalves Dias so, dos irmãos Campos, Décio Pigna- mo tempo, mata e se suicida com o 68, destacam-se a vinculação entre já veio eletrificado”. e faz referência aos escritos oswal- tari, Hélio Oiticica e Lygia Clark. próprio veneno, quando se vê sem texto e melodia, o domínio da ento- A maioria das suas letras possui dianos — “a alegria é a prova dos O nome da publicação foi su- saída, num círculo de fogo, segundo ação, elaborando conexões entre a uma força visceral quando cantadas, nove” e “Brutalidade Jardim”. A gerido pela Stultifera Navis, a Nau a lenda: “um escorpião encravado/ dicção, o modo de cantar e a sono- a exemplo de Nenhuma dor, Mamãe, bricolagem é enfatizada no refrão dos Loucos, barco que na Idade na sua própria ferida/ não escapa; só ridade. Muitos textos de Torquato coragem, Três da madrugada, Todo “ê bumba iê, iê, boi”, uma fusão de Média passava nas cidades banha- escapo pela porta de saída”. No últi- Neto foram escritos para serem o dia é dia D, A rua, Louvação, Deus dança folclórica e o ritmo do iê-iê- das pelo Rio Reno, recolhendo os mo verso, se realiza a perfeita fusão cantados dentro desse clima. Ele vos salve a casa santa, Lets’play that, -iê. Imagem permanente do confli- idiotas da família e os loucos, para lírica (eu/escorpião), inserindo-se retoma uma tradição da oralidade cantadas por Gal Costa, Gilberto Gil, to, do contraste das linguagens. “desaguarem” ninguém sabe onde. no poema de forma trágica poesia e e utilizou muitos recursos da litera- Caetano Veloso, , Jards Ma- Já Marginália II (letra de Tor- O projeto da Navilouca exprime vida: “só escapo pela porta de saída”. tura de cordel, da qual o poeta era calé, entre outros. quato, musicada por Gil), também esta ideia: recolher os artistas e A despedida do poeta remete- leitor e colecionador. funde as raízes do popular e do eru- a intelectualidade desgarrada, à -nos mais uma vez à imagem do es- No depoimento concedido O roteirista dito. O resultado é uma riqueza de margem, daquele momento. corpião acuado, enredado entre as a Tárik de Souza, (1984), ao disco da Tropicália sonoridade, proporcionada pelos Navilouca mescla rigor cons- tensões e conflitos internos, amplia- O poeta desfolha a bandeira, Gil- O Tropicalismo provocou um instrumentos populares (triângulo, trutivo com uma arte mais “suja” dos pelo regime de repressão, que o berto Gil, seu principal parceiro, deslocamento da contestação polí- flautas de pífano) e eruditos (metais, em seu projeto gráfico. A intenção tolheu e reduziu sua ação ao univer- conta que Torquato, apesar de can- tica para o espaço cultural e artísti- violinos e clarineta). O ritmo nor- era promover uma metamorfose so individual. Em meio ao círculo tar muito mal e não tocar nenhum co. Conscientes do substrato ideo- destino contrapõe-se à “exuberân- entre todas as artes experimentais, de fogo, o poeta rebelde proclama a instrumento, “era muito musical”: lógico que subjaz todo discurso, o cia” dos arranjos de influência clás- posições estéticas e comportamen- morte como saída, mas permanece “O Torquato, quase sempre, vinha grupo baiano via com desconfiança sica, do maestro Rogério Duprat. tos, sinalizando assim a virada da vivo na cultura brasileira. 169 • maio_ 2014 11

NOSSA AMÉRICA, NOSSO TEMPO : : João Cezar de Castro Rocha Os produtores de texto e a UEMesc SOMOS CONTATO ASSINATURAr DOi JORNALt IMPRESSOaCARTAS expressa (final) EDIÇÕES ANTERIORES COLUNISTAS DOM CASMURRO ENSAIOS E RESENHAS ENTREVISTAS PAIOL LITERÁRIO PRATELEIRA NOTÍCIAS OTRO OJO

O dilema Ou: o eterno retorno do dilema estrutural que contemporâneo em algo mais duradouro do que os en- ameaça a vitalidade da literatura hoje em dia. contros que se multiplicam em todo o país? m debate realizado na Bienal do Livro do Rio Ao fim a e ao cabo, viver de literatura, mas não de 2013, junto com Veronica Stigger e Ricardo direitos autorais é tão-só outro modo de repetir o já dito: (Estaremos condenados à carnavalização de todas Lísias, o escritor e crítico Evando Nascimen- o espetáculo dos festivais literários torna-se cada vez mais as esferas da cultura?) Eto propôs uma reflexão incontornável acerca dominante; embora ele seja independente da leitura efe- do dilema relativo à cena literária contemporânea: cada tiva das obras dos autores convidados para a festa. Alternativas? vez mais, o escritor assume uma presença pública in- Reitere-se: nos últimos 15 anos, superamos defi- discriminada e inédita na vida cultural brasileira. No (Mais ou menos como ser o convidado de honra nitivamente o impasse estrutural do autopúblico. Po- entanto, a leitura efetiva de sua obra permanece num e, ainda assim, ser barrado no baile — não na entrada, rém, ainda não dispomos de um sistema caracterizado segundo plano desconcertante. Um sintoma perverso: porém na saída...) pela associação dinâmica entre produtores e receptores. no local onde o debate ocorreu, devido às peculiarida- Como explicar essa situação propriamente anômica? des da organização, nenhum livro dos três autores es- Ora, ninguém proporia acabar com os encontros Tudo se passa como se Émile Durkheim tivesse anteci- tava exposto, ou seja, exemplar algum se encontrava que se multiplicam em todo o país — felizmente, res- pado tal circunstância ao cunhar seu famoso conceito. disponível para venda! salve-se. Contudo, não é possível fechar os olhos para No entanto, não se trata de um caso clássico de Eis um involuntário retrato em branco e preto o incômodo paradoxo, pois a experiência literária não anomia, mas da estrutura tipicamente perversa da for- do dilema estrutural que ameaça tornar inócua a bem- pode ter como fundamento livros fechados em pratelei- mação social brasileira. -vinda voga dos festivais literários. Afinal, não há atalho ras empoeiradas. Explico-me. possível: o ato que define a vitalidade de um sistema O surgimento dos produtores de texto, como dis- Em lugar de investir seriamente na formação de literário não é a produção em série de textos, porém a cuti nas duas colunas anteriores, é o sintoma mais sa- novos leitores ou, em sentido mais amplo, na criação do leitura refletida da tradição e dos contemporâneos. liente desse estado de coisas. hábito regular da leitura em todas as gerações, nossos Compreenda-se, assim, qual é o sentido da novi- Recupero uma noção de Antonio Candido com um governantes preferem comprar livros, adquirir tabletes, dade acima referida, pois, sem dúvida, num passado objetivo duplo: entender a radicalidade do dilema con- construir bibliotecas. nem tão distante, escritores ocuparam um espaço rele- temporâneo e, ao mesmo tempo, propor ideias iniciais vante no imaginário nacional. sobre formas possíveis de superá-lo; no mínimo, torná- (Entre nós, as casas se edificam pelo teto...) Dono de uma legião de admiradores, Jorge Ama- -lo produtivo. do sempre fez jus ao nome. Soube por Josélia Aguiar Em Formação da literatura brasileira (Mo- Daí, o desejo de festejar, pois é muito fácil celebrar que os lançamentos do autor de Suor aqueciam o sis- mentos decisivos), Candido elaborou o conceito de o lançamento de pedras inaugurais, difícil é o trabalho tema literário como um todo: editores, livreiros, jorna- sistema literário. A distinção entre “manifestações lite- diuturno de preparação de leitores. listas culturais e leitores aguardavam o novo livro com rárias” e “literatura propriamente dita” é a grande no- O descompasso entre o caráter inédito da presen- grandes expectativas e seu aparecimento fornecia com- vidade teórica e metodológica da Formação. Enquan- ça pública do escritor e o surpreendente desinteresse bustível mesmo para editoras rivais e, sobretudo, para o to aquelas somente dependem do “talento individual”, pela leitura de sua obra é ainda mais grave porque há circuito das livrarias, cuja frequência aumentava consi- esta tem por base o estabelecimento de uma “tradição décadas já contamos com uma alternativa notável e que deravelmente nas datas próximas ao lançamento. própria”. Isto é, tal distinção pressupõe o funcionamen- deveria ser difundida para todo o país. Erico Verissimo não ficava atrás e poderíamos re- to do sistema literário. Na definição de Candido: “en- Refiro-me, claro, ao modelo da Jornada Nacional cordar inúmeros outros nomes capazes de galvanizar a tendo aqui por sistema a articulação dos elementos que de Literatura, criado por Tânia Rosing, em Passo Fundo vida literária — não desejo, contudo, esboçar uma lista constituem a atividade literária regular: autores (...) (RS), cujo esforço merece um reconhecimento nacional, de autores, mas ponderar um dilema estrutural. públicos (...) tradição”. 1 pois antecipou em décadas a invenção de uma solução Menciono apenas dois exemplos de romances de- A história da literatura imaginada por Candido é criativa para o dilema estrutural que hoje ameaça es- finitivos, publicados em 1984: A república dos so- a narrativa do processo que conduz autores brasileiros trangular o desenvolvimento do sistema literário. nhos, de Nélida Piñón, e Viva o povo brasileiro, de à leitura e à citação de autores brasileiros — para além Inspirado em seu relevante trabalho, concluo com João Ubaldo Ribeiro. Ambos os romances desenvolvem da necessária e inevitável galeria de nomes da literatura uma sugestão. uma linguagem própria para tratar do conjunto da ex- dita universal; afinal de contas, o sal da literatura é o Segundo estatísticas recentes, a cada dois ou três periência histórica nos tristes trópicos, oferecendo uma diálogo sem fronteiras e entre todas as épocas. Nessa dias ocorre um festival literário no Brasil. Trata-se de reflexão de fôlego sobre os impasses e as promessas da perspectiva, a menção a autores brasileiros cria um do- fenômeno inédito e que exige uma reflexão sem ne- formação da cultura nacional. No instante de seu lan- mínio próprio de autorreferência. Os “momentos deci- nhum tipo de elitismo. A literatura, assim, ocupa um çamento, os dois livros foram saudados como momen- sivos”, referidos no subtítulo, são momentos de leitura espaço público de grande importância. Contudo, como tos decisivos na reflexão sobre a sociedade brasileira. A deliberada da própria tradição, plasmada no exato mo- disse, o ato posterior de leitura não tem conhecido um recepção da crítica e do público reiterou o reconheci- mento em que ocorre o ato de leitura. crescimento similar. mento, cuja consequência imediata foi a galvanização Recorde-se o significativo exemplo empregado Em lugar de lamentar o fato, podemos fabular ca- da vida literária em torno dos dois títulos. por Quincas Borba para explicar ao atônito Rubião o minhos alternativos. Então, qual é exatamente a novidade da circuns- sentido onívoro do “Humanitismo”: “(...) Humanitas Por exemplo: imaginemos que cada evento literá- tância contemporânea? precisa comer. Se em vez de um rato ou de um cão, fos- rio — de uma Flip ao mais modesto encontro — estabe- De um lado, a presença inédita no espaço público de se um poeta, Byron ou Gonçalves Dias, diferia o caso leça como regra uma ideia razoavelmente simples e de autores jovens, que ainda não escreveram suas grandes no sentido de dar matéria a muitos necrológios, mas o execução nada complexa. obras, mas que já circulam em meios variados, incluindo fundo subsistia”.2 Nesse caso, além da intuição antro- Eis: cada encontro homenagearia dois escritores aí a tradução de seus livros, com uma desenvoltura maior pofágica, constante na visão do mundo machadiana, o brasileiros. Daí, uma ou duas edições de um de seus do que a dos autores consagrados nos anos de 1980, cuja fundo é a equivalência entre o poeta inglês e o brasilei- títulos seriam distribuídas para alunos das escolas pú- visibilidade costumava ser um árduo processo, que geral- ro: o sistema literário se concretiza no instante em que blicas e particulares do entorno do festival. Pelo menos mente consumia anos de dedicação à escrita e à leitura, ambos podem ser citados paralelamente, pois, a partir um semestre antes da realização do encontro, sessões além da adesão metódica aos rituais da vida literária. de então, um autor (brasileiro) deve tornar-se leitor orientadas de leitura seriam conduzidas por professo- De outro lado, a presença indiscriminada dos mes- tanto de escritores estrangeiros, quanto dos próprios res e monitores, devidamente preparados. Uns poucos mos jovens autores em circuitos os mais diversos: claro, pares tropicais. Aliás, tarefa que ninguém exerceu com meses antes do festival, os autores visitariam a pequena em primeiro lugar, os festivais e encontros literários, mas a maestria de Machado de Assis: é como se os momen- cidade ou o grande centro, a fim de dialogar com seus também oficinas de escrita criativa; colunas ou eventuais tos decisivos da formação conhecessem um nível maior leitores “locais”. Paralelamente um concurso de reda- colaborações para jornais de ampla circulação; participa- de autoconsciência na prosa machadiana. ção seria patrocinado pela organização do festival. Em ção em programas de televisão e de rádio; assiduidade Desse modo, Candido transforma a história lite- sua abertura, os alunos seriam premiados; desse modo, exemplar em blogs, facebook e twitter; escrita de roteiro rária no mapeamento da criação de comunidades de cada encontro literário no Brasil teria como protago- para cinema e televisão; circuito de conferências e cura- leitores. Trata-se de intuição notável; a sua maneira, nista o leitor em formação, desatando o nó górdio do dorias para instituições como Sesc, Senac, CCBB. Candido intuía princípios posteriormente sistematiza- momento presente. dos pela Estética da Recepção, tal como proposta por (Etc. Etc. Etc. A diversidade de opções é justamen- Hans Robert Jauss, nos anos de 1960. O crítico brasilei- (A formação permanente de leitores, em todas as te o ponto a destacar-se no nível atual de profissionali- ro traduziu a história literária numa inovadora análise idades e classes sociais, é a espada de Alexandre. Na zação da escrita.) combinatória, com base na consideração das inúmeras verdade, o ovo de Colombo, pois é a resposta mais sim- possibilidades de relacionamento entre os termos “au- ples e eficaz.) Por fim, um elemento que vale o quanto paga: a tor”, “público” e “obra” — e nada impede que novos proliferação de prêmios vultosos, muitos deles dirigidos termos se imponham, tornando a equação ainda mais A primeira edição da Flip ocorreu em 2003. Uma especialmente para escritores iniciantes. complexa. década depois, verificou-se o milagre da multiplicação O resultado mais notável da conjunção desses três No parágrafo de encerramento do livro, por isso dos festivais. fatores é a possibilidade que escritores jovens têm de mesmo, o tema retorna na imagem do “processo por Por que não imaginar que o próximo passo deva viver exclusivamente de literatura. meio do qual os brasileiros tomaram consciência da sua ser a criação e multiplicação não mais de ouvintes, po- Devagar com o andor: eles não vivem de direitos existência espiritual e social através da literatura” (p. rém de leitores? autorais, porém das inúmeras atividades propiciadas 681). Nesse caso, o sistema literário supõe o exame da Leitores críticos — não preciso acrescentar. pela projeção do escritor no espaço público. dinâmica criada entre os vértices do triângulo composto Essa é a tarefa da próxima década. Surge a palavra-chave: esse é um espaço propria- por autor, obra e público — os elementos propriamente Então, os produtores de texto tornar-se-iam pro- mente literário que assoma a esfera pública brasileira sistêmicos da história literária. priamente escritores, pois, em primeiro lugar, seriam com uma força antes desconhecida. O fenômeno, por- A relação dos três elementos definiria o caráter leitores. tanto, pouco se relaciona com a acepção usual de “vida social do literário e, na ausência desse circuito, costu- literária”. Aliás, tal forma de convívio, definidor sobre- ma-se, ainda nas palavras de Candido, “criar um auto- tudo da cena oitocentista, embora presente ainda hoje público num país sem público” — esse seria o caso das em certas áreas, estimulou um método de estudo, de- academias árcades no século 18. senvolvido por André Billy, e, entre nós, exercido com O paradoxo é que, se a síndrome do “autopúblico” brilho por Brito Broca. foi superada, contudo, o público leitor não foi considera- Em tese, a cena contemporânea permite a profis- velmente aumentado. Não há uma relação proporcional Notas sionalização sempre almejada pelos escritores. entre o público, ouvinte, que frequenta com entusiasmo 1 Antonio Candido. Iniciação à literatura brasileira. 4º edição, No entanto... as feiras e encontros, e o público, leitor, que idealmente revista pelo autor. Rio de Janeiro: Editora Ouro sobre Azul, seria estimulado pelo contato com os autores. 2004, p. 16 Sistema literário ou curto-circuito? Ler ou não ler, eis questão. 2 Machado de Assis. Quincas Borba. Rio de Janeiro: O samba de uma nota só. Como enfrentá-la? Como converter a potência do Civilização Brasileira, 1975, p. 113. 169 • maio_ 2014 169 • maio_ 2014 12 13

Se os termos que traduzem o ser da De modo algum pretendemos afirmar que a ciliadora da poesia ceciliana, principalmente por poesia ceciliana são os que sinalizam para forma fixa signifique, por si só, poesia de interesse, terem sido publicados em conjunto com um livro a constituição de uma voz poética que en- tampouco que esse elemento baste para dizer que de extensão semelhante (curta), porém de teor dis- Fantasia no tão se estabelecia em Viagem (o trânsito e Cecília teve a mesma mão do princípio ao fim. Mas tinto: O aeronauta. Pela primeira vez os livros a música), não se pode perder de vista outro soa curioso que por conta da forma padronizada ela circulam em separado, mas aqui a separação não Nem isto, nem fator responsável pelo adensamento da sin- tenha sido desabonada em seu princípio, e que em é divórcio: “Meu nome agora é diverso./ Indecliná- Brasil colônia gularidade da obra de que tratamos. Falo da seu ápice a forma padronizada esteja presente. Na vel”, sentencia Dois, do segundo livro. Ao apresen- extraordinária capacidade de Cecília Meire- introdução a Amor em Leonoreta (1951), Miguel tar Doze noturnos, Aristóteles Angheben Prede- les de exprimir beleza, uma beleza em nada Sanches Neto vê na relação do livro com a tradição bon faz acurada análise do livro à luz de seu vínculo previsível, ainda que em textos pautados por lírica portuguesa uma conexão com outras tempo- com a música, afinal, o termo “noturno” tem forte : : Gisele Eberspächer criados no processo de compreen- assuntos secularmente explorados, como a ralidades, o que denota um retroagir histórico que vínculo com a arte dos sons: “Assim, nos noturnos Curitiba – PR são desse novo lar e as explicações devoção amorosa. Se em Cânticos, de 1927, “atende a um projeto unificador, principal energia de Cecília, não cabe procurar uma poesia cheia de místicas eram parte do cotidiano. aquilo: poeta a abertura se faz com a alta voltagem da an- lírica de Cecília Meireles”. Esse retorno unificante imagens e metáforas, mas antes a musicalidade in- nome do livro é um O cenário da narrativa é uma terra títese envolvendo o efêmero e o eterno do ser transborda naquele que é provavelmente seu livro timamente reflexiva”. A mais, Aristóteles destaca o tanto autoexplica- onde quem viaja é com frequên- apaixonado — “O vento do meu espírito/ so- mais conhecido — Romanceiro da Inconfidên- caráter noturnal da linguagem do livro, o que con- tivo: Quatro sol- cia atacado por índios, ainda não Reedição da obra de CECÍLIA MEIRELES prou sobre a vida./ E tudo que era efêmero/ cia (1953) —, tematizado por um importantíssimo firma a acepção elementar do termo que se inscreve Odados , de Samir completamente dividida entre es- se desfez./ E ficaste só tu, que és eterno...” —, episódio da história nacional e redigido numa es- no título, ao mesmo tempo em que permite cons- Machado de Machado (Não Edi- panhóis e portugueses, habitada confirma beleza e autonomia de sua poética no livro de 1939 é frequente o canto amoroso trutura antiga, mais própria da tradição lusitana do tatar a imbricação entre tema e forma discursiva: tora), narra a história de quatro por jesuítas que tentam dar uma que se afina pelas desarmonias da existência, que da brasileira. Conjugando isso ao que dissemos “(...) enquanto nossa tradição de noturnos veicula oficiais de um antigo exército ordem “pacífica” para tudo isso. seja em Serenata — “Permite que agora emu- no início sobre os poetas reeditados, veremos em uma meditação sobre a noite, seu silêncio e uma brasileiro, em uma época colo- Uma das coisas mais interes- deça:/ que me conforme em ser sozinha./ Há Cecília a independência literária que marcou sua espécie de comunhão de soledade entre os seres, a nial de definição de fronteiras santes do livro é o narrador — que : : Marcos Pasche de importantíssimas empreitadas editoriais, ramente restituída”. A verificação dos dezes- uma doce luz no silêncio/ e a dor é de origem postura, o que, agora por outro lado, não quer di- poesia de Cecília faz-se noturna, não apenas pelo e identidade nacionais. São os conversa com o leitor com ares de rIO de Janeiro – RJ a reedição de Cecília vai além de um “lançar sete sonetos que compõem o volume permi- divina” —, seja em Onda: “Quem falou de zer desprezo pelas conquistas do Modernismo e das que diz, mas em como o diz”. De quebra, vemos últimos anos da guerra entre Dom Casmurro e conta as aventuras mais uma vez”, tendo muito e principalmente te facilmente concordar com o prefaciador, primavera/ sem ter visto o teu sorriso,/ falou tendências que a ele se ligam. Antes, isso denota nesse ponto alto da trajetória da autora mais um li- jesuítas e índios e o país como com um olhar quixotesco. E o autor á pouco mais de cinco anos tem de um lançar inaugural. Cito dois exemplos. pois por meio deles já se notam alguns dos sem saber o que era.// (...) mas quem falou o sábio reconhecimento de que, em poesia, os re- gamento com seu embrião. Afinal, os espectros têm o conhecemos não está mais tão guarda ainda uma surpresa quanto havido a reedição da obra de al- O primeiro diz respeito a Espectros, livro de elementos caros ao universo literário de Ce- de deserto/ sem nunca ver os meus olhos.../ cursos não se invalidam, e sua atualidade depende na noite seu habitat preferencial: “A noite levava- longe de ser formado. ao narrador da história, que se per- guns dos mais importantes po- estreia da poetisa carioca, que durante mui- cília, como a atmosfera noturna, a evocação — falou, mas não estava certo”. da maneira como o poeta se serve deles. Voltando -me tão alto/ que os desenhos do mundo se inu- O primeiro dos soldados sonifica diante do leitor em deter- Hetas brasileiros. João Cabral de to tempo esteve desaparecido (por renegado de símbolos tradicionalistas e o apuro formal, Se este Viagem é o livro em que se ouve ao preâmbulo de Viagem, nos deparamos com a tilizavam./ Regressavam as coisas à sua infância e que o leitor conhece é Licurgo, minado momento do livro. A partir Melo Neto, Carlos Drummond de Andrade, pela autora), até que Antonio Carlos Secchin algo observável no poema de abertura, o qual a Cecília já como segura regente de sua sinfo- afirmação (de ) de que “a viajante co- ainda mais longe,/ devolvidas a uma pureza total, a jovem e inocente. Teve pouco daí, é interessante perceber como a Mario Quintana, Manuel Bandeira, Manoel o desentranhou da outra luz, onde resplan- empresta nome ao livro: nia, não é de estranhar que ele traga, como lhe o sim e o não de todas as coisas”, e o retorno ao uma excelsa clarividência”. contato com o mundo antes criação da linguagem e do tom está de Barros, e Jorge de Lima decem as coisas ocultas. O livro só foi nova- confirmação, um dos textos mais conhecidos prefácio de Vaga música permite ver uma opinião Conquanto derive da mesma experiência que de entrar no exército (sua mãe completamente ligada à construção têm voltado às livrarias em reproduções que mente visto pelo público quando Secchin o Nas noites tempestuosas, sobretudo de toda a sua trajetória. Verdadeira súmula exata a esse respeito: “Não se pense, porém, na ima- originou o livro anterior (uma viagem de Cecília à morreu no parto e seu pai o evi- dos personagens e ao ponto de vista intentam primar pela alta qualidade: do apu- inseriu em Poesia completa, edição que Quando lá fora o vendaval estronda poética, Motivo explica razões sem renunciar gem equivocada de uma poesia de antiquário! Na Holanda), O aeronauta tem dicção diferente, a co- tava, fazendo com que passasse que o leitor tem da história. ro na feitura das capas à inclusão de rica ico- em 2001 celebrou o centenário da autora de E do pélago iroso à voz hedionda à linguagem do mistério: verdade, os versos de Cecília Meireles transcendem meçar pelo discurso conciso (se comparado ao ante- seus dias pela casa da família) e O primeiro parágrafo do livro nografia, da supressão de gralhas à inserção Ou isto ou aquilo. Agora, a quase totalida- Os céus respondem e estremece tudo, o tempo imediato, projetando-se no horizonte da rior): “Ó linguagem de palavras/ longas e desneces- pouco sabia do país e das pesso- (a seguir) já demonstra a maneira de estudos críticos, tudo parece assinalar a de dos leitores de Cecília terá pela primeira Eu canto porque o instante existe experiência literária, cuja atualidade é assegurada sárias!”. Na prévia, Ivo Barroso acentua a distinção as antes de começar a lutar por com que o narrador transparece iniciativa de um tratamento editorial que vez a oportunidade de conhecer o livro de Do alfarrábio, que esta alma ávida sonda. e a minha vida está completa. pela permanência de um fiel público leitor”. entre os dois volumes: “De nossa parte, acreditamos eles. Sua (des)aventura começa uma personalidade ao longo da faça jus à representatividade das obras dadas maneira independente, exclusivo em sua uni- Erguendo o olhar; exausto a tanto estudo, Não sou alegre nem sou triste: De algumas das páginas desse belo volume que O aeronauta seja bem mais que um simples já na primeira missão, quando narrativa. Apesar de a primeira novamente à luz (embora nem todas contem dade. Outro exemplo do que há de inaugural Vejo ante mim, pelo aposento mudo, sou poeta. de Cecília Meireles emanam sólidas confirmações complemento poético dos Noturnos. Seria mesmo nem tudo vai como se esperava pessoa não estar presente em todos com todos os itens acima relacionados). nessa empresa bibliográfica é o referente aos Passarem lentos, em morosa ronda, dos juízos postos em relevo aqui. Em Canção quase o seu antípoda, a outra face, exprimindo uma nova e ele acaba aprendendo coisas os momentos do texto, fica claro Pode ser que alguém me advirta por opúsculos Doze noturnos da Holanda e Irmão das coisas fugidias, inquieta, por exemplo, a voz que canta não se afir- dimensão espacial da autora [consta que os onze novas e mudando um pouco sua que a história está sendo narrada estar esquecendo algum nome. Se tal acon- O aeronauta, publicados conjuntamente Da lâmpada à inconstante claridade não sinto gozo nem tormento. ma aguda nem grave: “Sempre assim:/ de um lado, poemas do livro tenham sido escritos ou meditados visão do mundo. por alguém que de certa maneira tecer, será ótimo, porque a advertência che- em 1952. Marcadas por teores diferentes, as (Que ao vento ora esmorece ora se aviva, Atravesso noites e dias estandartes do vento.../ — do outro, sepulcros fe- no voo de volta dos Países Baixos], egressa de um Outro soldado é o An- soube e reproduz todas as aventu- gará como um sinal da força da poesia brasi- obras são publicadas pela primeira vez em se- Em largas sombras e esplendor de sóis), no vento. chados./ E eu me partindo, dentro de mim,/ para outro mundo, vivendo em novo estado de espírito”. daluz — apesar de que o mais ras, fazendo com que seja determi- leira. Mas o que listo como o que há de mais parado, o que é um acerto editorial. estar no mesmo momento/ de ambos os lados”. A No livro anterior, a noite não tem simbologia co- certo seria chamá-lo de deser- nante para o formato da narrativa. importante nas reedições tem a ver com a Silenciosos fantasmas de outra idade, Se desmorono ou se edifico, vocação dual, tão explícita e notada, não se afigura mum nem unilateral — “A noite não é simplesmente tor. É provavelmente o mais virtude didática que é o vício crítico de nos- Sei quem é, mas não conheço À sugestão da noite rediviva se permaneço ou me desfaço, um ambiente confortável para quem a exprime. O um negrume sem margens nem direções” —, entre- charmoso dos quatro e se per- Uma vez que cabe a mim, teu sa historiografia literária comum, ou seja, a É difícil medir o nível de circulação de — Deuses, demônios, monstros, reis e heróis. — não sei, não sei. Não sei se fico gesto deliberado de não se filiar a uma diretriz espe- tanto, não deixa de exibir sua vocação de obscurecer mite ser levado pela vida. Após narrador, a obrigação de narrar, e concepção de obras e autores a partir de fa- um autor, mas suponho que Cecília Meireles ou passo. cífica é correlato de liberdade, tão desejada e inal- orientações firmes: “Eu mesma não sei quem sou, abandonar o exército, encontra a ti, meu leitor, a de ler — se assim te ses ou estilos. Dentre os poetas mencionados, ocupe uma curiosa página de nossa litera- Considerando os livros reimpressos até cançável para muitos. Mas a liberdade tem preço, na alta noite”. Assim, O aeronauta, que também vários jeitos para sobreviver, apraz —, faz-se mister, por questões não há um único sequer em cuja obra se en- tura, por ser um nome tão conhecido quan- o momento (e a cronologia bibliográfica da Sei que canto. E a canção é tudo. que pode se manifestar justamente como angústia não concebe simbologias por uma perspectiva única cada um mais improvável que de cortesia, que nos apresentemos. contre apenas a exemplificação de tendên- to ignorado. Muitos têm referências de sua autora), Espectros é sucedido por Viagem Tem sangue eterno a asa ritmada. quando se constata a ausência de um porto seguro. — “Não clameis por sua sorte!/ Tanto é noite quan- o outro. De certa forma é tam- Porém, não sendo possível que eu te cias. Efetivando de modo maiúsculo a ideia obra destinada ao público infantil; aqui e ali (1939), com que “a dicção de Cecília ganha E um dia sei que estarei mudo: Daí prossegue o poema, em seu desfecho: “Fazedor to dia./ E vida e morte” —, tem ares amenos e cores bém um tanto hostil e arrogan- conheça, não há sentido que conhe- de que é preciso buscar o novo e o diferente, se encontra alguém capaz de citar alguns de forma pessoal, inconfundível, e que seria — mais nada. da minha vida,/ não me deixes!/ Entende a minha de nuvens, das nuvens livres de cores: “Perdoai-me te. Dentre os personagens é o ças a mim, posto que cá eu ficaria tais poetas subverteram padrões antigos e seus versos de cor; e, pela voz de Raimundo constante ao longo de seu itinerário”, con- canção!/ tem pena do meu murmúrio,/ reúne-me chegar tão leve,/ eu, passageiro/ dos céus, de límpi- que mais lê e que mais conhece em posição de desvantagem con- não deixaram de extrapolar os atualizados, Fagner, suas palavras passearam por mais forme assinala Alfredo Bosi. Em sua apre- No tempo, nos tempos em tua mão!/ Que eu sou gota de murmúrio,/ di- do vento”. De habitual neste livro, só a eterna novi- do mundo e das pessoas. tigo. Permita-me, então, que aqui pois — como novos e diferentes que são — de uma vez pelas paradas do sucesso radio- sentação, intitulada A poesia da viajante, o Publicado em 1942, Vaga música é vidida,/ desmanchada pelo chão...”. E já que a vida dade ceciliana de ser singular: “E tudo que me res- Já o capitão Antônio Co- apresente somente minha intenção, entenderam que o limite está no padrão que fônico. Entretanto, a visitação crítica à sua afamado crítico paulista destaca a simbologia um livro em forte consonância ao anterior. O só é possível reinventada — como diz, no livro, o pondem/ fica também noutras eras,/ vem de outra luna é misterioso e reservado, e esta é de narrar. E, ao fazer tal se pretende absoluto e ignora outras possibi- obra ainda parece aquém da importância que do título para a poética que a partir dali se prefácio da nova edição coube a João Cezar poema Reinvenção, outro de seus mais conhecidos idade./ Pastor que contempla ocasos,/ eu mesmo e optou por dar sua vida ao afirmação, estabeleço o compro- lidades, independentemente do adjetivo que lhe é intrínseca. Talvez que a empreitada em tornava enfim aquela que viria a ser: “Na po- de Castro Rocha. Já no primeiro parágrafo de textos —, a persona lírica vai desenhar sua imagem sou o meu caminho,/ claro e sozinho”. exército e leva a sério cada uma misso de que te narrarei somente lhe apareça ao lado. destaque estimule a mudança do quadro, e é esia de Cecília Meireles o ato de viajar é mais seu texto, o crítico faz um diagnóstico funda- de maneira unitária, ainda que a unidade se conclua O Romanceiro da Inconfidência, publica- de suas missões. Também tem aquilo que vi; o que não vi, ouvi; o Ao seleto grupo pode-se associar o animador e alvissareiro o trabalho do grupo do que um tema literário. É uma dimensão mental acerca da poética ceciliana. A longura como um vácuo, matéria de Encomenda: do em 1953, é um grande sucesso editorial de Cecília uma relação conturbada com a que não vi nem ouvi, li. Já aquilo nome de Cecília Meireles — porque sua obra de estudiosos convidados aos prefácios dos vital, um modo de existir do corpo e da alma”. da citação feita aqui se justifica pelo alcance (a que recebi para resenhar, de 2012, é a nona edição) família e opta por esconder seu que não vi, ouvi ou li, inventei, pois, vem sendo novamente publicada nos últimos livros reeditados. A tal modalidade de essência artística, somo do comentário de João Cezar: Desejo uma fotografia e um dos maiores feitos de toda a poesia brasileira. título de nobreza português se as passagens mais cheias de as- dois anos pela Global, e por ser a sua poética Assim, destaque-se, inicialmente, o o símbolo da canção, também parte da pele como esta — o senhor vê? — como esta: Causa surpresa que esse êxito comercial seja alcança- para viver a vida como um co- sombros e maravilhas são todas marcada pelo signo da autonomia intelectual. nome do poeta e crítico Henrique Marques- e da carne da poeta: “E aqui estou, cantan- Publicado em 1942, Vaga música em que para sempre me ria do por um livro que, no século 20, foi escrito em for- mum no Brasil. verídicas, coube às mais banais e Coordenada por André Seffrin, crítico gaúcho -Samyn, encarregado do introito a Espec- do”, anuncia o primeiro verso de Discurso. ajuda a esclarecer o lugar especial ocupado como um vestido de eterna festa. ma arcaica (o romance em verso). Poeta e historiador, O último dos soldados, cotidianas o fardo de serem todas tros (1919). Renegado pela própria auto- Viagem e música se consorciam e se tornam por Cecília Meireles na literatura brasilei- sublinha, no prefácio, justa- por opção do autor, só é reve- fictícias, do contrário, como se sabe, ra, o livro figura como impregnado por um o transporte uno para destinos diversos, os ra. De fato, ela começou a marcar seu nome Como tenho a testa sombria, mente o encontro complementar de poesia e história: lado mais para o final da nar- a narrativa não anda, e é preciso parnasianismo inconveniente às ideologias quais são sempre um pouso de ida. Viajora e em meio à eclosão do modernismo de 1922. derrame luz na minha testa. “(...) Cecília Meireles recria poeticamente um pedaço rativa — e a escolha será man- dar verossimilhança aos fatos. poéticas que se consolidaram no século 20. cantante, a poesia anuncia o milagre da vida, No entanto, desde as primeiras publicações, Deixe esta ruga, que me empresta de tempo e, ao lhe reescrever poeticamente a história, tida na resenha. Ainda assim, De opinião distinta, Henrique vê na obra da a dispensar quês e porquês: Cecília se manteve deliberadamente alheia um certo ar de sabedoria. dá a uma conspiração revolucionária de poetas, num é possível dizer que ele é uma Além disso, logo no começo do então iniciante uma procedência que a liga à à necessidade de afirmar-se através da ne- rincão montanhoso do Império português, a consis- figura ambígua, tanto pela ma- texto o narrador afirma não ser com- produção posterior e que se tornou “oficial” Pousa sobre esses espetáculos infatigáveis gação programática do passado. Pelo con- Não meta fundos de floresta tência do mito”. Assim, discurso poético e narrativa neira com que é inserido na pletamente confiável, dando ainda em Cecília: “(...) não me parece necessário, uma sonora ou silenciosa canção: trário, buscou renovar as fontes clássicas nem de arbitrária fantasia... histórica vão aonde não iriam se estivessem amputa- narrativa como no papel que mais um tom fantasioso à obra. nem pertinente, situar o volume numa ‘pré- flor do espírito, desinteressada e efêmera. do lirismo luso-brasileiro, retomando, com Não... Neste espaço que ainda resta, dos, e, juntos, atingem a magnificência: desempenha no exército. Outro aspecto da narrativa é o -história’ literária de Cecília Meireles. O que raro domínio técnico, metros tradicionais, ponha uma cadeira vazia. Os quatro personagens uso do humor e de uma ironia leve, aqui proponho, com todos os riscos inerentes Por ela, os homens te conhecerão: e revigorando, com sensibilidade contem- Eles eram muitos cavalos têm personalidades diferentes. tanto na improbabilidade do que a esta decisão, é que ousemos reintegrar de- por ela, os tempos versáteis saberão porânea, formas como a canção, o terceto, Como indicado antes, Amor em Leonoreta nas margens desses grandes rios Em comum têm a maneira com acontece com os personagens como finitivamente à produção poética de Cecília que o mundo ficou mais belo, ainda que inutilmente, o romance, entre outras. E não se esqueça veio a público em 1951. Também prefaciador da edi- por onde os escravos cantavam que vivem — andarilhos, pare- nas reações dos personagens peran- Meireles esta obra, que enfim nos foi intei- quando por ele andou teu coração. do simbolismo, pois, como os estudiosos de ção do centenário da autora de Poemas escritos músicas cheias de suspiros. cem não ter achado seu lugar no te tudo. Por exemplo, dois dos solda- sua obra sempre destacaram, a centralidade na Índia, Miguel Sanches Neto assina a apresen- Eles eram muitos cavalos mundo, e em alguns momentos dos se conhecem em um bordel, que da música e do espiritualismo na sua visão tação da plaquete, que é, na bibliografia ceciliana, o e guardavam no fino ouvido sequer parecem estar procuran- também é frequentado por um padre de mundo muito deve à estética simbolista. “primeiro livro-poema propriamente dito, revelan- o som das catas e dos cantos, do. Eles mantêm poucas raízes, viciado em jogos que, para não cair Nesse sentido, os poemas coligidos em Vaga do aí o desejo de dar uma andadura mais narrativa a voz de amigos e inimigos; não têm exatamente um lugar em pecado, não aposta dinheiro. A AUTORA Cecília Meireles música levam adiante a fatura literária de à poesia, cuja culminância será o Romanceiro da — calados, ao peso da sela, para o qual voltar — apenas um Durante a leitura, é quase Viagem (1939), recordando uma autêntica Inconfidência, publicado logo depois”. Ao comen- picados de insetos e espinhos, novo para ir em seguida. inevitável não se lembrar de Terra Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1901. Formou-se pela Escola Normal (Instituto de Educação) arqueologia poética da tradição. tar o título, Miguel Sanches alarga o esclarecimento desabafando o seu cansaço Mesmo que cada um dos Papagalli, de José Roberto Torero em 1917, e exerceu o magistério primário em escolas do Distrito Federal. Publicou seu primeiro de uma Cecília não propriamente modernista, mas em crepusculares relinchos. soldados esteja vivendo suas pró- e Marcos Aurelius Pimenta, mesmo livro de poemas, Espectros, em 1919, em seguida lançou inúmeros títulos, entre livros de Essas observações dão conta de traços sim autora de um fazer poético moderno, por meio prias aventuras, o caminho deles que esse aconteça em um período poesia, crônica, literatura infantil, antologias e ensaios. Morreu no Rio de Janeiro, em 1964. basilares da obra ceciliana, dizem muito do do qual o passado não é mero objeto de veneração, O canto derradeiro de Cecília Meireles con- se cruza ao longo da narrativa. anterior, logo após o descobrimen- que a autora produziu e do que sua produção sendo antes um grande mosaico em que pululam grega a luz e a treva: Solombra, de 1963, é, nas Os encontros são curiosos e as to, enquanto Quatro soldados se significou em meio a um contexto. Além dis- possibilidades de inovação artística: “Amor em palavras de Antonio Carlos Secchin, o “testamento reações dos personagens, muito remete ao período de colonização. so, tais observações encontram forte eco nos Leonoreta”, prossegue Miguel, “é o portal de en- poético” da autora. Como já dissemos algo do livro e bem montadas, acentuando as Ainda assim, as duas narrativas outros livros agora reeditados, bem como nas trada para o medieval luso, um túnel do tempo que citamos partes de seu prefácio, que ouçamos a can- personalidades de cada um. usam o humor, os personagens ca- palavras de seus prefaciadores. une duas idades, eliminando as distâncias. Não há tora, para que ela dê o tom do encerramento — tom Quatro soldados é divi- tivantes e um tom fantasioso para Conforme sublinhamos, Henrique Mar- interregnos entre o século 13, de onde vem A can- de solilóquio e sinfonia: dido em quatro partes, cada uma imaginar o Brasil de antes. ques-Samyn afirma que a, por assim dizer, ção de Leonoreta, e o século 20, de onde Cecília destinada a narrar um episódio Algo interessante da história “ainda-não-Cecília” do primeiro livro, como Meireles escreve. Trata-se de um único tempo, cer- Quero uma solidão, quero um silêncio, específico na vida de um ou mais para amantes de livros é que, ao é vista convencionalmente, já é, sim, a poe- zido pelo fio forte da poesia. Como se sabe, o refrão uma noite de abismo e a alma inconsútil, dos soldados. Esses aconteci- longo da narrativa, fica-se sabendo tisa que décadas depois se consagrou. Para de seu poema, a partir do qual vai construir o livro, para esquecer que vivo — libertar-me mentos são aventuras, com um um pouco sobre como era o cenário a convenção, ali não há Cecília Meireles por vem de uma peça produzida por João Lobeira, tro- tom um tanto místico e fanta- livreiro no país daquela época — haver demasia parnasiana (é como em ge- vador do século 13”. das paredes, de tudo que aprisiona; sioso, que cria uma aura que como era difícil achar obras nessas ral se entende a hegemonia da forma fixa no Portanto, efetiva-se um dos exercícios mais atravessar demoras, vencer tempos subverte a história real dos livros terras e como existia até um con- volume). O que dizer, então, de Solombra prestigiados pela modernidade literária — o da in- pulutantes de enredos e tropeços, didáticos — os personagens se trabando de itens em um mercado (1963), apontado por Antonio Carlos Secchin tertextualidade —, aqui ainda mais denso por estru- deparam com labirintos de onde negro, permitindo com que obras Cecília Meireles por Fábio Abreu (no prefácio) como “aquele que viria a ser turar todo o livro, também moderno por fundir nar- quebrar limites, extinguir murmúrios, ninguém sai com vida, mulas chegassem aos seus leitores. o testamento poético de Cecília Meireles”? rativa e lirismo: “Pela noite remorsa,/ só por alma deixar cair as frívolas colunas sem cabeça e até monstros en- E, falando do objeto livro, a Faço a pergunta porque para o estudioso — te procuro,/ ai, Leonoreta!/ Leva a seta um rumo de alegorias vagamente erguidas. terrados em cavernas profundas. edição de Quatro soldados traz al- dos maiores conhecedores da poesia de Ce- claro,/ desfechada no ar escuro.../ O licrone beija O cenário criado nos guns itens gráficos que enriquecem a cília —, Solombra reúne “alguns dos mais a rosa,/ canta a fênix do alto muro:/ mas é tal meu Ser tua sombra, tua sombra, apenas, mostra apenas que os morado- obra. As aberturas de capítulos têm densos textos de sua obra, formando um livro desamparo,/ Leonoreta, fin’roseta,/ que a chamar e estar vendo e sonhando à tua sombra res dessa nova terra não a en- ilustrações e a fonte foi desenvolvida austero e complexo”, o qual, ainda com Sec- não me aventuro”. a existência do amor ressuscitada. tendiam. O mistério de vir para especialmente para o livro, baseada chin, é composto por “vinte e oito poemas de Publicados em 1952, os Doze noturnos da um lugar como o Brasil era ta- na tipografia usada no primeiro li- rigorosa arquitetura”. Holanda confirmam a variedade e a essência con- Falar contigo pelo deserto. manho que vários mitos foram vro publicado no Brasil. 169 • maio_ 2014 14

A LITERATURA NA POLTRONA : : José Castello Calvino e a rapidez

UEM SOMOS CONTATO ASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO CARTAS ndo desconcentrado, e ção construtiva. Ambos agem en- também atua dentro de mim. Um Chuang-Tsê, o grande desenhis- de Italo Calvino e já me sinto um

EDIÇÕES ANTERIORES COLUNISTAS DOM CASMURROmeENSAIOS repreendo E RESENHAS ENTREVISTAS a todaPAIOL hora LITERÁRIO PRATELEIRAquantoNOTÍCIAS OTRO escrevemos. OJO Um nos puxa se destaca: vai à frente. Outro se ta. O rei lhe pede que desenhe um pouco melhor. Um pouco menos por essa falta de concen- para um lado, outro nos puxa para arrasta, mas não perde o passo. caranguejo. Ele diz que, para isso, “torto”. Se derramo facilmente uma Atração, que se assemelha outro — ambos estão ali. “O traba- Mercúrio, nos lembra Calvi- precisa de cinco anos e de uma casa escrita que me ultrapassa, é porque à preguiça. Minha escrita anda flui- lho do escritor deve levar em con- no, é o deus da sintonia, da comu- com doze empregados. O rei lhe dá uma força oposta, de concentração da, sai rápido — parece se desenro- ta tempos diferentes: o tempo de nicação, aquele que está sempre o que pede. Passados cinco anos, o e foco, me espera no final. Elas só lar em uma velocidade maior que Mercúrio e o tempo de Vulcano”, “entre” duas coisas. Vulcano, ao rei o procura novamente e ele diz existem por contraste, só por con- a de meu pensamento. Isso é bom, alerta Calvino. Forças opostas, que contrário, é o deus da caverna, que precisa de mais cinco anos e de traste nós as percebemos. mas isso me assusta: parece que travam uma luta contínua — e essa do recolhimento, da fabricação outra casa com doze empregados. Agora, enfim, posso me der- não sou eu que escrevo, que alguém luta é a escrita. solitária. O primeiro promove a Ao fim dos dez anos, o rei, per- ramar melhor, sem o medo de me escreve em meu lugar. Parece que Não, não devemos dispensar continuidade indiferenciada (der- sistente em seu desejo, o procura perder. É como alguém que, ao corro em desvario e, apesar disso, a presença de nenhum dos dois ramamento), o segundo promove mais uma vez. Então, Chuang-Tsê, arrastar um guarda-sol, arrasta me arrasto. Lembro-me, então, deuses enquanto escrevemos. A o isolamento egocêntrico (esqui- em um segundo, desenha o mais também sua sombra. Impossível do célebre ensaio de Italo Calvino concentração de Vulcano é condi- zofrenia). Ambos atuam enquan- perfeito dos caranguejos. E dá ao pensar em arrastar o guarda-sol sobre a rapidez. Retorno a ele, na ção necessária para as aventuras to escrevemos, e escrever é o re- rei, que agora — porque contou sem que a sombra seja levada jun- esperança de uma luz. Algo que se e metamorfoses de Mercúrio. A sultado da luta entre essas duas com a ação das forças opostas — to. Do mesmo modo, não devemos não explique, pelo menos situe esse mobilidade e agilidade de Mercú- tendências. Uma não existe sem enfim tem o que deseja. nos assustar se nos flagramos em fluido em que me vejo perdido — rio são condições necessárias para a outra. Sem o desejo de recolhi- Sem a lentidão (derramamen- uma atitude extrema, porque a mas também me encontro. que o trabalho de Vulcano ganhe mento não existe derramamento. to, rascunho, transe) não chegamos outra — que é o seu oposto — tam- Lembra Calvino de Mercúrio significado. Precisamos das duas Sem o derramamento, não exis- à concentração (obra). Sem o dese- bém está ali. e de Vulcano, dois deuses potentes, forças, uma que nos arrasta para te o desejo de recolhimento. São jo de concentração, não faz senti- mas complementares. Mercúrio é a caverna, outra que nos derrama como que avesso e direito de um do nos entregarmos à lentidão e à o deus da sintonia, da participa- sobre o mundo. Precisamos de am- mesmo impulso. dispersão. Um dos lados não existe NOTA ção no mundo. Do derramamento. bas para escrever. Se me sinto flui- Para ilustrar essa convivên- sem o outro. Este é apenas um dos O texto Calvino e a rapidez foi Vulcano, ao contrário, o deus da do (Mercúrio) é porque, de alguma cia necessária, Calvino nos conta paradoxos que ilustram o universo publicado originalmente no blog A focalização, do foco, da concentra- forma o desejo de concentração uma lenda chinesa, a história de da escrita. Penso nos argumentos literatura na poltrona, de O Globo.

Réquiem para o passado

reprodução/ facebook : : Clayton de Souza O AUTOR São Paulo – SP Marcelo Nocelli

Nasceu em 1973, em São Paulo m O escritor e sua (SP), cidade onde mora. É autor dos missão (em esmera- romances O espúrio e Corifeu da edição de 2011, pela assassino. É cronista da Revista ZN. Em Zahar), Thomas Mann 2008, recebeu o prêmio Lima Barreto – E Novos talentos da Literatura. nos confidencia, no Ensaio sobre Tchekhov, que “cultivava um cer- to menosprezo” pelo gênero conto Reminiscências e sua “ligeireza artística”, incapaz Marcelo Nocelli de se nivelar (é o jovem Mann que Reformatório fala) com “a espera heroica ao longo 147 págs. ce e das transmutações pelas quais de anos ou décadas” que o romance passa o meio urbano, a sepultar os exige. O ficcionista alemão, porém, cenários (e com eles os momentos) haveria de mudar seu julgamento, de tanta vida plena (o conto A voz atentando-se enfim às “dimensões da experiência); a sepultar mesmo TRECHO interiores que tudo o que é breve e Reminiscências os sonhos do eu passado, e por con- sintético adquire graças ao gênio”. sequência o próprio eu (Amanhã, A avaliação inicial de Mann, um outro dia e A volta). apesar da revisão posterior, é ex- Eis a real dimensão do termo. pressiva, pois nos faz refletir que a preterição do conto pelo romance, Nunca havia trabalhado Estilo observável atualmente no leitor em com tanta dedicação... A escrita de Nocelli é a expres- geral, é um dado histórico (embo- são acabada de sua concepção das ra de natureza diversa). Um dado Na fresa, o som da fer- relações humanas: seca, sem ador- passível de mudança desde que o ramenta afiada cortando nos. É significativo que persona- leitor detenha a virtude da refle- “a peça por fazer, soava gens como o velho ranzinza do con- xão analítica capaz de se libertar de to Planária se expressem através de avaliações preconcebidas e equívo- como música de violino. períodos curtos. Mas a segurança cas, enfocando pela segunda vez (e Foi se deixando levar no lidar com a linguagem não está com lente mais apurada) as nuan- pelo som da lixadeira em só nessa relação forma/conteúdo. ces do objeto de sua análise. Ela também se traduz no jogo hábil contratempo com o torno Thomas Mann possuía tal vir- (e algo lúdico) com as palavras: tude, escassa, como tantas outras do amigo ao lado. que a boa leitura demanda, nesses De repente ela aparecia, fu- tempos modernos. mando na janela (...) me propor- Retomando a afirmação do ros; mas seus dramas, angústias e impressões algo ácidas da cidade sentimento explícito (Remissão, cionava admirar os pequenos, grande escritor alemão, concluí- anseios palpitam intensos sobre o modernizada: Domingos, O quarto dos fundos) porém, rijos, empinados, eretos e mos que as virtudes inerentes ao asfalto impassível da cidade. à empatia e identificação Lem ( - arrogantes seios que ficavam na gênero — ligadas todas à contenção O título da obra pode ludi- No terreno vizinho, onde branças, Alvitre, A pura, vida). altura do parapeito. — apenas vicejam sob a luz incan- briar o leitor cuja expectativa seja naqueles tempos existiu uma pas- Mais notável é essa figura suscitar descente do gênio. Escassas, por- a de estar diante de um repre- teurizadora de leite, hoje há uma um exercício de resignificação dos Moderação é a palavra de or- tanto, como os leitores. Como fa- sentante da linha da autoficção universidade particular, dessas signos do passado ao narrador; a dem, abarcando o uso de metáfo- zer para elevar esse gênero “a uma em voga, regada a memórias do pasteurizadoras de diplomas. título de exemplo, o conto Domin- ras e (infelizmente) o recurso mais categoria épica” que supere “em autor. Na verdade, para além de gos, que é uma extensa lembrança atraente de Reminiscências: as intensidade artística o grandioso, a simples recordações, Reminis- É a imagem que se impõe ao evocada pela memória involun- associações entre elementos díspa- obra gigantesca”? cências conota o entrechoque de filho pródigo que, tardando o reen- tária, focaliza a relação da tríade res como a fresa e o violino em O Não há como saber se Marce- desejos de outrora e realizações contro fúnebre, vai até a padaria em neto-mãe-avô nos dias dominicais operário da arte, a velhice e a les- lo Nocelli, em seu livro de contos efetivas, bem como de épocas frente buscar num espresso uma na casa deste. O perspectivismo do ma em Planária, etc. Reminiscências, se propõe tal passadas e presentes, ou a re- evocação proustiana de uma época neto/narrador e da mãe envolve a Tal moderação elide o ex- desafio. Por certo o termo épico construção de passados lacunares tão morta quanto o pai. Busca vã, figura do avô numa neblina espes- cesso, tornando efetivo o que é não se coaduna com a obra; por por um membro remanescente de pois o moderno espresso não repro- sa, convidando o leitor a preencher expresso, como no trecho acima outro lado, esta se beneficia gran- uma família esfacelada. duz o sabor de um rústico coador. as lacunas de seu passado. que seria apenas outra estória ob- demente de todas as vantagens que No primeiro conto, ambigua- Aqui, como em todas as peças Seria possível encontrar uma sessiva de um quarentão por uma uma expressão lacônica propicia à mente intitulado Remissão, o leitor que compõem a obra, as relações unidade simbólica entre as varia- ninfeta, não fosse o dado essencial: prática da narrativa curta. acompanha o retorno de um filho, humanas são acres ou ambíguas, ções do tema? O que une o severo o personagem perdera a mãe aos O livro é composto de 17 nar- após anos de ausência, à cidade na- em especial as familiares, cuja pro- dono de casa, o polígamo invete- três meses, guardando como única rativas, a mais extensa não ultra- tal, por conta do enterro de seu velho blemática põe em segundo plano o rado, o utilitarista inflexível e o in- lembrança seus belos seios... passando dez páginas (numa dia- e austero pai. A relação conflituosa velho conflito do indivíduo/meio transigente “pai-patrão”? Há que se admirar tais nu- gramação bastante agradável, bem entre ambos dá o tom do reencontro: (esboçado em contos como O ope- Uma hipótese seria o assassí- ances narrativas que o artista im- como o projeto gráfico impecável do rário da arte). Aliás, muito além nio simbólico do passado (a figura prime à obra, ampliando inter- artista plástico Leonardo Mathias). Aproximei-me do corpo (...) e de um competente estudo dessas paterna está presente apenas en- pretações. Fomento às virtudes da Grande desafio é expressar infortú- num ato obtuso de superioridade, relações, Remissão sintetiza bem quanto lembrança em muitos dos boa leitura. E embora o milagre nios humanos, plasmar seres vivos não o toquei (...) Suas mãos entre- os principais temas da obra, pondo contos), ao mesmo tempo em que tchekhoviano, citado por Mann, ao invés de títeres, impondo-se o ar- laçadas sobre o peito também não já em relevo a figura quase onipre- uma reinterpretação dele, a fim de não esteja em seu campo de visão, tista um número exíguo de páginas. se moveriam. sente em suas partes: o pai. que a superação dos traumas con- Reminiscências, trilhando o ca- Não que Nocelli conceba persona- De fato, a figura paterna so- solide uma maturação existencial. minho da narrativa convencional, gens de dimensões shakespearia- Em poucas páginas harmo- bressai aos demais elementos do As “reminiscências” transcen- comprova a perícia de um autor, nas, muito pelo contrário: os tipos nizam-se as sensações oscilantes livro. É, no entanto, um tema de dem esse embate. Suas dimensões iniciante no conto, com seu instru- que habitam a obra são corriquei- do filho, suas reminiscências e as muitas variações, indo do res- se ampliam com a temática da velhi- mento de trabalho. 169 • maio_ 2014 15

PALAVRA POR PALAVRA : : Raimundo Carrero Literatura é imagem, cena e metáfora

UEM SOMOS CONTATO ASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO CARTAS literatura brasileira não Sombras de reis barbu- coisas como elas são, num sentido ve que a personagem vomitava o mo sertanejo, de forma a criar uma EDIÇÕES ANTERIORES COLUNISTAS DOM CASMURROtemENSAIOS uma E RESENHAS grandeENTREVISTAS PAIOLtradi LITERÁRIO- PRATELEIRAdosNOTÍCIAS é umOTRO OJO grande romance metafó- direto e definitivo, mas a literatura mundo talvez construísse também imagem do poder e, mais ainda, da ção no tratamento de rico ou simbólico, como foi rotula- inventa, recria, estabelece tensão um texto muito forte, mas estaria sedução do poder. Ao lado dela co- Aromances — ou prosa de do na época, embora seja um livro artística. Transformar o persona- fazendo jornalismo, por mais es- loquei outras duas mulheres — Inês ficção — metafóricos, sobretudo na da mais alta qualidade. Conta a gem num inseto faz com que ele tranho que pareça. e Gabriela, significando aí a liber- questão política, optando, quase história de opressão, pânico e falta atinja um grau superior de inter- A literatura se realiza, assim, dade — Inês aparece, quase sempre sempre pelo documento, a socio- de liberdade numa cidadezinha do pretação, de invenção e provoca, no plano dos signos e das insíg- nua e desafiadora —, e a loucura do logia ou a antropologia e o panfle- interior, pela ótica de um jovem e, sem, dúvida, um número imenso nias. E quando se trata de literatu- sonho e da ilusão — Gabriela é uma to, deixando o artesanato de fora, por isso mesmo, ainda mais opres- de interpretações. ra, é preciso estar atento. Quando velha que atravessa os campos can- apesar de autores monumentais do siva. Na falta de material analí- Um homem angustiado e escrevi A história de Bernarda tando, com os braços levantados, porte de Guimarães Rosa, Clarice tico, a crítica chamou-o também humilhado é só um homem an- Soledade, que marca o início da sempre vestida de noiva. Lispector, Osman Lins ou até Ma- de livro fantástico ou de literatura gustiado e humilhado, com força minha vida literária, queria, com Bernarda impõe o que ela chado de Assis no século 19. fantástica, embora a rigor não seja literária, sem dúvida. Mas falta-lhe certeza, me engajar no Movimen- chama de ordem, exige que todas Por isso, tornou-se comum uma coisa nem outra. Sombras qualidade artística. A qualidade to Armorial, mas precisava de ele- as terras e que todos seus ani- tratar das questões da ditadura no de reis barbudos é apenas um transformadora. Um inseto é, em si mentos para criticar a opressão e o mais sejam seus. Torna-se dona panfleto, na denúncia pura ou sis- romance, e um romance de alta mesmo, um inseto abjeto, nojento; medo, sem necessariamente fazer de todos os homens e de todas as temática, ou naquilo que se con- qualidade artística, como de resto portanto, na visão humana, derro- um discurso jornalístico ou ensaís- mulheres. Além disso, os animais vencionou chamar de romance- são os romances de Kafka. tado, asqueroso. Como imagem, e tico. Era, também, e ao meu modo, têm vida depois de mortos. Uma -reportagem e romance-denúncia, Quando Kafka diz na Meta- literatura é imagem, transmite a vi- uma crítica ao regime autoritário história metafórica, que a edito- jornalismo com jeito de literatura morfose que K. acordou trans- são caótica e dramática do homem. vigente. Por isso fui buscar os ele- ra francesa chama agora de “um que servia, diretamente, aos obje- formado num inseto está reali- Assim também funciona a mentos da cultura popular nor- western brasileiro, com toques de tivos políticos. Numa trilha muito zando aquilo que se pode chamar obra de , cuja for- destina. Nada mais enriquecedor e realismo mágico”. pessoal e particular, surgiu o escri- verdadeiramente de obra de arte. ça superior está nas imagens e nos verdadeiro. Segui, de propósito, as O que importa, para mim, tor goiano José J. Veiga, aí pela dé- Se escrevesse que K. acordou an- símbolos. A personagem de A pai- lições do mestre Ariano Suassuna, é que a literatura, a verdadeira e cada de 1960, com seus romances gustiado, humilhado, derrotado, xão segundo G. H. come e vomi- de quem sou discípulo orgulhoso. sagrada literatura, se realiza no metafóricos, de grande qualidade teria feito um bom texto, sem dú- ta uma barata. Não poderia haver Usei, em primeiro lugar, a plano artístico do simbólico e do literária, mas hoje basicamente vida, mas não passaria de jornalis- imagem maior para definir o nojo figura feminina de Bernarda para metafórico, tornando possível o desconhecido dos leitores. mo ou de ensaio. O ensaio diz as e a rejeição do mundo. Se ela escre- evitar o lugar-comum do coronelis- sonho e a ilusão.

O esboço de um livro

divulgação : : Rodrigo Casarin O AUTOR São Paulo – SP Marco Lucchesi

É poeta, tradutor e ensaísta. Dentre out- objeto livro é a principal ros, é autor de O dom do crime e A plataforma (ao menos memória de Ulisses. Já venceu duas ainda) para a publica- vezes o Prêmio Jabuti e ocupa a cadeira O ção da literatura. Con- 15 da Academia Brasileira de Letras. tudo, qual seria a máxima relação entre um livro e uma obra literária? Não digo um entrar com o entorno e as páginas e o outro com o conte- údo, isso já é o que acontece. E se dados vitais do texto estivessem no ISBN ou na ficha catalográfica? E se a ilustração da capa ou as inscri- ções da lombada contivesse infor- mações essenciais para que a histó- ria seja entendida? E se um detalhe fundamental sobre o cenário, algo que explica muitas das ações dos personagens, estivesse naquela O bibliotecário última página, no meio do “este li- do imperador vro foi composto em papel x para Marco Lucchesi a editora y e impresso na gráfica h Biblioteca Azul no outono do ano tal”? Mais, e se o 112 páginas tipo de papel estivesse diretamente relacionado com o enredo? Estaría- da investigação que deveria mover esboço da pessoa que teria sido Iná- lente diálogo no qual o biografado TRECHO mos indo além da literatura, conci- O bibliotecário do a obra]”. Se não bastasse, em al- cio. O próprio narrador/pesquisa- reclama do biógrafo por ter trans- liando a arte com o objeto livro em imperador gumas oportunidades o revisor se dor define bem o rastro daquele que formado parte de sua vida em um uma simbiose total. torna um intruso e volta para dis- norteia o seu trabalho: é um “per- livro, o que nos remete à discus- Faço essas perguntas provoca- cutir, por meio de notas de rodapé. sonagem à procura de um autor, são de quem possui os direitos de do pela leitura de O bibliotecário A ideia até que é boa, mas a porque precisa contar sua própria uma história, da legitimidade de se do imperador, de Marco Lucche- execução não funciona bem. Pri- vida, como no drama de Pirandello, narrar uma vida alheia sem que o si. Não que a obra apresente algu- — Perdão, Inácio, mas meiro porque, no prefácio, o que vestido de preto, náufrago de sua objeto de inspiração e pesquisa au- ma dessas “contravenções”, mas não vejo como possa o revisor-personagem escreve soa geração. E, no entanto, desapare- torize o escritor para tal. um ponto me levou à divagação. A ter ciúmes do passado e como uma justificativa, um mea- ceu de repente, como um fantasma, Não bastasse o revisor, o história começa com um prefácio do -culpa do autor pelo o que está por obrigando-me a persegui-lo nas ra- protagonista da história também revisor. Prefácios são comuns, mas, preencher as qualidades vir. Segundo, porque as discussões ras pistas que encontrei”. Pistas que não gosta da obra composta por de revisores, bastante raros (para “que me atribui. Pense bem, ao longo do texto são forçadas e in- foram insuficientes. Lucchesi, que é um livro razoável, falar a verdade, nunca tinha vis- sou eu quem o trouxe de verossímeis. Não faz sentido autor Essa busca frustrada, ancora- com alguns bons momentos, algu- to nenhum). Mais, ao final, não há e revisor discutirem durante a nar- da principalmente em documentos mas máximas interessantes (como volta à vida, quem o tirou assinatura do prefácio. Ainda mais, rativa, da mesma forma que não faz e cartas que aparecem aos montes “A biografia de um homem de li- o prefácio é precedido por um “1” do limbo do tempo, quem sentido um revisor atacar o autor (empobrecendo a narrativa), acaba vros encerra uma contradição. A bem grande, iniciando a contagem o tornou contemporâneo, no livro deste, com aval até mesmo por fazer com que o narrador pegue vida e o livro são inimigos ferozes. dos capítulos. Ou seja, o espaço des- do editor. Soa inverossímil. Ao fi- raiva de Inácio, o que rende alguns Viver no seio da biblioteca reflete quem deu voz a seu fan- tinado ao comentário que antecede nal, o intrometido acaba sendo um bons momentos, como o próprio o isolamento de um bibliopata”), a obra foi incorporado à narrativa. tasma, esse mesmo fan- fantoche para que o autor consiga narrador supondo que o “biogra- mas nada muito além disso, nada Pode não ser a coisa mais original tasma pelo qual os leitores chamar a atenção para alguns mo- fado” deixou parcos rastros apenas marcante. Vendo como o autor se do mundo, mas é algo bastante raro mentos da história, como se utili- para que sua história não pudesse utilizou de elementos em sua nar- de hoje sentirão um misto — o que é bom, convenhamos. zasse esse personagem para poder ser contada no futuro. “Vejo-me rativa para, a todo momento, de- Nele, o revisor, que assume de entranhada piedade e comentar e dar alguma complexi- aborrecido com sua decisão de dei- fender a obra, fico na dúvida se até pouco entender de literatura mo- admiração... dade ao seu próprio texto a partir xar a cena, pouco antes do fim do mesmo Lucchesi não teria ressal- derna, faz algumas ponderações ao de pontos de vista conflitantes. ato, longamente planejado e consu- vas a fazer sobre O bibliotecário livro que está por vir. Compara a mado, sem aviso prévio, fora de en- do imperador. obra com outras que cansou de re- Alguma razão redo, a produzir graves resultados Contudo, para não ser injus- visar, afirma que ela não tem foco e para o revisor ficcionais, trajando terno escuro, to, ao final fiquei com outro pensa- está alicerçada sobre terreno incer- Mas a obra de Lucchesi não chapéu e casemira. Como se de mim mento: o que acontece com a histó- to e movediço, diz que o autor “não se resume a essa questão, é claro. suspeitasse, digamos, cem anos an- ria das pessoas comuns depois que entende quase nada sobre muita des dos escritores antigos, dos que O bibliotecário do imperador é tes, e mais obstinado se mostrasse, elas, os amigos e parentes próximos coisa”. Como se quisesse desenco- sabiam tecer uma narrativa densa uma espécie de busca pela história e foragido, nas dobras do tempo, se vão? Nós morreremos de verda- rajar o leitor — a quem faz elogios e ao mesmo tempo ágil”. de Inácio Augusto César Raposo, despistando sempre, apagando as de, definitivamente, quando mais protocolares —, dispara: “Desco- Essa intromissão do supos- responsável por cuidar dos livros de provas, assaltando afrontosamente nenhuma história sobre nós é con- bre-se que o livro, que antes pare- to revisor tem desdobramentos ao dom Pedro II. Para tentar recons- os bolsos do futuro”. tada ou lembrada. Então, se nossa cia um rio caudaloso, não passa de longo da obra. Em diversos mo- truir a vida de Inácio, o narrador vai Ao final, em um dos momen- vida está num livro, há uma chance um logro, de um simples riacho, mentos, o narrador procura se jus- em busca de vestígios que mostram tos mais interessantes do livro, a mais de continuarmos a viver. É quase sem água. Tentei preveni- tificar para o revisor. Um exemplo: a relação do personagem com o ob- Inácio aparece para discutir com algo para se pensar mais a fundo, -lo [o autor], mas sua vaidade não “E se me perco em devaneios, meu jeto livro. Contudo, o sucesso é par- o narrador, chamando-o direta- discutir comigo mesmo — às vezes permitiu sequer uma troca de pala- bom Revisor, se não vou direto ao co e o texto resulta numa espécie de mente de Marco Lucchesi. Não fica o Rodrigo e o Rodrigo se pegam vras”. E termina com uma frase tí- ponto é porque não achei infeliz- biografia ficcional frustrada, apenas claro como o fenômeno metafísico feio aqui na mente — e, quem sabe, pica dos saudosistas: “Sinto sauda- mente o esqueleto de Inácio [o alvo com um tatear da história, como um se dá, mas ele resulta em um exce- abordar em um texto futuro. 169 • maio_ 2014 16 RUÍDO BRANCO : : Luiz Bras

agitado por visões contraditórias, autores de todo tipo, livros de toda ordem, saindo, pedin- Pesquisa sobre a evolução do atenção. Pra ser justo com isso, os críticos UEM SOMOS CONTATO ASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO teriamCARTAS que ler muito, teriam que ler tudo, o que é praticamente impossível, e, na verdade, literária no Brasil (13) EDIÇÕES ANTERIORES COLUNISTAS DOM CASMURRO ENSAIOS E RESENHAS ENTREVISTAS PAIOL LITERÁRIOtodosPRATELEIRA eles NOTÍCIASestãoOTRO presos OJO a certos nichos, predi- leções e grupos, o que também é inevitável. O fenômeno é daqueles cuja amplidão impele à Fizemos a destacados escritores, edito- 2) Não dá para falar seriamente em 7) Também as formas literárias não po- modéstia e à cautela nos diagnósticos. res, críticos, professores e jornalistas cultu- evolução porque o campo da cultura — cons- dem ser pensadas como evolução estrita de O que me parece é que os escritores bra- rais brasileiros a pergunta: tituído de obras de tempos diversos, alimen- uma em relação às outras; ainda que elas se sileiros deveriam ter menos medo da literatura tadas por interpretações várias e igualmente sobreponham, se cruzem, uma forma nunca é de gênero, praticar o policial, o suspense, o ter- • Tendo em vista a quantidade de tempos distintos — não tem uma direção o resultado dedutivo do encontro das anterio- ror, a fantasia, a ficção científica, serem menos de livros publicados e a qualidade da única: as obras não estão correndo todas para res. Acidentes acontecem. O romance não é geniais e terem mais peito pra concorrer com prosa e da poesia brasileiras contem- o mesmo fim, como se fossem atletas numa derivado das formas anteriores, mas uma re- um mercado estrangeiro em que muita coisa porâneas, em sua opinião, a literatu- pista estreita; solução que apenas se compreende em obras medíocre, mas capaz de entreter, dá o tom. ra brasileira está num momento bom, 3) O evolucionismo aplicado à cultura fa- particulares diversas, em diferentes momen- Isso não seria necessariamente ceder ao mediano ou ruim? vorece uma ideia linear de cultura, como essa tos e situações históricas. A epopeia não pode tom comercial predatório, seria ter um pouco de corredores numa mesma baia, que come- ser posta na origem do manifesto de vanguar- menos de pretensão e prestar mais atenção Alcir Pécora çam bebês e terminam atletas triunfantes. A da, a não ser como metáfora interpretativa ao que os leitores (que, afinal, nem são tan- A meu ver não existe evolução literária, imagem é caricata propositalmente, porque a aplicada a casos particulares; tos) procuram. Mas já é generalizada a per- nem no Brasil, nem fora dele. Se há um lugar ideia é caricata: quem é o bebê aqui? Homero? 8) Há muito mais o que dizer, mas me cepção de que não faz muito sentido manter onde a ideia de evolução não funciona, esse é Ésquilo? Virgílio? Dante? Petrarca? Camões? restrinjo à retomada de um ponto decisivo: boa um elitismo daqueles de nariz empinado para justamente o da literatura, e me surpreende Shakespeare? Góngora? etc. etc. Quem é me- parte da história das obras é contingencial e o cheiro de concessão prostituída do merca- que ninguém tenha tocado nisso até agora. lhor do que quem? De que evolução se pode não resultado de uma intenção ou de uma supe- do. Os autores brasileiros querem ser lidos, Isso deve ser sinal de alguma coisa. Espero falar quando se pensa em nomes como esses? ração. Originais extraordinários, que poderiam percorrem pequenos e grandes circuitos de que não seja efeito de uma crença generalizada 4) Não dá para evoluir para além da ter impacto decisivo, se perdem na chuva, nos palestras, participam de concursos, não per- numa narrativa histórica teleológica, progres- forma que cada grande autor efetivamente baús, nas prisões, enfim, em desastres e impre- dem oportunidades aqui e ali, e desejam para siva e etapista, em que o passado é a infância e logrou produzir. Cada uma delas é única em vistos; outros papéis, secundários, passaram seus livros difíceis o que todos desejam: lei- o presente, o ápice. Fosse assim, seria sintoma si mesmo; a ocupar lugares chaves e tiveram um papel tores atentos ou meros fruidores, o que seja. daquilo que Hartog chamou de presentismo, 5) O máximo que podemos dizer a res- histórico considerável; um incêndio matou um O que se tem a fazer é aperfeiçoar o pois submete o passado à ideia de pré — ou peito do conjunto das obras de arte é que to- autor anônimo que finalizava uma grande obra, mercado, injetar nele ansiedades estéticas seja, como falta ou infância em relação ao pre- das elas têm alguma exigência do novo, mas o suicídio de outro destruiu várias alternativas um tanto mais refinadas, mas jamais pre- sente — e enclausura a potência do futuro no o novo não é o que evolui em relação ao mais de futuro. Isso não é evolução, é contingência, tender que ele seja a Grande Besta digna de imediatismo das escolhas contemporâneas. antigo, mas o que se indetermina em relação catástrofe, sorte, fortuna, o que quiser. uma única coisa: bombardeios. Há muita im- A ideia de evolução literária tem inte- a ele, o que não pode ser deduzível dele, uma Enfim, me sinto como se começasse potência chorona e pouco digna de confiança resse muito reduzido no campo literário, por vez que produz uma forma que não estava apenas uma conversa: escrevo velozmente, e em muitos autores que não fazem sucesso. O muitas razões: prevista nos modelos anteriores. E como falar me sinto profundamente culpado de não po- darwinismo do mercado os apavora, mas em 1) Trata-se de um campo que se cons- em evolução quando a condição do que segue der dedicar o tempo de reflexão que qualquer nenhum sistema literário do mundo haverá titui como de longa duração (para não falar é a indeterminação? reflexão séria exige. quem não alimente queixas. em termos idealistas de eternidade ou trans- 6) Cada nova grande obra bagunça a Alcir Pécora é professor de literatura As pequenas editoras querem crescer, cendência). Isto é, alguns autores do passado ordenação hierárquica inteira do campo e o da Universidade Estadual de Campinas e merecem estímulo e uma situação menos continuam agora tão vivos e, por vezes, até refaz de alguma maneira: o que parecia na desesperadora, muitos autores bons querem mais influentes do que quando escreveram. frente vai para trás, quem estava do lado de Chico Lopes publicação, e a merecem. O pântano do co- Isso porque a interpretação deles, ao longo um vai para o lado do outro, quem estava nos A despeito dos desânimos e suplícios mércio pode ser horrendo, mas todos têm do tempo, se enriqueceu de muitas maneiras, lugares mais iluminados vai para a sombra pelos quais passam os escritores novos, não que passar por ele. E, mesmo quem não for tornando-os interlocutores necessários da etc. etc. Quando falo em bagunçar os tempos publicados, que têm uma compreensível ansie- capaz de atrair editores, não deve jamais de- compreensão de diferentes tempos e igual- da cultura, penso não apenas no tempo do dade com serem lidos, achando que a selva edi- sistir de aperfeiçoar sua obra em silêncio e in- mente do presente. Sob muitos aspectos, po- presente, mas também nos do passado e do torial está fechada para os seus tambores, acre- visibilidade, porque, no mínimo, viverá para demos dizer que esses autores supostamente futuro: a obra realmente nova desarticula a dito que o momento é de mediano para bom. o prazer que sua criação dá. do passado determinam o presente, pois for- cadeia evolutiva que não era natural, mas que Porque acho que, a rigor, não pode ser Chico Lopes é autor de O estranho necem paradigmas para a interpretação dele; estava naturalizada de forma indevida; classificado de ruim um mundo editorial tão no corredor (Editora 34)

PRATELEIRA : : NACIONAL

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A caminhada ou o Outros 40 Lorde Reforma na paulista e A grande roda de histórias homem sem passado João Gilberto Noll um coração pisado Nélio Spréa e Milton Karam Roberto Nicolato Org.: João Bandeira Record Elisa Andrade Buzzo Ilustrações: Katia Horn Blanche Iluminuras 128 págs. Oitava Rima Parabolé 112 págs. 176 págs. 272 págs. 144 págs. Talvez experimentar o diferente seja O professor Júlio Saboia está Arnaldo Antunes se consagrou a melhor forma de se autodescobrir. Livro de crônicas organizado em Doze histórias inspiradas em relatos completamente sem memória. Em como vocalista da banda de rock No aeroporto de uma Inglaterra três partes: Horizontes, Vidas e reais. A coletânea surgiu de um projeto busca de sua identidade, parte para Titãs, mas sua produção artística é gelada, um escritor brasileiro não Tempos. Para a autora, as janelas organizado pela Fundação Cultural uma viagem pelos locais sagrados multifacetada. Neste livro, organizado sabe o que aguarda. Recebera constituem o observatório de suas de Curitiba em 2012, com a proposta da Bolívia e do Peru, entre eles o pelo amigo João Bandeira, são 40 de um homem misterioso um reflexões — seja do ônibus, do de fazer 50 sessões de contação de sítio arqueológico de Tiahuanaco e textos que se concentram em música, convite, as passagens, a oferta de carro, do apartamento. Com olhar histórias. Reunião de personagens Machu Picchu, carregando apenas um poesia e literatura, onde Antunes hospedagem e embarcara. Em seu clínico, tudo se torna prosa: o balé emblemáticos, surgidos de relatos mapa e as passagens. No decorrer da impulsiona o pensamento através do destino, transita pelas ruas, hospitais, dos coletivos lotados, um passeio como os de Diva dos Anjos Canuto, história, fica na companhia de uma seu dom de equilíbrio-desequilíbrio hotéis e estabelece relações com no shopping a fim de provar um que contou o dia em que seu esposo amante boliviana, de um pesquisador entre o espantosamente óbvio e o passageiras desconhecidas. Mas, em cupcake, reflexões sobre o outono foi atacado por um galo; e de Andréa brasileiro e à mercê da paixão de uma evidentemente estranho. 40 escritos suma, só trocou a solidão que vivia preenchendo o vão dos prédios, Regina dos Santos, que relatou mulher obsessiva. Livro de estreia do foi a primeira coletânea organizada; no Brasil pela mesma solidão na tornando a noite colorida numa a ida falha dos seus parentes a um jornalista e professor Roberto Nicolato. agora, Outros 40. Inglaterra. cidade cinza como São Paulo. velório: foram ao cemitério errado.

Pow-emas e outros Carta ao filho — Ninguém Gol esquecido — Autópsia do bípede Dez fitas e um tornado jabs líricos ensina a ser mãe Contos de futebol Marco Polo Guimarães Teresa Urban Edson Valente Betty Milan Mayrant Galo Confraria do Vento Arte & Letra Patuá Record A Girafa 168 págs. 200 págs. 95 págs. 159 págs. 96 págs. Estreia de um poeta no mundo dos José Suçuarana é órfão de pai e mãe Versos peculiares sobre o pai, ídolos, Neste texto biográfico, a autora se Contos curtos, direcionados ao esporte contos. Enredos breves e constante por opção. Sua data de nascimento paternidade, viagem, capital da pergunta como poderia ter evitado mais popular do Brasil, inspirados pela estranheza. Os personagens não é incerta e seu sobrenome, um mero Bélgica, Mickey Mouse e um clipe do todos os erros que cometeu. Deixando- poesia mística dos noventa minutos de precisam de nomes, nem dependem apelido de infância. Mesmo com o Joy Division. O chulo e o sagrado se se nortear pela pergunta, escreve para uma partida de futebol. Potencializando de cenários para existirem; como poder de impressionar a academia unem. Nos títulos, até arrisca inglês o filho e remonta a história dos dois emoções, literatura e esporte se protagonistas, suas esquisitices. norte-americana, continua submisso e francês. Bate onde dói. Escreve a fim de descobrir a resposta. Entre unem. Não só do futebol, porém, é Nas memórias de Adriano, o garçom cultural e psicologicamente ao sobre amor, tema maior de nossas vários relatos, a exposição de sua vida sustentada a narrativa: conversas em é espanhol e Deus é doido; nos coronelato formador de nossa jornadas existenciais, de forma atual sentimental para o filho. Betty arrebata bares são imprescindíveis para debater minicontos, o político pedófilo é pego, nação. No pouco tempo de vida que e com personalidade. O poeta está com uma reflexão sobre a mãe e a aquela jogada ou o desempenho do um novo método de faltar o trabalho, lhe resta, grava dez fitas contando no corner e se prepara, aferindo os mulher, inteiramente calcada no que companheiro; na esquina, conversa sobre impulsos animalescos de morder sua vida, endereçadas a Alícia, batimentos cardíacos do texto, já viveu. Aqui não há o tabu da boa mãe garotas; o drama de ser expulso logo nos nádegas e a sorte de não ser atingido militante de esquerda durante a sabendo que sempre haverá nocaute. infalível. primeiros cinco minutos; e muito mais. por um boeing. ditadura militar. apresenta

BRASIL Curitiba 25 e 26 Abril Salvador 9 e 10 Maio São Paulo 23 e 24 Maio Rio de Janeiro 6 e 7 Junho

Curitiba Salvador Abdelkader Djemaï Argélia Ana Maria Gonçalves Brasil Cristovão Tezza Brasil Carlinhos Brown Brasil José Castello Brasil Dama Bete Portugal Juan Pablo Villalobos México Elicura Chihuailaf Chile Kim Young-Ha Coreia do Sul Jean-Yves Loude França Luci Collin Brasil Jorge Portugal Brasil Mohsen Emadi Irã Margareth Menezes Brasil Rogério Pereira Brasil Marta Quiñónez Colômbia

São Paulo Rio de Janeiro Conferências Alessandro Buzo Brasil Achille Mbembe Camarões Bernardo Buarque de Holanda Binho Brasil Chacal Brasil Eduardo Jardim Inês Bortagaray Uruguai Fabián Casas Argentina Eric Nepomuceno Jacob Sam La Rose Inglaterra Francisco Bosco Brasil Iza Grispun Jive EUA Marcus Faustini Brasil Marcos Alvito Peter Demant Holanda Nils Straatman Alemanha Paulo Ribeiro Roberta Estrela D´Alva Brasil Tatiana Salem Levy Brasil Rosa Maria Vieira Sérgio Vaz Brasil Yolanda Lobo

APRESENTAÇÃO PARCERIA

REALIZAÇÃO 169 • maio_ 2014 18 Tediosa floresta

A AMAZÔNIA MISTERIOSA, de Gastão Cruls, é um romance inverossímil e repleto de figuras despersonalizadas

:: Rodrigo Gurgel óvulo humano fecundado com o rezas e das mezinhas, Pacatuba é o distância, até que os sons já sur- São Paulo – SP esperma do macaco-aranha? —, a único homem — no sentido de ter dinavam ao longe, numa toadilha discussão ética surge frágil, pífia, sentimentos, fraquezas, perplexi- quase imperceptível”. Mas não grippino Grieco escreveu pois o narrador-protagonista não dades, etc. — em todo o romance. chegamos ao fim. Pouco depois, o que o romance A Ama- passa de um pusilânime que deseja narrador se lembrará do pássaro, zônia misteriosa, de ficar bem com todos: Linguagem “sentindo aos ouvidos, num eco AGastão Cruls, lançado O que não seria problema nas inesquecível, as dulcíloquas melo- em 1925, é um “livro de sólida ossa- Achei de bom alvitre mos- mãos de um bom escritor transfor- dias do gorjeador incomparável”. tura, com algo de Kipling, Conrad trar-me de perfeito acordo com o ma-se, na pena de Gastão Cruls, “Dulcíloquas” é o tipo de vo- e Chadourne”. O elogio, bem mais seu ponto de vista, e, dali por dian- em obstáculo intransponível: o li- cábulo que Cruls aprecia. Ele diz: longo, publicado em O AUTOR vro foi escrito sem que ele conhe- “nos dessedentamos”; “aos rescal- Evolução da te, já de regresso, mas sempre con- Gastão Luís Cruls prosa brasileira, de 1932, não é versando animadamente, só tive cesse o Norte do país, a não ser dos do licor ebriático”; “orgulho do apenas imprudente, mas revela o aplausos para os seus trabalhos. Nasceu no Rio de Janeiro “através de numerosa e seleciona- mais exigente ginasiarca”; “viajante lado desagradável, aético, dos sis- Aliás, esses trabalhos eram de tal (RJ), em 4 de abril de 1888, da bibliografia”, diz a nota da Edi- êxul”; “garridice dos seus trajes”; temas literários, incluindo o brasi- relevância e tão grandes e inespe- e faleceu na mesma cidade, tora José Olympio; seu primeiro “inimitável lavor artístico”. Certo leiro, pois Grieco e Cruls eram só- radas as novas aquisições trazidas em 7 de junho de 1959. contato com a Amazônia só ocor- personagem não caiu, simplesmen- Diplomou-se pela Faculdade cios, proprietários da Editora Ariel, à ciência que, tirante a desumani- re em 1928, quando acompanha a te, mas “cambalhotou precípite no de Medicina do Rio, criada em 1930. Essa construção expedição do Marechal Rondon à rio”. E a lista é interminável: “os dade dos processos experimentais, exercendo posteriormente artificial de celebridades, ainda que não haveria quem os deixasse de funções de médico fronteira do Brasil com a Guiana índios lançavam mão desse alvi- empolgue as panelinhas e, talvez, elogiar. Elogiei-os, portanto, na sanitarista no Ministério da Holandesa, atual Suriname. tre”; “insetos bezoavam no ar”; “ao facilite temporariamente a venda certeza de que não comprometia Educação e Saúde. Publicou Seu apego à bibliografia — e bochorno do meio-dia”; “belo ani- dos livros, dura, entretanto, como de todo a minha sinceridade e com seus primeiros contos na não à sua capacidade de fantasiar; mal de pelo cetinoso e largamente dizem os espanhóis, un rato. a esperança de, assim, mais fácil, Revista do Brasil e por volta o desejo de escrever uma obra que ocelado de negro”; “fauce hiante”... De qualquer maneira, não talvez, me fosse a liberdade. de 1917 frequentou o círculo fosse réplica da floresta — e não Seu amor pelos arcaísmos importa que o louvor exagerado de Antônio Torres, de quem exercício de verossimilhança; a soma-se à afetação exagerada para prenuncie um romance repleto de Não há espaço para crises ou se tornou grande amigo. De aflição evidente de transpor para o criar parágrafos em que renascem 1931 a 1938, dirige o Boletim problemas ou deficiências — é pre- conflitos no romance. O protagonis- livro cada mínimo elemento ama- os piores momentos de Alencar: de Ariel, revista bibliográfica ciso ir além da desconfiança, gastar ta se refestela em seus divertimen- cujo redator-chefe era zônico, atribuindo-lhe seu nome alguns reais, abrir o livro e conce- tos bucólicos, a possível discussão Agrippino Grieco. No âmbito específico; tudo contribui para a Estava uma manhã esplêndi- der ao escritor a oportunidade de ética é jogada no limbo e os perso- da ficção, deixou: Coivara criação de uma narrativa artificial, da, de sol muito claro e céu azul, comprovar que seu amigo não foi nagens, hábeis contemporizadores, (contos, 1920); Ao embalo que obriga o leitor ao exercício de sem nuvens. No ar luminoso, cor- desleal com os possíveis leitores. simplesmente seguem a vida, cada da rede (contos, 1923); Elisa consultar, página a página, o “Elu- tado de voos e regorjeios, pairava um divertindo-se em seu universo e Helena (1927, romance); A cidário”, formado por cerca de 250 o imenso perfume da mata próxi- Ética e personagens particular — enquanto as corajosas criação e o criador (1928, palavras. Usar a expressão “o lago ma, a luxuriar na gala de seus ver- Em A Amazônia misterio- amazonas caçam, pescam, plantam romance); Vertigem (1934, estava saru”, por exemplo, é conde- des mais vivos. Uma brisa ligeira romance); História puxa sa, Cruls tenta recontar, sob o pon- e se comportam de forma servil. nar a um vazio mental o leitor que fazia estremecer a fronde dos ca- história (1938, contos); e De não domina os regionalismos. to de vista tupiniquim, o romance O desejo de fuga desse pa- pai a filho (1954, romance). jueiros vigorosos, onde concerta- de ficção científica A ilha do Dr. raíso inverossímil surge quando a Mas, fosse este o único pro- vam de súcia, numa traquinada Moreau, de H. G. Wells, publicado esposa de Hartmann, Rosina, que blema do romance, Agrippino azoinante, os grandes bandos de em 1896, obra de caráter darwinis- se torna amante do narrador, pra- Grieco ainda poderia dizer que araçaris, anambés e pipiras que, ta, na qual o autor discute os limites ticamente impõe a decisão, pois Cruls se agarra desesperadamente de momento a momento, acudiam éticos da manipulação biológica de o médico planeja usá-la em suas à barra da calça de Joseph Conrad, aos seus ramos. Ouvia-se também animais e seres humanos — prática experiências. Mesmo a relação cujas narrativas utilizam, inúmeras o rechino de algumas cigarras; e, que hoje recebe o nome eufemístico adúltera é descrita de forma incon- vezes, o vocabulário náutico. pelos sibilos e assobios, macacos de “engenharia genética”. sistente, superficial — e o máximo Na verdade, Cruls não conse- deviam folgar nas fruteiras altas. Depois de se perder durante de emoção que o escritor consegue gue ir além do preciosismo. Tenta uma caçada, o narrador de Cruls oferecer são parágrafos cujo estilo repetir o que Euclides da Cunha já Agrippino acaba isolado em algum ponto da remonta ao século 19: fizera, mas só consegue criar retó- No início do romance, o narra- Hileia, numa tribo composta unica- rica destituída de dramaticidade, dor salienta que é preciso conhecer mente de mulheres, as mitológicas Filtrava-me no sangue a mero discurso ostentatório: a “imensidade da Amazônia para amazonas que o explorador espa- exultação da natureza ambien- poder avaliar a mesquinhez ridícula nhol Francisco de Orellana afirmou te e as minhas narinas arfavam Sumaumeiras gigantescas, que assumem as cartas geográficas, ter visto em 1541. Ali, depara-se sentindo um aroma delicioso. tocaris hercúleos, majestosos ce- quando, diante delas, procuramos com uma utopia silvícola, na qual, a Seria o perfume do seu corpo ou dros, abrindo as ramas no alto, refazer mentalmente algum trecho depender da idade, cada mulher de- a fragrância das corolas recém- faziam o travejamento desse ma- já percorrido”. A Amazônia mis- sempenha uma função predetermi- -abertas, da erva tenra e dos fru- ciço zimbório de verdura, que teriosa sofre de mal semelhante: nada. Tudo é perfeito: da arquitetu- tos maduros? E os nossos lábios se transverberava claridade vaga, representação imperfeita, esta mi- ra — “habitações bem construídas, colaram num longo beijo... deixando o recesso da mata num mese da floresta não é só inveros- ruas regulares, estradas largas, e crepúsculo esverdeado. Aí, numa símil e repleta de figuras desperso- até o arremedo de praças e jardins, Um só personagem tem vida luta surda mas de todos os instan- nalizadas, mas foi construída numa onde muitas árvores deveriam ter própria, individualidade, e se ex- tes, comprimia-se, amotinada, a escala enfadonha, tediosa — e isso sido plantadas pela mão do homem” pressa de maneira natural: Pacatu- legião sem fim dos outros vegetais. é pior do que saber que Agrippino — às relações sociais, estratificadas ba, fiel companheiro do narrador, Árvores portentosas confundindo Grieco realmente exagerou. e plenas daquele desprendimento nordestino eternamente arrepen- raízes e sapopemas na difícil con- feliz que, segundo os socialistas, de- dido da viagem e saudoso de sua quista do solo; troncos seculares veríamos sentir enquanto o garrote gente. Esperto, logo percebe o mal abarcados por cipós constritores; do Estado nos estrangula. que se esconde sob a aparência so- copagens grenhudas entretecidas Tal lugar paradisíaco não teria lícita de Hartmann; e quando é in- de monstruosas trepadeiras; for- nascido, contudo, sem uma história formado das experiências, conclui: quilhas cravejadas de caragua- sanguínea: no século 16, as prede- tás e parasitas; moitas espessas cessoras das amazonas, ao saberem — Eu não lhe dizia que aquele de palmeiras; tufos sombrios de da prisão do grande inca Atahual- não-sei-que-diga tinha de ser muito folhagem; estolhos aculeados e pa e da vitória dos conquistadores miserável? Aqueles olhos de xexéu refilhos gavinhentos rojando pelo espanhóis, liderados por Francisco não enganam. Lá nos meus mun- chão, unhando a galharia, en- Pizarro, decepcionadas com a der- dos a gente já sabe, tipo de olho grimpando-se nos ramos; hastes rota sofrida pelos maridos, mata- azul não presta, tem temperamento colubreantes, volutas sarmento- ram os filhos de sexo masculino e muito sanguinário. Seu doutor en- sas e redouças virentes — tudo fugiram pela “vertente oriental dos tende como é? Não presta não... aquilo revolto, emaranhado, inós- Andes”, vindo cair em plena Ama- E, como eu o interpelasse, a pito, mas borbulhando viço e re- zônia. Apesar do desprezo que, no respeito do que pensava da nossa gurgitante de seiva, na “frescura TRECHO romance, alimentam em relação aos situação, caso tivéssemos mesmo A Amazônia misteriosa eterna da vida orgânica”, subia às homens, uma vez por ano, na “Fes- de ficar prisioneiros, ele respon- avançadas para o azul, num mes- ta das Pedras-Verdes”, recebem os deu-me: mo anseio de luz. varões para um rito que, depois de — Que é que eu penso? Eu algumas horas, se transforma numa não penso nada... — E, depois de É o discurso de quem não viu orgia carnavalesca, afinal essas fe- uma ligeira pausa em que parecia De espaço a espaço, e, pior, não consegue imaginar, ministas ainda obedecem à libido querer se recordar de alguma coi- mas sempre em imensas agarrando-se aos adjetivos, tábua ou à lei da preservação da espécie. sa: — Olhe! E recitou-me: de salvação do escritor medíocre. chusmas, os passarões É nesse lugar idílico que o A desgraça do pau verde No Capítulo 9, o problema narrador se depara com Hartmann, É ter um seco encostado, calavam-se serenamente se agiganta. O canto do uirapuru médico alemão que, a princípio, es- Vem o fogo, dá no seco, “do azul e de asas ao pairo, é formado de “vocalizações ar- conde os motivos de estar ali há oito E fica o verde queimado. gênteas, notas de cítara e violino, revoluteando em lindos anos. No entanto, após rápida inves- Logo a seguir, inquiriu- harpejos, estridências de sistro e tigação, nosso protagonista desco- -me: — Seu doutor entende como voos espiralados, vinham suavidades de flauta, o chocalhar bre as experiências que ele realiza é? — Fiz que não com a cabeça, e ter às nossas vizinhanças. de muitos guizos...”. O pássaro é com crianças e adultos, dando vida ele concluiu: — Pois é. O pau ver- “cantor mágico” e “instrumentista Era tal a profusão dos a mutações excêntricas ou, prática de sou eu... O doutor foi vigiar as incomparável”; a melodia, “acari- NOTA mais simples, alterando, por meio bruxarias desses barbaças e agora corpos brancos que se ciadora e envolvente”; e, depois de Desde a edição 122 do Rascunho de uma lobotomia específica, os cen- paga o justo pelo pecador. diria uma abundante e alguns segundos de silêncio, “as es- (junho de 2010), o crítico Rodrigo tros cerebrais da fala e da memória. calas recomeçavam cálidas, vivas, Gurgel escreve a respeito dos singular nevada, caindo Apesar das aberrações cria- Movido por incrível senso ondulantes”. Quando o uirapuru principais prosadores da literatura das pelos experimentos — o que prático, medroso, bem-humorado, de chofre sobre as galas se afasta, os “trinados” ficam “cada brasileira. Na próxima edição, Paulo pode nascer, por exemplo, de um parcial, religioso, fiel ao poder das da natureza verde. vez mais flébeis e amortecidos pela Setúbal e A marquesa de Santos. 169 • maio_ 2014 19 Escritores e caubóis O autor precisa pensar através da forma, da história, do ritmo, da palavra, da realidade ficcional

: : Carlos Eduardo Pensar. Pensar através da forma, Economistas podem se tornar ótimos escritores, res problemas estruturais, conso- de Magalhães da história, do ritmo, da palavra, lidado faz décadas na ditadura de São Paulo – SP da realidade ficcional. porque pensam o mundo, e por isso é bem mais Getúlio Vargas. E se a corporação Quais suas influências literá- é ótima para defesa de interesses, iteratura é arte em sua rias, a quem admira, o que conhece interessante conversar com um economista para a burocracia endêmica, para forma escrita e escritores de nomes importantes é o que co- a sobrevivência porque paga o pão são aqueles que a pro- mumente se pergunta a escritores. sério do que com um escritor. de cada dia, não faz bem à literatu- Lduzem, e que só existem A técnica do ofício é outro dos te- ra — nem ao país, diga-se. Em tem- através de suas obras. São as obras mas principais. Reflexões sobre po, a relação entre autor e editora é que definem “ser escritor”, não o literatura é o que acaba pautando bem pessoal e deve ser duradoura, contrário, e seu objeto é o mundo, suas falas. Talvez porque parte das nar ótimos escritores, porque pen- que espanta os aventureiros”. O a formação de um autor é um in- ou sua percepção do mundo, ou o pessoas que consomem essas pa- sam o mundo, e por isso é bem jovem não havia entendido nada. vestimento de longo prazo. Se hou- mundo interiorizado por ele que lestras e entrevistas têm por inte- mais interessante conversar com A arte é aventura. Uma aventura vesse uma incompatibilidade qual- emerge modificado palavra a pa- resse a literatura, não o mundo. A um economista sério do que com do espírito. A arte não tem dono. quer, ou uma antipatia à primeira lavra. O objeto de acadêmicos na palavra escrita e a palavra oral têm um escritor. Mas é muitíssimo A arte sem aventureiros não é vista — como por exemplo sinais área de letras, e dos críticos, é a mecanismos de existência diferen- mais interessante ler um grande nada. Ele usava a palavra aventu- de arrogância —, o livro não seria obra dos escritores. Literatura não tes, quase antagônicos. Na pala- escritor que conversar com um reiro como alguém sem currículo, selecionado, por melhor que fosse. é o objeto dos escritores, que pen- vra oral é permitido, se é que não grande economista, ou um grande alguém de fora — de fora do quê, Mas não aconteceu isso. sam, ou deveriam pensar, o mun- é quase obrigatório, o improviso. médico, ou um grande qualquer da academia, do mercado edito- Me vem à cabeça Casa toma- do. Um escritor que só bebe, vive Na boa palavra escrita, não, nada coisa. É uma conversa a três, você, rial, do sindicato dos artistas, da da, conto que abre o livro Bestiário, e fala de literatura, em regra, tem é improviso. A reflexão dos escri- você mesmo e o escritor em litera- “tchurma” de escritores e agita- do escritor argentino Julio Cortázar. um trabalho pobre, um clone, uma tores deve estar a serviço de sua tura. Em regra, economistas são dores culturais, das redações dos Será que conseguiremos escapar? cópia. Mesmo que sua técnica seja produção literária, é de lá que deve bons pra analisar o que é dado, o cadernos culturais dos periódicos O escritor é uma antena que apurada, e dia a dia a técnica está ser extraída, não explicada, não que já foi, enquanto um grande es- importantes? Então a literatura, ou fica isolada em cima da casa, ele está mais apurada, o que pode levar a por ele. Seja qual for o escritor, as critor vai além. Em sua obra, defi- outra arte, exige currículo para ser fora da engrenagem do motor e ob- grandes enganos. E aí a função do respostas dadas em palestras são ne seu tempo, molda economistas, produzida em alto nível? Claro que serva o mecanismo, ele é o fotógrafo crítico, perceber e dizer. Pensar o sempre parecidas porque as per- médicos, pessoas de gerações abai- não. E não sejamos ingênuos, claro invisível das festas de casamento. mundo é também pensar de ma- guntas são as mesmas. Pergunta xo da sua. Deve ser por isso que es- também que isso tudo aí em cima Ele é o caubói dos filmes, que passa neira original e única, moldada por boa é aquela que só o autor pode critores são retratados velhos. funciona, e melhor do que deveria. pela cidade, dá um monte de tiros, vivências únicas, obsessões, ideias, responder, assim como livro bom Em 2011, a Grua, editora em Carreira literária não existe, existe vai embora solitário no cavalo que frustrações, raivas, ressentimen- é aquele que só o autor pôde escre- que trabalho, lançou uma Tem- uma sucessão de livros de um au- sacrificará quando adoecer. E de- tos e sentimentos únicos. E pensar ver. Aliás, esse é um dos segredos porada de originais para captar tor. Existe sua trajetória literária, pois de um tempo ninguém mais se tem tudo a ver com literatura. Pen- de ensaios bons. E ensaio não é novos livros e bons autores. Fazia que é diferente de carreira. Carrei- lembrará dele, de seu nome, de seu sar, não brincar, nem se divertir uma dissertação de escola nem um parte do regulamento uma breve ra é coisa de empresas e de reparti- rosto, mais sua ação terá modifica- ou fazer do texto um amontoado texto jornalístico. Ensaio é uma li- biografia do autor. Um jovem que ções públicas, ou da burocracia das do a cidade para sempre. de sacadas inteligentes, tampou- teratura não ficcional. trabalhava numa espaço cultural letras, traço cultural do corporati- Bons filmes de caubói tam- co torná-lo uma sessão de terapia. Economistas podem se tor- comentou sobre isso “É bom, por- vismo brasileiro, dos nossos maio- bém são uma forma de arte.

Desafios da travessia

: : Vilma Costa radicalizam os efeitos dos danos a amou. O corpo em carne viva conhecida que escolheu para casar: rIO de Janeiro – RJ causados no sujeito. As declarações constitui-se enquanto alegoria da “Minha ex-mulher é um ser narcí- de desamor da ex-mulher no diário fragilidade desse sujeito exposto à sico inteiramente doentio, o que a ivórcio, de Ricardo arrancam-lhe a pele do corpo, rou- chuva, ventos e olhares do mundo. impede de enxergar qualquer coisa Lísias, é um romance bam o ar dos pulmões e o ameaçam Ferida aberta de uma intimidade além de um nome em jornais e re- que, sob o calor de uma de uma morte definitiva. “Resolvi exposta ao domínio coletivo. Es- vistas e vários cinquentões semipo- separação, discute o não falar que às vezes tinha aluci- paço privado e espaço público são derosos na cama”. amor,D a crueldade e a ética ameaça- nações e achava que estava dentro constituídos por porosas frontei- Se por um lado, as declara- da pelo desamor e a falta de escrú- de um texto meu.” ras que se intercomunicam, como ções do diário deixam Ricardo em pulos. O protagonista recém-casado Divórcio Para suportar e buscar supe- o mundo interior do personagem, carne viva, por outro, o seu ro- encontra um diário da mulher que Ricardo Lísias rar a desestruturação afetiva por desprovido da proteção da pele do mance crava as unhas numa feri- o coloca frente a frente com doloro- Alfaguara que passa, lança mão de dois dispo- corpo está exposto e é atravessado da aberta na sociedade brasileira sas revelações. Desencadeia-se aí a 240 págs. sitivos emergenciais e definitivos: pelo mundo exterior, suas intrigas, pela hipocrisia de um determinado construção da trama, na qual o per- o treino para a corrida e a escrita suas farpas e venenos. setor de classe, que o narrador de- sonagem narrador empreende uma compulsiva da experiência vivida. Os quinze capítulos são cor- nomina como a elite do nosso país. busca de respostas sobre a esposa, O romance é estruturado em tados por fragmentos do diário da O reboliço está formado e ameaças sobre si mesmo e sobre o mundo tira dos fatos narrados. Esta seria quinze capítulos a começar por ex-mulher e, de certa forma, ajuda de processos e coisas do gênero que ambos habitam. uma falsa questão. Muito mais rica Quilômetro um – um corpo em a construir a personagem. É bom passam a ser dirigidos ao escritor- Conta com elementos bio- é a leitura crítica que procura deter- carne viva. A partir daí, seguem os lembrar que, apesar da concretude -personagem. Ele responde apenas gráficos de uma suposta “realida- -se aos mecanismos de construção demais com a numeração antece- documental que o discurso do diário com uma discussão metaficcional, de” e, em cima desses elementos, narrativa e da relação estabelecida dida pela palavra Quilômetro, até possa apresentar, a seleção dos frag- na qual avalia o seu fazer literário e elabora a tensão narrativa na qual por seus elementos. Eles se movi- terminar no capítulo Quilômetro mentos parte do ponto de vista do o produto do seu trabalho. É, nesse vão se constituindo seus demais mentam num jogo complexo que quinze – octogésima sétima cor- narrador-personagem. As escolhas sentido, bem racional e detalhista, personagens. Apesar de o nome coloca em discussão aspectos de rida internacional de São Silves- dos depoimentos da senhora (X) é tentando adiantar-se, desnecessa- do personagem-narrador coincidir uma humanidade ferida, buscando tre. Correr e escrever, escrever e feita pelo protagonista, que põe em riamente, às críticas que possam com o nome de capa do romance, se reerguer através da escrita de si e correr passam a ser as ações sobre destaque a frivolidade e a cruelda- vir. “Divórcio é um romance so- ou seja, o nome do autor, o sujeito da leitura de seu tempo. as quais o personagem se debruça de que a caracteriza, aspectos que bre o trauma.” Quanto às ameaças narrativo situa-se como o eixo pro- Ricardo Lísias, o personagem- na busca de resgate da sua digni- ele até ali desconhecia, movido pela da senhora (X) está tranquilo: “Mi- blemático diferenciado na trama. -narrador, tem como primeira ima- dade afetiva e de sua recuperação paixão. Os trechos do diário vão nha ex-mulher não existe: é perso- Estabelece uma encenação de si e gem de si mesmo a de um homem e superação física. É um homem pouco a pouco tirando a máscara da nagem de um romance”. de sua intimidade através do tex- morto: “Depois de quatro dias sem ferido, que nesses dois aspectos mulher que se apresenta: “Eu gosto A largada na corrida de São to. A partir do momento em que dormir, achei que tivesse morrido. se encontra dilacerado. “O cor- de ser casada com um escritor. É só Silvestre e o ponto final no seu li- a escrita se efetiva, personagens e Meu corpo estava deitado na cama po sem pele está mais exposto na esconder certas coisas e pronto. Eu vro trouxeram ao personagem força ação ganham vidas próprias e se que comprei quando saí de casa. rua. Tentei ficar quieto no cafofo, sou uma mulher atraente, não tenho física e equilíbrio emocional neces- constituem de outra natureza. São Olhei-me de uma distância de dois mas o medo de morrer de novo me dificuldade de achar amantes, nun- sários para virar a página e deixar formados, em última análise, sobre metros e, além dos olhos vidrados, deixava trêmulo e o suor, toda vez ca tive. (...) Sou a maior jornalista de para trás a dor tão aguda da sepa- o papel, de palavras e tinta: são ele- tive coragem apenas para confe- que eu deitava, incomodava a car- cultura do Brasil”. ração traumática. Para Ricardo Lí- mentos de uma narrativa literária. rir a respiração. Meu tórax não se ne viva. O jeito é andar.” O corpo Muitos desses fragmentos se sias, autor e personagem, “A arte é A relação autor-personagem acaba movia”. Apenas a dor insuportável sem a pele dói, os brios e os sen- apresentam diferenciados da voz do uma possibilidade de resistência”. sendo íntima e pode se dar, muitas de quem vai perdendo toda a pele timentos gritam. A premência da narrador tanto do ponto de vista grá- Bem que ele “gostaria de contar vezes, por parte do leitor curioso é que o remete para a condição de morte impulsiona para a vida, cor- fico quanto do estilístico. É um dis- tudo”, mas esbarra sempre com a que busca também respostas e sen- ser humano ainda vivo. O estado de rer, superar limites, escrever sobre curso simplório demais para ser es- impossibilidade de traduzir em pa- tidos entre literatura e vida. torpor e delírio, causado pelo trau- o vivido, sobre o sofrido para não crito pela maior jornalista de cultura lavras toda dor, toda indignação, Entretanto, o material au- ma por que passa, coloca em dúvida esquecer, para não sucumbir. É do Brasil. Aparecem repetida vezes todo seu amor. Empreender a tra- tobiográfico é apenas a matéria- a “sinceridade” ou mesmo a “sani- imbuído dessa necessidade de re- mesclando o texto narrativo, repe- vessia já é uma vitória sobre o silên- -prima dessa produção ficcional. dade” desse “eu” em crise. “Tenho gistro que empreende a invenção tição que fere, mas como um ritual cio e a morte. Afirma no romance: Segundo a reflexão de Roland Bar- pontos obscuros na minha vida de memórias. Em dado momento de sacrifício expurga, facilitará mais “Acredito que a arte deva desafiar thes, mesmo em se tratando de uma entre agosto e dezembro de 2011. do livro, algumas fotos de família, tarde a cicatrização. “O Ricardo é um qualquer tipo de poder. Divórcio autoficção, é importante que ela Neles devo estar morto.” Alguma lembranças do avô libanês e de retardado, não tenho dúvidas, mas é a minha profissão de fé contra seja lida como um jogo de ficção, coisa morreu, é inegável. A morte histórias esparsas surgem, quase mesmo assim é um escritor, o que essas neoditaduras”. E a literatura, ou seja, como algo que pertence a simbólica de perdas irreparáveis é como digressões da trama central. me preserva de certas coisas.” consequentemente, apesar de todas um personagem de ficção, inven- fato em separações abruptas como A leitura do diário da mu- Os trechos do diário vão mos- as suas limitações, é um canal para tado ou reinventado por um autor a de Ricardo Lísias. Mas o perso- lher, meses depois do casamento, trando aspectos mais íntimos da soltar o grito, reconstruir uma nova de carne e osso. Inútil, portanto, a nagem vai mais além e incorpora revela, além da traição, o despre- senhora (X) e ajudam o narrador pele, nova proteção, recobrar as especulação sobre verdade ou men- dados de realidade palpáveis que zo expresso por ela ao homem que na sua construção da ilustre des- forças e tocar a vida. 169 • maio_ 2014 169 • maio_ 2014 20 21

tah muito antes de algum míssil, tanto israe- a cada virada de página. Talvez o que Harris demoníacos são levados ao limite da ironia, lense como palestino, atingir a faixa de Gaza. quer que saibamos é o mesmo que ele apren- em um procedimento que daria inveja a The- É claro que, na década de 1970, Gaza ainda deu com a parábola de um sultão, que dizia: odor Adorno; já que, ao mesmo tempo em não era notícia, e ambos os povos ainda so- eu não possuo falcões, eles moram comigo. que busca alguma humanidade no psicopata friam as cicatrizes da Guerra dos Seis Dias — E como toda a caçada, há um momen- Lecter — sabemos, por exemplo, que ele tem A caçada pelo poder além de Munique, que, até então, tinha sido to em que você deixa de ser o caçado para se a sua origem homicida explicada porque sua algo que ninguém poderia vislumbrar que tornar o caçador — afinal, mais cedo ou mais irmã mais nova, Mischa, foi devorada por va- poderia ser executado. tarde, nós cumprimos todos os papéis nesta gabundos na Segunda Guerra Mundial — ele Domingo negro parece ser mais um ro- vida. Mas como fazer para continuar na caça- retira toda a coragem que antes esperávamos mance de suspense caça-níquel sobre a caçada da e não ser exterminado nela? É em busca de Clarice Starling, chegando ao ponto de A obra de Thomas Harris escancara a incapacidade do de gato-e-rato contra o tempo, mas já estabelece desta resposta que Harris escreve O silêncio jogá-la na cova dos leões, quando Harris ter- ser humano de lidar com a infinita imaginação do medo o tema sobre o qual Thomas Harris desenvolve- dos inocentes (1988), em que Hannibal mina a sua história e a transforma na amante ria nos livros seguintes: a incapacidade do ser Lecter deixa de ser um mero demiurgo para se hipnotizada e fascinada de ninguém menos humano de lidar com a infinita imaginação do tornar um eficaz psicopompo na vida de Clari- que... Hannibal Lecter. medo. Todos os personagens, de Dahlia Iyad a ce Starling, jovem agente do FBI que adentra Sim, a brava Clarice se encanta perante David Kabakov, passando pela amante deste, nos labirintos macabros do crime, em busca os braços de sua aparente nemesis. Mas não : : Martim Vasques da Cunha Ninguém poderia dizer. No caso de Rachel Bauman, até o revoltado Michael Lan- de Buffalo Bill, um serial killer que assassina será que sempre foi assim? Nada foi muito São Paulo – SP Martin Amis, a expectativa foi tanta que ele der, respiram e suspiram o medo. E Harris o mulheres gordinhas e suculentas para depois simples no mundo macabro de Thomas Har- acabou frustrado. Ou não? Em seu texto so- percebe como poucos, até mesmo nos mínimos se transformar em uma delas (sim, no mundo ris, apesar de tentarem catalogá-lo na prate- O AUTOR bre Hannibal, publicada na finada revista Thomas Harris detalhes, como podemos ver no seguinte tre- predatório de Harris, os psicopatas não en- leira dos best-sellers. Na verdade, ele faz pela For those of us climbing to the top of the food chain, Talk, editada por Tina Brown, a mesma jor- cho, que faria inveja a qualquer descrição feita tram no rol do politicamente correto: ou são literatura popular (de massa, como diriam os there can be no mercy. nalista que quase conseguiu destruir a The Nasceu no dia 11 de abril de por Martin Amis (e que teria um número muito deficientes, ou são transformistas sexuais). estudiosos da indústria cultural...) algo que a There is but one rule: New Yorker (David Remnick jogaria depois 1940 na cidade de Jackson, maior de vocábulos, sem dúvida): Não se sabe se Harris tinha plena noção de literatura de alta cultura esqueceu há muito hunt or be hunted. Welcome back. a pá-de-cal) e que ainda hoje polui a nossa Tennessee. Começou a que o seu romance pode ser lido como uma tempo: comunicar ao leitor aquela saudável sua carreira como repórter Francis Underwood, em House of cards (S02, E01) leitura na internet com o seu (atentai para o A convalescência de David Kabakov espécie de iniciação religiosa de uma alma suspeita pelo poder que faz uma sociedade policial tanto nos Estados nome da publicação, leitores!) inocente aos redutos infernais da condição permanecer sã. Porque os romances de Har- The daily be- Unidos como no México, e foi no apartamento da Dra. Rachel Bauman 1. ast, o escritor inglês deixa claro a sua admira- também editor da Associated foi uma época estranha, quase surreal, para humana, mas é de se notar que, neste livro, ris são sobre como um homem qualquer — “Ah, o best-seller! Esta incógnita que os literati ção pelos livros anteriores de Harris. Aliás, é Press, em Nova York. Seu ela. Sua casa era clara e opressivamente em Lecter não é mais um representante do medo: o dr. Hannibal Lecter, Dahlia Iyad, Clarice não querem compreender! Como eles podem existir? mais do que uma admiração: se percebermos primeiro romance, Domingo ordem — e ele chegou nela como um gato ele é o próprio medo, que instiga a brava Cla- Starling, Paul Krendler — se deixa envolver Como eles podem ter algum sentido nesse mundo onde bem — e usarmos dos instrumentais que nos negro, foi publicado em 1975, selvagem que voltou após uma briga na chu- rice a ir ao fundo de si mesma e enfrentá-lo na sua libido dominandi, na sua vontade de nós buscamos o absoluto na arte e queremos destruir a foi dado por Herr Freud — Amis sofre de uma seguidos depois de Dragão va. O tamanho e a proporção dos quartos e com a coragem necessária que só o mundo poder, contagiando os outros ao seu redor escravidão do mercado? Afinal, o que são esses mons- transferência imediata com o criador de Han- vermelho (1981), O silêncio dos móveis pareceram mudar para Rachel permite que os astuciosos sobrevivam. para imitá-lo sem pensar nas consequências trengos? Eles ocupam espaço em nossas livrarias, con- nibal Lecter. Ele queria ser Harris. O autor de dos inocentes (1988), com a presença de Kabakov e Moshevsky no Para permanecer viva na caçada, Star- morais desses atos, deixando-se fascinar pelo Hannibal (1999) e Hannibal somem o papel que saem das árvores, gastam os bytes romances invulgares, mas também irregula- lugar. Para homens tão robustos, eles não ling só pode usar da única faculdade que um Mal e pelo medo, controlando a quem quiser, — A origem do mal (2006). dos nossos computadores, cansam as nossas retinas tão res, como e ser humano possui quando se depara com de todas as formas — do mais baixo ao mais A seta do tempo A viúva grá- Todos os seus livros foram pareciam ocupar muito espaço. Isso foi um fatigadas com tramas que ninguém consegue entender, vida, tinha prestígio no petit monde literá- Thomas Harris por transformados em adaptações alívio para ela, mas depois começou a pre- a companhia das trevas: a imaginação. E alto dos escalões do governo —, chegando ao personagens que jamais existirão na vida real, diálogos rio (tudo bem que ser filho de Kingsley Amis Ramon Muniz cinematográficas de grande ocupá-la um pouco. O tamanho e o silêncio quando usamos esse termo, não estamos fa- ponto extremo de comê-las para ter o domí- frouxos, narração desastrosa, a ‘suspensão da descren- ajudava um pouco), mas faltava-lhe... sucesso sucesso nas bilheterias. formam uma estranha combinação na natu- lando de criar mundos alternativos ou então nio completo de seus desejos e de quem não ça’ levada ao ponto de ser quase um culto, uma fé sem- — o que, em termos mais claros, significa di- reza. Eles são os instrumentos da danação. de insistir nas fugas da realidade devido ao se submete à sua vontade. pre em busca de um milagre — o de que algum exemplar nheiro. Não por acaso que, na época em que fato de que a pressão existencial torna-se Talvez seja por isso que Thomas Harris desse gênero finalmente tenha alguma qualidade a ser sua resenha sobre Hannibal foi publicada, Será que os livros de Harris também algo no limite do insuportável. Falamos da- não dê mais declarações à imprensa, tornan- preservada. Mas e o leitor?, você me pergunta. O leitor Amis ainda sofria com o fato de que pedira são “instrumentos da danação”? Bem, Do- quilo que, às vezes, é a única coisa que nos do-o assim uma espécie de Thomas Pynchon deve ter alguma opinião — afinal, se osbest-sellers ven- a Andrew Wylie, conhecido no mercado pela mingo negro não aliviava na sua perspec- resta: colocar-se no lugar do Mal e imagi- da literatura de massa (como bem apelidou dem é porque eles dialogam de alguma forma com este alcunha de “O Chacal”, um adiantamento tiva de que, mesmo com um caçador arguto nar como ele age, sem se deixar contaminar Stephen King). Ambos os autores e seus res- membro rarefeito do mercado editorial. O leitor?, eu de 2 milhões de dólares para um romance como Kabakov, o terror podia, de fato, ter a por ele e, daí, extrair um Bem maior. Eis a pectivos livros têm um código secreto, uma respondo com outra pergunta. O leitor que vá às favas!” que ainda sequer tinha sido escrito — e que última palavra. O mesmo pode-se ser afir- razão deste livro, que também fez sucesso mensagem que poucos conseguem decifrar: O pensamento acima foi retirado de forma cirúrgica depois seria o admirável A informação — mado no segundo romance de Harris, publi- e deu todo o dinheiro que Harris merecia, a de que vivemos em uma sociedade reple- de um “fluxo de consciência” (oustream of consciouness, simplesmente porque ele não tinha dinheiro cado seis anos depois do primeiro — o estu- chamar justamente (no título original) “o ta de psicopatas em atividade ou esperando se quisermos mais técnicos, mais precisos) de um desses para pagar um delicado tratamento dentá- pendo Dragão vermelho (1981), no qual silêncio dos cordeiros”. O cordeiro, é claro, apenas a possibilidade de agir. Somos to- seres iluminados que fazem parte do petit monde literário rio que, entre outras coisas, envolvia retirar somos enfim apresentados ao Dr. Hannibal representa o Cristo sacrificado — mas o seu dos predadores em potencial — e não temos — os aspirantes à fama, aqueles que acreditam piamente todos os dentes da arcada superior, além de Lecter, mesmo que o livro não seja sobre ele, silêncio é a estratégia mais forte que deve como escapar da caçada que nos envolve. que estão prontos para realizar a arte que superará todas extirpar um inchaço na gengiva, suspeito de e sim sobre outro personagem memorável, ser usado contra o Mal Lógico que Hanni- Cedo ou tarde, seremos devorados ou tere- as artes, o romance que calará a boca de todos os roman- ser um tumor canceroso. Alguns anos depois, Will Graham. O primeiro capítulo já mos- bal Lecter tenta imitar. Será este mesmo si- mos que devorar os outros. ces, mas, ao mesmo tempo, não conseguem fazer nada, Amis voltou com os dentes consertados, livre tra que Harris domina o bom e velho estilo lêncio que, no meio da caçada, apascenta os Em tal mundo, não há espaço para a só ficam reclamando, a olharem sem nenhum brilho em de ter um câncer, mas, nesse meio tempo, Hemingway, em que toda a história do que falcões que existem dentro de nós e que nos inocência — e este parece ser o tema do ro- seus olhos para as estantes das livrarias, abarrotadas de brigou com sua antiga agente, Pat Kavanagh, o leitor precisa saber que aconteceu é con- impelem a voar acima das nossas possibili- mance mais recente de Thomas Harris, Han- best-sellers e alguns clássicos da literatura, resumindo as que era, por acaso, esposa de um de seus me- tada por meio de diálogos secos, precisos e dades, quando, no fundo, temos de usar a nibal rising (2006), justamente o livro que suas divagações a uma única pergunta: Por que eu não lhores amigos, o escritor Julian Barnes. sem nenhuma espécie de sentimentalismo. imaginação para saber que sempre existirá narra como foi a transformação de uma sim- consigo escrever algo parecido com isso e ter algum su- Pois é: essas são as coisas que fazemos Graham é um gênio da psicologia que tem uma caveira atrás do rosto. Lecter tenta en- ples criança a um psicopata sem escrúpulos. cesso para pagar as minhas contas? por dinheiro. Mas também por poder. Afinal, o dom — se podemos chamá-lo assim — de ganar Clarice, mas não consegue; no final, Ao mostrar que o Mal sufoca até mesmo a A resposta deveria ser, se ele conseguisse ouvir a si o que Martin Amis queria ao mostrar o seu ter empatia com assassinos em série, em ela captura Buffalo Bill por conta própria, provável bondade que existe no coração de mesmo: Por que você sofre daquilo que é mais ordinário desapontamento por Hannibal em sua rese- particular com os psicopatas violentos que com o apoio de seu verdadeiro mentor, Jack um menino traumatizado, Harris também no petit monde literário — a inveja. Mas esta nunca apa- nha na Talk, além de provar a um leitor mais perturbam o dia a dia do agente do FBI, Crawford, e vence o medo dos seus traumas, mostra que o poder é, antes de tudo, uma rece por inteiro e às claras, correto? Afinal, quem admi- arguto que ele tinha saudades do Thomas Jack Crawford, que o convida para trabalhar dos seus obstáculos interiores — mesmo escolha moral que independe do que feito tiria para alguém ao seu lado que sofre exatamente do Harris dos outros tempos? Assim como Amis no seu departamento. O motivo? Agora há que seja por pouco tempo. contra uma pessoa e sim de como ela opta mais vergonhoso dos pecados — a inveja, esta serpente não economizou na admiração do passado, mulheres sendo mortas e estranguladas em a reagir com o desejo de vingança ou com venenosa, que muitos comparam a um câncer, outros a ele também não economizou nos adjetivos suas casas — e descobriremos depois que o 3. a aceitação da precariedade deste mundo. igualam aos dejetos que saem de nós, e que, no fim, pa- daquele presente momento de sua vida: de responsável por tudo isso é Francis Dola- Porque quem disse que o caçador é obri- E, no meio disso tudo, há sempre a caçada ralisa o aspirante a escritor porque faz aquilo que todo o acordo com seu rigoroso padrão estilístico, a rhyde, um sujeito com lábio leporino e que, gado a continuar na caçada? Muitas vezes, ele atrás de um objeto misterioso e intangível pecado faz: estraga a sua vida? Ninguém, óbvio. Contu- prosa de Harris, que antes era repleta de ob- cada vez que mata alguém, acredita estar pode querer simplesmente desistir — mesmo que poucos conseguem definir. Será ela que do, lá está ela, presente em cada página de um livro mal servações agudas que davam dignidade a per- mais próximo de se tornar o dragão verme- quando sabe que isso é impossível. É o que faz o leitor perceber que talvez a grande lição escrito ou que jamais será escrito, presente em cada ne- sonagens imersos em um mundo de predado- lho que embeleza algumas gravuras do poeta acontece em Hannibal (1999), a terceira de Thomas Harris aos seus leitores, sejam de gociação de contrato no mercado editorial, presente em res, agora havia se tornado uma “necrópole e pintor William Blake. Para saber mais exa- parte da saga Lecter e o romance onde final- alta ou baixa cultura, tem uma força bené- cada crítica literária que, para se autoenganar, resolve do vocabulário” devido a sua “vulgaridade tamente como esse sujeito pensa, Crawford mente o conhecemos melhor, apesar de isso fica muito mais efetiva do que os arabescos temperá-la com o molho do esnobismo. virtuosística” em que o criador de Hannibal sugere a Graham que vá visitar na prisão o não ser muito recomendado tanto pelos psi- de Martin Amis — uma lição muito próxima Vamos selecionar, por exemplo, uma crítica sobre Lecter havia “ficado gay” pelo seu persona- Dr. Lecter, que foi justamente capturado cólogos como por literati como Martin Amis. dos conselhos de Auberon Waugh (sim, o um determinado livro que foi um best-seller lançado há gem mais famoso e, de psicopata divertido, o pelo jovem psicólogo graças a um golpe de E quando falamos que conhecemos melhor, filho de Evelyn), que uma vez escreveu: “A cerca de quinze anos — crítica talvez não seja a pala- transformara em uma espécie de “Camus da sorte (palavras do bom doutor) e que, com isso significa que Harris nos obriga a entrar sociedade deve aceitar que o desejo de poder vra adequada, já que atualmente elas foram fatiadas a carniça”, repleto de inquietações existenciais isso, guardou alguma mágoa do evento. no seu “palácio da memória” — uma artima- é uma desordem de personalidade por si só, ponto de serem denominadas como “resenhas”. Trata- embaladas no mais dissoluto do esnobismo No prefácio comemorativo aos vinte nha que o “rei-dos-psicopatas” emprestou como o desejo de ter uma relação sexual com -se do texto assinado por ninguém menos que Martin — algo que, claro, Amis podia entender per- anos de publicação do seu livro, Harris, em dos renascentistas para reconstruir e colocar uma criança ou de sentir o gosto de borra- Amis sobre o então superaguardado romance escrito feitamente, pois ele era um de seus represen- uma rara declaração, afirmou que Hannibal em dúvida o seu passado mais do que nebu- cha embaixo de suas roupas. (...) A política, por ninguém menos que Thomas Harris — a continua- tantes mais ilustres. Enfim, o enfant terrible Lecter surgiu em sua mente quando, uma noi- loso —, não para humanizá-lo (como pensou nunca canso de me dizer, é para deslocados ção do best-seller O silêncio dos inocentes (1988): da crítica literária inglesa não gostava mais te, tentava entender os latidos e os gemidos erroneamente Amis), mas para entender sociais e emocionais, gente com inteligência Hannibal (1999). Para quem ainda não conseguiu so- de Harris — mas, ainda assim, mostrava o seu dos cães selvagens que rodeavam a sua casa. como um homem qualquer se tornou o pró- limitada, que têm nada além de rancor em breviver ao fenômeno midiático dos últimos quarenta poder ao petit monde de dissecar a quem an- homem, apesar de também ter uma obra irregular (no nosso padrão de qualidade, em nasceu no dia 11 de abril de 1940, trabalhou Ele precisava de alguém que fosse um duplo prio medo e como contaminou os corações e suas emoções. O propósito da política, para anos, aqui vão algumas informações — o Hannibal no tes era visto com um old master que nunca seus quase sessenta livros publicados, sobra-se apenas Different Seasons, uma coleção como jornalista criminal nas publicações da de Will Graham — de alguém que fosse o seu as mentes de todas as outras pessoas — em eles, é ajudá-los a superar essas limitações caso é ninguém menos que Hannibal Lecter, o psiquia- errara na prática do seu ofício. de novelas caprichadas e que mostram que o bardo de Maine poderia ter sido um Mar- cidade de Waco, Texas, depois foi repórter igual, mas também fosse superior em algo ina- especial, a da brava Clarice. e esses sentimentos de inferioridade e com- tra, médico e genial psicopata que, nas horas vagas, Na mesma época, o caderno dominical tin Amis do Sul), não precisa fazer adiantamentos vultosos para pagar uma mera conta na Associated Press, até que, junto com mais preensível. E conseguiu: o Lecter que surge No final deO silêncio dos inocentes, pensar as suas inadequações pessoais na tinha o costume de comer os órgãos de suas vítimas, do New York Times publicava outro texto ortodentária. Mais: ele não quer ser Thomas Harris — e é muito provável que, no caso, o dois amigos, inspirou-se no atentado terro- em Dragão vermelho é um ser que controla Lecter havia conseguido escapar da prisão — procura pelo poder. E isso sem dúvida causa contribuindo assim para o apelido que seus pares (e, sobre o mesmo livro. Desta vez, contudo, o inverso seja o verdadeiro, já que Harris gostaria de ter dinheiro suficiente para pagar os rista ocorrido nos Jogos Olímpicos de Muni- toda a arquitetura invisível do romance — e e agora vamos acompanhá-lo em suas andan- muito mais infelicidade do que felicidade”. depois, juízes) lhe dariam de “Hannibal, the cannibal” autor era ninguém menos que Stephen King. seus constantes cursos no Le Cordon Bleu. Ainda assim, é de se louvar a generosidade de que e os três decidiram escrever um romance o que era para ser mais um livro comum de ças por Florença, em que Harris nos confun- Para irmos além de toda essa tragédia, (infelizmente, a tradução literal desta expressão a faz Para quem ainda não sobreviveu à avalanche Stephen King ao resenhar Hannibal. Ele faz aquilo que o crítico literário deveria fazer: sobre terrorismo internacional. Os amigos procedimento criminal torna-se um autêntico de se o esnobismo de seu personagem mais talvez possamos terminar com uma excla- perder o trocadilho fonético; se o literati em questão é de mídia, todos já devem saber quem é King: analisa o livro pelo o que ele é, querendo entender quais foram as intenções do autor e, abandonaram o projeto, mas Harris conti- plano macabro de vingança em que Hannibal famoso poderia ser também do autor (ou se mação importante de Ortega y Gasset — na monoglota — como muitos que pululam por aí —, não considerado o mestre do gênero horror, este dessa forma, ajudando o leitor comum, este ser tão abstrato no petit monde, a se guiar se nuou — e o resultado foi um livro que ficou (já podemos chamá-lo com essa intimidade?) trata de mais uma caipirice no melhor estilo verdade, um quase-imperativo que se parece podemos fazer nada a respeito). sim é um escritor que vende, que faz sucesso, deve ou não comprar o romance. Isso sim é a mais honesta técnica de venda — quando o em primeiro lugar na lista dos mais vendidos enfim ensinará ao pobre Graham quais são as jeca sulista), enquanto a polícia está no seu muito com uma ordem militar — e que é um Hannibal foi o terceiro livro de uma série que que dá muito dinheiro. E olhem só: ele afir- crítico entende o seu objeto sem nenhuma vontade de querer exercer o seu poder em um do New York Times e um polpudo pagamen- marcas permanentes de se viver em um mun- encalço e Clarice Starling enfrenta a verda- aviso de profunda raiz moral: “Alerta!”. Em logo os especialistas em marketing tentaram apelidá-la mava que Hannibal era uma maravilha. Era mundo que não está nem aí para o verdadeiro mundo ao nosso redor. to para uma versão cinematográfica, que se- do onde o medo detém a única imaginação deira descida aos infernos que só a maturida- um livro da maturidade chamado La caza y de “Trilogia Lecter” pois ela vinha em sequência de dois exatamente o contrário de tudo o que Amis Contudo, Thomas Harris não precisa de nada disso. Ao contrário de um Martin ria dirigida por John Frankheiemer e com a possível para nossas consciências. de proporciona quando percebemos que esta- los toros, Ortega parte de um simples fato so- romances que tinham entrado na lista dos mais vendi- tinha dito em sua resenha — o de que o esti- Amis ou de um Stephen King, que colocam um novo romance nas prateleiras a cada suíça Marthe Keller no papel de uma seduto- Pois é isso que Thomas Harris faz com mos velhos demais para continuar na caçada. cial do passado — o hábito da caça como um dos e também haviam sido transformados em dois ex- lo era uma perfeição, de que os personagens dois, três anos, às vezes ele demora uma década para entregar uma nova criação. Ao ra árabe, Dahlia Iyad, que instilaria o “ódio- sua obra: ele nos ensina a perceber como a A agente do FBI se vê numa ciranda de desejo esporte que revela a capacidade humana de celentes filmes — Dragão Vermelho (publicado em eram pessoas honradas e sofisticadas que an- contrário de Amis e King, que são obrigados a dar uma entrevista cada vez que alguma -contra-o-Ocidente” do americano abando- nossa imaginação é muito precária para per- erótico e político — e o seu mentor Jack Cra- controlar ou dominar a nossa natureza vio- 1981, filmado três anos depois por Michael Mann como davam com naturalidade nos ambientes onde coisa acontece no maravilhoso mundo da mídia, desde a política de Barack Obama até nado no Vietnam, o piloto Michael Lander, ceber as infinitas variações que o medo traz wford, que contrabalançava a influência dia- lenta — para levantar voos vertiginosos de Manhunter, um clássico cult da década de 80) e o já ci- viviam, que Lecter era o Drácula da nossa a lista dos dez melhores filmes do ano, Harris se esconde da imprensa e não dá uma desta vez adequadamente interpretado pelo para as nossas pobres vidas. E Lecter é a per- bólica na sua iniciação espiritual descrita em pensamento, e afirmar que a própria existên- tado Silêncio, também conhecido no resto do mundo época, pronto para sugar tanto o nosso san- declaração pública desde 1974. E, ao contrário desses dois, que praticamente transfor- eterno neurótico Bruce Dern. sonificação desse medo — ao mesmo tempo O silêncio, se vê fraco demais para protegê- cia humana é uma contínua caçada em que pelo seu título original — The silence of the lambs (O gue como o nosso medo e transformá-los em maram as suas vidas em um livro aberto para o público, Harris apenas deixa os seus Iyad e Lander planejam um daqueles em que ele o domina, há também a fascinação -la de outros predadores burocráticos, como devemos estar constantemente em atenção silêncio dos inocentes, na tradução no Brasil) — e pela material literário de primeira categoria — e leitores saberem que ele gosta de cozinhar, tem uma companheira dedicada há mais de atentados que, anos depois, anteciparia de de que jamais seremos como esse sujeito por- o repugnante Paul Krendler ou então o mons- imediata, para capturarmos a essência das versão em estado-de-graça que Jonathan Demme con- que, mais do que tudo isso, era capaz de con- quarenta anos e que parece ser um regente de coral de igreja quando se deixa fotogra- forma assustadora o 11 de setembro: jogar que não conseguimos adentrar no seu “palá- truoso multimilionário Mason Verger, uma coisas reais e não nos deixarmos capturar por seguiu fazer com uma igualmente em estado-de-graça versar com o leitor comum de igual para igual. far, com sua vetusta barba de Papai Noel e um olhar bonachão que não dá uma única um dirigível repleto de explosivos em pleno cio da memória”. Poderíamos dizer “graças a antiga vítima que sobreviveu literalmente às ilusões do passado, nem do futuro e do pre- Jodie Foster (interpretando a heroína Clarice Starling) É certo que, na verdade, ninguém sabe pista de que este sujeito é o mesmo que criou um dos personagens mais monstruosos estádio de futebol americano, lotado, justo no Deus” e irmos em frente; mas não, queremos mordidas de Lecter e que agora deseja uma sente. Thomas Harris nos ajuda a fazer justa- e um superlativo estado-em-deificação (ou demoniza- como se dará este fenômeno que tantos que- da literatura contemporânea. dia da abertura do Super Bowl. Afinal, quem saber mais sobre esse personagem, queremos vingança implacável. O que antes era ape- mente isso: a ficarmos alertas com os falcões ção, de acordo com o ponto de vista) Anthony Hopkins rem alcançar — o “conversar com o leitor co- imaginaria que uma bomba pode cair lite- encaixá-lo nos nossos conceitos, mesmo que nas sugerido nos livros anteriores, desta vez dentro de nós, simplesmente porque jamais entregando com prazer uma deliciosa versão de Hanni- mum de igual para igual” — mas quando isso 2. ralmente dos céus? Ninguém, nem mesmo o ele mesmo diga que isso é impossível (“Você Harris deixa bem explícito: Hannibal é um poderemos dominá-los. E esta é a única regra bal Lecter. Portanto, o clima de expectativa era grande: acontece, ah, c’est magnifique, como diria Cole Porque antes de Hannibal Lecter, houve a reportagem policial e o Setembro Ne- superagente do Mossad, David Kabakov, um não tem como me explicar”, diz. “Eu apenas romance gótico, uma mistura de Bram Stoker que existe neste mundo devastado pelos cani- o que Harris aprontaria dessa vez? Porter. E King sabe desses assuntos: afinal, o gro. Ou melhor, Domingo negro, o seu primeiro romance, lançado em 1975. Harris daqueles sujeitos que sente o cheiro do Al Fa- aconteci.”) e que a nossa fascinação aumente com Flannery O’Connor, em que os símbolos bais que nos governam. 169 • maio_ 2014 22

O AUTOR Pedro Rosa Mendes

Nasceu em 1968, em Cernache do Bonjardim, Portugal. É autor de uma Malhas que o obra heterogênea que engloba ficção, ensaio e reportagem, com incursões no teatro e na poesia. É autor de quatro romances – Baía dos tigres (1999, prêmio Pen de narrativa), Atlântico (2003), Lenin Império tece oil (2006) e Peregrinação de Enmanuel Jhesus (prêmio Pen de narrativa O português Pedro Rosa Mendes aborda a 2011). Atualmente, vive independência do Timor-Leste num bem-sucedido romance em Genebra, na Suíça.

: : Haron Gamal novembro de 1999). Isto quer dizer rIO de Janeiro – RJ o seguinte: trata-se de uma inves- tigação sobre o suposto paradeiro literatura portuguesa de um nativo, afilhado deste bispo, contemporânea sempre que teria desaparecido no Mate- nos surpreende com boas bian (montanha sagrada conforme Antunes, ficcionista que melhor litada, mas ainda capaz de lhe fazer Aobras, e Peregrinação a tradição local), exatamente no soube ousar nas letras lusitanas. A revelações que proporcionam novo de Enmanuel Jhesus, de Pedro dia do plebiscito na ilha. influência de Antunes pode ser ob- alento às suas investigações. Rosa Mendes, segue a mesma trilha. Em forma de inquérito, são servada não apenas na forma (or- Talvez o maior êxito do ro- Trata-se de um livro que descre- enumerados vários personagens que Peregrinação de ganização dos parágrafos, diálogos mance seja a bem-sucedida expo- ve todo o percurso que resultou na teriam concordado em falar sobre o Enmanuel Jhesus e pontuação), mas também na re- sição do caráter mágico relativo à independência do Timor-Leste do desaparecido, sobre o país e, enfim, Pedro Rosa Mendes petição dos mesmos acontecimen- resistência das hostes timorenses domínio da República da Indonésia, sobre tudo que estava relacionado Tinta da China tos sob pontos de vista diferentes. contra os opressores, sejam eles de 376 págs. em 1999. Mas para os amantes da li- à luta pela libertação. Não escapam Além desses aspectos estrutu- onde quer que tenham vindo. Tais teratura a vantagem é que a História narrativas sobre as tradições dos rais, é possível perceber no roman- segmentos lembram o realismo é narrada em forma de ficção. vários povos que formam a etnia ti- ce o mal que toda espécie de colo- mágico das literaturas da América Já no capítulo de abertura, morense, mesmo aqueles que ante- nialismo foi capaz de causar mundo Latina. Na luta pela liberdade, até Matarufa, veterano da resistência cederam a chegada dos portugueses. afora. Até mesmo a presença portu- mesmo os ancestrais estão sempre timorense, relata o dia em que a É sempre bom lembrar que a chega- TRECHO guesa, que acabou por predominar de prontidão, habitando um pas- Peregrinação de ONU anunciou o resultado oficial da de Portugal à região data do se- Enmanuel Jhesus porque permaneceu durante muito sado que de certa forma revela-se do plebiscito que reconheceu a gundo decênio do século 16. Entre tempo no local e deixou como he- sempre presente, ou um presente pequena ilha como país indepen- os personagens que depõem neste rança a língua, é discutida pelo au- que não se atemoriza diante de um dente: “Às 9 horas da manhã de inquérito literário, encontram-se tor. Portugal colocou uma centelha duvidoso futuro. sábado, 4 de setembro de 1999, no pessoas que estiveram ao lado da a mais na já conturbada rivalida- Outro ponto digno de nota é Hotel Ma’hkota, em Díli, Ian Mar- resistência timorense e outras que Eu nasci em 1974, tinha três de existente na região à época das a descrição das atrocidades perpe- tin, chefe da missão internacional, atuaram junto à administração da ou quatro anos na altura, não grandes navegações. Povos de Java tradas pelas forças de ocupação da anunciou os resultados da consulta ilha sob o domínio da Indonésia ou e de Sumatra havia muito preten- Indonésia, que, segundo a narrati- entendia nada do que estava popular em Timor-Leste: 21,5 por fizeram parte do seu serviço secreto. diam o domínio da região. va, não pouparam velhos, mulhe- cento tinham votado a favor da au- Como se sabe, a Indonésia invadiu o a acontecer. O meu pai não No final do romance, o autor res e crianças, condenando todos à tonomia, 78,5 por cento votaram Timor logo após a saída dos portu- “queria dar-me. O soldado empreende uma viagem à Noruega, fome, à miséria, à morte. contra”. É preciso esclarecer que gueses, em 1975. aonde vai ao encontro do tal bispo A estada de Pedro Rosa Men- indonésio arrancou-me e “a favor da autonomia” significava Ao apresentar testemunhos que seria o autor do relato que nos des no Timor-Leste, a título de permanecer como região “autôno- de personagens que estiveram em deu-me a minha mãe. Vieram apresenta. Após boas observações fazer uma série de reportagens so- ma” da Indonésia, o que não foi a ambos os lados da luta pelo domí- separá-la de meu pai também. sobre o país nórdico, os contras- bre a perspectiva da região após a vontade dos habitantes de Timor- nio do Timor, a narrativa acaba por tes com Portugal e com o Timor, o independência, acaba por revelar Lembro-me dos gritos nossos -Leste, pois a maioria optou pela tornar-se polifônica. São oito pes- suposto “editor” (este seria o papel não apenas a escolha do povo local independência. soas (sete homens e uma mulher, e deles misturados. Uma de Pedro Rosa Mendes na organi- pela independência e pela língua O romance possui um eficaz entre os homens há um padre) que bulha. Depois, mais nada. A zação do livro) estende sua viagem proibida pela Indonésia enquanto artifício literário. Começa como contam a história do país, cada um minha mãe, os meus irmãos e ao Polo Norte, exatamente à cidade esteve no poder, o português, mas um auto de missão levado avante sob a sua perspectiva. O romance onde o bispo reside, localizada em ainda esclarece que, no mundo pelo bispo Per Kristian Kartevold, de Pedro Rosa Mendes, com isso, eu continuámos descendo a território russo. Ali encontra o reli- atual, cultura alguma é capaz de da Igreja da Noruega (outubro/ filia-se à narrativa deA ntónio Lobo encosta. Meu pai ficou para trás. gioso com a saúde já bastante debi- ser autossuficiente.

O bem vence o mal

: : Luiz Horácio um longo tempo. Levarei o dr. R ra da vida parecia não ter motivos pOrto Alegre – RS comigo sempre. Eu me esforçarei para se preocupar com questões para imitar sua gentileza e equilí- tão subjetivas, o medo que alimen- que falta ao ser huma- brio, especialmente perto dos que tamos ou que nos acostumamos é no? Vir de fábrica com são doentes e sofrem, como eu era coisa nossa. Este aprendiz, embora a tatuagem, em lugar quando tive a sorte de ficar sob tosco, tem medos paralisantes de O bem visível, “aprecie seus cuidados. alguns de seus pensamentos. Mas com moderação”. Pouco importa deixemos isso de lado. Trouxe o se estranho ou familiar, o perigo é Sua voz dentro de mim exemplo apenas para mostrar que o mesmo. Desprezo, roubos, assas- Sua voz dentro de mim apresenta as memórias de Emma. AUTORA esse vírus ataca mentes privilegia- Emma Forrest sinatos e por aí afora. No quesito Emma Forrest Está lá seu medo, e ela o torna pú- das e também as simplórias. No assassinato, parece que o mais em Trad.: Maira Parula blico ao revelar temer seu lado es- A jornalista, escritora e roteirista caso, a do resenhista. Pois bem, conta é cometer o crime dentro do Rocco curo, até então algo extremamente Emma Forrest foi criada em tudo transcorria conforme o figuri- núcleo familiar. Fica tudo em casa. 192 págs. particular. Londres, Inglaterra, e começou a no na vida da protagonista, talvez Para enfrentar essa convivên- Durante o período em que carreira ainda adolescente, quando até excedendo as expectativas. A cia inevitável com seu semelhante, Emma foi paciente do Dr. R, oito foi convidada para assinar uma autora, ainda jovem, abandonou a coluna no jornal Sunday Times. o homem recorre aos ensinamentos anos, surgem flashbacks, alguns segurança familiar em Londres e TRECHO Posteriormente, colaborou com de gurus, de deuses, de pastores, Sua voz dentro de mim emblemáticos, tanto para a narra- publicações como Vogue, Vanity foi viver em Nova York. Ela desfila- no mais das vezes de personal trai- tiva quanto para o leitor começar a Fair e Harper’s Bazaar, entre va pela passarela da vida, seu dia a ners. Não fujo à regra, também te- suspeitar do equilíbrio da autora/ outras, e teve roteiros comprados dia era de causar inveja ao mais fer- nho meu guru, aquele que me guia, personagem. Um exemplo: Emma, por produtoras como Plan B renho budista. Jornalista e escrito- que me impulsiona e que também então com 13 anos, visita a galeria Entertainment, do ator Brad Pitt, ra, trabalhava para o The Guardian me freia, atende pelo nome, sem A primeira vez que fui ver o Tate, em Londres. Ela não econo- e Miramax. Atualmente, vive em e seu primeiro livro não tardaria a Los Angeles, Estados Unidos. sobrenome, medo. Foi o que con- dr. R foi em 2000, um bom miza tempo em sua observação do ser publicado. Essa é a parte clara segui dentro de minha precarieda- quadro Ofélia, tela de John Everett da vida da autora, o lado escuro de. Emma Forrest, outra classe so- ano para mudar de vida. Millais. acolhia a jovem com problemas cial, encontrou no seu psiquiatra, Peguei o trem da linha 6 ao Vale lembrar que Ofélia tra- biguidade podem ser a tradução da psiquiátricos que se manifestavam apelidado de Dr. R, o seu guru. A “sair da emergência,onde duz a mulher trágica que à época obra de Amélie. Tudo resguardado via bulimia e automutilação. autora não disfarça a sua gratidão. —1852 — era presença constante por Ofélia. Pontos em comum com O tema é forte e infelizmente passei a noite toda. Eu me Guru porque ele ultrapassa os limi- na pintura romântica. Outro deta- Sua voz dentro de mim? Vários. se propaga em nosso cotidiano — tes profissionais e torna-se amigo e tornara tão entorpecida em lhe: Ofélia era a namorada suicida Elejo um: a sombra da morte que conheci jovens que se cortavam e confidente de Emma. minha vida, que nem o sexo de Hamlet. Na pintura de Millais, a paira e espreita. a bulimia é quase um modismo —, mulher flutua em um lago, aparen- Essa sombra que não se limi- mas Emma trata suas memórias eu registrava, a não ser que Nove anos atrás, o dr. R ta melancolia e resignação. ta a perseguir a autora, incluo seus com humor inteligente. Inclusive salvou minha vida. Graças a ele, doesse, e então eu, muito O primeiro romance de namorados durante esse período no auge de sua depressão, pelo me- meus pais tiveram sua filha de distante, podia ver que era Amélie Nothomb, Hygiène de de terapia. Eles se tornam perso- nos no livro, ela não permite o do- , traz detalhe dessa mes- nagens importantes na narrativa. mínio da tristeza, da autopiedade. volta. Temos uma dívida eterna eu na cama. Apesar dos l’assassin e somos eternamente gratos pela ma pintura na capa. O livro narra Os relacionamentos ocorrem ao Sua voz dentro de mim, dádiva de sua presença em nossa cor- tes e da bulimia, eu a história de um prêmio Nobel de ritmo dos descompassos de Emma, embora sua primorosa narração vida. Com o passar dos anos, eu não conseguia ser rápida o literatura ao qual restam dois me- capazes de carregar ambos às pro- que empresta leveza ao tema, é brincava com ele dizendo que ele suficiente para me machucar, ses de vida. Jornalistas do mundo fundezas mais escuras, ou relacio- mais um livro de autoajuda. O era um otimista terminal. Graças inteiro pretendem entrevistá-lo, namentos tranquilos, beirando a bem, mais uma vez, vence o mal. a Deus ele era assim; peguei ca- então o namorado era de poucos conseguem. Um misto de monotonia. Mesmo quando esse bandido cruel rona em sua fé e entusiasmo por alguma ajuda. entrevista e tortura. Cinismo e am- Emma Forrest até certa altu- repousa dentro de nós. 169 • maio_ 2014 23 O falso verdadeiro Os fenômenos excêntricos da obra de H. G. Wells produzem formas de vivência que desconhecemos

: : Nelson Shuchmacher Modernismo literário tural” para os padrões vitorianos. TRECHO Endebo O encouraçado terrestre Estrutura o principal conto da an- O país dos cegos rIO de Janeiro – RJ descreve os avanços na tecnologia tologia, um de seus prediletos, O bélica, especulando não só a mu- país dos cegos, curiosamente nos erta vez perguntava Paul dança permanente que os tanques moldes da narrativa do Evange- Valéry, após afirmar que de guerra trariam à estrutura dos lho, abrindo mão entretanto de seu Falou das belezas da visão, da “o falso sustém o verda- combates, como também a disputa conteúdo teológico específico. O Cdeiro”: “o que seria de assídua de nações tecnocratas para conto narra a chegada de Nunez, contemplação das montan- nós sem a ajuda do que inexiste?”. dominá-la; O estranho caso dos um alpinista perdido nos Andes, has, do céu e da aurora, e A problemática que essa questão olhos de Davidson propõe a visão a uma comunidade politicamente O país dos cegos e eles o escutavam com uma invoca é tão antiga quanto o pró- outras histórias à distância, sugerindo que o tecido harmoniosa de cegos em um terri- divertida incredulidade que prio pensamento. Há, no plano das H. G. Wells espaço-tempo possa ser dobrado, tório geograficamente isolado por “ ações humanas, um algo de im- Trad.: Braulio Tavares como um papel; o conhecidíssimo A uma série de desastres naturais. Da aos poucos foi se tornando possível que é misteriosamente a Alfaguara estrela, protótipo dos disaster mo- antropologia, Wells tira explicações condenatória. Disseram-lhe imagem necessária das nossas rea- 342 págs. vies hollywoodianos, imagina o ca- para a organização social do grupo, lizações concretas. Não há política taclismo humano ocasionado pela sua religião, seus ritos e crenças; da que na verdade não existia que se desprenda definitivamente passagem de um cometa, e termina etnologia, a razão para os conflitos montanha alguma, e que de seu veio utópico. A literatura O AUTOR com uma reflexão sobre a Terra de- culturais entre Nunez, que enxerga, aquela área rochosa onde as presta um vigoroso e matizado tes- Herbert George Wells vastada segundo a visão dos mar- e os demais. Os mitos dos cegos são temunho disso, e o caso do britâni- cianos, que ignoram as dimensões desmistificados pela visão compre- lhamas pastavam era sem Nasceu em 1866, em Bromley, co H. G. Wells, pioneiro escritor de “reais” da catástrofe, antecipando ensiva do narrador, francamente dúvida o fim do mundo; (...) Kent, e morreu em Londres, utopias científicas, é exemplar nes- em 1946. Filho de um assim, timidamente, o perspecti- sentenciosa e, dirão hoje, precon- se sentido. A coletânea O país dos pequeno comerciante, teve vismo que marca o modernismo ceituosa. Nunez está certo desde o cegos e outras histórias, reu- de trabalhar desde cedo para literário. Esse não é entretanto um início, mas é hostilizado e rejeitado nindo a segunda versão do conto- ganhar a vida. Estudou com perspectivismo nietzschiano. Wells pelos cegos como um lunático; eles, -título e outras 17 narrativas curtas o cientista e humanista T. H. é um moralista de tintura cristã, por sua vez, não possuem sequer o verso romanesco, no qual as maze- cobrindo o período de 1894 a 1939, Huxley. Deu aulas de biologia como Dickens, um democrata “na- vocabulário para verbalizarem o ato las e as delícias do mundo podem dá uma amostra farta dos gêneros antes de se tornar jornalista de ver. Mas Nunez se adapta, apren- ser devidamente representadas e escritor profissional. Autor pelos quais Wells passeou em sua de as doutrinas cosmológicas dos com a sua própria gravitas, e não de mais de uma centena longa carreira, desde a ficção cien- locais, se apaixona por uma mulher como simples recurso retórico de de livros, entre romances, tífica que o fez famoso, até a aven- ensaios e contos. No fim do cega e esquece do mundo exterior, suporte a um argumento. Tavares, tura, o conto policial e a fábula. século 19, publicou obras até o dia em que uma catástrofe fi- no prefácio, comenta que O ovo de Na segunda metade do reina- pioneiras da ficção científica: A nalmente abre passagem para fora. Cristal daria um romance, e é uma do da Rainha Vitória (1837-1901) máquina do tempo, A Nunez tenta avisar a todos sobre o pena que Wells não o tenha desen- o debate sobre as contradições ilha do dr. Moureau, O desastre iminente, mas é rechaçado volvido, pois ele me parece ser o sociais do Império Britânico — à homem invisível e A novamente como um herege, um único conto da antologia que apre- época o mais poderoso e abasta- guerra dos mundos. radical, um louco. Aquele que vê a senta personagens imediatamente do do mundo — foi fortemente verdade, o salvador, é escorraçado cativantes, que excedem o papel de pontuado pelos termos gerais do por uma comunidade de tolos. Mas veículo imediato para a expressão imperialismo e socialismo, que fi- a estória não é um mero conto mo- de uma ideia motriz. E a ideia, claro, guravam como possíveis reações ral, e uma leitura dela como anedo- maravilhosa: o artefato referido no ao predomínio, durante boa parte ta rebaixando os cegos me parece título se comunica misteriosamen- do século 19, da fé inabalável no equivocada. Ela é uma contribuição te com um outro mundo. O conto bem-estar social e espiritual como notável para a imaginação do futu- termina, como de costume, sem consequência do progresso técnico ro, considerando uma habilidade descobrirmos o que é aquilo, mas e científico. Esse característico oti- dir-se-ia inata, a visão, como téc- não sem que antes tenhamos uma mismo é exemplificado sobretudo nica, como artifício, deslocando o crítica das teorias ópticas da virada no trabalho histórico de Thomas sentido natural da percepção visual do século 20. Jorge Luis Borges re- Macaulay e na poesia de Alfred e valorizando, portanto, o espaço conheceu a influência desse conto Tennyson. Londres é a primeira ci- vital dos cegos em um plano de dig- em duas histórias n’O Aleph. dade do mundo a ter mais de um nidade equipolente. Nisso também O editor e tradutor Braulio milhão de habitantes, enquanto a Wells adumbra o modernismo. Tavares, cujo trabalho com o autor empresa colonial se estende por Outras narrativas valem men- já rendeu edições nacionais dos cé- todo o globo. É a Grã-Bretanha da ção e admiração: A marca do pole- lebres romances A máquina do restauração católica de Oxford, um gar, à maneira de Conan Doyle, é tempo e A ilha do dr. Moreau, movimento radical a seu modo; do um divertido conto policial que in- fez um ótimo trabalho de seleção. A utilitarista John Stuart Mill e do troduz as impressões digitais como tradução é no geral fluida e correta, reformismo visionário e filantró- prova de um crime, algo que fasci- altamente legível, embora algumas pico de John Ruskin. É a nação nava Sherlock Holmes; A história soluções não transmitam suficien- dos dândis desinteressados, dos do falecido sr. Elvesham é uma temente o sabor da prosa de Wells. estetas decadentes, de Swinburne tragédia metafísica que mantém o Por exemplo, em O império das e Oscar Wilde; a nação pós-Mal- interesse do leitor até o final sur- formigas, Wells escreve: “Holroyd thusiana de Marx, Engels, Darwin preendente, em uma das melhores was learning Spanish industri- e de Herbert Spencer, cujas ideias narrativas curtas de Wells; Pollock ously, but he was still in the pres- afetaram, para o bem e para o e o homem do Porroh, uma sátira ent tense and substantive stage of mal, todos os debates relevantes certeira das pesquisas etnológicas speech, and the only other person da época. É o tempo também do nas colônias africanas e da obses- who had any words of English was jornalismo, do sensacionalismo são do dito mundo civilizado pela a negro stoker, who had them all dos folhetins, e da literatura como sanidade mental; O império das wrong”. Tavares traduz correta- ganha-pão da pequena burguesia, formigas brinca com a ideia de que mente; a perda é estilística: “Hol- como a de Wells. Um dos mais o fenômeno da inteligência pos- royd estudava o espanhol com toda fecundos períodos da literatura sa emergir entre as formigas sul- aplicação, mas ainda estava naque- inglesa. Wells foi socialista como -americanas, uma bem-humorada le estágio feito apenas de substan- William Morris e Bernard Shaw, crítica da mentalidade imperialista tivos e verbos no presente, e a úni- crente de que a degeneração da por parte do autor, que se deleita, ca outra pessoa que sabia algumas sociedade britânica fosse resul- ao inverter os vetores do colonia- palavras em inglês era um negro tado do desequilíbrio econômico, lismo, com os próprios excessos da que trabalhava na fornalha e não mas a tendência de sua arte não é sátira diante da invasão europeia conseguia pronunciá-las direito”. a panfletagem, como é por vezes a das formigas, para a qual ninguém É comum nos contos de Wells de Shaw, tampouco é o idealismo, está preparado. Otto Maria Carpe- o narrador confessar que não sabe como na Inglaterra pastoral de aux notou com acuidade o grande bem o que está ocorrendo, ou que Morris; ela é revolucionária humorista em Wells, herdeiro de obteve as informações do relato in- na medida em que o en- Charles Dickens. Com efeito, o mo- diretamente. O que é verdadeiro? tusiasmo pela divulgação nóculo doutor Lidgett, em A histó- A veia utópica do autor não permi- científica, tão típico do ria de Plattner, ou a esposa chan- te que o fenômeno em tratamen- período, é direcionado tagista e interesseira do amável e to seja circunscrito pelo discurso para acionar o potencial desengonçado sr. Cave, em O ovo científico disponível. Mas Wells reformador da ordem so- de Cristal, poderiam facilmente ser talvez seja um otimista como seus cial que a técnica conserva e confundidos com criações dicken- contemporâneos, esperando que desvela. Wells fora aluno do bió- sianas. Esse último conto, em sua um dia façamos a descrição exata logo darwinista Thomas Huxley, estrutura narrativa, na maneira em do que há. Há contudo um outros e funda suas visões renovadoras que estabelece os fatos e introduz a viés, igualmente contemporâneo, nas ciências e nas miopias científi- H. G. Wells por cena e, principalmente, como apre- que talvez seja mais visível hoje: Vitor Vanes cas mais proeminentes do fin-de- senta o personagem principal “tra- os fenômenos excêntricos de Wells -siècle vitoriano, a geologia com- zendo na barba alguns farelos com produzem formas de vivência que parada, a antropologia, a zoologia, manteiga de seu desjejum”, existe ainda não conhecemos, como os a física teórica e a etnologia. Nes- inteiramente no vastíssimo espaço animais das insondáveis profun- se sentido, embora os enredos de imaginativo aberto por Dickens, dezas em Os invasores do mar. E Wells sejam fantásticos, ele é um que carece da psicologia moral de não há na gramática dos homens realista confortavelmente situado um Joseph Conrad ou o senso agu- formas correspondentes às suas na tradição romanesca inglesa, do de declínio de um Thomas Har- ações. Essa falta produz a litera- como bem aponta o editor e tra- dy, mas que constitui, a seu modo, tura, que a busca. E assim o falso dutor Braulio Tavares no prefácio. um abundante e convincente uni- sustém o verdadeiro. 169 • maio_ 2014 24 PRATELEIRA : : internACIONAL

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Amor em fuga Elegias de Duíno Falem de batalhas, de Novembro de 63 Sangue nas veias Bernhard Schlink Rainer Maria Rilke reis e de elefantes Stephen King Tom Wolfe Trad.: Herta Elbern Trad.: Dora Ferreira da Silva Mathias Énard Trad.: Beatriz Medina Trad.: Paulo Reis Record Biblioteca Azul Trad.: Ivone C. Benedetti Suma de Letras Rocco 288 págs. 128 págs. L&PM 727 págs. 608 págs. 152 págs. Ao longo dos sete contos que compõem Em carta de 1921, Rilke apresentou a Jake Epping é professor de inglês O celebrado jornalista e escritor Tom o livro, o amor no mundo contemporâneo chave para estas Elegias, ao alertar que O brilhante artista italiano Michelangelo em uma cidade do Maine. Enquanto Wolfe volta à ativa, num livro que deixa está em pauta. Não possuem a religião é uma tendência do coração, se desentende com o sinistro papa corrigia redações de seus alunos do o jornalismo se submeter aos encantos preconceitos ou distinções, mas não se infinitamente simples. São considerados Júlio II e aceita o convite do sultão supletivo, descobre uma narrativa brutal da literatura. Tipicamente polêmico, tratam de romances felizes. O moderno dez dos poemas mais célebres do Bayazid para projetar uma grande e fascinante escrita pelo faxineiro Harry Wolfe retrata uma Miami repleta de conta com contradições, dificuldades século 20. Gênero que tipicamente ponte no estreito de Bósforo. Misto de Dunning, que sobreviveu de alguma imigrantes e conflitos culturais, strippers e impossibilidades. Entre a queda do anda lado a lado com o fúnebre, os romance histórico e ficção, o livro mais forma à noite em que seu pai massacrou russas e fisioculturistas, na única cidade muro de Berlim e conflitos armados em versos exalam desamparo existencial, celebrado do francês Énard parte de a família com marretadas. Como se já do mundo onde povos com línguas países de terceiro mundo, histórias de acompanhados de uma religiosidade uma passagem obscura da biografia de não fosse choque o bastante, Epping é diferentes tomaram controle das ruas. pessoas atormentadas por seu passado peculiar. O trabalho da tradutora e poeta Michelangelo e recria a atmosfera de recrutado por um dono de lanchonete, Dilemas morais, limites éticos e conflitos e seu presente, de amores incompletos e Dora Ferreira foi considerado patrimônio sedução do Oriente do século 16 em Al, para uma missão peculiar: evitar o étnicos dão o tom à narrativa, talhada hesitantes, mas sempre esperançosos. cultural da poesia alemã no Brasil. oposição à Renascença, resgatando o assassinato de John Kennedy. com precisão e humor ácido. embate entre o Oriente e Ocidente.

Felicidade conjugal As duas faces de janeiro O vendedor de armas Effi Briest A última névoa e A Tahar Ben Jelloun Patricia Highsmith Hugh Laurie Theodor Fontaine amortalhada Trad.: Clóvis Marques Trad.: Marcelo Pen Trad.: Cassius Medauar Trad.: Mário Frungillo María Luisa Bombal Bertrand Brasil Benvirá Planeta Estação Liberdade Trad.: Laura Janina Hosiasson 322 págs. 320 págs. 287 págs. 424 págs. Cosac Naify 224 págs. Um pintor precisa se aposentar após Rydal Keener jamais poderia imaginar Thomas Lang, ex-militar de elite, recebe A jovem protagonista Effi Briest sofrer um AVC. Convencido de que sua que Chester MacFarland era um uma proposta de cem mil dólares sucumbe a um matrimônio indesejado, Duas novelas que apresentaram relação conjugal conturbada foi o motivo estelionatário que a polícia americana para assassinar um empresário norte- fruto do desgosto pela submissão às perspectivas completamente novas nos do colapso, resolve pintar um último almeja prender. De repente, Keener americano. Ele decide, imediatamente, normas sociais na Brandemburgo do idos de 1930. Em ambas, protagonistas quadro: o de seu relacionamento. As está ajudando o malfeitor a ocultar o alertar a futura vítima — uma boa ação século 19. Seu marido, o barão Von do sexo feminino encarando dilemas cores são fortes e, como toda obra de corpo de um detetive grego. A causa que não ficará impune. Em que estão de Innstetten, é um burocrata frio e pouco muito particulares. Na primeira parte, A arte, está sujeita a diversas opiniões. Com desse ato impensado pode ser a horas, o benfeitor está jogando cartas amoroso, mais preocupado com a última névoa, a história de uma mulher o tempo ocioso e temendo a depressão, paixão repentina de Rydal por Colette, com bilionários impiedosos e colocando carreira do que com a esposa. Em busca aprisionada no casamento com o primo, resolve escrever suas memórias desde o a sedutora esposa de Chester. Trata- sua vida (entre outras coisas) nas mãos de um romance acalentado como os um fazendeiro viúvo que não esqueceu a princípio do relacionamento, passando da se de uma cadeia de acontecimentos de muitas mulheres fatais, enquanto dos livros, Effi cansa da vida insossa primeira esposa; em A amortalhada, a má relação com os sogros ao ódio que, que passeiam por ruínas milenares, tenta salvar uma linda moça e impedir que leva e cede a certas tentações, se protagonista Ana María repassa sua vida por fim, se instalou. vielas escuras e hotéis decadentes. um banho de sangue mundial. aproximando do pouco quisto Crampas. e seus amores a partir do leito de morte.

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FORA DE SEQÜÊNCIA : : Fernando Monteiro Mais tarde ou mais cedo, UEMv SOMOS aiCONTATO tuASSINATURA DO JORNAL IMPRESSOdoCARTAS virar facebook EDIÇÕES ANTERIORES COLUNISTAS DOM CASMURRO ENSAIOS E RESENHAS ENTREVISTAS PAIOL LITERÁRIO PRATELEIRA NOTÍCIAS OTRO OJO

sso deveria ser o estribilho critas e não adianta repetir em li- tar antes de usar: caixas de suco, alguém que sumira? de ossos que nunca mais caminha- de um rock lançado por al- vros novos que nascem enrugados destinos baratos vividos pela TV, Os vagalumes eram os do po- riam sobre aquela terra na qual es- gum ídolo velho como Mike como bebês sem cabeça cuja boca selvas africanas daquele quarto ema de cabeça para baixo da gaio- tava borrada a data da sua chega- IJagger (os atuais Rollings falta (eu mesmo já escrevi isso em de Bradbury com os leões digitais la presa de palavras suspensas do da (olhando, gentilmente, para as constrangem), antes de morrer algum lugar, não?)... mastigando os ossos das crianças papel de arroz no qual estava es- crianças descalças como a missão sobre plateias sexagenárias — al- Você sabe que uma civiliza- reais que perderam as paredes dos crito: “Se você passar uma sema- falhada da sua vida levada por um guma espécie de tributo ao estilo ção está acabando quando as fra- livros antigos cujos meninos dor- na no velho ‘país dos mandarins’ rio atravessado de chuva). de Kurt Vonnegut? —, mas, infe- ses começam a dar a volta à cabeça miam nos homens da terceira, da (argh), talvez venha a escrever Tinha sido há tanto tempo que lizmente, não é nem uma coisa ágrafa da cultura — o mal-estar, quarta, da quinta leitura no banco um livro de quatrocentas páginas; ele poderia ter lido isso em Victor nem outra, até porque não soa tão etc. — e ninguém precisa nos di- de louça de um quintal das graças mas, se você ficar seis meses entre Segalen — quando Segalen ainda bem quanto a mais nova pergunta zer isso numa sala refrigerada de de folhas caídas no escuro. os palácios vermelhos da antiga era lido. Não era muito forte a cer- do Face: “Que simpatia você está segundo andar, em clubes literá- Lembro-me de algo impor- Cidade Proibida e o imenso esta- teza de estar ainda vivo, enquanto buscando?”. rios de forças quebradas e infinita tante que havia na conversa sobre cionamento de milhares de bici- lhe mostravam fotos, frases, frisos As perguntas de Mark Zu- hipocrisia que afirma: “continue a “os grandes cemitérios ao luar” — cletas (que desaparecerão como azuis passando numa tela de fibra ckerberg são do ramo da filosofia escrever bobagens pelo supremo era quase noite, a presença dos li- os insetos luminosos debaixo do dobrada na frente da cama de um de Valesca Popuzuda. O questio- bem da arte (assim, com minúscu- vros realmente lidos era opressiva lenço do mágico), você, quem sobrevivente de tempos recuados nário sobre se a Literatura (assim, la), agora que tudo caminha para naquela sala de janelas fechadas sabe, escreverá um cauteloso ar- demais para gerações sem imagi- com maiúscula) morreu e tudo o ser como feed azul-branco de fo- (sempre) como se fosse para inter- tigo de quatro páginas cheias de nação. Ou, talvez, todos os tempos mais, está implícito, claro. O pa- tos, autopropaganda, risos e reti- ditar a vida. Essa era a minha ideia uma perplexidade... E se você ficar se tornavam incompreensíveis, pel de escrita que seria de moscas cências graficamente representa- idiota: “interditar” o que quisessem seis anos lá, então você passará embora nenhum houvesse sido as- mortas se houvesse uma grossa das na banalidade que estragou o chamar de “vida”, no lusco-fusco dos sessenta anos sem ter escrito sim cancelado, anulado tão de re- superfície de cola de Burroughs significado das coisas”. que trazia uma noite de vagalu- nada sobre qualquer aspecto de pente e transformado em qualquer sobre as letras abandonadas, de Esse “significado das coisas” mes. A pergunta na manga: todas quaisquer daquelas províncias de coisa que semelhava a vida — mas, maneira que você pudesse esco- é uma frase estragada sem signifi- as suas histórias mais estranhas se neblina da China”. decididamente, não era. E o seu ga- lher continuar a ler como um ras- cado, uma coisa dita pela tal boca passavam na China? Era sobre isso que eu queria guejo final estava para ser transfor- cunho ou deixar pra lá, a página sem cabeça que assumiu a de nós “O mundo depende do que falar — disse o missionário, com o mado num “meme” que se tornaria virada, o próximo texto desfeito todos, ou logo-logo assumirá ple- acontece na China” — Baudelaire seu fio de voz, o homem mais velho a febre virótica da semana, quem na “elegante melancolia do cre- namente, quando, “na (i)maturi- havia mesmo escrito isso, num ca- que eu jamais vira, uma espécie de sabe, no mundo inteiro para além púsculo” de frases que já foram es- dade do tempo”, tudo for para agi- derno borrado que fora visto por fantasma de carne seca em cima dos jardins de pedra de Pequim.

Uma canção de exilado

Divulgação : : Maurício Melo Júnior para espionar os estrangeiros. brasília – DF Resolvida a questão das tra- mas, o romance se ocupa com a arcy Ribeiro apre- descrição das tradições ritualísti- sentava Maíra, seu cas dos índios. O enterro de Ana- primeiro romance, e cã é descrito com minúcia, uma Dsegundo ele mesmo o descrição, apesar de mórbida, re- melhor, como um livro nascido da cheada de elementos poéticos. Na necessidade de mirar outros mun- mesma trilha segue todo o adorno dos. Exilado no Uruguai, intelec- Maíra lendário que enfeita a narrativa. O tualmente esgotado pelo trabalho nascimento de Maíra, também um Global de escrever O processo civili- dos momentos de plena beleza do 326 págs. zatório, resolveu enfrentar outro texto, se equilibra entre o lírico e o desafio: reunir num romance todo grotesco sem nunca perder o sen- o imaginário que aprendeu na lon- tido que tem para o romance. Ao ga convivência com os índios. En- mergulhar o leitor em todas estas volvido com outros projetos, não teias antropológicas, mais do que encontrou tempo e espaço para se colocar como ensaísta, Darcy Ri- terminar a empreitada. Em 1969, beiro nos leva a refletir sobre como TRECHO preso no Rio de Janeiro, retomou Maíra os conceitos culturais profundos o texto como uma maneira de aproximam os homens em sua di- manter a lucidez. Também não foi mensão. Há nesta criação fenôme- desta vez que o terminou. A ter- nos como o dilúvio universal e o ceira e última tentativa aconteceu apocalipse, além de detalhes divi- durante um segundo exílio, agora Muito tempo esteve nos, como um sopro capaz de fazer em Lima. “Liberado pelos milita- Maíra gozando naquele viver homens e bichos. res depois de nove meses de ca- Trabalhar com três elemen- ser esgalhado, folhento, o deia, fui aconselhado a sair ligeiro tos tão próximos quanto distintos do país (...). Fui para a Venezuela, sentimento de ser árvore. — o universo mítico dos índios, as depois para o Chile e, afinal, fixei- “Gostou. Principalmente crises de consciência dos homens e -me no Peru, para ajudar a equipe os jogos de ambição — faz de Darcy das palmeiras que sobem do presidente Velasco Alvarado a um romancista pleno. Sua lingua- pensar a revolução que os perua- eretas para abrir seus gem também precisa se reinventar nos estavam levando à frente com leques no mais alto. Dá a cada momento para chegar à cor toda a força e fervor.” ideal para a narrativa. Neste pon- gosto subir pelo parafuso Diante destes fatos é fácil O AUTOR to chega a se aproximar, medidas pensar em Maíra como um livro troncal acima, sentindo a Darcy Ribeiro as devidas proporções, de Guima- que surgiu para matar a saudade dor das cicatrizes de tantas Nasceu em 1922, em Montes Claros (MG). Formado em Ciências Sociais, rães Rosa. Naturalmente que não do exilado. Longe da própria ter- folhas que morreram para em 1946, construiu uma brilhante carreira intelectual como antropólogo descamba para uma inventividade ra, ou preso quando nela, Darcy se e etnólogo. Destacou-se como escritor, educador e político. Foi senador léxica, mas vai semeando uma po- a palmeira crescer e dar aproximou do imaginário indígena e membro da Academia Brasileira de Letras. Como romancista, além de ética que sobrevive nos sentimen- para não perder de vez o laço que coco. Maíra, escreveu O mulo, Migo e Utopia selvagem. Morreu em 1997. tos mais puros e ingênuos. “Não o prendia a uma pátria idealizada, somos filhos de Deus. Somos os sonhada. Anos depois, ele diria pais do homem que há de ser”, diz que perdeu todas as batalhas que Maíra ao tentar definir a si mesmo enfrentou, mas só se sentiria der- Aliás, já no início, o livro católicos para também se tornar Neste caminho segue Juca, que e ou seu irmão gêmeo. rotado se estivesse ao lado dos ven- revela nuances policiais. Um pes- padre. Estudava em um seminá- vende de madeira a manteiga feita Maíra, enfim, é um desses cedores oficiais. quisador suíço vai à delegacia de rio em Roma quando decide vol- com ovos de tartaruga. No momen- romances que atende muito bem a Destas utopias e lutas ele uma cidadezinha do interior para tar para a aldeia em busca de suas to ele estava interessado em levar todos os leitores. Aos que buscam extraiu um romance alegórico em comunicar que encontrou o corpo verdades pessoais. No caminho de os aborígenes a conseguir peles de divertimento ele se oferece na tra- que apanha as crenças indígenas, de uma moça branca abandona- volta, conhece Alma, com quem se animais silvestres. E acredita ser o ma de mistérios que cerca a morte crenças que colheu na convivência do numa praia do rio Iparanã, no junta para a etapa final da viagem. tempo certo, pois com a morte de de Alma. Para quem quer conheci- com várias etnias, e as traz para o Mato Grosso. Junto a ela estão os Esta volta coincide com a morte de Anacã, que não o queria ver por mento, os debates antropológicos mundo real da exploração do ín- cadáveres de dois recém-nascidos. Anacã, o tuxaua, ou seja, o líder da perto, pensa poder se aproximar são bem honestos na apresentação dio e de sua terra. Maíra é sim Não sabia dizer se a mulher teria aldeia, espaço que de direito passa daqueles que ele chama de primos. de um mundo novo que ainda guar- um romance de denúncia, bem morrido no parto dos gêmeos ou a pertencer a Isaías. No entanto, persiste a oposição à da seus sentimentos inaugurais. aos modos do realismo social que se teria sido assassinada. O mis- No segundo enredo paralelo, sua presença na aldeia. Àquele que cata denúncia social o marcou os romancistas da geração tério da morte de Alma, uma as- Juca, filho de uma índia mairum Esta trama social se com- texto se apresenta como um mani- de 1930, mas foge com maestria pirante a missionária, se estende com um branco que trabalhava pleta ainda com as desconfianças festo em defesa das nossas culturas dos códigos sociológicos ou an- por toda trama que conta ainda para o Serviço de Proteção aos Ín- de Juca. Os pesquisadores suíços mais profundas. No entanto é mes- tropológicos. É claro que muito se com pelo menos mais dois bons dios e pacificou os índios da região, estão na região estudando o com- mo como uma canção de exílio que aprende aqui do modo de vida dos enredos paralelos. sobrevive explorando a miséria dos portamento das formigas, mas o deve ser lido, afinal no romance se indígenas, mas tudo está diluído O primeiro deles, de cunho caboclos. A exploração, aliás, co- explorador acredita mesmo que apresenta um Brasil real por suas nas entrelinhas de um romance psicológico, segue o drama de Isa- meça com o pai dele que ganhou eles conhecem os segredos das mi- injustiças e pela força de sua brasi- real e que se resolve muito bem ías Mairum. Desde muito peque- muito dinheiro fazendo os índios nas de algum tipo raro e valioso de lidade. E este é um elixir bem eficaz como instrumento ficcional. no, o índio foi educado por padres extrair o látex das seringueiras. minério. E põe o caboclo Quinzim para a cura da saudade. 169 • maio_ 2014 27

Totens da perplexidade

Paulo Rosenbaum

ILUSTRAÇÃO: Rafa Camargo

O AUTOR Paulo Rosenbaum

É médico e escritor. Autor de sete livros na área médica e organizador de outros dois. Publicou o romance A verdade lançada ao solo (Record). É colunista do Jornal do Brasil, na seção Coisas da política. Edita o blog Conto de notícia, publicado regularmente n’O Estado de São Paulo.

Sujeitos indefinidos peregrinam nas nações No solo tingido, entre benfeitorias sem transcendência, como furos de flauta laicismos imprecisos. alternam sons, Não se veem campos, sinais de gritos, angústia das vítimas das curvas do mundo mas, em cada parada, na atenuação final das vidas. a cada pequena entranha, e, dentro da floresta negra, Se estamos aqui, ainda e assim cavernas preservadas, coleções intactas, predação canônica permanecemos, no tempo exato a seleção, naturalmente objetivada é que nossos olhos pela negação de qualquer sentido. retêm o não expresso Não interessa que não vistes, e, como trens, invadimos o mundo com troncos negros (nem quem nunca viu), que moem cores, não importa o alimento dos dizimados para fixar nelas, nem quem fez menos silêncio a medida do carbono. no vapor da constância. Da matéria que se impõe Saberemos quando vivermos e referenda o espírito, fora dos esconderijos desacreditados subtraindo contextos das proporções extremas na sonolência programada atraídas à latitude da ilusão. entre qualidades instáveis, que estão, como nós, extintas. Estivemos nos olhos Nos rios sem leito, paisagens sobre trilhos respiramos nas noites de cristais no protocolo superado, a melancolia, recusamos o esfacelamento e o genocídio com certezas do impossível. e enquanto o mundo repensa uma paz Testemunhamos a violência do descuido, os resíduos evaporados até que a perplexidade fazem do sensorial gere seus totens. a travessia que importa. 169 • maio_ 2014 169 • maio_ 2014 28 29 O ex-eterno marido

Felipe Franco Munhoz

Limão Como cheguei lá eu não sei, mas subita- or ocasião do nosso ani- Motojiro Kaijii TRADUÇÃO: Marcelo Antinori mente me dei conta de que estava em frente versário de casamento da loja de departamentos Maruzen. Ainda — dois anos: dois anos que a estivesse evitando, naquele momento Ptranquilos — minha es- ILUSTRAÇÃO: Theo Szczepanski não senti nenhuma dúvida em cruzar a porta posa, Eliane, presenteou-me com e entrar. Vamos tentar, pensei, e caminhei al- um romance: O eterno marido. tivo por suas portas. O romance foi escrito por Fiódor ma nuvem pesada dominava meu Curiosamente, por alguma razão, aque- Dostoiévski, em 1870; e talvez espírito. A sensação não era de la sensação de bem-estar que preenchia meu seja relevante confessar-lhe que irritação ou tédio; parecia mais coração começou a se esvanecer no momento Dostoiévski figura entre meus Ucomo se tivesse entrado em uma em que entrei ali. As prateleiras de perfume autores prediletos. Junto ao li- profunda ressaca depois de noites e noites e tabaco me deixaram frio. Eu podia sentir vro, Eliane anexou um cartão que bebendo muito. A tuberculose e o esgota- minha depressão levantando sua cabeça ou- dizia, entre outras particularida- mento nervoso não eram os culpados. E nem tra vez, e pensei que talvez fosse devido ao des, Para o meu eterno marido. mesmo a minha assustadora dívida. Era ape- cansaço depois da longa caminhada. Me di- Comecei a ler naquela noi- nas aquele peso indefinível. Me afastou da rigi à seção de livros de arte. Será que ainda te, ansioso, após o jantar de co- música e da poesia que tanto amei — se inco- tinha energia suficiente para levantar, ainda memoração. E fui logo envolvido modava alguém para que me colocasse uma que fosse apenas um, aqueles livros pesados? pela angústia aflita do protago- música, sentia a necessidade de partir depois E ainda assim consegui baixá-los da estante nista Vieltchâninov, a quem o de poucas notas. Tudo o que conseguia fazer e abri-los, um após outro. Isso no entanto narrador segue — em sutil onis- era vagar sem destino pelas ruas. foi tudo o que fiz — não desejava examiná- ciência — com exclusividade. Me sentia atraído por coisas que apre- -los com atenção. Como que enfeitiçado, eu Uma narrativa arrebatadora. sentavam um toque de beleza decadente. As ia compulsivamente baixando um livro atrás Quando o personagem está afli- vizinhanças decrépitas eram os lugares que do outro; dava uma rápida olhada, e passava to, o texto está aflito; essa téc- preferia e dentro delas não eram as grandes ao próximo sem retornar nenhum à estante. nica, que é executada com pre- ruas, impessoais, que me pareciam simpá- Uma manhã — eu estava me hospedan- A ideia de continuar fazendo aquilo me pa- cisão, revela-nos o raro artista ticas, mas sim os becos sujos com aquelas do em alojamentos de amigos, mudando de recia insuportável. O último livro que escolhi maior. No caso de Dostoiévski, a roupas manchadas penduradas a secar e as um para outro — meu anfitrião naquele dia foi era um dos meus favoritos, uma enorme en- forma também é conteúdo. trilhas de lixo atirado pelo chão. Espiar nas para a universidade, me abandonando em seu cadernação dourada com os trabalhos de In- Com tais ideias fermen- janelas dos quartinhos miseráveis que da- quarto vazio. Não tive outra escolha que re- gres. E era o mais pesado de todos. Maldição! tando, eu lia o quarto capítulo vam para os becos também me era prazeroso. tomar meus passeios. Uma força qualquer foi Senti aquela fadiga debilitando meus braços do romance; era formulada uma Entre aquelas frágeis casas com paredes de me levando de uma pequena rua a outra, me enquanto revirava aquela pilha de livros que teoria sobre mulheres “que pa- barro decompostas, que o vento e a chuva em fez parar em frente a uma loja de doces, de- tinha criado. Sentia que minha depressão ti- recem ter nascido unicamente breve iriam devolver a terra, a força da vida pois me levou até uma mercearia onde passei nha retornado com força total. para serem esposas infiéis. (...) apenas se sentia nas plantas, na surpresa um bom tempo olhando para o peixe seco e o No passado, eu folheava com prazer E tudo acontece com a máxima inesperada do desbotar de um girassol ou de tofu em conserva. Dali, fui vagando pela Tera- livros como aqueles, saboreando o estranho sinceridade; elas se conside- solitário botão de flor. machi até a Avenida Nijo, parando finalmente contraste entre suas lindas ilustrações e a de- ram, até o fim, justas no mais Às vezes, enquanto caminhava por em frente a uma loja de frutas e verduras. coração monótona da loja. Por que eles não alto grau e, está claro, de todo aquelas ruas, tentava imaginar que escapa- Talvez eu deva apresentar este estabele- me atraíam mais? inocentes”. Tentei recapitular se ra de Quioto para uma cidade distante onde cimento, já que era a minha loja favorita entre Assustado eu me lembrei do limão havia alguma conhecida, alguma ninguém me conhecia. Sendai talvez ou Na- todas. Na aparência, não se destacava, ainda guardado na manga do quimono. E se tentas- amiga, Infiel-inocente. gasaki. Teria de ser um lugar tranquilo. Um que representasse bem aquela beleza espe- se colocá-lo no alto daquela confusa coleção Quando me percebi às vol- quarto em um pequeno hotel, grande e vazio. cial que este tipo de loja possui, mais do que de cores, que será que aconteceria? tas com o parágrafo seguinte: Lençóis imaculados, o aroma da tenda contra qualquer outro lugar que tivesse visto. Suas Aquela agradável delicada explosão de “Vieltchâninov estava convencido mosquitos e um quimono de verão, recém- frutas estavam dispostas em uma banca incli- entusiasmo que tinha sentido antes retornou. de que realmente existia esse tipo -engomado. Poderia passar um mês deitado nada de madeira negra laqueada e lascada na Empilhei os livros ao acaso formando uma de mulher; mas tinha também ali, sem pensar em nada. Sentia que se dese- ponta. Tinham sido arrumadas de uma forma torre, derrubei com força e empilhei outra certeza de que existia um tipo de jasse com muita força, poderia transformar o que sua cor e volume pareciam congelados no vez. Novos livros das estantes foram adicio- marido correspondente ao dessas lugar onde estava naquele que imaginava... E tempo e no espaço, como um grupo de dan- nados àquela pilha, removidos e depois subs- mulheres, marido cuja única des- quando as imagens se formaram, comecei a çarinos que tivesse olhado para a cabeça da tituídos por outros, assumindo a forma de tinação seria a de corresponder a pintá-las, uma a uma, com as cores de minha Medusa e se transformado em pedra. Mais ao um castelo de sonhos, primeiro vermelho e esse tipo feminino. A seu ver, o preferência, até que elas pudessem ser sobre- fundo na loja, os vegetais estavam empilhados depois azul. caráter essencial de semelhantes postas àquelas vizinhanças dilapidadas. En- em prateleiras cada vez mais altas. As folhas Finalmente estava terminada. Contro- maridos consistia em serem, por tão, e apenas então, podia sentir o prazer de da cenoura pareciam radiantes e os legumes e lando o palpitar do meu coração, coloquei assim dizer, ‘eternos maridos’, perder de vista a minha real existência. os vegetais brilhavam com gotas de água. cuidadosamente o limão no topo daquele cas- ou, dizendo melhor, em serem, na Eu também me confortava em admirar as A tenda era ainda mais bonita à noite. telo. Era uma combinação perfeita. vida, unicamente maridos e” — caixas de fogos de artifício baratos. Alguns vi- Inundada com a luz de suas vitrines, Tera- Enquanto admirava meu trabalho, si- Correspondente?, pensei. nham alinhados em pacotinhos grosseiros ver- machi é uma rua cheia de vida, ainda que lenciosa e serenamente o limão sugou todas — “mais nada. ‘Um homem melhos, púrpura, ouro e azul e tinham nomes bem mais tranquila que suas equivalentes em aquelas cores envolventes para dentro de dessa espécie nasce e cresce tão so- como “Estrelas Cadentes do Templo Chusan- grandes cidades como Tóquio e Osaka. Ainda sua circunferência. Dentro daquele ambiente mente para se casar e, após o ma- ji”, “Guerra de Flores” e “Pálidas Palmeiras”. assim a vizinhança daquela loja em particu- bolorento da Maruzen aquele ponto sozinho trimônio, tornar-se de imediato Outros, conhecidos como “estalidos de rato”, lar era curiosamente escura. Na verdade, es- parecia produzir uma estranha tensão. Per- um complemento da esposa, mes- eram montados em um catavento dentro das tava na esquina da melancólica Avenida Nijo, maneci ali alguns momentos, apenas olhando mo que possua indiscutivelmente caixas. Coisas como estas atraíam a atenção. mas isso não explicava por que aquela área para aquela torre. personalidade própria. O princi- Contas de vidro colorido eram tesouros tão vizinha à Teramachi era tão pobremente Subitamente fui surpreendido por outra pal indício de semelhante marido para mim — bolinhas com desenhos de peixes iluminada. Se aquela área estivesse mais cla- ideia insólita: por que não deixar o limão ali é certo ornamento. Ele não pode e flores em relevo, contas de Nanking. Ficar ro- ra, entretanto, duvido que tivesse me encan- onde ele inocentemente descansava e cami- deixar de ser portador de chifres, lando aquelas bolinhas dentro da minha boca tado tanto. O toldo saltava adiante como se nhar para a saída. como o sol não pode deixar de ilu- dava-me um grande prazer, seu gosto tinha fosse a aba de um chapéu puxada para cima Um estranho sentimento cresceu em minar; e ele não só ignora o fato: uma sutil e singular frescura. Quando criança, dos olhos. (Isso não é exagero poético — o lu- a minha nova aquisição. Um paradoxo incompreensível talvez, mas verda- mim. “Devo? Por que não!” Furtivamente de acordo com as próprias leis da meus pais me chamavam a atenção por este gar realmente dava vontade de sair gritando deiro — minha teimosa melancolia tinha sido enganada por uma simples deixei o edifício. natureza, deve ignorá-lo’”. tipo de comportamento. Agora, talvez porque “olha para aquela barraca com seu bonezinho fruta. Como é estranho o espírito humano! Lá fora, na rua, aquele estranho senti- Meus olhos debatiam-se no o abatimento fizera estas doces memórias de abaixado”.) Sem luzes ao lado para competir, A frescura do limão superava qualquer descrição. Naquele momen- mento levou-me a rir. Que tipo de vilão era parágrafo, relutavam em retor- infância ainda mais queridas, havia algo espe- e com a escuridão acima, a fileira de lâmpa- to, minha tuberculose tinha piorado a ponto de que estava permanente- eu que tinha deixado aquela cintilante bomba nar às terríveis palavras, até que, cialmente poético sobre a beleza daquela fresca das elétricas penduradas por baixo do toldo mente febril. Acho que podia mostrar a meus amigos e conhecidos quão dourada armada entre as estantes da Maru- derrotados, mergulharam tam- e delicada sensação em minha boca. banhava os produtos como uma brilhante doente estava simplesmente por um aperto de mãos, já que a minha es- zen. Se aquela bomba realmente explodisse bém na memória: mergulharam Como você já deve ter percebido, eu es- chuva de verão. Vista da rua, onde os focos tava sempre mais quente. Talvez por causa daquele calor, eu sentia que com violência no coração da seção de livros fixos no cartãoPara o meu eterno tava completamente debilitado. E o fato de descobertos provocavam espirais de luz que a frescura do limão estava penetrando através da minha palma e refres- de arte em dez minutos, seria emocionante. marido. Para o meu Ela, Infiel- O AUTOR que aquelas pequenas coisas, ainda que li- penetravam em meus olhos, ou da janela do cando todo o meu corpo. “E então.” Continuei entusiasmado per- -inocente? eterno marido. Para Felipe Franco Munhoz geiramente, podiam tocar meu coração, fazia segundo andar do Café do outro lado da rua, Várias e várias vezes, levei a fruta até o nariz para sentir seu perfu- seguindo aquela visão, “nada restara daquele o meu eterno marido. Portador com que sua compra fosse um luxo necessá- havia poucos lugares em Teramachi que me me. Imagens da Califórnia, sua origem provável, vinham a minha mente lugar opressivo além de um monte de poeira”. de chifres, como o sol não pode Nasceu em São Paulo, rio. Questão de alguns centavos — mas ain- inspiravam tanto como aquele. entremeadas de trechos do clássico chinês O mercador de frutas que Saí caminhando pelas ruas de Kyogoku deixar de iluminar. Eu, portador em 1990. É graduado em da assim, uma extravagância, um detalhe de Naquele dia em particular, eu tomei a eu estudara na escola — “invadindo o nariz” era a frase que lembrava. E decoradas com aqueles grotescos cartazes co- de chifres, portador de chifres que Comunicação Social pela beleza, que ainda podia excitar meus frágeis decisão inesperada de fazer uma compra ali. quando enchia meus pulmões com aquele perfume, um jato de sangue loridos de cinema. não posso deixar de exibir. UFPR. Em 2010, recebeu sentidos. Em resumo, um consolo natural. Uma coisa rara estava à venda — limões. Óbvio aquecido parecia correr pelo meu corpo, despertando minha vitalidade. Rasguei! o cartão. Atirei uma Bolsa Funarte de Criação Literária para Quando ainda estava bem, eu adorava que limões não eram incomuns em lojas mais Pensei que nunca antes tinha respirado tão profundamente. Dostoiévski à lixeira. escrever — em tempo passar meu tempo em lojas de departamentos, elegantes, mas aquela barraca dificilmente po- A ideia de que na simples sensação de frescura, textura, perfume O AUTOR Eliane, boa leitora e nada Motojiro Kajii integral — o romance como a Maruzen, com suas prateleiras reple- deria ser considerada como acima da média e e forma eu tinha me deparado com o que estava procurando por tanto ingênua, teria conhecimento do Mentiras, inspirado na tas de artigos importados. Garrafas verme- por isso raramente exibia aquele produto, ou tempo parece agora estranha. Mas naquele momento eu sentia vontade Nasceu em Osaka (Japão), em 17 de fevereiro de conteúdo do romance? Ou pior: obra de Philip Roth. A lhas e amarelas de eau-de-cologne e eau-de- pelo menos eu não tinha notado antes. E, meu de gritar de cima do teto das casas. 1901. Aos 19 anos, foi diagnosticado com tuberculose Eliane teria o conhecimento en- convite da Philip Roth -quinine. Frascos de perfume elegantemente Deus, como sou loco por aqueles limões: sua Meus passos ficaram mais animados, avancei com excitação cres- e morreu da doença aos 31 anos. Aos 24 anos, gavetado e agira de forma in- Society, Felipe leu trechos decorados com relevos bem trabalhados, cor cor, como um punhado de puro “amarelo-li- cente e mesmo orgulho, me imaginando, em alguns momentos, como publicou Limão em uma revista por ele fundada e seu consciente? Ou pior:, ou pior:, do romance durante as de âmbar e de jade. Cachimbos e canivetes, mão” espremido de um tubo de tinta; sua for- um poeta elegantemente vestido que caminhasse pomposamente pelos trabalho, basicamente pequenos contos, apenas foi ou. Não há resolução. A única sa- comemorações de 80 sabonetes e tabaco. Depois de uma hora de ma, uma circunferência perfeitamente com- bulevares. Observei o limão bem de perto, em contraste com o meu lenço reconhecido após sua morte. Além de Limão, outros ída, ainda que arrasadora, é rees- anos de Philip Roth, em de seus contos — Dias de inverno e Debaixo das busca criteriosa, eu teria esbanjado na compra primida... Decidi comprar um. Depois, voltei a sujo, e depois contra o meu capote, para sentir melhor como suas cores crever a primeira sentença deste Newark, em março de cerejeiras — também se tornaram textos clássicos 2013. Em dezembro de de uma lapiseira da melhor qualidade. Agora, vagar pelas ruas de Quioto. Caminhei por um refletiam sua textura, e depois apertei em minhas mãos alertando a to- cruel relato: Por ocasião do nosso da literatura japonesa. Limão foi publicado na 2013, o conto No ringue contudo, Maruzen se transformara em um lu- bom tempo. Me sentia inesperadamente feliz, dos de sua perfeição. Era isso que tinha me cansado de procurar, o peso coletânea The Oxford book of Japanese short aniversário de casamento — dois de Hemingway foi gar opressivo e asfixiante. Os livros, os estu- como se toda aquela nuvem pesada que sentia perfeito, a somatória absoluta de todas as coisas boas e bonitas — este stories, organizada por Theodore William Goosen, e anos; tranquilos? — minha ex-es- publicado pela Travessa dantes, os caixas — todos eles me apavoravam havia tanto tempo sobre mim tivesse ficado pensamento me pareceu fascinante. Considerando tudo, eu estava aben- traduzido ao português por Marcelo Antinori a partir da posa, Eliane, presenteou-me com dos Editores. É crítico da como se fossem cobradores fantasmas. mais leve no momento em que senti nas mãos çoadamente feliz. versão inglesa traduzida do japonês por Robert Ulmer. um romance: O eterno marido. APCA na área de literatura. 169 • maio_ 2014 30 Robert Creeley Tradução e seleção: André Caramuru Aubert

poeta norte-americano Robert Creeley (1926- voltura entre poetas como Jack Kerouac e Allen Ginsberg, de 2005) é, entre seus conterrâneos e contemporâ- um lado, e Charles Olson e Denise Levertov, de outro. Co- neos, um dos mais conhecidos (ou menos des- nhecido por sua generosidade, Creeley gostava de dar aulas e O conhecidos) no Brasil. Além da qualidade de sua não se cansava de orientar novos poetas. Em função da com- obra, talvez tenha ajudado, para isso, o fato de Creeley ter binação de sua personalidade com uma produção rigorosa estado em São Paulo e conhecido alguns de nossos poetas. O e intensa, Creeley foi influente como talvez nenhum outro fato é que ele deixou por aqui alguns admiradores importan- poeta de sua geração. Segundo alguns, um “poeta de poetas” tes, como Ruy Vasconcelos e, principalmente, Régis Bonvi- por excelência. cino, editor e tradutor de uma excelente coletânea brasileira A temática de Robert Creeley, como bom discípulo de (A UM, poemas. Ed. bilíngue, Ateliê Editorial, 1997). W. C. Williams, gira primordialmente em torno das peque- Ainda assim, diante de tudo o que Robert Creeley pro- nas coisas, de cenas do cotidiano, de rápidas impressões de duziu, o que temos dele em português é muito pouco. Os viagem. Econômico e preciso, suas quebras de linha são úni- quarenta e um poemas presentes em A UM, embora bastan- cas. Embora afirmasse que, em poesia, a forma deveria se te representativos (são uma mistura de sugestões do próprio subordinar ao conteúdo, poucos poetas contemporâneos são autor com os prediletos do tradutor), não passam de uma mais formalmente rigorosos do que ele. Creeley possuía, se- gota no oceano diante de alguém que escreveu continuamen- gundo Williams, “o mais sutil sentido da medida desde Ezra te por cerca de sessenta anos, e cuja obra completa, em in- Pound”. O que faz com que, estruturados a partir de um ín- glês, espalha-se em dois volumes com mais de mil e duzentas timo conhecimento dos sons, da respiração e dos ritmos da páginas no total. língua inglesa, os poemas de Creeley sejam muito difíceis de alguns poemas de cada uma das etapas de sua carreira. Evi- Creeley é uma unanimidade. Discípulo de William Car- traduzir, especialmente para uma língua tão diferente da dele tei apenas os que já haviam aparecido em português, espe- los Williams e admirado por este, foi um líder do grupo Black quanto é o português (Régis Bonvicino já chamava a atenção cialmente na seleção de Régis Bonvicino (mesmo sabendo Mountain, embora sua poesia muitas vezes ficasse distante para isso na introdução a A UM). Mas penso que, apesar dos que ali estão algumas das mais belas composições de Cree- da de outros membros. Elo de ligação entre os Beats e os percalços e das limitações no resultado final, o esforço vale a ley) porque, se por um lado eu não poderia pretender fazer poetas da San Francisco Renaissance, e entre os grupos de pena, tanto para quem traduz quanto para quem lê. uma tradução melhor, por outro, afinal de contas, eles já es- Nova York e da Califórnia, ele conseguia circular com desen- Para esta introdução a Robert Creeley, procurei incluir tão disponíveis em livro, em português.

RETURN como mais cedo, tem Quiet as is proper for such places; teias, todo o campo na assim chamada vida The street, subdued, half-snow, half-rain, estendido para além da com suas impecáveis Endless, but ending in the darkened doors. porta, a de trás Inside, they who will be there always, para um pequeno, insignificante conversas e pernas e seios, Quiet as is proper for such people — alpendre. As árvores eu amei você Enough for now to be here, and estão, então, tão altas, um forte sentimento de To know my door is one of these. incrustrados e adequados troncos, mas não enquanto algum eu posso hábito grosseiro, por favor. RETORNO deslizar meu dedo por Silenciosa como é próprio para lugares assim; cada ponta. Sua voz A rua, calma, meio neve, meio chuva, tão quieta agora, Sem fim, mas terminando nas portas escuras. ••• Dentro, aqueles que estão sempre lá, tão vazia, para mim, Silenciosos como é próprio para pessoas assim — AS YOU COME nenhum som, no telefone, Bastando por ora estar ali, e As you come down Saber que a minha porta é uma destas. the road, it swings nenhuma roupa, no chão slowly left and the sea nenhuma face, nem mãos, ••• opens below you, west. It sounds out. — se eu não quisesse MIDNIGHT estar aqui, eu não estaria When the rain stops ENQUANTO VOCÊ VEM and the cat drops Enquanto você vem aqui, e estaria out of the tree pela estrada, ela vira em outro lugar? E então. to walk lentamente à esquerda e o mar se abre abaixo de você, ••• away, when the rain stops, a oeste. Isso se mostra. when the others come home, when SEA MAR the phone stops, ••• Ever Sempre the drip of water, the to sleep, para dormir, THEN returning water. a água voltando. potential of a caller Don’t go any Sunday afternoon. to the mountains, * * Rock’s upright, As rochas à direita, MEIA-NOITE again — not thinking. pensando. Quando a chuva para away, mad. Let’s e o gato desce * * da árvore talk it out, you Boy and dog Garoto e cachorro para sair never went anywhere. following seguindo the edge. pela beira. andando, quando a chuva para, I did — and here quando os outros voltam pra casa, quando in the world, looking back * * o telefone para, Come back, first De volta, a os pingos d’água, a on so-called life wave I saw. primeira onda que vi. with its impeccable possibilidade de um telefonema * * uma tarde de domingo qualquer. talk and legs and breasts, Old man at Um velho na I loved you water’s edge, brown beira d’água, calças ••• pants rolled up, marrons enroladas nas pernas, but not as some white legs, and hair. pernas brancas, e cabelos. FOR HELEN gross habit, please. ... If I can * * remember anything, it Your voice Thin faint Leve desmaio is the way ahead so quiet now, clouds begin nuvens começam you made for me, specifically: to drift over a vaguear por sobre so vacant, for me, sun, im- o sol, im- wet- no sound, on the phone, perceptibly. perceptivelmente. ness, now the grass as early it no clothes, on the floor, * * has webs, all the lawn no face, no hands, Stick stuck Galho preso stretched out from in sand, shoes, na areia, sapatos, the door, the back — if I didn’t want sweater, cigarettes. agasalho, cigarros. one with a small crabbed to be here, I wouldn’t porch. The trees * * are, then so high, a huge encrusted be here, and would No home more Sem uma casa mais sense of grooved trunk, be elsewhere? Then. to go to. para onde ir. I can slide my finger along ENTÃO * * each edge. Não vá But that line, Mas aquela linha, para as montanhas, sky and sea’s, de céu e mar, something else. alguma coisa a mais. PARA HELEN de novo — não … Se eu posso embora, zangada. Vamos * * me lembrar de algo, é Adios, water — Adiós, água — do caminho que resolver isso, você for another day. até um outro dia. você abriu para mim, especificamente: nunca foi a lugar algum.

umi- Eu fui — e aqui dade, agora a relva no mundo, olhando para trás leia mais poemas no www.rascunho.com.br

UEM SOMOS CONTATO ASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO CARTAS

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sujeito oculto : : rogério pereira

À espera do pai Ilustração: Fabiano Vianna

UEM SOMOS CONTATO ASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO CARTAS

EDIÇÕES ANTERIORES COLUNISTAS DOM CASMURROuncaENSAIOS E RESENHASodieiENTREVISTAS tantoPAIOL o LITERÁRIOpai. PRATELEIRAEu o NOTÍCIAS OTRO OJO esperava na porta de casa. Ele descia a rua de pedregulhos. NHavia pouco tempo deixá- ramos a roça. Agora, tínhamos de cavar um chão de concreto e asfalto. Trocamos a companhia de bois vagarosos pelo ron- co descontrolado de carros e ônibus. Aos poucos, nos acostumaríamos ao ruído da nova vida. Atrás da casa de madeira, cons- truímos nosso estádio — um estropiado Maracanã ladeado por cedros e uma tí- mida valeta. Nossa rede, as ancas do paiol em cujas vísceras dormiam ratos pançu- dos. E as ripas para a construção das es- tufas na floricultura onde morávamos de favor. Éramos retirantes num mundo que nos amedrontava. O pai carrega o pacote; vem em mi- nha direção. Eu o espero. A ansiedade a pulsar nas vértebras do pescoço. Um nó prestes a estourar no urro do animal an- cestral. Ele caminha devagar, como se ambicionasse congelar o tempo, paralisar o momento de entregar ao filho o pão que jamais saciaria a fome que arranhava as costelas delicadas. Te odiei tanto, pai, na tarde sem fim.A mãe ali por perto cuidan- do das azaleias, avencas e samambaias. Eu já havia anunciado aos amigos. A mi- nha espera era a espera deles. Éramos uma horda de gnus à beira de um rio seco, sem crocodilos. Correríamos em dispara- rícias e gentilezas. Rasguei o papel de cor lêncio indestrutível. Quietos e resignados, arrefecemos a sua fúria. Driblamos e a da ao nosso estádio de mentira. Seríamos, indefinida feito o esfomeado a estraçalhar rumamos ao nosso estádio. Eu carregava chutamos vida afora. enfim, pequenos deuses capazes de mila- o vestido da amante. o ódio debaixo do braço. Dói menos odiar o pai quando se gres indecentes. Bastava o pai me esten- À minha volta, pares de olhos em A bola pequena e feia — borracha está feliz. der as mãos grossas, calosas, herança de febre. Enfim, abandonaríamos a bola maldita — rapidamente se transformou. uma roça obsoleta e indesejada. O pai es- de plástico emprestada. Teríamos nossa Inventamos a bola perfeita. Nosso silên- tendeu-me as mãos. Sobre elas, o pacote. bola: grande, branca, de capotão. Do pa- cio virou algazarra. Os gnus ruidosos lam- Um simulacro de Papai Noel, cujas vestes pel amassado, a desilusão. Uma bola pe- biam o rio caudaloso. Crocodilos não nos tornavam risível a triste silhueta. Toma, quena, de cor escura, de borracha, fincava assustavam. Inventamos dribles para a NOTA filho. Agarrei com todas as minhas forças espinhos na palma da minha mão. Gostou, bola que pulava uma imensidão. Nossos Texto publicado originalmente no site de de nove anos. Davi e Golias trocando ca- filho? A pergunta do pai se perdeu no si- pés sofriam para dominá-la. Aos poucos, crônicas Vida Breve (www.vidabreve.com.br)