UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE COMUNICAÇÃO E EXPRESSÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA

Alencar Schueroff

João Cabral e Giorgio Caproni: (des) ativações poéticas

Florianópolis 2020

Alencar Schueroff

João Cabral e Giorgio Caproni: (des) ativações poéticas

Tese submetida ao Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina para a obtenção do título de doutor em Literatura. Orientador: Prof.ª Dra. Patricia Peterle Figueiredo Santurbano.

Florianópolis 2020

Alencar Schueroff João Cabral e Giorgio Caproni: (des) ativações poéticas

O presente trabalho em nível de doutorado foi avaliado e aprovado por banca examinadora composta pelos seguintes membros:

Profa. Dra. Lucia Wataghin Universidade de São Paulo – USP

Profa. Dra. Prisca Rita Agustoni de Almeida Pereira Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG

Profa. Dra. Ana Luiza Britto Cezar de Andrade Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC

Prof. Dr. Sérgio Luiz Rodrigues Medeiros Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC

Certificamos que esta é a versão original e final do trabalho de conclusão que foi julgado adequado para obtenção do título de doutor em Literatura.

______Coordenação do Programa de Pós-Graduação em Literatura

______Profa. Dra. Patricia Peterle Figueiredo Santurbano Orientadora

Florianópolis, 2020

Para Fernanda, Luiza e Davi.

AGRADECIMENTOS

À minha esposa, Fernanda Balem Tagliari Schueroff, paciente e amorosa incentivadora. Aos meus filhos, Luiza e Davi, por darem sentido e alegria à vida. Aos meus pais, Apolônia e Avelino, pelos fundamentos morais e culturais. Aos meus sogros, Paula e Jorge, pelo constante apoio. Ao professor Sérgio Medeiros, quem primeiro acreditou neste projeto. À professora Patricia Peterle, minha orientadora, pela dedicação e incalculável generosidade. Ao Programa de Pós-Graduação em Literatura da UFSC, pelos auxílios. Às equipes da Fundação Casa de Rui Barbosa, da Biblioteca Pública do Estado de Santa Catarina, do Gabinetto Scientifico Letterario G. P. Vieusseux (Florença) e da Biblioteca Marconi (Roma). A Enrico Testa, Adele Dei, Anna Dolfi, Luigi Surdich e Fabrizio Miliucci, pelo acolhimento na Itália. A Antônio Carlos Secchin, da ABL, pela solicitude. À Inez Cabral, pelas conversas.

Autocrítica

Só duas coisas conseguiram (des) feri-lo até a poesia o Pernambuco de onde veio e aonde foi, a Andaluzia. Um, o vacinou do falar rico e deu-lhe a outra, a fêmea e viva, desafio demente: em verso dar a ser Sertão e Sevilha. (João Cabral de Melo Neto. A escola das facas)

Gastronomica

Le parole vive. Le parole ardenti. Le parole mute Rimaste fra i denti. (Giorgio Caproni. Res amissa)

RESUMO

Esta pesquisa se propõe a analisar, simultaneamente, as produções de João Cabral de Melo Neto e de Giorgio Caproni, a fim de tentar perceber suas (des) ativações poéticas, ao longo desses diferentes percursos. Com o passar dos anos, em decorrência de diversas experiências vividas, o poder fazer poesia foi se modificando, à medida que novas potências foram sendo ativadas. O contato direto do italiano com a guerra, através da luta armada partigiana, e as atividades diplomáticas do brasileiro, as quais o aproximaram da Espanha, afastando-o de seu país, por exemplo, vieram a tonificar a tendência ao sintetismo que a eles parecia inerente. Assim, suas escritas vão se tornando cada vez mais potência e menos ato. Se se pensar que, de acordo com as ideias de Aristóteles, recuperadas por Giorgio Agamben, toda possibilidade de fazer/ser é, também, potência-de-não, e que, por isso, quando se vai ao ato, se leva tanto inspiração quanto impotência, o que ocorre com os poetas em cena seria uma espécie de dupla resistência.

Palavras-chave: João Cabral, Giorgio Caproni, (des) ativação, potência, resistência.

ABSTRACT

This research proposes to analyze, simultaneously, the productions of João Cabral de Melo Neto and Giorgio Caproni, in order to try to perceive their poetic (dis) activations, along these different paths. Over the years, as a result of several lived experiences, the possibility of making poetry has changed, as new potencies have been activated. The italian's direct contact with the war, through the partigian armed struggle, and the brazilian's diplomatic activities, which brought him close to Spain, moving him away from his country, for example, came to tone the tendency to the synthesis that seemed to them inherent. Thus, their writings become more and more potency and less act. If we think that, according to Aristotle's ideas, recovered by Giorgio Agamben, every possibility of doing/being is also a potency of not, and that, therefore, when someone goes to the act, he carries both, inspiration and impotence, what happens to the poets on stage would be a kind of double resistance.

Key-words: João Cabral, Giorgio Caproni, (dis) activation, potency, resistance.

RIASSUNTO

Questa ricerca propone di analizzare contemporaneamente le opere di João Cabral de Melo Neto e di Giorgio Caproni affinché si cerchi di percepire le (dis) attivazioni poetiche lungo questi differenti percorsi. Con il passare degli anni, a causa delle diverse esperinze vissute, il poter fare poesia si è via via modificato in base a nuove potenze che furono attivate. Il contatto diretto dell’italiano con la guerra attraverso la lotta armata partigiana e le attività diplomatiche del brasiliano che lo avvicinarono alla Spagna allontanandolo da proprio Paese, ad esempio, finirono per consolidare la tendenza al sintetismo che sembrava loro inerente. Così i loro testi diventano sempre più potenza e meno atto. Se si pensa, in linea con le idee di Aristotele recuperate da Giorgio Agamben, che ogni possibilità di fare/essere è anche potenza-di-non e che per questo, quando si passa all’atto, si porta tanto l’ispirazione quanto l’impotenza, quello che avviene con i poeti considerati sarebbe una specie di doppia resistenza.

Parole chiave: João Cabral, Giorgio Caproni, (dis) attivazione, potenza, resistenza.

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Desenho de Le Corbusier...... 47 Figura 2 – Casa projetada por Le Corbusier...... 48 Figura 3 e 4 – Fotos do ponto final da linha Zecca-Righi, em Gênova...... 74 Figura 5 – Ilustração de Aloísio Magalhães para Aniki Bóbó...... 164 Figura 6 – Folheto de abertura do livro O conde de Kevenhüller, de Giorgio Caproni...... 174

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO...... 10

2 PRIMEIRAS (DES) ATIVAÇÕES...... 21

2.1 PEDRA DO SONO: DESPERTAR...... 21 2.2 COMO UMA ALEGORIA: FRESCOR DIURNO...... 32 3 NOVAS POTÊNCIAS ATIVADAS...... 40 3.1 RAIMUNDO: ENGENHEIRO...... 40 3.1.1 Cabral e Le Corbusier: arquitetos...... 45 3.2 CAPRONI E AS MULHERES: (DES) ATIVAÇÕES FEMININAS...... 58 3.2.1 Caproni e a guerra: primeiros estilhaços...... 69 4 ESPANHA E FRANÇA: PRESENÇAS E AUSÊNCIAS...... 78 4.1 CABRAL NA ESPANHA: PRIMEIRAS DESERTIFICAÇÕES...... 78 4.2 CAPRONI NA ESPANHA: PRÓXIMA DISTÂNCIA...... 92 4.2.1 Caproni na Espanha: distância incorporada...... 105 4.3 CABRAL: NARRATIVIDADE E PRIMITIVISMO ESPANHOL...... 109 4.3.1 Cabral e a Espanha: narratividade e memória...... 122 4.4 CAPRONI: TRADUÇÃO E NARRATIVIDADE...... 126 4.4.1 Caproni e a França: tradução inenarrável...... 140 4.5 CABRAL E SEVILHA: LIÇÕES APRENDIDAS...... 148 5 A PALAVRA E O ATO...... 157 5.1 CABRAL: PRESENÇA AUSENTE...... 157 5.2 CAPRONI: AUSÊNCIA PRESENTE...... 166 6 CONCLUSÃO...... 179 REFERÊNCIAS...... 182 ANEXO – Caderno no pesquisador, do Ensino Fundamental, contendo um poema de João Cabral de Melo Neto...... 190

10

1 INTRODUÇÃO

Unir, em uma mesma pesquisa, dois poetas coetâneos, a fim de buscar similitudes e diferenças entre eles, não parece ser algo difícil de encontrar na academia. Torna-se, talvez, mais raro, quando eles não se conheceram, nem literariamente, nem fisicamente, pois, enquanto um, aparentemente, não tinha interesse em visitar a Itália o outro jamais veio à América do Sul. A aproximação entre as poéticas de João Cabral de Melo Neto (1920-1999), que foi a Roma apenas uma vez, e de Giorgio Caproni (1912-1990), que, quando saiu da Europa, visitou os Estados Unidos, se dá, então, pelas desativações que buscaram em relação às movimentações circundantes, pela modernidade inovadora que suas escritas apresentaram, em seus primórdios e, principalmente, na continuação de suas trajetórias, rumo ao contemporâneo, cujas ativações de potências proporcionaram gradativo pudor em relação à palavra, de maneiras distintas nos dois poetas. Estimularam, também, este estudo dois desafios: a) envolver a poesia cabralina, já tão estudada, com a Itália, pela primeira vez (salvo engano), no ano de seu centenárilo, quando uma série de outros materiais inéditos estão sendo lançados, como um livro de poemas feitos quando Cabral foi diplomata no Equador; b) realizar, no Brasil, a primeira tese sobre Caproni, escritor ainda pouco conhecido dos brasileiros, no ano que marca trinta anos de sua morte, ocasião que também merecerá ações, entre elas a publicação de Il mio Enea, de Filomena Gianotti. Os primeiros passos dados pelos dois poetas pareciam já vislumbrar algo distinto, tanto em relação às estruturas poéticas consagradas e às tendências a eles precursoras ou contemporâneas. Carregavam, talvez, o pressentimento de que ser poeta, não obstante os inevitáveis e importantes, porque ativadores, golpes aplicados pelo mundo sensível, consiste em um observar a própria potência-de-não, movimento autocontemplativo que suspende a linguagem de sua função mais imediata, comunicativa, fazendo emergir, provavelmente, algo que é da subjetividade de cada um. Será, portanto, um aporético jogo de mostrar e esconder, ao mesmo tempo, ideia que pode fazer lembrar as discussões de Giorgio Agamben e os questionamentos mais próximos ao campo da filosofia da linguagem em Homo sacer, obra política em que se questiona, entre outras coisas, a linguagem do direito, sugerindo para ela renovações que a afastem de seu modo expressivo convencional, imperativo e pouco humano, que se refere à vida como algo meramente biológico. A poesia, que, na visão agambeniana, é o pensamento no pensamento, mostra-se refratária a automatizações, podendo servir de paradigma para que outras searas reflitam sobre si próprias. 11

Aprofundando a questão da potência artística, o filósofo italiano adentra a ideia aristotélica de potência e ato, sobre a qual tem se debruçado em diversos de seus escritos, desde os anos 80. Negando os megáricos, para quem a potência de um vivente existe apenas quando ele a coloca no ato, Aristóteles propõe que o artista, o arquiteto, assim o é também quando não está em atividade, levantando a hipótese de que existe, dentro da possibilidade, uma impossibilidade, uma impotência, uma potência-de-não. São duas forças simbióticas e antagônicas, ao mesmo tempo, por isso, quando a potência se transforma em ato, faz parte do processo certa resistência, a qual não permite à potência, quando posta em prática, se esgotar. Os dois vetores estarão, dessa forma, em constante funcionamento dentro desse redemoinho do qual nada sai (por) inteiro:

o potente pode passar ao ato somente no ponto em que depõe a sua potência de não ser (a sua adymamía). Esta deposição da impotência não significa a sua destruição, mas é, ao contrário, a sua realização, o voltar-se da potência sobre si mesma para doar-se a si mesma.1

Essa conjectura, que se confunde com a própria noção de poesia, de arte em geral, fala de uma espécie de escavação do íntimo, dentro da qual o ser humano encontra espaço para avaliar, ainda que não se tenha domínio absoluto sobre a potência e a potência-de-não, em que medida a habilidade que detém pode sair do estado de steresis (termo de Aristóteles para “privação”). É um estado de superativa latência diretamente proporcional àquilo que se materializa em ato, o qual poderá ter as marcas da hesitação, promulgadora de fendas. Seria o que Franz Kafka não possibilita enxergar em suas narrativas longas ou curtas, a exemplo de “O artista da fome”, conto provocador de espanto pelo tipo de arte apresentado, cuja ação se revela tão somente pela aparência que o artista vai adquirindo com jejum, e não por algo que expressa com as mãos ou a voz. Ou então o cinema de Jean-Luc Godard. Viver a vida, que tem como epígrafe “É necessário se emprestar aos outros e dar-se a si mesmo” (Montaigne), tem, em seu início, um diálogo de quase dez minutos, durante o qual Nana e Paul conversam, em um café, de costas para as câmeras, permitindo aos expectadores não mais do que entrever as reações faciais provocadas pelas falas. As experiências ativadas em Cabral e Caproni, tornadas possibilidades poéticas, vieram a tonificar a sucintez que, desde o princípio, lhes parecia inerente. Por dentro da suspensão da

1 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução Henrique Burigo. Belo Horizonte : Editora UFMG, 2010, p. 52.

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linguagem informativa, tendo em vista a inoperosidade que a poesia evoca, desenvolve-se, com o passar das coletâneas, sistemas de criação em que a potência, a inspiração, o poder fazer, avolumam-se diante do ato. É como se falássemos de um movediço terreno de acúmulo de impotências antepostas à caneta no papel. Cabral, para quem a pedra foi referência desde o primeiro livro, Pedra do sono (1942), ainda que o onírico surrealista se fizesse presente, foi ampliando essa ideia com a ativação de potência poética promovida pelo conhecimento da Espanha que, tanto com a secura de seus campos – o “rigoroso horizonte”, para lembrar Jorge Guillén –, quanto com suas águas salobras, fez acender um desdobramento de potência, que é o nordeste: “Em meio à bacia negra / desta maré quando em cio, / eis a Albufera, Valência, / onde o Recife me surgiu” (“Volta a Pernambuco”, de Paisagens com figuras (1955)). Para além da paisagem onde a pedra é componente do cenário, como no deserto de Anfion e no sertão por onde o Capibaribe e o sertanejo transitam, ela será a “professora” que ensinará o fazer, pela sua presença que, de tão discreta e fria, quase passa despercebida. Mas está ali, podendo despertar interesse, talvez, menos pela sua aparência (afinal, não falamos de pedras preciosas) do que pela sua composição inorgânica, erigida por demorado processo de junções. Em A educação pela pedra (1966), as lições minerais estão, a um só tempo, explícitas e implícitas, camufladas em uma organização estrutural levada ao seu ápice, assim denudada por Antônio Carlos Secchin:

Há 24 poemas pernambucanos e 24 com temas variados, compartimentados em quatro seções, referidas, na primeira edição do livro, com o “a”, “b”, “A” e “B” (cada qual com doze textos). Nas seções ou partes minúsculas, os poemas têm dezesseis versos; nas maiúsculas, 24. Em “a” e “A”, os temas são pernambucanos; em “b” e “B”, variados. A rima, nas duas seções iniciais, comparece, toante, nos versos pares, com esquema bastante diversificado (mas nunca deixando de existir) nas partes finais.2

As engrenagens bem pensadas dessa “máquina”, entretanto, não desejam um funcionamento uniforme da poesia, são apenas o modus operandi, sem o qual o poeta não sabe transformar privação em ato: a emoção só se faz dentro da manipulação de imagens concretas, as quais, aliás, também devem ser mantidas sob desconfiança. Similar a um santeiro, que fabrica dezenas de peças da mesma figura sem jamais fazer uma exatamente igual à outra, A educação

2 João Cabral: uma fala só lâmina. São Paulo: Cosac Naify, 2014, p. 237.

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pela pedra quererá um aspecto próprio para cada poema. A poesia cabralina como artesanato que se comprova já na sua origem, pois uma averiguação genética de A educação pela pedra,3 feita na Fundação Casa de Rui Barbosa, visitada duas vezes pelo presente pesquisador,4 no decorrer dos estudos, resulta na descoberta de uma feitura à mão da obra, conseguida à custa de intenso labor, em que muitos experimentos foram feitos (“Catar feijão” poderia ter sido “Catando feijão” ou “Sobre catar feijão”) até que a publicação de consumasse. O texto homônimo ao livro pode ilustrar a instrumentalização aprimorada a partir da potência ativada pelos “campos de Tarragona”, na Catalunha:

A educação pela pedra

Uma educação pela pedra: por lições; para aprender da pedra, frequentá-la; captar sua voz inenfática, impessoal (pela de dicção ela começa as aulas). A lição de moral, sua resistência fria ao que flui e a fluir, a ser maleada; a de poética, sua carnadura concreta; a de economia, seu adensar-se compacta: lições da pedra (de fora para dentro, cartilha muda), para quem soletrá-la.

*

Outra educação pela pedra: no Sertão (de dentro para fora, e pré-didática). No Sertão a pedra não sabe lecionar, e se lecionasse, não ensinaria nada; lá não se aprende a pedra: lá a pedra, uma pedra de nascença, entranha a alma.5

Trata-se de um dos muitos casos em que a metalinguagem, no poeta, é lateral, deixando ao leitor a escolha de imputar à escrita as lições da pedra. Na primeira estrofe não há paisagem definida, sendo que o foco está na relação ensino-aprendizagem, em que, quem educa, não o faz pela convencional aula expositiva, centrada na explicação do professor, defronte a uma turma que

3 ROCH, Francisco José Gonçalves Lima. O canteiro do poeta-arquiteto: a conduta criativa de João Cabral de Melo Neto à luz de seus manuscritos. Rev. Inst. Estud. Bras. no.55 São Paulo Sept. 2012. 4 Ambas as pesquisas de campo realizadas com auxílio de custo do Programa de Pós-Graduação em Literatura da UFSC. Na segunda ida ao , foi feita também entrevista com Antônio Carlos Secchin, no dia 19/04/2018, na Biblioteca Lucio de Mendonça, da Academia Brasileira de Letras. 5 MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Rio de Janeiro : Nova Aguilar, 2003, p. 338.

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deve estar em silêncio. O silêncio, aqui, é o que se ensina, restando ao aluno frequentar a pedra e captar sua dicção, sua moral, sua poética, sua economia, âmbitos rodeados pelo signo do menos. Ao estabelecer o sertão nordestino como lugar, tendo em vista que esta é a seção “Nordeste (a)”, um aspecto social vem à tona: quem lá vive não precisa aprender com a pedra, é pedra, “uma pedra de nascença, entranha a alma”. Antes, porém, de chegar à pedra, Cabral já havia conseguido criar ambiência para que ela pudesse ter um habitat. O projeto de fazer poesia desmistificada, com simples objetos, encontrou reforço na leitura de Le Cobusier, um das descobertas que a biblioteca de Willy Lewin proporcionou. A opção do arquiteto franco-suíco era pela planta livre, em que colunas de sustentação ficassem visíveis e independentes, o que permitia às construções terem espaços integrados, divididos por mobília, em vez de paredes; dessa forma, os ambientes ganhariam em amplitude e claridade, intensificada pela utilização de janelas em fita, que facilitam a entrada de luz e ventilação. O poeta, a partir dessa nova inspiração, troca a noite pelo dia, o sono pelo despertar, voltando-se para o exterior, tanto na voz poética, que agora será, por vezes, em terceira pessoa, quando nos cenários abertos, como ocorre em “As nuvens”, primeiro poema de O engenheiro (1945):

As nuvens são cabelos crescendo como rios; são os gestos brancos da cantora muda;

são estátuas em voo à beira de um mar; a flora e a fauna leves e países de vento;

são o olho pintado escorrendo imóvel; a mulher que se debruça nas varandas do sono;

são a morte (a espera da) atrás dos olhos fechados; a medicina, branca! nossos dias brancos.6

6 MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único, op. cit., p. 67.

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Determinado por versos curtos, de métrica incomum, que varia entre cinco, seis e sete sílabas poéticas, o ritmo do texto parece ter a ligeireza análoga à passagem das nuvens pelo céu, em blocos de imagens, representados pelas quatro estrofes. A sobreposição imagética cabralina, através de uma autocorreção das ideias, em que a imagem primeira é potencializada pelas seguintes, é vista e mostrada por olhos não identificados. Tudo o que é humano, aliás, por estar estrategicamente em situação de nuvem, sofre certa desativação que lhe confere aspecto inanimado (“cabelos / crescendo como rios”, “o olho pintado”) ou desabilita aquela que seria sua função (“gestos brancos / da cantora muda”). Até mesmo a última parte, que poderia sugerir alguma interiorização, com a conclamação que o pronome “nossos” possui, faz questão de trocar a escuridão, as trevas inerentes às circunstâncias da morte, pela brancura, semelhante ao avental médico. O vazio, enfim, é branco, tal qual o decorrer da coletânea. Do céu para a terra, Psicologia da composição (1947) prioriza, também, o dia (“Ali, nada sobrou da noite”), trazendo como lugar um deserto limpo, com a assepsia de “um pomar às avessas”. É por onde Anfion anda, em companhia apenas de sua flauta, que difere da mitológica, por ser muda, como a cantora de “As nuvens”. Essa obra, a primeira com potência espanhola, inaugura em Cabral não só os temas espanhóis e nordestinos, com sua aridez desértica, uma batalha para que o semântico esteja de acordo com o semiótico, dentro da qual o cantar “a palo seco”, de Quaderna (1960), tenha uma forma poética que consiga rasgar o silêncio por si só, sem o auxílio instrumentos de apoio, à maneira de Anfion. Dessa safra, A educação pela pedra talvez seja o principal símbolo, com seu máximo esforço de controles estrutural e vocabular, no sentido de que não se tenha soluções rítmicas clássicas e se possa erguer um “monumento à aspirina” ou falar de chiclets. Esse objetivismo, entretanto, não pode ser visto de forma simplesmente tautológica, sob a qual “nada de oculto resta atrás das coisas. (...) Trata-se de não embaciar as coisas por meio de carga sentimental, para que se apreendam os aspectos, ângulos, os horizontes que lhes restam ocultos”.7 De Museu de tudo (1975) em diante, com a mineralização consumada, Cabral pode, com passos sempre cuidadosos, experimentar outras veredas, como a das memórias mais longínquas, dos tempos em que lia história de cordel para os empregados do engenho do pai, operadas a partir do uso de coisas (da cana-de-açúcar, por exemplo), com delicadeza, através de breves pinceladas,

7 LIMA, Luiz Costa. Lira e antilira: Mário, Drummond, Cabral. Rio de Janeiro : Editora Civilização Brasileira, 1968, p. 402.

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aqui e ali, em gesto arqueológico, que vai desvelando as camadas com suas ruínas, para recordar as considerações de Walter Benjamin e seu “Escavando e recordando”.8 Cada resto de “artefato” encontrado é uma pequena peça de um imenso mosaico, trazido à tona do jeito que foi recuperado, com as imperfeições, próprias de algo que ficou por anos soterrado, com o tom amarelado de “sépia diluído / de fotografia antiga”, de onde se capta apenas uma “atmosfera” daquilo se já foi, como está dito em “O profissional da memória”, de Museu de tudo.9 A memória, para Cabral, assim como para Caproni, não é aquela idílica de Casimiro de Abreu. Conquanto nas “prateleiras de exposição” do maduro poeta pernambucano o espaço para a metalinguagem não é mesmo de outrora, não deixam de rondar sua escrita inquietações acerca da palavra, por se ver quase impotente frente a ela, sendo que a “mumificação”, a fixação da poesia em livro, é a alternativa para conter sua selvageria, conforme a advertência de “O que se diz ao editor a propósito de poemas”, no começo de A escola das facas (1980). Caproni, para quem a decantação poética fez crescer quantitativamente as reflexões metalinguísticas, possui outro viés a respeito das palavras, da linguagem, assumindo, dentro de suas divagações cada vez mais infensas ao ato de criação, por consequência da relação de estranheza perante os significantes, a impotência do termo nomeante. Essa tomada de consciência, contudo, emerge acompanhada de um sentimento parecido com a experiência da “ateologia” (neologismo do poeta), da constatação da inexistência de Deus, vista pelo poeta com “desespero calmo”, como diria o personagem que dá nome ao livro A despedida do viajante cerimonioso e outras prosopopeias (1965), pouco antes de descer ao final de seu trajeto ferroviário, que não deixa de coincidir com o da vida. O conde de Kenvenhüller (1986), última obra publicada por Caproni (Res amissa, de 1991, é póstuma), tem como foco uma besta que participa de vários poemas, sem que se consiga construir uma imagem definitiva dela. Segundo o autor, ela pode representar o mal em suas múltiplas facetas, podendo ser associada a Deus ou à linguagem. No poema a seguir, a referida personagem não aparece explicitamente:

Contracanto

Não no meio, mas no limite Do caminho.

8 Rua de mão única. Tradução Rubens Rodrigues Torres Filho e José Carlos Martins Barbosa. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 239-240. 9 MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único, op. cit., p. 401-402.

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A selva

(o medo)

...duro...

...oscuro. A via

(a vida)

Perdida. [...]

A viagem jamais começada (a linguagem lacerada) atingiu a região de sua coroação.

O nascimento.

(A demolição).10

Caproni, violinista que levou para a poesia a musicalidade das partituras, escolhe um título retirado do jargão musical: contracantos são melodias que acontecem paralelamente à melodia principal, definição que pode explicar, além da participação oblíqua da besta no texto, pois se pode ver somente negatividade a que ela está atrelada, a menção mais evidente à Divina Comédia, figura que acompanhou experiências de leitura e escrita, sendo que, neste quesito, Dante Alighieri opera de modos diversificados, na melodia ou em contraponto. Anna Dolfi, entrevistada para esta pesquisa,11 disse que, para Caproni, Dante é a nostalgia de algo irrealizável,

10 “Non nel mezzo, ma al limite / del camino. // La selva // (la paura) // ...dura... // ...oscura. // La via // (la vita) // Smarrita. // [...] // Il viaggio / Mai cominciato (il linguaggio / lacerato) ha raggiunto / il punto della sua incoronazione. // La nascita. // (La demolizone.)”. CAPRONI, Giorgio. L’opera in versi, op. cit., p. 619. Tradução nossa. Durante o trabalho, as traduções sem especificação de autor são nossas e as do livro A coisa perdida: Agamben cometa Caproni são de Aurora Fornoni Bernardini, que foi quem também traduziu os títulos das coletâneas capronianas que adotamos. Há outras, ainda, as quais serão devidamente referendadas. 11 Entre dezembro de 2017 e janeiro de 2018, o pesquisador realizou viagem à Itália, parcialmente subsidiada pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura da UFSC, a fim de realizar pesquisas de arquivo e entrevistar, além de Anna Dolfi, Enrico Testa, Adele Dei, Luigi Surdich e Fabrizio Miliucci. Para tanto, fazia-se necessário idas a Gênova, Florença e Roma. A experiência foi, ainda, uma maneira de aprimorar os estudos da língua italiana, feitos em sistema extracurricular, oferecido pelo Departamento de Língua e Literaturas Estrangeiras da UFSC, e de conhecer as cidades relevantes para a poesia de Caproni. A este respeito, diga-se de passagem, o pesquisador conheceu,

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uma potência jamais desativada e que leva o poeta livornense de nascimento e genovês de alma a estar sempre às voltas com uma obra monumental, da qual faz inúmeros recortes, como é o caso de “Contracanto”, paródia dos versos iniciais do “Inferno”. Ao passo que Dante está no meio do caminho da vida, tendo, portanto, tempo hábil de empreender mudanças, o poema supracitado fala, a princípio, de um limiar, de um fim da linha, para utilizar expressão que faça recordar o trem e a funicular, meios de transporte que, com frequência, podem ser vistos, na poesia caproniana como metáforas existenciais. A morte, outro papel que a besta pode assumir, é, então, o que se imagina a partir dos dois primeiros versos, os quais vêm seguidos pela selva, ambiente amedrontador e de absoluto desencanto, pois se tem à frente escuridão, e o que se deixou para trás está perdido, é vazio. Se depender da linguagem, aliás, como está dito ao final do poema, não há nem viagem, pela sua incapacidade de dizer, fragmentada que está: a viagem seria, assim, morte, “demolição”. Percebe-se, nesse ponto, o trejeito cabralino de conciliação entre discurso e prática, devido ao aspecto estilhaçado a que a escrita de Caproni chegou, em suas últimas publicações. O enjambement, mantido no limite do possível, em decorrência de cesuras que permitem, muitas vezes, não mais do que uma palavra no verso. Quando algum adicional é concedido, aparecem as reticências, sinal gráfico comum em Louis-Ferdinand Céline, traduzido pelo poeta italiano, e que acaba por exiliar nos silêncios do branco da página. Durante o percurso percorrido até a chegada nessa maneira de expressão poética de palavra-iceberg, cujo volume da base é bem maior do que o cume, algumas ativações de potência, ligadas a tragédias pessoais, parecem ter começado a atuar no ato de criação, estimulando, gradativamente, certo convulsionar na poesia de Caproni. É o caso de sua experiência na Segunda Guerra Mundial, como partigiano, entre 1944 e 1945, nos montes de Val Trebbia. Como consequência do conflito bélico, ele viu também o estado de destruição de sua amada Gênova, após os bombardeamentos que sofreu. O resultado, a princípio, será uma fase genovesa do poeta, encenada por A passagem de Eneias (1956), cujo título vem de um monumento dedicado ao mitológico Eneias, estabelecido na Piazza Bandiera e que resistiu aos ataques alemães. Semelhantes a destroços será a estrutura de “Ladainha”, espécie de listagem da representatividade de Gênova para o poeta, em que desfilam tempos diferentes: infância,

ainda, Livorno, cidade-natal do poeta, onde caminhou pelas ruas e principais pontos que fazem parte de suas mais tenras recordações.

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adolescência e juventude vividas na cidade se misturam às bombas causadoras do desmantelamento, presenciado por um Caproni que, desde o final dos anos de 30, morava em Roma. Eis uma das passagens em que Gênova é chamada de partigiana:

[...] Gênova que se resgata. Toldo. Azul. Lata. Gênova sempre humana, Presente, partisã. [...]12

“A guerra”, para Caproni, “não é somente um fato histórico, mas, mesmo quando estiver longe no tempo, atuará nele, transformando-se em um modo de interpretar os fatos da vida; isto é, em uma alegoria da existência, por assim dizer”.13 Assim, a guerra não precisa ser tema recorrente para que aja na escrita, bem como a morte da mãe, Anna Picchi, em 1950. A semente do pranto (1959), porém, subsequente a A passagem de Eneias, terá a primeira seção, “Versi livornesi” [Versos livornenses], dedicada a ela. Annina, como será chamada, será personagem de uma narrativa preparada em cenas (poemas) diversas, das quais emergirá uma “operária rainha”, uma mulher cuja nobreza está na simplicidade. Esse mergulho em suas próprias “galerias da alma” – para recordar o espanhol Antônio Machado, admirado e também traduzido por Caproni –, impulsionado pelo luto, consiste na busca por algo que já se sabe perdido: a mãe, qual Gênova dos tenros anos, não pode ser recuperada. A entrada na segunda metade do século XX significa, portanto, o começo de uma busca por pertencimento, por algo que parece cada vez mais distante, processo durante o qual

o poeta chega à sua maturidade e, ao mesmo tempo, perde a linguagem, como se estivesse deslocado numa espécie de terra estrangeira (...). O resultado é que na grande literatura toda língua é uma língua estrangeira, como já dizia Proust no final de Contra Saint-Beuve, mais tarde também retomado por Deleuze. Da Semente em diante, depois da proliferação de personagens, alguns mais tagarelas

12 “Genova che si riscatta. Tettoia. Azzurro. Latta. / Genova sempre umana, / presente, partigiana”. CAPRONI, Giorgio. A coisa perdida: Agamben comenta Caproni. Florianópolis : Ed. da UFSC, 2011, p. 136-137. 13 TESTA, Enrico. Cinzas do século XX: três lições sobre a poesia italiana. Organização Patricia Peterle, Silvana Gaspari. Rio de Janeiro : 7 Letras, 2016, p. 80.

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na Despedida, a língua de Caproni assume derivas sem retorno, pois será de agora em diante uma língua que engasga, murmura, balbucia.14

O muro da terra, publicado em 1975 e considerado por muitos estudiosos como o primeiro livro do último Caproni, já apresenta sinais acima descritos, em meio a outros esvaziamentos, tais como a referida ausência de Deus, a substituição das pessoas por vultos, a inexistência de personagens falantes ou de um eu empírico. Nesse contexto apocalíptico, será difícil identificar Livorno, Gênova, Roma ou qualquer outro lugar, como não ocorre na poesia cabralina, em que as cidades permanecem sempre:

Retorno

Voltei para lá onde jamais havia estado. Nada, de como não era, foi mudado. Sobre a mesa (no encerado xadrez) semiesvaziado encontrei o copo jamais enchido. Tudo ainda permanece tal qual nunca o havia deixado.15

14 PETERLE, Patricia. Inoperosidades: Giorgio Agamben, Antonio Delfini e Giorgio Caproni. Revista Diálogos Mediterrânicos. Número 14 – Junho/2018, p. 91. 15 “Ritorno: Sono tornato là / dove non erro mais tato. / Nulla, da come non fu, è mutato. / Sul tavolo (sull’incerato / a quadretti) ammezzato / ho ritrovato il bicchieri / mai riempito. Tutto / è ancora rimasto quale / mail l’avevo lasciato”. A coisa perdida: Agamben comenta Caproni, op. cit., p. 192-193.

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2 PRIMEIRAS (DES) ATIVAÇÕES

2.1 Pedra do sono: o despertar

João Cabral de Melo Neto e Giorgio Caproni iniciaram suas atividades de escrita nos anos 30, quando grandes revoluções na poesia já haviam se manifestado. Maurice Blanchot, anuncia que, após 1850, “o mundo moderno vai mais decididamente em direção a seu destino”16. De fato, com Charles Baudelaire e seu As flores do mal (1857), considerado por muitos estudiosos o pai da poesia moderna, as coisas parecem entrar em uma nova esfera. Tanto em escritos teóricos quanto em versos amadurecidos, o francês lançou mão do “uso alegórico de imagens urbanas, que funcionam como uma ligação entre o real e o intemporal, o fenômeno e a Ideia; ao combinar um novo realismo a sua busca de arquétipos”.17 Deu-se, então, um movimento em que o texto sai dele mesmo e volta-se às ruas, trazendo à tona, sob um ponto de vista inquieto, ácido, uma Paris cada vez urbanizada e sufocante em tempos de Revolução Industrial. Fica para trás, também, o cristianismo romântico, substituído por certo satanismo – tão discutido acerca da obra baudelairiana – e por um Cristo que, quando aparece, traz consigo um aspecto de abandono. E, se acaso fizermos um recorte no sentido das estruturas poéticas de As flores do mal, percebemos que, mesmo havendo proeminência do medieval soneto, os poemas não são dispostos aleatoriamente, mas arquitetados de maneira quase matemática, formando arabescos18 que vão se entrelaçando na vertical. A partir do caminho trilhado por Baudelaire, diversos nomes surgiram, mantendo seu legado ou ampliando-o: Mallarmé e o pioneiro projeto gráfico de Um lance de dados jamais abolirá o acaso; Apollinaire que, além da novidade formal dos Caligramas, utiliza-se de termos pouco convencionais; Ungaretti e a ruína do verso; Pound e a desintegração do “eu”, que cede espaço para inúmeras vozes intertextuais; entre outros tantos. E muito do que foi feito nas primeiras décadas do século passado serviu de base para o que se chama de contemporaneidade, como é o caso da expressão “Noigrandes”, retirada dos Cantos de Pound, que virou título da revista

16 Data lançada por Blanchot em O livro do por vir. Tradução Leyla Perrone-Moysés. São Paulo: Martins Fontes, 2005. 17 HAMBURGUER, Michael. A verdade da poesia: tensões na poesia modernista desde Baudelaire. Tradução Alípio Correia de Franca Neto. São Paulo: Cosac Naify, 2007, p. 16. 18 Significante utilizado por Hugo Friedrich em Estrutura lírica moderna: da metade do século XIX a meados do século XX. Tradução Marise M. Curioni. São Paulo: Duas Cidades, 1978.

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concretista. Esta modalidade de poesia prenuncia “a poética digital contemporânea, em que a letra, a fonte, o tamanho, o espaçamento e a cor são utilizados para gerar complexas configurações verbivisuais”.19 Até alcançar esta fase, porém, a produção poética brasileira conheceu algumas tendências. Quando, em 1942, João Cabral publicou seu primeiro livro, Pedra do sono, já tínhamos passado, por exemplo, pela ruptura radical que a Semana de Arte Moderna propunha em relação a tradições parnasianas no que toca forma e conteúdo, bem como pela onda posterior de poetas, encabeçada por Carlos Drummond de Andrade, , Murilo Mendes, entre outros, que conjugavam o verso livre modernista com certo intimismo e a retomada de formatos convencionais, recuperados da arte clássica. Despontava, então a chamada Geração de 45, movimento cujos poetas “entenderam isolar os cuidados métricos e a dicção nobre da sua própria poesia elevando-os a critério bastante para se contraporem à literatura de 22”.20 Havia, assim, intenção de distanciar-se do prosaico e do nacionalismo modernistas em função de um “enobrecimento” da expressão poética, com grande quantidade de metáforas e das já anteriormente retomadas formas clássicas, como o soneto. A primeira oficialização do grupo veio em 1951, pelas mãos de Fernando Ferreira de Loanda e seu Panorama da Nova Poesia Brasileira, na qual figuravam nomes como Alphounsus de Guimarães Filho, Paulo Mendes Campos, José Paulo Paes e João Cabral de Melo Neto. A poética de 45 lembrava, em certos momentos, padrões pré-modernistas, parnasianos, como se percebe em texto de Ledo Ivo, de 1944, intitulado “Soneto da mulher e a nuvem”, no qual um típico eu lírico, romântico, expressa o desejo por uma mulher feito nuvem, inalcançável, que deixa nele as marcas de um amor reprimido. Apesar de o poema de Ledo Ivo ser dedicado ao amigo Cabral, este, de modo geral, não parece partilhar dos mesmos ideais poéticos dos seus pares de geração. Para , a poesia-minuto da fase heroica modernista, que deixou marcas em Alguma poesia, de Carlos Drummond de Andrade, “vai encontrar o seu lugar natural na linguagem reduzida da poesia cabralina”,21 a qual, na busca por uma exatidão expressiva, não abre espaço para longos (ou encerrados em um soneto, de versos decassílabos e rimas intercaladas) devaneios líricos de

19 PERLOFF, Marjorie. O gênio não original: poesia por outros meios no novo século. Tradução Adriano Scandolara. Belo Horizonte : Editora UFMG, 2013, p. 43. 20 BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo : Editora Cultrix, 1994, p. 464. 21 CAMPOS, Haroldo de. “O geômatra engajado”. In: Metalinguagem e outras metas: ensaios de teoria e crítica literária. São Paulo : Perspectiva, 2010, p. 78.

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um sujeito poético sofrido pela ausência de sua musa, ainda que, para Cabral – e Caproni – a mulher desempenhará relevante papel. Cabral, assim, traz nova proposta, tanto em relação aos seus antecedentes, quanto aos seus coevos. Naturalmente, leu Manuel Bandeira, seu primo, e Carlos Drummond de Andrade, incorporando certa “despoetização” que ambos lograram promover, seja pela inserção do coloquial e do prosaico, seja pelo versilibrismo e os ritmos quebrados, mas coube a ele a “desmistificação do lirismo”,22 um repensar o eu e os ideais dos românticos – insistentes, ainda, em permanecer nas letras brasileiras dos primeiros anos do século XX –, os quais “encaravam o poema como fundamentalmente uma obra de auto-expressão – um transbordamento de emoção, uma irrupção de canto”.23 Assim, não se pode dizer que o poeta pernambucano iniciou sua produção em sintonia com seus contemporâneos e, com o passar das publicações, foi se distanciando, como ocorreu, talvez, com Manuel de Barros (também presente na coletânea de Loanda), cujas inovações na linguagem serão sentidas, principalmente, a partir dos anos 60. Pedra do sono, apesar de ser apenas o início da caminhada poética de Cabral, trouxe um frescor que chamou a atenção de Antonio Candido, quando lhe caiu nas mãos uma das 250 cópias feitas – número, parco que parece refletir o sistema editorial da época (o qual, talvez, não seja muito diferente do que é hoje), bem mais interessado em publicar romances nacionais e internacionais, como explica o Sergio Miceli, em Intelectuais à Brasileira,24 reunião de livros e artigos em que o sociólogo estuda as elites intelectuais brasileiras no quadro da República Velha e no período modernista. No artigo “Poesia ao norte”, Candido se mostra impressionado com a originalidade do livro “de um poeta extremamente consciente, que procura construir um mundo fechado para sua emoção, a partir da escuridão das visões oníricas”, 25 mas que, não obstante sua consciência, seu rigor, não se trata de “um edifício racionalista”, pois é justamente “ordenação vigorosa que o poeta imprime ao material que me fornece a sensibilidade”. Candido não deixa de notar também a força que os vocábulos assumem, sobrepondo-se à “sequência verbal”, conforme já mostra a epígrafe mallarmeana: “Solitude, récif, étoile...” [“Solidão, recife, estrela”]. A conclusão de que serão os

22 LIMA, Luiz Costa. Lira e antilira: Mário, Drummond, Cabral, op. cit., p. 270. 23 WILSON, Edmund. O castelo de Axel: um estudo sobre a literatura imaginativa de 1870 a 1930. Tradução José Paulo Paes. São Paulo : Companhia das letras, 2004, p. 99. 24 São Paulo : Companhia das letras, 2011, p. 152-153. 25 As citações em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/remate/article/view/8635983/3692. Acesso 15 out. 2019.

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significantes, portanto, a oferecer a emoção dos poemas virará paradigmática nos diversos estudos posteriores sobre a obra cabralina, que falarão da relevância dos substantivos, dos termos concretos. Nesta linha, palavras como “solidão” não serão uma constante, como expõe o próprio Cabral em carta datada de 1947, ao colega diplomata Lauro Escorel:

Não há mérito em se fazer um poema com coisas que já são poéticas antes de entrar no poema. O mérito está em dar a qualquer palavra a dignidade de poema. Por isso procuro não me afastar muito de certa técnica mental que consiste em pensar com coisas. Isso me evitará a fraqueza de botar num verso palavras como: saudade, angústia, alegria, perplexidade, enfim palavras abstratas.26

Aqui, parece caber o primeiro paralelismo desta pesquisa entre os pensamentos de Cabral e Caproni, ainda que isso não ocorra a partir de poemas, os quais, doravante, serão base mais recorrente para analogias entre os referidos escritores. Quando Cabral, em epístola, defende a utilização de coisas que, antes de fazerem parte da poesia, são ordinárias, “apoéticas”, tem seu uso inerente a atividades cotidianas (mesa, cadeira) ou estão na natureza compondo uma paisagem qualquer (pedra), pode estar construindo a ideia de “poesia-coisa”; a própria poesia faz- se coisa, desmistifica-se, incitando, desse modo, a existência de uma via de mão dupla, em que o outro lado (o leitor), seja o condutor da abstração, após manter uma proximidade com o texto similar, talvez, a que possui com os objetos de sua sala de jantar. Essa ideia parece aproximar-se de um pequeno ensaio de Caproni chamado “Versos como utensílios”, publicado na revista Mondo Operaio, em 1949, em que há ponderações acerca de modos para a utilização da poesia por parte das pessoas: “as palavras dos poetas (os versos) valem enquanto cada homem pode usá-las para um útil preciso fim prático, exatamente como cada homem pode usar (...) a calçadeira ou a vassoura”.27 É o entendimento de que o texto poético deve ser um apetrecho do dia-a-dia, criado pelo homem para ser tornar uma extensão do corpo. Não se trata, obviamente, de pregar um quadro na parede com poesia: a necessidade que ela supre atua no campo da subjetividade, como quem, no momento em que realiza uma obrigação (Caproni cita as lavadeiras), cantarola uma música. Para Caproni, o trabalho e as

26 MELO NETO, João Cabral. Carta a Lauro Escorel. Balenyà, 11 de agosto de 1947. Fundação Casa de Rui Barbosa. JCMN CP 390. 27 In: A porta morgana: ensaios sobre tradução. Prefácio, Enrico Testa; organização e tradução, Patricia Peterle. São Paulo : Rafael Copetti Editor, 2017, p. 83.

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divagações andam juntos, pois, nessas situações, a canção exprime “aqueles lábeis sentimentos e aquelas frágeis fantasias genéricas”.28 E, teorizando um pouco acerca de poesia, o ensaio argumenta que, para atingir o maior número de indivíduos possível, ser “útil” para todos, as palavras devem também ser genéricas, universais, pouco explicativas, sendo que, dessa forma, é mais fácil para alguém se apropriar do texto quando “precisa”. Defende o ensaio, no entanto, que, para que haja uma proximidade orgânica, digamos, entre versos e cidadãos, é importante uma atitude de base. As escolas, muitas vezes, “nos ensinaram a respeitar demais os poetas”, a “colocar a poesia num pedestal”, quando eles deveriam simplesmente pairar por entre as crianças, misturando-se aos “pensamentos cotidianos”,29 aos materiais escolares, deveriam ser artefatos, físicos ou não, que portamos para funções diversas no “mundo do trabalho”, para retomar expressão de Georges Bataille, ainda que seja para dele evadir. A poesia como artesanato permite um retorno a Cabral, que não fazia distinção entre arte e artesanato: “Para mim, um poeta, um escritor, um romancista é um artista como um sujeito que faz sapatos”.30 De volta a Cabral e Candido, para ilustrar uma tese sobre narratividade – cuja utilização terá diversas modulações na trajetória poética de Cabral – e potência vocabular, o teórico cita “Dentro da perda da memória”, poema que traz versos com imagens singularíssimas, como “as bicicletas de meu desespero” e “hierofante armado cavaleiro”. Escolhemos “A poesia andando”, visando observar o que disse o estudioso e procurando refletir acerca da oposição que os escritos cabralinos iniciais fizeram ao que estava sendo produzido nas primeiras décadas do século XX:

A poesia andando

Os pensamentos voam dos três vultos na janela e atravessam a rua diante de minha mesa.

Entre mim e eles estendem-se avenidas iluminadas que arcanjos silenciosos percorrem de patins.

28 CAPRONI, Giorgio. “Versos como utensílios”. In: A porta morgana: ensaios sobre tradução, op. cit., p. 83. 29 Idem, p. 84-85. 30 MELO NETO apud ATHAYDE. Ideias fixas de João Cabral de Melo Neto. Rio de Janeiro : Nova Fronteira : FBN; Mogi das Cruzes, SP : Universidade de Mogi das Cruzes, 1998, p. 188.

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Enquanto os afugento e ao mesmo tempo que os respiro manifesta-se uma trovoada na pensão da esquina.

E agora em continentes muito afastados os pensamentos amam e se afogam em marés de água paradas. 31

Já em Pedra do sono Cabral trabalha certa aproximação entre poesia e narratividade, algo, talvez, ainda fresco na memória do jovem que, poucos anos antes, nos engenhos de açúcar do pai, lia, em segredo, histórias de cordel para empregados analfabetos, como conta em “Descoberta da literatura”, de A escola das facas: “No dia-a-dia do engenho, / toda semana, durante, / cochichavam-me em segredo: / saiu novo romance. / E da feita do domingo / me traziam conspirantes / para que os lesse e explicasse / um romance de barbante”.32 O “romance de barbante” (variação para o nome do gênero que era pendurado em barbantes, cordas ou cordéis a fim de serem colocados à venda) mescla forma rigorosa e complexa, como a sextilha e as quadras (estilo estrófico, a propósito, assaz utilizado por Cabral, tal qual ocorre em “A poesia andando”) com narrativas que podem ir da biografia aos romances históricos ou de aventuras e que, muitas vezes, são imbuídos de elementos mágicos e influência religiosa, pois “vários folhetos servem como propagadores da moral e costumes cristãos”.33 Mesmo o cordel possuindo uma forma demasiadamente complexa para Cabral (que se dizia mais influenciado pela simplicidade da poesia primitiva espanhola), a modalidade, possivelmente, está ligada ao fato de que os elementos típicos do texto narrativos e teatrais, como data, lugares, personagens, os quais, segundo Enrico Testa, em Caproni aparecerão com mais afinco nos anos 60,34 tendo em vista que as primeiras publicações do poeta italiano possuem entonação mais descritiva e as últimas com versos mais fragmentados e reticentes, parecem, no poeta nordestino, já nascerem (para não morrerem mais) juntamente com sua poesia, apesar de atingir seu ápice nos anos 50, com O rio

31 MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único, op. cit., p. 46-47. 32 Idem, p. 447. 33 ARAGÃO, Denisson Silva Correia & CARVALHO, Claudio Manoel de. Uma abordagem semiótica da literatura de cordel a partir da teoria da abdução. REVELLI, v.10, n.2. Junho/2018, p. 308-321. ISSN 1984-6576. 34 Introduzione. In: TESTA, Enrico. Dopo la lirica – poeti italiani 1960-2000. Torino: Giulio Einaudi Editore, 2005, p. XI.

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(1953) e Morte e vida Severina (publicado em 1956), obras cuja diegese é construída com mais vagar. Em “A poesia andando”, no entanto, acompanha o relato o surrealismo: cada verso da primeira estrofe é como se fosse uma peça que forma um mosaico difuso, pois o resultado é ambíguo, restando dúvida sobre os “pensamentos”, que podem ser dos “vultos” ou de um eu, oculto sob o pronome possessivo “minha”. Este estilo, por sinal, continuará na escritura de Cabral, que não nega a primeira pessoa, apesar de ela se retrair diante do mundo por ela observada, “divulgando assim uma subjetividade que se revela mesmo ao parecer ausente”.35 De qualquer maneira, “pensamentos” é o primeiro nome do texto, ditando o tom dos encadeamentos subsequentes. Pode-se dizer, aliás, ampliando a discussão, que dita, também, as produções poéticas de Cabral e Caproni. No ensaio “A palavra esgarçada”, Patricia Peterle, ao analisar a obra caproniana, fala do processo de escritura do italiano, durante o qual “a pena range”, diante de um “escrever e rescrever” que almeja “reduzir a palavra ao menor número de adjetivos e verbos”,36 discurso afinado com fala do próprio poeta, que desejava fazer poesia com uma palavra apenas.37 A continuação do ensaio de Peterle afirma que, nesse esforço com a palavra, “a página assume outras nuances e configurações, passando a ser um espaço da exposição e elaboração do pensamento, uma vez que poesia é pensamento”,38 colocações, aliás, que encontram lugar de destaque na poesia de Cabral, lugar em que a elaboração do pensamento parece explicitado com mais frequência do que em Caproni. Vem à tona, reiteradas vezes, um aspecto metalinguístico que reflete sobre qual é o tipo de poesia que se busca, exata, sem “fios soltos”,39 como disse , ao ler Duas águas (1956), obra que agrupa Morte e vida severina, Paisagens com figuras e Uma faca só lâmina. Ainda sobre o poema de Pedra do sono em análise, o pronome “minha”, de qualquer maneira, está subordinado à “mesa”, remetendo à atividade do poeta, absorvo em seu processo criativo. Pode-se inferir, a partir de uma sequência surreal do texto, que os pensamentos, agora associados a um “mim”, transpõem os vultos para ganhar “avenidas iluminadas / que anjos

35 PEIXOTO, Marta. Poesia com coisas: uma leitura de João Cabral de Melo Neto. São Paulo: Editora Perspectiva, 1983, p. 12. 36 In: A palavra esgarçada: poesia e pensamento em Giorgio Caproni. São Paulo : Rafael Copetti Editor, 2018, p. 28. 37CAPRONI, Giorgio. Giorgio Caproni. 2014. (2m23s). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=zvwy3A3Iy-k. Acesso em: 28 out. 2019. 38 Idem, p. 29. 39 LISPECTOR. Carta a Cabral. Washington, 7 de maio de 1957. Arquivo João Cabral de Melo Neto. Fundação Casa de Rui Barbosa. JCMN CP 608.

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silenciosos / percorrem de patins”, cena que evoca uma religiosidade católica dessacralizada, à maneira de outros momentos de Cabral, como “Autobiografia de um dia só”, de A escola das facas. Porém, as visões que o eu poético tem, sentado à sua mesa, vão e vêm, andam, fazendo jus ao título, embalados por uma tensão entre o “fora” e o “dentro”, movimento que insiste, gradativamente, em todas as estrofes e, no final, atinge seu auge, quando a força exterior, metaforizado pelos “continentes muito afastados”, é diretamente proporcional ao trabalho dos pensamentos que para lá se dirige e “se afogam / em marés de águas paradas”. O modo discursivo titubeante do poema, determinado, principalmente por substantivos (“pensamentos”, “vultos”, “rua”, “mesa”, “avenidas”, “arcanjos”, “patins”, “trovoada”, “esquina”, “continentes”) lembra o de “Dentro da perda da memória”, chamado por Candido de “ziguezague associativo”. E tal ritmo oscilante e inventivo acaba por ser reforçado graças à métrica livre e à ausência de rimas toantes e consoantes – aprendida, por exemplo, com a leitura de Alguma poesia (1930), de Drummond –, em sentido inverso ao do decassílabo camoniano, o qual Cabral estudava repetidas vezes no colégio marista que frequentou, em Recife, a ponto lhe causar “asco da poesia”.40 Candido não deixa de falar, além do mais, da ligação do poeta pernambucano com o surrealismo e o cubismo. Este, explicitamente citado em Pedra do sono através de “Homenagem a Picasso”, aparece no sistema de disposição das palavras, coladas umas sobre as outras, como faz Miró, cuja técnica, segundo o próprio Cabral no ensaio Joan Miró (1950), apoia-se em não trabalhar em perspectiva, mas colocar suas figuras lado a lado, de modo que cada uma possua seu valor próprio na pintura. Quanto ao surrealismo, também trazida por meio de outro texto, “A André Masson”, manifesta-se através do ambiente onírico, noturno, carregado de imagens insólitas e irreais. A fuga da realidade, logo, é essencial a este movimento que almejava impugnar o egoísmo materialista do mundo moderno: “Na estrutura do mundo, o sonho mina a individualidade, como um dente oco”,41 disse Walter Benjamin. Entretanto, a evasão pressupunha a expressão espontânea e automática do pensamento, ditada apenas pelo inconsciente, como “o jogo de dados que não abole o acaso”, o que, para Cabral desde o princípio foi um problema, tanto é que não levou em consideração a faceta surrealista de Miró, no ensaio. Assim, mesmo não conseguindo escapar às leituras que operaram em suas primeiras experiências literárias, não

40 MELO NETO apud ATHAYDE. Ideias fixas de João Cabral de Melo Neto, op. cit., p. 87. 41 O surrealismo: o último instantâneo da inteligência europeia. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução Sergio Paulo Rouanet. São Paulo : Brasiliense, 1994, p. 22.

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conseguiu aderir inteiramente ao espírito surreal, por isso, ao se referir à Pedra do sono, revela a José Castello em entrevista de 1992: “eu tentava fazer surrealismo, mas era um falso surrealismo porque era um surrealismo construído”.42 Sabe-se que, a partir do próximo livro de poemas, O engenheiro (1945), uma nova fase será iniciada, quando o surrealismo, notívago, vai sendo desativado, deixando para trás o “lunar”, como diria Luiz Costa Lima, para abrir espaço a uma aura mais diurna, “de tipo concreto-solar, através da qual será levado a cabo a reformulação da tradição mallarmaica, agora arrancada das névoas simbolistas”,43 apesar de que a pictórica “mulher febril que habita as ostras”, de O cão sem plumas (1950), “seguramente” sabida pelo rio, parece ser ainda um resquício surrealista.44 Interessante, talvez, dizer que o caminho de Caproni será quase inverso, partindo ele da claridade solar, em paisagem campestre, para a névoa que embaça a visão e traz incertezas. “Março”, poema abre-alas de Como uma alegoria (1936), obra de estreia do poeta italiano, dá o tom aos textos subsequentes, anunciando o final do inverno europeu, quando “a terra é um fruto apenas descascado” e “ri o sol / branco sobre os prados de março”.45 Pouco a pouco o clima esfria e a atmosfera perde em nitidez, seja pela noite, seja pela bruma que, ainda que seja manhã, impede que se tenha visão de longo alcance, propondo certa insegurança ante o que há em derredor, como se vê em “Alba” [Alvorecer] (A passagem de Enéas): “Amor meu, nos vapores de um bar / no alvorecer, amor meu que inverno / longo e que tremor à sua espera! Aqui / onde o mármore no sangue é gelo (...)”.46 Sem perder de vista “A poesia andando”, não se pode deixar de falar da metalinguagem, sendo que, como é sabido, o poema fala de alguém que se encontra sentado, às voltas com uma prática que é da poesia por excelência: o pensamento. E o pensamento sobre a própria poesia atravessa agudamente, como uma lâmina, para adotar uma expressão cabralina, a obra de estreia do poeta: “Poema” (“Há vinte anos não digo a palavra / que sempre espero de mim”), “Dentro da perda da memória” (“E nas bicicletas que eram poemas / chagavam meus amigos alucinados”), “Poema de desintoxicação” (“Eu penso o poema / da face sonhada, / metade flor / metade apagada. / O poema inquieta / o papel e a sala”), “Homem falando no escuro” (Não era

42 CASTELLO, José. João Cabral de Melo Neto: o homem sem alma & Diário de tudo. Rio de Janeiro : Bertrand Brasil, 2006, p. 257. 43 LIMA, op. cit., p. 253. 44 CARVALHO, Ricardo Souza de. A Espanha de João Cabral e Murilo Mendes. São Paulo : Ed. 34, 2011, p. 147. 45 Idem, p. 45. 46 “Amore mio, nei vapori d’un bar / all’alba, amore mio che inverno / lungo e che brivido attenderti! Qua / dove il marmo nel sangue è gelo (...)”. CAPRONI, op. cit., p. 111.

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inconfessável que eu fizesse versos / mas juntos nos libertávamos a cada novo poema), “O poeta” (“No telefone do poeta / desceram vozes sem cabeça”), entre outros. O falar de e sobre poesia, contudo, em Pedra do sono é muito diverso do que virá a ser em décadas ulteriores, pois a figura do poeta é a de um ser que, à noite, se mostra ensimesmado e atormentado por imagens esvoaçantes e nebulosas. O tempo, entretanto, ativará, em Cabral, novos “curtos-circuitos”, novas potências, as quais farão de seus poemas porta-vozes daquilo que acreditava, desde o princípio, ser poesia, evidenciando uma metalinguagem incomum: “os limites de uma poética que, optando pelo difícil, instaura o antilirismo como horizonte/objetivo de uma sintaxe complexa da realidade. E por aí a história é rearticulada no espaço que é o seu: o poema”.47 Em outras palavras, como disse Antônio Carlos Secchin, recorrendo a , “a obra cabralina se arma na tensão entre o fazer e o dizer”,48 atitude que, a nosso ver, começa a dar seus primeiros sinais com Psicologia da composição. Em A educação pela pedra (1966), quando Cabral atinge o ápice de sua rigidez, com poemas numerados e seções categorizadas, encontramos o conhecido “Catar Feijão”, dedicado a Alexandre O’Neill,49 que inicia com “Catar feijão se limita com escrever”. Ocorre, como há de se esperar, uma comparação de afazeres, no sentido de que, em ambos os casos, faz-se necessária separação daquilo que serve e do que deve ser descartado: “jogam-se os grãos na água do alguidar / e as palavras na folha de papel; / e depois, joga-se fora o que boiar”. O detalhe é que, tanto em um caso quando em outro, mesmo com a escolha, podem ficar restolhos, “pedra” ou “um grão imastigável”. Para Cabral, é interessante a permanência do joio, pois “a pedra dá à frase seu grão mais vivo: / obstrui a leitura fluviante, flutual, / açula a atenção, isca-a com o risco”. Contida em um livro pedregoso, pedregoso será o poema, educando para uma escrita pedregosa. Mas, muito embora haja considerável distância, temporal e estilística, entre Pedra do sono e Educação pela pedra, as primeiras produções de Cabral, conforme explicitado, já desativavam certos aspectos poéticos a ela contemporâneos para que uma postura diferenciada tome lugar. Uma espécie de resistência, então, ocorrerá, em virtude de um não enquadramento do poeta ao que estava sendo proposto, em um comportamento que parece guiar, de modo geral, sua escrita subsequente, já que, além de não seguir os preceitos da Geração de 45, não flertará com outros

47 BARBOSA, João Alexandre. “A lição de João Cabral”. In: Cadernos de Literatura Brasileira. Rio de Janeiro : Instituto Moreira Salles, 1998, p. 87. 48 João Cabral: uma fala só lâmina, op. cit., p. 89. 49 Contemporâneo a Cabral, teve sua obra marcada pela presença do Surrealismo.

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movimentos posteriores, a exemplo do que fez Bandeira, em cuja obra há marcas dos concretistas – os quais, aliás, atribuem a Oswald de Andrade e Cabral suas principais bases.50 E mesmo que Cabral quisesse, a vontade de adesão a tendências brasileiras modernas e/ou contemporâneas esbarraria em questões geográficas, pois o trabalho diplomático manteve-o, por grande parte da vida, fora de seu país de origem, em modo errante. Esta pesquisa, apesar de tratar também de algumas relações dos textos de Cabral e de Caproni com os de seus pares, tem como escopo principal observar o processo intrínseco, a “luta” que ambos travaram com sua própria poesia, considerando que, publicação após publicação, (des) ativações ocorrem: certos aspectos saem de cena – ou são modificados/ampliados – para que novidades tomem corpo. Isso não quer dizer, porém, que contextos geográficos, políticos, econômicos sejam excluídos das reflexões aqui presentes, mesmo porque o externo desempenha relevante função no processo de renovação que se quer discutir, pois as escritas poéticas em estudo, não obstante suas investidas metalinguísticas, não se encerram nelas mesmas, mas adentram, de maneiras distintas, searas como a da história, da cultura popular, de noção de vida, formando uma espécie de vórtice. As experiências do brasileiro51 e do italiano estão atreladas à constante busca que eles empreenderam por algo poético, a cada livro e, por isso, trata-se de uma demanda que não resulta em total concretização/satisfação, visto que novas vivências e necessidades aparecem, acabando por ser, digamos, a fonte e o motor de toda a escrita deles. E se formos nessa linha, podemos pensar na relação entre potência e ato, explorada por Agamben, a partir de teorias aristotélicas. Cabral e Caproni, cada vez que passam ao ato, na elaboração de uma obra, levam consigo renovadas ativações de potência, de modo que não teremos um estilo cristalizado, mas em constante construção: a potência não se esgota. Acresce ainda o fato de que a própria experiência do ato também agrega valores à potência. A criação artística, então, como alerta o filósofo italiano, inspirado no que disse Aristóteles na Antiguidade Grega, consiste em algo mais do que simplesmente a passagem da potência ao ato, considerando-se que o ser humano, que é provido de alguma habilidade em

50 CAMPOS, Augusto de; PIGNATARI, Décio; CAMPOS, Haroldo. Teoria da poesia concreta: textos críticos e manifestos 1950-1960. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2006. 51 Usamos a nacionalidade de Cabral para contrastar com outro país envolvido na pesquisa, a Itália, mas há que se recordar que o poeta dizia que não era brasileiro, mas pernambucano. Aliás, seus poemas, quando se referem ao Brasil, voltam-se, principalmente, para Pernambuco ou sua cidade natal, Recife.

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latência, a potência de, pode ou não colocá-la em prática: um artista é artista também quando está na inércia, e não apenas quando atua. Esta espécie de resistência inerente à privação, à potência, é chamada de potência-de-não, que é diversa de não poder realizar algo. E quando o indivíduo com alguma possibilidade artística ou técnica vai ao ato, é tanto com a potência quanto com a potência-de-não que o faz. Para Agamben,

a resistência age como uma instância crítica que freia o impulso cego e imediato da potência em direção ao ato e, dessa maneira, impede que ela se resolva e se esgote integralmente nele. Se a criação fosse apenas potência-de-, que não pode senão resvalar cegamente para o ato, a arte decairia para a execução, que procede com falsa desenvoltura em direção à forma consumada (...). Contrariando um equívoco disseminado, maestria não é perfeição formal, mas, exatamente o contrário, é conservação da potência no ato, salvação da imperfeição na forma perfeita.52

Para o fazer artístico, logo, a imanência parece consistir em elemento de considerável relevância, se se levar em conta a imensidão dos universos da privação e da inoperância ante a ação. Tal comentário parece se adequar com certa desenvoltura às poéticas de Cabral e Caproni, através das quais se vê uma espécie de evolutivo melindre em relação à palavra. Porém, a busca pela exatidão na escrita, que, às vezes transmite a sensação de esvaziamento da página, parece causada também pelas vivências (a guerra, por exemplo, em Caproni), as quais interferem na potência, sempre mais proeminente que o ato.

2.2 COMO UMA ALEGORIA: FRESCOR DIURNO

“Primeira luz”, de Como uma alegoria, marca a primeira aparição da palavra “palavra” e é uma das primeiras reflexões capronianas acerca da própria poesia, ainda que de modo indireto:

Leitosa de alvorada nasce nas colinas, gaguejando palavras ainda infantis, a primeira luz.

A terra, com seu rosto

52 “O que é o ato de criação?”. In: O fogo e o relato: ensaios sobre criação, escrita, arte e livros. Tradução Andrea Santurbano, Patricia Peterle. São Paulo : Boitempo, 2018, p. 67-68.

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mádido de suor, abre ensonados olhos d’água à noite que embranquece.

(São sempre os pássaros os primeiros Pensamentos do mundo). 53

Como se vê, não é um poema54 metalinguístico, pois a alusão às “palavras” faz parte do contexto em que se insere, quando na produção de Caproni encontrava-se ativadas certas notas idílicas, as quais serão substituídas por outras potências que, ao serem inscritas, preferirão uma natureza nada acalentadora: há florestas imprecisas onde, frequentemente, são ouvidos estampidos de armas de fogo, decorrentes do tema da caçada, presente, sequencialmente, em duas obras maduras do poeta: O franco caçador (1982) e O conde de Kevenhüller. São situações bélicas que vão ao papel após terem sido vividas na realidade por um partigiano. Ainda no período entreguerras, porém, quando o bucolismo era ainda “permitido”, o sol tem participação importante na coletânea e, apesar de não ser diretamente citado no texto, ele é o personagem portador da “primeira luz”, e é ele quem, em uma interessante sinestesia, “gagueja”; os primeiros raios da manhã “falam” e despertam a terra, que possui como pensamentos iniciais os pássaros, passíveis de serem imaginados voando próximos à colina, em uma imagem que remete aos mais simples e comuns desenhos infantis. O retrato de um instante trivial, porém, guarda a potência da transitoriedade, da labilidade, incapaz de ser retida e em constante transformação, o que vai ao encontro do título Como uma alegoria, que levanta uma discussão de algo que não se restringe a essa imagem primeira. O termo “gaguejar”, que é sinônimo de “balbuciar” e “hesitar”, no poema em questão, está associado a uma comunicação que não é a da própria linguagem. No entanto, é exatamente isso que acontecerá em obras posteriores, a partir de A passagem de Eneias, quando a palavra vai escasseando (sem nunca se extinguir por completo) e Caproni acaba por utilizá-la “contra” ela mesma, por considerá-la insuficiente na representação do mundo sensível, em complexas

53 “Prima luce”: “Lattiginosa d’alba / nasce sulle colline, / balbettanti parole ancora / infantili, la prima luce. // La terra, con la sua faccia / madida di sudore, / apre assonnati occhi d’acqua / alla notte che sbianca. // (Gli uccelli sono sempre i primi /pensieri del mondo)”. Idem, p. 57. 54 Usaremos este termo também, em alternância com “poesia”, quando nos referirmos a Caproni, mesmo sabendo que em italiano se diz “poesia” ou “poemetto”.

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metapoesias. Ou mais: o significante em si já é uma coisa e lançar mão dele para representar seria uma sobreposição de coisas. E tal processo ocorre em meio a outras “perdas”, pois se tornam ausentes lugares, direções, crenças, em poemas em que um vazio cada vez mais intenso não permitirá ao leitor algo concreto em que apoiar. Res amissa , ou “a coisa perdida”, livro póstumo, organizado pelo amigo filósofo Giorgio Agamben, é o ponto final do longo itinerário poético que foram ativando em Caproni aspectos de modo a tornar sua escrita “fragmentada e despedaçada”.55 A desconfiança na palavra, em termos de discurso e de forma, que foi sendo cultivada pelo escritor no decorrer do século XX. “Concessão”, de Res amissa levanta tal discussão: “Jogar então fora / Toda obra em versos ou em prosa. / Ninguém nunca conseguiu dizer / O que é, na sua essência, uma rosa”.56 Ao passo que Gertrude Stein “desromantiza” a rosa, dentro de uma perspectiva moderna, repetindo que “uma rosa é uma rosa”, Caproni prefere suspender o significante, tendo em vista que ele não cobre todas as potencialidades da rosa: as sensações, por exemplo, que ela pode proporcionar, desde a maciez das pétalas até a dor do espinho, são difíceis de serem transformadas em palavras.57 Foi a impossibilidade de expressão, a propósito, que fez com que Nietzsche, ainda no século XIX, considerasse a música a arte maior, sobrepujando-a em relação à literatura e a incompletude a ela inerente. Um dos embates travados pelo filósofo com a palavra pode se ver no prefácio que ele refez, em 1886, d’O nascimento da tragédia, o qual havia publicara dezesseis anos antes. Reescrevendo, o pensador lamenta, pois sua crítica à razão acabou submetida à razão. A linguagem utilizada não condizia com o filosofar de quem reivindica uma postura trágica, dionisíaca. Faltou “uma linguagem artística e não científica, figurada e não conceitual”.58 Vê-se que “Concessão” é “enxuto”, para usar um termo que Luigi Surdich associa ao último Caproni. Isso não quer dizer, porém, que seus primeiros poemas são necessariamente marcados por uma verborragia, por estrofes ou versos longos em demasia. “Primeira luz” demonstra que a questão do sintetismo – que, diga-se de passagem, encontra paralelo em Cabral,

55 “segmentata e franta”. “I volti della poesia del novecento”. In: SURDICH, Luigi. Le idee e la poesia: Montale e Caproni. Genova : Il Melangolo, 1998, p. 19. 56 “Concessione: Buttate pure via / Ogni opera in versi o in prosa. / Nessuno è mai riuscito a dire / Cos’è, enlla sua essenza, una rosa”. Tradução de Patricia Peterle. 57 PETERLE, Patricia. “Limites do indizível: ruínas na-da linguagem”. In: A palavra esgarçada: poesia e pensamento em Giorgio Caproni, op. cit., p. 92. 58 MACHADO, Roberto. “Arte e filosofia no ‘Zaratustra’ de Nietzsche”. In: Artepensamento. Organização Adauto Novaes. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 140.

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um dos motivos pelos quais Haroldo de Campos coloca-o entre as fontes do concretismo –59 já integrava Como uma alegoria, sendo que foi um dos atributos que chamou a atenção de Ferdinando Garibaldi, em 1937:

(...) vinte e cinco páginas: dezesseis poemas e um prefácio. Os poemas são de um até agora desconhecido jovem Giorgio Caproni (Como uma alegoria - Emiliano degli Orfini editora – Prefácio de Aldo Capasso – 1936-XV – 3 liras) e são dignos de uma menção particular. Aqui – como bem notou Capasso – os ecos da poesia contemporânea não são advertidos e o canto do poeta tem modo de modular-se sobre uma própria e original gama. Breve, claro, preciso, sabe sair dos perigos do balbuciante autobiografismo, não se fecha na obscuridade e exasperação introspectiva, mas do mundo com uma honesta e espontânea sensualidade sabe colher os aspectos sensíveis.60

Talvez não se possa dizer que o reconhecimento à poesia de Caproni tenha vindo tão rápido quanto a de Cabral, tendo em vista que o primeiro estudo de projeção sobre o italiano, “Caproni”, surgiu pelas mãos do amigo Pier Paolo Pasolini, em 1954, na revista Paragone.61 Mas duas décadas antes, a brevidade, a clareza, a precisão e a fuga “dos perigos do balbuciante autobiografismo” – aspectos que conversam com Cabral – mereceram destaque por parte de Garibaldi, talvez divergirem do Hermetismo italiano, em voga no início do século XX. Em relação ao último tópico citado, pode-se dizer que tanto o escritor brasileiro quanto o italiano, seguindo uma atitude moderna, evitam o confessional, procuram outras possibilidades para o canonizado eu lírico, aquilo que Caproni chamaria, na década seguinte, de “egorrea epidemica”, ou, conforme Testa, “a tendência de falar sempre de si mesmo”.62 O pronome “eu”, salvo engano, não aparece nenhuma vez em Como uma alegoria: ou permanece oculto atrás de pronomes ou utiliza-se a terceira pessoa, a qual observa as coisas do mundo, com seus fenômenos e os seres que nele habitam, energias que despertarão os sentidos: “Março” tem “uma jovem que abre a

59 CAMPOS, Harold de. “O geômetra engajado”. In: CAMPOS, Haroldo. Metalinguagem e outras metas, op. cit., p. 78. 60 “(...) venticinque pagine: sedici poesie e una prefazione. Le poesia sono di un giovane sinora ignoto Giorgio Caproni (Come un’allegoria – Emiliano degli Orfini editore – Prefazione di Aldo Capasso – 1936-XV – lire 3) e sono degne di un cenno particolare. Qui – come ben ha notato il Capasso – gli echi della poesia contemporanea non sono avvertiti e il canto del poeta ha modo di modularsi sopra una propria e originale gamma. Scarno, chiaro, preciso, sa uscire dai pericoli del balbettante autobiografismo, non si richiude in una cupa ed esasperante introspezione ma del mondo con una onesta e spontanea sensualità sa cogliere gli aspetti sensibili”. 31 de janeiro de 1937. Fondo Caproni. Gabinetto Scientifico Letterario G.P. Vieusseux. Florença, Itália. 61 O texto pode ser encontrado em Passione e ideologia. Milano : Aldo Garzanti Editore, 1960, p. 424-428. 62 Cinzas do século XX: três lições sobre a poesia italiana, op. cit., p. 24.

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janela” ao amanhecer – veremos que a figura feminina terá papel importante, tanto na obra caproniana quanto na cabralina; em “Praia de tarde” e “Fim do dia”, poemas presentes na metade da coletânea, aparecem, respectivamente, um “banhista que puxa à orla / os barcos” e o sol. Mas por que Garibaldi, citando Capasso, fala de originalidade? Até anos 30, a poesia italiana já havia conhecido grandes nomes. Alfonso Berardinelli defende que “os poetas nascidos nos anos 1880, cuja obras foram, grosso modo, publicadas nos anos de 1910, fundam e ao mesmo tempo esgotam a modernidade. (...) Para a poesia italiana, essa é uma década sem igual”.63 Entre as publicações e seus autores, estão “Colloqui” [“Colóquios”] (1911), de Guido Gozzano, “Canti orfici” [“Cantos órficos”]64 (1914), de Dino Campana. “Entre 1916 e 1923 saem as poesias de Giuseppe Ungaretti, do “Porto sepolto” [“Porto sepulto”] à segunda edição de “Allegria” [“A alegria”],65 com prefácio de Mussolini e alguns poemas que depois farão parte do “Sentimento del tempo” [“Sentimento do tempo”]. Sem dúvida, estes escritores foram lidos por Caproni e nele operaram, no princípio, juntamente com outros da virada do século XIX para o XX, como Giosuè Carducci e os posteriores Umberto Saba e Carlo Betocchi, de quem herdou “o realismo musical”.66 Conveniente observar que, o fato de haver uma diversidade de presenças na poesia caproniana, aponta para um sentido contrário ao que afirma Friedrich, em Estrutura lírica moderna: da metade do século XIX a meados do século XX, publicada em 1956, a partir da qual os escritores considerados por ele modernos, desde os neoclássicos do século XVIII, caminharam em uma só direção, que seria a poesia pura, excludente do entorno. Para Berardinelli, “A ideia (e a práxis) de modernidade lírica que emerge desses poetas está longe de ser unitária”.67 Ungaretti, participante de uma escola conhecida como Hermetismo, foi uma das primeiras leituras poéticas de Caproni, quando este ainda vivia em Gênova, no início dos anos 30. Allegria di naufragi [Alegria dos naufrágios] foi, para ele, um “abecerário de poesia”, pela capacidade de levar o leitor “a silabar de novo a poesia palavra por palavra – silêncio por silêncio –, reeducando-o, assim, a ouvir mais uma vez na linguagem lírica, como sempre se ouvira, a soberania absoluta do Verbo sobre a frase (...)”, retomando, assim, o “próprio e simples

63 Da poesia à prosa. Tradução Maurício Santana Dias. São Paulo : Cosac Naify, 2007, p. 112. 64 Tradução Aurora Fornoni Bernardini. São Paulo : Martins Fontes, 2009. 65 Edição bilíngue. Tradução e notas de Geraldo Holanda Cavalcanti. Rio de Janeiro : Record, 2003. 66 “il realismo musicale”. MENGALDO, Pier Vicenzo (a cura di). Poeti italiani del novecento. Milano : Mondadori Libri, 2016, p. 700. 67 Idem, p. 97.

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significado literal”.68 Dentro desse universo de “extrema concentração da linguagem”, para recuperar Hugo Friedrich, de palavras cirurgicamente selecionadas, as quais dividem a página, muitas vezes com grandes espaços em branco, como ocorre em “Soldados”, de 1918, que integra Alegria: “Se está como / no outono / sobre árvores / folhas”.69 A temática do poema e o despedaçamento da poesia convergem para a participação de Ungaretti na Primeira Guerra, ocorrências que também se encontram em Caproni, cuja experiência bélica na Resistenza, ativou nova potência, transformada em ato através de estruturas poéticas “implodidas”; ou a potência sempre esteve ali, tributária de Ungaretti, mas ganhou reforço dos acontecimentos ulteriores. Falamos, logo, de uma escrita sintética – adotada pelo mestre desde seus primeiros escritos e mais patente no discípulo nos quadrantes finais de seu painel poético –, a qual seria uma espécie de iceberg, em que boa parte não pode ser vista, o que não deixa de interseccionar com a proposta de Benjamin no pequeno texto “Escrever bem”: “O bom escritor não diz mais do que pensa. E isso é muito importante. É sabido que o dizer não é apenas a expressão do pensamento, mas também a sua realização”.70 Em Como uma alegoria, esse aspecto é ainda embrionário: veríamos grande diferença, caso colocássemos lado a lado os famosos dísticos de Ungaretti e os primeiros poemas de Caproni, pois enquanto este mostra uma narratividade – ainda que com os solavancos que um ritmo de versos livres e brancos pode causar (como é o caso de “Primeira luz”) –, aquele rompe completamente com qualquer “fio de Ariadne”, priorizando imanências. E ainda que as imagens se pareçam com as de Alfonso Gatto, com o caso de “S’illuminano come esclamate”71 (“San Giovambattista” [São João Batista]), a primeira coletânea de Caproni é afinada pelo diapasão da alegoria, que, segundo Carlos Ceia, seria “uma metáfora prolongada e contínua que, embora se estenda a toda a proposição, dá lugar a um só e único sentido (...)”.72 Isso significa dizer que as cenas não necessariamente são o que parecem. Embora vários poemas estejam no presente do indicativo, “trazem à luz muitas lembranças, imagens e sensações de um passado mais ou menos próximo. Além disso, (...) podemos perceber a imagem gerada pelos versos como se fosse uma

68 CAPRONI, Giorgio. “Il taccuino del Vecchio [O caderno do Velho] de Giuseppe Ungaretti”. In: A porta morgana: ensaios sobre tradução, op. cit., p. 215-216. 69 “Soldati”: “Si sta come / d'autunno / sugli alberi // le foglie”. Tradução de Haroldo de Campos. In: http://www.elfikurten.com.br/2016/03/ungaretti.html. Acesso em: 01 fev. 2020. 70 Rua de mão única, op. cit., p. 274-275. 71 “Se iluminam como se fossem exclamadas”. Idem, p. 700. 72 E-Dicionário de termos literários. Disponível em: . Acesso em: 01 fev. 2020.

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fotografia, um flash de um momento guardado na memória, esquecido por ela”.73 Estamos falando de algo lábil (termo apreciado por Caproni), provocador de sensações de idas e vindas, como é o fenômeno da memória. Mas, embora Caproni não tenha feito parte inovadora geração década de 1910, citada por Berardinelli, e apresente uma simplicidade idílica, Garibaldi detecta certa personalidade em Como uma alegoria, tal qual ocorreu com Cabral, segundo Antonio Candido. Para o teórico, o jovem recifense traz novos ares à literatura brasileira, diferente do que ocorreu com Rui Guilherme Barata e seu Anjo dos abismos, publicado na mesma época que Pedra do sono, o qual é demasiadamente similar à escrita de Frederico Schmitd. Segundo Candido, uma influência da qual, dificilmente, alguém poderia se libertar. Outras obras capronianas compostas nos anos 30, Baile em Fontanigorda (1938) e Ficções (1941) apresentarão semelhanças com Como uma alegoria, apesar de já trazerem sintomas de transmutações futuras, aspecto que ocorrerá de maneira semelhante em Cabral, cujo avanço poético não deixou de espiar por cima dos próprios ombros os rastros que ia deixando. Escavando mais essa questão, não perdendo de vista as revelações que Cabral fez a Lauro Escorel, ainda nos anos 40, dir-se-ia que a base dos poetas aqui estudados possui firmes alicerces que não se esfacelarão com o passar das coletâneas, mas adquirirão aportes condizentes com os seus ideais primeiros. Este aspecto é, talvez, sintoma de potências poéticas pressentidas e predispostas a fenômenos que nelas provoquem sempre novas ativações que agreguem às expectativas de Cabral e Caproni. Eles foram, enfim, verificando, à medida que as experiências foram contribuindo à consolidação de suas propostas poéticas, aquilo que tinham antevisto, ou seja, que podiam ser poetas. O verbo “poder”, é importante que se diga, não corresponde, aqui, a “ter a permissão de”, mas a “ter a possibilidade de”, para aludir ao que disse Agamben no artigo “A potência do pensamento”. Para falar acerca do hibridismo do referido significante, o filósofo contemporâneo utiliza uma história que envolve a poeta soviética Anna Achmatova, a qual, na tentativa de ver o filho, preso na penitenciária de Leningrado por questões políticas, acabava por encontrar outras mães na mesma situação desesperadora. Um dia, porém, ela foi reconhecida por uma mulher que “lhe fez esta única pergunta: ‘a senhora pode dizer isto?’” Ou seja, tratava-se de uma mãe cujo

73 ASSINI, Fabiana. Um olhar sobre Come un’allegoria de Giorgio Caproni. Trabalho de Conclusão de Curso – Língua Italiana e Literaturas da Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2015, p. 20.

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filho estava preso e que via na poeta uma possibilidade de expressar a dor que era comum a todas mulheres prostradas em frente ao presídio. Achmatova ficou muda por um instante e depois, sem saber por que, deparou-se com a resposta nos lábios: “‘sim, eu posso’”. Tal afirmação, diz Agamben, “coloca o sujeito imediatamente diante da experiência talvez, mais exigente – e, no entanto, ineludível – com a qual lhe seja dado medir-se: a experiência da potência”.74

74 Rev. Dep. Psicol.,UFF vol.18 no.1 Niterói Jan./June 2006, s/p.

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3 NOVAS POTÊNCIAS ATIVADAS

3.1 RAIMUNDO ENGENHEIRO

As transformações, nas produções poéticas de Cabral e Caproni, com suas ativações e desativações, ocorrerão de formas distintas, naturalmente. Não há indícios de que tenham se conhecido, apesar de terem sido contemporâneos e do brasileiro, diplomata, ter morado boa parte da vida na Europa, de onde Caproni saiu pouco.75 Uma pergunta que talvez o leitor deste trabalho se faça é se os poetas em cena leram-se mutuamente. Provável que não. Em termos de literatura italiana, sabe-se o brasileiro, quando jovem, ainda em Recife, leu (em francês) Luigi Pidandello, encontrado na biblioteca do amigo Willy Lewin. O poeta livornense, por outro lado, chegou mais perto de ter tido contato com a obra cabralina: o Fondo Caproni, na Biblioteca Marconi, em Roma, guarda cerca de 5.000 volumes que pertenceram à biblioteca particular do escritor, dentro os quais se pode encontrar Morte e vita severina,76 bem como outros autores brasileiros; Caproni chegou também a citar, em um dos inúmeros ensaios que escreveu, uma pequena seleção de poetas brasileiros, feita na Itália, nos anos 50, em que Cabral aparecia. O nome dele, porém, não é citado no texto, assim como não há evidências de que Caproni tenha lido a saga de Severino, pois o livro parece incólume, sem nenhuma marcação a lápis ou caneta, prática habitual no Caproni leitor. Sendo assim, não houve troca que pudesse ocasionar semelhanças em seus desenvolvimentos e, mesmo que tivesse havido, estamos falando de poetas que buscaram certa independência poética, souberam bem apropriar-se somente do que lhes interessava, fazer

75 Seria fisicamente difícil dos dois poetas em questão se encontrarem, tendo em vista que, primeiramente, Cabral evitava a Itália: “Certa vez, viaja de Genebra [onde Cabral trabalhou, entre 1962 e 1964, como conselheiro para a Delegação do Brasil junto às Nações Unidas] para Roma para a cerimônia de casamento de uma filha do embaixador Lauro Escorel. Essa é a primeira vez que pisa o solo italiano. Lauro, entusiasmado, aproveita para mostrar Roma ao amigo. O poeta admite, então, que cultiva um preconceito irracional contra a Itália e que, por conta dele, sempre recusou cargos no país. Trata-se, tenta explicar, de um preconceito pernambucano. No recife de sua juventude, as famílias aceitavam que as filhas se casassem com homens de origem portuguesa, francesa, inglesa, por mais pobres que eles fossem. Mas, se a proposta de casamento viesse de um descendente de italiano, por mais bem situado que ele estivesse, a família entrava em luto. ‘Ah, coitada, vai casar com um italiano...’, lamuriava-se. Cabral nunca se preocupou em entender a origem desse preconceito” (CASTELLO, op. cit., p. 129). E quanto a Caproni, saiu poucas vezes de seu país: em 1948 vai à Polônia, para um congresso internacional (no qual estiveram presentes nomes como e Le Corbusier, de significativa operosidade na poesia cabralina); esteve duas vezes na França (a primeira em 1978 e a segunda em 1985), onde conheceu Paris, Grenoble, Avignone e Arles; uma vez nos Estados Unidos (1978), com passagens por Nova York e São Francisco; uma vez na Áustria (1985), em Viena; e uma vez na Alemanha (1986), nas cidades de Münster e Colônia. 76 A cura di Tilde Berini e Daniela Ferioli. Torino : Giulio Einaudi Editore, 1973.

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recortes. Isso não significa dizer que seus percursos não apresentam semelhanças, como vimos já vimos e ainda vamos ver. Talvez pudéssemos encontrar em Costa Lima um meio de abordagem que abrace as duas trajetórias, por assim dizer, apesar de, originalmente, ter sido destinada à poesia de Cabral, a qual “não evoluiu por saltos. Evolui por círculos. Cada círculo representado por um livro.” Em seguida, o teórico arremata, dizendo que tal “crescimento por círculos, do ponto de vista histórico permite ao intérprete acompanhar a obra cabralina como através de régua milimetrada. A evolução imprevista é quase de todo inconcebível”.77 Será um método em que as intersecções são importantes, se se pensar que peças novas vão sendo incluídas sem que as anteriores sejam suprimidas, o que significa que não haverá cortes bruscos entre os livros de Cabral, os quais estão envolvidos por círculos, movimento sofisticado que impõe sutilezas. O mencionado caráter “previsível” não quer dizer, necessariamente, que Cabral (e Caproni) antevisse o destino exato que sua poesia alcançaria, pelo fato de parecer mais envolvido com o caminho do que com a chegada: o processo instigado por algo a ser buscado que não se sabe o que é. No que toca Caproni, a proposta pode ser estendida com ressalvas, porque, apesar de percebermos que sua poética tem continuidade, em certos momentos sentimos mudanças mais drásticas, como ocorre após A despedida do viajante cerimonioso e outras prosopopeias, quando as transformações “lembrarão o golpe drástico de uma machadada, ou de um tiro (...)”.78 O resultado de tudo isso, falando apenas de extremidades, do “ponto de vista histórico” e estrutural, de Como uma alegoria a Res amissa parece apresentar mais diferenças do que de Pedra do sono a Sevilha andando (1989). Mas quando se fala do primeiro para o segundo livro, Cabral apresenta novidades mais significativas. Os três mal-amados, de 1943, cujo formato consiste na única incursão do poeta na prosa poética, quando ainda estava à procura de sua forma de expressão poética. A partir de “Quadrilha”, de Drummond, são montados três monólogos, de João, Raimundo e Joaquim, excetuando-se as mulheres. O fato de as três vozes não se cruzarem é um indicativo de que, como apontou Secchin em entrevista concedida para esta pesquisa, tinha dificuldades para criar vozes dialogantes, o que de certa maneira pode ser observado, também, em Auto do frade (1984). As falas vêm ao encontro das intersecções das quais falávamos: o sonho de A pedra do sono,

77 Lira e antilira: Mário, Drummond, Cabral, op. cit., p. 327. 78 BERNARDINI, Aurora Fornoni. A coisa perdida: Agamben comenta Caproni, op., cit., p. 12.

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representado por João, é acompanhado pelos “motores” ativadores da peculiar subjetividade cabralina: a objetivação poética buscada e a recusa ao lirismo, manifestados, respectivamente, em Raimundo e Joaquim. João, que está, ao mesmo tempo, próximo e distante de Teresa, reflete se ela seria a mesma das intimidades vividas na cama, no sonho da noite anterior. Para o sonho, é utilizada a metáfora do mar, que vem em ondas tão violentas que o narrador não sabe como pode acordar com tudo seco. Esta fala, aliás, mostra o embate que é análogo ao momento poético pelo qual o outro João passava: “E sem nenhum sinal dessa água que o sol secou mas de cujo contacto ainda me sinto friorento e meio úmido (...)”.79 Por outro lado, Joaquim, o mais radical dos três, não se dirige a nenhuma mulher (a lógica seria à Lili, já que Raimundo fala para Maria), preferindo elencar todas as coisas que o amor lhe tirou: “Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina”80. O excerto é um dos sinais de como Cabral não tem problemas (e não terá) em trazer antilirismo cotidiano para seus versos, a exemplo dos “patins” de “Poesia andando”, chegando, algumas vezes, ao fisiológico – aqui, diga-se de passagem, emerge mais uma aproximação com Caproni, que, para Adele Dei, é “um dos poetas menos literários do século XX, e aquele que melhor conjuga este refugo de literariedade com os grandes temas e com uma atenção formal quase obsessiva (...)”.81 E se Joaquim é a nocividade do amor, Raimundo, através de Maria, insere o concreto, sempre relevante para o poeta: “Maria era também a folha em branco. (...) Nessa folha eu construirei um objeto sólido que depois imitarei, o qual depois me definirá. Penso para escolher: um poema, um desenho, um cimento armado (...)”.82 Parte dos anseios de Os três mal-amados é conquistado com O engenheiro, espécie de coletânea-manifesto contra a noite, apesar de carregar consigo, ainda, algo de surreal. São retiradas “palavras do mundo pessoal do poeta” e ocorre uma movimentação diferenciada: “As coisas claras do mundo exterior e a inclusão do poema no mundo dos objetos indicam a existência de um eu à procura de novas direções, olhando para fora, para o mundo físico”,83 como

79 MELO NETO, João Cabral. Obra completa: volume único, op. cit., p. 61. 80 Idem, p. 60. 81 “uno dei poeti meno letterari del novecento, e quelo che meglio coniuga questo rifiuto di letterarietà con i grandi temi e con una attenzione formale quasi ossessiva, insomma con un’idea alta di poesia”. “Caproni poeta maggiore”. In: L’orma della parola. Padova: Esedra Editrice, 2016, p. 11. 82 Idem, p. 63. 83 PEIXOTO, Marta. Poesia com coisas: uma leitura de João Cabral de Melo Neto, op. cit., p. 42 e 45.

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se lê em “A mesa”, texto diverso de “Poesia andando”, em que o foco recai sobre um período do dia durante o qual as “avenidas” estão “iluminadas”, não têm luz natural, e as imagens que vêm têm mais chance de estarem envolvidas na irrealidade inerente ao devaneio:

A mesa

O jornal dobrado sobre a mesa simples; a toalha limpa, a louça branca

e fresca como o pão.

A laranja verde: tua paisagem sempre, teu ar livre, sol tuas praias; clara

e fresca como o pão.

A faca que aparou teu lápis gasto; teu primeiro livro cuja capa é branca

e fresca como pão.

E o verso nascido de tua mão viva, de teu sonho extinto, ainda leve, quente

e fresco como pão.84

Continuando a com essa prática de não manter, em um mesmo poema, uma só métrica, Cabral inicia em redondilha menor, mas segue com versos que variam em quatro e seis sílabas. Destaca-se a segunda pessoa, tu: o eu retira o foco sobre si e direciona a um interlocutor, o que seria mais uma diferença em relação à “Poesia andando”. A metalinguagem, nuclear no texto, é igualmente tratada sob outro viés, a começar pela “mesa”, que, não obstante a obliquidade de sua presença no poema – está apenas no título –, é fundamental para a dança dos objetos que de fato estão dispostos sobre ela. O efeito que se tem é

84 MELO NETO, João Cabral. Obra completa: volume único, op., cit., p. 73-74.

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que a reflexão explícita acerca da escrita, comum para a temática aqui abordada, concede lugar a uma simbologia simples e direta, associada à escrita. Tal conjunto de mesa e utensílios acompanha o trabalho de alguém que parece ter deixado para trás a noite, o sonho (há não muito tempo, porém), preferindo a composição matutina e de agudo esforço: “A faca que aparou / teu lápis gasto”85. Relevante frisar que facas, peixeiras e outras coisas cortantes (minerais ou vegetais), associadas, via de regra, à cultura nordestina serão recorrentes (obsessões) na poesia do recifense Cabral, referindo-se, principalmente, à escrita, como é o caso de Uma faca só lâmina. Apesar de que “E o verso nascido / de tua manhã viva, / de teu sonho extinto, (...)” no desfecho do poema, pode levar o leitor a pensar que quem “amanheceu” não necessariamente foi o dia, mas o poeta. De qualquer maneira, a escrita está envolvida pelo mundo sensível que se despe das sombras e mostra, a partir de um ambiente bastante integrado à ensolarada e praiana paisagem externa, as novidades de um dia que recém iniciou, com o “jornal dobrado”, “a toalha limpa”, “a louça branca”, tudo asséptico e “fresco como o pão”. Na verdade, em O engenheiro, mesmo quando o poeta tenta produzir à noite, depois de ter passado a manhã e à tarde defronte à folha em branco, combate o descontrole, o caráter involuntário inerente ao sonho: “Carvão de lápis, carvão / da ideia fixa, carvão / da emoção extinta, carvão / consumido nos sonhos” (“A lição de poesia”).86 O poema homônimo ao livro segue a linha de “A mesa”, no sentido de deixar o “fora”, diurno, iluminar o “dentro”. Aqui Cabral está no início de um recurso que lhe será caro: valer-se de outras ocupações para lançar mão dos preceitos sem os quais não acredita ser possível fazer poesia. Assim, temos um toureiro (Manuel Rodrígues, o Manolete) que ensina aos poetas “como domar a explosão / com mão serena e contida, / sem deixar que se derrame / a flor que traz escondida, (...)”;87 uma bailadora andaluza que não é como bailarina convencional, “ave / assexuada e mofina”, mas “se quer uma árvore / firme na terra, nativa, / que não quer negar a terra / nem, como ave, fugi-la (...)”;88 um pintor (Miró) que “preferiu o excesso de razão, de trabalho intelectual, na luta pelo autêntico”;89 um engenheiro, como é o caso aqui, que “sonha

85 MELO NETO, João Cabral. Obra completa: volume único, op., cit., p. 73-74. 86 Idem, p. 78. 87 Idem, p. 158. 88 Idem, p. 222. 89 Idem, p. 714.

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coisas claras / superfícies, tênis, um copo de água.” e “pensa o mundo justo, / mundo que nenhum véu encobre”.90 Ele, o engenheiro, aparece quase sempre em terceira pessoa, com exceção da penúltima estrofe, colocada entre parênteses (gesto também caproniano), em que uma primeira pessoa do plural, que parece substituir um grupo de engenheiros que sobem no edifício para observar: “A cidade diária, / como um jornal que todos liam, / ganhava um pulmão de cimento e vidro.)”. O clímax d’“O engenheiro” propõe uma nova ideia: “A água, o vento, a claridade / de um lado o rio / no alto as nuvens, / situavam na natureza o edifício / crescendo de suas forças simples”. Em um contexto de trabalho do engenheiro (ou do poeta), temos a oportunidade de observar o “edifício” sob a perspectiva externa, e o que se vê é a construção incrustrada na natureza, com a estaticidade comunicativa de árvore ou de pedra. Essa inversão de ângulo que propicia uma fuga do interno e, por conseguinte, uma maior integração à natureza põe O engenheiro em simbiose com Le Cobusier, o arquiteto a quem o livro é dedicado, através da epígrafe “... machine à émouvoir...” [“... máquina de comover...”].

3.1.1 Cabral e Le Corbusier: arquitetos

Cabral leu a teoria de Le Corbusier com dezoito anos, também através de Lewin, e foi ao poeta vindouro revelador, a demonstração de que existem outras possibilidades além do Surrealismo preponderante como ideologia artística no círculo dos amigos com os quais o jovem poeta se reunia, no Café Lafayette, em Recife, 91 e em algumas leituras, como poemas de Murilo Mendes. Le Corbusier condenava o caráter funesto do surrealista, cuja essência jamais poderia ser um ponto de partida para pensar uma casa. Esta, para ele, deveria ter linhas retas e muito vidro, para que a luz solar pudesse entrar, aproximando quem estava dentro com o que estava fora, o que concederia às construções, a um só tempo, temperança e sensibilidade. Deveria ser uma “máquina de morar”, como explicou certa vez o arquiteto. O livro Precisões92, com dez conferências sobre arquitetura e urbanismo, feitas em Buenos Aires, e um “Corolário brasileiro”, acerca dos desafios de São Paulo e Rio de Janeiro para a arquitetura, desvela certas reflexões dos pensamentos de Le Corbusier. “O plano da casa

90 MELO NETO, João Cabral. Obra completa: volume único, op., cit., p. 70. 91 Vicente Rego Monteiro, Lêdo Ivo, Gastão de Holanda e Antonio Rangel Bandeira, os quais faziam parte da Revista Renovação. 92 Tradução Carlos Eugênio Marcondes de Moura. São Paulo: Cosac Naify, 2004.

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moderna”, conferência proferida em 11 de outubro de 1919, por exemplo, traz o projeto de uma casa de pedra, que, apesar da solidez e da aparente frieza é comparada a um corpo humano, como se verá no esboço da página seguinte. Sobre ele, o comentário é:

Neste croqui, no canto superior, a ossificação dos elementos da casa de pedra, todos servilmente superpostos de um andar a outro [113] e, ao lado, a flexibilidade da casa com esqueleto independente, com disposição interna livre e independente, de um andar a outro. [114]93

A casa, dessa maneira, deve ter um espaço interno que facilite a circulação, que seja funcional, com dez cômodos comunicando-se bem. “Uma única janela de 11 metros de comprimento liga todos estes elementos, fazendo entrar na casa a grandiosidade de paisagem magnífica: o lago, com seus movimentos, os Alpes com o milagre da luz”.94 Sobre isto, aliás, o arquiteto arremata: “Já perceberam que faço uso abundante da luz. Ela constitui, para mim, a base fundamental da arquitetura. Componho com luz”.95 Ao se encaminhar para o final da fala, chama a atenção para o fato de que a arquitetura é “um acontecimento de ordem visual” e que, o que se busca, na verdade, é “Poesia, lirismo, proporcionados pelas técnicas”,96 sintagma em que Le Corbusier fala de seu campo, utilizando outro, o da poesia. E com uma ideologia que soa Cabral, tamanha é a combinação dos pensamentos de ambos. Cabral, por sua vez, também tem como recurso poético elementos próprios dos arquitetos, de que “A mulher e a casa”, presente em Quaderna, é um caso. Aqui, o poeta, a exemplo do que fez o arquiteto europeu, associou a casa a um corpo, mais especificamente, a um corpo feminino. E da mesma maneira que em Precisões valoriza-se, sobretudo, a funcionalidade do interior das residências, com cômodos abastecidos de solarização e que se comuniquem, o citado poema fala que “uma casa [uma mulher] não é nunca / só para ser contemplada; / melhor; somente por dentro / é possível contemplá-la”.97 Apesar de o leitor perceber que é do interior da mulher que se quer falar, intenção anunciada no título – a exemplo do que ocorreu com “A mesa”, quando o título é incorporado ao texto, em estratégia de

93 Le Corbusier. Precisões, op. cit., p. 129. Grifo do autor. 94 Idem, p. 134. 95 Idem, p. 135. Grifo do autor. 96 Idem, p. 136 e 142. 97 MELO NETO, João Cabral. Obra completa: volume único, op. cit., p. 241.

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otimização verbal significativa também em Caproni – e na primeira estrofe, as referências são sempre à parte física privativa da casa, sua faceta mais sedutora, pelo potencial secreto que em si guarda: “exercem sobre esse homem / efeito igual ao que causas: / a vontade de corrê-la / por dentro, de visitá-la”.98 Observa-se o elemento da sensualidade no poema, ativado, ao que parece, depois de experiências espanholas do diplomata.

Figura 1. Desenho de Le Corbusier em que a casa é pensada a partir do corpo, p. 128.

98 MELO NETO, João Cabral. Obra completa: volume único, op. cit., p. 242.

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Figura 2. Casa projetada por Le Corbusier, na Argentina, em que se vê a valorização da luz natural. Disponível em: https://www.archdaily.com.br/br/01-44744/classicos-da-arquitetura-casa-curutchet-le- corbusier. Acesso em: 01 fev. 2020.

Quando Cabral já havia eliminado o sonho e o sono de seu vocabulário, fez para Le Corbusier “Fábula de um arquiteto”, contido com Educação pela pedra, na seção “Não nordeste (b)”:

A arquitetura como construir portas, de abrir; ou como construir o aberto; construir, não como ilhar e prender, nem construir como fechar secretos; construir portas abertas, em portas; casas exclusivamente portas e teto.

O arquiteto: o que abre para o homem (tudo se sanearia desde casas abertas) portas por-onde, jamais portas-contra; por onde, livres: ar luz razão certa.

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2.

Até que, tantos livres o amedrontando, renegou dar a viver no claro e aberto. Onde vãos de abrir, ele foi amurando opacos de fechar; onde vidro, concreto; até refechar o homem: na capela útero, com confortos de matriz, outra vez feto.99

O poema teve inspiração em uma visita que o diplomata Cabral fez à cidade de Ronchamp, a sudeste de Paris, onde se situa uma obra desenhada por Le Corbusier, a Capela Notre-Dame du Haut [Nossa Senhora das Alturas], ou mais comumente referida como Ronchamp. Em 1950, o arquiteto foi contratado para projetar uma igreja católica (novidade em seu currículo), em substituição à anteriormente destruída, durante a Segunda Guerra Mundial, que por sua vez tinha sido feita depois que a primeira, de 1913, fora incendiada. Inaugurada em 1955, a construção, feita em concreto, levantou comentários no sentido de que parecia opor-se aos trabalhos anteriores do prestigiado arquiteto, o qual, considerado um racionalista que acreditava apenas no ângulo reto, agora lançava mão de uma peça com escassas e pequenas janelas, repleta de contradições arquitetônicas, ao mesmo tempo quadrada e redonda, alongada e contida, baixa e alta. Disforme, enfim. A opinião de Cabral foi a seguinte: “Essa capela me provocou uma tal irritação, que me senti obrigado a escrever esse poema [“Fábula do arquiteto”], cuja segunda parte é descrição da antiarquitetura”.100 O comentário nos remete de novo ao poema e as suas duas partes. A primeira delas fala de como a arquitetura deveria ser, de acordo com o que o próprio Cabral havia aprendido de Le Corbusier e transferido para sua poesia: o conceito é o aberto, de “portas-onde”, por onde os homens possam circular com liberdade, em contato direto uns com os outros e com os cômodos e coisas em volta. Logicamente, as “portas” (leia-se, também, “janelas”) são fontes de luminosidade e circulação de ar que “saneiam”, para usar o verbo da estrofe. Talvez a “fábula” do título, gênero popular que ensina, educa, através de uma moral explícita ou não, tenha conexão com os ensinamentos que o poeta obteve do arquiteto, fonte

99 MELO NETO, João Cabral. MELO NETO. Obra completa: volume único, op., cit., p. 345-46. 100 MELO NETO apud ATHAYDE. Ideias fixas de João Cabral de Melo Neto, op., cit., p. 133.

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“pedagógica” tão peculiar quanto a pedra, a faca e o deserto, outras “escolas” que Cabral “frequentou”. “Fabula de um arquiteto” pode ter, ainda, um sentido de “anti-fábula”, tendo em vista que, com Le Corbusier, no entanto, o poeta parece ter aprendido, também, o que não fazer, o que dá a impressão de uma espécie de ruptura do discípulo em relação ao seu mestre, à maneira do ocorrido entre Nietzsche e Schopenhauer. Digamos que o segundo momento traga, justamente, a moral implícita do que o arquiteto não pode ser tornar, ou seja, alguém que usa incorretamente o concreto, de maneira sufocante, com poucas oportunidades ao vidro, ao “saneamento”. Para realizar tal crítica, Cabral se apropria de uma imagem incomum e de complexa plasticidade: a de um ventre materno (daí o termo “matriz”). O espaço de onde o ser humano sai (o “dar a luz”) é colocado no sentido contrário, pois é como se, quem penetra a capela, tivesse uma experiência de adentrar um útero, de tão fechada que ela é. Na mesma chave do distanciamento promovido em relação àquele que, em outros tempos, foi norte para o desenvolver da poética cabralina, está no próprio título do poema, que, em vez de especificar o arquiteto de quem se quer falar, é usado o artigo indefinido “um”. O mesmo não ocorre, por exemplo, ao engenheiro estrutural e poeta Joaquim Cardozo, também recifense, com quem Cabral cultivou amizade e admiração, pela autenticidade de vida e de obra (de engenharia e de poesia), e jamais rompeu por questões de ideologia artística. Uma demonstração disso pode ser dos três poemas explicitamente a ele dedicados: “A Joaquim Cardozo” (O engenheiro), “Joaquim Cardozo na Europa” (A escola das facas) e “Cenas da vida de Joaquim Cardozo” (Crime na Calle Relator, de 1987). 101 Outra ideia que pode surgir a partir do texto que ora se analisa é que Le Corbusier iniciava, para Cabral, um retroceder na carreira, talvez uma espécie de incursão na nebulosidade surrealista que criticara, pouco interessante ao poeta, pois este, à época da visitação ao templo, não pensava definitivamente em dar passos para trás, desativar o que fora ativado. Muito pelo contrário: era preciso permanecer firme (buscando sempre evolução) aos ensinamentos anteriores do mestre, os quais garantiram ao diplomata uma segunda denominação “profissional”: arquiteto. Existe ainda uma terceira, a de “engenheiro”, o que leva a pensar que o poeta, combinando engenharia e arquitetura faz um duplo trabalho, projetando sua arte e construindo-a.

101 Manoel Ricardo de Lima, inclusive, no ensaio “A astronomia alegre” (In: A forma não-formante: ensaios com Joaquim Cardozo. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2014, p. 19), atribui o título de O engenheiro ao conterrâneo de Cabral, e não a Le Corbusier, apesar da epígrafe.

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Essa “construção arquitetural”, em Cabral, não quer se aproximar de estruturas pré- fabricadas, recuperando, por exemplo, os comentários acerca da resistência por ele promovida em relação aos seus pares da Geração. O mesmo se aplicaria a Caproni, que logrou alcançar, desde a publicação inicial, certa fuga ao estilo hermético de seus conterrâneos coevos. Talvez os poetas soubessem que é sempre interessante manter alguma infidelidade, por assim dizer, em relação aos mestres, evitar aquilo que Harold Bloom chama de “anxiety of influence” [ansiedade da influência], fenômeno que se manifesta quando escritores são obstruídos em seu processo criativo pela ambígua relação que necessariamente mantêm com precursores. A presença destes pode provocar ansiedade, angústia, nos epígonos, que têm os grandes mestres como modelo em que se inspiram ou, nos casos de ciúme, como obstáculos que devem ser superados.102 A teoria parece se aproximar, como vimos, do que acometeu Guilherme Barata, que para Antonio Candido, evidenciava uma presença ostensiva/opressiva, difícil de ser revertida, de Frederico Schmidt em seus primeiros passos poéticos. A propósito da relação entre literatura e arquitetura, discutida nessa altura da pesquisa, e escrita pré-moldada, pode-se lembrar de uma das várias participações de Caproni, datada de 1946, no semanal La Fiera Letteraria, cujo título é “Escrita pré-fabricada e linguagem”. Neste breve ensaio, o autor inicia falando da construção civil propriamente dita, mecanismo através do qual os componentes estruturais são produzidos em série, numa fábrica, e depois agilmente montados no lugar de destino, que será o espaço definitivo a ser ocupado pelo empreendimento imobiliário. “Assim”, aponta o ensaio, “ao arquiteto só resta uma mínima liberdade, a de montar (...) as partes não inventadas por ele, dispondo-as de acordo com o arbítrio pessoal (...) que lhe é consentido pela pré-fabricação”.103 Muito embora esse tipo de prática iniba “uma autêntica linguagem arquitetônica”, detém uma função na sociedade, pela praticidade muita vezes exigida em edificações. O mesmo se pode falar, ainda segundo o ensaio, acerca da escrita pré-fabricada, como a “escrita comercial e burocrática, (...) em que o ‘autor’ nada mais tem a fazer do que escolher e colocar uma depois da outra as frases já feitas (...)”,104 pois, apesar de não passar de “signos convencionados”, afastados do que seria a linguagem, há a necessidade de utilização no dinâmico meio empresarial.

102 BLOOM, Harold. The anxiety of influence: a theory of poetry. Oxoford: Oxford Univesity Press, 1997, p. 47. 103 In: PETERLE, Patricia. A porta morgana: ensaios sobre tradução, op. cit., p. 71. 104 Idem, ibidem.

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Importante, também, é recordar que, as mesmas estruturas que servem às linguagens funcionais, podem ser utilizadas em situações mais livres, artísticas, mesmo porque há certos elementos os quais, ainda sejam alterados

de tempos em tempos e de estilo em estilo, se propõe sempre impossíveis de serem eliminados, aliás, são necessários como coluna e o arco que sintaticamente sustentaram a arquitetura até o século passado, sem minimamente diminuir a liberdade da linguagem.105

Focando, entretanto, a liberdade da escrita, Caproni cita, em ordem que busca efeito gradativo, certas tipologias, como a crônica, a história, o ensaio, a poesia, o canto, sendo que esta última seria a “linguagem pura”, ausente até mesmo da palavra. A insubmissão, por assim dizer, das referidas manifestações ao que é pré-programado e, como consequência disso, a abertura de leques nos quais as “personagens principais” serão sempre interioridades, causam efeitos tanto no leitor, sujeito sempre às surpresas e intempéries de termos ou estruturas novas (ou ditas de modo novo), quanto no artista que, não obstante a operosidade inevitável do entorto físico em seu afazer, terá que lidar intensamente com suas próprias subjetividades. O que emergirá dessa penetração nas “galerias da alma”, sintagma de Antonio Machado apreciado por Caproni, será algo que, provavelmente, atingirá outras “galerias”, identificação que concederá às palavras constante renovação. Apesar de que, um mesmo indivíduo pode durante tempo indeterminado se abismar com uma expressão, de acordo com as diferentes experiências com as quais se depara. Essa capacidade aporética talvez concorde com a reflexão de Jean-Luc Nancy sobre poesia, a qual diz que esta composição “não tem exatamente um sentido, mas, antes, o sentido do acesso a um sentido cada vez mais ausente, e reportado para mais longe. O sentido de ‘poesia’ é um sentido sempre a se fazer”.106 Verifica-se, dessa forma, que Le Corbusier auxiliou na ativação de novas potências em Cabral, de modo a tornar sua poesia mais “arejada”, em contato com um mundo que não pertence a um único eu, mas a todos. Soma-se a isso a predileção, ou quase obsessão, por manter a palavra

105 CAPRONI, Giorgio. “Escrita pré-fabricada e linguagem. In: PETERLE, Patricia. A porta morgana: ensaios sobre tradução, op. cit., p. Idem, p. 72-73. 106 “Fazer, a poesia”. In: Demanda: Literatura e Filosofia. Textos escolhidos e editados por Ginette Michaud; tradução João Camillo Penna, Eclair Antonio Almeida Filho, Dirlenvalder do Nascimento Loyolla. Florianópolis : Ed. UFSC; Chapecó : Argos, 2016, p. 146. Grifo do autor.

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sob controle, arquitetando os poemas para que tenham “metragem” exata (uma exatidão peculiar), sem “cômodos” em excesso e que não conversem entre si. Essa contenção, recuperando um pouco a teoria agambeniana, faz pensar que a escrita de Cabral vai se deixando ato e se tornando potência: a ida do ato à potência é cada vez mais hesitante. Contudo, Cabral, como dissemos, sabe fazer recortes em seus contágios, em híbrido movimento de absorção e repelência. Assim como Caproni, que muito embora tenha lido os herméticos e deles nutria admiração, promoveu deles, também, afastamento, desenvolvendo um “tom muito singular”,107 Cabral precisou dos modernistas para dar os primeiros passos e nunca os esqueceu, porém os manteve subordinados à intensa vigilância. Costa Lima fala, por exemplo, de como Cabral, à época de Pedra do sono, conseguiu manter certa resistência ante as constantes leituras feitas de Murilo Mendes, que tem o surrealismo como uma das características marcantes de sua obra: “Toda a sugerência simbólica se descarta, para que as palavras concentrem sua força nomeante”.108 Evita-se, então, simbologias da aludida vanguarda, as quais poderiam induzir interpretações, e se prioriza as coisas, apesar de que, naquele momento, Cabral ainda estava aprendendo a lidar com elas.109 A fim de visualizarmos um pouco mais acerca dos contágios em Cabral, poder-se-ia contrapor o conhecido “Trem de ferro”, de Bandeira, e “A moça e o trem”, de O engenheiro, Separados por quase uma década, os dois poemas são movidos pelo mesmo meio de transporte, que atravessa um Brasil interiorano, longínquo e simples, alvo de interesse dos modernistas, com seus costumes e seu falar. Bandeira, inclusive, traz isso fortemente, em trechos como “Oô... / Quando me prendero / No canaviá / Cada pé de cana / Era um oficiá”.110 Todavia, as abordagens dos dois poetas se mostram bastante divergentes. Utilizando a prosopopeia – figura de linguagem que será relevante em Cabral e Caproni –, em “Trem de ferro”, a voz do próprio trem, desde um ponto de partida até um de chegada, vai contando como é seu funcionamento e pedindo passagem para pessoas e animais; a sonoridade das palavras e a predominância de versos curtos têm a função de provocar a sensação quase lúdica no leitor da locomoção do trem, especialmente se

107 PETERLE, Patricia. “A palavra esgarçada”. In: A palavra esgarçada: poesia e pensamento em Giorgio Caproni, op. cit., p. 12-13. 108 Lira e antilira: Mário, Drummond, Cabral, op. cit., p. 249. 109 Idem, p. 247. 110 BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1993, p. 159.

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lido em voz alta, recurso que provavelmente fará com que o indivíduo se sinta puxando vagões e passando por “ponte”, “poste”, “pasto”, “boi”, “boiada”, “galho”. Quem lê Cabral em voz alta, por outro lado, pode sentir que o movimento normalmente não será ativado por termos cujos sons sejam análogos ao da coisa em si; também não haverá demarcação por versos decassílabos e rimas interpoladas, desencadeadoras de música. “Eu não tenho ouvido musical para a melodia. Talvez tenha para o ritmo. O ritmo não é musical, existe um ritmo sintático”,111 disse Cabral. Ora, a sintaxe parte da gramática que estuda as palavras enquanto elementos de uma frase, as suas relações de concordância, de subordinação e de ordem. Logo, a contiguidade entre palavras ocorrerá nos planos visual e intelectual, fazendo com que se sobreponha ao leitor um ritmo íntimo, em detrimento de um aparente, como “A moça e o trem” nos mostra:

O trem de ferro passa no campo entre telégrafos. Sem poder fugir sem poder voar sem poder sonhar sem poder ser telégrafo.

A moça na janela vê o trem correr ouve o tempo passar. O tempo é tanto que se pode ouvir e ela o escuta passar como se outro trem.

Cresce o oculto elástico dos gestos: a moça vê a planta crescer sente a terra rodar: que o tempo é tanto que se deixa ver.112

Como acontece em Bandeira, a preferência é por versos curtos, às vezes de quatro sílabas poéticas. Mas no poema acima é inexistente um eu que se quer trem, cuja fala imita o deslocar-se

111 MELO NETO apud ATHAYDE. Ideias fixas de João Cabral de Melo Neto, op., cit., p. 87. 112 MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único, op. cit., p. 71-72.

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da locomoção, em caráter onomatopaico. Apenas o recurso da terceira pessoa aparece e a condensação pode até dar a impressão do andar do trem e seus vagões – menos numerosos do que os de “Trem de ferro”, se se considerar a possibilidade do número de vagões ser diretamente proporcional ao número de estrofes –, mas, aqui, outras movimentações estão envolvidas. Na verdade, a primeira estrofe já relativiza o próprio deslocamento do trem, limitado que está ao chão, aos trilhos, os quais impossibilitam qualquer desejo de ir mais longe, conhecer o desconhecido. E, se o trem de Bandeira se expressa, o de Cabral não “pode ser telégrafo”, não se comunica, apesar de, talvez, portar malotes com cartas e encomendas, como é comum no meio de transporte em questão. Se a moça do poema de Bandeira é alguém que o trem vê de relance, e a ela se dirige de modo a cortejá-la, a de Cabral ganha maior complexidade psicológica, tendo sua situação comparada com a do trem que por ela passa rotineiramente. Corroborando com o comentário de que a poesia cabralina prefere o visual ao sonoro, a moça, antes de tudo, “vê o trem correr”, para depois “ouvir o tempo”, sendo que o tempo, em nova metáfora, equivale ao trem: sua passagem é que mede o tempo. Na sequência, a visão será o sentido predominante, pois a moça, talvez tal qual o trem, “vê a planta crescer / sente a terra rodar”, conferindo ao tempo uma massa visível. Assim, tanto a moça quanto o trem, com sua mobilidade restrita, sentem-se presos em seus lugares, enquanto o mundo acontece. Da mesma maneira como o texto se baseia nas percepções das personagens, a partir de elementos predominantemente concretos – o trem não pode ser telégrafo e a moça vê no trem a angústia do tempo que se esvai – e o que isso acarreta em suas emoções, como ocorreu com o engenheiro a olhar a construção, o leitor pode ser catapultado para sua própria subjetividade a partir de um poema com um nível de movimento externo menor do que o “Trem de ferro” proporciona. São as latências da poesia cabralina, as quais estão posicionadas em lugar semelhante ao de um cerne, camada da madeira impossível de ver quando se observa o caule de uma árvore; além disso, essa estrutura nuclear é maciça, formada por células mortas e por onde não há a circulação da água que alimenta o vegetal, características que imputam ao cerne função de sustentabilidade análoga ao esqueleto do corpo humano. A propósito, o poema erguido e mantido sob a égide de um arcabouço firme será abordado em Uma faca só lâmina, composto em 1955, que propõe uma faca de “lâmina azulada” inserida no corpo humano, fazendo as vezes dos ossos, para constituir um esqueleto outro, o qual, a um só tempo, “morde o corpo humano” e lhe

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concede “maior impulso”. A rigidez, como se percebe, não quer dizer algo estático, pois a lâmina, apesar de machucar, o que exige manipulação cuidadosa, proporciona o impulso, diferentemente dos ossos convencionais, essencialmente quebradiços. É a complexa metalinguagem de Cabral, cuja precisão cirúrgica na utilização da linguagem será inversamente proporcional ao alcance das sensações a serem transmitidas. É preciso, então, estar atento àquilo que, aparentemente, o texto não apresenta em termos visuais ou sonoros – como ocorre com “Trem de ferro”, que, já de início, pode capturar o leitor com sua graça onomatopaica –, para que não se impute ao poeta qualquer ideal tautológico, recuperando um pouco do pensamento de Georges Didi-Huberman, criador de O que vemos, o que nos olha. Neste livro, o autor pensa estratégias alternativas para a análise das obras de arte (esculturas minimalistas, principalmente), que não são nem tautológicas, nem de crença. O primeiro modo de abordagem consiste no comportamento em que o sujeito aplica seu “exercício da visão sobre uma série de embargos em forma de (falsas) vitórias sobre os poderes inquietantes da cisão. Terá feito tudo, esse homem da tautologia, para recusar as latências do objeto (...)”.113 Quem, sob tal prisma, se põe diante de um túmulo, como exemplifica o pensador francês contemporâneo, não verá mais do que uma grande caixa de mármore à sua frente naquele momento, pois “pretenderá eliminar toda construção temporal fictícia, quererá permanecer no tempo presente de sua experiência do visível”.114 O homem da crença, em contraposição, também bloqueia espaços para subjetividades individuais, por evocar uma verdade “etérea mas autoritária”,115 previsível, o túmulo “sempre está associado ao fim dos tempos: um dia (...) seremos salvos do encerramento desesperador que o volume dos túmulos sugere”.116 O livro aqui debatido levanta questões que vão de encontro a certezas absolutas por envolverem justamente o que os tautológicos e crentes bloqueiam: uma contemplação da arte sem ideologias estanques, possibilitando a ela nos dizer algo, enquanto a olhamos. Ou ainda: deixar que ela nos olhe, enquanto a olhamos. E, como o olhar da coisa está dialeticamente ligado ao do sujeito, cada sujeito será olhado de maneira diferente: “Todo olho traz consigo sua névoa, além das informações de que poderia num certo momento julgar-se detentor”.117

113 Tradução Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2010, p. 39. 114 Idem, p. 49. 115 Idem, 41. 116 Idem, p. 48. 117 Idem, p. 77.

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Esse espaçamento, produzido na relação entre o olhante e o olhado é chamado por Huberman de aura, termo utilizado também por Benjamin, para quem “a aura não poderia se reduzir a uma pura e simples fenomenologia da fascinação alienada que tende para a alucinação”.118 Então, quando se olha um objeto, uma escultura, caso se faça de modo desvairado, com auxílio de dogmas rígidos, anteriormente incorporados, ou de pressa, inviabilizar-se-á os desdobramentos que o olhado pode oferecer,

suas imagens , suas imagens com constelações ou em nuvens, que se impõem a nós como outras tantas figuras associadas, que surgem, se aproximam e se afastam para poetizar, trabalhar, abrir tanto seu aspecto como sua significação, para fazer delas um obra do inconsciente. 119

Pensamos que tal abordagem, voltada à análise da obra de arte o vagar que propicie abertura de sulcos no ato de olhar, criação de imagens em diversas disposições, ainda que se esteja falando dos cubos minimalistas de Tony Smith e de Carl Andre, seja pertinente quando se fala em leitura e análise de escritores como Cabral e Caproni, pela supressão na poesia que, desde o início de suas produções mostraram-se marcantes. Supressão essa que, gradativamente, foi ganhando consistência, em decorrência de ativações de potências sempre renovadas. Em Cabral, a predileção pelo que ele chamava de “ritmo sintático”, que evita musicalidade standart, adquirida através de conhecidas simetrias na métrica e na rima, para desenvolver uma espécie de “sonoridade visual”, em que os termos (sempre em evolutiva precisão) se conectam pela proximidade semântica, em que o significado ontológico é mantido, oferecendo a quem tem contato com esse tipo de poética, multiplicidade de imagens – aquelas presentes no texto e aquelas que serão provocadas através do convívio olhante-olhado. A visualidade que aqui se discute, a propósito, pode aproximar a poesia cabralina da pintura, manifestação artística por ele admirada e manifestada, em termos estruturais poéticos, nos diversos pintores por ele lembrados em sua obra (Picasso, Vicente do Rego Monteiro, Mondrian, Miró) e, inclusive, em pinturas que, entre 1939 e 1940, Cabral produziu. Para Caproni, em compensação, a música foi sempre uma arte muito presente: tocou violino na adolescência, em Gênova, e jamais deixou de lado elementos dessa arte em sua poesia,

118 DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha, op. cit., p. 149. 119 Idem, ibidem. Grifos do autor.

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utilizando-os em seus versos e aproveitando suas nomenclaturas para nomear capítulos e poemas: em Il muro della terra (1975), por exemplo, o primeiro subtítulo se chama “Tre vocalizzi prima di cominciare”; Il franco cacciatore (1982) tem capítulos nomeados de “Allegretto” e “Träumerei”, uma peça de Schumann; em Il Conte di Kevenhüller (1986), encontramos poemas como “Strumenti dell’orchestra”. Entretanto, a musicalidade de versos mais ou menos simétricos e suas rimas, às vezes toantes, começam a ficar comprometidas, se pensarmos nas cisões que provocou nos versos de sua “fase tardia”, como denomina Agamben no brevíssimo ensaio “Ideia da prosa”. Para falar do enjambement, do encadeamento sintático entre um verso e outro, dessa fase de Caproni, o texto cita Res amissa e sua “consistência métrica do verso é (...) drasticamente reduzida”,120 sua fraturada linguagem, – a qual, praticamente, amontoa palavras, como fizeram os minimalistas com outras matérias-primas, como a madeira e o aço –, repleta de espaçamentos silenciosos entre versos e de reticências, formando sua imagética a partir de “ilhas poéticas”.

3.2 CAPRONI E AS MULHERES: (DES) ATIVAÇÕES FEMININAS

Poucas são as ativações e desativações que Baile em Fontanigorda, a segunda coletânea de Caproni, traz. A natureza (o sol, o mar, as estações), mostrada de modo campesino, ainda desperta os sentidos, os quais podem conferir labilidade às sensações; a memória continua recente; existe ainda encontros, certa aproximação entre pessoas, através de folguedos, como ocorre no poema homônimo ao livro. A descrição do baile em Fontanigorda (um município italiano da região da Ligúria, província de Gênova), porém, ao falar de arroubos juvenis, possui um movimento de recuo e aproximação diferenciado, não encontrado em Como uma alegoria:

Baile em Fontanigorda

Enquanto pela pastagem se espalha o amargo aroma de uma noite silvana, ao som dos clarinetes claros, entre luzes de cores e risos, se amina libertina a dança de uma montanha alegria.

120 Tradução, prefácio e notas João Barrento. Belo Horizonte : Autêntica, 2016, p. 30.

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Queimam em cobiça secreta, as tezes jovens. A fazer-lhes inquieta o ar, uma rajada basta em direção ao confim último da pradaria.121

Diferentemente de “San Giovambattista”, o poema acima prefere uma festa profana. Antes de chegar a ela, porém, o narrador nos mostra a paisagem, o entorno, com a sinestesia “amargo aroma / de uma noite silvana”, misturando o paladar e o olfato. Em seguida, o mesmo recurso é utilizado para a música dos “clarinetes / claros” – aproximados pelo enjambement, dando continuidade ao estilo delicado com o qual as informações são transmitidas e inserindo o leitor na festa, que consiste em uma profusão de sentidos e sentimentos. Quase não há descrição do que ocorre na festa (Caproni continua sucinto e continuará), apenas os desejos ardentes inerentes aos jovens, protagonistas do momento. E a mesma leveza com que se entra na festa, se sai, pois os fortes anseios secretos inquietam o ar e o devolve, através de uma “rajada”, mais denso às pradarias de onde ele viera. Tem-se, dessa forma, um movimento fora-dentro-fora, que não se viu em Como uma alegoria, em que se tem fora-dentro, como acontece em “Março”, ou dentro-fora, que é o caso de “Borgoratti”, que se passa em período noturno (como “Baile em Fontanigorda”) e na cidade, sendo que a preferência do primeiro Caproni é o sol e pelo campo. Em “Borgoratti”, que é, na verdade, um bairro de Gênova, ocorre uma breve cena, um flash (trata-se de um poeta de flashes): quando a “lábil memória já / esquece a noite”, “uma garota surge / na entrada da taberna”.122 Uma leitura rápida provavelmente dará a impressão de certo realismo no episódio, algo comum de se ocorrer todos os dias, não fosse pelo fato de a poesia iniciar falando da labilidade da memória e envolvendo a ação da moça na frase que nomeia o livro: “como uma alegoria”. Parece, pois, ficar em suspenso a continuação do vozerio masculino que ficou para trás, na taberna.

121 “Mentre per la pastura / si sparge l’amaro aroma / d’una sera silvana, / al suono dei clarinetti / chiari, fra luci di colori / e risa, s’infatua gaia / la danza d’una montana / allegria. // Bruciano alla bramosia / segreta, le carnagioni / giovani. A farne inquieta / l’aria, una folata / basta fino al confine / ultimo della prateria”. CAPRONI, Giorgio. L’opera in versi. Milano: Arnoldo Mondadori Editore, 2005, p. 31. 122 Idem, p. 17. Tradução de Fabiana Assini.

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De qualquer maneira, “San Giovambattista”, “Baile em Fontanigorda”, “Borgoratti”, entre outros, são casos em que tanto o externo quanto o interno estão situados em lugares concretos, especificados, já que o autor determina sua jurisdição, fazendo jus ao comentário de Agamben: “Caproni é o mais cidadão dos poetas italianos do Novecentos. Em nenhum outro como ele a poesia vive integralmente da cidade e na cidade”.123 Era em Gênova que Caproni habitava e, apesar da sofisticação que seu texto já possui, causada pela alegoria, a labilidade, a memória é quase imediata. Com o passar do tempo, a escrita ganhará novos contornos, imbuída de uma memorialística com várias camadas, forjadas pelos anos, o que significa que a poesia de Caproni terá menos o aspecto de pintura do que de pátina, efeito oxidativo que parece (a) tingir também os espaços, os quais passarão a serem incertos, “não jurisdicionais”,124 nas palavras do próprio Caproni. E quanto às tabernas, bares, leiterias, presentes amiúde, deixarão de ser lugar de encontro e vivacidade para se tornarem espécies de portais para o submundo dos mortos, como ocorre com a leiteria ao final de “Stanze della funicolare” [“Estâncias da funicular”]. É a negatividade tomando espaço, estimulada, ao que parece, por certos desastres na vida pessoal do poeta, como a mudança para Roma, em 1938, e, antes disso, o falecimento prematuro da noiva Olga Franzoni, ocorrido em março de 1936, por septicemia, poucas semanas antes de sair Como uma alegoria,125 cuja primeira edição será dedicada a ela. Dedicatória esta que, depois, desaparecerá. Permanecerá, entretanto, o último poema do livro, intitulado “A Olga Franzoni”,126 que, compreensivelmente, começa envolvo em tristeza: “Este que em madrepérola / de lágrimas em teus olhos / mortiços se fechou claro / país”. A sensação proporcionada pela homenagem regula com o tipo de memória abordada nessa fase, ou seja, têm-se a impressão de que a morte acabou de ocorrer. A segunda estrofe diz que já cessou o barulho das ruas, “as zombarias e os ruidosos / jogos, e de ofegantes bocas”, mas a presença da algazarra em um terço do poema aproxima-a espacial e temporalmente, ao mesmo tempo que acaba por destacar a melancolia que

123 “A cidade e a poesia”. In: Categorias italianas: estudos de poética e literatura. Tradução Carlos Eduardo Capela e Vinícius Nicastro Honesko; tradução das passagens e citações em latim Fernando Coelho. Florianópolis : Editora da UFSC, 2014, p. 199. 124 “non giurisdizionali”. ZULIANI, Lucca. “Apparato critico”. In: CAPRONI, Giorgio. L’opera in versi, op., cit., p. 1537. 125 Idem, p. 1073. 126 Idem, p. 77. “Ad Olga Franzoni (in memoria): Questo che in madreperla / di lacrime nei tuoi morenti / occhi si chiuse chiaro / paese, // ora che spenti / già sono e giochi e alterchi / chiassosi, e di trafelate / bocche per gaie rincorse / sa l'aria, e per scalmanate / risse, // stasera ancora / rimuove sfocando il lume / nel fiume, qui dove bassa / canta una donna china / sopra l'acqua che passa”.

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existe paralela, e que volta a ser tema na parte derradeira: “nesta noite ainda / torna a morrer sem foco o lume / o rio, aqui onde abaixada / canta uma mulher dobrada / sobre a água que passa”. Alusões a Olga continuarão por um tempo, bem como poemas dedicados a Rosa Rettagliata, Rina, que Caproni conheceu em 1937 e com quem permaneceu casado até a morte. Significativo é que as poucas mudanças de Ficções, última antologia caproniana engendrada nos anos 30, em relação às publicações precedentes – aliás, pode haver conexão entre “ficções” e “alegoria”, já que ambos estão associados à fantasia e à transitoriedade, àquilo que não se pode fixar – estão ligadas, justamente, à figura feminina, uma das temáticas mais importantes na para o poeta, juntamente com a guerra e Deus.127 Ela passa a aparecer com mais abundância e contundência, além de perder a faceta ingênua que a envolvia. Se antes a mulher simplesmente abria uma janela, confundia-se com as paisagens idílicas ou saía de uma taberna, agora será protagonista e é como se a natureza – o mar, especialmente, tendo em vista que Caproni é um poeta das águas, como Cabral, sendo que o brasileiro é mais ligado ao rio –, assim como as vozes dos poemas, estivesse em função delas. Observamos tal aspecto em textos como o homônimo “Ficções” e o conhecido “São as donas que sabem” [“Sono done che sano”], que, a propósito, será o único de Ficções escolhido por Pier Vicenzo Mengaldo para perfilar na coletânea Poeti italiani del novecento. Aliás, para reforçar a relevância da mulher na obra em cena, pode-se dizer que, até mesmo quando a mulher não parece ser a personagem central, tem sua participação em destaque:

A meu pai

Não mais o alcatrão cheira de remotos veleiros atrás de São Jorge: um vórtice de outros e mais acres aromas pulula, Sottoripa, nos teus depósitos escuros.

Mas é festa aos marinheiros de hoje como foi ontem um fedor de ebulição rançoso, de óleos de sementes ou na taberna no fresco morto de águas portuárias carnais risos de donas

127 SURDICH, Luigi. “I volti della poesia del novecento”. In: Le idee e la poesia: Montale e Caproni, op. cit., p. 23.

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frequentadas por mouros128

Para Attilio, o pai, Caproni dedica este poema que trata de outro tipo de festa, nem religiosa, nem profana, mas do agitado comércio portuário genovês. Como Ficções foi escrito entre 1938 e 1939, época em que a saída de Gênova estava ocorrendo, não havia distância física por longo período de tempo que pudesse desencadear saudosismos, nem no âmbito familiar, nem em relação à cidade amada pelo poeta. Em outros poemas desta primeira década de produção, a situação pessoal de Caproni era parecida, mas, muitas vezes, outras escolhas eram feitas, priorizando cenários mais bucólicos, serenos, envolvidos em odores agradáveis como é o caso de “Sem título” [Senza titolo], poesia de abertura de Ficções, que traz um amanhecer de “aroma limpo”129 junto ao mar. Assim, as mudanças na presença feminina conversarão com a nova proposta de ambientes. “A meu pai” evidencia a parte do antigo porto de Gênova, situado atrás da igreja de San Giorgio. Nessa região, está Sottoripa, que se estende ao longo da Piazza Caricamento e da área do antigo porto da Piazza Cavour, onde se encontra o mercado de peixe, na via Ponte Calvi. Vê-se, que o mar, nessa localização, significa trabalho, mais condizente com livros ulteriores de Caproni. Assim, a primeira estrofe situa o leitor, mostrando o espaço, através, principlamente, do odor acre. É nesse clima que acontece a “festa aos marinheiros” de “ontem” e de “hoje”, revelada na segunda parte do texto, na qual o olfato continua um sentido revelante: o azedo é reforçado por outras emanações. E, contrastando com calma das águas portuárias, à noite, estão os “carnais risos de donas / frequentadas por mouros”, numa alusão às prostitutas, as quais, a exemplo do que ocorre historicamente em outras zonas portuárias pelo mundo, ficam à espera dos navegadores forasteiros. Inaugura-se, agora, um olhar para a mulher que exclui qualquer traço de idealização, tanto em relação a ela própria quanto acerca de seu entorno. Como exemplo do que virá pode-se evidenciar a obra Despedida do viajante cerimonioso, onde se encontra o poema “Lamento (ou gabo) do padrezinho escarnecido”, cujo protagonista,

128 CAPRONI, Giorgio. L’opera in versi, op., cit., p. 47. “A mio padre: Non più il catrame odora / di remoti velieri / dietro San Giorgio: un gorgo / d’altri e più acri aromi / pullula, Sottoripa, / nei tuoi fondachi bui. // Ma è festa ai marinai / d’oggi come fu ieri / un tanfo di bolliture / rancide, d’olii di semi, / o all’osteria nel fresco / morto d’acque portuali / carnali risa di donne / frequentate dai mori”. 129 “pudicissimo odore”. CAPRONI, Giorgio. L’opera in versi, op., cit., p. 45.

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um religioso mundano, sente desejo sexual por uma meretriz que trabalhava na mesma região citada em “A meu pai”, aquela voltada a uma “Gênova comercial”, como diz o referido texto, “dos becos – a intestinal”, verso cuja linguagem lembra Cabral, que, em sua postura antilírica, prefere a miudeza das vísceras à nobreza do coração em sua poética. No excerto a seguir, o “padrezinho” fala das reações de excitação que Alessandra Vangelo causava nele e em outros homens que a viam passar:

[...] Gente, que pândega quando a grã-marafona fazia sua aparição gloriosa, em plena Alfândega

Nádegas eu vi, e costas altaneiras, em saltos altos. Mas os peitos (e eu dava pulos assim, eu, no meu leito), aqueles peitos, que exortação, gente, para a ereção! [...]130

Não haverá, portanto, no que toca as figuras femininas, qualquer fórmula pronta, como a romântica, em que elas eram consideradas seres intocáveis e faziam parte de um universo de ilusões dos eternos apaixonados. Além disso, eram, via de regra, pertencentes à classe burguesa e ostentavam traços físicos e morais imaculados. Caproni, que gosta da mulher de classe popular, mostra-a coerente com seu habitat simples, como é o caso da própria mãe, em A semente do pranto. Nesta obra em específico, o poeta usa, no entanto, um recurso que o auxilia, digamos, na intenção de desmistificar a mulher: para os primeiros poemas da coletânea, que objetivam mostrar o dia-a-dia da jovem mãe proletária, que, cheirando a mar, caminhava pelas ruas de Livorno em direção ao trabalho (era costureira), ele se vê obrigado a recorrer a uma memória inventada, artificial, por não ser vivida – não conheceu a mãe quando ainda solteira, obviamente. O que Caproni faz “é recriar um tempo precedente àquele das próprias recordações (...), e por isso pode mover-se com tanta agilidade e leveza, evitando qualquer viscosidade, qualquer

130 CAPRONI, Giorgio. A coisa perdida: Agamben comenta Caproni, op., cit., p. 163-171.

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impacto excessivamente emotivo”.131 Quando, porém, Anna, tornada Annina, aparece idosa, o tom muda drasticamente, adquirindo nuances obscuras, em um clima melancólico, ligado à morte. Além das novas potências poéticas ativadas, relativas ao feminino, as quais serão consolidadas, como vimos acima, em livros subsequentes, Ficções traz uma singularidade em seus dois últimos poemas: são sonetos, forma que, pela primeira vez, aparece na obra de Caproni (em Cabral, jamais se fez presente). O soneto (“pequeno som”, em italiano), formado por quatorze versos, surgiu provavelmente na Sicília, no século XIII, com Jácomo da Lentini, o qual, juntamente com nomes da chamada Escola Siciliana, como Jacomo Pugliesi e Frederico II, escrevia poemas amorosos, com “certa graça”.132 No entanto, o modelo pret-à-porter sofre em Caproni algumas rupturas. Em entrevista a Jolanda Isnana (1975), encontramos ele explica que sua escrita, a exemplo do que falamos sobre Cabral e sua “insubordinação” perante seus contemporâneos ou mestres, foi sempre envolvida em um “espírito inventivo e não imitativo” e que, mesmo quando se utilizou do modus operandi imortalizado nas líricas de nomes como Francesco Petrarca e Giacomo Leopardi, o fez “dissonante, até mesmo estridente: uma tentativa de fazer música nova diatonicamente alargando ou comprimindo os clássicos acordos de tônicas, quadras e dominantes, com amplo uso, ao fim do verso, da sétima diminuta”.133 Além disso, a estrutura dos poemas também contribui com essa busca pelo “inventivo”, tendo em vista que são monoblocos, recusando a conhecida separação das estrofes e a divisão de dois quartetos e dois tercetos, o que pode dificultar uma classificação. O leitor, talvez, contará os versos para chegar ao número quatorze e se certificar que se trata realmente de um soneto. O final de Ficções é prelúdio para a parte final de Cronistória (1943), denominada “Sonetti dell’anniversario” [“Sonetos do aniversário”] (que, por sua vez, será seguida pelos primeiros poemas de A passagem de Eneias). A obra, feita entre 1938 e 1942, consiste, para Luca

131 “è ricreare um tempo precedente a quello dei propri ricordi (...), e per questo ci si può muovere con tanto agio e leggereza, evitando ogni vischiosità, ogni impaccio eccessivamente emotivo”. DEI, Adele. “Lo spazio precipitoso della memoria”. In: Le carte incrociate: sulla poesia di Giorgio Caproni. Genova : Edizioni San Marco Giustiniani, 2003, p. 79-80. 132 MOMIGLIANO, Attilio. História da literatura italiana. São Paulo: Instituto Progresso Editorial S.A, 1948, p. 18. 133 “spirito inventivo e non imitativo” (...) dissonante, stridente, perfino: un tentativo di far musica nuova diatonicamente slargando o comprimendo i classici acordi di tonica, quarta e dominante, con ampio uso, a fine verso, della settima diminuita. CAPRONI, Giorgio. Il mondo ha bisogno dei poeti: interviste e autocommenti 1948- 1990, op., cit., p. 91.

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Zuliani, em uma “maturação decisiva” na poesia de Caproni.134 Ironicamente, a adoção de uma forma consagrada vem acompanhada de novos componentes, entre os quais certa corrosão dos versos, como explicou o próprio poeta, e de desalento, com lugares vagos onde predomina a escuridão. Talvez parte desta falta de um “onde” se deva a Roma, cidade para onde Caproni se transfere, em 1º de novembro de 1938, após passar em concurso para magistério, e com a qual nunca se adaptou, sentindo-se exilado no país em que nascera. Este sentimento, que, a priori fez o poeta expressar um “lugar nenhum”, o levará, em seguida, através do recurso da memória, Gênova, lugar de onde tinha partido e ao qual pertencia. O sentimento de exílio, provocador de rememorações poéticas, parece ter atingindo também Cabral, como veremos adiante. Suas passagens pela Suíça, Paraguai, Senegal, Equador, Honduras Portugal e, principalmente, Espanha, são experiências ativadoras de escrita memorialística. Junto a essa mudança geográfica estão outras complicações da mesma época que parecem ter operado na obra de Caproni, como luto remanescente por Olga e o ingresso no serviço militar, ocorrido em 1939, ano que marca o início da guerra. Um pouco do que está sendo dito se pode ler no soneto “XVII”, penúltimo soneto da aludida seção, que ora colocamos lado a lado com o original, a fim de auxiliar a análise das rimas:

O teu nome que leve rubor Il tuo nome che debole rossore foi sobre a terra! Do vidro que já fu sulla terra! Da vetro che già queima em dezembro e embaça ao vapor bruscia al dicembre e s’appanna al vapore tímido de meu fôlego que não sabe timido del mio fiato che non sa resignar-se a calar-te, eu que cidade rassegnarsi a tacerti, io che città vejo, rouca de névoas, a quem o ardor vedo, fioca di nebbie, cui un ardore último de cavalos e folhas dá ultimo di cavalli e foglie dà a parecença de sangue?... No alvor a parvenza del sangue?... Nell’albore úmido que desfaz também os muros umido cui si sfanno anche le mura duros de Roma, já outro medo dure di Roma, già altra paura há agora em meu peito – já outro, meu amor, ora è nel petto – già altro mio amore, é o estrondo se de repente de uma è lo schianto se all’imporvviso d’una voz que chama, apenas o rubor voce he chiama, soltanto il rossore de uma echarpe eu arranco na bruma.135 d’una sciarpa carpisco nella bruma.

Conforme Agamben, distintamente do que ocorre a Petrarca, em cujos versos é aplicado o enjambement zero, que ocorre quando a interrupção final do verso coincide com a possibilidade

134 ZULIANI, Luca. “Apparato critico”. In: CAPRONI, Giorgio. L’opera in versi, op., cit., p. 1099. 135 CAPRONI, Giorgio. A coisa perdida: Agamben comenta Caproni, op., cit., p. 100-101.

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de encerramento da estrutura sintática, em Caproni (assim, como em Cabral) tal recurso de encadeamento se sobressai,136 como se percebe no poema acima. E para o filósofo italiano, o enjambement, único recurso que pode, de fato, diferenciar a poesia da prosa, não é sinônimo “de uma perfeita consonância entre som e sentido”, mas um propagador de “íntima discórdia”.137 Com a finalidade de abordar essa inconsonância, proveniente do pensamento agambeniano, Alberto Pucheu, no artigo “Do começo ao fim do poema”, em atitude arqueológica, discute sobre o termo latino “versura”, que, assim como “versus”, tem origem na agricultura: seria o instante em que o arado é suspenso, depois de terminado o traço, para, logo sem seguida, retornar à terra, dando início a um novo verso, sulco. Ao envolver o termo na poesia, ele diz que a pausa “proporcionada pela versura do enjambement é a dinâmica pela qual o verso se interrompe e salta (enjambe); nela, infinitas possibilidades pululam em um horizonte aberto, em um abismo, em um silêncio”.138 Fala-se, dessa forma, de um momento de alta voltagem da poesia, que possibilita ao leitor, em decorrência da expectativa que se cria na passagem de um verso ao outro, amiga dos devaneios, das conjecturas infinitas. São instantes prenhes de potência da linguagem, o que nos leva, novamente, à discussão de potência e ato (cujo estopim foi, também, Agamben) e, por consequência, ao alicerce desta pesquisa, voltada para potências desenvolvidas por Cabral e Caproni que os tornam sempre mais hesitantes em relação ao ato. A nosso ver, é disso que Agamben fala quando, em Ideia de prosa, se debruça, ainda que rapidamente, sobre Res amissa, obra que leva o enjambement “até os limites do inverossímil”, pois o recurso semiótico e semântico “devora o verso”, em decorrência do anteriormente abordado enxugamento drástico, acompanhado de reticências. As potências poéticas ativadas em Caproni tornaram o ato poético reduzido ao extremo. E se enjambement quer dizer espaçamento que, em não dizendo, diz muito; quanto menos se diz, mais se diz, teoria de abordagem que poderia ser associada às reflexões de Didi-Huberman e sua proposta de observação das obras minimalistas, as quais, mesmo parcimoniosas em recursos, concedem potencialidades de expressão àqueles que se permitem, a para além de olhar, ser olhados.

136 Ideia de prosa, op. cit., p. 29. 137 Idem, p. 31. 138 Boletim de Pesquisa NELIC v. 9, nº 14. 2009.2, p. 29.

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A extensão dos versos do soneto “XVII”, apesar de ele pertencer a uma situação poética anterior de Caproni, em que ainda se utilizava do tradicional verso endecassílabo139, apresenta vocação para algo que fará cada vez melhor, que é causar espanto, de um verso para o outro, mesmo nos leitores mais aparelhados. O silêncio ao término do primeiro sintagma (“O teu nome que leve rubor”) pode ser bastante “comunicativo”, na medida em que, paradoxalmente, peça um verbo que a transforme em oração que complemente as informações que se tem: a presença de um interlocutor, cujo nome, talvez, seja provido de “rubor”. Assumindo que o aspecto autobiográfico do texto, de “eu-empírico”, 140 em que o autor ainda se refere à noiva, abre-se a possibilidade de se pensar em uma interlocutora, com o nome associado à delicadeza de um vermelho semitonado. O complemento, porém, não vem com o nome (que, aliás, permanecerá velado até o fim do poema), mas com o verbo “ser” no passado, indicando uma não mais presença física, aspecto que começa a conceder aura de memória ao texto. Quem está rememorando? Teremos uma voz, localizada atrás de um “vidro que já / queima”, citação que marca uma “rumorosa”, por ser inesperada, versura na ida do segundo para o terceiro verso. Ainda que representado por pronome, no quarto verso, o eu se mostra, cercado por um contexto angustiante, através do qual se sabe que, mesmo em um amanhecer de inverno, o “vapor” quente de seu “fôlego” embaça o vidro, possivelmente de decorrência da falta que a interlocutora faz. E a ausência, especulemos, é o direcionador do olhar do sujeito poético – que, enquanto a névoa matutina vai se desfazendo e desvelando uma paisagem panorâmica, mas ríspida, que é o que “os muros / duros de Roma” oferecem –, para o qual a cor do nome que não passa de nome, isto se ele resta de fato, aparece também em outros elementos da cena perturbadora visualizada da janela. No desfecho, quando a interlocutora é chamada de “meu amor”, vem à tona outro temor (além da solidão?), o de ouvir um “estrondo”, de uma voz que não passaria de um “rubor” na “bruma”, em alusão que pode remeter à guerra, já que barulhos intensos, às vezes de tiros, que quebram o silêncio, serão, doravante, recorrentes. Além das surpresas produzidas a partir do enjambement, a dicção do não-dito, pode-se abordar algo que está intimamente ligado “pulo” entre versos: a rima. É visível, no poema em foco, a recusa de Caproni em seguir um esquema rítmico tradicional, não obstante a seriedade

139 Equivalente ao verso decassílabo, em português. O decassílabo italiano, por sua vez, possui onze sílabas métricas, “con accento principale obbligato in decima posizione” [com acento principal obrigatório na décima posição], como explica o dicionário Trecanni. Disponível em: http://www.treccani.it. Acesso em: 15 jan. 2020. 140 HAMBURGUER, Michael. A verdade da poesia: tensões na poesia modernista desde Baudelaire, op. cit., p. 77.

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com o qual o poeta via o assunto.141 Caso citássemos o soneto de Petrarca que tem como verso inicial “Voi ch’ascoltate in rime sparse il suono” [Vós que escutais em rima esparso o som], veríamos que a organização se dá com as primeiras rimas opostas, demarcadas em quatro estrofes divididas, as quais obedecem, assim, à uma sequência bastante difundida: ABBA ABBA CDE CDE. O efeito causado é de uma breve música homogênea e contínua, de mão única, em ondas simétricas, sem idas e vindas e sem notas em bemol ou sustenido. Seria esta uma atitude poética que se aproxima do pensamento tradicional acerca da rima, a qual prega uma integração semântica entre as palavras rimadas. Recorrendo, outra vez, a Agamben, Pucheu explica que a cesura, o corte que a rima impõe para que o enjambement ocorra, deve ser visto como mais uma válvula de escape que amplia o pensamento a partir da poesia, em vez de tolher.142 Nesse caso é fundamental, então, haja distanciamento de sentido na rima, com o intuito de ela participar do jogo que, ao término de cada verso, uma experiência única de reflexão seja oferecida em meio à pausa. O que propõe Caproni é uma estrutura própria, compacta e feita em uma sequência de vórtice, por assim dizer. Na tradução ficou ABACC(ou D)ABAEFAGAG, ligeiramente diversa do original, em que algumas rimas são diferentes, como é o caso de “mura” e “paura”, que se transmutaram em “muros” e “medos”. Quem tem o poema em mãos e, de repente, inicia a leitura, a partir do quarto verso não sabe o que encontrará, perdendo, portanto, o controle que algo pré-moldado pode oferecer, aspecto que, amplamente encontrado em Cabral, pode contribuir para a barreira, sobre a qual nos referíamos, entre as séries significante e significada. A primeira rima, consoante, possui correspondência de sons a partir da última vogal tônica. Porém, ela não se movimenta (e movimenta o poema) de modo convencional, pois aparece irregularmente e permanece até no final do poema, em conjunto com o C. Assim, “rubor” [russore] está no verso inicial e no penúltimo, dialogando com o predominante tom avermelhado presente, o qual é reforçado por “ardor” [ardore]. Dentre as outras palavras de mesma terminação, estão “vapor” [vapore] e “alvor” [albor], que serão quase obsessões capronianas. Já a segunda e terceira rimas, na verdade, não rimam, apenas repetem a última vogal, sendo que suas combinações são, por vezes, incomuns, como ocorre no tripé “já” [già], “sabe” [sa] e “cidade” [città], pois os contextos

141 SURDICH, Luigi. “Caproni e la guerra”. Le idee e la poesia: Montale e Caproni., op. cit., p. 151-152. 142 Boletim de Pesquisa NELIC, op. cit., p. 34.

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em que a letra em comum aparece são diversos, em sonoridade e significado. Cesuras dissonantes, mais propícias a esta espécie de hiato que a forma pode possibilitar à poesia.

3.2.1 Caproni e a guerra: primeiros estilhaços

Certamente o grande acontecimento da vida pessoal de Caproni foi a participação direta na guerra, graças ao movimento chamado de Resistenza, o qual mobilizou por volta de 100 mil civis,143 entre homens (a grande maioria) e mulheres, das mais diversas ideologias políticas e religiosas. A ação, militar, formou-se, a princípio, por “iniciativas individuais o de pequenos grupos ligados entre si simplesmente pelo desejo comum de não se renderem aos alemães”144 e de deporem o fascismo de Benito Mussolini, o qual, em 1943, empreendeu uma malograda tentativa de manter o poder com a criação da República Social Italiana, fundada ao norte do país, em território controlado pelas tropas alemãs (excluídas as províncias de Trento, Bolzano, Belluno e a região de Friuli Venezia Giulia). De fato, desde a Marcha sobre Roma (1922), havia grupos que, sem a utilização de recursos belicosos, divergiam politicamente em relação ao governo do duche, promovendo inúmeras reflexões acerca do governo em vigor. “Na nova configuração da Itália de 1943-1945”, com explica Denise Rollemberg, “na qual o regime contra o qual se opuseram não existia mais, a reflexão empobreceu-se, reduzida ao combate ao invasor estrangeiro”.145 Entre os combatentes, conhecidos como partigiani, que lutavam sob o risco de enforcamento ou fuzilamento, em caso de captura por parte dos nazifascistas, estava Giorgio Caproni que, com a esposa e os dois filhos, transfere-se, em 1944, para os montes de Val Trebbia, onde permanecerá por cerca de um ano, em uma divisão chamada Garibaldi. O impacto da Segunda Guerra foi devastador para os italianos, deixando marcas profundas na sua história e cultura, a ponto de Italo Calvino, no prefácio da edição de 1964 da sua obra de estreia, Il sentiero dei nidi di ragno (1949), referindo-se ao cenário artístico e intelectual da Itália pós-guerra, dizer que se tratava de um “fato fisiológico”. Significa dizer que “a guerra civil

143 O número é de Eric Hobsbawn (Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. Tradução Marcos Santarrita. São Paulo : Companhia da Letras, 1998, p. 165). 144 “iniziative individuali o di piccoli gruppi gruppi collegati tra loro soltanto dal comune desiderio di non arrendesi ai tedeschi”. PETACCO, Arrigo. La nostra guerra 1940-1945: l’avventura bellica tra bugie e verità. Milano : Arnoldo Mondadori Editore, 2001, p. 217. 145 Resistência: memória da ocupação nazista na França e na Itália. São Paulo : Alameda, 2016, p. 43-44.

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italiana estava imbricada nas pessoas que a tinham presenciado”,146 ou, nas palavras de Caproni, “penetrada nos ossos”, 147 para recuperar o soneto “III”, de A passagem de Eneias, integrante do capítulo “Gli anni tedeschi” [Os anos alemães]. Em outra passagem, agora em forma de depoimento, o poeta revela:

A guerra, ou o medo da guerra, pesou sobre todos os jovens, até a maturidade, da minha geração. A guerra injusta, a guerra fascista. E acredito que essa contínua condenação perpassa em pouco toda parte na minha poesia, que é em si pouco autobiográfica.148

A partir da citação, pode-se inferir que, em modo oposto ao que realizou o colega partigiano Beppe Fenoglio, Caproni não voltou sua escrita essencialmente à temática resistenziale, não obstante o diário de guerra que escreveu149 e as alusões frontais e laterais aos conflitos na poesia e nos contos. A presença da barbárie na escrita do poeta restará entrincheirada, por assim dizer, e, de modo recôndido, carcomerá, a partir dos livros da década de 50, quase tudo, deixando um vazio onde antes visualizávamos lugares específicos, mutilando e estilhaçando a própria estrutura dos poemas. Essa espécie de “mudez” – acrescida do agravamento da melancolia nas reflexões e cenas poéticas –, incentivadora mais da potência do que do ato, passa a ser uma considerável e definitiva ativação poética em Caproni. A análise do parágrafo acima, a propósito, parece dialogar com as discussões de Benjamin, o qual, ao tratar da crise dos narradores de histórias após a Primeira Guerra, diz que eles voltavam (se voltavam) dos confrontos em silêncio.150 Assim, a perplexidade das atrocidades vistas e/ou sofridas nos confrontos tolheu um dos grandes trunfos do ser humano, que é a capacidade se expressar-se verbalmente. Na poesia, por outro lado, essa experiência de terror – menos previsível do que a Segunda Guerra – fez emergir, na década de 1910, considerável

146 BIANCONI, Leonardo Rossi. Bandidos e heróis: os partigiani na Resistenza de Beppe Fenoglio. Dissertação. (Mestre em Teoria Literária) – Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2013, p. 18. 147 “penetrata nell’ossa”. CAPRONI, Giorgio. L’opera in versi, op., cit., p. 117. 148 “La guerra, o la paura della guerra ha gravato su tutta la giovinezza, fino alla maturità, della mia generazione. La guerra ingiusta, la guerra fascista. E credo che questa continua condanna si senta um po’ ovunque nella mia poesia, che è così poco autobiografica”. CAPRONI apud SURDICH. “Caproni e la guerra”. In: Le idee e la poesia: Montale e Caproni, op. cit., p. 152. 149 Giorni aperti. Itinerario di un reggimento al fronte occidentale. Roma : Lettere d’Oggi, 1942. 150 “O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura, op. cit., p. 198.

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quantidade de nomes (Ernst Stadler, Wilfred Owen, George Trakl, Charles Vildrac), os quais quiseram expressar, de maneira catártica e, às vezes, realista, o presenciado. Seria esse outro reflexo psicológico: o da necessidade de falar sobre, incluindo detalhes. Há, também, os que evitaram que as potências desenvolvidas na guerra seguissem livremente ao papel, preferindo que elas fizessem parte de uma dança em que a maneira que o poeta buscava para seu texto também participasse. Ou se sobressaísse. Nesse sentido, inclusive, há um ensaio de Agamben, “O fogo e o relato”, que, em diálogo com o já discutido “O que é o ato de criação?”, problematiza acerca da valia do fogo e do relato, do mistério e da história, para que a literatura se materialize. Existe, portanto, uma chama – a qual, conforme Agamben, deve sempre existir, para que a narrativa não parta do vazio, sendo, assim, vazia, sem alma – para onde a palavra se volta, sob a “vestimenta” dos gêneros literários, “as chagas que o esquecimento do mistério [o fogo primeiro que é pulsão do relato] talha na língua”. Os gêneros, os estilos, talvez inevitáveis, não devem ser, entretanto, o fim último de quem conta algo: se neles não reside o menor sinal de fogo, a conexão com o mistério estará na maneira de cada escritor (ou artista, já que a ideia é ampla), a qual “se mantém à distância do estilo, um estilo que se desapropria em maneira. Desse modo, o mistério desfaz e afrouxa a trama da história, o fogo amarfanha e consome a página narrativa”.151 Para ilustrar a teoria, o ensaio traz a passagem dantesca “o artista / a quem, no hábito d’arte, treme a mão”,152 cuja essência está na vacilação que obstrui o domínio. Dito de outro modo, seria a impotência (ou potência-de-não) que impõe inoperância à potência no ato artístico. De acordo com Michael Hamburguer, então, os escritores de guerra mais interessantes foram aqueles antepuseram estremecimentos ao fogo (literalmente, aliás) de onde partiram, demonstrando uma postura pessoal de poetar, inovadora.153 O referido estudioso evidencia a figura do soldado voluntário Giuseppe Ungaretti, que, a exemplo do que fará Caproni e Cabral, que não empunhou armas, mas foi testemunha ocular do contexto do franquismo espanhol, lança mão de uma maneira particularmente sintética de fazer versos, em que as truculências das agressões, tiros e bombardeios operarão em chave mais implícita do que explícita. Ele viu, enfim, sua potência poética ganhar corpo mediante a guerra, mas impõe restrições ao que vai ao papel, evitando uma simples descrição do que viveu ou ainda seguindo padrões poéticos cristalizados

151 “O fogo e o relato”. In. In: O fogo e o relato: ensaios sobre criação, escrita, arte e livros, op. cit., p. 33-34 e 35. 152 Divina Comédia: Paraíso, canto XIII, versos 77-78. 153 A verdade da poesia: tensões na poesia modernista desde Baudelaire, op. cit., p. 213.

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para expressar-se. Para Agamben, é justamente aí que está o mérito artístico, pois, “(...) maestria não é perfeição formal, mas, exatamente ao contrário, é a conservação da potência no ato, salvação da imperfeição na forma perfeita”.154 Em publicações como O conde de Kevenhüller, Erba francese [Herva francesa] (1979) e Res amissa, poemas com pouquíssimos versos (apenas um, muitas vezes), à Ungaretti, tornaram- se contumazes. Tal faceta – que, aliás, é incomum em Cabral, poeta para o qual a brevidade, apesar de ser crucial, possui outra dimensão –, porém, não foi conquistada abruptamente, pois o sentimento vazio melancólico na obra Caproniana, causada por múltiplas experiências, foi se espalhando, como um deserto, que amplia seu território sob o trabalho da secura e do vento. Seguindo este entendimento, A passagem de Eneias, cuja criação vai de 1943 a 1955, parece representar um período de transição, muito embora a figura feminina e a cidade de Gênova continuem aparecendo – esta fase de Caproni é conhecida, inclusive, como fase genovesa –, será com um novo olhar: a cidade já não era mais a residência e já havia sido bombardeada por aqueles que Caproni enfrentara de arma em punho; à morte da noiva soma-se a da mãe, ocorrida em 1950. Esses elementos que configuram, ao mesmo tempo, presença e ausência, podem ser observados em “Stanze della funicolare” [Estâncias da funicular], texto longo que, iniciado ainda nos anos 40, teve sua primeira publicação em 1952, antes de se tornar componente d’A passagem de Eneias. A extensão do poema, de doze estrofes, divididos duas partes numeradas (“Interludio” [Interlúdio]) e “Versi” [Versos], tem associação, diga-se, com uma fase narrativa de Caproni, a qual parece antitética, se se pensar no que disse Benjamin acerca dos soldados que retornavam silenciosos da guerra. Há que se recordar, porém, que se o poeta genovês não nega totalmente a palavra (jamais negará), sua a narratividade já nasce marcada por uma incompletude similar ao de uma praça após as explosões de um combate militar. O leitor do poema indicado reconhecerá Gênova a partir de diversos componentes, como o mar lígure e a própria funicular, meio de transporte feito para se ajustar às geografias acidentadas, com pontos íngremes. Preferindo o recurso da terceira pessoa, por dizer respeito, talvez, a algo inerente ao ser humano, apesar de ser um texto bastante pessoal – este embate entre o universal e o pessoal é também um dos pilares dessa etapa de Caproni –, o poeta descreve o trajeto da tradicional linha Zecca-Righi, cujo cume, o Monte Righi, propicia uma ampla vista da

154 “O que é o ato de criação?”. In: O fogo e o relato: ensaios sobre criação, escrita, arte e livros, op. cit., p. 68.

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cidade, como ocorre com o Ascensore Castelletto [Elevador Casteletto], também lembrado, diga- se de passagem, no poema “L’ascensore” [O elevador], integrante de Il passaggio. A referida linha, desse modo, pode unir o útil ao agradável, pois consiste em um jeito de chegar mais rapidamente ao “lado de cima” de Gênova e um belo passeio, ao mesmo tempo. Na definição de Caproni:

A viagem é por si só um attrait, visto que a funicular é um pouco como uma alegoria do nosso nascimento, se não – pelas perspectivas que abre – da nossa vida inteira. Sai de um túnel escuro, como de um ventre materno, e vai subindo bem lubrificada e silenciosa, puxada pelo seu incessante cabo, para conduzi-lo direto na luz sempre mais acesa, até a cúpula dourada do proustiano Hôtel Pagoda, perto da grossa torre de belos tijolos vermelhos das quais, antes da guerra, trovejava o canhão das doze.155

Logo, a partir do texto, temos uma terceira dimensão para o itinerário, existencial, que em Caproni começa a ser inscrita concomitantemente à fase genovesa, em que tudo o que se refere a viagens terrestres, estações e conduções, torna-se “alegoria da existência”,156 como disse o próprio poeta. No decorrer das estrofes, o protagonista, “l’utent” [o usuário] da funicular, passa por diversas etapas da vida (as “stanze”), cujas nomenclaturas foram garimpadas por Luca Zuliani, que teve acesso ao plano geral do poema, quando ainda tinha o nome provisório de “La funivia” [A funivia]: útero, nascimento, infância, juventude, virilidade, maturidade, velhice nostálgica, velhice verdadeira e desaparecimento – chamada de “asparizione”, neologismo caproniano.157

155 “Già il viaggio è di per sé un attrait, in quanto quella funicolare è un po’ come un’allegoria della nostra nascita, se non – per le prospettive che apre – della nostra intera vita. Esce da un buio tunnel, come da un ventre materno, e su su si arrampica ben aliata e silenziosa, tirata dal suo inarrestabile cavo, per portarti diritto nella luce sempre più acceca, fino alle cupole dorate del proustiano Hôtel Pagoda, vicino alla tozza torre di bei mattoni rossi dalla quale, prima della guerra, rombava il cannone delle dodici”. CAPRONI, Giorgio. Il mondo ha bisogno dei poeti: interviste e autocommenti 1948-1990, op., cit., p. 145. 156 allegoria dell’esistenza. Idem, p. 267. 157 “Apparato critico”. In: CAPRONI, Giorgio. L’opera in versi, op., cit., p. p. 1152-53.

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Figura 3. Fotografia tirada do ponto final da linha Zecca-Righi. Esta e a fotografia seguinte foram tiradas pelo autor em janeiro de 2018, durante uma viagem de estudos a Gênova.

Figura 4. Uma das vistas possíveis do Monte Righi.

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A partir da primeira estrofe, já se pode entender a situação em que o usuário se encontra: de dentro do vagão, através do vidro vê “o espetáculo de uma cidade que lentamente acorda, com seus ângulos e bairros, vozes e odores, enquanto vibra a febril melodia cadenciada de um coral que, porém, com o prosseguir da viagem”,158 vai enfraquecendo:

Uma funicular aonde porta meus amigos à noite? As paredes preme uma lâmpada elétrica, morta nos vapores dos sopros – premem quietos brados velados de pólvora e óleo o deslizante cabo. E como vibra como profundamente vibra aos vidros negros do túnel aquela vadia corda inexorável que movimenta do abismo os usuários e os possui nos solavancos de feltro! É um cais alvo, ou a tumba, que lá na galeria agora tênue brilha enquanto odora já a alvorada? Eis a abertura, está lá a corda que continua – não é a hora esta, escura, de pedir a parada. (...)159

Contrariando a lógica de uma linha de transporte, onde os passageiros podem decidir o ponto em que desejam descer, o aparelho corre pela funivia initerruptamente, puxado por um cabo bastante lubrificado de óleo, o qual não aceita a ação de “pedir a parada”, expressão que é repetida no último verso de cada estrofe, quase como o agouro do corvo de Poe (“Nevermore” [Nunca mais]), cujo aviso é no sentido da inexorável ausência de Lenore, morta. Provavelmente metáfora do tempo, o cabo conduz para o pensamento acerca de escolhas que não competem aos seres humanos fazer, posto que todos caminham para a mesma direção, depois que saem da escuridão do ventre materno, representado, no texto, pela galeria. A analogia é reforçada na

158 “lo spettacolo di una città che lentamente si risveglia, seguendo angoli e quartieri, voci e odori, mentre vibra la febbrile melodia di un battito corale, che però, più il viaggio prossegue (....)”. BALDACCI, Alessando. “La tragedia di Enea”. In: Giorgio Caproni: l’inquietudine in versi. Firenze : Franco Cesati Editore, 2016, p. 69. 159 “Una funicolare dove porta, / amici, nella notte? Le pareti / preme una lampada elettrica, morta / nei vapori dei fiati – premon cheti / rombi velati di polvere ed olio / lo scorrevole cavo. E come vibra, / come profondamente vibra ai vetri, / anneriti dal tunnel, quella pigra / corda inflessibile che via trascina / de profundis gli utenti e li ha in balía / nei sobbalzi di feltro! È una banchina / bianca, o la tomba, che su in galleria / ora tenue traluce mentre odora / già l’aria d’alba? È l’aperto, ed è là / che procede la corda – non è l’ora / questa, nel buio, di chiedere l’alt. CAPRONI, Giorgio. L’opera in versi, op. cit., p. 136.

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segunda estrofe: as luzes são ácidas e se transformam em espinhos, remetendo às primeiras sensações que o recém-nascido tem, quando as claridades são demasiado agressivas, cortantes. Mesmo com o início em terceira pessoa (do plural, que depois se torna singular) e sem referências às coisas de Gênova, da terceira estrofe em diante, à medida que amanhece, começam mudanças: o vagão, que passa a ser chamado de “arca”, atravessa detritos nauseantes dos mercados de peixe e ervas, surge o mar e o porto; depois, em ulteriores passagens do poema, será a vez da geologia lígure, com suas encostas de “cristais e ardósias”160; também garotas em direção ao mar com “calcanhares acre em sandálias”,161 desvelando a sobriedade que Caproni concede às figuras femininas, análogo ao tratamento que dá à Gênova, o que o diferencia de muitos poetas italianos de seu tempo, como explica Enrico Testa no Prefácio de Il terzo libro [O terceiro livro].162 Há, ainda, alusão à Olga, quando, na estrofe quatro, a arca passa por Oregina (a jovem vivia lá), onde se vê uma mão que acena, “transparente de sangue”.163 Com o fenecimento do dia, em correspondência com a passagem da vida, há promessa de chuva. Significativamente, a proa se volta para o Staglieno, cemitério de Gênova, que faz com que o usuário leve a mão à boca, enquanto sua “a face é salpicada de repente por um distante / enxame de gotas gélidas.164 A água cai nos trilhos negros, enquanto a funicular desliza facilmente em direção às incertezas que trazem o ponto final, envolto que está em uma “nebbia” [névoa], a qual, repetida inúmeras vezes na última estrofe, justapostas a termos e expressões que reforçam o aspecto visual limitado (“latte nei bicchieri” [leite nos copos], “nebbiosi bicchieri” [copos nebulosos], “lenzuolo” [lençol]). Relevante é a presença de uma leiteria, onde trabalha Prosérpina e que é frequentado por Érebo, seres pertencentes ao submundo, os quais concedem ao desfecho a conotação de chegada ao reino dos mortos. E os últimos versos reforçam essa intenção: “na névoa de leite onde se desfaz / o último anseio de pedir assim / entre o lençol de pedir a descida”.165 Sobre o desenlace do texto, Baldacci afirma:

Diferentemente da taberna, que na poesia de Caproni, a partir de Como uma alegoria, é lugar de encontro, polo positivo animado da comunicação e da troca entre os vivos, a leiteria que

160 “cristalli e ardesie”. 161 “calcagni acri nei sandali”. 162 CAPRONI, Giorgio. Il terzo libro. Torino: Giulio Einaudi Editore, 2016, p. VIII. 163 “transparente di sangue”. 164 “fronte è spruzzata a un trato da un lontano / sciame do gocce gelide (...)”. 165 “nella nebbia di latte ove si sfa / l’ultima voglia di chiedere l’ora / fra quel lenzuolo di chiedere l’alt”.

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fecha Estâncias da funicular é estação de passagem rumo ao subsolo, lugar de contato com o mundo das sombras (...).166

O estabelecimento a que se refere a citação aparece em “Borgoratti”167, breve poema que trata de uma moça que surge na porta de uma taberna, tendo atrás de si o vozerio dos que estão lá dentro. O clima festivo, barulhento e nítido dos lugares de encontro – embora “Borgoratti” realize uma evocação em tom memorialístico, envolta em uma atmosfera irreal, alegórica – vai se desfazendo; o bar se vaporiza e concorda com o mistério da morte.

166 Differentemente dall’osteria, che nella poesia di Caproni, a partire da Come un’allegoria, è luogo d’incontro, polo positivo animato dalla comunicazione e dallo scambio fra vivi, la latteria che chiude le Stanze della funicolare è stazone di passaggio verso il sottosuolo, luogo di contatto con il mondo delle ombre”. “La tragedia di Enea”. In: Giorgio Caproni: l’inquietudine in versi, op. cit., p. 71. 167 Bairro residencial de Gênova.

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4 ESPANHA E FRANÇA: PRESENÇAS E AUSÊNCIAS

4.1 CABRAL NA ESPANHA: PRIMEIRAS DESERTIFICAÇÕES

Cabral e Caproni estão em busca de algo do poético que é inacessível e é justamente essa inacessibilidade que faz com que suas escritas estejam inscritas num incessante jogo de reenvios, autorreferenciais ou externos, como temos comentado, compatível com o que disse Blanchot, em O livro do porvir:

O que atrai o escritor, o que impulsiona o artista não é diretamente a obra, é sua busca, o movimento que conduz a ela, a aproximação que torna a obra possível: a arte, a literatura e o que essa duas palavras dissimulam. (...) Daí que, por uma coincidência novamente espantosa, Valéry e Kafka, separados por quase tudo, próximos apenas pelo cuidado de escrever rigorosamente, juntam-se para afirmar: “Toda a minha obra é apenas um exercício”.168

As novas potencialidades poéticas, ativadas através de suas experiências culturais e pessoais, operam em seus textos, incentivando constantes transformações, as quais inserirão ambos na esfera da literatura moderna, seja pela acachapante fragmentação, à Ungaretti, seja pela rigorosa escolha e organização das palavras em um poema ou coletânea, à Baudelaire. Acresce o fato do brasileiro e do italiano, durante esse processo de (des) ativação, cimentarem suas próprias maneiras de escrita, como eles pareciam almejar desde o princípio, tornando-se, pelo trabalho artístico apurado com a linguagem, agregado de inúmeras vivências, a cada coletânea, mais literários. A palavra, neste contexto de pensamento criterioso, vira uma espécie de “arquivo poético, histórico, cultural, produzindo tensões, do qual o esgarçamento da palavra é um sintoma fundamental”,169 como salienta Peterle, ao referendar os procedimentos criativos de Caproni. Com todos os ingredientes citados, a poesia, certamente, não é a língua do dia-a-dia: “O que é, de fato, poesia, se não uma operação na linguagem que desativa e torna inoperantes funções comunicativas e informativas desta, abrindo-as para um possível novo uso?”.170 Ainda sobre a comunicabilidade da linguagem, Caproni possui ideia semelhante: “Definir o que é a

168 Op. cit., p. 291. Grifo do autor. 169 “A palavra esgarçada”. In: A palavra esgarçada: poesia e pensamento em Giorgio Caproni, op. cit., p. 29. 170 “O que é o ato de criação?”. In: O fogo e o relato: ensaios sobre criação, escrita, arte e livros, op. cit., p. 80.

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poesia nunca esteve entre as minhas aspirações, apesar de uma vez ou outra ter tido de especificar no que ela consistia: para mim, a diferença (e a relação) entre linguagem normal de comunicação e linguagem poética”.171 A linguagem poética, porquanto possa se utilizar dos mesmos apetrechos que a linguagem do dia-a-dia, relativiza as coisas, coloca-as em suspenso: para Cabral, em “Tecendo a manhã”, os galos que cantam para despertar as pessoas na alvorada, não são apenas aves, mas formam uma teia que parece demonstrar que a força conjunta é capaz até mesmo de mover a própria manhã, oferecendo condições para que emerja a “luz balão”172 emerja. É sabido que isso não significa dizer que, para Cabral e Caproni, a linguagem poética deve ser alcançada com o uso de termos que, em si, são sentimentos, mas que, dentro da dinâmica do poema, podem emanar sentimentos. Existem situações, como se sabe, que isto será conseguido pelos autores até mesmo com expressões historicamente pouco usuais em poesia. O oxímoro da emoção reivindicada pela consciência e pelas coisas encontradas na realidade da gente. No texto “L’emozione del toreo” [A emoção do toureiro], integrante do livreto “L’arte del toreare e la sua musica silenciosa” [A arte de tourear e a sua música silenciosa], José Bergamín,173 recorre a Esboço para uma teoria das emoções, Jean-Paul Sartre, para falar da emoção do toureiro na arena. Para o filósofo francês, a emoção “é uma queda brusca da consciência no mágico (...)”, ocorre quando “o mundo do útil, do determinado (disso que chamamos realidade) desaparece bruscamente, e no seu lugar aparece o mundo mágico”. Na verdade, a emoção não seria a falta de consciência, mas um explorar, digamos, de um outro modo de consciência que se confunde “com a própria existência ou o próprio ser, o próprio estar existindo no mundo”.174 Na mesma linha de pensamento, são arrolados dois modos de acessar a emoção, um determinado e outro mágico. Em outras palavras, um que se produz e outro que ocorre de improviso. Na tourada, as duas modalidades estão presentes, tendo em vista que há a organização do espetáculo, visto por grande público, em disposição de arena, mesclado à arte da dança do toureiro que, imortal (ali, só se considera a morte do touro), cria seus movimentos, sob aplausos e

171 “Lugares da minha vida e notícias da minha poesia”. In: A porta morgana: ensaios sobre tradução., op. cit., p. 62. 172 MELO NETO, op. cit., p. 345. 173 Como não possuímos a versão original do livro, em espanhol, e em português ainda não há edição, utilizamos a que dispomos, em italiano. 174 “è una caduta brusca della conscienza nel magico”; “il mondo dell’utile, del determinato (di ciò che chiamiamo realtà) scompare bruscamente, e al suo posto si affaccia il mondo magico”; “il proprio esistere o il proprio essere, il proprio star esistendo nel mondo”. Milano: Grafica 90 S. R. L., 1992, p. 35.

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festejos da arquibancada. Essa simbiose trazida por Bergamín, em um momento “espanhol” da pesquisa, entre consciência e emoção, entre o real e o mágico (na acepção de Sartre), essenciais para a constituição do ser humano, é o que nos faz lembrar as escritas de Cabral e Caproni: a possibilidade de acesso a uma consciência outra, partindo do sensível. O primeiro capítulo deste trabalho já falava da potência de Cabral no sentido de almejar algo de concreto em relação à poesia que não se via entre seus contemporâneos no Brasil. Não conseguiu ver, da maneira que imaginava, em seu primeiro livro, como conta em carta a Drummond, de 1941 (antes de sair A pedra do sono): “Sinto que não é esta poesia que eu gostaria de escrever; o que eu gostaria é de falar numa linguagem mais compreensível desse mundo de que os jornais nos dão notícia todos os dias, cujo barulho chega até nossa porta (...)”.175 De fato, a originalidade da contenção, da racionalidade, da linguagem substantiva, suscitaram comentários positivos de Antonio Candido, como observamos. Mas houve também críticas, pois a obra estava imbuída de um surrealismo que fechavam os poemas neles mesmos. Secchin diz que o onírico, em Cabral, será desativado “num trabalho que, sem abandonar a semântica do sonho, irá miná-la por dentro, retirando-lhe a aura, quer para explicitá-la como ‘figura de linguagem’ (...), quer para admiti-la na esfera do indecifrável”.176 Caproni, a exemplo do brasileiro, também engendrava modificações na própria arte. A partir, principalmente, dos seus ensaios sobre poesia e tradução, percebe-se seu constante filosofar acerca da palavra, usada por outrem ou por ele mesmo. O ensaio “Apontamentos”, por exemplo, de 1955, tem como tema Pasolini que, diferente de muitos de seus “coetâneos”, “conseguiu queimar rapidamente a matéria literária até o puro diamante”, tentou “o pulo, de uma vez por todas, da lírica pura à poesia lírica, e até à poesia”;177 Pasolini teria sido aquele que evoluiu com naturalidade, autenticidade, sem forçar uma fragmentação à guisa de modernidade, ou contemporaneidade. Ora, a impressão que se tem é que Caproni refere-se ao que ele mesmo buscou conquistar em sua trajetória. Em tempo: apesar de Pasolini ter uma escrita muito distante da de Caproni, este reconhece naquele um poeta que inaugura um novo momento na poesia italiana da década de 50, por causa da externalidade que propõe, com certo engajamento sócio-

175 MELO NETO. Carta a Carlos Drummond de Andrade. Recife, 23 de novembro de 1941. Fundação Casa de Rui Barbosa. CDA cp 1138 p. 7-8. 176 João Cabral: uma fala só lâmina, op. cit., p. 39. 177 Idem, p. 133.

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político, inclusive, como se vê em livros como Le ceneri di Gramsci [As cinzas de Gramsci] (1957) e Una vita violenta [Uma vida violenta] (1959). Haverá, para os dois poetas em debate, situações de vida que tornarão seus lápis mais hesitantes, transformarão a passagem da potência ao ato. No caso de Cabral, falamos do ingresso na carreira diplomática, em 1947, que o levou a viver fora do Brasil por bastantes anos e o apresentou a um lugar crucial à sua escrita: a Espanha. De fato, como ele mesmo diz na contracapa de A literatura como turismo: “Se eu não tivesse sido diplomata, minha literatura teria sido completamente diferente”.178 Talvez isso esteja próximo do que disse Caproni, em 1949: “A poesia é, como todos sabem, mais de três quartos de memória, isto é, experiência adquirida. (...) E não é à toa que Rilke afirma que quanto mais um homem viveu mais ele tem a probabilidade de se tornar poeta”.179 Na verdade, a Espanha ativa novas potências, tanto na poesia de Cabral quanto na de Caproni, ainda que de formas distintas, levando em conta a relação que cada um teve com o país ibérico: enquanto o primeiro teve intenso contato físico, para o outro a ligação permaneceu à distância, através de leitura e tradução. A resposta de tais peculiaridades é que em Cabral a presença é explícita frontal e na obra caproniana, oblíqua, tendo que ser inferida a partir, talvez, de certas “tonalidades sinuosas e nostálgicas”, que remetem a Antonio Machado, ou do “mito da ‘popularidade’, cantável e fina”, associada a Frederico Garcia Lorca, como apontou Testa no Quaderno di traduzioni.180 Para Cabral iniciou em 1947, quando prestou concurso e foi nomeado vice-cônsul, tendo que estabelecer moradia em Barcelona. Não obstante a Catalunha ter sido sua estreia em terras espanholas, não parece ter-lhe marcado tão profundamente quanto a pitoresca Andaluzia. A importância desse momento inicial no novo país deve ser levada em conta, porém. Já casado e com um filho, o recifense começa a viver uma nova realidade. Por recomendação médica, para fins de ginástica, compra uma prensa manual portátil, da marca Minerva, e cria o selo “O Livro Inconsútil”.181 É com este paramento que fabrica 12 livros e, entre eles, seu terceiro: Psicologia da composição, o qual foi dedicado ao colega diplomata Lauro Escorel, com quem Cabral

178 Seleção e texto Inez Cabral. Rio de Janeiro : Alfaguara, 2016. 179 “A poesia e as crianças”. In: A porta morgana: ensaios sobre tradução, op. cit, p. 92. 180 “Il mito della ‘popularità’, cantabile e fine”, di Machado; “le tonalità sensuose e nostalgiche di García Lorca” (...). TESTA, Enrico. Quaderno di traduzioni, op. cit., p. XIII). 181 O nome foi dado por Bandeira, porque as páginas não eram costuradas e, por isso, de difícil manuseio, consulta.

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manteve profícuo contato epistolar, e tem como epígrafe, em vez de um nome francês como Mallarmé, ligado ao acaso dos dados, Jorge Guillén: “Riguroso horizonte”. Muito já se falou sobre a relação Cabral-Espanha,182 mas pensamos que seja possível contribuir com a reflexão acerca do que, com a inserção do país na poesia, foi se tornando inoperância, em sintonia, com certas desativações que já estavam nos planos de Cabral, e do que passou a ser ativado, já a partir de Psicologia da composição, provavelmente todo escrito em Barcelona. Existe uma anedota que dia que antes de Cabral partir para a capital catalã, ele e Josias Carneiro Leão (primo e colega) “conversavam em uma sala do Itamaraty quanto Carneiro Leão, folheando distraidamente uma revista, esbarra com uma reprodução de O galo, de Miró. Entusiasma-se pelo quadro”.183 Quando Cabral já estava na Europa, o primo pede a ele que compre a tela. Ramón Rogent (pintor, também) levou o recém-chegado para tentar efetuar a aquisição. A proposta é recusada, pois a obra fazia parte do acervo pessoal de Miró,184 mas, a partir disso, uma amizade é travada entre ambos. É uma relação de idades díspares – tal qual ocorreu com Joaquim Cardozo, nascido 22 anos antes de Cabral –, pois enquanto o brasileiro tem 27 anos, o espanhol, 54. Antifranquista que era, Miró havia deixado sua terra natal no início das conturbações civis, com destino a França, retornando em 1942, com a chegada dos alemães. Franco permitiu que o artista vivesse em Barcelona, mas sem expor sua produção. Desta forma, o amigo diplomata e poeta teve a oportunidade de lançar amplo olhar sobre os quadros que iam aparecendo, no ateliê, instalado na casa do pai do pintor. Além disso, houve incursões na casa de campo da família de Miró, em Mont-roig del Camp, pequena localidade da região de Tarragona, na Catalunha. Lá, a paisagem árida, rodeada por uma cadeia de montanhas pedregosas e com a presença do mar parecem ter desencadeado no poeta dupla potência, em que o desejo de levar ao papel aquela topografia que tanto interessava, por ser metáfora de como ele queria que sua poesia fosse, se aproximou do sertão nordestino deixado para trás – apesar de ser oriundo da zona da mata – e, a partir de então, retratado, principalmente, sob o signo da memória. Será comum, doravante, a Espanha e o Nordeste aparecerem juntos em livros ou misturados em um mesmo poema, modalidade que pode apresentar variações, com é o caso de O rio, de 1953, parte

182 Um exemplo é a já aludida tese A Espanha de João Cabral e Murilo Mendes, de Ricardo Souza de Carvalho. 183 CASTELLO, José. João Cabral de Melo Neto: o homem sem alma & Diário de tudo, op., cit., p. 87-88. 184 Curioso dizer que, em 2007, o referido quadro foi vendido na tradicional casa de leilões londrina Christie's, pelo valor de quase dez milhões de euros. Miró pintou O galo em Varengelli-sur-Mer, um povoado do litoral da Normandia (França) onde se refugiou após a Guerra Civil Espanhola (1936-1939) e onde permaneceu até maio de 1940.

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integrante da trilogia do pernambucano rio Capibaribe, “que significou a síntese das lições da primitiva poesia espanhola (...)”.185 De fato, sabe-se que Cabral manteve a vida cultural intensa que tinha em Recife, no exterior, conhecendo muita gente e fazendo leituras da literatura local, que passaram a lhe interessar cada vez mais, a começar pela epopeia Cantar de Mio Cid. Curioso é o fato de que, a partir das aprendizagens (ou “lições”, na linguagem cabralina) espanholas, surge uma obra com referências gregas e francesas, pois Psicologia da composição tem Anfion, filho de Zeus, como protagonista, o qual, de acordo com a mitologia, recebeu de Apolo o dom da música e, apenas com o poder de sua lira, fazia com que as pedras se movessem e construíssem Tebas. É esse o mote de Valéry para sua Histoire d’Amphion [História de Anfion], do início do século XX, mas não é o de Cabral, pois sua primeira publicação fora do Brasil, a um só tempo, explicita a cicatriz que a cultura francesa apreendida deixou e estabelece uma espécie de paródia em relação ao melodrama de Valéry. Na referida inversão, “a mitologia é recuperada no espaço estrito do poema, e sua interpretação decorre antes do que aquele seja capaz de dizer do que daquilo que se quer dizer em função do aproveitamento da fábula”.186 Importa, por conseguinte, o que está escrito (e inscrito) no texto e isto significa dizer que, em se tratando de Cabral, Anfion não terá o mesmo êxito da fabulosa história grega, pois fará parte do processo de desidratação poética que o poeta reivindica. Seu semblante será mais de anti-herói do que de herói. “Fábula de Anfion”, primeira seção de Psicologia da composição, é subdividida em “O deserto”, O acaso” e “Anfion em Tebas”. O início da “trama” fala da chagada do personagem ao deserto e se vê dentro de uma paisagem ressequida e sem resíduos, dominada pela claridade, parecido com o ambiente priorizado em O engenheiro:

(Ali, é um tempo claro como a fonte e na fábula.

Ali, nada sobrou da noite como ervas entre pedras.

Ali, é uma terra branca e ávida

185 CARVALHO, Ricardo Souza de. A Espanha de João Cabral e Murilo Mendes CARVALHO, op. cit., p. 38. 186 BARBOSA, João Alexandre. João Cabral de Melo Neto. São Paulo : Publifolha, 2001, p. 29.

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como a cal.

Ali, não há como pôr vossa tristeza como a um livro na estante.)187

Entre parênteses, uma voz fala de um lugar em que a noite é eliminada, em ação análoga ao que as pedras são capazes de fazer quando esmagam as voláteis ervas. A brancura desértica é viva “como a cal” – composição química carregada de potência por ser elemento que serve à construção civil – e não admite a tristeza, a melancolia noturna. Além de a paisagem apresentar uma produtividade baseada em uma aparente inércia dos elementos, há que se fazer silêncio. A lira, que desloca pedras, sai de cena para ser substituída por uma “flauta seca”, estéril, “de mudo cimento”, em nova referência à concretude das construções. A flauta, por fim, será um volume sem volume, por assim dizer, pela descaracterizada que sofreu; não será a promessa de música que a ela seria inerente, não será concha “que é o resto / de dia de seu dia: / exato, passará pelo relógio, / como de uma faca o fio”. No entanto, Anfion enfrenta o acaso, que ameaça seu silêncio, fazendo a flauta soar: “o osso antigo / logo florescido / da flauta extinta”. Desnecessário dizer que a poesia de Cabral buscará sempre no contrapelo do acaso, que seria a consciência, o controle, cuja preferência será antes pelo não dizer do que pelo dizer, o que faz recordar uma frase de Clarice Lispector (que soa como uma de Cabral): “É engraçado como eu que gosto tanto do silêncio uso tantas palavras nos meus livros”.188 Tebas erguida não será vista, então, como uma conquista; ela não é feita pelo herói, mas à revelia dele, visto que o instrumento não está a seu dispor, trabalha sozinho. Anfion, por fim, se pronuncia: não havia pensado a cidade da forma que ela se constituiu: “Desejei longamente / liso muro, e branco, / puro sol em si // como qualquer laranja; (...)”. O desejo, portanto, era no sentido de uma simplicidade bem pensada, que não pode ser erguia através da magia incontrolável de uma flauta, a qual ganha metáfora atualizada nas últimas estrofes do primeiro capítulo: “Uma flauta: como / dominá-la, cavalo / solto, que é louco?”. Como desfecho, Anfion joga a flauta “aos peixes surdos- / mudos do mar”, onde o afogamento quererá dizer

187 MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único, op. cit., p. 87-102. 188 LISPECTOR. Carta a Cabral. Berna, 5 de fevereiro de 1949. Arquivo João Cabral de Melo Neto. Fundação Casa de Rui Barbosa. JCMN CP 608.

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mudez. Infere-se que nesse módulo é preciso que haja uma espécie de “sacrifício” do protagonista em prol do projeto poético sobre o qual se tem falado. No capítulo central (em todos os sentidos: não é à toa que intitula a obra), sai de cena a mitologia, que até então esteve em embate com a objetividade antilírica do discurso e do texto em si, para que somente a linguagem e sua psicologia ganhem campo. A organização com número – divisão que, juntamente com letras, terão participação ativa nos “polinômios” de Cabral –, inicia com uma frase impactante e que exime de culpa, desde os tempos bíblicos: “Saio do meu poema / como quem lava as mãos”. Caso continue sendo Anfion a voz, poderíamos ver, aí, a dissociação entre ele as ações involuntárias da flauta, bem como a explícita saída do poema, para que só ele, o poema, permaneça. E seu repousar, na folha branca, “proscreve o sonho”, sem noite, sem fuga. No papel, “logo fenecem / as roxas, mornas / flores morais (...)”, pois, se houver flor, certamente não será aquela de Drummond que resistiu no asfalto, símbolo de esperança no contexto político de A rosa do povo, mas talvez estará mais próxima da flor de Bandeira, “quase sem perfume”; será mais uma palavra no universo de cuidados retentores que o poema requer, “com seus cavalos” que querem “explodir”, feito flautas de outrora. Na verdade, importa a natureza no papel, que, na visão cabralina, incorporará um mundo mineral, da/de pedra, onde se deve “Cultivar o deserto / como um pomar às avessas”. A propósito, a flor está no centro das discussões de “Antiode”, e dialoga com o subtítulo que esta parte tem – “contra a poesia dita profunda” –, no sentido de que “flor” e “fezes”, no poema, têm o mesmo valor, pois, de qualquer maneira, uma palavra não será privilegiada em detrimento de outra apenas com base em um valor atribuído pela história, pela tradição lírica. Então, como se sabe, desfilarão termos ordinários, pinçados de situações inusitadas, aparentemente “apoéticas”. Nesse sentido, observa-se os seguintes versos:

Delicado, evitava o estrume do poema, seu caule, seu ovário, suas intestinações.

apesar de não necessariamente deixar de dizer “flor”. Saber, entretanto, que

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[...] as duas pontas

da flor; as duas bocas da imagem da flor: a boca que come o defunto

e a boca que orna o defunto com outro defunto, com flores, – cristais de vômito.

A postura conquistada de usar significantes conhecidamente românticos com novas roupagens (ou despidos), lado a lado com uma “linguagem impura”,189 converge para o caráter de enfrentamento proposto no desenlace, pois a poesia deve acontecer: “Como não invocar o / vício da poesia: o / corpo que entorpece / ao ar de versos?”. Há que se ter cautela, porém, de modo que não se faça necessário jogar no mar a flauta ou não “pronunciar” determinada palavra: todas as coisas que querem rebentar será mantido sob tensão, em um contexto atento, que permitirá a linguagem, desde que passe pelo escrutínio do poeta que permitirá o estritamente necessário para que a escrita ocorra:

Flor é o salto da ave para o voo; o salto fora do sono quando seu tecido

se rompe; é uma explosão posta a funcionar, como uma máquina, uma jarra de flores.

Os “voos” que Cabral propõe em Psicologia da composição, da mitologia para o papel, do externo para o interior da folha, do sublime ao comum, é um deslocar-se que parece se assemelhar com o fenômeno que ocorreu ao diplomata-poeta quando de sua penetração no

189 SECCHIN, Antônio Carlos. João Cabral: uma fala só lâmina, op. cit., p. 72.

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interior da Espanha, onde passava dias inteiros ao lado do amigo Miró. Ter à sua frente uma paisagem pedregosa semelhante àquela oferecida pela sua primeira epígrafe espanhola, retirada de “El horizonte” [O horizonte], onde, mesmo não havendo a água do mar, céu e campo formam uma rigorosa linha no horizonte, provocou diversos desdobramentos que parecem já se manifestar no livro aqui discutido, ainda que mais velados do que se verá posteriormente. O fato da escolha de Anfion pode facilmente ser associado ao quanto os franceses operaram no primeiro Cabral, em especial, Valéry (de quem admirava, sobretudo, a prosa), mas talvez seja interessante pensar também na escolha de um personagem mitológico, inserido na geografia grega, cuja paisagem, como se sabe, possui boa parte do território composta de ásperas montanhas de pedra calcária, predominantes sobre a vegetação rasteira e as matas esparsas. Laconicamente, o lugar é revertido em deserto, que sofre, em “Fábula de Anfion”, gradual redução vegetal, até metamorfosear em “pomar invertido”, facilmente aproximável tanto ao “Campo de Tarragona”, conhecido poema de Paisagens com figuras, quanto ao sertão do nordeste. No entanto, a adição de certos elementos não parece condizer com a realidade grega, como ocorre no verso “a flauta cana ainda?”. E, aqui, percebe-se que a incorporação de novas facetas não será meramente decorativa ou em despretensioso tom de homenagem (em Cabral nada o é), em relação o lugar de onde o poeta é natura, de cuja memória é estimulada por um recém-conhecido país europeu: “A Espanha deu-me um afastamento suficiente, não excessivo para poder escrever sobre o Nordeste (...)”.190 Todas as coisas que percorrem as obras, indiferentemente de origem e significado, têm suas limitações quantitativas e aparecem em primeiro plano – como uma pintura de Miró, que não trabalha em perspectiva, trazendo suas luas e estrelas para primeiro plano, conferindo, assim, igual importância a todos os componentes – compondo a “máquina" do texto, o único lugar a elas destinado. “Ao passar da lira à flauta e desta à cana, o poeta aperta o cerco em torno de sua temporalidade”,191 ou seja, da transitoriedade histórica e, logo, externa da fábula, afunilando o olhar para onde interessa: a “análise das relações do poeta com a palavra no nível da realização poética”.192 A cana-de-açúcar, cultura desde há muito cultivada em Pernambuco, torna-se, portanto, metáfora para algo de onde não sai som caso seja assoprado, mesmo porque, neste caso, se faz o

190 MELO NETO apud ATHAYDE. Ideias fixas de João Cabral de Melo Neto, op. cit., p. 31. 191 BARBOSA, João Alexandre. “A lição de João Cabral”. In: Cadernos de Literatura Brasileira, op. cit., p. 30. 192 Idem, ibidem.

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movimento contrário com a boca, se se quiser extrair o sumo, que só sai mediante certo esforço. E a cana ganhará, em Cabral, outras “funções poéticas”, como no breve “Voz do canavial”, de A escola das facas, em que as folhas do canavial, cortantes que são, com sua “Voz sem saliva da cigarra / do papel seco que se amassa (...)”,193 “esfola” o próprio vento. A ação está associada ao que realiza as facas, que para o poeta pode remeter ao cortante, no sentido de fazer recorte no texto, ou ao cuidado que as lâminas requerem ao serem manuseadas, análogo ao trato com as palavras, com o texto. Estas imagens retêm tamanha relevância na escrita cabralina que chegam ao extremo de Uma faca só lâmina. Se a faca pode representar espécies de estratégias de abordagem da palavra, há metáforas também para a própria palavra, vista como “um mal necessário”, digamos assim, por ser ela difícil de manter “sob rédea curta”, para recuperar Costa Lima.194 Na última estrofe da seção “Psicologia da composição”, lê-se: “onde foi palavra / (potros ou touros / contidos) resta a severa / forma do vazio”. Aqui entra em cena o touro da corrida de touros, animal indomável e furioso que corre sem direção, atropelando as pessoas que vê pela frente, contra o qual se impõe a dura “forma do vazio”, haja vista que é sobre (e na escrita) que se fala. Se as palavras são touros, talvez não seja exagero comparar o poeta ao toureiro, profissional que procura manter a tensa, por ser de extremo risco, situação sob controle. Essa atitude, de enfrentar o touro, mesmo que tomado pelo medo, é para Bergamín, exemplo de dignidade humana, cujo contrário seria a covardia, sentimento que não permitiria ao toureiro entrar na arena.195 Esta situação tensa, de elástico puxado nas extremidades, que vive o escritor ante a palavra, que precisa ser enfrentada, mesmo estando presente – e estará, entre os escritores reflexivos acerca de seu ofício. Recuperando mais uma vez “Alguns toureiros” (Paisagens com figuras), temos um toureiro cujos gestos, quase autoexplicativos, chamam a atenção:

[...]

Mas eu vi Manuel Rodríguez, Manolete, o mais deserto, o toureiro mais agudo, mais mineral e desperto,

193 MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único, op. cit., p. 419. 194 Lira e antilira: Mário, Drummond, Cabral, op. cit., p. 298. 195 “Il coraggio e la paura”. In: L’arte del toreare e la sua musica silenzionsa, op. cit., p. 33.

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[...]

sim, eu vi Manuel Rodríguez, Manolete, o mais asceta, não só cultivar sua flor mas demonstrar aos poetas:

como domar a explosão com mão serena e contida, sem deixar que se derrame a flor que traz escondida,

e como, então, trabalhá-la com mão certa, pouca e extrema: sem perfumar sua flor, sem poetizar seu poema.196

A aproximação de “deserto” ao toureiro pode suscitar diversas reflexões, pois ao passo que remete à assepsia desértica de Psicologia da composição, conectada a um texto que se quer “limpo”, preciso, fala do trabalho solitário de quem está em uma arena de areia, tendo que conter a fúria de um animal que investe contra o pano vermelho provocante. Para Cabral, essa imagem é similar a de um escritor. Inclusive, o toureiro é exemplo para os poetas, pois ele mantem sua flor intacta, não para poder cantar sua beleza e seu perfume, mas por meio da demonstração de como suas ações sabem ser “serenas” e “contidas”, ainda que em face aos perigos que deve enfrentar. Em tempo: a própria flor, como vimos, é perigosa, necessita de manuseio cauteloso. A tauromaquia foi, sem dúvida, uma tradição espanhola que cativou Cabral, “a ponto de sua biblioteca particular conter dezenas de livros sobre o tema”.197 Frequentava touradas, como revelou em entrevista de 1987: “eu vi Manolete tourear duas vezes. Ele morreu em julho de 1947. Nesse ano, ele ainda toureou em Barcelona duas vezes e ele morreu em julho (...) e nós tínhamos um amigo comum que me ia apresentar a ele”.198 E, como se vê, a arte foi introduzida por Manolete, a quem o poeta se refere logo após sua morte, em um gesto que poderia ser entendido como um tributo a alguém admirado e que, por uma fatalidade inerente à atividade exercida, não foi conhecido pessoalmente. Mas na poesia cabralina, onde simples concessões líricas são sempre evitadas, as homenagens não podem estar alheias a um circuito que vai sendo educado pela

196 MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único, op. cit., p. 158. 197 SECCHIN, Antônio Carlos. João Cabral: uma fala só lâmina, op. cit., p. 444. 198 Lira e antilira: Mário, Drummond, Cabral, op. cit., p. 135.

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linguagem, e é somente através/em função dela que tudo se dá, como o que ocorre em “O sim contra o sim”, de Serial, poema relativamente longo, dividido em seções com grupos de quatro e oito estrofes, em que são personagens nome admirados por Cabral: Marianne Moore, Francis Ponge, Miró, Mondrian, Cesário Verde, Augusto dos Anjos, Juan Gris e Jean Dubuffet. À vista disso, percebe-se que, quando Lorca fala de Ignacio Sánches Mejías, é de maneira distinta que o faz, escolhendo descrever à moda realista/naturalista a cena, da qual foi testemunha ocular, do toureiro sendo morto pelo touro, em plena arena, em 1934. Lorca, talvez por ser grande apreciador de música (nasceu cercado pela música gitana e era admirador do impressionista Debussy), lança mão de um ritmo demarcado pela métrica e pelas repetições, que lembram uma ladainha religiosa. Llanto por Ignacio Sánches Mejías, feito no intervalo de apenas um ano – Cabral prefere a distância temporal, decantadora de arroubos sentimentais –, possui divisão em quatro partes: “La Cogida y la muerte”, “Lo sangre derramada”, “Cuerpo presente” e “Alma ausente”; é narrado, pois, todo o percurso do trágico final de Mejías, desde o momento da corneada,

[...] Y um musclo con una asta desolada A las cinco de la tarde. Comenzaron los sones del bordón A las cinco de la tarde. En las esquinas grupos de silencio A las cinco de la tarde. ¡Y el toro solo corazón arriba! A las cinco de la tarde. [...]199

passando pelo corpo estirado na areia, ensanguentado,

¡Que no quiero verla!

Dile a la luna que venga, que no quiero ver la sangre de Ignacio sobre la arena. [...]200

199 GARCÍA LORCA, Federico. Obra poética completa. Tradução William Agel de Mello. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 510.

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até a chegada da morte.201

[...] Ya está sobre la piedra Ignacio el bien nacido. Ya se acabó; ¿qué pasa? Contemplad su figura: la muerte le ha cubierto de pálidos azufres y le ha puesto cabeza de oscuro minotauro. [...]202

A derradeira seção, com seus versos predominantemente decassílabos (como o início do poema), traz um eu lírico que demonstra esforço para que a figura do falecido não se perca na história, seja sempre lembrada.

[...] No te conoce nadie. No. Pero yo te canto. Yo canto para luego tu perfil y tu gracia. La madurez insigne de tu conocimiento. Tu apetencia de muerte y el gusto de tu boca. La tristeza que tuvo tu valiente alegría. [...]203

Apesar do estilo decorativo (termo usado por Cabral para se referir a Lorca), com toques impressionistas, a cena em que Manolete perece é descrita com detalhes que talvez venham ao encontro daquilo que para Cabral é sedutor na literatura espanhola: é “a mais realista do mundo”. E, para ele, a origem disso seria popular: “Até mesmo nos clássicos, como Cervantes, Quevedo, mesmo Góngora, se encontra a presença do povo, do popular. Em Góngora observamos bastante realismo, por vezes rude, áspero”.204 Entretanto, é necessário pensar que, após passar pelo crivo poético de Cabral, aquele secular realismo de testemunho discutido nas artes, repleto de explícitas descrições e denúncias, se converte na “predominância do denotativo”, na busca, através da

200 GARCÍA LORCA, Federico. Obra poética completa, op. cit., p. 512. 201 Os momentos entre o incidente e a morte, quando Mejías estava hospitalizado, são contados por José Bergamín, que presenciou tudo, no livro dele que temos citado. 202 Idem, p. 518. 203 Idem, p. 520. 204 MELO NETO apud ATHAYDE. Ideias fixas de João Cabral de Melo Neto, op. cit., p. 31.

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prática poética, de “novas perspectivas contidas no objeto-palavra”.205 É o que parece tirar da trilogia O cão sem plumas, O rio e Morte e vida Severina o caráter panfletário, pois as duras críticas feitas nessas obras encontram-se envoltas em uma arquitetura maior, cujo interesse primeiro é testar os limites da palavra a partir da práxis poética.

4.2 CAPRONI NA ESPANHA: PRÓXIMA DISTÂNCIA

Caproni não viu touradas, nem escreveu sobre elas, salvo engano. Mas leu a respeito e, possivelmente, o contato que teve reverberou de alguma forma em sua produção. Na verdade, mas do que ler sobre touros, o poeta verteu Llanto por Ignacio Sánches Mejías para o italiano, em uma época em que sua atuação como tradutor estava intensa, sendo que, além de Lorca, traduziu Guillaume Apollinaire, René Char, André Frénaud, Jacques Prévert, Paul Verlaine, René Guy Cadou, Henri Thomas, Antonio e Manuel Machado, Théophile de Viau, Victor Hugo e Charles Baudelaire. Na verdade, tal trabalho tomou bastante tempo de Caproni: em entrevista datada de 1975, ele revela que o que iniciou como uma atividade que visava incrementar os ganhos do magistério foi se tornando prazeroso e até mesmo viciante.206 No que toca especificamente os espanhóis traduzidos nos profícuos anos 50 e 60, contudo, alguns ainda permanecem sem publicação e pouco estudados.207 Diferentemente de Cabral, cujo contato com a Espanha se deu na juventude, Caproni leu ainda na infância e adolescência, antes mesmo de acessar alguns clássicos de seu próprio país, a revista Blanco y Negro,208 trazida pelo irmão mais velho, Pier Francesco, que fazia regulares visitas à costa espanhola, em decorrência da função que exercia: era radiotelegrafista de um navio de pesca da Genepesca. Assim, ele, que estabelecia comunicação com outras embarcações ou

205 COSTA LIMA, Luiz. Lira e antilira: Mário, Drummond, Cabral, op. cit., p. 29-30. 206 CAPRONI, Giorgio. Il mondo ha bisogno dei poeti: interviste e autocommenti 1948-1990, op., cit., p. 89. 207 DONZELLI, Elisa. Giorgio Caproni e gli altri: temi, percorsi e incontri nella poesia europea del Novecento. Venezia: Marsilio Editori, 2016, p. 90. 208 O referido periódico, semanal, havia sido lançado em dez de maio de 1891, por Torcuato Luca de Tena Madri Brunet, como parte integrante do editorial Imprensa Espanõla. A revista, ilustrada em cores (a primeira a se utilizar desse recurso na Espanha) e de bom gosto artístico, mesclava conteúdos literários e informações gerais. Em verdade, as principais seções consistiam em narrativas literárias, touros, esportes e crônicas semanais nacionais e internacionais. Entre os colaboradores da revista estavam, entre outros, Emilia Pardo Bazán, Antonio e Manuel Machado, Francisco Villaespesa, José Martínez Ruiz “Azorín” e Manuel Abril. Em 1939, com a Guerra Civil em atividade, a publicação foi interrompida, voltando a funcionar apenas em 1957, porém com um formato diferenciado, mais moderno. Para maiores informações sobre o assunto, consultar http://www.periodicosregalo.com/revista-blanco-y-negro-desde-1891/.

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aeronaves, ao que parece, serviu também como mediador entre o irmão e uma nova cultura. Além disso, Pier trazia outros presentes: “livros dos Machado, de Lorca e outros que eu lia diretamente em espanhol, profundamente absorto [...] Mais tarde encontraria Rebora, Montale, Sereni, depois Saba”. 209 E, ao que parece, Caproni não deixou mais de ler os espanhóis, tendo em vista que parte de sua biblioteca particular, hoje abrigada na Biblioteca comunale Guglielmo Marconi di Roma, com quase cinco mil volumes, possui algo em torno de trinta livros de autores do referida nacionalidade. Lorca foi o primeiro espanhol sobre quem Caproni publicou artigo, em 1940, na revista Augustea,210 que, tal qual a Blanco y Negro, trazia assuntos variados, como política, economia e arte. No entanto, o poeta advertia que não fez parte do chamado “lorquismo”, tendo sido apenas admirador.211 Há, sim, uma áurea mitológica em torno do espanhol, uma feição de modismo, causada, parte pela força lírica e dramática de seus escritos, parte pelas condições de sua morte,212 áurea esta que não parece ter tido Caproni como seguidor, característica que pode aproximá-lo de Cabral, infenso que era a modismos, ainda que conectado às coisas de seu tempo. Essa intensa busca por uma identidade própria, a propósito, talvez possa ser estendida às traduções de Caproni. Se desviarmos o olhar por alguns instantes para os franceses vertidos por Caproni, por exemplo, encontramos um tradutor cujas versões não se faziam subordinadas nem mesmo às suas respectivas escolas literárias, a exemplo de Apollinaire, o qual sofreu intervenções capronianas que acabaram por não seguir as originais diretrizes simbolistas.213 Caproni, dessa forma, estabelece uma relação de certa liberdade em relação ao traduzido, vertendo palavra por palavra: infere-se que seu entendimento de tradução é análogo ao próprio ato de escrever versos, que significa pensamento, em consonância com o que disse Antoine Berman, em A tradução e a

209 “libri di Machado, di Lorca e altri che io leggevo direttamente in spagnolo, profondamente attratto [...] Più tardi incontrai Rebora, Montale, Sereni, poi Saba”. DONZELLI apud CAPRONI. Giorgio Caproni e gli altri: temi, percorsi e incontri nella poesia europea del Novecento, op. cit., p. 92. 210 Foi uma revista quinzenal romana, que durou de 1925 a 1943, e que teve como diretores Franco Ciarlantini, Antonio Lezza, Ottavio Dinale. 211 Idem, p. 105. 212 Carlos Drummond de Andrade, em conhecido artigo chamado “Garcia Lorca e a cultura espanhola” (Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 06 out. 1946, Segunda Seção) – na ocasião da instalação do Ateneu Garcia Lorca, quando eram completados dez anos de falecimento do andaluz –, relata a história de morte brutal que envolve a biografia do poeta e dramaturgo: “Às oito horas da noite, o prisioneiro (...) é posto no interior de uma caminhoneta, que (...) detém no ermo: os homens descem, os faróis do carro iluminam o vulto do poeta, um tenente (...) descarrega sua arma sobre o corpo imóvel”. 213 COLETTI, Vittorio. Note su Caproni traduttore. In: DEVOTO, Giorgio e VERDINO Stefano (a cura di). Genova a Giorgio Caproni. Genova: Edizioni S. Marco dei Giustiniani, 1982.

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letra ou o albergue do longínquo: “A tradução é uma experiência que pode se abrir e se (re) encontrar na reflexão. Mais precisamente: ela é originalmente (e enquanto experiência) reflexão”.214 A visão de que traduzir é pensamento, reflexão, está intimamente interligada ao

objetivo ético do traduzir, por se propor acolher o Estrangeiro na sua corporeidade carnal, só pode estar ligado à letra da obra. (...) Ser “fiel” a um contrato significa respeitar suas cláusulas, não o “espírito” do contrato. Ser fiel ao “espírito” de um texto é uma contradição em si.215

O “espírito” da obra pertence ao autor, portanto, ficando ao tradutor acolher o estrangeiro (daí a expressão “albergue do longínquo”) de modo a respeitar o texto como ele é, sem que se tente adaptar o texto à língua para a qual se traduz, eliminando, por exemplo, “vernáculos”, a fim de que a obra vertida “comunique” mais claramente à comunidade que irá lê-la. Essa postura tem “o objetivo apropriador e anexionista que caracteriza o Ocidente”, a qual “sufocou quase sempre a vocação ética da tradução”. A ‘lógica do mesmo’ quase sempre prevaleceu.”216 O tradutor, a partir de tal lógica, conquanto deve atender eticamente ao fato de não perder de vista “a letra da obra”, não abrirá mão de seu próprio espírito, de suas próprias convicções artísticas, a serem mescladas com o texto original. Foi por isso que Caproni, em carta a René Char, de 1960, disse: “De uma mulher morena e de um marido loiro pode nascer um filho castanho. Assemelha-se a um e ao outro”. 217 O que resulta, então, da tradução seria uma terceira via, a qual carrega elementos tanto de quem é vertido quanto de quem verte. Isso tornaria o tradutor também poeta e poderia acender a discussão acerca de como os traduzidos operaram em Caproni, auxiliando nas mudanças da sua poesia. Em relação a Lorca talvez possamos aproveitar a brevíssima colocação de Testa: “o mito da ‘popularidade’, cantável e fina”. Porém, como se sabe, as influências em Caproni pedem análises laterais, leituras atentas e sensíveis para que algo possa ser captado.

214 Tradução Marie-Hélene C. Torres, Mauri Furlan, Andreia Guerini. Tubarão : Copiart ; Florianópolis : PGET/UFSC, 2013, p. 23. 215 Idem, p. 98. Grifo do autor. 216 Idem, p. 97. 217 “Da una moglie bruna e da un marito biondo può nascere un figlio castano. Assomiglia all’uno e all’altro. Diversa e fidele”. DONZELLI apud CAPRONI. DONZELLI, Elisa. Giorgio Caproni e gli altri: temi, percorsi e incontri nella poesia europea del Novecento, op. cit., p. 90.

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Além do Llanto por Ignacio Sánches Mejías, visto no capítulo anterior, Caproni traduziu, de Lorca, “Arbolé, arbolé”, “A casada infiel” e “Maleficio de la Mariposa” (uma peça teatral). Tirando esta última, de 1972, as outras versões são da segunda metade da década de 1950, justamente quando significativas mudanças ocorrerão, abrindo caminho para fase madura de Caproni. Utilizando-se do comportamento especulativo inerente presença oblíqua da Espanha no poeta, diríamos que clima saudosista e cerimonioso do tributo para Mejías parece estar presente em A passagem de Eneias, obra autobiográfica, em que o homem e o poeta revisitam uma Gênova que sofreu violentos bombardeamentos durante a guerra. Misturam-se, então, à memória do que a cidade foi, uma realidade de destruição e certa apreensão sobre os tempos que virão. O título da coletânea vem de um pequeno detalhe da cidade, que pode até passar despercebido pelo transeunte ou turista (apesar de Gênova não ostentar a mesma vocação turística de cidades como Roma, Milão e Florença): a fonte de mármore do século XVIII, de Francesco Baratta, localizada na Piazza Bandiera, na qual se chega descendo pela via Balbi, onde está, a propósito, a Universidade de Gênova. De tamanho relativamente pequeno, a escultura é uma representação da história mitológica de Eneias na noite do incêndio de Tróia, quando o semideus, filho de Vênus (ou Afrodite) e Anquises, foge carregando o pai, velho e decadente, nas costas e o filho, Ascânio, pela mão. Segundo relatos mitológicos, após a partida, Eneias lidera um grupo de refugiados para a península itálica e se torna fundador da cultura romana. Os bombardeamentos da Segunda Guerra deixaram em ruínas a os prédios da praça e a Chiesa della SS. Annunziata [Igreja de Nossa Senhora da Anunciada], mas praticamente não atingiram Eneias, que, embora tenha conseguido, por assim dizer, resistir a mais uma destruição, não se pode dizer que será, para Caproni, símbolo de que há esperança, na certeza de que dias melhores estão por vir. Apesar de retirar o monumento da estagnação em que se encontrava, oferecendo-a nova roupagem que explica, talvez, o termo “passagem” do título, as reflexões do poeta estão envoltas em uma negatividade, natural para quem tem diante de seus olhos uma cena de guerra que ainda não teve tempo de reconstruções. Peterle, que teve acesso a uma série de artigos feitos por Caproni, entre 1948 e 1949, sobre estátua,218 cita a relação de Caproni ao observá-la: “ali pus-me a olhar o meu Eneias com a esperança que ele mesmo pudesse me dizer

218 São eles: “Monumento a Enea” (20 de outubro de 1948), “Il fuggiasco di Troia si fermò in Fossatello parlando con le rubiconde ‘bisagnine’” (26 de fevereiro de 1949), “Noi, Enea” (3 de julho de1949) e “Un monumento amichevole: encontro con Enea” (17 de dezembro de1961).

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alguma coisa”.219 Esta postura do genovês por adoção permite a aura benjaminiana entre o olhante e o olhado, discutida por Didi-Huberman, colocou em suspenso a temporalidade e transmutou Eneias em um ser do século XX:

E naquele pobre Eneias vi claramente o símbolo do homem da minha geração, só em plena guerra, procurando carregar sobre as costas um passado (uma tradição) a desmoronar de todas as partes, e procurando conduzir à salvação um futuro ainda tão incerto que mal fica de pé, mais necessitado de guia do que capaz de guiar.220

A figura heroica do bravo guerreiro acaba por ter um significado inteiramente novo: o bravo guerreiro que, mesmo tendo que carregar parte de sua família e conduzir outras muitas pessoas, consegue ser, em tese, a base de um mito fundador do Império Romano, se torna um homem comum, sem qualquer passado glorioso, que, em meio a estilhaços, não ter certeza do que está por vir. Este futuro incerto poderia, aliás, poderia estar representado na figura de Ascânio, que na obra de Barrata, segurando a mão do pai, não olha para ele, mas para o céu, como quem espera por algo, mas não sabe o quê. Eneias, em vez de guiar o filho, acaba por ser guiado por ele, ainda muito jovem e inexperiente para conduzir. Dessa forma, é sob esse alicerce de perdas e dúvidas, que começa a atingir também a linguagem, que encontramos, por exemplo, em “Litania” [Ladainha], poema que gostaríamos de associar ao Lhanto, de Lorca, que, traduzido por Caproni, pode ter operado deixado uma espécie de marca d’agua em sua escrita. Do ponto de vista de modalidade de escrita, Ladainha significa “Oração formada por uma série de invocações e respostas curtas e repetidas”,221 movimento dialético, encontrado tanto no poema lorquiano quanto em Caproni, apesar de este “narrar” de maneira diversa, com versos menos preenchidos. Além de evitar formas fixas, as réplicas não repetem como em Lorca (“A las cinco de la tarde”), pois a repetição está no invocar, sempre iniciado com “Gênova”. As respostas serão predominantemente substantivas, em atitude que faz recordar Wittgenstein, que, em Investigações filosóficas, fala das coisas e dos nomes que

219 PETERLE apud CAPRONI. “”Noi, Enea”. In: “Movimentos dos restos: encenações de Didi-Huberman e Giorgio Caproni”. In: FLORES, Maria Bernadete Ramos; PETERLE, Patricia. História e arte: herança, memória e patrimônio. São Paulo: Rafael Copetti Editor, 2014, p. 171. 220 “E in quel povero Enea vidi chiaro il simbolo dell’uomo della mia generazione, solo in piena guerra, a cercar di sostenere sulle spalle un passato (una tradizione) crollante da tutte le perti, e a cercar di portare a salvamento un futuro ancora così incerto da non reggersi ritto, più bisogno di guida che capace di far da guida”. SCARSI apud CAPRONI. Guida al parco Culturale Giorgio Caproni. Genova : Edizioni San Marco dei Giustiani, 1999, p. 41. 221 CEIA, Carlos. E-dicionário de termos literários, op. cit. Acesso 20 mar. 2018.

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atribuímos a elas, discorrendo em direção à essencialidade do substantivo na existência humana: o homem pensa “primeiramente em substantivos tais como ‘mesa’, ‘cadeira’, ‘pão’, em nomes de pessoas, e apenas em segundo lugar em nomes de certas atividades e qualidades (...)”.222 Em acréscimo, os sintagmas que não possuem conexão semântica de um quarteto para o outro. Às vezes, na verdade, os dísticos parecem estar isolados, conectados apenas ao tema maior, ou seja, a cidade paradoxalmente homenageada em vários aspectos, mas de modo incompleto. Observar Gênova através de “Litania” é semelhante a ter a vista panorâmica parcial que o elevador Castelletto ou o ponto final da linha de funicular Zecca-Righi – ambos lembrados em A passagem de Eneias, nos poemas “Stanze della funicolare” e “L’ascensore” – podem propiciar. Interessante é que, logo no primeiro verso, o eu poético fala de inteireza:

Gênova minha cidade inteira. Gerânio. Celeiro. Gênova de ferro e ar, Minha lousa, areal.

Gênova cidade asseada. Brisa e luz na sacada. Gênova verticalizada, Vertigem, ar, escada.

Gênova preta e branca. Cacúmen, Distância. Gênova onde não vivo, Meu nome, substantivo. [...]223

Ele parece saber que a completude só é possível na sua impossibilidade, restando para serem exteriorizadas por ele algumas peças escolhidas de um intrínseco mosaico. É provável estejamos no início de uma tomada de consciência de Caproni acerca incomunicabilidade, a luta vã contra a palavra, como diria Drummond, assunto deveras discutido na literatura moderna. É o dilema diante do qual muitos escritores se prostraram, sabendo que a linguagem não possibilita inteireza, mas é preciso que algo seja dito. Gênova, dessa maneira, só é possível de ser descrita

222 São Paulo: Abril Cultural, 1975, p. 14. 223 CAPRONI, Giorgio. A coisa perdida: Agamben comenta Caproni, op. cit., p. 127-139. Para este poema não será inserida em nota a versão original.

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em pedaços, o que equaliza com a memória, sempre parcial e cheia de camadas, e com a própria situação física da cidade após as bombas. A frase “Eu sou feito de Gênova”, dita certa feita pelo poeta, parece se alinhar com a primeira estrofe do poema, em que o aspecto vegetal e mineral (principalmente), constituintes da cidade, misturam-se à “lousa” usada por Caproni durante todos os anos de magistério. Outra possibilidade para o termo “lousa” pode ser levantada a partir da palavra original, em italiano, que seria “lavagna”, cujo sentido tem ligação, também, com um pequeno município da província de Gênova. Elementos geológicos – como a ardósia dos telhados de Gênova, que se veem do alto, as pedras das encostas e a areia da praia –, na verdade, são algumas das “ideias fixas” do autor, como ocorre no poema “Stornello” [Stornello], poema que antecede “Ladainha”: “Minha Gênova defesa e proprietária. / Ardósia minha. Arenária / [...] Gênova minha de pedra. Íris. Ária”.224 Ainda no fragmento (do fragmento) citado, outras características urbanas são arroladas, sempre em simbiose com as impressões de um eu inquieto que intercala várias camadas de memória, as quais podem ir do menino, morador da Via Bernardo Strozzi, nº 23, ao homem, pai de família. Caproni partilha com Dino Campana (lembrado no poema, juntamente com Montale e Sbarbaro) o interesse pelo o efeito que a verticalidade de Gênova provoca no olhar, seja de quem vê durante o dia (telhados e cores das casas) ou de quem aprecia as cintilantes luzes noturnas. Por isso, aparecem os termos “ar”, “escada”, “cacúmen”. Não obstante esse jogo “cidade/eu/eu e a cidade/eu na cidade”, em que certo individualismo se faz presente, há pouco espaço para enaltecimentos românticos. Frases como “Gênova viva e amada” e “Gênova que não me deixa”, acompanhadas de passagens muito íntimas, como a citação de Oregina, localidade em que Olga vivia, parecem demonstrar como o espaço é internalizado. A percepção peculiar e a postura poética caproniana, contudo, serão semelhantes às de Cabral, ou seja, voltadas ao externo, aos detalhes cotidianos e vivazes. O que vem à tona é uma cidade portuária cujo mar não será de tranquilidade (Vittorio Sereni) ou de aventuras (Attilio Bertolucci), mas comercial: “O meu não é o mar estático dos contemplativos, mas simplesmente um mar mercantil, povoado, mais que de sereias ou de tritões, de navios mercantes em rota ou atracados (...)”:225

224 CAPRONI, Giorgio. A coisa perdida: Agamben comenta Caproni, op. cit., p. 125. 225 “Il mio mare non è il mare estático dei contemplativi, ma semplicemente un mare mercantile, popolato più che da Sirene o da Tritoni da bastimenti in rotta o alla fonda (...)”. DEI apud CAPRONI. “Caproni ‘ligustico’ e il mare”. Le carte incrociate: sulla poesia di Giorgio Caproni, op. cit., p. 67.

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[...] Gênova de Sottoripa. Empório. Sexo. Trancaria. Gênova de Porta Soprana, de anjo e de mulher-dama.

Gênova de faca. De peixe. De capa. Gênova de lampião a gás, consternação.

Gênova de Raibetta. De Gatta Mora. Infecta. Gênova da Bruxa, abismo que os dentes puxa.

Gênova que não se diz. De barcos. De verniz. Gênova balnear, de choques para lembrar. [...]

A exemplo do que ocorrerá em A despedida do viajante cerimonioso e outras prosopopeias, a vocação portuária de Gênova vem à tona, juntamente com a anteriormente aludida zona antiga da cidade: a vasta área de Sottoripa; a Porta Soprana, que, construída na era medieval, foi uma das entradas da capital da Ligúria e está bem próxima à casa de Cristóvão Colombo; a piazza Raibetta, que se encontra paralela à via della Mercanzia; o estreito passeio de Gattamora. É uma região de bastante movimentação comercial de Gênova, em diversos sentidos, pois, a qualquer hora do dia, comerciantes de todos os segmentos e prostitutas disputam clientes nas vielas e becos seculares, os quais também carregam histórias, como as das mulheres que eram queimadas ao ar livre, nas ruas, acusadas pela Inquisição de bruxaria. Entretanto, na percepção de Caproni, essa vocação que a cidade tem para o trabalho é demonstrada de maneira discreta, silenciosa, pragmática, mesmo em tempos de conflito “uma cidade em que se trabalha mesmo quando se passa por um abalo, e sem o menor barulho, em que se fala em voz baixa e com o regulamento em mãos até nas manifestações (...)”.226

226 “Gênova, cidade de gesso”. In: A porta morgana: ensaios sobre tradução, op. cit., p. 48.

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A faca também aparece entre os quartetos citados, inerente, talvez, ao intenso comércio de peixes, comum a qualquer cidade litorânea e portuária. Em outras oportunidades a faca também é presente em Caproni, ligada a distintos tipos de eventos – mas não à escrita, como ocorre em Cabral –, como no poema de O muro da terra “As facas”, quando estava em curso a crise com Deus, o qual leva um tiro e tem “o rosto rachado / nas facas: os xistos”;227 em Res amissa, o poema homônimo fala de um quarto que “regela” atingido pelo vento, elemento que vira metáfora de “lâmina de fala”;228 adentrando a faceta contista caproniana, encontramos “Le coltelate” [As facadas], história de clima soturno em que a faca tem conexão com a guerra: na Roma pós-guerra, um homem resolve ir visitar um companheiro de combate, cujas atitudes parecem apresentar sequelas que guarda sequelas das experiências vividas.229 “Ladainha”, em seus quartetos finais, se concentra em detalhes de Gênova e região, tão unidos à vida pessoa do sujeito empírico que uma coisa poderia substituir a outra:

[...]

Gênova de minha Rina Valtrebbia. Ar fino. Gênova país de folhas viçosas, onde arrumei uma esposa.

Gênova sempre nova. Vida que se renova. Gênova longa e afastada, pátria de minha Silvana.

Gênova palpitante. Meu coração. Meu brilhante. Gênova meu domicílio, onde nasceu-me Attilio.

Gênova da Acquaverde. Meu pai nela se perde. Gênova de soluços, mamãe, Via Bernardo Strozzi.

Gênova de lamentos. Enéias. Bombardeamentos. Gênova desesperada.

227 CAPRONI, Gorgio. A coisa perdida: Agamben comenta Caproni, op. cit., p. 185. 228 Idem, p. 358-59. 229 CAPRONI, Giorgio; a cura di Adele Dei. Racontti scritti per forza. Milano : Garzanti Libri, 2008, p. 195-198.

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em vão por mim implorada.

[...]

Primeiramente, o vale de Valtrebbia é citado, região entrecortada pelo rio Trebbia, onde fica Loco, a localidade natal de Rina, e onde Caproni serviu durante a guerra. Os filhos Silvana e Attilio, juntamente com a esposa, são abordados em várias oportunidades, como é o caso de “Toba” (A despedida do viajante cerimonioso), poema dedicado aos irmãos, e Erva francesa, livro dedicado à filha e publicado depois que ela acompanhou o pai em viagem à França. Ainda no âmbito familiar, o pai, representando, provavelmente, a ida da Toscana para a Ligúria em busca de melhores condições de vida, “se perde” na Piazza Acquaverde, adjacente à estação ferroviária Principe; e a mãe, que se dedicou às atividades domésticas, faz par com a rua onde viveram, na parte alta Gênova. No final do excerto, os lamentos pelas bombas na praça de Enéias e o desespero decorrente. Quanto aos pontos de Gênova e região, não obstante algumas referências a espaços como o Cemitério Staglieno (recordado em “Ladainha”), onde as famílias ricas genovesas estão sepultadas, em túmulos ornados por majestosas esculturas, nota-se que a preferência de Caproni é pelo popular, condizendo com sua origem proletária, com a vida simples que levou e com a ideologia comunista que possuía. Mercados públicos, lugarejos pouco conhecidos, pequenas praças e ruas secundárias são constantemente lembrados pelo poeta quando se trata da Ligúria, de Livorno ou de Roma. Aliás, a capital, nas raras vezes em que emerge na poesia de Caproni, não se trata daquela “monumental e histórica, mas aquela semiperiférica e impura dos bairros onde o poeta por muito tempo viveu: Monteverde (nas duas contíguas variantes ditas ‘velho’ e ‘novo’)”.230 Essa vivência e o interesse consequente interesse pelo subúrbio, a propósito, Caproni dividiu com o amigo Pasolini, que, após a mudança para Roma (1950), terá os marginalizados da metrópole como tema de seus escritos e filmes.231

230 AGAMBEN, Giorgio. “A cidade e a poesia”. In: Categorias italianas: estudos de poética e literatura, op. cit., p. 199. 231 Caproni foi convidado, mas acabou não participando de Evangelho segundo Mateus (1964), dirigido por Pasolini, por motivo de saúde. O filme foi indicado ao Oscar em três categorias: trilha sonora, direção de arte e figurino.

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Assim, quando em 1979 faz um levantamento detalhado da sua cidade da alma – cujo começo é pelas conhecidas frases “Gênova sou eu. Eu que sou ‘feito’ de Gênova” –,232 traçando um perfil dos adornos luxuosos que a Via Maragliano possui, diz:

De tais ornamentos, todos de tal peso – um espelho fiel da borguesia inchada e rica da época – a cidade tem exemplos em toda parte: na piazza De Ferrari como na via XX Settembre, em corso Torino como em via Casaregis, duas contagiosas avenues, estas últimas agora um pouco em decadência, onde a densidade de plátanos, escurecendo com sua sombra aqueles ornamentos, tornando-os ainda mais sombrios. É decididamente (junto com o celebrado Cemitério Staglieno, onde nunca consegui digerir as obras-primas – encomendadas por essa mesma borguesia – de um Galletti, de um Monteverde, um De Albertis, de um Baroni: o mesmo que o monumento monstruoso de Quarto) a Genova que eu não gosto.233

Também Cabral voltava muitas vezes o olhar e a poesia para o detalhe, em detrimento das grandiosidades turísticas com as quais conviveu bastante, por ter habitado lugares como Rio de Janeiro, Barcelona, Marselha, Madrid e Londres. Existe, no entanto, uma diferença em se tratando das cidades na obra dos dois poetas deste trabalho: em Cabral, o “jurisdicional”, para recuperar expressão caproniana, tem sentido de aclive e não de declive, visto que, depois da chagada a Barcelona, os lugares incertos do início da obra serão substituídos pelo nordeste e pela Espanha e permanecerão até a obra derradeira, Sevilha andando. O estímulo, porém, para que Cabral se tornasse um poeta para quem espaços específicos são cruciais não foi urbano, mas rural (os campos de Tarragona), ainda que estivesse na agitada Barcelona. Foi o que parece ter ativado uma escrita imediatamente sertaneja, sem que esta potência, contudo, se perdesse com o tempo. Somente depois é que vem Sevilha, onde morou de 1956 a 1958 e de 1962 a 1964, sobre a qual o foco não é o Alcázar234 e a Catedral, mas as calles e os quarteirões exatos que se ajustaram

232 “Genova sono io. Io che sono ‘fatto’ di Genova”. In: Il mondo ha bisogno dei poeti: interviste e autocommenti 1948-1990, op. cit., p. 143. 233 “Di tali ornamenti, tutti di tale pesantezza – fedele specchio della gonfia e danarosa borguesia dell’epoca – la città ha del resto esempi un po’ dappertutto: in piazza De Ferrari come in via XX Settembre, in corso Torino come in via Casaregis, due contegnose avenues, queste ultime, ormai un p’o decadute, dove il folto dei platani, incupendo con la sua ombra queli orpelli, li fa ancora più tetri. È decisamente (insieme con il tanto celebrato Cimitero di Staglieno, dove non son mai riuscito a digerir i capolavori – ordinati da quella medesima borguesia – di un Galletti, di un Monteverde, di un De Albertis, di un Baroni: lo stesso del mostruoso monumento del Quarto) la Genova che non mi piace”. Idem, p. 148. 234 No caso específico de Alcázar, a arquitetura não parece ser do tipo que agrada ao poeta, calculada, de ângulos mais retos. Walter Benjamin, ao descrever Alcázar, em suas “Lembranças de viagem”, diz: “Uma arquitetura que

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em Cabral como uma peça de roupa que veste bem, para retomar uma imagem de “Sevilha”, presente em Quaderna: “A cidade mais bem cortada / que vi, Sevilha; / cidade que veste o homem / sob medida // Justa ao tamanho do corpo / ela se adapta, / branda e sem quinas, roupas / bem recortada (...)”.235 Mesmo tendo se impressionado com as corridas de touros, eventos populares de massa, serão o cante jondo e o flamenco, apresentados em pequenos bares, mais tematizados por Cabral. Neste ponto, ele parece se aproximar do amigo Murilo Mendes, com quem dividiu com o interesse pelas coisas da Espanha, apesar de o poeta mineiro não ter tido a oportunidade de viver lá, fez apenas visitas. Mas morou na Itália entre 1957 e 1975, a fim de ensinar cultura brasileira na Universidade de Roma, sendo ele, talvez, a maior conexão entre Cabral e o país de Caproni, como se observa no trecho de carta, em que o recém-chegado professor traça um breve panorama da literatura italiana com a qual começava a se familiarizar: “Infelizmente os dois poetas mais interessantes da Itália atual residem em Milão – Montale e Quasímodo. Os italianos, mesmo cultos, escritores, etc, consideram Montale dificílimo, super- hermético, etc.”. Na sequência, não tem problemas com o vocabulário “rico e precioso” do autor de Ossos de sépia e o lê “palavra por palavra”. Quanto aos “bizantinismos de construção, a intuição de poeta muito me ajuda”.236 Mesmo Murilo nutrindo sempre profundo interesse pela cultura ibérica e afirmando que “a Itália é um país traduzido, a Espanha é um país por traduzir”,237 Roma, onde lecionou de 1957 a 1975, não lhe passou despercebida, como não poderia deixar de ser, visto que falamos de um observador arguto. Mas, assim como seu amigo diplomata, tinha, muitas vezes, os olhos voltados para o ínfimo. Ante os monumentos dos quais a cidade eterna só guarda escombros, diferentemente de viajantes com camisetas floridas e máquinas fotográficas penduradas no pescoço que procuram refazer o que o Império Romano foi um dia, ocorre em Murilo um desvio de olhar. “Desvio que leva para a borda, para uma extremidade onde estão os ratos, baratas e centopeias que dominam a cena, em pé de guerra”,238 como diz Peterle, no ensaio Tangenciando segue primeiro impulso da fantasia. É intocada por preocupações práticas. Somente sonhos e festas, realização destes, estão previstos nos altos aposentos”. In: Rua de mão única, op. cit., p. 48. 235 MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único, op. cit., p. 252. 236 MENDES. Carta a Cabral. Roma, 27 de maio de 1957. Arquivo João Cabral de Melo Neto. Fundação Casa de Rui Barbosa. 237 A frase foi retirada de uma entrevista que o poeta concedeu em 1972 e se encontra no livro organizado por Júlio Castañon Guimarães (Murilo Mendes: 1901-2001. Juiz de Fora: CEMM/UFJF, 2001, p. 57). 238 PETERLE, Patricia. Tangenciando “ruinosamente” Giorgio Caproni. In: PETERLE, Patricia & GASPARI, Silvana de (org.). Arquivos poéticos: desagregação e potencialidades do Novecento italiano, op., cit., p. 60. Atentamos para o

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“ruinosamente” Giorgio Caproni, que cita como exemplo um dos poemas do livro Ipotesi – composto em italiano, nos anos 60, quando o brasileiro já adquirira mais intimidade com o idioma –, cujos dois primeiros versos são: “Os ratos as baratas em atitude de guerra / cercando os césares que rolam no asfalto (...)”.239 Na sequência, a referida estudiosa fala da relação do homem contemporâneo (aí está, obviamente, o artista) com as ruínas e de como elas são inquietantes, por não poderem dar mais conta da totalidade, sendo obrigadas a sucumbir à fragmentação. “É a tensão entre o ser e o mundo, do qual o ser faz parte, modificando-o, mas também sendo modificado por ele”.240 O ensaio se encaminha, então, para Caproni, o qual, como homem do seu tempo que foi, sentiu o esfacelamento do mundo em que vivia, retomando-o em sua poesia por ranhuras. Nesse contexto, há um “eu” em sintonia com tudo isso, sem querer (ou conseguir) se mostrar inteiro, grandioso, como ocorria nos tempos da antiguidade grega ou romana, quando os heróis salvavam povos. E, se observarmos, ainda que rapidamente, a obra Tempo espanhol, feita por Murilo pari passu à experiência italiana, talvez seja possível perceber uma postura poética semelhante àquela dedicada a Roma. “O Cristo subterrâneo” traz a perspectiva de uma Espanha que não é aparente, como o título sugere, mas que subsiste na imanência de cada um ou de cada acontecimento, sofrido ou não. A Espanha, pois, que Murilo e Cabral enxergam – apesar de suas diferenças – não é mais aquela das grandes navegações, dos conflitos religiosos nos quais os espanhóis saíam vitoriosos; não é a Espanha mítica de Ernest Hemingway, em O sol é para todos, ou cigana de Lorca.241 A força está no dia-a-dia de um país corroído e censurado por governo impositivo, que não evitou “Viridiana”, de Luis Buñuel, cujo teor anarquista ia contra as bases nas quais Guerra Civil fora fundada; há vetores que puxam para direções antitéticas. Cabral, tendo isso diante de si, fará recortes que trarão à superfície, em diversos momentos, detalhes corriqueiros que se unem em mosaico, no qual estará integrado, também, tudo aquilo que ele via do nordeste brasileiro na Espanha.242

fato de, mais uma vez, aplicarmos a crítica sobre Caproni a Cabral. O inverso também já foi feito. É provável que tal atitude se repita no decorrer destes escritos, tendo em vista um dos movimentos constantes neles: a comparação dos poetas pelas afinidades que, a nosso ver, possuem. 239 “I topi gli scarafaggi in assetto di guerra / circondano i cesari che rotolano sull'asfalto (...)”“I topi gli scarafaggi in assetto di guerra / circondano i cesari che rotolano sull'asfalto (...)”. Idem, ibidem. 240 Idem, p. 64. 241 Lira e antilira: Mário, Drummond, Cabral, op. cit., p. 362. 242 CARVALHO, Ricardo Souza. A Espanha de João Cabral e Murilo Mendes, op. cit., p. 177.

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4.2.1 Caproni e a Espanha: distância incorporada

Aproximamos Lorca e Caproni associando, a forma do Llanto à “Litania”. Mas a discussão acerca da Espanha que opera no poema analisado poderia ser expandida para Antonio Machado, se pensamos na questão da “sinuosidade” e da “nostalgia”. Esses elementos, na verdade, parecem ter se enraizado e se pulverizado de tal modo na poesia caproniana que levaria um bom tempo para tentar destrinchar, ainda que parcialmente. Enquanto Cabral provavelmente recortou do poeta sevilhano a “paisagem e o homem descarnados pela fome e pela seca”,243 de “Un loco”, para Caproni a busca pelas “galerias da alma” (referência à seção “Galerías”, na edição de Soledades, de 1907) se tornou uma constante, um modelo a ser perseguido a fim de tentar encontrar, através da poesia, uma camada cuja profundidade acaba por ser comum a todas as pessoas: “Minha ambição, ou vocação, sempre foi a de conseguir, por meio da prática do verso, encontrar, procurando a minha, a verdade de todos”.244 Durante os anos 50 e início dos 60, Caproni preparou material para uma publicação que acabaria saindo somente póstuma e incompleta (Quaderno de traduzioni), organizada por Enrico Testa e prefaciado por Pier Vicenzo Mengaldo. Nela, seria inserida uma breve biografia de Machado, a qual revela semelhanças com a de Caproni: o espanhol viveu também luto pela perda da companheira, Leonor Izquierdo, dois anos após o casamento. Machado teve igualmente experiência com um momento de tensão, causada por uma conflagração em seu país, a Guerra Civil Espanhola, embora não tenha empunhado armas. Arma-se, então, uma negatividade, semelhante a que as perdas e a guerra trouxeram a Caproni, a qual acompanhou versos de vários poemas de Machado, como “Daba el reloj las doce” (que, a propósito, remete à “A las cinco de la tarde”) e “Desde el umbral de un sueño”, retirados de Soledades (também da edição de 1907), os quais receberam traduções para o italiano. Elisa Donzelli explica que estes dois textos vertidos, juntamente com outros cinco, de obras diversas do espanhol, ainda não podem ser encontrados em publicações, remanescendo na Biblioteca Nazionale Centrale di Firenze, datilografados, com algumas intervenções a punho.245 Aproveitaremos o acesso de Dozelli às traduções inéditas para as associações fazemos:

243 CARVALHO, Ricardo Souza. A Espanha de João Cabral e Murilo Mendes, op. cit., p. 177. 244 CAPRONI, Giorgio. A porta morgana, op. cit., p. 111. 245 DONZELLI, Elisa. Giorgio Caproni e gli altri: temi, percorsi e incontri nella poesia europea del Novecento, op. cit., p. 96.

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Desde el umbral de un sueño Dalla soglia d’un sogno

Desde el umbral del sueño me llamaron... Dalla soglia d’un sogno mi chiamarono... Era la buena voz, la voz querida. Era la buona, era la cara voce. — Dime: ¿vendrás conmigo a ver el alma?... — Dimmi: vieni con me a vedere l’anima?... Llegó a mi corazón una caricia. Fa una carezza che mi giunse la cuore. — Contigo siempre... Y avancé en mi sueño — Con te, sempre... E nel sogno procedei por una larga, escueta galería, in una lunga, nuda galleria, sintiendo el roce de la veste pura sentendo il tocco della veste paura y el palpitar suave de la mano amiga. e dell’amica mano il dolce palpito.246

O poema possui um eu lírico que ouve uma “voz querida” que, da “soglia” [limiar] de um sonho, convida a ver a alma. Os dois, que parecem estar de mãos dadas, percorrem uma estreita galeria (na versão para o italiano, “escueta” [estreita] vira “nuda” [nua]). Independente de quem seja o sonho (em Machado é do narrador, em Caproni há a relativização com “nel sogno” [no sonho]), ocorre uma justaposição dantesca de planos, caso pensemos que os dois personagens pertencem a esferas diversas. Vê-se, nesse ponto e em outros (“Era la buona, era la cara voce”), que Caproni, ao traduzir, faz supressões, pequenas inserções ou inversões, de acordo com o andamento que almeja dar ao texto em italiano ou a intensidade que deve, na sua ótica, possuir algumas palavras em detrimento de outras, como ocorre na antecipação de “sogno”, na segunda fala. Como isso, no entanto, não parece haver quebra acentuada de ritmo em relação ao texto original, ne descaracterização deste em função de uma italianização da cultura espanhola. O aludido encontro de seres é uma possível inferência ao encontro (ainda que onírico), através do recurso da poesia, de Machado com sua amada precocemente perdida. Modalidades de encontros que podem ser identificados em Caproni, envolvendo uma tipologia complexa de planos, como em “O elevador” [L’ascensore], também de A passagem de Enéias, referência ao Ascensore di Castelletto, um dos elevadores públicos da cidade que, juntamente com as funiculares e outros meios de transporte, ligam a parte alta à parte baixa de Gênova. Com versos curtos, de sete e oito sílabas, principalmente, que lhe conferem a verticalidade que a saudosa Gênova e o elevador merecem, Caproni amplia a função da máquina, ao revelar um eu que, quando decidir ir ao paraíso (“Quando mi sarò deciso / d’andarci, in paradiso”), usará o elevador Castelleto. Porém, se por um lado a forma dos versos, impõem certa urgência de

246 DONZELLI, Elisa. Giorgio Caproni e gli altri: temi, percorsi e incontri nella poesia europea del Novecento, op. cit., p. 96.

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leitura, certo “aligeiramento da linguagem ante a um tema tão grave e dramático”,247 por outro fabricam cesuras, a partir de rimas irregulares, que podem continuar soando na passagem da “relha” ao próximo verso. Do segundo para o terceiro verso da primeira estrofe, por exemplo, o sujeito poético confessa o que quer na ida ao paraíso: “não quero que um sino / longo saiba de telha”. A ruptura do verso com sino [campana] talvez leve a um pensamento de transgressão, se se considerar que o ato de tocar o sino nas torres das igrejas quando alguém morre é bastante comum. Na continuação, todavia, não se tem a confirmação da quebra do protocolo religioso, apesar do enjambement, por é dito aquilo que já se sabe, ou seja, a posição do sino, no alto. O problema é que nem mesmo o quarto e último verso da estrofe inicial responde algo em definitivo: “No alvorecer – de água chuvosa”, pois se explicita apenas o turno que não se quer: pela manhã. Saberemos, depois, que a preferência é pelo noturno “roubando um pouco / de tempo ao meu repouso”, 248 em uma intersecção entre dois escuros, o da morte e o da noite. No tocante ao sujeito, poderíamos chamá-lo empírico, a julgar pelos dados biográficos do autor, o que demonstra que o poeta não faz cerimônia em usar o eu – como Cabral muitas vezes não o fará, a exemplo do autobiográfico A escola das facas –, tendo em vista que, desde os primeiros escritos, dentro de uma trajetória em que sempre surgem novos ativadores poéticos, buscou-se uma reinvenção da voz: o eu, torna-se tão humano que fala da coletividade. E a voz profunda do poema caproniano, em vez do predominante pretérito de Machado, prefere justapor tempos, imaginar um tempo futuro para falar do encontro com uma figura feminina já falecida, que não é oculta, pois se trata própria mãe, ainda que em roupagens que pareçam assemelhar-se àquela insinuada pelo sevilhano. Assim como no poema de Machado, em “L”ascensore” também há um limiar, sucedido por um perímetro outro, ao qual o protagonista (ainda) não pertence. O próprio elevador é espécie de rio Estige que liga o mundo dos vivos e o dos mortos e que, por não integrar nenhum dos dois, quando se está nele, perde-se algum tempo do “repouso”, conforme o diz o texto. Em “Le stanze della funiculare”, discutido anteriormente, o percurso da funicular é a representação das fases da vida, sendo que o ponto final, no monte Righi, sinaliza a ingresso no mundo dos mortos. Com o elevador ocorre algo parecido, apesar de que, o início de sua subida

247 “alleggerimento del linguaggio di fronte a um tema così grave e drammatico”. “La tragedia di Enea”. In: Giorgio Caproni: l’inquietudine in versi, op. cit., p. 72. 248 “non volgio che una campana / lunga sappia di tegola”, “all’aqua piovana”, “rubando un poco / di tempo al mio riposo”. CAPRONI, Giorgio. L’opera in versi, op., cit., p. 168.

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não significa o nascimento, como a funicular que sai do túnel. Há, inda outra distinção: o usuário que sobe pelos trilhos está só, pois a eventual companhia no vagão não significa interação. Se é da trajetória de vida de cada um que se está falando, trata-se de individualidade, de desencontro, de descontinuidade, para lembrar Georges Bataille. A subida ao belvedere, por sua vez, será aproveitada ao lado da mãe, que, já do lado de lá, estará entre jovens graciosas. O casal apreciará, como se fossem noivos, as luzes da cidade:

Com ela ficarei a olhar as cândidas luzes sobre o mar estaremos na grade de ferro – seremos sós e noivos – como em tantos anos não estamos. E quando se tornar pontinhos ao tremor da grade, a pele ao longo dos braços, então com suas geladas costas estiver longe: a voz se tornará de cera no escuro que a abrevia, dizendo “Giorgio, oh meu Giorgio caro: tu tens uma família”.249

Ao final da estrofe, é a mãe que chama a atenção para que o filho retorne à sua família, por isso, na sequência, ocorre o regresso a Roma, à Rina e às crianças. Rina, a propósito, será o foco daqui em diante. A voz do poema imagina como seria sua partida: deixaria uma rosa no andar térreo, antes de embarcar subir, ouvindo a voz suave da esposa, semelhante àquela descrita por Machado: “Até logo / escreva-me qualquer hora”. Como dístico final, a despedida da terra é comparada ao momento de ida a guerra. Utilizando o binômio, que é dantesco, “terra/guerra”, o qual aparecerá outras vezes, Caproni faz nítida alusão ao seu ingresso no combate, do qual retornou, coisa que não poderá fazer quando entrar no elevador. Incursões frontais ou laterais da literatura e cultura espanholas nos poetas em questão (em Cabral, especialmente) continuarão a ser, aqui, apontadas, e receberão, doravante, o aporte da

249 “Con lei mi metterò a guardare / le candide luci sul mare. / Staremo alla ringhiera / di ferro - saremo soli / e fidanzati, come / mai in tanti anni siam stati. / E quando le si farà a puntini, / al brivido della ringhiera, / la pelle lungo le braccia, / allora con la sua diaccia / spalla se n'andrà lontana: / la voce le si farà di cera / nel buio che la assottiglia, / dicendo "Giorgio, oh mio Giorgio / caro: tu hai una famiglia." L’opera in versi, op. cit. P. 168-169.

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França (principalmente em Caproni), presença que também agrega às potências poéticas de Cabral e Caproni. Potências e impotências – ou potências-de-não, que é diferente de não ter potência –, pois, nos diz as reflexões agambenianas que toda potência é, obrigatoriamente, impotência, caso relembremos a simples (mas genial, segundo Agamben) teoria de Aristóteles, no livro IX da Metafísica e no livro II de de Anima, a qual um músico não é músico apenas quando pratica o ato de tocar algum instrumento. Ele o é também quando não toca. Toda potência é, logo, impotência, resistência, e sempre que se vai ao ato, ambas as forças são levadas. O ato sem contingência seria uma ação desenfreada, sem filtro. A impotência, por outro lado, não pode reificar-se na obra, fixando-a no âmbito da inspiração, o que impediria a obra de acontecer: “o artista inspirado é sem obra”.250 Percebemos que as potências que foram sendo ativadas em Cabral e Caproni, a partir de esferas familiares, culturais, históricas, não se tornarem apenas inspiração, impotência, atitude que seria impeditiva em relação à escrita e à publicação e, por conseguinte, nunca quista pelos autores. Acredita-se, porém, que as referidas ativações tiveram o papel de realizar uma construção para a qual os poetas pareciam já ter predisposição: comportas poéticas para a passagem da palavra. Foi ocorreu, como veremos, na relação Caproni-Char, experiência que mostrou ao italiano uma disposição vocabular, no poema, em que a rarefação é a tônica expressiva, contextualizada em um clima espaço-temporal incerto.

4.3 NARRATIVIDADE E PRIMITIVISMO ESPANHOL

Falando, ainda da questão da tradução, cara para este momento da pesquisa, há que se apontar que a atividade também em Cabral, como se lê em Civil geometria: bibliografia crítica, analítica e anotada de João Cabral de Melo Neto, de Zila Mamede. Aí, encontramos as traduções publicadas: Quinze poetas catalães, publicados em 1949 na Revista Brasileira de Poesia, três poetas norte-americanos, feitos para a coletânea Videntes e sonâmbulos (1955), e cinco poemas de Robert Bringhust, integrantes da antologia Quingumbo. A escassez de textos vertidos para o português por Cabral demonstra a diferença quantitativa que a tradução teve para ele, em comparação com Caproni, resultante, possivelmente, do papel que o ato tradutório exerceu na

250 AGAMBEN, Giorgio. “O que é o ato de criação?”. In: O fogo e o relato: ensaios sobre criação, escrita, arte e livros, op. cit., p. 69.

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vida de cada poeta. Enquanto para Cabral as primeiras traduções ocorreram na juventude, no início da diplomacia, sendo uma maneira de melhor se inserir na cultura catalã (vivia em Barcelona), para Caproni elas foram, como já explicitado, uma alternativa para engrossar a receita familiar. Outra distinção da tradução nos dos escritores é que, para Cabral, os efeitos, na poesia, de trazer o estrangeiro para o idioma dele vieram mais cedo. O artigo “Do catalão ao português: João Cabral tradutor” relata que, entre a chegada do vice-cônsul a Barcelona, em 1947, e 1950, houve mais leitura e tradução do que produção própria, o que indicaria um espaçamento na carreira literária, destinada à função de aprendiz, na “tentativa de incorporar o poema alheio como se fosse seu, com o fim de esgotar as possibilidades poéticas que experimentara até então”.251 E a dedicação ao outro pode ser fortalecida com a informação de que Cabral procurou a máxima fidelidade possível em suas traduções, a ponto de elas serem quase literais.252 Essa experiência parece ter sido a contribuição pela qual Cabral procurava quando deixou o Brasil, com a mente voltada à objetividade e à construção, elementos que ele encontrou nos sintéticos tankas,253 por exemplo, de Joan Triadú. Anexo ao desejo de traduzir, na recém-descoberta Espanha, está, então, o simples ato de ler, tanto em língua catalã, à época, perseguida pelo regime franquista, quanto em espanhol. Para Cabral, na verdade, a leitura sempre foi mais prazerosa do que a tradução ou escrita, como revelou ao cineasta Ivan Cardoso: “Eu confesso a você que tenho o vício da linguagem, quer dizer, o vício da leitura. Desde que me entendo por gente, não me lembro de mim, mesmo menino, senão com um livro na mão”.254 Além de se aprofundar em autores de poesia concisa japonesa, de diferentes gerações, chamou a atenção de Cabral, como dizíamos, clássicos da literatura espanhola, como Fernán González, Gonzalo de Berceo, Arcipreste de Hita, Luis de Góngora (o qual havia sido redescoberto pela Geração de 27) e Meo Cid. Todavia, se em princípio, a presença da cultura que se estava incorporando aparecerá em faceta mais sutil, através de breves epígrafes e operações internas, a posteriore as alusões espanholas serão mais explícitas, chegando a nomear coletâneas: Quaderna, Crime na Calle

251 CARVALHO, Ricardo de Souza. “Do catalão ao português: João Cabral tradutor”. Rev. Let., São Paulo, v.49, n.1, p.137-149, jan./jun. 2009, p. 145. 252 Idem, ibidem. 253 Significa "poema curto" (tan - curto, breve; e ka - poema ou múscia), formado por 31 sílabas (versos de 5 - 7 - 5 - 7 - 7 sílabas, respectivamente). Sua origem está no waka, poesia aristocrática japonesa também de 31 sílabas. 254 MELO NETO apud ATHAYDE. Ideias fixas de João Cabral de Melo Neto, op., cit., p. 52.

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Relator e Sevilha andando. Será, então, um processo de fora para dentro, em que as lições que Espanha, “preceptora” precisarão de algum tempo para ser assimiladas e declaradas. Em um primeiro momento, a Espanha, dividirá espaço com as raízes nordestinas, ativadas pela distância e por tudo aquilo de nordestino que as paisagens espanholas têm. O resultado dessa mistura que, quando explicitada, se mostra desigual, é o início de uma fase na poesia de Cabral que compreenderá os anos 50, e que terá o engajamento social como principal característica. A partir de um prisma formal, temos o auge da narratividade no poeta nordestino, pois as mazelas e disparidades de sua região de origem serão contadas de maneira a lembrar, a um só tempo, a literatura de cordel e a poesia narrativa espanhola, ambas alicerçadas na oralidade popular. Para Cabral, dessa forma, a tendência à narratividade compreenderá quase meio de sua carreira poética, a exemplo do que ocorrerá a Caproni – conquanto o narrativo para os dois não terá o mesmo significado, além de não ter sido impulsionado pelo mesmo motivo. Porém, em Cabral, não nos esqueçamos, já em Pedra do sono essa envergadura se sobressaía, tal qual aponta “Poesia ao norte”, de Antonio Candido, que, para analisar o discurso do nordestino, compara-o a Drummond: “Eu sou a Moça-Fantasma / que espera na Rua do Chumbo / o carro da madrugada. / Eu branca e longa e fria / a minha carne é um suspiro / frio, na madrugada da Serra”. O comentário que se segue é: “percebo logo um elemento narrativo, uma sequência verbal que se sobrepõe, evidentemente, como música e como significado aos substantivos: moça, rua, carro, serra, etc...”. A contraposição em relação a Cabral é no sentido de que não há uma sequência de ações usual, mas uma quebra constante, desferida em decorrência de o foco estar, principalmente, na força vocabular. Não se pode dizer que essa característica se perdeu com as tramas apreendidas da cultura espanhola, mas se modificou, pois a poesia em baixo relevo que Cabral buscava, na qual escrita e circunstância caminhassem lado a lado, ganhou outras notas em relação à narratividade, depois da leitura dos espanhóis. Percebe-se que a narratividade da qual se fala aqui não se refere à produção de prosa, mesmo porque, diferentemente de Caproni, que escreveu diversos contos e chegou a iniciar um romance, a prosa de Cabral não possui muita representatividade, sendo que seus entrevistas e ensaios são as variantes mais propagadas nessa linha. Aliás, enquanto o brasileiro queria ser ensaísta, teórico, como Valéry (de que admirava mais a teoria do que a poesia), o italiano guardava o desejo de ser romancista, conforme aparece logo na introdução de Racconti scritti per forza [Contos escritos por força], em uma entrevista radiofônica, garimpada por Dei, que Caproni

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concedeu a Mario Picchi, em 1985: “A minha mais remota ambição era de ser um romancista”.255 Curiosamente, no entanto, o italiano acreditava que, quando adentrava a prosa, não conseguia não levar consigo a mão de poeta, “como um cavaleiro que, que, habituado a andar a cavalo, quando caminha a pé, continua a cavalgar”.256 Além disso, afora Graciliano Ramos e Clarice Lispector, não há muitos prosadores por quem Cabral demonstra interesse ou admiração. Em carta à autora de A paixão segundo G. H., o poeta diz:

V. sabe perfeitamente que escreve a única prosa de autor brasileiro atual que eu gostaria de escrever. Não digo que você escreve os únicos romances que eu gostaria de escrever, por dois motivos: a) porque sou um sujeito tão envenenado por ‘construção’, (...) arquitetura literária, (...) que forçosamente construiria mais o romance (do que v.): não vai nisso uma crítica, mas reconhecimento de que distintas coisas que buscamos realizar.257

Não ter sido prosador, contudo, não afasta Cabral da narratividade que, já em Psicologia da composição, parece se manifestar, quando é contada a história do mito de Anfion, cuja flauta perde sua função histórica e é calada pelo mar. Acredita-se, porém, que a maior aproximação às narrativas, Cabral demonstrou logo após, com as “histórias” que penetram em Pernambuco de maneiras variadas, carregando consigo um pouco da Espanha. O rio talvez seja o melhor exemplo dessa fusão, com uma epígrafe de Berceo, nascido por volta de 1195: “Quiero que componhamos io e tú una prosa”. Não falamos de prosa poética nem poema em prosa, como adverte Haroldo de Campos, “mas poesia que fica do lado da prosa pela importância primordial que confere à informação semântica (...)”. Em comparação, inclusive, com os regionalistas de 30, o concretista diz que Cabral narrativo “dá categoria estética a muito daquilo que, no chamado romance nordestino, tinha apenas categoria documentária”.258 A referida epígrafe é, na verdade, um verso de Duelo que fez a Virgem [Duelo que fizo la Virgen], obra em que Maria trava diálogo com São Bernardo sobre Jesus, cuja morte jamais foi

255 “La mia più remota ambizione era quella di fare il narratore”. CAPRONI, Giorgio; a cura di Adele Dei. Racontti scritti per forza, op. cit, p. 7. A obra contempla tanto os contos feitos por Caproni quanto o romance inacabado. 256 “come il cavaliere che, abituato ad andare a cavallo, quando cammina a piedi continua a caracollare”. “Il poeta che racconta. In: DEI, Adele. L’orma della parola, op., cit., p. 36. 257 MELO NETO. Clarice Lispector. Sevilha, 06 de fevereiro de 1957. Fundação Casa de Rui Barbosa. CL 80 CP, p. 28. 258 “O geômetra engajado”. In: CAMPOS, Haroldo. Metalinguagem e outras metas, op. cit., p. 84.

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superada pela mãe, apesar da glorificação que o sacrifício trouxe. O texto, de carácter catequizante, não se propõe a trazer somente informações que estejam de acordo com os ensinamentos bíblicos, abrindo espaço para inexatidões provenientes de crenças populares e escritos de devoção daquele tempo. E esse direcionamento ao popular é realçado pela oralidade da história, composta em diálogos, como se vê na passagem na citação, cujo contexto é o momento em que Maria se apresenta ao interlocutor e, em seguida, o convida à conversa. Ainda que tenha a intenção de falar ao povo, porém, Berceo faz críticas aos juglares, poetas populares, e manipula seus versos com profunda preocupação formal: “as vidas de santos berceanas foram compostas com versos de quatorze sílabas, divididos em dois hemistíquios simétricos, com acento rítmico na sexta sílaba, e rima consoante. Cada grupo de quatro versos forma uma estrofe, denominada de cuaderna via ou tetrásforo alexandrino”.259 Ora, não seria a convivência entre o popular e o erudito uma das características cabralinas? Em O rio, especialmente. Seguindo a escolha de Berceo, Cabral opta pelo falar de personagem: “a máscara do rio na utilização da primeira pessoa (...)”.260 Seria possível, aqui, a opção por um eu empírico, embasado pela experiência que a juventude nordestina proporcionara, mas, provavelmente, Cabral ainda está ainda experimentando com a questão da voz, realizando experiências sobre a utilização do eu. Enquanto isso, há o recurso da prosopopeia, figura de linguagem também utilizada por Caproni, chegando a compor nome de livro: A despedida do viajante cerimonioso e outras prosopopeias. Tal artifício poético foi discutido em Pequeno manual de procedimentos, pelo escritor contemporâneo argentino Cesar Aira, que afirma: “a prosopopeia representaria a obra de arte, que também é objeto inerte e suporte do discurso – ou seja, objeto falante”.261 De acordo com esta explicação, antes de tudo, toda peça de arte, por enunciar algo, seria prosopopeia. Esmiuçando o significante, Testa, explica duas possibilidades para ela, sendo que, na primeira, “tem-se uma prosopopeia quando se interpreta uma entidade abstrata, como a justiça ou a liberdade, em seu discurso autônomo. Na segunda, coincide com a invenção de um personagem que, como no teatro, recita uma parte e desempenha um papel”.262 Conquanto o teatro esteja mais próximo de

259 SILVA, Andréia Cristina Lopes Frazão da. Reflexões sobre a Hagiografia Ibérica Medieval: um estudo comparado do Líber Sancti Jacobi e das vidas de santos de Gonzalo de Berceo. Niterói : EdUFF, 2008, p. 98-99. 260 “O tríptico do Rio”. In: BARBOSA, João Alexandre. João Cabral de Melo Neto, op. cit., p. 41. 261 Tradução Eduard Marquardt. : Arte & Letra, 2007, p. 26. 262 Cinzas do século XX: três lições sobre a poesia italiana, op., cit., p. 93. Grifo nosso.

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Morte e vida severina, cujo subtítulo é “Auto de Natal pernambucano”, o verbo “recitar” aproxima-se d’O rio porque tem como um de seus sinônimos, “ditar”, exatamente o que protagonista faz: “Então, o Taparucá, / dos lados da Luz, freguesia / da gente do escrivão / que foi escrevendo o que eu dizia”.263 O rio falando (e não escrevendo) nos conta sobre seu itinerário – desde o nascimento, nascente, até sua foz, em Recife –, durante o qual cada localidade por onde passa é identificado pela marginalia, “um artifício textual e gráfico, raro, cultuado, sobretudo, pelos escritores do século 19”.264 Os subtítulos no canto superior direito do texto, que já indica certa sofisticação compositiva, Cabral usou poucas vezes em seus escritos, como foi o caso de O cão sem plumas (usou pouco, e entre parênteses) e de Joan Miró. Na ocasião em que fazia O rio, o autor não estava no Brasil, por isso precisou empreender pesquisa geográfica para poder citar os lugares e afluentes do Capibaribe. Tais informações trazem um caráter quase jornalístico à obra (em que a marginalia seria uma espécie de manchete) e chamam a atenção para as denúncias que são feitas, incrementadas pelas situações apontadas, ora testemunhadas pelo rio, ora sabidas de ouvir falar. Aliás, o eu-personagem explica que não replica a fala com as gentes que dele se aproximam, tendo como qualidade saber ouvir:

Sou viajante calado, para ouvir histórias bom, a quem podeis falar sem que eu tente me interpor; junto de quem podeis pensar alto, falar só. Sempre em qualquer viagem o rio é o companheiro melhor.

Somente essa modalidade vocálica, como sabe Cabral, poderia conferir ao texto a performance que ele apresenta: o viajante, simples e instintivo como um bicho, não possui o hábito nem de falar, nem de interagir, o que lhe confere um estilo próprio, peculiar de se expressar, em que está presente um uso titubeante, repetitivo, cacofônico e primitivo de palavras e frases. Mas essa é uma maneira de aproximar o texto das gentes que andam nas margens,

263 As citações de O rio estão entre as páginas 119 e 143 de MELO NETO, op. cit. 264 LAMEGO, Valéria. A estrutura da margem: notas sobre a edição. In: MELO NETO, João Cabral de. Joan Miró. Organização Valéria Lamego. Rio de Janeiro : Verso Brasil Editora, 2018, p. 96.

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falando também pouco, muitas vezes, para si mesmas, à moda, talvez, da ruminante família de Vidas secas. O modo pelo qual a comunicação é feita condiz, também, com as paisagens que servem de leito, irregulares, pedregosas, relutantes à água, a qual corre lenta: “Mesmo que o mar os chame, / os rios, como os bois, são ronceiros”. O rio, pois, é de uma rudez planejada, como revelou o próprio autor: “foi feito propositalmente prosaico, rude, tosco, mal-acabado. Confesso que a fama que ganhei de ser um poeta ‘técnico’, ‘civilizado’, ‘bem’, estava me irritando ao auge”.265 Mas para concretizar a meta de transmitir uma imagem distinta à sua poesia, em que outras qualidade poéticas são traçadas, foi preciso pensar em um projeto que se encaixasse na proposta, que pudesse parecer menos erudito do que a mitologia grega e menos técnico do que a engenharia. O que se vê com tal jogo de aparências é que Cabral não abandonou a técnica, apenas a utilizou de outra forma, harmônica com o contexto que pretendia abordar, à semelhança do que fizera com O cão sem plumas, onde “A realidade carente, pobre e mendiga exige o verso pobre, sem plumas, capaz de intensificá-la exatamente por mostrar sua redução, sem desvirtuá-la de sua espessura”,266 como observou Barbosa. Uma obra que, exemplo do que ocorre em toda a trinca sertaneja (O cão sem plumas, O rio e Morte e vida severina), o refinamento da linguagem expressa atrelada a uma aura política, da qual Deborah Colker diz não ter conseguido fugir quando montou o espetáculo O cão sem plumas, em 2017.267 À carência que O rio também possui, das suas frases inacabadas, que terminam em nada, como ocorrerá em Uma faca só lâmina, unem-se comentários imprecisos, de alguém que se sabe limitado verbalmente e que, sob tais condições, vai mostrando a irrelevância, o abandono com o qual as pessoas são tratadas, em todas as regiões de Pernambuco, incluindo a capital, para onde os retirantes rumam e onde acabam por consumirem-se em meio à multidão – a imagem se parece com o que ocorre ao próprio rio, que entra em Recife para se dispersar no mar. A propósito, Cabral continua associando a água do Capibaribe ao homem, ainda que agora a simbiose de O cão sem plumas não ocorra, pois em O rio, em vez de um narrador observador, tem-se a individualidade do eu poético que anda paralelo às pessoas. Ainda no âmbito do (dis) curso do Capibaribe, que quer se conectar ao entorno, sociológico e geograficamente, e às próprias tensões na escrita de Cabral, em que o a potência vai

265 MELO NETO apud ATHAYDE. Ideias fixas de João Cabral de Melo Neto, op., cit., p. 105. 266 BARBOSA, João Alexandre. João Cabral de Melo Neto, op. cit., p. 41. 267 Informação presente no livro entregue a quem assistiu à apresentação.

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agindo mais sobre o ato do que o contrário, ocorre na obra aqui analisada a utilização da insólita comparação entre o deslocar-se a pé e de trem. Insólita e complexa, o que ratifica o duplo trabalho do autor, que logrou armar um livro de fundação formal bem pensada, com versos pares terminando em toante espanhola, revestida de carcaça popular, que lembra tanto as velhas histórias espanholas quanto o cantar dos repentistas nordestinos e a literatura de cordel, a qual seria, antes de tudo, um retorno à Península Ibérica, já que, provavelmente, é de lá que ela vem.268

Outra vez ouço o trem ao me aproximar de Carpina. Vai passar na cidade, vai pela chã, lá por cima, Detém-se raramente, pois sempre está fugindo, esquivando apressado as coisas de seu caminho. Diversa da dos trens é a viagem que fazem os rios: convivem com as coisas entre as quais vão fluindo; demoram nos remansos para descansar e dormir; convivem com a gente sem se apressar em fugir.

O andar sobre trilhos do trem, veloz e quase ininterrupto, vertido em sistema de linguagem, é o que Cabral sempre buscou combater, através de uma poesia que não “deslizasse” em linha reta, mas, antes, “cambaleasse”. Dentro dessa ideia, a fluidez musical de Camões ou de Gonçalves Dias, por exemplo, não será uma possibilidade. Em entrevista, nos anos 60, ele fala, em um programa de televisão, sobre o tipo de poesia que gostaria de fazer: “que não fosse um carro deslizando em cima de um pavimento de asfalto, aquela coisa lisa. Eu gostaria de fazer uma poesia em que o leitor (nesse caso o leitor é o carro) passasse em cima de uma rua muito mal calçada e que o carro fosse sacolejado a todo o momento”.269 No entanto, a essa postura de escrita infensa ao andamento retilíneo e previsível, a qual, na verdade, parece nunca ter feito parte da

268 ARAGÃO, Denisson Silva CORREIA & Claudio Manoel de Carvalho. Uma abordagem semiótica da literatura de cordel a partir da teoria da abdução, op. cit. 269 MELO NETO, João Cabral de. João Cabral de Melo Neto comenta sobre a poesia e sua obra. 2016. (7m18s). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=EJRwt5-rllQ. Acesso em: 01 fev. 2020.

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potência poética de Cabral, fazia-se necessário o fortalecimento da ideia, acompanhada de certa teoria no próprio texto, o que é típico de Cabral, juntamente com a escolha de significantes que provocassem o “sacolejar” e que, em vez de serem individualizados, fossem externos, comuns a qualquer um. Assim, mesmo que os versos d’O rio obedeçam a certas regras tradicionais, tendo sido feitos “de arte mayor”, como afirma o autor, “com versos ímpares fixos”,270 os pares são variáveis, bem como as rimas que, às vezes, parecem não existir. Isso também contribui para o tom de inacabamento do poema e, talvez, essas “irregularidades” sejam o motivo pelo qual não ocorreu com o livro aquilo que Cabral imaginava, ou seja, que ele seria passível de ser declamado em eventos populares nordestinos.271 A linguagem-rio, diga-se de passagem, será não será esquecida. Será, em vez disso, mais desenvolvida, como mostra “Rios sem discurso”, da seção “Nordeste A”, de Educação pela pedra, dedicado ao poeta espanhol Gabino Alejandro Carriedo, coevo de Cabral. Ler o referido texto é pensar em um rio que tem seu curso rompido pela água cortada. Seguindo a sugestão do título, a primeira estrofe – todos os poemas desse livro bem calculado, sem exceção, são compostos por duas estrofes, numeradas ou não – aventa a possibilidade do curso do rio ser também discurso, e nela aparece a imagem de poços, desconectados uns dos outros, por terem perdido seu fio. Antes mesmo da segunda parte, a água de poço é equiparada “a uma palavra em situação dicionária: / isolada, estanque no poço dela mesma”,272 sem que haja a sintaxe (o fio de água) que as ponha em movimento. Depois, o poeta fala da dificuldade de se retomar o curso embargado: “O curso de um rio, seu discurso-rio, / chega raramente a se reatar de vez; / um rio precisa de muito fio de água / para refazer o fio antigo que o fez”, “para que todos os poços se enfrasem” e possam, em conjunto, formar uma voz que combata a seca. Com a intenção de buscar a realização sobre o que discursa, Cabral parece voltar-se ao isolamento das palavras-poço, provocando subversão de termos como “dicionária” e “paralítica”, que vira adjetivo para água, ou adotando o neologismo “enfrasem”, a qual acaba por chamar bastante a atenção e frear a leitura: sua estranheza pode comprometer tanto uma declamação fluída quanto a leitura silenciosa, às voltas com cesuras potentes de reflexão, provocadas por verbos como “enfrasar”. Algo semelhante ocorre no mesmo A educação pela pedra, no já citado “Tecendo a manhã”, em que também é assunto a contraposição entre discurso individual e

270 MELO NETO apud ATHAYDE. Ideias fixas de João Cabral de Melo Neto, op. cit., p. 104. 271 Idem, p. 106. 272 MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único, op. cit., p. 350-351.

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coletivo, mas, agora, no lugar da água, são galos. Cada um deles tem seu cantar que, aos poucos, sai do isolamento para que ocorra o entrecruzamento entre eles e, a partir daí, a manhã seja tecida e se construa o “toldo / (a manhã) que plana livre de armação.”273 Na verdade, a expressão para comunicação entre os galos é “entrentendendo”, que, semelhante a “enfrasem”, quer dizer a conexão que edifica um discurso único. E esses neologismos pode direcionar a reflexão no sentido de pensar uma linguagem própria de Cabral: é como se a ressignificação e criação de vocábulos, aliadas, entre outras coisas, às “ideias fixas” que do poeta (em torno da pedra e da faca, por exemplo) conferisse a Cabral uma linguagem própria, o “cabralês”, para fazer analogia ao comentário de Pasolini, lembrado por Agamben, acerca de Caproni, referindo-se ao fato de ele não usar o italiano, mas o “capronês”.274 A justificativa de Agamben para essa expressão vem da fase final da escrita caproniana, em que há “a tendência para compostos anômalos (repare-se tão somente no poema ‘Res amissa’: brancoflautado, flautosumido) e o estilo nominal”.275 Além disso, o estudioso romano, retomando o que havia dito em Ideia de prosa, discorre acerca da questão do metro em Caproni, no sentido de que o “modo transgressivo” como ele concebe a linguagem é efetivado, mormente, no verso em si, porque ele, muitas vezes, não terá mais do que um significante (inventado) e reticências. “Dessa forma o verso é reduzido a seus elementos-limite: o enjambement” (...) e a cesura (...)”.276 Negando que se trate de “verso livre ou quebrado”, essa teoria gradativa, fale em “aprosódia”, que é “como os neurologistas falam de afasia para caracterizar os distúrbios do aspecto lógico- discursivo da linguagem (...)”.277 Ainda acerca de O rio, no que toca a timidez e lentidão da água, com seu (dis) curso que busca o “caminho de pedras”, “que não leito de areia / com suas bocas multiplicadas”, soa a pré- figuração (apesar de nunca haver figuração absoluta) para um Cabral que parecia ter como escopo teorizar e praticar uma linguagem ainda mais a conta-gotas, em que não fosse ele o responsável pelo destrave das palavras. E há muitas outras passagens que aludem a obras ulteriores, interligadas a elementos de obras anteriores, ilustrando a circularidade que Costa Lima viu no poeta. No caso da trilogia do Capibaribe – o qual parece ter sido lembrado pelo poeta

273 MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único, op. cit., p. 345. 274 “Desapropriada maneira”. In: CAPRONI, Giorgio. A coisa perdida: Agamben comenta Caproni, op., cit., p. 37. 275 Idem, ibidem. 276 Idem, p. 39. 277 Idem, ibidem.

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recifense também em outros momentos, pós anos 50, como é o caso de “Rios sem discurso” – ocorre uma gradação: O cão sem plumas fala do rio e do homem (juntos e separados), O rio enfoca no Capibaribe, sem que o sertanejo seja excluído, e Morte e vida severina, no retirante, que margeia o rio em sua caminhada. Nesse sistema de intersecções, diga-se, que além de manutenções, promove encontros, pode (e deve) ser inserido Paisagens com figuras – precursor da alternância entre Nordeste/Pernambuco/Recife e Espanha que aparecerá em obras como Quaderna, Serial e Educação pela pedra –, coletânea está “Outro rio: O Ebro”, poema que, embora mais sintético que O rio – em geral, futuramente, a brevidade será predominante em Cabral, salvo alguns textos como “A bailadora andaluza” ou “Poema da cabra” –, traz também o rio como narrador (Ebro, no caso, cuja foz é em Tarragona), falando, a exemplo de seu antecessor, da secura que enfrenta para exercer sua função: “Disponho de um leito largo / como cama de casal, / mas é pouco deste leito / que cubro com meu lençol”.278 Logo, identifica-se mais uma espécie de movimento circular, em que a chegada do poeta à Espanha o faz retornar ao Brasil, para, em seguida, voltar (-se) à Espanha. A história do também prosopopeico Severino, mais um encontro entre o popular nordestino (cordel) e o espanhol (auto pastoril ibérico), é antecipada em alguns pontos. Quando, em O rio, o narrador vai deixando o sertão onde nascera e adentrando as Terras do Limoeiro, na zona agreste de Pernambuco, percebe que a paisagem e a situação econômica muda, pela melhor condição da terra: “Tem melhores fazendas, / tem inúmeras bolandeiras / onde trabalha a gente (...)”. Pelo fato de os dois personagens em questão estarem seguindo a mesma direção, apesar de seus diferentes caminhares, Severino também encontra lugares mais prósperos, como quando chega à Zona da Mata. Neste sentido, sua fala, em modo teatral monologante, uma experimentação em Cabral, é a seguinte: “– Bem que me diziam que a terra / se faz mais branda e macia / quanto mais do litoral / a viagem se aproxima”.279 Mas nas duas situações, a bonança do solo mais fértil não quer dizer resolução dos problemas: o rio percebendo profunda carência no entorno, faz denúncia que lembra o sangue com “pouca tinta” da vida severina: “bastante sangue / nunca existe guardado em veias / para amassar a terra / que seca até sua funda pedra”. O retirante, por sua vez, se depara com o enterro de seu xará, contada a partir dos amigos do

278 MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único, op., cit., p. 166. 279 Idem, p. 182.

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defunto que estão em volta. O trecho, que se tornou a música “Funeral de um lavrador”,280 demonstra que a produção da terra não parece se reverter em benefícios a quem sobre ele se debruça:

– Essa cova em que estás, Com palmos medida, É a conta menor Que tiraste em vida. – É de bom tamanho, Nem largo nem fundo, É a parte que te cabe Deste latifúndio. [...]281

O cão sem plumas, com Recife cortada pelo rio que “sabia dos caranguejos / de lodo e ferrugem” e dos “homens plantados na lama”282 antecipara o desfecho dos livros posteriores e semelhantes a ele: a aproximação ao mar, com o qual o Capibaribe fantasiara, característica da prosopopeia,283 não traz júbilo nem para o Capibaribe, que se vê nas pessoas um desalento, mesmo com o alcance do destino desejado, nem para Severino, que, obviamente, vive o referido desalento, chegando a pensar em se precipitar nas águas. Em O rio, o os homens, viajantes ou retirantes, ao atingir o destino, assim como o rio, carregam consigo os dejetos do local de onde são oriundos, bem como os que encontraram na trajetória de diversos percalços:

Ao entrar no Recife, não pensem que entro só. Entra comigo a gente que comigo baixou por essa velha estrada que vem do interior; entram comigo os rios a quem o mar chamou, entra comigo a gente

280 A música fez parte da trilha sonora composta por para a montagem que Morte e vida severina ganhou em 1966, tendo sido encenada no Teatro da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. A peça recebeu diversos prêmios, como o do Festival de Nancy, na França. 281 MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único, op., cit., p. 183. 282 Idem, p. 105 e 108. 283 TESTA, Enrico. “Personaggi caproniani”. In: DEVOTO Giorgio & VERDINO, Stefano. Per Giorgio Caproni. Genova : Edizioni San Marco dei Giustiniani, 1997, p. 165.

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que com o mar sonhou, e também retirantes em quem só o suor não secou; e entra essa gente triste, a mais triste que já baixou, a gente que a usina, depois de mastigar, largou.

Uma das causas da tristeza é a usina, objeto de crítica na “narrativa”. Desde o “Encontro com o canavial”, a 15ª estrofe, Cabral vai mostrando, a exemplo do que fizera José Lins do Rego, mas com uma linguagem mais “magra”, “A decadência dos engenhos, sufocados pelas usinas”:284 “Vira usinas comer / as terras que iam encontrando; / com grandes canaviais / todas as várzeas ocupando”. Assim, antes de ver o mar onde vai desaguar, ocorre o encontro o mar de cana: “Tudo planta de cana / e assim até o infinito; / tudo planta de cana / para uma só boca de usina”. É provável, aliás, que uma das imagens mais emblemáticas da obra em análise seja justamente a da boca mecânica devorando com rapidez o que antes era feito com o vagar das bolandeiras. Em uma metamorfose pouco usual, a gente que trabalha na cana, torna-se os dentes “que mastigam a cana”, por causa da força de trabalho dispendido. Depois, quem alimentou vira alimento: “Para trás vai ficando / a triste povoação daquela usina / onde vivem os dentes / com que a fábrica mastiga”. E, por isso, o que chega à capital pernambucana é apenas o rejeito, bagaço mastigado e, em seguida, cuspido. A relação desnivelada usina/trabalhador é reiterada, de certa forma, quando o rio fala da tradicional burguesia pernambucana, que, não obstante a decadência de “gasta aristocracia”, tem acesso a cuidados que os sertanejos e os homens-lama dos manguezais dos subúrbios de Recife não têm: “São cabelos de moças / que vêm cortar capinheiros; / (...) (pois os cabelos da gente / (...) que são folhas duras e grosseiras)”. Aí, talvez, Cabral esteja exprimindo, sutilmente, o caráter marxista de seu pensamento político que, tal qual Caproni, possuía, mas, por discrição antipanfletária, não manifestava abertamente, nem na vida pessoal, nem na literatura. Por sinal, este aspecto diplomático, coerente com a profissão, foi um dos ensinamentos de Cabral aos jovens integrantes do grupo vanguardista catalão Dau Al Set (cujo significado, mallarmeano, é “o sétimo lado do dado”), que contava com nomes como Joan Brossa e Antoni Tàpies. A situação

284 João Cabral: uma fala só lâmina, op. cit., p. 93.

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dentro do regime de Franco, que os mantinha à flor da pele, sempre em alerta, contrastava com a postura sóbria antidogmática do brasileiro, mesmo este sendo contrário ao governo vigente, que tanto perseguiu seu amigo Miró. À vista disso, os ataques feitos pela poesia cabralina aos problemas sociais do Brasil, pensados, principalmente, nos primeiros tempos de distância física, não se sobrepõem, emotiva e descontroladamente, a todas as outras frentes compositivas do texto – isto, aliás, não ocorrerá nem depois de muitos anos de afastamento, conquanto haverá mais reincidência do texto memorialístico. Elas se movem juntamente com todo o organismo, cuja emoção só poderá ser transmitida tendo por base a forma, sua estrutura óssea, os objetos assertivos. Assim, a questão da memória se apresentará em Cabral do mesmo modo que ocorre para todos os memorialistas, relativizada a partir de um movimento de escavação que atinge diversas camadas de experiências. No caso específico do poeta nordestino, as camadas (ou potências) querem menos realização do que resistência.

4.3.1 Cabral: narratividade e memória

A memória está presente da primeira à última obra de Cabral. “Dentro da perda da memória” (Pedra do sono), entretanto, por sua cor sombria e surrealista, em nada se assemelha a outros poemas memorialísticos de Cabral, produzidos sob as marcas de afastamento espacial e temporal. E pode-se dizer que o tempo de afastamento do lugar a ser recordado é diretamente proporcional à quantidade de poemas de rememoração, o que pode explicar a considerável quantidade dessa modalidade a partir dos anos 70, período que compreenderá o último Cabral, expressão que até agora, a propósito, tínhamos utilizado apenas em referência a Caproni. Aliás, se compararmos a memória nos dois poetas, veremos que, muito embora tenham suas obras atravessadas pelo tema, ele evolui neles de meios diferentes, pois enquanto para o brasileiro os lugares, as pessoas, as cenas do passado continuam com cores vivas, para o italiano, “depois de A despedida do viajante cerimonioso as figuras de recordação se tornam sempre mais anônimas (e perder o nome é talvez a coisa pior, a verdadeira anulação)”, no vazio que engole as derradeiras coletâneas de Caproni, “as recordações são sempre mais reduzidas e espectrais”.285

285 “Dopo il Congedo del viaggiatore cerimonioso le figure del ricordo diventano sempre più anonime (e perdere il nome è forse la cosa peggiore, il vero annullamento)”. “nel vuoto che avanza anche i ricordi sono sempre più ridotti

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Aproxima os dois, contudo, a visão menos idílica do que objetiva e prática no que tange suas vivências pregressas. O ato da escrita mnemônica, como falávamos, só pode sair do estado de potência, de inspiração, carregada de estratos experienciais dos poetas, adquiridas por muitos anos: o memorialismo normalmente se manifesta em um estágio de mais maturidade do ser humano, como aconteceu a Cabral, Caproni e tantos outros. Nessa chave, a título de ilustração, poderíamos evidenciar o mineiro Pedro Nava, que iniciou sua série de seis livros de memórias (o último é inacabado) após se aposentar como médico, aos 69 anos.

Esse dado coloca em pauta a complexidade da memória como recurso que não possibilita ao indivíduo um simples resgate linear da vida pregressa ou de um fato histórico, visto que, quem rememora um fato, oralmente ou pela escrita, realiza um trabalho de arqueologia, processo durante o qual muitos desvios podem ocorrer e restos podem ser encontrados e incorporados até que se chegue onde se deseja. É mais ou menos sobre isso, aliás, que Nava trata quando “É que o mais remoto, cada vez que vem à tona da memória, recebe um retoque e é aperfeiçoado por lembranças analógicas e congêneres de sucessos posteriores (...)”.286 É como se falássemos de “camadas verticalizadas da memória que vão se alinhando (...) e que, tal qual uma carreira de dominós, o impulso de um move o que vem na sequência e esta ação faz acontecer, obviamente, o resultado final”. 287 De qualquer maneira, Cabral, sem perder de vista o objetivo de expressar emoção através do concreto, elege para momento memorialístico aquele em que já havia apreendido (a duras penas) a linguagem da pedra, permitindo-se, a partir de então, a penetração em outras searas, como o cotidiano e a memória. “É como se houvesse uma passagem da linguagem da poesia, dominada, à poesia da linguagem, abrindo o poema para exercícios lúcidos e lúdicos”.288 Enfim, depois de aprendida a lição com a “pedra”, pode-se, com cuidado, andar sobre ela, ou seja, ela está sempre na base, provendo suporte para ao que se deseja dizer. As primeiras movimentações de memória de Cabral dirigem-se ao sertão nordestino, mas não se parecem com o que virá. Prolongado o afastamento, o coletivo perde espaço para o

e spetralli”. “Lo spazio precipitoso della memoria”. In: DEI, Adele. Le carte incrociate: sulla poesia di Giorgio Caproni, op. cit., p. 89 e 91. 286 Chão de ferro. São Paulo: Ateliê, 2001, p. 199. 287 SCHUEROFF, Alencar. Pedro Nava e o potencial (auto) formativo da memória. Dissertação. (Mestre em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2012, p. 28. 288 BARBOSA, João Alexandre. “A lição de João Cabral”. In: Cadernos de Literatura Brasileira, op. cit., p. 80.

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individual para o empírico, na voz e nos acontecimentos, em atitude que poderíamos chamar confessional, se impuséssemos as ressaltas que a poesia cabralina pede. É o que se vê percebe em um dos últimos poemas de A escola das facas:

Menino de três engenhos

Lembro do Poço? Não me lembro? O Engenho do Poço Que lembro do primeiro engenho?

Não vejo onde começariam a lembrança e as fotografias.

Rio? Um nome: o Tapacurá, rio entre pedras, o assoviar,

e um dia quase me afogou: Lembro? Ou alguém me contou?

Do poço talvez lembre mesmo é de um grande e geral bocejo

(ainda em mim, que ninguém podia fazer dele fotografia).

Talvez lembre o ser-para-ruína, do fornecedor, ser-para-a Usina,

que então tinha todas as unhas a várzea ex-Carneiro da Cunha. [...]289

É provável que o leitor acostumado a Cabral distinguirá, acima, os traços formais típicos do autor, como os dísticos, a métrica incomum e assimétrica (com predomínio de oito sílabas poéticas), as rimas com acentos tônicos improváveis, subtítulo à margem direita. Esse é o “arsenal” contingenciador que Cabral impõe a si mesmo para o ingresso poético (ou tentativa de) nas paragens mais remotas de sua memória, quando viveu com os ternos anos ao lado da família, no engenho Poço do Aleixo (em São Lourenço da Mata), e depois nos engenhos Pacoval e Dois Irmãos (município de Moreno), que consistem nos dois outros subtítulos, na sequência do texto. Além da questão estrutural, é preciso que se leve em conta muitas vezes, no poeta, a cultural: o

289 MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único, op., cit., p. 457.

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autor faz explícita alusão a Menino de engenho, de José Lins do Rego, que, convenientemente, em tom autobiográfico, conta a história de Carlinhos, que viveu sua infância na fazenda do avô, senhor de engenho. Na verdade, no próprio A escola das facas há um poema homônimo ao referido romance da geração de 30.290 Por ir fundo nas lembranças, o único sinal de pontuação nos dois primeiros versos é a interrogação, que não será na continuação, mas as dúvidas que gera juntar-se-ão de expressões vagas, com o “talvez” e “um dia”. É perceptível, pois, que o eu poético, na falta de informações precisas acerca de algo tão recuado na memória, deixa tudo como está, como quem vai costurando uma colcha de retalhos, sem que a falta seja preenchida por quaisquer conjecturas. Com efeito, tem-se, a partir desse trabalho com a memória, aproximação e afastamento, afinidade e distanciamento, fios importantes para a tessitura da poesia em cena.291 A postura, então, é de realismo em relação às sensações, que, diferentes da “fotografia”, não é com os olhos que se vê. E essa “visão” não deixa emergir mais do que apenas alguns elementos soltos (um ou outro acontecimento, comportamento ou outro nome próprio), dos quais não se sabe o que vem antes e o que vem depois. Parece que Cabral, ao trabalhar a memória de modo mais contumaz, sem operar transformações drásticas no esqueleto da sua poesia, modifica seu modo de “narrar”, o qual já não possui mais a mesma linearidade que se observa em O rio, visto que, mesmo em havendo desvios entre a nascente e a foz, é possível que se volte atrás. Para ele, os temas dominantes no poeta “são também metáforas de um eu que sempre atravessa um si que sempre muda e por isso será sempre fugidio: o eu de Caproni, na verdade, ou é tão presente a ponto de não existir, ou propriamente não existe”. 292

290 Essa geração aparece diversas vezes em poesia de Cabral, com destaque para Graciliano Ramos, talvez pela secura da linguagem. 291 BARBOSA, Rodrigo Garcia. Fluxos e correntes: trânsitos e traduções literárias. Abralic. XIV Congresso Internacional. Anais eletrônicos. ISSN 2317-157X. 292 “sono anche metáfora di un io che sempre attraversa un sé che sempre muta e perciò non è mai afferrabile: l’io di Caproni, in verità, o è talmente presente da non esserci, o propriamente non c’è. “Per la poesia di Giorgio Caproni”. In: CAPRONI, Giorgio. L’opera in versi, op., cit., p. XII-XIII.

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4.4 CAPRONI: TRADUÇÃO E NARRATIVIDADE

Muito antes de trabalhar em Marselha, Cabral já havia tido contato com cânones franceses, na verdade, ele já havia mergulhado na juventude, “na biblioteca de alma parisiense de Willy Lewin”.293 Ali, conheceu nomes que seriam arcabouços de seu início poético e nunca seriam esquecidos, como Mallarmé, sobre quem Cabral fala (ou está falando de si mesmo?): “Admiro em Mallarmé (...) o trabalho de organização do verso. (...)”.294 Outro renomado nome francês lido e relido por Cabral foi Baudelaire. Em entrevista de 1983 a Teresa Cristina Rodrigues, do jonal O Globo, ele diz: “acredito que já comprei nove vezes as obras completas de Baudelaire. Sem dúvida alguma, ele é a base de toda a poesia moderna, em sua obra estão implícitos todos os aspectos literários que viriam depois”.295 Hugo Friedrich tem a mesma opinião de Cabral e de outros vários artistas e intelectuais acerca da função sustentacular da modernidade baudelairiana. E, segundo o alemão, as partes de As flores do mal (o único publicado pelo francês, a propósito)296 possuem rígida organização interna, entrecruzada “por um filamento temático que as torna um organismo concentrado”,297 o que comprova não apenas renovação temática, mas também estética. A numeração interna do livro foi sendo aos poucos abandonada pelo autor, mas foi mantida uma arquitetura em suas seções (eixos temáticos), os quais, na última versão do autor, alcançou o número oito: “Spleen e ideal”, “Quadros parisienses”, “O vinho”, “Flores do mal”, “Revolta”, “A morte”, “Suplemento às Flores do mal” e “Marginália”. Além disso, aos textos longos, grandiloquentes e de disposição desorganizada dos anteriores românticos, contrapõem-se poemas mais rápidos, com o tradicional soneto sendo usado amiúde. Não parece ser necessário muito esforço para que se perceba uma tensão em Baudelaire: o arranjo da obra parece contradizer os títulos dos capítulos; os prazeres da bebida (“Sabe o vinho vestir o ambiente mais espúrio / Com seu luxo prodigioso, / E engendra mais de um pórtico miraculoso / No ouro de um vapor purpúreo, / Como um sol que se põe no

293 CASTELLO, José. João Cabral de Melo Neto: o homem sem alma & Diário de tudo, op. cit., p. 124. 294 MELO NETO apud ATHAYDE. Ideias fixas de João Cabral de Melo Neto, op. cit., p. 135. 295 Idem, p. 121. 296 Ivan Junqueira, no entanto, explica: “Que ninguém se iluda: Baudelaire escreveu muitíssimo, talvez tanto quanto qualquer outro cujas exigências de concisão e economia não fossem as suas. A única diferença é que somente publicou o que lhe parecia digno de seu gênio”. “A arte de Baudelaire”. In: BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal, op., cit., p. 79. 297 Estrutura lírica moderna: da metade do século XIX a meados do século XX, op. cit., p. 38.

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ocaso nebuloso (...)”)298 e da carne contrastam com algumas buscas pela salvação divina, a qual recebe, ainda, constantes ataques do gosto pelo mórbido, pelo pagão, pelo demoníaco. A imanência e a transcendência colocadas lado a lado, bem ao gosto de Bataille, cuja admiração por seu conterrâneo impulsionou-o ao estudo em A literatura e o mal (1967). E a poesia de quem Cabral tantas vezes comprou chegou também à Itália, certamente. Traduzindo, Caproni obteve grande proximidade com Baudelaire. Sua versão para As flores do mal, no entanto, finalizada em 1963, tem história controversa. O poeta acabou por não reconhecer o trabalho, em decorrência das inúmeras interferências feitas pelo editor, “que com seu texto revisado e incorreto fez do meu quase irreconhecível”.299 De qualquer modo, traduzir, para ele, significava procurar autores que guardassem distância de seu estilo poético, o que pediria dele aprofundamento na leitura no texto que se quer verter, em uma entrega que significa um embrenhar-se em si próprio, “para capturar em nós mesmos, e de modo mais claro, a genuína força que reclama nossa voz”.300 Entretanto, é possível que a diferença, a princípio procurada pelo Caproni tradutor, possa ser tornar potência no Caproni poeta, pensamento equalizado com a afirmação de que a tradução foi, para o genovês, um laboratório poético. Em Baudelaire se reconhece temas caros a Caproni, como a viagem, Deus, a cidade, a mulher. Para o francês para quem as mulheres revelam-se híbridas, tensionais, em alternância entre o sagrado e o profano. Semitons, porém, são permitidos: no conhecido “A une passante”, “pega do pincel” e retrata uma bela e fugaz transeunte, a qual percorre uma rua agitada (tomada por “frenético alarido”) de Paris. Não obstante seus atributos físicos (“mão suntuosa”, “pernas de estátua”), ela é passante e passageira, tanto quanto sua beleza, que fenecerá, como condição humana. É a indicação da mulher comum caproniana, na verdade, abordada no segundo capítulo deste estudo. Além disso, a prostituta é uma figura assaz presente n’As flores do mal, onde consiste em alegoria do consumismo francês que tanto perturbava seu autor e que, em Caproni, pode ter também um aspecto social, já que aparece, normalmente, como personagem da área mais popular de Gênova, nos arredores do porto. Relevante pensar, ainda, que o poema em que aparece Alessandra Vangelo, a meretriz por quem o padrezinho se excitava, foi composto nos anos 60 e

298 BAUDELAIRE, Charles. “O veneno”. In: As flores do mal, op., cit., p. 223. 299 “che col suo testo riveduto e “scorretto” ha reso pressoché irriconoscibile il mio”. In: CAPRONI, Giorgio. Il mondo ha bisogno dei poeti: interviste e autocommenti 1948-1990, op., cit., p. 163. 300 “Divagações sobre traduzir”. In: CAPRONI, Giorgio. A porta morgana: ensaios sobre tradução, op. cit., p. 256.

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publicado em Despedida do viajante cerimonioso e outras prosopopeias, próximo à publicação de I fiori del male, na versão italiana. No rol de poemas do francês não existe nenhum mais extenso, como se encontra em Cabral (principalmente) e Caproni, que, fazendo uso de dispositivos narrativos, conta sobre uma viagem. Mas, escavando os dados biográficos de Baudelaire, descobre-se que um dos fatos mais importantes, ocorridos envolveu, justamente, uma viagem:301 em 1841, ainda bem jovem, portanto, foi em direção às índias (Calicute), por insistência do padrasto, com quem não tinha boas relações. O intuito da excursão seria afastar o aspirante a artista das más companhias e proporcionar-lhe um tempo para certo amadurecimento que pudesse lhe trazer mais serenidade nas escolhas profissionais. Por problemas climáticos a embarcação (Paquebot-des-Mers-du-Sud) jamais alcançou o destino planejado, tendo que aportar nas Ilhas Maurício. A experiência talvez não tenha surtido o efeito esperado pela família, pois Baudelaire nunca conseguiria equilíbrio financeiro e/ou profissional. Do ponto de vista literário, porém, a experiência foi riquíssima. O primeiro poema, “L’albatros”, decorre do translado: durante a navegação, um albatroz caiu no convés e começou a ser torturado por um dos marinheiros, o qual recebeu a ira do rapaz de vinte anos, que foi às vias de fato, em defesa da ave. E esse texto pioneiro não é o único da lavra do francês que pode ser ligado à vivência da primeira metade do século XIX. Há outros que, não obstante não façam referência direta à viagem fracassada ao Oriente, tratam do assunto, porém de maneira mais genérica, imbuída de imaginação. É onde está o soneto “A viagem” [Le Voyage], Abaixo, citaremos um trecho do poema, no original, na versão de Caproni302 e na tradução brasileira, de Ivan Junqueira:

[...] Mais les vrais voyageurs sont ceux-là seuls qui partent Pour partir; coeurs légers, semblables aux ballons, De leur fatalité jamais ils ne s'écartent, Et, sans savoir pourquoi, disent toujours: Allons!

Ceux-là dont les désirs ont la forme des nues, Et qui rêvent, ainsi qu'un conscrit le canon,

301 Detalhes da viagem em VERAS, Eduardo Horta Nassif. “A viagem como metáfora metapoética nas Flores do mal”. Revista Estação Literária. Londrina, Volume 10C, p. 55-70, fev. 2013. 302 Ambos os textos foram retirados de Quaderno di traduzioni (op., cit., p. 284-85).

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De vastes voluptés, changeantes, inconnues, Et dont l'esprit humain n'a jamais su le nom! [...]

[...] Ma son pur sempre quelli, i viaggiatori veri, Che unicamente vanno, così, per andare; Sono come i palloni, questi cuori leggeri, Che dalla loro sorte non si sanno scostare.

Quelli i cui desideri hanno forma di nubi E van sognando, come la recluta il cannone, Immense voluttà sconosciute, volubili, Di cui l’uomo ha ignorato perpetuamente il nome! [...]

[...] Mas viajantes de fato apenas são aqueles Que partem por partir; de coração flutuante, Jamais hão de aceitar ser outros senão eles E, sem saber por quê, ordenam sempre: Adiante!

Os que ao prazer dão a fugaz forma das nuvens E sonham, como sonha o canhão um recruta, Volúpias sem limite, ignotas e volúveis, Cujo nome jamais o ouvido humano escuta!” [...]303

Existe ainda outra versão de I fiori del male, além daquela não apreciada, a qual, como revela Testa, resta ainda inédita, sendo que alguns deles puderam ser publicados no Quaderno di traduzioni, graças à autorização dos filhos do poeta. “Le voyage”, um deles, mostra um pouco mais da face tradutora de Caproni, o qual, embora ache inevitável o tradutor conceder ao texto vertido suas próprias marcas, que dão origem a algo novo – isto se observa, por exemplo, na ênfase que Caproni retira do quarto verso da primeira estrofe –, é possível observar que Caproni procura manter ao máximo a estrutura e a forma francesas, pois rimas intercaladas e versos dodecassílabos permanecem, o que nem sempre é encontrado em traduções italianas do livro de Baudelaire. É o caso de Claudio Rendina, cuja tradução é dos anos 70, escolheu versos livres e brancos, como podemos ler no seguinte quarteto (o segundo dos textos anteriormente dispostos):

303 Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 2006, p. 411-13.

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“Ma il vero viaggiatore è soltanto chi parte / per partire, col cuore lieve, simile a un pallone; / chi non si separa mai dal suo destino / e, senza sapere perché, dice sempre: ‘Andiamo!’”.304 A primeira tradução, de Caproni, parece ser mais vivaz, expressiva, leve como “balões”, mais propícios a alçar voo do que apenas “um balão” (“un pallone”, como traduziu Rendina), por isso, em sintonia com a proposta francesa, que defende não um modo de viajar com objetivo pré- determinado, planejado, funcional – justamente a modalidade que levou Baudelaire ao mar e fez com que Cabral e Caproni não pudessem ficar em suas terras de origem ou de adoção –, mas algo despretensioso, o “partir por partir”, atravessado no excerto pelo ato de “sonhar”, que também pode consistir em viagem. E, tal qual ocorre com a prostituta, que ganha destaque em Caproni enquanto Despedida do viajante cerimonioso e outras prosopopeias é engendrado, a viagem, que em Baudelaire, ironicamente, ganha um tom suave, terá na referida coletânea função nuclear, como indica o título, apesar de bastante diversa. A viagem para o poeta italiano, conectada aos cabos de aço e aos trilhos dos meios de transporte urbanos de Gênova, será uma ação que se faz só, mesmo que em companhia e é representação da vida e da morte, ou da vida para a morte. A companhia, inclusive, pode nem pertencer mais ao plano terreno (a alma da mãe no elevador). A ida solitária a algum ponto, que já agora começa a ficar indefinido, é a o “cartão de embarque”, por assim dizer, da coletânea:

Em uma noite de um gélido 17 de dezembro

...o homem que de noite, só, no “gélido dezembro”, empurra a cancela e entra – só – nos seus suspiros.305

O recurso do breve texto introdutório, próprio ou citado, será adotado por Caproni nos livros subsequentes, como uma porta de entrada, ou uma inscrição no portal, cujo desencanto, o desencanto, lembra a que Dante e Virgílio leram antes de adentrar o inferno (“Deixai toda a

304 BAUDELAIRE, Charles. I Fiori del male. Cura e traduzione Claudio Rendina. Roma : Grandi Tascabili Economici Newton, 1988, p. 241. 305 “In una notte d'un gelido 17 dicembre: ...l'uomo che di notte, solo, / nel “gelido dicembre”, / spinge il cancello e rientra / – solo – nei suoi sospiri”. In: CAPRONI, Giorgio. L’opera in versi, op., cit., p. 241.

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esperança / ó vós que entrais”)306. A relação, diga-se, entre a abertura da obra e Dante se faz, de maneira mais evidente em títulos escolhidos: A semente do pranto e O muro da terra, extraídos, respectivamente, do “Purgatório” (XXXI, versos 45-46) e “Inferno” (X, veros 1-3). Em adição, o poema mais longo de A semente do pranto é “Ad portam inferi”, o qual mostra uma Annina fantasmagórica, semelhante aos seres encontrados na viagem da Divina Comédia. Estes ensinamentos que Caproni aprendeu a partir do referido clássico italiano, juntamente com o binômio “terra/guerra”, e muitos outros, explícitos ou sorrateiros, são fruto de uma relação de o poeta genovês manteve com Dante desde seus tenros anos. Já na infância, Caproni teve contato com a Divina comédia, quando o pai a comprou em uma banca, em parcelas. Ou melhor: trata-se de um fenômeno que praticamente liga uma ponta da vida do escritor à outra, porque quando ele faleceu, em 22 de janeiro de 1990, deixou sobre o criado-mudo o “Purgatório” aberto. Porém, como se percebe, entre as duas pontas, há uma produção poética sobre em Dante foi um ativador de potência, não como um modelo a ser seguido, como pondera Adele Dei, mas como “uma longínqua música de fundo, que aflora somente às vezes com clareza cristalina, com desenvolta natureza”.307 Neste sentido, em entrevista para a presente pesquisa, Anna Dolfi diz que, para Caproni, Dante configura uma espécie de nostalgia de algo não realizado e jamais realizável. Retomando a quartina [quarteto] noturna e sua estrutura, seus versos possuem sete sílabas métricas, à exceção do último, com cinco na tradução e seis no original. São estes os instrumentos poéticos com os quais se descreve uma cena melancólica, de uma noite fria do dia 17 de dezembro, data que nunca se soube o motivo da importância para Caproni.308 A brevidade do texto vai de encontro às reflexões que o texto pode levantar: onde se entra sozinho, em uma noite de inverno? Em um cemitério, no mundo dos mortos, talvez, como fez Dante, conferindo a aura que o livro terá? Outra pergunta que se faz é acerta da palavra “homem”, cujo sentido pode designar tanto o individual quanto o coletivo. A primeira possibilidade, do homem só, sem a companhia de um Virgílio, vagando, sem direção certa, ou perdido numa floresta, não será incomum, a partir de agora, no poeta. Nem a frase feita (“gélido dezembro”) parece servir (se é que está tentando) de acalanto nesse momento. Esse tipo de expressão, pelo contrário, tende a cair no vazio: não surte mais efeito. Mesmo porque ela está comprimida entre dois “sós”, os

306 ALIGHIERI, Dante. A divina comédia. Tradução Italo Eugenio Mauro. São Paulo: Editora 34, 2016, p. 46. 307 “una lontanissima musica di sottofondo, che affiora solo a tratti con chiarezza cristallina, con disinvolta naturalezza”. DEI, Adele. “Caproni e Dante”. In: L’orma della parola, op. cit., p. 74. 308 ZULIANI, Lucca. “Apparato critico”. In: CAPRONI, Giorgio. L’opera in versi, op., cit., p. 1498.

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quais, aliás, também estão isolados, estrategicamente, pela pontuação. O desfecho do texto ampliará a discussão acerca dessa insistência separadora: a entrada é nos “suspiros”, a imanência onde apenas o personagem tem acesso. Seria o último suspiro? Se sim, diríamos que há ligação direta entre o poemeto de dezembro e a “narrativa” homônima ao livro. Trata-se de uma história contada a partir de uma viagem, a exemplo do que ocorre com Stanze della funicolare, salvo pela tipologia do itinerário, pois em “A despedida do viajante cerimonioso: “a intenção originária de Caproni era aquela de descrever uma descida sua ao limbo e uma visita ao reino dos mortos”.309 Talvez o texto esteja para o poeta italiano como O rio está para Cabral, do ponto de vista da estrutura textual, posto que certos elementos com enredo, personagem, tempo-espaço, aliados a outras novidades providas pela época de publicação, engrossem, digamos, o caldo das potencialidades poéticas. Ou, nas palavras de Peterle, “Caproni traz mais componentes alquímicos para seu laboratório, como a aproximação com a prosa”.310 A voz seria outro ponto a tangenciar o relato cabralino do Capibaribe, já que o viajante é também um eu protagonista, escolha afinada pelo diapasão dos conturbados anos 60 que, significaram, para a Itália, profundas mudanças na economia e na cultura. Assim, seguindo ideias que já nos anos 40 contrapunham-se ao uso do tradicional eu lírico de alguns herméticos, surge um tipo de voz que não aparecera em “O elevador” ou em “Ad portam inferi”. Contrariando mais uma vez Friedrich, para quem “lírica moderna exclui não só a pessoa particular, mas também a humanidade normal”,311 e voltando-se Hamburguer, para quem “o homem nunca pode ser excluído da poesia escrita por seres humanos, por mais impessoal ou abstrata”,312 Caproni lança mão de um eu prosopopeico, como fizera Cabral, cuja postura, aliás, também vai de encontro à linha traçada por Friedrich. A nova concepção parece concordar mais com a evolução da poesia moderna segundo Berardinelli, o qual defende a existência de algumas modalidades de voz surgidas no século XX, dentre elas, uma análoga à prosopopeia, que já havia sido apontada por T. S. Eliot: a de “uma personagem dramática cuja expressão seja em versos, que não diz aquilo que gostaria de dizer ele mesmo, mas apenas o que pode dizer dentro dos limites de uma personagem

309 l’intenzione originaria di Caproni era quela di descrivere una sua calata nel limbo e una visita al regno dei morti”. ZULIANI, Lucca. “Apparato critico”. In: CAPRONI, Giorgio. L’opera in versi, op., cit., p. 67. 310 “A palavra esgarçada”. In: PETERLE, Patricia. A palavra esgarçada: poesia e pensamento em Giorgio Caproni, op. cit., p. 14. 311 Estrutura da lírica moderna: da metade do século XIX a meados do século XX, op. cit., p. 110. 312 HAMBURGUER, Michael. A verdade da poesia: tensões na poesia modernista desde Baudelaire, op. cit., p. 46.

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que dialoga com outros seres imaginários”.313. Entretanto, o viajante caproniano, tal qual o rio pernambucano, embora acompanhado, monologa, agindo como se estivesse sozinho, representando, talvez, “a solidão do homem moderno disperso na massa”314, efeito do boom econômico italiano. Primeiramente, sobre questões estruturais, ao passo que a viagem de Baudelaire tem a cadência dodecassílaba, com rimas em alternância, “Despedida do viajante cerimonioso” possui uma estrutura poética própria, com os versos são rápidos e livres, apesar do predomínio de versos com sete e oito sílabas poéticas, tanto em italiano quanto em português, sendo que na tradução alguns versos podem chegar a nove. É o se verá do primeiro (“Amigos, creio seja vantagem”), que no original possui sete sílabas. Assim, vemos que existe um programa rítmico previamente desenhado, porém incomum, ou, como diria Testa, para quem a musicalidade caproniana evita “efeitos fáceis” ou “clássicos”, como “o uso da rima emparelhada (...) no final do poema”, o que lhe consegue “um efeito ‘esfumado’”.315 Esta técnica, emprestada da pintura, é atribuída, por exemplo, a Leonardo da Vinci, que usava a técnica para gerar suaves gradientes entre as tonalidades, de modo que não houvesse fronteiras definidas entre os elementos, mas várias camadas de tinta no limiar de cada um. A rima sfumata insere o leitor em um jogo diferente daquele do poema supracitado de Baudelaire, na medida em que, quando duas palavras se aproximam sonoramente, muitas vezes possuem estruturas silábicas e semânticas distintas. Não é com facilidade, portanto, que se percebe a musicalidade, pois ela depende de camadas conectivas que se constroem de um termo para o outro, como é o caso da improvável rima entre “sia” e “valigia”, do primeiro e do terceiro verso, respectivamente. São palavras que rimam, mas com número de sílaba diferente (duas e três), além de não possuírem a mesma classe gramatical (verbo e substantivo). É perceptível, também, que, as duas encontram-se envolvidas em uma espécie de efeito gradativo, através do uso da assonância com a letra “i” (“Amici”, “sia”, “meglio”, “cominciare”, “tirar”, “giù”, “valigia”), efeito este que, em português, não será o mesmo. Aliás, a tradução para a palavra “vantagem” (traduzida de “meglio”) se antepõe à “sia” para rimar com “valigia”, que se torna “bagagem”, situação em que coincidirão número de sílabas e classe gramatical.

313 Da poesia à prosa, op. cit., p. 18. 314 BALDACCI, Alessandro. “I viaggi del congedo”. In: Giorgio Caproni: l’inquietudine in versi, op. cit., p. 94. 315 Cinzas do século XX: três lições sobre a poesia italiana, op. cit., p. 90.

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A brevidade dos versos, então, imbuídos de certa graça rítmica, às vezes, quase melódica e cantável, aliada a um sofisticado e invulgar modo de composição, colocam a “narrativa” em modo tenso, como se o trem se locomovesse com o sistema de freio parcialmente acionado. A viagem, mesmo que presa aos trilhos, pode se aproximar do percurso do Capibaribe, cuja irregularidade se deve aos percalços naturais que todo rio enfrenta em direção ao mar. Esse desnível causado pelo discurso e/ou situações que ele apresenta, que tornam o andamento do texto cambaleante, pode dialogar com a gravidade da situação da qual o viajante pode fazer parte. Antes de discutir sobre isto, citaremos, em seguida, “Despedida do viajante cerimonioso” integralmente, com o original ao lado, para que se façam eventuais correlações similares as que já fizemos até agora:

Amigos, creio seja vantagem Amici, credo che sia para mim, agora meglio per me cominciare começar a baixar a bagagem. a tirar giù la valigia. Mesmo sem saber bem a hora Anche se non so bene l’ora da chegada, e nem sequer d’arrivo, e neppure quais estações conosca quali stazioni vêm antes da minha, precedano la mia, sinais seguros me dizem sicuri segni mi dicono, pelo que me chegou aos ouvidos da quanto m’è giunto all’orecchio desse lugar, que eu di questi luoghi, ch’io terei logo que os deixar. vi dovrò presto lasciare.

Ainda queiram desculpar Vogliatemi perdonare pelo incômodo que trago. quel po’ di disturbo che reco. Com vocês tive agrado Con voi sono stato lieto desde a partida, e sou-lhes dalla partenza, e molto muito grato, acreditem, vi sono grato, credetemi pela excelente companhia. per l’ottima compagnia.

Queria ainda conversar Ancora vorrei conversare um bom tempo com vocês. Mas seja. a lungo con voi. Ma sia. O lugar do traslado Il luogo del trasferimento o ignoro. Sinto lo ignoro. Sento no entanto que terei de lembrá-los però che vi dovrò ricordare muito, na nova sede, spesso, nella nuova sede, enquanto meu olhar já vê mentre il mio occhio già vede pela janela, além do fumo dal finestrino, oltre il fumo úmido da cerração umido del nebbione que nos envolve, roxo, che ci avvolge, rosso o disco de minha estação. il disco della mia stazione.

Licença peço a vocês Chiedo congedo a voi

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sem poder-lhes calar senza potervi nascondere, leve, uma consternação. lieve, una costernazione. Tão belo era falarmos Era così bello parlare juntos, um frente ao outro: insieme, seduti di fronte: tão belo misturar così bello confondere os vultos ( fumar i volti (fumare, passando o cigarro), scambiandoci le sigarette), e toda aquela falação e tutto quel raccontare de nós ( aquela invencionice di noi (quell’inventare fácil, ao contar dos outros), facile, nel dire agli altri), até poder confessar fino a poter confessare quanto, mesmo apartados, quanto, anche messi alle strette jamais ousaríamos um instante mai avremmo osato un istante ( por engano) confiar. (per sbaglio) confidare.

(Desculpem. É mala pesada (Scusate. È una valigia pesante mesmo se contém quase nada: anche se non contiene gran che: tanto que eu me pergunto por que tanto ch’io mi domando perché a trouxe, e qual l’ho recata, e quale ajuda poderá me dar aiuto mi potrà dare depois, quando a tiver comigo. poi, quando l’avrò con me. Mas tenho que levá-la, Ma pure la debbo portare, nem que seja para o uso. non fosse che per seguire l’uso. Permitam-me passar. Lasciatemi, vi prego, passare. Pronto. Agora que ela está Ecco. Ora ch’essa è no corredor sinto-me nel corridoio, mi sento mais à vontade. Queiram desculpar.) più sciolto. Vogliate scusare.)

Dizia que era bom Dicevo ch’era bello stare estarmos juntos. Conversar. insieme. Chiacchierare. Tivemos algum Abbiamo avuto qualche contraste, é natural. diverbio, è naturale. Da mesma forma – é normal Ci siamo – ed è normale isso também – odiamo-nos anche questo – odiati em mais do que um ponto, e seguramo-nos su più d’un punto, e frenati apenas por cortesia. soltanto per cortesia. Mas, o que importa? Seja Ma, cos’importa. Sia como for, volto come sia, torno a dizer, de coração, obrigado a dirvi, e di cuore, grazie pela excelente companhia. per l’ottima compagnia.

Despeço-me do senhor, doutor, Congedo a lei, dottore, e de sua facunda doutrina. e alla sua faconda dottrina. Despeço-me de você, mocinha Congedo a te, ragazzina magra, e de seu leve odor smilza, e al tuo lieve afrore de recreação e de campina di ricreatorio e di prato no rosto, cuja cor sul volto, la cui tinta tão suave é levíssimo incentivo. mite è sì lieve spinta. Licença, ó militar Congedo, o militare (ou marujo! Em terra (o marinaio! In terra

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como no céu e no mar) come in cielo ed in mare) à paz e à guerra. alla pace e alla guerra. E ao senhor também, ó sacerdote, Ed anche a lei, sacerdote, adeus, que me perguntou se eu congedo, che m’ha chiesto se io (brincava!) recebi como dote (scherzava!) ho avuto in dote acreditar no vero Deus. di credere al vero Dio.

Despeço-me da sabedoria Congedo alla sapienza e despeço-me do amor. e congedo all’amore. Também da religião. Congedo anche alla religione. Cheguei a meu destino. Ormai sono a destinazione.

Agora que mais forte sinto Ora che più forte sento o chiar do freio, deixo-os stridere il freno, vi lascio de verdade, amigos. Adeus. davvero, amici. Addio. Disto estou certo: eu Di questo, sono certo: io cheguei ao desespero son giunto alla disperazione calmo, sem inquietação. calma, senza sgomento.

Desço. Boa continuação. Scendo. Buon proseguimento.

Na tradução vista de Baudelaire por Caproni, no último verso da segunda estrofe, a palavra “esprit” [espírito] foi supressa, o que não quer dizer que não aparecerá em várias situações da poética caproniana, sob a forma de “anima” [alma]. Da mesma forma, no poema acima, não vemos nenhuma referência explícita ao comentário de que a viagem seria uma “visita ao reino dos mortos”. Logo, sob o prisma estilístico e retórico, identifica-se um espaço diegético com dois planos semânticos na “narrativa”, sem que um se sobrevenha em detrimento do outro, entendimento relevante para escrita de Cabral, em que há a tonificação das coisas em si, não a sua substituição, relegando o papel de metaforizar a outrem: o ovo de galinha é o ovo de galinha. O ovo pode inspirar o sentimento que se tem ante um revólver (não ante uma bala), por aquilo que engendra, porém, nesse caso, teremos duas imagens que não são fundidas.316 A princípio, então, o texto de relata, em primeira pessoa, a viagem de trem do protagonista se volta aos amigos e conhecidos, invocando os momentos passados juntos e preparando-se para afastar-se deles para sempre, ao desembarcar na última parada. Sabendo-se, porém, que se trata de poesia, que não apenas informa uma notícia, o leitor com o mínimo de cultivo sentirá a presença de uma história paralela à aparente, sentimento que

316 Alusão a “O ovo de galinha”, de Serial. In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único, op. cit., p. 302-304.

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ganhará robustez à medida que ocorra leitura da fortuna crítica de Caproni ou de suas próprias declarações. Existem, ainda, certos paradoxos no texto que saltam à vista: afinal, por que a mala é pesada se pouca coisa contém? Tal questionamento pode dar a pensar que o sujeito está impossibilitado fisicamente de lidar com a bagagem, ainda que quase vazia, pode se tratar de um ancião, tendo em vista as experiências pelas quais diz ter passado. Partindo do detalhe do referido objeto, então, talvez se pense em sua imaterialidade, na simbologia que encerra, no sentido de ser o portador da memória e das experiências do viajante, recurso interpretativo que levanta a hipótese de que todo o poema se configura como uma prolongada alegoria (ou como uma série de alegorias). O itinerário do trem seria a vida e a estação final, a última etapa da existência, sobre a qual pouco se sabe (“O lugar do translado / ignoro”), incerteza que traz desespero, não obstante a aparente o eu se dizer “calmo, sem inquietação”. Uma conduta tranquila e grave em demasia, que pode igualmente levantar considerações, para observadores mais atentos, e ela, segundo Testa, em “Personaggi caproniani” [Personagens capronianas], está diretamente relacionada ao tipo de prosopopeia do qual o personagem principal é constituído. Ao analisar as vozes que se expressam em A despedida do viajante cerimonioso e outras prosopopeias, o aludido estudioso italiano acredita que a obra mereça um debruçar-se sobre a poesia que consiga desvencilhar-se de uma antiga tradição lírica e enxergar mais do que uma voz recitante, apenas: há a presença, “rara mais importante, dos múltiplos efeitos vocais dentro da denominada tonalidade monológica da escritura da poesia”.317 Fala-se de uma importante categoria narrativa, a da criação de indivíduos (personagens), por parte do escritor literário, capazes de interação e dialogismo. Esse engenho será mais perceptível em Caproni entre os anos 50 e 70, pois, passado esse momento de trânsito, a tendência será desfiguração das personagens, encobertos pela sombra ou, até etéreos. Os enunciadores capronianos fazem uso, via de regra, da linguagem falada. Essa característica, deveras presente em no livro em questão, está ligada à maneira mais lateral com que Caproni coloca em ato as potencialidades autobiográficas, as quais, agora, dependerão do externo. E cada investida externa, fora dos limites com os quais o eu, geralmente, se expressava, pede uma estilização específica de linguagem, da qual é exemplo a “cerimônia” na fala do viajante do poema reproduzido, fruto, talvez, de um linguajar cortês ao extremo, coerente com a

317 “rara ma importante, di plurimi effeti vocali all’interno della dominante tonalità monologica della scrittura della poesia”. In: DEVOTO Giorgio & VERDINO, Stefano. Per Giorgio Caproni, op. cit., p. 161.

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placidez que ele diz ter, conquanto prestes pisar em solo misterioso. São peculiaridades que se fortalecem com o monologar e abrem espaço para micro-organismos performáticos:

(...) as diferenças vocais são, por sua vez, internamente atravessadas por uma serie assaz rica de efeitos ‘dramáticos’. Por exemplo: o frequente abandono do centro psicológico e argumentativo da palavra, que se ‘distrai’ acidentalmente em relação a dados circundantes (...) ou a representação dos movimentos e das reações dos silenciosos interlocutores, dos quais se espera, ilusoriamente e per silentia, piadas e réplicas em um quadro em que a estrutura monológica acolhe, como um eco, sotaques e vozes de outrem (...).318

Tendo em vista uma espécie de autobiografia com deslocamento vocálico, pode-se conjecturar acerca daquilo que o poeta diz sobre a própria poesia, ainda que isto esteja encoberto pela camada narrativa, como tantas vezes ocorre em Cabral que, por exemplo, fala de como os sertanejos saber usar a pedra, um de seus parcos recursos, em benefício próprio, sendo que ela ministrou lições poéticas.319 No desfecho do monólogo, o viajante se dirige a quatro interlocutores: o doutor, a mocinha, o militar e o sacerdote. Logo em seguida, diz o que eles representariam em sua vida, respectivamente: a sabedoria, o amor e a religião. Ora, estes desapegos poéticos, sobre os quais temos falado, associando-os a um aumento de potência inversamente proporcional ao do ato, correspondem ao lugar aonde Caproni chega: uma espécie de terra devastada, para recordar Eliot, império do nada. Nos termos de Daniela Baroncini, “suspensa entre a angústia do vazio absoluto e a percepção de um nada por assim dizer relativo, (...) a poesia de Caproni chega ao território do desconhecido”, por onde vagam “fantasmas” e onde “movimento e inércia se confundem de maneira estranha”.320 Um contexto apocalíptico, em que não será tarefa fácil a identificação de sabedorias doutas, divagações amorosas ou alusões à guerra, geradora que é de inspiração, mas detonadora da palavra. Deus, por sua, vez não será

318 “le difference vocali sono, a loro volta, internamente attraversate da una serie assai ricca di effeti ‘drammatici. Ad esempio: il frequente abbandono del centro psicologico e argomentativo della parola, che si ‘distrae’ incidentalmente sui dati circostanti (...) o la rappresentazione e per silentia, battute e repliche in un quadro la cui cornice monologica accoglie, come un’ecco, accenti e voci altrui (...)”.TESTA, Enrico. “Personaggi caproniani”. In: DEVOTO Giorgio & VERDINO, Stefano. Per Giorgio Caproni, op. cit., p. 165. 319 O rio. In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único, op., cit., p. 124. 320 “sospesa tra l’angoscia del vuoto assoluto e la percezione di un nulla per così dire relativo, (...) la poesia di Caproni approda ai territori dell’ignoto”, “fantasmi” e “movimento e stasi si confondono in maniera straniante (...)”. Caproni e la poesia del nulla. Pisa : Pacini Editore, 2002, p. 12.

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extinto, será, antes, confrontado por Caproni, que discute sobre sua (in) existência, não se contentando, assim, o Deus vero, “recebido como dote”. Entretanto, nem sempre, como aponta Testa, o eu caproniano, em sua etapa prosopopeica, terá esse jogo de alteridade, campo aberto aos timbres criados a partir do olhar para o externo. Em “Treno” [Trem],321 retirado de A semente do pranto, o que se vê é um voz sem especificações que a destaquem: não se trata de um viajante cerimonioso ou de um padre profano e suas respectivas tonalidades de linguagem. Apesar de o espaço ser, novamente o trem, ratificando a alcunha de “poeta ferroviário”,322 o dialogismo que ocorre sem que o personagem seja envolto a sinais que pudessem identificá-lo e, por conseguinte, definir sua expressividade. Há, ainda, o fato de o “narrador” não falar no presente, como ocorre com o viajante, mas tão somente relatar em primeira pessoa uma situação melancólica pretérita, ocorrida com o pai. Nessas condições, o que se tem é um enunciador impotente e perturbado, distante daquele que prepondera na coletânea, a qual ao se voltar para a vida de Annina, opta por um clima ficcional quase romanesco323 onde há lugar para a delicadeza e a graciosidade. Em um trem “longo e lento”,324 em direção a Benevento, na região da Campanha, pai e filho viajam frente a frente em um vagão ensolarado. Enquanto o pai chora, “por ser assim velho”,325 o filho opta pelo silêncio. Depois de deixar o pai sozinho em Benevento, o filho segue para Bari. Caso se queira operar, mais uma vez, no plano interpretativo indireto, dir-se-ia que o autobiográfico, aqui, poderia ser relativo ao âmbito pessoal, familiar de Caproni, a partir da qual o pai em questão sendo é Attilio. O poema abre a segunda seção do livro dedicado à mãe. Uma espécie de compensação aos versos dedicados a Anna Picchi? Não nos parece, pois permanece grande desequilíbrio ante o panorama, mais ou menos cronológico, traçado de Annina, desde a juventude simples, quando caminhava pela Corso Amedeo, em Livorno, até a velhice, em uma estação de trem, espécie de antessala do mundo dos mortos. Em Il seme del piangere, Caproni proporciona a si mesmo a oportunidade de “encontrar” Annina em situações prosaicas, através de um texto que acompanha tal proposta. “Treno” não é diferente: com vocabulário comum e enxuto, lançando mão de rimas sequenciais e métrica mais

321 L’opera in versi, op., cit., p. 223. 322 TESTA, Enrico. Cinzas do século XX: três lições sobre a poesia italiana, op., cit., p. 91. 323 TESTA, Enrico. “Personaggi caproniani”. In: DEVOTO Giorgio & VERDINO, Stefano. Per Giorgio Caproni, op. cit., p. 163. 324 “lungo e lento”. 325 “d’essere così vecchio”.

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ou menos padronizada, o pai se torna um parceiro de viagem cujo choro não parece receber consolo daquele que, moralmente, seria o responsável por fazê-lo. E, como se não bastasse, acaba por deixar o idoso sozinho, no meio de um itinerário. Talvez não seja difícil perceber que sujeito poético demonstra o sentimento de culpa – sentimento encontrado em diversos momentos em que Caproni se dirige à família – , principalmente, nos dois últimos versos: “Para Bari segui sozinho: / deixei-o ali: eu, seu filhinho”.326 Antecipando algumas escolhas poética a serem ulteriormente, o texto possui aspecto fantasmagórico, pois se sabe que Attilio faleceu em 1957 e foi sepultado em Bari, fato que faz pensar que o filho está indo fazer visita ao túmulo e, no caminho, tem “encontro” com o pai. Este, que um interlocutor em potencial, mantem-se em silêncio, como se não estivesse ali, o que parece sintonizado com o esvaziamento de ambiente, representado justamente pela presença sem fala, “ausente”, e pela segunda estrofe, a qual diz que o pai chora só no vagão.

4.4.1 Caproni e a França: tradução inenarrável

Anti-Char

Poesia intransitiva, sem mira e pontaria: sua luta com a língua acaba dizendo que a língua diz nada.

É uma luta fantasma, vazia, contra nada; não diz a coisa, diz vazio; nem diz coisas, é balbucio.327

Faz sentido o poema acima ser integrante de Museu de tudo, livro que, com certa liberdade, rende homenagens a nomes diversos, como Marques Rebelo, Mary Vieira, Joaquim Cardozo, Dylan Thomas, W. H. Auden e Manuel Bandeira. No caso de “Anti-Char”, o próprio título já indica resistência do poeta brasileiro em relação ao que o francês desenvolve em seus

326 “Per Bari prosseguì solo: / lo lasciai lì: io, suo figliolo”. 327 MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único, op., cit., p. 397.

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poemas: a “intransitividade”, os versos corroídos e evasivos que antes parecem “balbuciar” do que “dizer”. Em verdade, em 1954, alguns anos antes de fazer o texto sobre Char, Cabral tinha escrito a tese “Da função moderna da poesia”, a qual foi apresentada no Congresso de Poesia de São Paulo. Na ocasião seu argumento foi que a escrita moderna é uma “atividade intransitiva”,328 voltada para dentro e não para fora, e, por esta razão, “exige do leitor um esforço sobre-humano para se colocar acima das contingências da vida”.329 Sendo assim, vem, a esta altura do trabalho, uma pergunta: teria Cabral gostado da poesia de Caproni e vice-versa? O questionamento se dá pelo fato de que as características levantadas pelo brasileiro em relação ao criador de “Le nu perdu” [“O nu perdido”]330 podem ser encontradas, sobretudo no período de maturidade da poesia caproniana – apesar das dessemelhanças que também há entre Caproni e Char –, o qual compreende sua obras finais do poeta de Livorno. Mas acreditamos que a resposta talvez não venha ao caso. E nosso intento principal nunca foi pensar que, se os escritores em pauta tivessem se conhecido e/ou se lido, teriam se apreciado mutuamente. Assim, possível presença de Char em Caproni é mais um indício de que o “ponto de chegada” nos dois poetas aqui estudados não foi o mesmo, embora suas ativações de potência tenham causado restrições em seus atos. O “encontro” entre o poeta italiano e o francês ocorreu na virada de 50 para 60, quando Caproni e Vittorio Sereni foram incumbidos de traduzir Poèmes et prose choisis, que acabou ganhando o título em italiano de Poesia e prosa. Além dos dois tradutores, como revela Donzelli, o próprio Char acabou por fazer parte da equipe, haja vista que trocou cartas com os colegas italianos,331 conservadas no Archivio contemporaneo Alessandro Bonsanti del Gabinetto Vieusseux di Firenze.332 Há, entretanto, diferenças entre os motivos que levaram o lombardo ao

328 MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único, op., cit., p. 768. 329 Idem, ibidem. 330 Tradução de Augusto Contador Borges, que organizou a coletânea O nu perdido e outros poemas (São Paulo: Iluminuras, 1995), que utilizaremos como uma das bases nesta altura do estudo. 331 In: Giorgio Caproni e gli altri: temi, percorsi e incontri nella poesia europea del Novecento, op., cit., p. 64-65. 332 O objetivo deste estabelecimento público, visitado pelo presente pesquisador, é de colecionar diversos materiais relacionados a personalidades contemporâneas. Atualmente, existem mais de 150 arquivos, incluindo grandes fundos e pequenas coleções, doados, depositados e comodatos; arquivar documentos e livros (tendo em vista que os fundos podem ser enriquecidos pela presença de bibliotecas pessoais), uma vez ordenados e inventariados, são disponibilizados ao público de acordo com regulamentos específicos.

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referido trabalho e os que impulsionaram seu conterrâneo toscano: enquanto o primeiro o fez por “oposição”, o segundo embarcou por afinidade.333 Semelhanças na vida e na obra são encontradas, se Caproni e Char forem colocados lado a lado. Uma das mais conhecidas é a participação ativa de ambos na Segunda Guerra.334 O francês iniciou sua ligação com os resistentes a partir de 1941. No ano subsequente, participa ativamente da Resistência. Adota o nome de guerra “Alexandre” e chega a tornar-se chefe do setor de A. S. de Céreste, operações contra os alemães. Em 43, engaja-se nas F. F. C. (Forças Francesas Combatentes), no posto de capitão. Desempenhou, ainda, outras atividades em meio ao conflito, mas sempre mantendo, em paralelo, a carreira de escritor, a qual, a propósito, já havia iniciado bem antes, nos distantes anos 20. No ano de 1929, Char adere ao Surrealismo, movimento que alcançou grande e rápida repercussão na Europa, onde, por diversos motivos, artistas e intelectuais produziram sob influência da novíssima proposta, com foi o caso de Walter Benjamin, que, pari passu com a inauguração da vanguarda, publica “O surrealismo: o último instantâneo da inteligência europeia”. O membro da Escola de Frankfurt enxerga no Surrealismo um questionamento com relação ao mundo moderno, no sentido de que ela pode trazer uma perspectiva de experiências mágicas realizáveis no contexto do dia-a-dia da cidade moderna, as quais impugnam o egoísmo materialista. O “agito” atravessou oceanos, chegando à América. João Cabral, como já dissemos, fez parte do grupo do Café Lafayette, em Recife, quando era ainda um mancebo, e recebeu “injeções” de surrealismo, principalmente do intelectual e crítico pernambucano Willy Lewin, nome que, como já vimos, foi fundamental para a formação cultural de Cabral.335 Para este, no entanto, o surrealismo, não consistiu em motivo de orgulho. Como vimos, quis se distanciar do clima onírico apreendido.336

333 DOZELLI, Elisa. Giorgio Caproni e gli altri: temi, percorsi e incontri nella poesia europea del Novecento, op., cit., p. 66 a 68. 334 No caso de Sereni, a ligação com a guerra foi diferenciada: logo no início de sua participação como soldado, foi capturado pelos ingleses, tendo sido aprisionado no norte da África, o que resultou no livro Diário d’Argélia. Como explica Testa, ele acabou sendo excluído tanto da Segunda Guerra quanto da Resistenza, “os dois grandes eventos entre 1940-45” (“A exclusão do eu expatriado: movimentos de Vittorio Sereni”. In: TESTA, Enrico. Cinzas do século XX: três lições sobre a poesia italiana, op., cit., p. 54). 335 Marta Peixoto cita artigo de Afrânio Coutinho, intitulado “O surrealismo no Brasil”, o qual diz que foi Vicente Rego Monteiro que “preparou o terreno” para a difusão do Surrealismo por aqui, depois que veio de Paris, onde viveu, e trouxe de lá, para a Semana de 22, “orientação futurista e cubista” (Poesia com coisas: uma leitura de João Cabral de Melo Neto, op., cit., p. 38). 336 Em “Considerações do poeta dormindo” (Obra completa: volume único, op., cit., p. 683), que traz como epígrafe um poeta de Willy Lewin, fala sobre a diferença entre o sono, necessário para que as sensações sejam engendradas

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Char fez o mesmo em relação aos seus escritos iniciais, que renegou e mesmo destruiu. O contorno que seus textos foram conquistando faz com que entendamos o porquê do prazer que Caproni teve ao transpor seus versos para o italiano. Na introdução de O nu perdido e outros poemas, há alguns pareceres sobre a produção chariana, os quais dão conta do “vazio” que os poemas evocam; do “silêncio gritante” de suas palavras; do hermetismo claro; “o uso do espaço em poesia”. Além disso, certo aspecto mineral (abundante em Cabral, seja dito de passagem) e vegetal é atribuído ao francês (a terra, a areia, a pedra, uma infinidade de plantas, árvores, flores lhe são caras), dentro do clássico motivo da colheita, a seus derivados sêmicos como grãos, palhas, frutos, essa vegetação intensa que forra o chão dos poemas.337 Um leitor de Caproni aparelhado talvez não faça esforço para detectar nele essa gama de dados oriundos da poesia (prosa poéticas, às vezes) de Char. “Congé au vent” [“Licença ao vento”],338 de 1962, foi um dos poemas traduzidos pelo italiano. Em estrutura de prosa, fala de “uma jovem”, que, em “época de colheita”, “leva ramos frágeis nos braços”. E, “como uma lâmpada com a auréola de claridade em perfume, ela se vai, dando as costas ao poente”. Feitas essas explicações, uma admoestação ao leitor/interlocutor, que não deve “dirigir-lhe a palavra” (é um “sacrilégio”), mas ceder-lhe “a vez no caminho”, para, talvez, ver “em seus lábios a quimera da Noite”. Estruturado em três parágrafos, a narrativa parece, a priori, invocar uma áurea árcade, campestre, de carpe diem, de tranquilidade junto à natureza. Isso porque o primeiro período é assim: “Nos flancos de colina da aldeia campos fartos de mimosas armam-se em bivaques”. Mas logo na sequência, o narrador deixa claro que o trabalho (“colheita”) acontece “longe desse lugar”, e de maneira silenciosa, e assim deve permanecer mesmo quando tudo estiver terminado. A jovem, neste momento, envolta em sinestesias, evade rapidamente, fugaz como o vento. Somos tentados a procurar repercussões de Char em seu contumaz tradutor. Nessa direção, há que se deter, no significante “Congé”, que Caproni entendeu de forma mais contundente: “Addio”339, e não “Licença”. O italiano aproximou-se, logo, mais de seu traduzido do que a versão brasileira, pois “prendre congé” significa “dizer adeus”, “despedir-se”. O link daí

e tragam vitalidade no momento da produção, e o sonho, algo que faz com que a escrita algo mais automático do que pensado. 337 Os referidos pareceres encontram-se entre as páginas 09 e 28. 338 CHAR, René. O nu perdido e outros poemas, op., cit., p. 111. 339 TESTA apud CAPRONI. Quaderno di traduzioni, op., cit., p. 79.

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para o “Congedo” é natural, mesmo que a “despedida” caproniana esteja alocada sobre trilhos e não trilhas de relva e mantenha uma força narrativa mais completa, pela semântica, pelos personagens, pela relação tempo-espaço, pelo foco narrativo. Tanto nas linhas do italiano quanto nas do francês, entretanto, têm-se a imagem de alguém indefinido, que se esvai, e com quem não se pode interagir: ambos estão absortos em si mesmos, em seus monólogos, exílios, mesmo sabendo que o sentir-se exilado, só, deslocado em um mundo sem nem sequer Deus (que está em todo a parte, como propaga o imaginário popular cristão), será mais profundo nos exercícios poéticos de Caproni pós-65. Mas acaso quiséssemos sair do espaço férreo e, a partir de “Licença ao vento”, procurar buscar uma discussão “mais vegetal”, na relação Char-Caproni, “Foglie” [“Folhas”], de O franco caçador, seria uma alternativa:

Quantos se foram...

Quantos O que resta. Nem ao menos o sopro.

Nem ao menos o arranhão ou a dentada da presença.

Todos se foram sem deixar rastro.

Como não deixa rastro o vento sobre o mármore onde passa.

Como não deixa sinal a sombra sobre a calçada.

Todos Sumidos em uma multidão confusa de olhos.

Um ruído de vozes afônicas, quase de folhas contrafôlego atrás dos vidros

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Folhas que só o coração vê e em que a mente não crê340

Percorrer esse cenário de retiro, presente no referido texto de Char que Caproni verteu ao italiano, significa entrar um pouco mais no que a poesia do caproniana se tornou no transcorrer dos anos e dos acontecimentos pessoais e culturais. Em “Foglie”, já não há muitos elementos em que se apegar, caso se procure por narratividade, tendo em vista uma primeira pessoa do plural indefinida e cercada de indefinição, em decorrência das palavras, cuja disposição na página parece faz lembrar a de folhas, espalhadas pelo chão. Folhas dispersas que, no texto, ganham status de seres humanos, o que pode explicar o sentimento de solidão do (s) sujeito (s) poético (s), pois tanto as folhas quanto as pessoas mostram desagregação e quase incomunicabilidade: não se houve mais do que “vozes afônicas, quase / de folhas contrafôlego / atrás dos vidros”. Esta imagem, aliás, do vidro entre as pessoas e o mundo é tipicamente caproniana, como já se sabe. O que se tem, enfim, é um grande vazio, que toma conta de quase tudo. O esvaziamento é humano tanto humano quanto geográfico, se pensarmos que nenhum elemento pode indicar alguma jurisdição. Neste não-cenário – que faz lembrar algo apocalíptico, pós-guerra – , de não- vozes , aparecem apenas folhas, as quais, no entanto, aproximam-se das sensações (“o coração vê”) e se distanciam da razão (“o pensamento não crê”). E o (quase) nada proposto vem conjugado com uma escrita progressivamente hesitante, que dá a impressão de impotência ante a palavra; a conhecida tensão nitzchiana entre o precisar dizer, para que a poesia se realize, e o conhecimento prévio de que a comunicação não existe. Testa, sobre isso, comenta que Caproni “Não acredita que a linguagem tenha valores positivos, mas pelo contrário, seja esconderijo, mentira e que seja privada de uma efetiva função comunicativa”.341 O silêncio passa a ser mais explorado, o que nos faz voltar a Char e a alguns contornos que sua poesia acabou obtendo em épocas subsequentes a dos trabalhos tradutórios de Caproni,

340 “Foglie: Quanti se ne sono andanti... // Quanti. // Che cosa resta. // Nemmeno // Il soffio. // Nemmeno / il graffio di rancore o il morso / della presenza. // Tutti / se ne sono andati senza / lasciare tracia. // Come / non lascia tracia il vento / sul marmo dove passa. // Come / non lascia orma l’ombra / sul marciapiede. // Tutti / scomparsi in un polverio / confuso d’occhi. // Un brusio / di voce afone, quasi / di foglie contrafiato / dietro i vetri. // Foglie / che solo il cuore vede / e cui la mente non crede.CAPRONI, Giorgio. L’opera in versi, op., cit., p. 447-448. 341 TESTA, Enrico. Cinzas do século XX: três lições sobre a poesia italiana, op., cit., p. 110.

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Dancemos às baronias

Vestida de oliveira a Amorosa disse: confia em minha fidelidade infante. e desde então, o vale aberto a encosta que brilha a senda de núpcias invadiram a vila onde a dor é livre sob o vivo d’água.342

não obstante algumas imagens surrealistas que parecem remanescer no francês e que nas composições de Caproni não conseguimos identificar vestígios relevantes. Sabemos, no entanto, que a amizade epistolar entre eles atravessou décadas e, a partir disso, descobre-se que Caproni continuou a ler as últimas obras do outro.343 Com efeito, observa-se, nos dois, o intenso desgaste nos versos, estrofes, rima (não na sonoridade) e métrica. Entretanto, observa-se que, no poema anterior, de 1971, Char, à maneira de Caproni, conserva o enjambement, levando-o ao limiar da possibilidade, em decorrências das bruscas cesuras. O resultado é que, com o mínimo possível de recursos, através de um narrador também em primeira pessoa do plural (todos e, ao mesmo tempo, ninguém), como em “foglie”, descemos às antigas baronias, onde a “Amorosa”, de fidelidade infantil autoproclamada, oferece, nas colinas, oferece (ou socializa?) suas “núpcias”. A reencarnação da descida parece ocorrer pela disposição dos termos, organizados de modo a assemelhar a uma estrada. Conforme ocorre em Caproni, à medida que a linguagem verbal escasseia, o branco da página é chamado ao jogo, oferecendo tantas possibilidades quantas há no jogo de dados mallarmeleano.

342 O nu perdido e outros poemas, op., cit., p. 107. 343 Donzelli traz, por exemplo, no já citado Giorgio Caproni e gli altri: temi, percorsi e incontri nella poesia europea del Novecento (op., cit., p. 84), uma carta datada de 23 de abril de 1986, em que Carproni escreve a Char que relembra o encontro dos dois (27 de fevereiro) e a dedicatória que conseguiu para Les voisinages de Van Gogh, livro que Caproni considerava “maravilhoso”.

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Caproni carregará consigo essas potências ativadas, que divide com Char, mais pertencentes à chave da potência, até seus o final de sua carreira literária. Agamben, em clima de brevíssimo histórico, explica que “O poeta, que havia atingido a excelência tanto na técnica áspera e quase pedregosa de Il passaggio d’Enea na doce de Il seme del piangere”, apresenta no derradeiro Res amissa (termo jurídico retirado do latim cujo significado é “coisa perdida”) uma redução na medida clássica do verso “e as reticências (que Caproni compara ao pizzicato que, no quinteto de Schubert op. 63, quebra o desenvolvimento da frase melódico) marcam a impossibilidade de levar a cabo o tema prosódico”. É daí que surge o termo “aprosódia”. Para reforçar o que está sendo dito, pode-se pensar no poema homônimo à última coletânea de Caproni:

Dela não encontro traço.

......

Veio me ver a fim (disso tenho certeza) de dar-me de presente.

......

Dela não mais encontro traço.

......

Revejo ao findar do dia o rosto minguado brancoflautado...

A manda em renda...

A graça, tão doce e germânica no oferecer...

......

Um vento de choque – um ar quase silício enregela agora o quarto...

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(É lâmina de faca? [...]344

Caproni segue a linha de “Foglie”, mas há mudanças. Os cortes poéticos chegam, aqui, ao seu grau máximo. O pouco que ainda havia de narratividade parece ter desaparecido, transportando o leitor a um clima estilhaçado. Temos, sim, um “eu” poético – nem lírico, nem empírico ou autobiográfico, nem prosopopeico–, mas tão somente “um pouco atento ao que o circunda”, em breve relação com o outro, que nada mais é do que espelho de nós mesmos.345 E o interlocutor, no caso, é uma incerta figura feminina que veio dar um presente (não se sabe qual e se foi realmente dado) e cujos atributos, que a princípio parecem ser germânicos, vão minguando na sequência do poema, tornando-se “branco frautosumido” (mais um neologismo típico caproniano). Descobre-se que a garota, na continuação do texto, não fala, diferente da de Char, com quem não se deveria falar. No meio dessa flutuante relação, existe um espaço: “o quarto”. Este espaço, que em uma casa é o que podemos chamar de nosso, nem de longe representa um local de aconchego, proteção, calor, visto que ele “enregela” com o vento que é “lâmina”. A natureza cortante, mesmo em um lugar que deveria ser privado, é interessante ilustração do sentimento de não-pertencimento que o poeta, com o corpo em Roma e a mente em Livorno e, principalmente, Gênova, faz questão de evidenciar, paulatinamente. Relembremos, por alguns instantes, a presença da lâmina e da faca em Caproni, interesse que ele compartilha com Cabral, ainda que com intensidade e propósito distintos.

3.5 Cabral e Sevilha: lições aprendidas

Sabe-se que o topos espanhol e, por consequência, o nordestino são ativações de potência que aparecem no ato da escrita de Cabral quase que simultaneamente a sua chegada a Barcelona: já em Psicologia da composição se vê deserto e touro. Tudo isso se fortalecerá com o tempo, em conjunto com uma voz poética sempre “preocupada com o processo de composição”.346 Paisagens com figuras dá continuidade a essa maneira de escrita, trazendo, como sugere o título,

344 CAPRONI, Giorgio. A coisa perdida: Agamben comenta Caproni, op., cit., p. 357 e 359. 345 TESTA, Enrico. Cinzas do século XX: três lições sobre a poesia italiana, op., cit., p. 35. 346 PEIXOTO, Marta. Poesia com coisas: uma leitura de João Cabral de Melo Neto, op. cit., p. 137.

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paisagens de Espanha e do Nordeste, isolados ou em simbiose, e, nelas, algumas figuras humanas, como é o caso de Miguel Hernández, vítima da Guerra Civil Espanhola, que é personagem de “Encontro com o poeta”. Outra incorporação do outro e que contribuirá para o construtivismo em ascensão é o do número quatro: dos dezoito poemas do livro, quinze se estruturam em quadras. A inspiração, como se sabe, é em Berceo, que organizava a estrofe com quatro versos, a cuaderna, esquema que, de tão marcante para o poeta, converte-se no título daquele que talvez seja o livro em que as experiências espanholas/andaluzas tenham atingido mais agudamente o binômio “dizer-fazer” em Cabral: Quaderna, publicado em 1960. Converter- se-á, até mesmo, em um poema, feito especificamente para o referido número, denominado “O número quatro”, e que integra o eclético Museu de tudo. Vivendo em Marselha, após ter passado duas vezes por Barcelona e uma por Sevilha – a cidade feita sob medida para ele, como diz, indiretamente, em “Sevilha”, de Quaderna –, Cabral concebe essa obra sob o signo do quatro, como ocorre em Paisagens com figuras e nos outros dois livros publicados juntamente com Quaderna, Dois parlamentos e Serial, que formam a coletânea Terceira feira (1961). Seria um lance de dados em que a quadra prevalecesse ante as demais.347 E foi o que ocorreu com “A palo seco”, que “pode ser considerado mesmo um poema- lema de todo poetar cabralino, em sua dureza e sua enxutez, seu cortante laconismo”. 348 A partir do cante jondo [música profunda], uma das pouquíssimas manifestações musicais apreciadas por Cabral, arma-se uma retórica seca, com rimas de termos próximos pelo significado, cuja levada tenciona aproximar-se do estilo musical flamenco em que é calcada, o qual se realiza apenas vocalmente, a palo seco. Tal característica provavelmente tenha sido o que despertou a atenção do poeta, pela falta de suavização que o violão e outros instrumentos musicais proporcionam. Lembremos que já em Psicologia da composição, em que é desativada a função sonora da flauta de Anfion, Cabral demonstrava ser um poeta à capela. Portanto, é com aporte de um elemento cultural e não geográfico que o texto é construído, utilizando-se de trinta e duas quadras, numeradas de duas em duas, de 1.1 a 4.4, e com versos breves, de incomuns seis sílabas poéticas. Além disso, a brevidade dos versos, como que fatiados à lâmina, conquista realce a partir das cesuras feitas com termos que priorizam o “menos”, o “pouco”, o “escasso”. Talvez esse seja um exemplo mais nítido acerca das ativações poéticas em

347 CAMPOS, Haroldo. “O geômatra engajado”. In: Metalinguagem e outras metas: ensaios de teoria e crítica literária, op. cit., p. 85. 348 Idem, p. 86.

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Cabral, como consequência de potências desenvolvidas. Enquanto para Caproni a concisão vista em nomes como Ungaretti, Montale e Char ou lapidada sob efeito implosões impostas promulgaram um quase abandono da palavra (o enjambement no limite do possível), bem como dos lugares e das pessoas, para Cabral a ideia é deixar que tudo vá ao papel, contanto que mineralizado, semântica e sintaticamente:

1.1. Se diz a palo seco o cante sem guitarra; o cante sem; o cante; o cante sem mais nada;

se diz a palo seco a esse cante despido: ao cante que se canta sob o silêncio a pino.

1.2. O cante a palo seco é o cante mais só: é cantar num deserto devassado de sol;

é o mesmo que cantar num deserto sem sombra em que a voz só dispõe do que ela mesma ponha. [...]349

“Seco”, “nada”, “despido”, “só”, “deserto” são significantes que vão desfalcando o cante e dando o tom a essa “música” que desafia o “silêncio a pino”, uma ressignificação do lugar- comum “sol a pino”, semelhante ao que Caproni fez com “gélido dezembro”, que pode estar associado a um frio interno, de alguém que adentra os próprios suspiros. Diria o próprio Caproni, a despeito dos neologismos que criou (Cabral, igualmente), que, “não se trata, em poesia, de encontrar vocábulos novos, mas sim de saber pronunciar inclusive os vocábulos mais comuns com sabor de novidade (...)”.350 Vê-se que, para que o maciço, digamos, do cante seja encontrado, a estratégia adotada é a mesma eu já se percebia em O engenheiro: “a retificação de

349 Obra completa: volume único, op., cit., p. 247-251. 350 “O papel do jovem ator”. In: CAPRONI, Giorgio. A porta morgana: ensaios sobre tradução, op. cit., p. 96.

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suas imagens”,351 o que a nosso ver, não enfraquece a imagem inicial (no caso do poema acima, o cante e mais nada), pelo contrário, as novas tentativas, de feição vã, engrossam o que se quer dizer. No bojo dessa retificação, fica claro que não haverá facilidade em lutar contra esse silêncio espesso “sem a arma do braço”, como está dito na quinta quartina. Parte da singular imagística surgida do silêncio, que, por sua vez, deriva do nada, que deve envolver o cante, pode se ler no seguinte excerto:

[...] 2.4. Ou o silêncio é uma tela que difícil se rasga e que quando se rasga não demora rasgada;

quando a voz cessa, a tela se apressa em se emendar: tela que fosse de água, ou como tela de ar. [...]

A voz precisa ser intensa, cortante, para que consiga rasgar a tela-silêncio e pairar sobre ela, em um movimento que se repetirá tantas vezes quantas forem necessárias, até que o último verso desta música solitária seja cantado. Por isso, o cante será mais lento do que uma orquestra, por exemplo, tendo em vista que, a cada pausa, a tela, moldável que é, se refaz, como um punhado de pedras que se tem na mão e se joga em uma lagoa uma a uma e, sessada a brincadeira, o que fica é a superfície lisa de água; o movimento será sempre de encontro a: “por ser a contrapelo / por ser a contravento”. Subsequente às três obras de Terceira feira, em Educação pela pedra, a disputa do som contra o silêncio será encontrada, novamente, com o aludido “Tecendo a manhã”, em que o “cante” dos galos cortam a “tela” e, na junção/intersecção de seus cacarejos, formam um toldo provisório sobre a manhã. Depois de falar sobre o que o cante e como ele, com muito esforço e destreza, se coloca no ar, Cabral, elenca uma série de objetos, seres e conjunturas que também “cantam” a palo seco:

351 COSTA LIMA, Luiz. Lira e antilira: Mário, Drummond, Cabral, op. cit., p. 258-259.

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[...] 4.2. A palo seco cantam a bigorna e o martelo, o ferro sobre a pedra, o ferro contra o ferro;

a palo seco canta aquele outro ferreiro: o pássaro araponga que inventa o próprio ferro.

4.3. A palo seco existem situações e objetos: Graciliano Ramos, desenho de arquiteto,

as paredes caiadas, a elegância dos pregos, a cidade de Córdoba, o arame dos insetos. [...]

Em efeito cascata, logo após citados os minérios, visualizamos a cena do choque entre eles e somos impelidos a pensar no som produzido pelo atrito, metálico e seco, munido somente pela reverberação que lhe é inerente, imagem que acaba por ser refeita com “o pássaro araponga”, conhecido também como trinca-ferro, por causa do canto que produz, explicado no poema. A presença de Graciliano Ramos, cuja linguagem evitava o prolixo, pode ser a ponte, o início de uma bifurcação para o subtexto de “A palo seco”, em que parece ocorrer mesma artimanha de muitos outros casos em Cabral (e em Caproni), por fazer parte de seu universo metalinguístico: duas alternativas semânticas correm paralelas. Apesar de ser um caso menos explícito do que, por exemplo, “Alguns toureiros” e Uma faca só lâmina, em que, atividades e coisas não costumeiramente ligadas à poesia são espécies de faróis a orientar poetas em seus empreendimentos, após a seção do referido romancista, vem a parte derradeira, sugerindo que se siga os (poucos) exemplos “de ser a palo seco / dos quais se retirar / higiene ou conselho”. A secura ofertada, porém, não deve ser aceita com submissão, mas “porque é mais contundente”. De qualquer forma, aceitando o leitor/artista o conselho ou não, o cante jondo será sempre ouvido e visto no próprio Cabral, como podemos perceber alusões à figura feminina, presente em oito dos vinte poemas de Quaderna. Ainda assim, Ivan Junqueira parecia estar correto ao dizer

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que a poesia cabralina trata da mulher com “parcimônia”,352 pois, no referido livro, quantitativamente, a temática não se compara a nenhuma outra, aspecto que não se pode atribuir a Caproni, para quem a mulher teve mais espaço na poesia. No entanto, a mulher na poesia do italiano se aproxima da do brasileiro, no sentido de que serão construídas a partir de um esquivar- se de posturas líricas que sobredouram a mulher e o amor. Em Cabral, além disso, sobre o feminino recairá uma articulação formal bastante rígida e quase uniforme: Secchin inventariou a metrificação, o esquema rítmico e a estrofação do livro, chegando à seguinte conclusão de que, “se excluirmos ‘Jogos frutais’ (...), o espaço em que cabe a mulher apresenta oito ou doze estrofes; contém sempre versos heptassílabos; constitui-se por meio de uma única rima toante”.353 Falar da mulher, para Cabral, é falar de qualquer outro tema, já que o tratamento dado é o mesmo, e não é válvula de escape para desabafo acerca de desencontros amorosos, conforme ele próprio disse nessa entrevista de 1980: “Não o utilizo para confessar frustrações amorosas. Descrevo uma mulher sem biografia; o que ela representou na minha vida não vem ao caso”. 354 Há que se notar, porém, que o feminino é bastante ligado ao erótico, em que o corpo é objeto de analogias diversas, o que não quer dizer proximidade do sujeito com o objeto, como ocorre em “Paisagem pelo telefone”, cujo título em si já conota distância. Conquanto a mulher e a casa estejam no mesmo poema, como ocorre, justamente, no mencionado “A mulher e a casa”, e a mulher seja imaginada em casa, a relação operada é outra, é com algo exterior, em que o “fora”, na verdade, acaba por atingir o espaço e quem está nele. Apelando para o sensorial, temos um eu que se dirige, no passado imperfeito, a uma figura feminina, configurando o uso da segunda pessoa, foco narrativo em quase todos os textos femininos de Quaderna, com exceção de “Estudos para uma bailadora andaluza”. O sujeito se limita a uma circunstância exclusiva: sempre que falava por telefone com sua interlocutora, “via- a” em uma sala que parece ter sido projetada por Le Corbusier, tamanha é a conexão que mantém com a natureza, através de suas duzentas janelas. Feita a introdução, sujeito que telefona faz uma descrição do exterior, importante, no texto, para que sejam estabelecidas as conexões posteriores:

352 “Algumas reflexões sobre a poesia de João Cabral de Melo Neto”. In: Reflexos do sol-posto. Rio de Janeiro : Rocco, 2014, p. 353 João Cabral: uma fala só lâmina, op. cit., p. 141. 354 SECCHIN apud MELO NETO. Idem, p. 449.

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[...] Nordeste de Pernambuco, onde as manhãs são mais limpas, Pernambuco do Recife, de Piedade, de Olinda,

sempre povoado de velas, brancas, ao sol estendidas, de jangadas, que são velas mais brancas porque salinas,

que, como muros caiados possuem luz intestina, pois não é o sol quem as veste e tampouco as ilumina,

mais bem, somente as desveste de toda sombra ou neblina, deixando que livres brilhem os cristais que dentro tinham. [...]355

Cabral, para quem o sol costuma ser devastador (seca) ou asséptico (poesia), traz, aqui, uma proposta mais amena: ele simplesmente não deixa que a “sombra” ou a “neblina” impeçam as coisas (e, depois, a mulher) de brilharem. Afinal, o interesse é falar de luz própria, ou “intestina” (expressão cabralina), façanha que não é apenas o sol que possui, mas também as “velas”, intensificadas pelo sal, e os “muros”. Esse conjunto, imbuído de cristais, é o que compõe, em parceria com a camada da casa, as imagens de quem ligava. Do outro lado da linha, a mulher, assim como a vela, não precisaria da claridade na qual se encontra envolvida. Imaginá- la nua ou com poucas vestes, nesse contexto, é melhor, para que nada a atrapalhe de brilhar; ou ainda, pode estar usando algo indiferente a sua luz, por ser já internamente iluminado:

[...] que estavas de todo nua, só de teu banho vestida, que é quando tu estás mais clara pois a água nada embacia,

sim, como o sol sobre a cal seis estrofes mais acima,

355 Obra completa: volume único, op., cit., p. 225-227.

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a água clara não te acende: libera a luz que já tinhas.

No poema, observa-se, então, que as paisagens de Recife e Olinda, litorâneas, associadas à mulher, o que, em Caproni, não se tem dificuldade de encontrar, principalmente, em seus livros iniciais, como é exemplo “Mulher que abre rivieras” [Donna che apre riviere], de Ficções, um poema também em segunda pessoa em que o eu poético metamorfoseia a mulher em marina: “O ar das manhãs / brancas é o teu ar; as “velas / ao vento”,356 comparadas a “bandeiras”, são vestes “tuas assim claras”. Não obstante o poeta italiano lançar mão da sensualidade para retratar a mulher em sua obra, aqui, o olhar é centrado antes no externo do que no corpo. O erotismo de “Paisagem pelo telefone”, no entanto, comparado a cenários pernambucanos, não quer dizer que a mulher em questão seja nordestina: na poesia de Cabral, o Nordeste é macho e a Espanha, fêmea. Enquanto a pernambucana não é temática, a sevilhana atravessa toda a sua obra, como é o caso do poema abaixo, publicado mais de duas décadas depois de Quaderna, em Agrestes (1985):

Portrait of a lady

Nunca vi nem mesmo andaluza, usar as pernas como tu usas:

têm semelhante pedestal e a cintura viva e axial

que as deixa rodar ao redor sem desapegar os pés do andor;

sabem girar sobre as pernas, não fazer girar em volta delas;

não vi nenhum ser o sol, o centro de algum arredor,

dessa gravitação que crias se no centro da sala ficas.

Tuas pernas, eixo de um sistema, fazem girar ao redor delas,

356 “L’aria delle mattine / bianche è la tua aria”, “vele / al vento”, “bandiera” e “tue così chiare”. L’opera in versi, op., cit., p. 49.

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o que vai, vem, fala, se cala, no sistema solar da sala.357

A originalidade do texto fica por conta de a andaluza ser mote para que o eu se dirija à outra mulher, cujas qualidades nem mesmo aquela conseguiu ter. E mesmo que a espanhola não seja o foco, é ela que se tem em mente o tempo todo, ela é parâmetro para que sejam arroladas as características da interlocutora, a qual, como o sol, deixa que o sistema o contorne e não o contrário. A postura forte da mulher do poema parece em sintonia com a de Isabel Archer, personagem do romance de Henry James, cujo título é homônimo ao texto acima. À frente de seu tempo em deseja viajar para terras distantes e ter contato com todas as gentes, sem laços que a prendam a uma vida doméstica e comum como tanto buscavam a maioria das jovens da sua idade, naquele século XIX. Essa intertextualidade, em última instância, pode ter alinhamento, conforme já aludimos, com a própria postura poética de Cabral (e de Caproni), a qual consegue, a um só tempo, manter os pés no chão e evitar lugares (-) comuns.

357 Obra completa: volume único, op., cit., p. 539.

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5 A PALAVRA E O ATO

5.1 Cabral: presença ausente

A partir da década de 60, com Quaderna, Dois parlamentos, Serial e A educação pela pedra, Cabral passa por significativa transformação em sua forma de expressão, adquirindo, através de um trabalho intenso com (ou contra) a palavra, fruto “da lucidez mais extrema”358, o direito de, em Museu de tudo, apresentar oitenta poemas independentes – algo raro em um escritor que procurava interligar os textos, característica, que segundo o próprio poeta, teria tido seu ponto alto em A educação pela pedra –, de temáticas diversas, aparentemente despretensiosas, cujo conteúdo se pode antever, muitas vezes, a partir de alguns títulos: “Acompanhando Max Bense em sua visita a Brasília, 1961”, “Meios de transporte”, “O torcedor do América F. C.” (futebol, a propósito, aparece em três poemas), “Túmulo de Jaime II”. Permite-se, em “Ocorrências de uma sevilhana”, de Agrestes, fazer espécies de poemas-piadas, concisos como os tankas:

Me confiava uma sevilhana sem norte na grande Madrid: “Nem sei de que lado é que vivo; só sei que é a três gritos daqui”. ______

“Nada disso. Sou muito feia se pusessem nas mil-pesetas meu retrato, ninguém queria: nem de troco, as receberia”. ______

Olhando passar uma velha que dá na vista de tão suja: “Aquela? Nunca tomou banho, mesmo debaixo de uma ducha; se alguém a obrigar a duchar-se, abre na ducha um guarda-chuva”. [...]359

358 CAMPOS, Haroldo de. “O geômatra engajado”. In: Metalinguagem e outras metas: ensaios de teoria e crítica literária, op. cit., p. 88. 359 MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único, op. cit., p. 541.

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Trata-se de temas “inúteis”, que encerram em si mesmas suas funções, tal qual Bataille, a propósito, enxerga a arte e a experiência religiosa, ao falar da questão do dispêndio. Mas acreditamos que a ativação de potência lúdica (sem abandonar a lúcida) talvez já aparecesse antes em Cabral, se é que em algum momento esteve ausente. Uma faca só lâmina, de 1955, parecia já adentrar o jocoso, com seu estilo que remete a jogos de adivinhação, alicerçados em uma base firme: trata-se de um só poema, composto de 11 seções, sendo que a primeira e a última servem de prefácio e epílogo e as intermediárias são denominadas por letras (de A a I). Salutar seria evidenciar o quatro, novamente: as seções são estruturadas com versos desse número. O texto, fugidio que é, parece esquivar-se de interpretações que porventura alguém queira fazer. A abertura vem com a proposta de três coisas que poderiam estar dentro do corpo do homem: bala, relógio e faca. Estas, todavia, como era de se esperar, não aparecem metaforizando algo, mas exercendo as funções para as quais elas são realmente designadas: coisa ontológica, logo, pode exercer função outra, caso seja requisitada para tal, oferecendo caráter fugidio, lábil ao texto. Mas, tão logo iniciamos a “Seção A” somos admoestados no sentido de que os objetos citados existem na ausência:

Seja bala, relógio, ou a lâmina colérica, é contudo uma ausência o que esse homem leva.

Mas o que não está nele está como bala: tem o ferro do chumbo, mesma fibra compacta,

Isso que não está nele é como um relógio pulsando em sua gaiola, sem fadiga, sem ócios.

Isso que não está nele está como a ciosa presença de uma faca, de qualquer faca nova.

[...].360

360 Obra completa: volume único, op., cit., p. 205-115.

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Ou então que os utensílios estão e não estão. Ou ainda: não estão, mas deveriam estar. Poderiam ser eles, quiçá, produtos de coisas que olhamos e que nos olham, agem sobre nós, causa-nos uma cisão, como diria Didi-Huberman. Considerando que a faca, de alguma forma, está em nós, sua manifestação será inevitável e, ainda que às vezes adormecida, não será possível esquecer-se dela.

Podes abandoná-la, Essa faca intestina: Jamais a encontrarás Com a boca vazia.

Aliás, é recomendável que ela seja cultivada, sem que ocorra simbiose com o organismo humano e a faca possa continuar cumprindo sua sina metal.

Então se for a faca, maior seja o cuidado: a bainha do corpo pode absorver o aço.

Também seu corte às vezes tende a tornar-se rouco

e há casos em que ferros degeneram em couro.

Cabral, já se sabe, jamais se esqueceu dela e a cultivou. Ainda na Psicologia da composição, Anfion é aproximado de lâmina. Mas antes disso, em Os três mal-amados, descobrimos que Joaquim, “cujo monólogo se desenvolve a partir de metáforas obsessivas da destruição”,361 queixa-se porque o amor devorou seus utensílios, entre eles, navalha, tesouras de unhas e canivete. O cão sem plumas iniciam com a seguinte estrofe: “A cidade é passada pelo rio / como uma rua / é passada por um cachorro; / uma fruta / por uma espada”.362 Temos a impressão de que Uma faca só lâmina é o ponto alto dos indícios que vinham aparecendo há anos, chegando a um patamar em que se tem somente lâmina, objeto que, na prática, exigiria

361 SECCHIN, Antônio Carlos. João Cabral: uma fala só lâmina, op. cit., p. 31. 362 Obra completa: volume único, op., cit., p. 105.

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manuseio cuidadoso. Ou melhor, a prática seria inevitavelmente dolorosa, sendo que não se tem cabo. Sendo a lâmina, linguagem, podemos pensar em um expressar-se afiado, que corte palavras mais do que conceda a elas espaço. E é para essa direção que Cabral segue no desfecho do texto, abordando explicitamente um dos temas mais recorrentes de seus escritos: a metalinguagem. Mais originais, também, pois não se trata apenas de somente falar do assunto, mas incorporá-lo. Assim, para quem tem como ofício lida com a poesia, o ensinamento que a faca promove (bem como o faz a pedra, para Cabral) é item imperioso:

Pois somente essa faca dará a tal operário olhos mais frescos para o seu vocabulário

[...]

mais violência limpa que elas têm, tão exatas, o gosto do deserto, o estilo das facas.

Onde estaria a ludicidade, então, de Uma faca só lâmina? Marta Peixoto nos diz que o

mais surpreendente deste poema rico e complexo, que combina de modo novo muitas das imagens e preocupações da obra anterior de Cabral, talvez seja a apresentação em forma de enigma. Trata-se de uma definição que utiliza uma predicação com o verbo “ser” para descrever, em termos paradoxais ou inesperados, a atividade de um objeto ou conceito escondido, lembrando a adivinhação (que geralmente começa com: “o que é, o que é?”).363

O excerto ressalta o semblante de inovação que o poema-adivinhação de Cabral apresenta. Trata, além disso, de expressões das quais a voz narrativa se serve ao longo do texto, as quais teriam o intento, a princípio, de explicar, definir, mas que acabam por promover dúvida e diversão, como quando alguém nos diz uma charada. Conquanto várias estrofes se desenvolvam a

363 Poesia com coisas: uma leitura de João Cabral de Melo Neto, op. cit., p. 126.

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partir de “Assim como”, “Seja”, “Qual uma”, “Então se”, “Mas se”, esboçando um movimento que dá a impressão de que os objetos principais (faca, relógio e bala) sofrerão comparações a outras coisas, isso acaba por não ocorrer. As comparações se revelam vãs. Serão metáforas inconclusas. E o fenômeno se dá logo no texto introdutório:

Assim como uma bala enterrada no corpo, fazendo mais espesso um dos lados do morto;

[...]

igual ao de um relógio submerso em algum corpo, ao de um relógio vivo e também revoltoso, [...]

assim como uma faca que sem bolso ou bainha se transformasse em parte de vossa anatomia; [...].

O poema, dessa maneira, é impulsionado pela falta, pela busca de algo que não se pode conseguir, mas que, ainda assim, persegue-se fixamente.364 Nunes propõe que, por haver “caça às imagens, sempre deceptiva, mas sempre exigida pelo caráter multissimbolizável da realidade”,365 Uma faca só lâmina se aproxima de A caça ao Snark, de Lewis Carroll. Feito no século XIX, o poema nonsense conta como um grupo de caçadores que tem como líder o Sineiro cruza o oceano à procura do misterioso Snark, ser com curiosas características, como paladar nítido e incoerente, hábito de acordar tarde e lentidão em fazer graça. Para Agamben, quando menos comunicativa é a linguagem, mais próxima da potência e mais distante do ato ela está: a poesia é “uma operação na linguagem, que desativa e torna inoperantes funções comunicativas e informativas desta, abrindo-as para um possível novo (...)”.366 Portanto, quanto mais absurda e lúdica e a arte de Cabral e Caproni, quanto menos explicam, através de sua poesia, seja pelo enjambement inconcluso de Uma faca só

364 Recuperando o subtítulo “Serventia das ideias fixas”, anexado por Cabral na Antologia poética de 1967, com o intento, segundo ele, de facilitar o entendimento da obra. 365 João Cabral: a máquina do poema. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2007, p. 76. 366 “O que é o ato de criação?”. In: O fogo e o relato: ensaios sobre criação, escrita, arte e livros, op. cit., p. 80.

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lâmina, da desorganização de Museu de tudo, pela falta de forma definida da besta de O conde de Kevenhüller ou do reduzidíssimo de Res amissa, maiores são suas potências poéticas, pois muita coisa resta em inspiração. Sobre desinformação, disse Caproni no irônico “As cartas”: “Embaralhar as cartas, / fazer perder a partida. / É a tarefa do poeta? / O escopo da sua vida?”.367 Como consequência, o que é latente na obra dos poetas em foco, ocasionará latências nos leitores, ensimesmados nas entrelinhas. Além Uma faca só lâmina, há mais um escrito de Cabral que poderia estar no rol de seus textos mais descontraídos (e contraídos, ao mesmo tempo), a ponto de o estudioso português Arnaldo Saraiva dizer que, caso tivesse que ser inserido em alguma coletânea, seria em Museu de tudo. Trata-se de Aniki Bóbó, publicado em fins dos anos 50, com tiragem baixa, e que foi relançado em 2016, em uma edição fac-similar comentada por Augusto Massi e Sérgio Alcides (texto verbal) e Zoy Anastassakis e Elisa Kuschnir (texto visual). O texto conta com as ilustrações do designer Aloísio Magalhães, primo de Cabral. Na verdade, em entrevista, o poeta conta que os desenhos vieram primeiro: “escrevi as ilustrações, interpretando os desenhos (que são coloridos). (...) Aniki Bóbó, me disse Aloisio, é o nome de um brinquedo de criança de Pernambuco (de que não me lembro)”.368 A aproximação ao universo infantil, levantada por Aloísio, parecem se confirmar através de algumas cartas que ele enviou ao primo, as quais demonstram a forma incomum com que o remetente referia-se aos filhos do destinatário, na despedida: “Viva pois, caríssimo. Lembranças a Stella, anikis-bobós e um abraço para você do Aloisio”.369 Apenas “anikis” também é utilizado.370 De qualquer maneira, não há como negar o clima descontraído emanado já na capa de Aniki Bóbó, preparando o leitor para o que vem a seguir: as imagens delicadas, quase rupestres, ao modo de Miró, seguidas por uma escrita que, em vez de trazer um rigoroso projeto de construção de versos e estrofes – apesar de não abrir mão da divisão em quatro pequenas partes –, concorda com elas, mais solta, fluente. A estruturação é em prosa, ratificando a verve narrativa de Cabral,

367 “Le carte: Imbrogliare le carte, / far perdere la partita. / È il compito del poeta? / Lo scopo della sua vita?”. CAPRONI, Giorgio. L’opera in versi, op., cit., p. 363. 368 MAMEDE, Z. Civil geometria: bibliografia crítica, analítica e anotada de João Cabral de Melo Neto, 1942-1982. São Paulo: Nobel: EDUSP, 1987, p. 34-35. 369 MELO NETO, João Cabral. Carta de Aloisio Magalhães. Recife, 16 de outubro de 1954. Fundação Casa de Rui Barbosa. JCMN CP 633. 370 Para maiores informações, ver: PETERLE, Patricia; SCHUEROFF, Alencar. “Aniki Bóbó: jogo de facas”. In: Texto poético. V. 14, n. 25, p. 543-561, jul./dez. 2018.

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sobre a qual temos discutido. Dentro desta informalidade, é interessante observar que o personagem principal é chamado somente pelo seu primeiro nome, passado a impressão que se de que o poeta possuía certa familiarização como o que lhe foi apresentado antes de sua composição. Logo na primeira parte, a voz narradora confere a Aniki o único adjetivo que ele recebe: destemido, termo que dá à história uma nota de aventura. O perfil do herói é completado com cores e coisas, as quais, aliás, combinam mais com o fazer poético cabralino. Aniki possui o azul e o encarnado, “como outros têm na vida um burro e um cavalo”; contudo as duas cores tinham funções diversas: “eram na sua vida um amigo e um inimigo”. Em seguida, o azul é associado ao “seu colchão de molas, líquidas como as do mar” e “suas muitas lâminas de barbear”, as quais eram “raras”. Há um aviso, entretanto: as lâminas “de perto eram vermelhas por antecipação”. E, “Do alto de seu azul Aniki via tudo encarnado”, o que fez com que ele empreendesse jornada ao um fantasioso e pomposo “país dos sociólogos”, ridicularizado através da frase “é um esqueleto com nádegas obesas e verdes”, como é satirizado o “país das maravilhas”, com sua rainha nada justa e comedida, mas déspota e excessivamente irritadiça. Aniki, por fim, limpa com suas armas afiadas “o país de todas as cores, senão do azul e do encarnado”. Aliás, suas lâminas permanecem sujas de vermelho, pelo sangue derramado na batalha, que consistiu em assepsia. A passagem dos/pelos sociólogos é irônica, porque a classe de Gilberto Freyre (o terceiro primo de Cabral por nós citados até agora, se contarmos Aloisio e Bandeira), tida como distinta e culta, vive em um país que soa pachorrento. Deste espaço, Aniki e sua “linda coleção de lâminas” extirpam as cores. Saraiva chama a atenção para o “verde com a terra viçosa, mas onde, como na seca, se impõe o trabalho de limpeza, e não só na paisagem natural como na social – dos sociólogos que o autor também ironizou em Morte e Vida Severina”. Mas há que se perceber que a assepsia total não ocorre, porque o azul e o encarnado persistem no personagem, dado esse que pode nos remeter a Anfion e sua busca pelo deserto seco, mais mineral do que vegetal, tão desprovido de som que faz sua flauta silenciar. Todavia, mesmo Anfion estando “desperto e ativo como / uma lâmina”,371 no ocaso, a flauta volta a soar, como possível metáfora do embate entre a vontade do poeta e a do poema; “a poesia é como um ser vivo, voluntarioso, e alheio ao controle do poeta – que ameaça a criação racional”, afirma Peixoto ao se referir a “O que se diz ao editor a propósito de poemas” (A escola das facas).372 A

371 Obra completa: volume único, op., cit., p. 89. 372 Poesia com coisas: uma leitura de João Cabral de Melo Neto, op., cit., p. 211.

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existência de Aniki é, portanto, tensa. E de profunda latência. As lâminas “quando vistas de perto eram vermelhas por antecipação”, o que indica que o herói tinha para si tanto o azul quanto o vermelho. Para além do “para si”, porém, poder-se ia acrescer um “em si”. Inserindo essa característica à discussão geral deste trabalho, diríamos que é como ser fosse a “arqueologia da subjetividade”, de acordo com a doutrina aristotélica, contida na potência, que também é privação.373 Na verdade, a tensão é dupla em Aniki: são duas forças (cores) contrárias que se enfrentam e, serem colocadas em ato, é com resistência que o fazem, pois há na possibilidade, a privação.

Figura 5. Ilustração, feita por Aloísio de Magalhães, em que as cores representam, em Aniki, imanência.

Essa tensão do personagem aventuresco parece, na verdade, resumir esta fase final de obra de Cabral, entre a brincadeira e a seriedade, por assim dizer. O fato de o poeta abrir mão, mais no dizer do que no fazer, não significa que uma aura de preocupação não está rondando, a considerar

373 AGAMEN, Giorgio. “O poder da potência”. Rev. Dep. Psicol.,UFF vol.18 no.1 Niterói Jan./June 2006, p. 15.

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a abertura de A escola das facas, citada no parágrafo acima, livro subsequente a Museu de tudo. Entre estas duas coletâneas mais livres, uma espécie de desabafo para expressar o aspecto escorregadio das palavras: Cabral parece se dar conta da impossibilidade ter se conter o poema integralmente. Levando isso em consideração, por que não soltar um pouco as rédeas do “potro”? Se “A palo seco” é uma espécie de manifesto que não titubeia em relação ao fio da navalha com o qual o poema deve conviver, “O que se diz ao editor a propósito de poemas”, dedicado, sugestivamente, a José Olympio (e Daniel), faz o contrário. Em um tom que talvez seja o máximo de confessionalidade da qual o poeta pernambucano é capaz, são reveladas, em primeira pessoa, preocupações concernentes à escrita: se por um lado há perigos na lida com a palavra, por sua quase vontade própria, por outro existe a inevitável necessidade de expressão, inerente ao verdadeiro poeta, para recuperar Rilke e suas cartas ao jovem poeta, inseguro; ou, na frase popular de entrada para Sagarana, de Guimarães Rosa, “Sapo não pula por boniteza, mas porém por precisão”. A justificativa para a inevitabilidade da poesia da escrita, apesar de tudo, é orgânica:

Eis mais um livro (fio que o último) de um incurável pernambucano; se programam ainda publicá-lo, digam-me, que com pouco o embalsamo.

E preciso logo embalsamá-lo: enquanto ele me conviva, vivo, está sujeito a cortes, enxertos: terminará amputado do fígado,

terminará ganhando outro pâncreas; e se o pulmão não pode outro estilo (esta dicção de tosse e gagueira), me esgota, vivo em mim, livro-umbigo.374

Utilizando o itálico, recurso constantemente difundido por Caproni em suas introduções, o eu empírico “dá continuidade à metáfora escrita-câncer”,375 que “O espelho partido”, encontrado no livro precedente de Cabral, já tinha iniciado. A “doença”, presente no poema, “sublinha com ironia autodepreciativa a força autônoma da poesia. Por mais cirurgião ou mesmo agente

374 MELO NETO, João Cabral. Obra completa: volume único, op., cit., p. 417. 375 PEIXOTO, Marta. Poesia com coisas: uma leitura de João Cabral de Melo Neto, op., cit., p. 210.

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funerário que o poeta se faça, seu controle é bastante limitado (...)”.376 As intervenções (cirúrgicas), contudo, não param, percorrendo as várias etapas da criação: a “mão que treme”, dantesca, comparecerá assiduamente, seja na caneta ou na máquina de escrever:

Poema nenhum se autonomiza no primeiro ditar-se, esboçado, nem no construí-lo, nem no passar-se a limpo do datilografá-lo.

Um poema é o que há de mais instável: se multiplica e divide, se pratica as quatro operações enquanto em nós e de nós existe.

Um poema é sempre, como um câncer: que química, cobalto, indivíduo parou os pés desse potro solto? Só o mumificá-lo, pô-lo em livro.

As modificações que fatalmente ocorrerão, salutar que se diga, nunca serão para mais. Enquanto o estágio é engendramento, inspiração, qualquer uma das quatro operações pode ser ativada, mas quando se materializa em ato, a tendência é a predominância da subtração. Somente depois da “mumificação” é que a equação se resolve. Ao que se percebe, o processo é debilitante, o que pode explicar o primeiro verso, em que Cabral segreda a vontade de que seja o último livro. Não foi. Haveria, ainda, espaço para uma poesia de fundo histórico falando sobre a vida e destino de Frei Caneca (Auto do frade), mais memórias do Nordeste e da Espanha (Agrestes, Crime na calle Relator e Sevilha andando).

5.2 Caproni: ausência presente

A iniciativa de colocarmos Caproni e Char no mesmo subcapítulo quis garimpar ativações potências a partir da atividade tradutória, cujo auge corresponde ao início da deterioração das fibras semânticas do verso caproniano, causadora do afastamento cada vez maior entre texto e contexto, e da anarquia instaurada em relação à voz discursiva. São esses os elementos através

376 PEIXOTO, Marta. Poesia com coisas: uma leitura de João Cabral de Melo Neto, op., cit., p. 210.

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dos quais, a custo, alguns motivos podem ser observados, aqui e ali, como as interrogações acerca da (in) existência de Deus, que o próprio Caproni chamou de “ateologia”, e as discussões envolvendo a linguagem.377 Enquanto em Cabral a palavra sempre foi assunto, metamorfoseada e metaforizada em quadrúpede (touro e potro), cuja força só fez crescer com o tempo, esticando as cordas da rédea ao limite da tensão, no italiano inicia a tomada de consciência de que a “linguagem não dá vida às coisas, mas as faz morrer, as esvazia, as dissolve”.378 Em O muro da terra, publicado em 1975, o poema “Tudo” parece manifestar, já com a nova maneira de poetar, o que viria dali em diante:

Tudo Tutto

Queimaram tudo. Hanno bruciato tutto. A igreja. A escola. La chiesa. La scuola. O município. Il municipio.

Tudo. Tutto.

Até a relva. Anche l’erba.

Até, Anche, com o campo-santo, a fumaça col camposanto, il fumo tênue da chaminé tenero della ciminiera da fornalha. della fornace.

Ilesa, Illesa, alvorece apenas a areia albeggia sola la rena e l’acqua: e a água: a água que treme l’acqua che trema alla mia voce, à minha voz, e espelha e specchia lo squallore a esqualidez de um grito di un grido senza sorgente. sem nascedouro.

A gente La gente não sabe mais onde fica. non sai più dove sia.

Queimada também a tasca. Bruciata anche l’osteria.

Também o ônibus. Anche la corriera.

Tudo. Tutto.

Não resta sequer o luto, Non resta nemmeno il lutto,

377 TESTA, Enrico. Cinzas do século XX: três lições sobre a poesia italiana, op., cit., p. 110-111. 378 Idem, ibidem.

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no cinza, a esperar a parva nel grigio, ad aspettar la sola (inexistente) palavra. 379 (inesistente) parola.

Ao término de seu discurso, o viajante cerimonioso deseja, aos que ficam, “Boa continuação”, o que quer dizer que, após sua descida, na estação desconhecida, o doutor (sabedoria), a mocinha (amor) e o sacerdote (religião) prosseguiriam, mesmo sem sua presença. Assim, tem-se a impressão de que as pessoas das quais ele se despediu são, agora, retomadas, não mais para uma despedida. O eu poético de “Tudo” parece ter diante de si um ponto indiscriminado e completamente destruído, onde “igreja” (sacerdote) e “escola” (doutor) – o amor nem sequer é citado – estão inacessíveis a qualquer um. Nem a verticalidade de Gênova, nem os Fossi de Livorno, nem as ruas suburbanas de Roma, mas um não-lugar, a exemplo do que ocorrerá em “Foglie”, da coletânea subsequente. Por assim ser, se tem chão para comportar malha férrea ou rodoviária, por onde um “ônibus” pudesse trafegar. De qualquer maneira, ele não teria onde parar ou fazer baldeação, pois não há estação ou “tasca”. Não restou sequer relva a fumaça, o fumo da cerração, que circundava a parada do excessivamente polido viajante. A devastação toma conta dos espaços e de quem por eles transita, razão pela qual não se tem com quem interagir ou para quem se dirigir. A própria voz do sujeito e, por conseguinte, da linguagem, é posta em xeque, na estrofe do meio do poema, que é, paradoxalmente, a que utiliza a maior quantidade de palavras. Nesse cenário onde apenas o mineral resiste, ocorre a quase simbiose entre a voz do sujeito e o espelho d’água, no sentido de que o som “esquálido”, espectral, de um se assemelha ao do outro. Fala-se de uma atmosfera sussurrante, em que não se pode identificar quem está falando. Se é que alguém esteja. Ante o luto, no “cinza” – palavra que pode ser pensada como substantivo ou adjetivo –, o que se tem a fazer é esperar pela palavra, como se ela estivesse resguardada em algum lugar com alguém, conforme o evangelho segundo João: “No princípio era aquele que é a palavra. Ele estava com Deus e era Deus. Ele estava com Deus no princípio”.380 Entretanto, o que se tem é uma palavra “sola” [só], se não se levar em conta “parva”, da tradução, e “inexistente”. A terra de Caproni seria, então, a escuridão de “Gênesis” sem ter por trás a palavra de Deus que, a qualquer

379 CAPRONI, Giorgio. A coisa perdida: Agamben comenta Caproni, op., cit., p. 182. 380 BÍBLIA SAGRADA NVI . Tradução Comissão de Tradução da Sociedade Bíblica Internacional. São Paulo : Editora Vida, 2015, p. 1477.

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momento, dirá “Haja luz”.381 Porém, Caproni sabe que não pode não fazer uso da palavra, deixá- la somente em potência, fazer de sua poesia, música instrumental. A musicalidade, cativada desde os tempos de violinista, acompanhará, doravante, as cesuras bruscas, como se percebe na afinação que a palavra isolada “tutto”, a partir do título, concede à tessitura do poema: as repetições de “tutto”, interligadas a “fumo” e “lutto”, um tripé que pode resumir o nada e a melancolia a ele inerente. As incursões em metalinguagem, conquanto a recorrência, não se sobrelevará na comparação a outras reflexões, contudo, tal qual ocorreu a Cabral, a linguagem está em jogo, ainda que implícita, tendo em vista que a retórica não se encerra nela mesma. E quando a linguagem é tema, a estrutura poética é coerente com o dizer. É exemplo disto o que ocorre com “As palavras”, poema contido (nos dois sentidos) em O franco caçador:

As palavras. É certo. Dissolvem o objeto.

Como a névoa as árvores, O riacho: a barcaça.382

De forma quase haikaística, o texto apresenta quatro versos breves, divididos em dois grupos. Enquanto o primeiro reitera a inexistência da palavra nomeante, o segundo propõe imagens que metaforizam tal conceito: o sufocamento das árvores pela névoa e da barcaça pela água se aproxima daquilo que as palavras provocam nas coisas, elucubração que poderia ter sido retirada de Tractatus Logico-Philosophicus, de Wittgenstein, obra que, com estilo também austero e direto, faz pensar acerca das limitações da palavra em sua tentativa de abarcar a movediça realidade. A leitura visual do poema, inserida neste novo momento de dialética verbal- visual, em que os vazios da página são também “falantes”, fica por conta da disposição dos dois blocos, os quais, paralelos, formam uma espécie de mata ciliar. No “riacho”, no vazio, talvez pela “barcaça” já ter sido “dissolvida”. “As palavras” não é o único exemplo de alegorização da linguagem. Em O conde de Kevenhüller, porém, a ideia é levada a um patamar diferente: não há nenhum tipo de “preparação

381 BÍBLIA SAGRADA NVI, op. cit., p. 3. 382 “Le parole : Le parole. Già. / Dissolvono l'oggetto. // Come la nebbia gli alberi, / il fiume: il traghetto”. In: CAPRONI, Giorgio. A coisa perdida: Agamben comenta Caproni, op., cit., p. 234-235.

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de terreno” que possibilite ao leitor saber, de antemão, sobre o que se discorrerá. É provável, então, que o sentimento seja de surpresa:

A porta ...... A porta branca...

A porta que, da trasparência, porta à opacidade...

A porta condenada...

A porta cega, que leva... onde já se está, e arrancada fica brancomurada e intransitiva...

A amorfa porta que conduz obtusa e labiríntica (fechada em seu escancarar-se) lá onde nenhuma entrada pode dar ádito...

Onde nenhum cômodo ou cidade abre-se ao olho, e não move – na estagnação do vago – ramo ou pensamento uma só aparência...

Uma só fenda de luz (ou de agulha) na mente...

A porta morgana:

a Palavra. 383

383 “ A porta: ...... La porta / bianca... // La porta / che, dalla trasparenza, porta / nell’opacità... // La porta / condannata... // La porta / cieca, che reca... / dove si è già, e divelta / resta biancomurata / e intransitiva... // L’amorfa / porta che conduce ottusa / e labiríntica (chiusa / nel suo spalancarsi) là / dove nessuna entrata / può dar àdito... // Dove / Nessuna stanza o città / S’apre all’occhio, e non muove / – nel ristagno del vago – / ramo o

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O texto possui movimento vertical, de porta, recheado de enjambements, o que pode criar no leitor o desejo de leitura veloz, como se estivesse lendo prosa. Agamben, contudo, alerta para as cisões que os versos apresentam, as interrupções através das reticências, as quais “assinalam precisamente a impossibilidade de desenvolver o tema prosódico para lá do seu núcleo constitutivo (...)”.384 As reticências, com frequência, são um modo de omitir algo que se pode inferir; é uma estratégia para serve para insinuar. Se um passarmos rapidamente pela literatura brasileira, veremos que Paulo, narrador de Lucíola, clássico de José de Alencar, vive dilemas ao contar sua história com a cortesã Lúcia, pois não sabe se deve ou não expor as “imoralidades” que ocorreram. Pensa nos três pontos, mas se recusa: “Com efeito, a reticência não é a hipocrisia no livro, como a hipocrisia é a reticência na sociedade?”.385 O referido recurso gráfico seria, por conseguinte, um modo de camuflar, ludibriar. No caso de Caproni, o que fica acobertado através desse sinal que, provavelmente, foi incorporado a partir das traduções de Céline? Coisa alguma. Uma das características da porta é ela ser “intransitiva”, o que, gramaticalmente, significa que não necessita de complemento; nada precisa transitar depois. Além de “intransitiva”, a porta conserva diversos outros adjetivos. Sobre eles, Daniela Baroncini explica:

O acúmulo claustrofóbico dos adjetivos – ‘condenada’, ‘cega’, ‘arrancada’, ‘brancomurada’, ‘intransitiva’, ‘amorfa’, ‘obtusa’, ‘labiríntica’ – transmite negatividade de uma palavra que, sendo murada, não permite o trânsito da luz, impedida pelo paradoxo de um movimento estático (‘fechada em seu escancarar- se’), sufocada na obscuridade imóvel de um pântano nebuloso (‘na estagnação do vago’) que representa o Nada.386

A presença sufocante, “claustrofóbica” dos adjetivos teria a função de explicar como é o substantivo, o que não acontece, a julgar pelo aspecto fugidio que encerram. A porta, entre outras coisas, não enxerga, não tem forma, nem direção certa. E as incertezas aumentam com a

pensiero una sola / parvenza... // Una sola / cruna di luce (o d’ago) / nella mente... // La porta / morgana: // La Parola”. CAPRONI, Giorgio. L’opera in versi, op. cit., p. 609. Tradução de Patricia Peterle. 384 Ideia de prosa, op. cit., p. 30. 385 São Paulo : Ática, 1991, p. 38. 386 “accumulo claustrofobico degli aggettivi – “condannata”, “cieca”, “divelta”, “biacomurata”, “intransitiva”, “amorfa”, “ottusa”, “labirintica” – trasmette negatività di una parola che in quando murata non consente il transito verso la luce, impedita dal paradosso di un movimento statico (“chiusa nel suo spalancarsi”), soffocata nell’oscurità immobile di una palude nebbiosa (“nel ristagno del vago”) che rappresenta il Niente”. Caproni e la poesia del nulla, op. cit., p. 188.

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utilização do neologismo “brancomurada”, o qual, não obstante a imprecisão que também lhe é inerente, abarca elementos caros a Caproni: o branco, do nada, e o muro. A palavra está, logo, murada, cercada, privada de estabelecer contado com as coisas, nomeá-las. E mesmo que quisesse, não é capaz, é “obtusa”. Outra designação pouco explicativa em “A porta” é “morgana”, numa referência a uma lenda da Távola Redonda, que nomeia “o fenômeno da ‘fata morgana’”, que é a miragem devido a uma refração ótica que se verifica nos estratos da atmosfera em particulares condições de temperatura”.387 Baroncini sugere, inclusive, que o poeta italiano pode ter bebido em La tranchée, de Apollinaire, mais um traduzido, que cita o ser mitológico. Consistiria “morgana” em uma possibilidade outra de adjetivo, nem concreto, nem abstrato, nem neológico. O resultado, todavia, parece ser o mesmo dos outros, pois uma miragem pouco explica, por ser fundamentalmente volátil. Na verdade, O conde de Kevenhüller, último livro que Caproni publicou em vida, pode ser inteiro voltado à linguagem, se pensarmos que, em sua primeira página, o que se tem é uma estratégia de expressão não encontrada na obra de Cabral: espécie de cartaz que, para todos os efeitos, não foi produzido pelo poeta, mas reproduzido e ressignificado, ação de linguagem que poderia situar a obra em um contexto contemporâneo: Em O gênio não original: poesia por outros meios no novo século, de Marjorie Perloff, esse tipo de apropriação recorrente no século XXI, mas já adotado por Caproni (uma única vez) no século anterior, em conjunto com diversos outros autores. Traçando um histórico das citações na literatura, a estudiosa diz que a reação de Edgell Rickword, “Poeta da época da Primeira Guerra Mundial” e “estudante de poesia francesa”, ao ler The waste land [A terra devastada] (1922),388 foi negativa, pois, segundo ele, “a citação que deriva de outros autores, mina e destrói a própria essência da poesia, que é (ou deveria ser) a expressão da emoção pessoal – a emoção expressa, é claro, nas próprias palavras do poeta, inventadas para esse exato propósito.389 Essa ideia, ligada a um ideal romântico alemão do século XVIII em que o eu ficava preso em sua subjetividade, não poderia admitir nem as citações de livros religiosos e de obras obscuras em idiomas diversos, feitas por Eliot, nem as diversas modalidades de intervenções de Benjamin, em

387 BARONCINI, Daniela. Caproni e la poesia del nulla, op. cit., p. 189. 388 Tradução Gualter Cunha. Lisboa : Relógio d’Água, 1999. 389 Op. cit., p. 25. Grifo da autora.

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Das Passagen-Werk [Passagens] (1927-40),390 livro construído por meio de muitas notas copiadas e colagens de imagens diversas, como fotografias. Essas obras são paradigmáticas no sentido de impulsionarem o surgimento de uma nova ideia de originalidade, a do “gênio não original”, condizente com a era da internet, que “fez com que todos nós nos tornássemos copistas, recicladores, transcritores, colagistas e recontextualizadores”.391 Dentre os diversos exemplos de multiplicidade de linguagens do nosso século, incorrendo em natural polifonia, pela mescla de vozes de outrem, públicas, e das criadas pelo autor, particulares, Perloff evidencia o de Susan Howe, poeta que, em The midnight [A meia-noite] (2003), realiza algo análogo ao que ocorre com O conde de Kenvenhüller. No meio do poema- livro da norte-americana, composto, entre outras coisas de fotografias tratadas, mapas e fac- símiles, há um item chamado “ALB”. Nele se encontra um selo da tia da autora, Louie Bennet (Aunt Louie Bennet [Tia Louie Bennett]), seguido de um texto informativo, com dados biográficos dela, uma sufragista irlandesa da década de 10. Antes disso, porém, Howe havia inserido a imagem da folha de rosto do livro da tia The irish song book with original irish airs [O livro irlandês de música com originais ares irlandeses], na qual estava a seguinte inscrição: “Esse livro possui tanto valor para Louie Bennett, que ele não pode tê-lo para qualquer outro ser humano”. Assim, a advertência arremata: “não deixe qualquer outro ser humano mantê-lo em sua posse”. Percebe-se, aí, a incongruência das expectativas, sendo que o livro passou para outras mãos (está em The midnight) e, ao lado da folha de rosto, há um desenho de criança, feito antes de ele virar citação. “Aqui (...), o que começa como uma descrição factual de um objeto, nesse caso um livro, rapidamente fica oblíquo”.392 É como se a seriedade documental sofresse a introjeção de um verme infinito no texto que corrói o sentido tradicional, abrindo fendas de leitura.

390 BENJAMIN, Walter. Passagens. Tradução Irene Aron. Belo Horizonte : Editora da UFMG, 2006. 391 PERLOFF, Marjorie. O gênio não original: poesia por outros meios no novo século, op. cit. p. 93. 392 Idem, p. 175.

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Figura 6. Folheto de abertura de O conde de Kevenhüller. 393

393 “Neste momento chega ao conhecimento da Conferência Governamental que a Campanha deste Ducado encontra-se infetada por uma Besta feroz de cor cinzenta mosqueada quase de preto, da grandeza de um grande Cão, e por quem já foram devoradas duas Crianças. Ciosa a dita conferência por dar a todos as mais solícitas providências, que possam servir para libertar a Província de dita infestação, dispõe que tenha que ser imediatamente organizada uma geral Caça com todos os Homens de Armas das Comunidades, com o Satelismo de todas as Cúrias, e com as Guardas Alfandegárias. Ao mesmo tempo torna igualmente conhecido que por aquela Tesouraria da Câmara será pago o prêmio de cinquenta Zequins efetivos a quem quer que, no ato da supracitada Caça geral, ou em outra ocasião, tiver morto a mencionada Besta feroz: quantia que será imediatamente desembolsada pelo Régio Caixeiro, Dom Giuseppe Porta, em vista do Certificado que será despachado pelo Régio Delegado da Província em cujo Território a dita Besta for morta. Milão, 14 de julho de 1792. O CONDE DE KEVENHULLER”. CAPRONI, Giorgio. A coisa perdida: Agamben comenta Caproni, op., cit., p. 250-251.

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No livro de Caproni temos um aviso que inspira seriedade e, até mesmo, amedrontamento, em função de uma besta que está à solta e que precisa ser capturada. Acerca da veracidade da chamada, em entrevista ao jornal Il Tempo, em 1986, o poeta diz que o título da coletânea “nasce de um fato histórico bem preciso. De fato, este conde de Kevenhüller é o assinante de um “Aviso” (com data de Milão, 14 de julho de 1792) que exortava a população a uma ‘caça geral contra uma feroz besta, de cor (...) quase negra (...)’”, com a promessa de recompensa pela captura. “Mas a besta, inexistente, assume as cores (...) do irracionalismo e da superstição”.394 Desse modo, assim que a leitura é iniciada, a sensação que se tem é de um clima que se afasta da realidade do anúncio. Percorre a coletânea uma personagem, a besta, em situações diversas, ora presa, acuada, ora assassina, amedrontadora. Contribui para a relativização desse ser o fato de que, em nenhum momento, sua aparência física é descrita com precisão, sendo chamada de “labiríntica”, em “Diceria” [Rumor], adjetivo que pode aproximar a referida figura ao mitológico Minotauro. Indefinido na constituição, pelo conhecido hibridismo homem-touro, viveu em um labirinto, na ilha de Creta, construído pelo rei Minos, com personalidade furiosa, motivo pelo qual Dante o coloca no sétimo círculo de seu “Inferno”. O monstro caproniano, por sua vez, em decorrência de seu caráter anfíbio, tanto psicológico quanto psicológico, propicia espaço para “intromissões” diversas. Parece se tratar de mais uma potência represada em ato que, como consequência, instiga diversas possibilidades subjetivas em quem lê. A propósito, Caproni que a besta pode ser a representatividade do mal, podendo “estar em todos os meandros da vida humana: Deus, o próprio eu, a morte, o medo, a palavra, a linguagem”.395 Acompanha a crise na-da linguagem, então, outras crises, como a de Deus. Temos visto que, juntamente com a despedida que os anos 60 promoveram acerca de uma inteireza nos versos capronianos, em que narrativas eram construídas e a estrutura do soneto era aproveitada, são ativadas potências questionadoras acerca da existência de Deus, através de vozes poéticas que o abandonam ou se sentem abandonadas por ele, à semelhança do que acontece com Cristo em As flores do mal, representado “só como metáfora fugaz, ou como o abandonado por Deus”,396

394 “nasce da un fatto storico ben preciso. Difatti, questo conte di Kevenhüller è il firmatario do un “Avviso” (datato Milano 14 luglio 1792) che esortava la popolazione a una “generale caccia contro una foroce bestia, di colore (...) quasi in nero (...)” e “Ma la bestia, inesistente, assume i colori (...) dell’irrazionalismo e della superstizione”. 15 de maio de 1986. Fondo Caproni. Gabinetto Scientifico Letterario G.P. Vieusseux. Florença, Itália. 395 PETERLE apud CAPRONI. “Limites do indizível: ruínas na-da linguagem”. In: A palavra esgarçada: poesia e pensamento em Giorgio Caproni, op. cit., p. 85. 396 FRIEDRICH, Hugo. Estrutura lírica moderna: da metade do século XIX a meados do século XX, op. cit., p. 47.

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instaurando a ruína do cristianismo na poesia moderna. Quando o viajante cerimonioso se despede do “sacerdote”, pois, não quer dizer que não se tocará mais no assunto, mas estava dando início a um processo que percorreria, com uma progressiva leveza,397 os poemas a partir de então, não obstante a profundidade filosófica do tema. Nesse ponto, encontramos distinção em relação a Cabral: em entrevista de 1986 a Xico Sá, ele conta como Helena Vieira da Silva, pintora portuguesa, ao ler Pedra do sono, ficou impressionada com “a ausência terrível de Deus”.398 Sobre isso, revela o próprio Cabral: “Eu sou um sujeito indiferente, eu não sou um materialista polêmico nem anticatólico. Tem gente que vive se torturando, se Deus existe. Para mim é simplesmente um assunto que não se coloca”.399 Um posicionamento que talvez se justifique pela oposição aos ensinamentos do colégio marista, expressada em poemas como “Teologia marista” (Agrestes), cujo enredo versa sobre as aulas de Apologética, que “iam pelas janelas”, 400 alusão à falta de atenção concedida às explicações do professor. O desalento ante a perspicácia da linguagem não impede Caproni de continuar escrevendo: apesar das fraturas causadas, a sensação de que os olhos de Deus, que deveriam estar em toda a parte, “observando atentamente os maus e os bons”,401 não estão voltados para ele, não o afasta de discutir sobre. Ocorre, assim, o discurso que busca uma fuga “para além de qualquer figura familiar do humano e do divino”,402 mas que, paradoxalmente, só pode se realizar expressando-se. Poderia ser esse um tipo de religiosidade que, em seu dizer, evita o transcendental, mas em seu fazer, reflete sobre ele. O sagrado estaria, dessa forma, circunscrito apenas ao próprio texto, o que faz recordar as reflexões de Bataille e sua negação da transcendência imputada pelo cristianismo, que trouxe Deus para o mundo do trabalho. A partir desse prisma, a experiência religiosa existe, contanto que essencialmente interior e soberana, no sentido de que nada se ganha, não se espera nada em troca, não se tem projeto. É o mais puro

397 PEREIRA, Prisca Augustoni de Almeida. “A solidão sem Deus nos versos de Giorgio Caproni. In: PETERLE, Patricia (org). A literatura brasileira na Itália: sob o olhar da tradução. Tubarão : Copiart, 2011, p. 24. 398 MELO NETO apud ATHAYDE. Ideias fixas de João Cabral de Melo Neto, op. cit., p. 86. 399 Idem, ibidem. 400 MELO NETO, João Cabral. Obra completa: volume único, op. cit., p. 527. 401 BÍBLIA SAGRADA NVI , op, cit., p. 891. 402 AGAMBEN, Giorgio. “Desapropriada maneira”. In: CAPRONI, Giorgio. A coisa perdida: Agamben comenta Caproni, op., cit., p. 28.

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dispêndio. “Insisto no desperdício que se intensifica apesar da necessidade de uma realização de sentido contrário”.403 Res amissa, obra em que até mesmo a besta proteiforme, como frágil ente material para dar algum direcionamento, está perdida, traz alguns exemplos de como a leveza com que se chega à absoluta solidão alcança as raias do humor, através de uma linguagem-limite:

Rebolando

Não é meu amigo, o Diabo. Não liga para mim. Ao diabo, então, também o Diabo, se até mesmo o mal tenho que mo fazer sozinho.404

A negatividade, que há décadas vinha coagulando a poesia de Caproni, adquire novo corpo, pois, além da ausência de Deus, não se pode contar com a “ajuda” nem do representante bíblico e dantesco máximo da maldade, que é o Diabo. O contexto é de uma voz qualquer que, está à parte do bem e do mal. E não se considera a única em situação de desamparo:

Também eu

Um dos muitos, também eu. Uma árvore fulminada Pela fuga de Deus.405 (Idem, p. 355)

Deus, agora, foge de “muitos”, como lemos no primeiro verso, evidenciado por um quase enjambement zero, encerrado por um ponto final. A continuação, no entanto, com um artigo indefinido indica a subordinação o segundo verso, o mais denso, talvez, do poema. Nele, o verbo “fulminar”, mantido na tradução, tem seu contexto usual subvertido, pois, em vez de estar associado a um raio, conecta-se a outra ação celeste. Ou melhor, a uma inoperância que poderia vir do céu: o que deveria consistir em uma ação se torna um vazio. E, por se tratarem de árvores, estáticas por excelência, nada lhes resta a fazer, senão, ficarem onde estão, isoladas, cada um no

403 BATAILLE, Georges. O erotismo. Tradução Fernando Scheibe. Belo Horizonte : Autêntica Editora, 2013, p. 258. 404 “Ancheggiando: Non mi è amico, il Diavolo. / Non si cura di me. / Al diavolo, allora, ache il Diavolo, / se anche il male, io, me lo devo far da me”. A coisa perdida: Agamben comenta Capone, op. cit., p. 350-351. 405 “Anch’io: Uno dei tanti, anch’io. / Un albero fulminato / dalla fuga di Dio”. Idem, p, 354-355.

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espaço que lhe concerne. A única coisa que podem conseguir de cima é sol, caso cresçam o suficiente para que não sejam abafadas pela sombra. Essas questões, enfim, envolvendo a presença/ausência de Deus, são recorrentes na filosofia de grandes nomes, como Spinoza, Kierkegaard e Nietzsche. Aparecem também em Caproni, mas inscritas/escritas em pequenos fragmentos, pulverizados, principalmente, nas coletâneas finais do poeta, o que suscita a reflexão de que o contingenciamento da linguagem, bem como a adoção de um ar mais sarcástico, parece não ser diretamente proporcional às elucubrações que levanta. Diante das considerações filosóficas transmitidas por uma forma de criação poética mais potência do que ato, ou o pensamento no pensamento, como diria Agamben, talvez seja apropriado o que disse Nancy, acerca da poesia, de maneira geral: “Ela [a poesia] faz o difícil. Porque ela faz, isso parece fácil, e eis por que, desde muito tempo, a poesia é dita ‘coisa ligeira’. Ora, não é somente uma aparência”. Na continuação, o pensador afirma que “A poesia faz a facilidade do difícil, do absolutamente difícil. Na facilidade, a dificuldade cede. Mas isso não quer dizer que ela seja aplainada. Isso quer dizer que ela é poesia, apresentada para aquilo que ela é (...)”.406

406 “Fazer, a poesia”. In: Demanda: Literatura e Filosofia, op. cit., p. 146.

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5 CONCLUSÃO

Pretensão seria querer esgotar todas as possibilidades de análise nas obras de João Cabral de Melo Neto e Giorgio Caproni, dada a amplitude que suas elaboradas e cultivadas poéticas alcançaram. Não à toa diversos pesquisadores brasileiros e italianos têm se debruçado sobre os versos de seus conterrâneos, levantando considerável sincretismo de hipóteses, sem que o manancial seque. Em vez do esgotamento de ideias, acerca das duas poéticas, o contrário poderia ocorrer: as aproximações já empreendidas de Cabral com o pensamento fenomenológico e com as artes plásticas, por exemplo, serviriam de inspiração a outros estudos que quisessem tramitar por outras searas, tomando como ponto de partida, a literatura; dentro dessa ótica de expansão, a fortuna crítica de Enrico Testa acerca de Caproni impulsionaria estudos envolvendo poesia e filosofia, tendo em vista incursões do estudioso genovês em nomes como Mikhail Bakhtin e Michel Foucault. Os próprios poetas, aliás, propiciam tais vínculos, à vista de poemas como “No centenário de Mondrian” (Museu de tudo) e “Riandando, in negativo, a una pagina di Kierkegaard” (O franco caçador). Uma reflexão sobre os motivos da sofisticação nos dois processos criativos pode levar ao núcleo do estudo aqui realizado, no sentido de que as potencialidades ativadas contribuíram para a desconfiança na linguagem. No poeta brasileiro, isso quis dizer manter o controle da palavra, como um toureiro que consegue realizar seu trabalho sem deixar cair a flor da lapela, deixando a emoção aos expectadores, para retomar o poema “Alguns toureiros” e a fala de Bergamín. E nesse cenário, onde são priorizados os substantivos concretos em detrimento dos abstratos, faz-se presente uma espécie de metalinguagem que procura sintonia entre teoria e práxis. Caproni, que falou sobre fazer poesia com não mais do que uma palavra, chegou perto disso, na maneira haikaística, aforística que adotou a partir de O muro da terra. Seus versos, sem abandonar o enjambement, operaram cesuras drásticas, as quais “ilharam” significantes, envolvendo-os em reticências e espaçamentos silenciosos. Durante as duas trajetórias, os poetas parecem ter potencializado uma predisposição à concisão, que, de certa forma, já estava em seus primórdios, com Pedra do sono e Como uma alegoria. A ida de Cabral à Europa, na condição de vice-cônsul, no Consulado Geral em Barcelona, proporcionou a ele conhecer o Nordeste na Espanha: viu a aridez do sertão ao visitar a

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casa de campo do amigo Miró. A pedra, cada vez menos “sonolenta”, passa a “ensinar” de seu jeito, silenciosa, dura, fria, admitindo não mais do que ela própria tem a oferecer; quem se deparara com ela é como se visse um tijolo de Carl Andre, a partir do qual muito se pode ver, se não se olha de modo tautológico, qual nos falou Georges Didi-Hubernan. Sabendo, portanto, que o substantivo “pedra” é estopim para outras concretudes, a questão da ativação da memória, em decorrência da distância, tanto em relação ao do Brasil quanto à Espanha, que também será deixada, nas andanças diplomáticas, não admitirá nem expressões como “coração” e “saudades”, com o intuito de representar sentimentos, nem estruturas poéticas convencionais, como o verso decassílabo os as rimas interpoladas. É que se vê em “España en el corazón” (Agrestes), inspirado no livro homônimo de Pablo Neruda, com suas, com suas quadras – marca registrada cabralina, por assim dizer, tributária, provavelmente do Berceo – e incomuns octassílabos:

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A Espanha é uma coisa de tripa. Por que “Espanha no coração”? Por que essa víscera é que vieram São Franco e o séquito de Sãos.

A Espanha é uma coisa de tripa. O coração é só uma parte da tripa que faz o espanhol: é a que bate o alerta e o alarme. [...]407

Levantou-se a viabilidade de Caproni tem vivido igualmente uma espécie de exílio, pode ser se afastado, também para fins de trabalho, da Gênova de parte da infância, toda a adolescência e parte da juventude. Já em Roma, escreveu A passagem de Eneias, sua obra mais genovesa, a qual carrega consigo, além da questão da potencialidade memorialística, em relação ao referido lugar, a guerra, vista por um partigiano. O poeta testemunhou, em tempos de ataques alemães, bombardeamentos a sua amada cidade amada. Vimos que tais experiências pessoais, causadoras de perdas referenciais, somadas à morte da mãe, Anna Picchi, em 1950, e a outros contatos/contágios, como a experiência da tradução de nomes como Charles Baudelaire e René Char, foram tornando seus versos capronianos progressivamente balbuciantes. O contemporâneo

407 MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único, op. cit., p. 546.

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O conde de Kenvenhüller, cujo início se dá por uma citação de cartaz do século XVIII, apresenta vários textos com a maneira de escrita da qual falamos. “A hora”, uma das aparições da besta plasmável que a coletânea possui, traz o aspecto sintético do qual falávamos, somado a um não- lugar (as cidades desapareceram):

A hora

Quando o bosque escurece.

Quando aparece a primeira fuinha.

...É a hora...

A hora da Besta...

Antes de nomeá-la, atira! [...]408

Nesta pesquisa, buscamos nos servir da teoria da potência e do ato, acreditando que as poesias de Cabral e Caproni são menos escrita de fato do que inspiração: as ativações de possibilidades poéticas, pelas experiências vivenciadas, fortaleceram a brevidade que os escritores desde o início demonstravam. Imaginamos que essa protuberância da subjetividade perante a realização do texto une-se ao pensamento aristotélico, desenvolvido por Giorgio Agamben, o que defende que, em toda potência há, obrigatoriamente, uma impotência, uma potência-de-não. Quando se vai ao ato, assim, não se leva apenas a potência, mas também a resistência: “O estilo de uma obra não depende apenas do elemento impessoal [o poder fazer]. Da potência criativa, mas também daquilo que resiste e quase entra em conflito com ela”.409 É como se se falasse de dois tipos de impotência, portanto.

408 “L’ora: Quando il bosco s’abbuia. // Quando appare la prima / faina // ...È l’ora... // L’ora della Bestia... // Prima / di nominarla, spara! [...]” 409 “O que é o ato de criação?”. In: O fogo e o relato: ensaios sobre criação, escrita, arte e livros, op. cit., p. 70.

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ANEXO – Caderno no pesquisador, do Ensino Fundamental, contendo um poema de João Cabral de Melo Neto

Imagem retirada do caderno de Português da 7ª série do presente pesquisador. Trata-se de uma atividade mimeografada, proposta a partir de “Tecendo a manhã”, de João Cabral de Melo Neto. Seria uma potência ativada?