UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM

JACQUELIN DEL CARMEN CEBALLOS GALVIS

RETORNO SEM RETORNO ÀS CIDADES DA MORTE

CAMPINAS 2020

JACQUELIN DEL CARMEN CEBALLOS GALVIS

RETORNO SEM RETORNO ÀS CIDADES DA MORTE

Tese de doutorado apresentada ao Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para obtenção do título de Doutora em Teoria e História Literária na área de Teoria e Crítica Literária.

Orientador: Prof. Dr. Márcio Orlando Seligmann-Silva

Este exemplar corresponde à versão final da Tese defendida por Jacquelin Del Carmen Ceballos Galvis e orientada pelo Prof. Dr. Márcio Orlando Seligmann- Silva.

CAMPINAS 2020 Ficha catalográfica Universidade Estadual de Campinas Biblioteca do Instituto de Estudos da Linguagem Leandro dos Santos Nascimento - CRB 8/8343

Ceballos Galvis, Jacquelin Del carmen, 1978- C321r CebRetorno sem retorno às cidades da morte / Jacquelin Del carmen Ceballos Galvis. – Campinas, SP : [s.n.], 2020.

CebOrientador: Márcio Orlando Seligmann-Silva. CebTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem.

Ceb1. Kulka, Otto Dov, 1933-. Paisagens da metrópole da morte : reflexões sobre a memória e a imaginação. 2. Testemunho. 3. Memória. 4. Luto. I. Seligmann-Silva, Márcio Orlando.. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Estudos da Linguagem. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Retorno sin retorno a las ciudades de la muerte Palavras-chave em inglês: Kulka, Otto Dov, 1933-. Paisagens da metrópole da morte : reflexões sobre a memória e a imaginação Testimony Memory Bereavement Área de concentração: Teoria e Crítica Literária Titulação: Doutora em Teoria e História Literária Banca examinadora: Márcio Orlando Seligmann-Silva Flavia Albergaria Raveli Ricardo Timm de Souza Jacques Fux Carolina Sieja Bertin Data de defesa: 24-11-2020 Programa de Pós-Graduação: Teoria e História Literária

Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a) - ORCID do autor: orcid.org/0000000231591697 - Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/1182798004533807

Powered by TCPDF (www.tcpdf.org) BANCA EXAMINADORA:

Márcio Orlando Seligmann Silva

Flavia Albergaria Raveli

Ricardo Timm de Souza

Jacques Fux

Carolina Sieja Bertin

IEL/UNICAMP 2020

Ata da defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertação/Tese e na Secretaria de Pós Graduação do IEL.

Dedico este trabalho à minha Mãe Maria (in memoriam).

De coração a coração. AGRADECIMENTOS

Mamá, In memoriam. Muito obrigada pela vida e pelo dom do amor infinito que me inspira e me abraça sempre. Te amo, e carrego no meu coração. Sarita, filha amada, meu rainho de luz. O fulgor do teu olhar alenta minha vida. Jonathan, obrigada pelo cuidado e pela companhia do coração. Leticia, obrigada pela hospitalidade e pelos conselhos sempre. Lety e Clodo, gratidão pelo apoio incondicional durante minha permanência no Brasil. Luis, José, Joan, Mario, Iván, grata pelas mensagens de apoio e carinho na distância. Márcio, meu caro orientador. Obrigada pelo abraço acolhedor sempre carinhoso, pelo apoio, pela hospitalidade, pela amizade e confiança. Gratidão imensa pelo engajamento e a resistência. Flávia, grata por ter feito uma leitura cuidadosa do meu trabalho, pelas palavras carinhosas e pelas valiosas sugestões por ocasião do exame de qualificação. Professora Lisley, obrigada pelas sugestões na qualificação. Professor Ricardo Timm de Souza, agradeço muito pelo carinho e pela hospitalidade. Javi, obrigada pelas risadas. Marie-Lou, grata pelas aulas de francês. Elvis, obrigada pela ajuda nas mudanças em Campinas. Liniane, obrigada pela interlocução e pela hospitalidade nas minhas jornadas em São Paulo.

Lanousse, meu caro amigo, grata pela ajuda e pelas palavras de carinho. Luna, obrigada pela amizade imemorial. Mile, gratidão imensa pela amizade e pelo afeto.

Dheyne, obrigada pelo trabalho de revisão. Caros professores e colegas do IEL, agradeço por acompanharem meu percurso na Unicamp. Ao pessoal da biblioteca Antônio Candido, do IEL, e da Otavio Ianni, do IFCH, obrigada pela disposição. Aos funcionários da Secretaria da Pós-Graduação do IEL, pela disposição e gentileza. Obrigada. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior -Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001

RESUMO

Este trabalho apresenta uma interpretação do relato testemunhal de Otto Dov Kulka, Paisagens da Metrópole da Morte: reflexões sobre a memória e a imaginação, no intuito de encarar diversas aporias e tensões do testemunho como experiência-limite. Também possibilita pensar na dimensão do trauma histórico e, de certa forma, questionar o estatuto do real e de suas representações ineludíveis dos tremores do trauma, do que flui desses lugares de memória difícil, das vozes, das escritas, das imagens e dos passos errantes que se aventuram solicitados irremediavelmente, espectralizados pelas ruínas. Dessa forma, o percurso da pesquisa expõe uma experiência no abissal processo de escrita, apoiando-se em elementos que comparecem na interpretação, como a tentativa de elaboração do luto pela morte da mãe, a poética das ruínas, a condição da infância no campo de concentração, a inquietude das imagens, o diálogo com a historiografia, com a psicanálise e com a memória. Esses elementos são inscritos na espectralidade errante do testemunho poético, literário e imagístico, pelo trabalho com as imagens e as palavras vindas da noite incisada no corpo das lembranças da infância que se relacionam na afinidade e no estranhamento com o testemunho de outros sobreviventes marcados pela lei da Metrópole da Morte nas suas tentativas de portar o mundo que se foi. Assim, a ética da memória alenta o testemunho de Kulka e abre a história para a sensibilidade e a empatia diante das crianças vulneradas da guerra. Nesse sentido, a exposição da pele ferida do outro e o rastro da experiência vivida nos campos interpelam-nos para manter a abertura com o imprevisível porvir e para inventar formas de resistência e de intervenção criativa.

PALAVRAS-CHAVE: Testemunho. Memória. Literatura. Luto. Metropole da Morte.

ABSTRACT

This work presents em interpretation of Otto Dov Kulka’s testimonial narrative, Landscapes of the metropolis of death: reflections on memory and imagination, with the purpose of facing the aporias and tensions of testimony as a limit experience. It also allows us to think about the 5esistência5 the historical trauma and, in a way, to question the status of reality and its inescapable representations of the tremors of trauma, of what flows from these places of difficult memory, of voices, writings, images and errant steps that venture spectralized through the ruins. In this way, the research exposes em experience of the writing process, based on some elements that appear in the interpretation, among them the elaboration of mourning for the death of the mother, the poetics of the ruins, the condition of childhood in the concentration camp, the restlessness of images, dialogue with historiography, with psychoanalysis and with memory. Those elements inscribed in the wandering spectrality of the poetic, literary and imagistic testimony, by working with the images and words that come from the night inserted in the body of the lembrancies of childhood that are related in the affinity and in the estrangement with the testimony of other survivors marked by the law of the Metropolis of Death in their attempts to carry the world that left. Thus, the ethics of memory encourages Kulka’s testimony and opens the story for the creation of empathic devices towards children who have been harmed by the war. In this sense, the exposure of the wounded skin of the other and the trace of the experience lived in the fields challenges us to keep open with the unpredictable future and to resistê forms of resistance and resistên intervention.

KEYWORDS: Testimony, Memory, Literature, Mourning, Metropolis of Death.

RESUMEN

Este trabajo presenta una interpretación del relato testimonial de Otto Dov Kulka, Paisajes de la metrópoli de la muerte: reflexiones sobre la memoria y la imaginación, con el propósito de encarar las diversas aporias y tensiones del testimonio como experiencia limite. También permite pensar la dimensión del trauma histórico y, de cierto modo, cuestionar el estatus de lo real y sus ineludibles representaciones de los temblores del trauma, de lo que fluye de estos lugares de memoria difícil, de esos escritos, imágenes y pasos errantes que se aventuran espectralizados por las ruinas. De esa forma, el percurso de la investigación expone una experiencia en el abismal processo de escritura, apoyándose en algunos elementos que comparecen en la interpretación, entre ellos, la elaboración del luto por la muerte de la Madre, la poética de las ruinas, la condición de la infância en el campo de concentración, la inquietud de las imágenes, el diálogo con la historiografia, con el psicoanálisis y la memoria. Esos elementos son inscritos en la espectralidad errante del testimonio poético, literário e imagístico, por el trabajo con las imagenes y las palabras venidas de la noche inserida en el cuerpo de los recuerdos de infância que se relacionan de a través de la afinidade y del extrañamiento com el testimonio de otros sobreviventes marcados por la ley de la Metrópoli de la Muerte en el intento de portar el mundo que se fue. Así, la ética da memória alienta el testimonio de Kulka y abre espacios de sensibilidad y empatia frente al dolor de los niños y niñas vulnerados por la guerra. En ese sentido, la exposición de la piel herida del otro y el rastro de la experiencia vivida en los campos de extermínio, nos interpelan a inventar formas de resistencia y de intervención creativa.

PALAVRAS-CHAVE: Testimonio. Memoria. Literatura. Luto. Metropoli de la Muerte.

LISTA DE FIGURAS

Figura 1. Elly Kulka, 1939. Coleção Otto Dov Kulka. Fonte: Otto Dov Kulka, em Paisagens da Metrópole da Morte.

Figura 2. Maria Galvis (1946-2019). Coleção Jacqueline Ceballos Galvis. Fonte: Arquivo pessoal.

Figura 3. Detalhe da ilustacao de William Blake para o livro de Jó: “E o Satã saiu da presença de Iahweh” Jó, 2,7. Fonte: Internet.

Figura 4. Sobreviventes de Buchenwald. Junho de 1945. Fonte: Nikolaus Wachsmann, em Historia de los campos de concentración nazis.

Figura 5. Crianças em Auschwitz. Fotograma do filme Paraíso en Auschwitz. Dir. Aarón Cohen, 2016.

Figura 6. Evelyna Merová. Fonte: Internet.

Figura 7. Dita Kraus. Fonte: Internet.

Figura 8. Fredy Hirsch. Fonte: Internet.

Figura 9. Sobreviventes de Auschwitz: crianças, bebês e mulheres, 1945. Fonte: Alamy.

Figura 10. Desenho infantil do gueto de Theresienstadt. Autor desconhecido. Fonte: Internet.

Figura 11. Prisioneiros judeus esperando a seleção depois de descerem do trem, Birkenau, Polônia, 1944. Fonte: Yad Vashem.

Figura 12. Auschwitz-Birkenau, verão de 1978. Coleção Otto Dov Kulka. Fonte: Otto Dov Kulka, em Paisagens da Metrópole da Morte.

Figura 13. Dina Gottliebova. Fonte: Internet.

Figura 14. Prisioneiros trabalham na entrada no “campo das famílias” em Auschwitz- Birkenau, 1946. Desenho de Dina Gottlieb. Fonte: Otto Dov Kulka, em Paisagens da Metrópole da Morte.

Figura 15. Desenho infantil do gueto de Theresienstadt. Autor desconhecido. Fonte: Otto Dov Kulka, em Paisagens da Metrópole da Morte.

Figura 16. Imagem da Prefeitura cidade de Praga. Fonte: Internet

Figura 17. Porta da misericórdia-Cidade Velha de Jerusalem. Fonte: Internet

Figura 18. Auschwitz-Birkenau. Fonte: Internet

Figura 19. Desenho infantil do gueto de Theresienstadt.

Figura 20. Through the Lens of Faith. Libeskind, 2019. Fonte: Internet.

Figura 21. Vístula, o Grande Rio do Tempo. Fonte: Internet.

Figura 22. Ruinas do crematório n°11 em Auschwitz-Birkenau/ Cortesia de Pawel Sawicki. Fonte: Otto Dov Kulka, em Paisagens da Metrópole da Morte.

Figura 23. Sapatos desmanchados em Struthof, remetidos de Auschwitz para “tratamento adicional”, outubro de 1992. Museu de Struthof, Arquivo de fotos: Fonte: Otto Dov Kulka, em Paisagens da Metrópole da Morte.

Figura 24. Otto Dov Kulka. Fonte: Die Vorletzt e Freiheit. Landschaften des Otto Dov Kulka. Dir. Stefan Auch, 2018.

SUMARIO

INTRODUÇÃO ...... 14

1. LUTO. IN MEMORIAM ...... 21 2. A-DEUS EM AUSCHWITZ-BIRKENAU ...... 26 3. CANTOS DO (SEM) TÚMULO ...... 31

4. LEMBRANÇAS DA INFÂNCIA DIANTE DA METRÓPOLE DA MORTE ...... 36

4.1 Aprendizagens entre as sombras ...... 41

5. DESCONSTRUÇÕES DO FAMILIAR E O CAMPO DAS FAMÍLIAS ...... 50

6. A INQUIETUDE DAS IMAGENS ...... 57 6.1 Errância espectral ...... 59 6.2 Desenhos no extremo ...... 63

7. DAS ARQUITETURAS DA METRÓPOLE DA MORTE ÀS MORADAS DO TESTEMUNHO ...... 71

8. UMA PAISAGEN CINZENTA E AZUL ...... 88

9. VÍSTULA: O RIO DAS CINZAS ENTRE AUSCHWITZ-BIRKENAU E NATZWEILER- STRUTHOF ...... 93

10. DIÁLOGO COM A HISTORIOGRAFIA ...... 101 11. POÉTICAS E POLÍTICAS DO (AN)ARQUIVO ...... 108 12. ENTRE K ...... 119 13. A PENÚLTIMA LIBERDADE ...... 122

REFLEXÕES FINAIS ...... 125

REFERENCIAS ...... 129 14

INTRODUÇÃO

Porque, quiçá, ainda se escreve para dizer adeus, para portar no coração o mundo que se foi, para adiar o fim do mundo... em memória dos mortos, desde a intensidade da vida como sobrevivência. Em 2013, Otto Dov Kulka, reconhecido historiador israelense e sobrevivente da experiência concentracionária na Segunda Guerra Mundial, publicou o seu testemunho Landschaften deer Metropole des Todes (2013) Livro traduzido para o português em 2014 sob o título Paisagens da Metrópole da Morte: reflexões sobre a memória e a iwmaginação. O texto deriva das gravações realizadas pelo autor entre 1991 e 2001 a respeito de sua vida e de sua experiência na “Metrópole da Morte”. Essas recordações correspondem a uma série de fragmentos da memória e da imaginação que monta, desmonta e remonta o mundo dessa criança de onze anos, exposta na sua fragilidade e perplexidade no inferno de Auschwitz. Escrevendo/ouvindo os ecos e a ausência que magnetizam o presente, resiste-se a representações completas e identificações. Como se, a cada palavra, a interrupção e o murmúrio daqueles que não são mais solicitassem imaginar entre memória e ruínas.

Esse seu testemunho, marcado pela melancolia, porta materialidades e constelações de sentido que desenham conexões significativas entre diversas camadas temporais e espaciais. Com a singularidade da sua escrita, relaciona elementos independentes e distantes, que permitem perceber algumas tensões e chamados diante da representação inacabada da catástrofe. Sua escrita carrega a marca da catástrofe, porta o luto pela perda da Mãe, tenta criar um túmulo verbal, nasce da impossibilidade e da necessidade de narrar a sua experiência. A sua linguagem fragmentária ainda resiste na sobrevivência desde o estranhamento e o rastro diferencial dos seus traços, que entre escritas e imagens entretecem desenhos, imagens fotográficas, cadernos e folhas de diário, conformando uma “[a]nti-estrutura incomum, como algo semelhante a um volume de poesia onde cada poema tem sua própria ‘narrativa’” (KULKA, 2014, p. 7). O lirismo das imagens atinge um tom poético na narração. Esta, sem deixar de ser reflexiva, oferece a ocasião para pensar nas tensões que porta esse testemunho, espectralizado pelos passos dos mortos e o chamado interminável pela justiça na memória que sustenta o porvir aqui e agora.

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Nesse sentido, e sem eludir as alteridades que porta, seu testemunho confronta a historiografia tradicional no campo imagético que se inscreve a contrapelo. Assim, Kulka, como escritor-flaneur, caminha entre as ruínas das cidades da morte e reinventa o continuum da história através da imaginação e da narração. Paisagens da Metrópole da Morte é o núcleo da pesquisa, mas também propõe articulações e rearticulações interpretativas que se relacionam na afinidade e no estranhamento com o testemunho de outros sobreviventes marcados pela lei da Metrópole da Morte nas suas tentativas de portar o mundo que se foi. Essa fonte de diálogo com outras obras de teor testemunhal 1não ignora o tumor na memória, e se expõe à fragilidade, à errância e à precariedade dos signos entre as ruínas, restos e rastros iniludíveis do passado no presente. Assim, esta interpretação do relato testemunhal de Kulka permite encarar diversas aporias e tensões do testemunho como experiência-limite. E também possibilita pensar na dimensão do trauma histórico e, de certa forma, questionar o estatuto do real e suas representações ineludíveis dos tremores do trauma, do que flui desses lugares de memória difícil, das vozes, das escritas, das imagens e dos passos errantes que se aventuram solicitados irremediavelmente, espectralizados pelas ruínas. Dessa forma, o percurso da pesquisa expõe uma experiência no abissal processo de escrita, apoiando-se em elementos que comparecem na interpretação, como a tentativa de elaboração do luto pela morte da mãe, a poética das ruínas, a condição da infância no campo de concentração, a inquietude das imagens, o diálogo com a historiografia, com a psicanálise e com a memória. Essas coordenadas interpretativas permitiram incorporar à escrita um processo de remontagem, desmontagem e montagem de línguas, textos, vozes, fotografias e desenhos. Esses elementos são inscritos na espectralidade errante do testemunho poético, literário e imagístico, pelo trabalho com as imagens e as palavras vindas da noite incisada no corpo das lembranças da infância. Essas lembranças surgem estremecidas pela perda e deslocadas pelas feridas da história e da experiência do luto. Isso possibilita pensar, ainda que não seja o propósito primordial do autor, no viés auto-hetero-bio-tanato-gráfico que perpassa o seu relato.

No intuito de confrontar o luto, Kulka tece as reflexões sobre o acontecimento catastrófico

1 Em um primeiro momento da pesquisa, foi feito um levantamento bibliográfico no intuito de constituir um corpus da literatura da Shoah para estabelecer um conjunto de relações e desdobramentos desde a diferença e o encontro. A pesquisa aborda diversas obras de teor testemunhal que permitem refletir de forma crítica e criativa e, ao mesmo tempo, reinterpretar de outro modo os nossos atos de olhar, a partir das ruínas da história. Desse modo, retoma-se o papel vital das narrativas, das histórias de vida, assim como a importância dos estudos do testemunho e da memória e suas interfaces com o campo das imagens.

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e traumático de Auschwitz-Birkenau. Através da narração em primeira pessoa, tenta se aproximar desse passado que não passa. Assim, apresenta uma espécie de reafirmação da justiça incondicional a que demandam as gerações dos mais novos da juventude chacinada tanto na Europa desses tempos nefastos do Terceiro Reich quanto no mundo atual, entre contextos sociais locais, também flagelados pela autoridade silenciadora do poder, na exploração e no uso da violência sobre os mais vulneráveis. Assim, trata-se de refletir, nessas constelações das imagens-pensamento, a partir do olhar das crianças. Esse olhar é marcado pelas tragédias da cultura, dos traumas que se imprimem na sua visão do mundo, bem como na sua paixão extraordinária pelos detalhes e por aquilo que nos ensinam. Isso permite montar e jogar entre a memória e a imaginação, o sonho e a realidade, a escrita e a vida. Segundo Kulka, as palavras-chave “A Grande Morte”, “a Lei Imutável da Grande Morte” e “a Metrópole da Morte” foram escritas em uma linguagem metafórica sobre aquele capítulo único da história humana. Dessa forma, ao aproximar-se da experiência da escrita literária, deixa virem, sem vinda plena, a vivência traumática e os rastros do passado no presente. Vêm pela porta do relato entretecido diante da lei da cidade da morte, pois o buraco de Auschwitz o impele a um diálogo infinito com outros sobreviventes com histórias de vida marcadas pela catástrofe. O processo de escrita da minha tese foi doloroso e intenso, mas trouxe também mudanças de ar e deslocamentos, a partir dos quais tentei responder precariamente ao apelo da memória e ao trabalho de luto. Sem negar a sensibilidade e a intuição, aos poucos se incorporou uma forca- frágil à escrita transformada pela perda. Nesse sentido, o percurso da pesquisa se abriu não apenas para um objeto de estudo, mas para o testemunho como experiência impossível, que acolhe memórias, rastros, restos, lágrimas, vozes e silêncios que deixam ver a noite nos olhos do outro e ouvir as vozes murmurantes, os cantos e os contos dos que se foram. Quanto à abordagem teórico-conceitual proponho um encontro de caráter transdiciplinar, que implica teoria do testemunho, poesia, arte, literatura, história e filosofia. O intuito é refletir acerca das tensões e questões dos fenômenos do testemunho, nas suas correlações dialógicas e transversais entre diferentes textos de teor testemunhal. Esse corte diagonal revela a fragilidade do objeto de estudo, pois não se trata apenas de ler nos livros, senão através deles. Ler o livro do mundo como o sugeria Benjamin, quem foi sensível aos conceitos vividos. Esse corpus permite refletir sobre as experiências catastróficas singulares sem eludir as particularidades da mitologia, dos símbolos, dos corpos, dos signos errantes que cada testemunho emite no inconfessável. Ou seja, sem esquecer a porta de acesso à lei imutável da morte, entreaberta para cada habitante das necrópoles. Sem deixar de lado a solidão, a distância, o

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segredo, a memória, a interrupção que expõe cada testemunha sem testemunha. Aqui, trata-se de estudar essa dimensão de silêncio que imanta os testemunhos, o luto infinito que eles portam e suportam, assim como o que significa essa gestão que lida com o indizível, para retomar a expressão de Michel Pollak (1986). E também analisar em que sentido, diante da morte vivida nos campos, onde as condições de existência eram irremediavelmente transtornadas, como o processo de escritura, na infinita tarefa de tradução do intraduzível, mesmo na própria língua, trata desse intratável. A partir de leituras que cruzam os discursos da teoria literária, a teoria do testemunho, os estudos sobre a memória, a história e a questão da imagem, é possível refletir de forma crítica e criativa e, ao mesmo tempo, reinterpretar nossos atos de olhar a partir das ruínas da história. Nesse sentido, pode-se retomar o papel vital das imagens nas suas relações com o narrativo, no âmbito do testemunho e da memória desses acontecimentos-limite, desenvolvidos na literatura testemunhal e em suas interfaces com o campo da história, em uma perspectiva ética. Com o objetivo de refletir sobre as dinâmicas e tensões entre história, memória e imaginação, bem como a relação entre fotografia, desenho e escritura, propõe-se um diálogo entre imagens e escritas a partir de referentes teóricos como Georges Didi-Huberman, Walter Benjamin, Jacques Derrida, Jean-Luc Nancy, Giorgio Agamben, entre outros. Leva-se em conta as possíveis relações entre imagem fotográfica e literatura testemunhal como formas de explorar o que as imagens escritas e a escrita imagética têm a nos dizer sobre o testemunho, a partir das suas montagens e remontagens, e como isso fornece elementos para repensar o passado e o presente na abertura ao porvir. As reflexões levadas por Jacques Derrida, a partir das espectralidades da imagem, levam a pensar sobre o não ver, com a fotografia, o vídeo, a pintura e o cinema. Por isso, resultam valiosas, uma vez que tramam uma reflexão para além da oposição entre o inteligível e o sensível, teoremas previstos e as certidões demonstráveis. Segundo Walter Benjamin (1987), um escritor precisa tomar fotografias e, ao final, pode-se ver que, na vinda imprevisível das imagens, decide- se ou não sobre a existência de um texto. Assim, à escuta dessa injunção, pode-se apreciar no texto de Kulka um jogo dialético entre a escrita e a imagem. As passagens pelos locais de memória em um relampejo de uma imagem trazem, a cada instante, multiplicidades de tempos e espacialidades heterogêneas. Além disso, há ritmos variados que deixam escutar os restos desses locais impregnados de ausência. Essas imagens-pensamento solicitam trabalhar de outro modo com o ato do olhar, assim como Georges Didi-Huberman o sugere em diversos textos. Além disso, presta-se escuta à poética testemunhal a partir de escritores como Paul Celan. O intuito é pensar nas considerações poéticas e mesmo políticas que implicam o testemunho em

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diálogo com as reflexões levantadas a propósito da poesia após Auschwitz. Seu pensamento negativo e irredentista, antes de desalentar a escrever diante do terrível, não deixa de recusar as cumplicidades cínicas com o esquecimento, chamando a atenção para o grito das vítimas e para não deixar de fazê-lo na tensão infinita e irredutível entre ética e estética, para que o mal não se banalize nem se repita. São contributivas as reflexões aporéticas e paradoxais de Jacques Derrida dedicadas ao testemunho, ao cogito do adeus e a questão do arquivo. Consideram-se a experiência poética da língua que aquele implica e também o pensamento do impossível, que carrega a responsabilidade infinita que solicita no double blind de uma intraduzibilidade interruptora e interpelante – aliás, interminavelmente a traduzir. Tais leituras conduzem o percurso investigativo. Desde o começo, a proposta da pesquisa aborda os estudos do trauma na sua relação com a literatura de testemunho. Nesse sentido, apoia-se nos desenvolvimentos de Márcio Seligmann- Silva, sempre levando em conta o pensamento psicanalítico de autores como Freud, Maria Torok e Nicolas Abraham, que oferecem vias teóricas criativas.

Por meio do método desviante e articulador da montagem, inspirado na técnica benjaminiana, exponho aqui uma escrita constelacional, que presta atenção aos detalhes, misturando fotografias, desenhos, retratos, imagens-pensamento, silêncios, nomes, poemas, que tentam traduzir o intraduzível desde um olhar melancólico (SELIGMANN-SILVA, 2002, p. 192). Dessa forma, a narrativa fragmentária permite construir campos imagéticos e espaços de resistência diante das redes que perpassam tempos e espaços diferentes do sistema nazista. O processo de escrita ficou exposto em treze ensaios independentes e inter- relacionados, organizados levando em conta algumas recomendações da banca de qualificação. A partir do processo de interpretação, apresento um percurso de escrita e leitura do limite, em uma perspectiva autobiográfica da experiência do luto e da perda. Também proponho construir espaços imagéticos e espaços de escuta, bem como uma reflexão diante da realidade desmedida dos campos de exterminio e dos efeitos da catástrofe na atualidade.

Em “Luto. In memoriam” apresento uma homenagem entre fragmentos que deixam ressoar algumas palavras no silêncio da imensa impossibilidade do luto. Assim, em memória da mãe a experiência (do) impossível tenta portar-se como sobrevivência enlutada na escrita. Em “A Deus em Auschwitz”, tenta-se refletir acerca da imagem de Deus que inquieta ao sobrevivente diante do pesar ab-soluto pelo já ido. Esse pesar infinito e sem álibi, melancolia sem idade do Adeus, não deixa de perpassar, ameaçar e alentar a relação, o segredo

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do encontro que expõe e leva ao outro. Por outro lado, “Cantos do (sem) túmulo” abre espaços de escuta à solicitação da incondicionalidade da justiça, que vibra e interpela entre os poemas endereçados ao outro, na hospitalidade poética de quem porta sendo portado e deportado, acolhido e ferido pela escrita do desastre.

“Lembranças da infância diante da lei da Metrópole da Morte” permite transitar por múltiplos registros, por imaginários e por mitologias particulares, socioculturais e coletivas, com linguagens marcantes entre os rastros e traços do acontecimento catastrófico da criança exposta e frágil no campo de extermínio. A criança que ele foi comparece no texto em meio a paragens traumáticas, mas também se reconhecem os acontecimentos educativos que Kulka experimentou no bloco do campo das famílias como instantes de formação e transformação e que permitiram atos clandestinos de resistência, sobrevivência e sobrevida. “Desconstruções do familiar e o campo das famílias” aproxima-se das lembranças da infância como um espaço de hospitalidade catastrófica. Para Otto Dov Kulka, Auschwitz- Birkenau não apenas simboliza o sombrio, mas também as marcas de experiências fecundas na sua memória. Em “A inquietude das imagens”, propõe-se pensar na constelação das imagens narrativas e das narrações imagéticas imantadas pela catástrofe. Ainda, busca-se refletir sobre os modos com que essas experiências de revisitação, de escrita, de desenho e de pensamento, entre ruínas e à escuta dos restos, estariam perpassadas traumaticamente pelo incessante retorno do sem retorno. Para além dos tradicionais e obsoletos modelos de representação da realidade, da historiografia, do positivismo, das certezas do evidente, solicita-se, entre a memória e a imaginação, a infinitatarefa de traduzir o intraduzível. “Das arquiteturas da Metrópole da Morte às moradas do testemunho” questiona, por um lado, o modelo arquitetural endereçado ao extermínio na totalidade da Grande Morte. Por outro lado, propõe atender às memórias da cidade, no murmúrio espectral de suas rachaduras e criptas, perpassadas pela abertura da ferida e pela força das alteridades dos rastros e das ruínas dos desaparecidos. Em “Paisagem cinzenta e azul”, considera-se a paisagem a partir do corpo a corpo e da experiência que relaciona o sujeito à diversidade do mundo. A experiência sensível de uma simbolização entre o corpo e o mundo entretece-se entre a paisagem, a história e a imaginação, em que o visível e o invisível aparecem concomitantes e não cessam de chamar-se e entrecruzar- se – sem, por isso, confundir-se.

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Em “Vístula: o rio das cinzas entre Auschwitz-Birkenau e Natzweiler-Struthof”, discute- se as referências ao rio Vístula no texto de Kulka. Essas marcas permitem pensar nas ligações imperceptíveis entre Auschwitz e Struthof, bem como nas múltiplas ramificações comunicantes.

“Diálogo com a historiografia” aborda a problemática das representações historiográficas, que se pressupõem como verdades absolutas da racionalidade mítica e representacional. Elas perpassam o genocídio perpetrado pelo nazismo, cujas lógicas e estruturas, sem serem idênticas, afetam, com sua lei imutável da morte, outros processos históricos até nossos dias. “Poéticas e políticas do (an)arquivo” focaliza a relação indissociável entre memória, história e arquivo, abrindo espaços de acolhida para aqueles (an)arquivos turbulentos vindos da literatura e das artes do testemunho. Em “Entre K”, apresenta-se uma relação estranha e familiar entre Kafka, Kleist e Kulka, destacando o seu entrecruzamento nas entrelinhas do relato, no devir entre o sonho e o trauma, a escrita e a leitura, a vida e a sobrevivência diante da lei e do azar da Metrópole da Morte. Em “A penúltima liberdade: no azul da noite”, reflete-se sobre a imensidade do céu azul, que representa a liberdade de Kulka entre a vida e a morte. Lembrando que o texto exige a reinvenção dos nossos modos de enxergar e encarar essas realidades desmedidas e incomensuravelmente singulares, no intuito de inventar espaços de hospitalidade. Assim, a escrita como promessa responde a uma dívida infinita e ao luto que inscreve uma marca infinda na sobrevivência do texto e nas diversas imagens que se montam e desmontam. Nesse sentido, propõe-se um apelo à sensibilidade e à empatia, pois o espaço da literatura e as artes do testemunho reconhecem a memória enlutada que vem do outro.

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1. LUTO. IN MEMORIAM

O mundo se foi, eu tenho de te portar.2 (Paul Celan)

Sob o signo da morte da mãe, Otto Dov Kulka deixa ressoar o silêncio da imensa impossibilidade do luto. Através das suas memórias, retorna às paisagens de Auschwitz- Birkenau e, com muito pesar no coração, lembra: “São, na verdade, segundos, apenas segundos, segundos de uma despedida apressada após a qual minha mãe se virou e começou a andar e a se distanciar na direção daquelas estruturas cinzentas do campo” (KULKA, 2014, p. 98). Essa melancólica imagem do desaparecimento da mãe, quando ele é apenas um menino de onze anos, interpela-o na vulnerabilidade e no abalo para responder à exigência de portar o mundo que se foi.

Mas esse portar não apenas se endereça aos mortos, senão também ao sobrevivente, àquilo por nascer, ao espectro. As palavras carregam ainda a mãe, ainda o filho o um no outro, o um para o outro na difícil passagem do que sempre fica em falta, ao tempo como outro:

Como uma mãe carrega um filho no ventre ou como se porta o luto. O luto impossível. Isto é, na situação de “um no outro”, de “um para o outro”, no caso da gravidez na “solidão partilhada entre um e dois corpos”, aí, onde, “o mundo desaparece”. (DERRIDA, 2008, p. 45)

Diante dessa dívida infinita do portar-gestar, o sobrevivente promete portar a ferida que dói no coração. Há um gesto de amor e responsabilidade nessa solicitação de fidelidade ao que deixou sem mundo, sem pretender apagar sua singularidade.

Dessa forma, inventa espaços de hospitalidade na tensa impossibilidade de fazê-lo, de maneira concomitantemente ilegível e legível. Resistindo à integração normal do mundo, à normalização do luto. Isso porque, diante da perda irreparável e contra qualquer possibilidade de apaziguar o luto, uma carga monstruosa bate como um carneiro (DERRIDA, 2008), em cuja frente leva a marca da noite, e não cessa de arremeter contra muralhas esquecedoras, em fuga ante as normas e etiquetas do luto normal, pois

2 Die welt is fort, ich muss dich tragen” (CELAN, 1999).

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a “norma” não é senão a boa consciência de uma amnésia. Ela permite-nos esquecer que guardar o outro dentro de si, como si mesmo, é já esquecê-lo. O esquecimento começa aí. É então preciso a melancolia. Neste lugar, o sofrimento de uma certa patologia dita a lei – e o poema dedicado ao outro. (DERRIDA, 2008, p. 74, grifo do autor)

Paradoxalmente, o luto impossível é o único luto possível. O único que salvaguarda o outro, ou seja, respeitado no absoluto da sua alteridade (DERRIDA, 2008, p. 11), como se a relação já estivesse marcada pela separação. O segredo do encontro demanda portar o outro em mim, no gaguejar da fala, no silêncio, na cesura. A melancolia resiste à introjeção idealizante3, pois suportar a ausência implica respeitar a radical alteridade dos mortos e da morte4.

As lágrimas errantes dão testemunho dessa abertura mortalmente infinita que declara quão infinitamente finitos somos, lembrando dos mortos numa promessa em falta perpassada pela noção de rastro e justiça5. O seu tremor demanda o luto inconcluso, entre a desafeição ab- soluta da mundanidade e a radical outridade, que não cessa de contaminar qualquer tentativa de reparação, de restituição, de reapropriação, de reinstalação.

Entre lágrimas, o sobrevivente envia poemas e preces à terra do coração. Em um gesto de amor, saúda e abençoa: “Recitei o Kadish, li o Kadish, a oração judaica pelos mortos” (KULKA, 2014, p. 88)

3 Cf. Nicolas Abraham e Maria Torok. (1972). Sempre próximos e atentos à dor e ao sofrimento humano, recusaram qualquer dogmatização da psicanálise e realizaram um retorno à etapa da pesquisa e da investigação clínica. Para os autores o conceito de introjeção constitui um dos eixos fundamentais da sua obra. Partindo da concepção de vida psíquica como constante criação e recriação de si, consideraram a introjeção como o mecanismo psíquico mais arcaico. A introjeção se encontra na origem das distinções fora/dentro, eu/não-eu, constituindo o motor da vida psíquica no seu conjunto.

4 Em Luto e melancolia, texto escrito sobre o impacto da Primeira Guerra Mundial, Freud (2011) assinalava o luto como um afeto normal que responde à perda de uma pessoa amada ou um ideal. Sua intensidade nos absorve e nos retrai do mundo em que vivemos. Ele também definiu a melancolia como uma suspensão do interesse pelo mundo externo. Mas, para além da impressão psicanalítica ou de uma teoria da perda do objeto, a morte de Sophie, sua filha, e de seu neto o levou a experimentar a impossibilidade do luto. Depois dessa perda, escreveu: “O luto agudo deve ser atenuado, mas a pessoa permanece inconsolável para sempre, sem encontrar um substituto. Tudo o que faz desse lugar, mesmo ocupando-o completamente, permanece sempre outro. E no fundo é bom que seja assim. É a única maneira de perpetuar esse amor que não quer se abandonar a qualquer preço” (FREUD, 2011, p. 64).

5 Eu devo, então, portá-lo, portar-te, aí onde o mundo se oculta, e nisso reside a minha responsabilidade (...) portarse a inapropiabilidade infinita do outro, ao encontro da sua transcendência absoluta mesmo dentro de mim, quer dizer, em mim fora de mim. E eu, não eu não sou, não posso ser não devo ser senão a partir desta estranha carga [portée] deslocada do infinitamente outro em mim” (DERRIDA, 2003, p. 76).

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Figura 1. Ellie Kulka (1911-1945)

Nas espectralidades das fotografias, testemunha-se algo que, como uma oração, endereça- se ao desconhecido. O retrato de Ellie, mãe de Kulka, traça o olhar de uma ferida que perpassa em ausência o testemunho, resiste na sutil opacidade da imagem, olha das trevas desenhando a distância da partida e interpela a portar sem sossego.

A fotografia se endereça ao outro, ao rastro diferencial do tempo que passa e perpassa dilacerado no suspenso cintilante da instantânea. Segundo Barthes (2012), a fotografia oferece um sentimento próximo da lembrança. Contém mais do que só a dimensão técnica poderia razoavelmente considerar e convida à viagem do imaginário. Ao falar da fotografia do Jardim de Inverno em seu texto, deixa ressoar a música fúnebre e o respeito da distância, que leva à memória de cor da sua mãe morta. Diário de luto e A câmara clara são textos contemporâneos desse acontecimento marcante. Confessa o autor: “a vida que me restava seria infalivelmente e até o fim inqualificável (sem qualidade)” (BARTHES, 2012, p. 71). Em Diário de luto, na ficha datada de 24 de julho de 1978, há referência à relação entre j (abreviação usada para a palavra fotografia) e o luto:

Luto Ou j

Foto do Jardim d’Hiver: procuro dizer o sentido evidente. (Fotografia: impossibilidade de dizer o que é evidente. Nascimento da

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literatura) “Inocência”: que nunca fará mal. (BARTHES, 2011, p. 164)

Registrar em foto, encarar a morte, tentar embalsamar em imagem e lutar para que tal fotografia não seja só a Morte (BARTHES, 2012, p. 22) não é um gesto fácil. Como é possível que, diante desse olhar longínquo e aberto, possamos estar na companhia de quem já não está nem vive? “Como resistir à aura que emana das fotografias antigas? Nelas eternidade e morte unem-se formando um complexo de beleza e melancolia. Assim como nessas fotos antigas, o mundo de Sebald é o mundo tal como ele aparece encantado sob o véu da recordação” (SELIGMANN-SILVA, 1998, p. 120). A fotografia lembra lugares, momentos singulares, marca uma data e interpela a portar sem sossego. Enquanto encara o tempo desolador do domínio da imutável Grande Morte, Kulka se expõe à radicalidade da incisão da data enlutada, que se torna uma rachadura no tempo: “Foi em 25 de janeiro de 1945 que a lei imutável da grande morte alcançou minha mãe” (KULKA, 2014, p. 94).

A experiência do luto impossível não se submete à comodidade das cronologias. Transtornos, trances, contratempos e anacronismos no coração do tempo amostram um luto “caótico, errático: momentos (de pesar/de amor à vida) tão frescos agora como no primeiro dia” (BARTHES, 2011, p. 70). As lágrimas se deslizam em desvio interminável, mas também se ligam às águas da vida, às águas pré-natais do útero materno.

Assim, Kulka retorna para procurar a sepultura da mãe no pequeno vilarejo, às margens do estuário do Vístula, mas para além de encontrar um lugar para a simbolização do fato traumático a partir do silêncio e da quebra, o sobrevivente precariamente tenta “instituir o túmulo por um ato de linguagem, a guardar, a honrar, a abençoar, a cantar a memória, prometendo-lhe uma morada verbal mais resistente que a pedra” (DERRIDA, 2005, p. 15). Com uma infinita declaração de amor.

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Desperté al sueño con la luz de la luna llena en mi rostro. A lo lejos y en mí, fulguraba la noche. Mientras contemplaba su belleza una brisa leve y fresca me acarició el cabello. Su brillo púrpura Te reflejó en mis ojos Mamá, y tu delicada voz resonó entre versos de arrullo.

Maria Galvis (1946-2019)

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2. A-DEUS EM AUSCHWITZ-BIRKENAU

Mais de meia hora ficou ele lá pendurado e lutou, frente aos nossos olhos, entre vida e morte. E nós tínhamos de olhá-lo no rosto. Ele vivia ainda, quando passei por ele. Sua língua ainda estava vermelha, seus olhos ainda não estavam apagados. Atrás de mim ouço o mesmo homem perguntar: ‘Onde está Deus?’ E ouvi uma voz atrás de mim responder: ‘Lá – lá está ele, na forca’ (ELIE WIESEL)

O texto de Kulka se encontra perpassado por mais de uma herança. Sonhos, línguas, imaginários e mitologias estruturam o idioma do relato, a posta em questão do logocentrismo pelo testemunho. Não apenas as pegadas da tradição intelectual e formativa helênica se inscrevem entre seus traços, mas também as judaidades atravessam sua assinatura, entre outras camadas, das que é herdeiro inquieto6. O margrave da Metrópole da Morte não cessa de inquietar entre o sonho e a vigília ao sobrevivente, conduzindo-o à decisão ética de testemunhar e à impossibilidade de inscrever a ferida traumática numa narrativa estável, linear, autonômica e logocêntrica. Segundo pensa Cathy Caruth (1994), certas experiências-limite traumáticas se gravam na memória e levam a experimentar e reviver reiteradamente situações catastróficas. Isso pode observar-se nos

6 A heterogeneidade e o confronto entre essas tradições se exprimem na duplicidade das imagens-pensamento que levam Kulka e os leitores a múltiplas temporalidades e espacialidades, pulando entre os diversos referentes e símbolos de uma e outra configuração cultural. Entretece-se o testemunho do antissemitismo através da escrita a mais de uma banda, em um contraponteado com o que cava e remexe na história entre as camadas dos restos de seres esmagados pela lei fatal do extermínio em cada uma das suas encarnações e gerações. Isso também permite lembrar as reflexões de Nancy, a respeito das origens do antissemitismo e que remetem ao mais íntimo da cultura europeia e pré-europeia. Devem-se à conjunção conflituosa de duas respostas ao apagamento das culturas arcaicas: a resposta grega e a resposta judaica se encontram como duas afirmações de uma humanidade emancipada do mito, mas opostas como duas maneiras de conceber a autonomia. Por um lado, a autonomia tendencialmente infinita do logos. Por outro, a autonomia paradoxal de uma heteronomia respondendo a um Deus oculto. O primeiro só saberia afastar a proximidade do segundo e, assim, excluí-lo, engolfando-o em sua dominação. O segundo só poderia recair nessa exclusão no coração da dominação. Assim se engendra a longa e terrível história do ódio judaico mascarando o ódio a si mesmo. (NANCY, 2018)

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relatos dos sobreviventes que são reenviados nessa iteração diferencial, no deslizante âmbito do sonho e da vigília. Nas travessias da escrita, Kulka se expõe ao sonho que marca o corpo e pulsa remanescente nas regiões noturnas e diurnas que estruturam a psique e deixam acontecer à escrita. Assim, retorna em sonho e em devaneio, em infinitas e caleidoscópicas variações na materialização daquela Metrópole e da sua lei imutável. Sonhando, pensando, lembrando, traduzindo, escrevendo, afirma que, por mais extremo e vertiginoso que seja o pesadelo, isso existiu, com materialidade desmedida. Não foi apenas uma parábola ou mera confabulação onírica. O peso da sua memória lacerante e cheia de lagoas continua latente e corre a contrapelo da cronologia preestabelecida, levando a tensas considerações, não sempre em acordo com o senso comum e dogmático.

Entre as anotações datadas de 2002, que Kulka extrai do seu diário e às quais remonta para construir seu relato nas paisagens da Metrópole da Morte, aparece o sonho sobre vivenciar a presença física de Deus nos crematórios. Isso o leva a refletir a propósito de uma questão pela qual o autor não passa indiferente, como tampouco o fizeram outros sobreviventes, que questionam desde múltiplas perspectivas: Na tragédia dos campos, onde esteve Deus? Essa pergunta proibida, em alguns âmbitos da ortodoxia judaica, faz tremer e perpassa nomeadamente o capítulo do relato de Kulka, chamado “O pesar de Deus”. Essa inquietação também não se deixa calar na boca do pai de Kulka, quando ele se endereça a um rabino. Quem fosse reconhecido estudioso da Torá e voz de apoio entre os sonderkommando, sua resposta então tinha sido: é proibido fazer essa pergunta, essas perguntas, “ali e por toda a eternidade”. Essa interdição já insinua, sem dizer plenamente, que: “De fato, era proibido perguntar, ali (e por toda a eternidade). Pois ele esteve, esteve presente, ali, também.” (KULKA, 2014, p. 134). Como quem tenta responder do sonho, sem anular nem se negar a sua vinda intermitente, cheia de lacunas, inesperada e inextricável7 Uma possível alternativa ou resposta

7 A respeito da escrita do sonho, é interessante ler o discurso por ocasião da entrega do prêmio Adorno em 2001, intitulado Fichus, quando Jacques Derrida (2002) se volta para um sonho que Walter Benjamin confiou a Gretel Adorno em uma carta datada de 1939, sobre um chamado Campo de Trabalhadores Voluntários na França. Ali Derrida pergunta-se: Será que se sonha sempre na cama e à noite? Será que se é responsável por seus sonhos? Será que é possível responder por eles? É possível proferir a palavra do sonho sem já estar traindo o sono? Para essas inquietudes aporéticas, ele pensa duas possíveis vias. Por um lado, está a atitude filosófica negativa que firmemente diria não: “não se pode manter um discurso sério e responsável sobre o sonho, ninguém poderia sequer contar um sonho sem acordar. Esta resposta negativa, de que se poderiam dar milhares de exemplos, de Platão a Husserl, define talvez, creio eu, a essência da filosofia. Esse ‘não’ liga a responsabilidade do filósofo ao imperativo racional da vigília, do eu soberano, da consciência vigilante. O que é a filosofia para o filósofo? O acordar e o despertar. Bem diferente, mas não menos responsável, seria talvez a resposta do poeta, do escritor ou

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para essa questão mostra-se conforme a montagem imagística e narrativa com que opera Kulka, em que imagem e narrativa se entrecruzam e deixam ver as tensões entre a memória e a imaginação. Aflora do sonho, cujas imagens gravadas na memória introduzem através das ruínas do crematório e se enlaçam com um desenho de William Blake, que se associa à paisagem descrita por Kulka no seu texto. Assim como na gravura do visionário poeta inglês, o mal se desliza na forma de satã, como envolvido pela presença de Deus, quando o mandou como servo fiel a increpar a Jó. Então, Kulka responde, com as pálpebras entreabertas entre o sonho e as ruínas do crematório, que Deus esteve ali, e não deixou de estar, silente e com infinito pesar, no inferno da superfície, com um pesar cujo peso desconhece medida. Ele fez parte da sua matéria infigurável e envolvente, na sombra dos fornos e no crepitar das cinzas, assim como já havia estado desde que Abel fosse atingido por Caim, e Jó exposto ao Sinistro. Ele fez parte de tudo isso, perpassando a história do “Grande Caim”, não se podendo apenas dispensar nem aos seus filhos que se diz foram feitos à sua imagem e semelhança. E nada do que ali aconteceu com eles e com Ele em Birkenau, afirma Kulka reinterpretando o poeta Dan Pagis, se pode reduzir a simples parábola.

Nessa lei imutável que Ele pôs em movimento como o “motivador não motivado”; com essa lei imutável que, como todas as coisas, existe porque Ele falou, Suas mãos ficaram atadas quando disse ao Seu sinistro “servo fiel”, em todas as suas encarnações, em todas as gerações, como está escrito: “Ele está em teu poder, mas poupa-lhe a vida”. “E o Satã saiu da presença de Iahweh. (KULKA, 2014, p. 123)

As reflexões nesse ponto não são as mesmas, nem definitivas, para outros sobreviventes. Nem mesmo todos os prisioneiros judeus se importaram com a questão de Deus do mesmo jeito na sua experiência concentracionária. Para alguns, sua religiosidade esteve baseada só em tentar cumprir com os dez mandamentos. Assim como diria Shlomo Venezia, quem testemunha da sua experiência como Sonderkommando no inferno das câmaras, onde não se colocou a questão de Deus nessa altura, preferiu deixá-lo fora de tudo isso. Porém,

do ensaísta, do músico, do pintor, do roteirista de teatro ou de cinema. E mesmo do psicanalista. Eles não diriam não; mas sim, talvez, às vezes. Aceitariam o acontecimento, sua excepcional singularidade: sim, talvez se possa, sem acordar, acreditar e confessar que se sonha; sim, às vezes, não é impossível dizer, dormindo, de olhos fechados ou arregalados, alguma coisa como uma verdade do sonho, e mesmo um sentido e uma razão do sonho que merece não se perder na noite do nada.” (DERRIDA, 2002, p. 3).

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afirma que, entre outros companheiros desse sinistro ofício, era frequente a oração todos os dias, algumas de livros e outras que religiosos sabiam de cor, insistindo em invocar: “‘Adonai, Adonai’. O que esperavam? que Adonai os salvasse? Isso não existia! Éramos pessoas vivas que atravessavam a fronteira da morte.” (VENEZIA, 2007, p. 50).

De outra parte, e em contraponto, nos percorridos pelas paisagens da memória entre as ruínas de Auschwitz-Birkenau, também se podem encontrar e evocar outras reflexões que surgem diante da questão difícil de Deus em Auschwitz. Para uma sobrevivente como Ruth Klüger (1992), no seu relato chamado Weiter leben. Eine Jugend, publicada em 1992 e traduzida para o portugues em 1997 com o título Seguir vivendo, Auschwitz não é um lugar para orações, pois nesse desamparo de fantasmas sem redenção nem Deus existe. Apesar disso, ainda é possível reivindicar o direito de recitar o Kaddish pelos mortos, ainda que em uma posição religiosa cética.

Na solidão incomensurável, os sobreviventes se aventuram com seus passos desviantes pelas sendas perdidas entre as ruínas. Não há um mesmo caminho. Cada olhar traça o desenho sem desígnio fixo nem acabado. E imagens vêm a cintilar e rasgar as sombras com sua luz ferida. A presença de Deus, assim como seu pesar, intensifica-se no desamparo. A ausência e o silêncio de Auschwitz perpassam o adeus inconcluso da mãe. Testemunho da separação radical.

Segundo Wiesel (1986) a aliança entre Deus e o homem foi traida, enquanto o leve menino estava sendo enforcado pois Ele permaneceu indiferente, de sua própria morte. Sem pretender poupar de responsabilidade aos homens nem ceder ao vício conciliatório que implica toda teodiceia (AGAMBEN, 2008, p. 109), Kulka sonha, pensa, escreve, diante dessa imagem que o inquieta, do pesar ab-soluto pelo já ido. Essa remoção deixa tremer o chão que fundamenta a existência, Deus que se lamenta, não apenas pela sua impotência ou pela dos homens, nem só pelo fato de ter permitido que o mundo exista. Esse pesar infinito e sem álibi, melancolia sem idade do Adeus, não deixa de perpassar, ameaçar e alentar a relação, e o segredo do encontro que expõe e leva ao outro.

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Figura 3. Detalhe da Ilustração de William Blake para o livro de Jó: “E o Satã saiu da presença de Iahweh” Jó, 2,7.

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3. CANTOS DO (SEM) TÚMULO

Teu poema tem surgido do inferno uma manhã onde as palavras tinham te encontrado inerte no meio de uma frase. Um inferno de imagens cavando a poeira dos fornos. (Louise Dupré)

Plus haut que les flammes reúne alguns poemas da canadense Louise Dupré (2011). Foram escritos tempos depois de uma visita ao que foi o campo de Auschwitz e evocam a fragilidade do poema surgindo trêmulo dentre as chamas da noite e da alvorada da sobrevivência. Portando aqueles que se foram e acolhendo os cantos do (sem) túmulo8, a autora se aventura com imagens poéticas pelas ruínas da memória em ruínas. O intuito é acolher o mundo enlutado, em uma hospitalidade catastrófica que abraça com suas braças traumáticas e latentes pelo resto da vida.

Te voici assez forte pour

8 A expressão “túmulo” se inscreve em vários momentos no texto de Kulka, entre eles: no poema inserido sobre a ovem escritora devorada pela lei da noite e da névoa, que acusa justiça deixando ressoar as vozes silenciadas da juventude chacinada da Europa, na vidência da escrita poética; e também naquele episódio em que, à luz dos relatos, lembra-se de alguns fragmentos da chacina do primeiro grupo de pessoas que chegou ao bloco das famílias em Auschwitz-Birkenau: O suicídio de Fredy Hirsch no último instante, tentativas de resistência por alguns dos outros principais funcionários e a entoação do Hatikvá, o hino do estado judeu em gestação, do hino nacional tcheco e da Internacional, nas profundezas das câmaras de gás subterrâneas (ou, como escreveu Gradowski em seu diário, descoberto enterrado em Auschwitz, “um canto de dentro do túmulo”) (KULKA, 2014).

11 Aqui você é forte o suficiente / para receber em você o mundo enlutado para sempre / carregue isso, balance isso enquanto você vai viver. (Tradução minha).

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accueillir en toi

le monde à jamais endeuillé le porter, le bercer aussi longtemps que tu vivras. 9 (DUPRÉ, 2011, p. 101)

No capítulo Três poemas do umbral da câmera de gás, Kulka acolhe “Três poemas que foram escritos em tcheco, em papel de carta fino e desbotado” (KULKA, 2014, p. 74). Escritos por uma anônima jovem, surgem da paisagem das ruínas e sem anular seus rastros diferenciais. Poderiam ser associados a alguns episódios descritos em sua narrativa. O testemunho poético dessa talentosa escritora assassinada foi passado para , pai de Otto, na forma de um pequeno pacote de folhas, momentos antes da liquidação do campo das famílias dos judeus vindos de . Esses restos10 ressonantes que sobreviveram às câmaras de gás e às chamas dos fornos crematório se revoltam, solicitando a incondicionalidade da justiça que interpela a humanidade no poema endereçado ao outro, como assinala a leitura interpretativa e tradutória do primeiro poema: “Em uma visão profética de uma aterradora ressurreição dos mortos, lança-se um clamor a toda a humanidade pela justiça e pelo acerto de contas” (KULKA, 2014, p. 74). Assim, o acolhimento infinito da palavra poética profética no texto de Kulka não se restringe a um significado definitivo. As alteridades vibram no teor testemunhal atravessado pela turbulência antecedente dos rastros espectrais, de modo que o outro, incessantemente, seja o último a falar. Ou seja, que o último a falar jamais seja o último a falar, como assinala Blanchot (2016), a partir da sua experiência de leitura e processo tradutório da poesia de Paul Celan. Hospitalidade poética de quem porta sendo portado e deportado, acolhido e ferido

9 Aqui você é forte o suficiente / para receber em você o mundo enlutado para sempre / carregue isso, balance isso enquanto você vai viver. (Tradução minha).

10 Conforme lembra Agamben, a palavra poética é aquela que se situa, de cada vez, na posição de resto, e pode dessa maneira dar testemunho. Os poetas – as testemunhas – fundam a língua como o que resta, o que sobrevive em ato à possibilidade – ou à impossibilidade de falar (AGAMBEN, 2008, p. 160).

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pela escrita do desastre no corpo a corpo, no tremor da experiência do luto, da escrita e da leitura. Em relação com a poesia, o relato de Kulka acolhe essas contrapalavras, bilhetes endereçados na procura de alguém e ninguém, de um tu, que reconheça o paradeiro de quem, na situação-limite e desesperada, jogou-as pela janela enquanto o trem partia. Dessa forma, em várias passagens, o relato de Kulka evoca os cartões-postais que os prisioneiros eram obrigados a escrever e enviar para seus familiares desde Auschwitz-Birkenau para outros locais, como Terezín, com enganos e persuasões:

mas os cartões postais que as pessoas mandavam geralmente tentavam encriptar suas mensagens entre traços intraduzíveis sobre a verdade do estado de coisas na Metrópole da Morte: “Todo dia encontramos Onkel Hlad” ou “Onkel Mavet”, o que significava “Tio Fome” em tcheco, ou “Tio Morte” em hebraico. (KULKA, 2014, p. 32)

Entre o sopro entrecortado do desastre, e apesar das adversidades, essas cartas roubadas tentavam endereçar-se. Entretanto, muitas delas não conseguiam chegar ao seu destino. Nesse sentido, Kulka evoca alguns versos do poeta Dan Pagis, que mostram Ellie escrevendo cartas na procura do seu filho perdido, quando ia ser deportada. Esses versos reenviam a um episódio diferente, porém dialogante, em que a mãe de Kulka, a caminho de Auschwitz, deixa uns bilhetes para que se saiba da desconhecida rota no Leste para a qual estavam sendo levados. Segundo o Discurso de Bremen11 (CELAN, 1999, p. 498), os poemas se endereçam quase sem esperança, na improbabilidade da chegada, como uma mensagem em uma garrafa jogada no mar, exposta ao naufrágio e sem saber em que areias chegará e deixará suas pegadas. Depois, partem no curso incessante e desviante da leitura e da escrita. De alguma forma, o texto de Kulka porta sendo deportado sem sossego, nem esperanças garantidas, por aqueles cantos da jovem desconhecida que foi emudecida entre

11 Nesse texto, antes de sublinhar o caráter dialógico da poesia, é interessante observar como Celan refere-se às paisagens. Ele afirma que elas restaram desconhecidas. Segredo do encontro que, quiçá, vincula-o a Kulka. Nessas paisagens, a língua não se perdeu totalmente, apesar de tudo. Teve que passar pelo terrível emudecimento e pelas múltiplas trevas do discurso mortífero (CELAN, 1999, p. 497), em termos próximos a Kulka, pela força da lei da Metrópole da Morte que acontece à língua. Essa língua, que na sua passagem pelo acontecimento marcante entre essas paragens noturnas, pode voltar à luz do dia fecundada em cinzas. Na atenção a realidades jamais dadas, há as experiências-limite acessíveis às palavras, na destinação, no estar de caminho, de caminho impossível aos outros.

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os crematórios. Com seu testemunho, deixa ressoar, entre as sombras, algo dessa luz fugitiva que se alcança a entrever diante da inexorável lei da Metrópole da Morte. O mal-entendido e a equivocidade estruturam, de princípio, esses envios, no limite do impossível, como aponta Kulka: “meu pai pensou que eram as despedidas da minha mãe. Só quando abriu o pacote ele descobriu que tinha nas mãos os três únicos poemas escritos no campo das famílias dos judeus de Theresienstadt que sobreviveram às chamas de Auschwitz.” (KULKA, 2014, p. 73). Mesmo assim, continua a buscar entre os vestígios, remexendo entre os restos do tempo ido, e se volta para uma carta de despedida que a sua mãe teria escrito ao seu pai, pressentindo o fim próximo. Nela, encontra a questão da vingança: “o tema de que a justiça seja feita, de que a justiça siga seu curso no devido tempo” (KULKA, 2014, p. 71). Na carta de despedida, escrita na noite de 30 de junho de 194412 ela expressa:

Meu querido, eu me despeço de você na última noite da minha vida. Nossos dias de felicidade foram curtos, mas lindos. Neste momento, lembro-me de memórias de nosso amor, desde seu belo começo até seu cruel final. Você foi a felicidade da minha vida e eu ficaria feliz em sacrificá- la para salvá-la. E o nosso pequeno Otto, o inocente, por que foi condenado a que essa mão rude e cruel acabasse com sua curta vida? Pela última vez, me lembro de meus entes queridos. Se você voltar a vê- los, beijo pela última vez minha querida irmã, meu irmão e Olga, Maxi e Lidi, e principalmente, de todo o coração, Dani e Lianka. Desejo a todos uma vida mais feliz do que a nossa. Que eles lutem bravamente por nossa liberdade e vinguem o sangue de seus entes queridos. A você, querido, agradeço de todo coração a sua dedicação, o seu amor e a felicidade que você tem me dado. Fique como está agora. Um herói sem pecado e que não desiste. Vou meditar em você e orar por sua salvação até meu último suspiro. Minha última bênção eu envio a todos os seus colegas. Adeus amor da minha alma!

12 Ellie Kulka, esposa do Erick Kulka. O prisioneiro n. 73043 enviou esta carta ao marido em 30 de junho de 1944, enquanto esperava na estrada que levava às câmaras de gás.

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Pela última vez sua Ellie e seu pequeno Otto te beijam! Adeus, Auschwitz Birkenau A frase seguinte ressoa com a exigência de que se vingasse aquele sangue sem culpa, o sangue dos inocentes que era derramado ali. Isso interpela, mais uma vez, com uma frase de timbre judaico: “NÓS, OS MORTOS, ACUSAMOS!” (KULKA, 2014, p. 57). Essa expressão é intraduzível e pouco compreendida para Kulka no instante da sua primeira escuta, pois levaria tempo em afinar seu ouvido na tradição judaica, com a linguagem da prece, para:

[r]econhecer nas palavras dela o verso onde os fiéis clamam a Deus que vingue o sangue dos inocentes. Parece-me que essa frase evoca o sentimento de um clamor por justiça, justiça como uma metadimensão, transcendendo a morte pessoal de membros da família, desdobrando-se nesse prodigioso sistema da todo-poderosa Grande Morte, com a qual não se pode lidar diretamente. Somente personificando essa realidade em referência a mim – um menino condenado por aquele implacável decreto de morrer naquela noite –, minha mãe foi capaz de articular aquela declaração de clamor por vingança, por um justo acerto de contas, que deveria ser forjado em alguma outra constelação da história, do pensamento, da cultura, da religião. Aquele verso continua a reverberar na minha mente: “Hashem yikom dam nekiim” – “Deus vingará o sangue dos inocentes”. (KULKA, 2014, p. 72)

Figura 3. Sobreviventes de Buchenwald.

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Assim, as poéticas e políticas do testemunho expõem a responsabilidade iniludível e infinita do apelo inscrito na sobrevivência, mantendo viva a memória da experiência do mal e do sofrimento daqueles que foram assassinados nos campos de extermínio. Prometem portar não apenas aqueles que se foram, mas também na sobrevida13.

4. LEMBRANÇAS DA INFÂNCIA DIANTE DA METRÓPOLE DA MORTE

Figura 5. Crianças em Auschwitz

13 “Sempre me interessei por esta temática da sobrevida [survie], cujo sentido não se acrescenta ao viver e ao morrer. Sobreviver em sentido corrente quer dizer continuar a viver, mas também viver depois da morte. [...] Somos estruturalmente sobreviventes, marcados pela estrutura do rastro, do testamento. Mas, dito isto, não queria dar curso à interpretação segundo a qual a sobrevivência está mais do lado da morte, do passado, do que da vida e do porvir. Não, a desconstrução está, todo o tempo, do lado do sim, da afirmação da vida. Tudo quanto digo [...] da sobrevida [survie] como complicação da oposição vida/morte, procede em mim de uma afirmação incondicional da vida. A sobrevivência [survivance] é a vida para além da vida, a vida mais do que a vida, e o discurso que eu mantenho não é mortífero, pelo contrário, é a afirmação de um vivente que prefere a vida e portanto o sobreviver à morte, porque a sobrevida [survie], não é apenas o que resta, é a vida mais intensa possível.” (DERRIDA, 2005, p. 55.)

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Interpretar as coisas conforme elas vieram a mim em um momento de iluminação a luz sob a qual vivo nessas míticas paisagens de minha mitologia particular, essas paisagens familiares de Auschwitz, da Terra da Morte, da Metrópole e todo o resto. Começou com o seguinte episódio: um colega da universidade convidou-me para assistir a uma conferência sobre o tema Holocausto na literatura. As regras de cortesia me proibiram de recusar o convite, e eu ouvi o que ouvi. A sensação de estranhamento foi devastadora. Existem duas linguagens distintas: uma que não entendo, e outra através da qual vivo aquele período. Mesmo assim, fui em frente e li um dos livros mencionados na conferência. Afinal de contas, alguns dos livros tinham sido escritos por pessoas que conheço – autores excelentes, citados com frequência – e existem autores excelentes em outras partes que obviamente confrontaram o assunto e merecem ser alvo de estudo e análise. Peguei um desses livros e comecei a ler – sobre Auschwitz: uma descrição de uma situação que o autor vivenciou. Para meu espanto, consternado, tudo o que senti, tudo o que li e vi naquela evocação, naquelas descrições, foi um estranhamento absoluto. Entre a descrição de um mundo, a descrição de paisagens, a descrição de uma realidade que era dissociada das imagens, das cenas, das paisagens, das experiências, da presença do passado que é perpetuamente parte do meu presente, há rios que não podem ser atravessados. De modo nenhum consigo relacionar e integrar essas coisas àquelas paisagens. Faço aqui uma pergunta ingênua: afinal de contas, para o mundo todo, ou para todo o público leitor de todas as partes, aquele livro e muitos outros como ele, e muitas outras obras do cinema, do teatro, e das artes visuais, oferecem um modo de entender e vivenciar Auschwitz, seu universo, os guetos, a etapa final, aquela realidade. E todo mundo lê esses livros as vendas são na casa dos milhares –, portanto obviamente eles falam em uma linguagem uniforme a essa miríade de leitores. Mas eu não consigo encontrar neles o que procuram transmitir! É um mundo completamente diferente! A única reação que me sinto capaz de expressar é o estranhamento; de autêntico, apenas a autenticidade do estranhamento. Portanto, pergunto: em que sou diferente? Alguma coisa está errada comigo! E então, como é muito comum, como quase sempre faço em períodos de aflição, eu me refúgio em Kafka, seja nos diários, seja em suas outras obras. Naquela ocasião, novamente abri na conclusão – sempre abro ao acaso –, abri na conclusão do esplêndido conto do homem diante da porta da lei. O homem que está diante da porta da lei faz a mesma pergunta – e é uma das últimas perguntas que ele faz, instigado por sua insaciável curiosidade, enquanto o guarda graceja. Ele pergunta: “Diga-me, afinal esta é a porta da lei, e a porta da lei é aberta a todos?”. Ao que o guarda responde: “Sim, é isso mesmo”. O homem então diz (se é que me lembro corretamente do texto): “Mas durante todos os anos em que tenho estado aqui, ninguém entrou por essa porta”. O guarda assente: “Isso mesmo”. O homem pede que ele explique esse fato intrigante, e o guarda lhe faz esse derradeiro obséquio, dizendo: “Esta porta está aberta só para você, ela existe só para você, e agora vou fechá-la”. Do mesmo modo, tudo o que aqui registrei – todas estas paisagens, toda esta mitologia particular, esta Metrópole, Auschwitz –, este Auschwitz registrado aqui, que aqui fala a partir das minhas palavras, é a única entrada e saída – uma saída, talvez, ou um desfecho –, a única que existe só para mim. Suponho que isso significa que não posso entrar naquele lugar de nenhum outro modo, por nenhuma outra porta. Será que outros conseguirão

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entrar pela porta que abri aqui, que permanece aberta para mim? É possível que sim, pois essa porta que Kafka abriu, que se destinava a uma única pessoa, a K., Josef K., na verdade está aberta a quase todos. Mas para ele havia apenas uma porta que dava acesso à sua mitologia particular. Não sei se essa analogia vale aqui, mas esse é o único significado que consigo encontrar para o enigma da ocupação do meu presente com aquele passado, que vivencio constantemente, no qual crio constantemente, para o qual escapo constantemente, onde crio paisagens mescladas com cenas da realidade e da época da minha infância e do observador, do menino crescido que olha perplexo para tudo isso, e que, antes que ela se feche – antes que essa porta se feche –, faz essas perguntas e, pelo menos para essa questão desnorteante, parece ter finalmente encontrado uma resposta. Não é muito, algo secundário, na verdade, mas é impossível não comunicar essas coisas, não tentar decifrá-las, não acreditar nelas, pois sem essa crença toda a memória das minhas paisagens da infância, as paisagens nas quais sempre encontro liberdade – minha penúltima liberdade – se perderiam. (OTTO DOV KULKA)

A partir das suas lembranças marcadas pela passagem traumática por Auschwitz- Birkenau, Kulka reflete acerca de sua infância e sua condição de criança no campo. O menino crescido olha perplexo para as paisagens da infância e sente-se acorrentado a um passado que não passa: “sou uma criança, afinal de contas, que foi presa com essas correntes quando criança e permaneceu presa a elas em cada etapa de seu crescimento” (KULKA, 2014, p. 24). A partir do estranhamento da voz da infância, a sua narrativa se deixa tocar pela perda da mãe. O trauma recorrente da separação se repete até nos sonhos. De algum jeito tortuoso, o menino escapa do crematório, cavando por baixo do arame farpado ou por algum conduto, conseguindo, desse jeito, sair vivo da situação fatal. Mas, sempre no último instante, por trás de todas elas, ele se descobre fugindo em solidão, afastado dos jovens que foram seus companheiros no bloco. E a certeza, que ele qualifica de racional, de só poder sair dali morto é tão inexorável como a mesma força, apesar da falta de esperança, que o leva a não acreditar plenamente nessa certidão, pois, a cada vez, algo diferente lhe permite evitar ser tragado pela lei imutável.

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Essa é uma situação concreta que se repetiu várias vezes em Auschwitz e que retorna como um paradigma, em forma de sonhos, seja de fuga ou de volta; fuga de trem, a imagem de uma estação deserta à noite, quando subitamente os alto- falantes dizem meu nome, e eu me apresento e sou mandado de volta para Auschwitz. (KULKA, 2014, p. 55)

Ao voltar-se para essas imagens, Kulka relembra a sensibilidade da criança. Através dos fragmentos e detalhes coletados das paisagens sofridas, percorridas e imaginadas, oferece testemunho da sua travessia entre a vida e o sonho. Assim, a tensão e o horror, entre a sensação esmagadora daquela imutabilidade da lei, da liquidação, da aniquilação e a esperança de que talvez, afinal de contas, não fosse enganado, eram mais febris na proximidade do crematório e dos portões pretos do confinamento. O terror nazista levou milhares de crianças à morte, à desolação e à orfandade. Como vítimas da guerra, passaram por tragédias chocantes, sendo estigmatizadas, violentadas, excluídas e discriminadas pelo totalitarismo fascista em diversos países da Europa. Essa situação terrível levou-as a perder toda a esperança diante do fim iniludível. Ao mesmo tempo, ansiavam escapar das suas garras: “pois nesses locais, para as crianças e jovens, tratava-se incessantemente de uma iniciação à vida através da morte” (MONMANY, 2017, p. 5). Na lembrança, a muda imagem da ruína se entrecruza com a imagem da marcha da morte. Até os soldados parecem errar pelas colinas do sonho, preguiçosamente acompanhando de longe os prisioneiros, como cavalos desgarrados, sonâmbulos e errantes. As imagens oníricas que, desde o fim da guerra, descansam intactas na sombra da consciência, também visitam a Boris Pahor14 nas fileiras perfiladas dos moradores da Necrópole: “Trazê-los aos patamares através da lembrança que revivia no meu sonho. E sabia que estava sonhando; mas ao mesmo tempo estava fora dos sonhos e sentia-me plenamente satisfeito por não estar mais com a consciência nua diante de vários milhares de fantasmas silenciosos” (PAHOR, 2013, p. 98). Nesse contexto da violência perpetrada pelo estado genocida, pode-se não querer sonhar mais. Apesar de tudo, aquele resto do sonho vem intempestivo, como acontece nas

14 Boris Pahor é um sobrevivente e escritor esloveno. Seu relato autobiográfico e testemunhal Necrópole baseia- se nas passagens do autor por vários campos de concentração (Dachau, Natzweiler-Struthof, Dora, Herzungen e Bergen Belsen ) quando foi preso por ter colaborado com a resistência antifascista eslovena. Vinte anos depois da Segunda Guerra Mundial, a narração tece as memórias do horror com as suas reflexões e lembranças em relação à volta ao campo de Natzweiler-Struthof

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elmbranças de uma das testemunhas que Svetlana Aleksiévitch (2018) acolhe no seu texto As últimas testemunhas: Crianças na Segunda Guerra Mundial. Lena Starovóitova perdeu os seus entes queridos aos cinco anos. A lembrança da sua mãe e de sua irmã não deixou de visitá-la no âmbito do sonho:

Me ficou um sonho… Um sonho… Minha mãe vestiu o sobretudo verde, botas, enrolou minha irmãzinha de seis meses num cobertor quentinho. E foi embora. Fiquei sentada perto da janela esperando ela voltar. De repente, vi que estavam levando várias pessoas pela estrada, e entre elas minha mãe e minha irmãzinha. Perto de nossa casa, mamãe virou a cabeça e olhou pela janela. Não sei se ela me viu ou não. O fascista bateu nela com a coronha. Bateu de tal forma que ela se curvou… À noite, veio minha tia, irmã da minha mãe… Ela chorava muito, arrancava os cabelos e me chamava: orfãzinha, orfãzinha. Foi a primeira vez que escutei essa palavra… À noite, sonhei que mamãe acendia o fogão, o fogo ardia vivamente, e minha irmãzinha chorava. Mamãe me chamava… Mas eu estava em algum lugar longe e não escutava. Acordei com medo: mamãe estava me chamando, e eu não respondia. Mamãe chorava no sonho… Eu não conseguia me perdoar por ela estar chorando. Passei muito tempo tendo esse sonho… Sempre o mesmo. Eu queria e… tinha medo de sonhá-lo… Não tenho nem foto da minha mãe. Só esse sonho… Não posso ver minha mãe em nenhum outro lugar… (ALEKSIÉVITCH, 2018, p. 137)

Outros sonhos ficam na memória de Kulka e vêm assombrá-lo com suas revelações. Contudo, sua reiteração, e a possibilidade de neles retornar um mínimo rastro nevoento do desaparecido, é algo comum. Através deles, pode aventurar-se entre espaços invisíveis e pouco frequentados no visível, seja por medo ou por qualquer outro motivo nas suas visitas a Auschwitz- Birkenau. Assim descobre, reflete e cola, caleidoscopicamente, os fragmentos das suas lembranças barboleantes, na sua vinda fugitiva da criança que foi e ainda é. Para Kulka, a experiência sinistra e primordial persiste na memória, puxa na iterabilidade da situação extrema e corresponde ao trauma:

que se repete inúmeras vezes e resume, como uma essência altamente concentrada, a lei imutável da Grande Morte. Uma lei que prevalecia e se aplicava a cada um de nós. Engalfinhar-se com ela – sem esperança – e no entanto ansiando compulsivamente escapar de suas garras, foi uma experiência de formação. (KULKA, 2014, p. 36)

O trauma como ferida inscreve-se no rastro do sofrimento, na perda irrecuperável, na interrupção, mas também opera na passagem ao impossível, à promessa, ao porvir, em falta,

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intermitente e desbordante do confinamento fundamentalista no presente vivo que se presume garantido. Assim, a criança que ele ainda é continua a sofrer com o medo do que já aconteceu15

4.1 Aprendizagens entre as sombras

Auschwitz-Birkenau não apenas simboliza para Kulka o sombrio. Nesse local, também teve experiências fecundas que o formariam na cultura e no conhecimento. Vale lembrar que as marcas na sua memória têm contrastes. Diante das dolorosas aporias, ele reconhece a sua experiência de formação com esses breves, mas inesquecíveis acontecimentos educativos no bloco do campo das famílias. Foram vitais e o acompanharam pelo resto da vida, como lembra: “no centro da vida no campo estava o programa educacional, que por sua vez ensejava uma intensa vida cultural” (KULKA, 2014, p. 138).

Esses acontecimentos, no bloco aberto para crianças e jovens na Metrópole do extermínio, podem ser interpretados como aprendizagens entre as sombras. Esses encontros à beira do abismo deixaram marcas de luz na escuridão e permitiram a alguns não ceder plenamente ao desespero, nem perder de todo a força e a coragem diante do rebaixamento, da humilhação, da indiferença e da vulnerabilidade da condição humana. São, ao mesmo tempo, atos clandestinos de resistência, sobrevivência e sobrevida em meio a um sistema letal que administra e impõe a lei da morte sobre a vida.

Nesse sentido, vale lembrar que, acometido por uma doença que o levou a ser hospitalizado, Kulka contou com a sorte do encontro com outros seres em situação precária. Eram prisioneiros doentes e moribundos. Ali, recebeu aprendizagens que demandaram questionar e desaprender as certezas, problematizando a clausura no saber, poder autossuficiente e esclarecido demais que tem sido privilegiado no pensamento ocidental.

Na ocasião entre a palavra dada e o acolhimento, gestam-se acontecimentos e conversações inconclusas que desbordam o diálogo no seu sentido tradicional e simétrico. Relançam para certo humanismo vindo do outro, da palavra finita na hospitalidade

15 Cf (WINICOT, 1964, p 46) Relata que determinadas vivencias de terríveis angústias da infância deixaram marcas que se refletiram na vida adulta.

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catastrófica, de umas frases sem porque, partilhadas na desolação dos campos. Existiram seres humanos excepcionais entre os prisioneiros16 que mantiveram viva a educação e o alento das crianças. Ensinaram incondicionalmente uma ampla gama de assuntos, incluindo hebraico, inglês, artes, matemática, literatura, história e geografia. Herbert, por exemplo, deu a ele um exemplar de Crime e castigo, de Dostoiévski, e explicou quem foi Beethoven, Goethe e Shakespeare. Falou sobre a cultura que eles legaram e sobre Freddy Hirsch, diretor de educação e do centro de jovens, que lutou para que o impossível tivesse lugar no campo das famílias. Foi um acontecimento hospitaleiro da educação baseada na solidariedade precisamente no coração do campo concentracionário de Auschwitz- Birkenau. Durante a ocupação alemã da Tchecoslováquia em Praga, ele decidiu não sair da Europa e lutar pela sobrevivência não apenas de si mesmo, mas também dos outros. Assim, sua tarefa foi cada vez mais firme, tanto no tempo da promulgação das leis de Nuremberg e da deportação para o gueto de Łódź, como no campo de Theresienstadt, para onde foi levado em 4 de dezembro de 1941, bem como na supervisão do bloco 31 no local destinado às famílias checo-judias em Auschwitz, em 1943. Segundo alguns relatos, ele conseguiu convencer os guardas da SS a concederem alguns privilégios às crianças, incluindo isenções de deportação e rações extras, que salvaram algumas vidas, pelo menos temporariamente. Hirsch e seus colaboradores mantiveram como podiam a educação clandestina: um espaço para o jogo, a cultura, a dança, a literatura, as artes, as ciências, para alentar o corpo e a esperança das crianças nessas circunstâncias extremas. Em Terezin, tentou manter, entre os mais novos, a autoestima, a disciplina, o exercício regular e a higiene rigorosa para maximizar suas chances de sobrevivência. Hirsch foi nomeado o lagerälteste17

acampamento familiar, devido a sua liderança. No entanto, recusou-se a usar a violência contra outros prisioneiros e, por isso, foi substituído pelo criminoso alemão Arno Böhm. Depois, em Auschwitz, alguns dos companheiros de Hirsch envolvidos na educação em Theresienstadt seriam peças-chave no intuito de introduzir essa experiência inusitada na vida

16 Como Hirsch não falava bem o tcheco, deu instruções em hebraico e ensinou as crianças a falarem essa língua. Sobreviventes relataram que canções tchecas foram escritas sobre aquele que, até seus últimos momentos, defendeu o ensino justo, que vem da relação cordial com as crianças e do cuidado dos mais vulneráveis.

17 O termo lagerälteste refere-se a um prisionero do campo de concentracao designado pela SS para supervisar o trabalho forçado e realizar tarefas administrativas.

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do campo. A propósito da vida de Fredy Hirsch, Esther Cohen e Aarón Cohen produziram o documentário Paraíso en Auschwitz (2016), que reúne, monta e narra a fascinante e extraordinária história de Hirsch a partir das vozes de 13 sobreviventes. Entre eles, estão mulheres e homens, judeu-checos, que, durante a Segunda Guerra Mundial, eram crianças e depois se encontraram em diversas circunstâncias com ele, o que marcou suas vidas para sempre. Entre as crianças, hoje adultas, que oferecem seu testemunho no documentário, encontra-se Otto Dov Kulka. A produção lembra as terríveis condições de vida no gueto de Terezin, a experiência de aproximação com a arte e a cultura atrás dos muros do campo de concentração e também como, ao final de 1943, o grupo dos cinco mil judeus checos foram deportados junto com suas famílias ao campo de extermínio de Auschwitz-Birkenau. Na proximidade do pior dos infernos, as crianças viveram, graças a pessoas como Hirsch, momentos inesquecíveis. Testemunham a possibilidade da educação como acontecimento ético e político de amor, responsabilidade e cuidado com o outro. Sua surpreendente história não tem sido reconhecida pela memória coletiva oficial. Por muitos anos, foi mantida em silêncio, pela mesma comunidade checo-judia, por diversos motivos, alguns deles vinculados a sua homossexualidade. O documentário relata que Fredy Hirsch conseguiu fazer uma barraca no coração do impossível, um lugar diferente do mundo concentracionário. Na clandestinidade, serviu como um espaço de formação e esperança para os prisioneiros jovens, com ensino nas áreas de geografia, história e artes. O local, no meio das circunstâncias em que nenhum pão se partilhava, guarda a memória das pessoas que ensinaram o valor da partilha. Por isso, os produtores do documentário caracterizam-no justamente como um paraíso no inferno de Auschwitz. O nome do documentário alude à excepcionalidade da história de Hirsch, contada pelas testemunhas que sobreviveram quando crianças e cujos atos, lições e relações de solidariedade tiveram efeitos afirmativos nelas. Apesar de estarem sujeitas à miséria da situação e da condição humana reduzida às ruínas, isso não as impediu de se tornarem seres humanos, que logo desenvolveram em suas diversas profissões sem perder a coragem ética desse aprendizado em

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Auschwitz18 Sobre sua experiência no gueto de Terezín, Otto D. Kulka não conta muito. No seu relato, trata de concentrar-se nas paisagens da grande Metrópole da Morte, aonde chegaria deportado com sua mãe em 1943. Vale lembrar que esse local confinado, conhecido como Theresienstadt, não servia apenas de passagem a outros campos para milhares de prisioneiros. Foi espaço de vitais manifestações de entrega ao outro através de momentos dedicados às artes e à educação. Uma das fundadoras e sobreviventes da Casa de Izieu, Sabine Zlatin não esteve no local na data da detenção, pois viajou para Montpellier e, por isso, não foi capturada com os demais habitantes da Colônia (entre os quais estava seu esposo e diretor da instituição, o educador Miron Zlatin). Aos oitenta e cinco anos de idade, Zlatin (1992) decidiu relatar seu testemunho no texto chamado Mémoires de la “Dame d’Izieu”. O livro está dedicado aos desaparecidos e vem alentado pela necessidade que sentiu a testemunha de exprimir a sua verdade dos acontecimentos. Essa verdade relacionava-se ao processo de Barbie19 um chefe da Gestapo de Lyon e carrasco direto, que assinou por telegrama a tomada da Colônia das crianças e dos educadores em Izieu e sua posterior deportação ao campo de extermínio em Auschwitz. Outra experiência que faz pensar na educação como um acontecimento extraordinário no meio do extermínio ordinário e da violência concentracionária vem de Janusz Korczak (2018). No seu Diário do gueto, testemunha o terror que teve lugar no regime nazista. Como educador e pediatra, expõe ideias precursoras de uma educação atenta aos vulneráveis, instruída pela triste experiência do sofrimento e que luta pelo cuidado e pelos direitos das crianças. Organizador – que não servia para chefe – de diversas obras sociais e atos de acolhimento e cuidado dos outros, nomeadamente das crianças, nos campos de trabalho e na guerra, colaborou

18 Zuzana Růžičková, cravista intérprete da música de Bach, trabalhou como assistente de professor no bloco das crianças em Auschwitz e ajudou a organizar um monumento para Hirsch em 2016. Na dedicatória, disse: “Nós judeus não temos santos, mas temos ‘tsadikim’ – a palavra poderia ser traduzida como ‘justo’ ou ‘decente’. Fredy Hirsch era um homem, ele tinha suas falhas, ele não era um santo, mas ele era justo”. Assim, esses gestos de justiça serão lembrados e reconhecidos pelas gerações por vir e para além dos sobreviventes que tiveram a chance de encontrá-lo, como um faro de luz amiga, que, à contraluz da esclarecida racionalidade ocidental e dos mestres vindos da Alemanha- senhores impassíveis adeptos do totalitarismo –, não deixou de ensinar um conto, talvez Branca de Neve, o traço endereçado ao outro, o valor de um cumprimento, a mão dada na dureza da noite.

19 Klaus Barbie foi apelidado de “O Açougueiro de Lyon”, devido ao seu reinado de terror na cidade francesa ocupada pelos nazistas. Ele enviou judeus para os campos de concentração e também torturou franceses e combatentes da Resistência. Klaus não foi condenado nos Julgamentos de Nuremberg, quando a Segunda Guerra Mundial terminou. Em vez disso, o serviço de inteligência dos Estados Unidos o recrutou como espião. Logo depois, foi enviado para a Bolívia sob uma nova identidade, onde ajudaria grupos paramilitares de direita a derrubar seu governo, e depois à CIA, para rastrear e matar Ernesto Che Guevara.

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para a fundação do centro educativo Nossa Casa de Pruszków, Campos de Bielany, e dirigiu por trinta anos a Casa dos órfãos, um asilo para crianças judias em Varsóvia. Ali no gueto, Korczak abrigou a luz precária dos pequenos em situação cada vez mais frágil. Manteve-se de pé na luta contra as trevas do totalitarismo, até a liquidação do gueto. Marchou com as crianças, acompanhando-as até a morte, no Campo de Treblinka em 1942. A sua vida foi dedicada à sabedoria do querer e do amor, que não se reduz à autossuficiência, nem tem medo de equivocar-se ou de arriscar-se no endereçamento aos outros, como o exprime num cartão-postal enviado aos membros da comunidade da rua Dzielna e que aparece no diário: “Meu amor, meu saber, meu poder e minha fé ao fiel serviço de vocês e entre vocês no árduo trabalho e no duro caminho até vocês.” (KORCZAK, 2018, p. 155). Luciane Fernandes (2015) produziu uma pesquisa dos olhares das crianças que perpassam os traços dos desenhos e narrativas com as suas concepções e experiências do universo concentracionário em Terezín. Segundo ela, é possível aproximar-se dos modos como criavam estratégias para lidar com contextos violentos, sem esquecer-se do trauma das experiências-limite na situação de orfandade e fragilidade extrema. Assim, imagens, poemas e relatos das crianças e dos jovens confinados entre os muros e o arame farpado se interpretam como testemunho da vulnerabilidade dos mais novos no sistema concentracionário e dos modos de resistência criativa (SELIGMANN-SILVA, 2004). Nesse sentido, a linguagem encriptada, os jogos de linguagem, as interações sociodiscursivas, através das apresentações artísticas da ópera infantil que aconteciam no bloco, tornaram-se experiências formativas marcantes. Permitiram às crianças comunicar-se na incomunicabilidade e interpelar em meia voz, com a força desarmante do humor, o regime bélico que silenciava tudo aquilo que tentava desagregar-se da sua lei imutável:

As alusões cifradas, a linguagem em código, permitiam que nós, crianças e madrichim, déssemos expressão às duas facetas da nossa situação. Era importante para nós, independente se aqueles espectadores captavam ou não a mensagem. Aquele humor especial, aquele humor negro com o qual fazíamos graça, mesmo fora dos espetáculos, sobre o único modo de deixar Auschwitz –pelas chaminés, as chaminés dos crematórios –, gracejos nessa linha, ou a linguagem que criamos como nosso vernáculo, era uma obra em progresso gerada ali, e não me lembro de nada parecido, desse ponto de vista, em nenhuma fase da minha vida. (KULKA, 2014, p. 37-38)

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O humor20 manifesto nas peças teatrais que apresentavam os prisioneiros judeus nos campos pode ser interpretado como estratégia de sobrevivência. As peças satíricas das quais participou Kulka quando criança, e em que cada grupo ficava incumbido de apresentar uma situação futura imaginária que fosse baseada na realidade de Auschwitz, são evocadas na narração intitulada “Auschwitz do Céu – Auschwitz da Terra”:

Já não me recordo dos detalhes de todas as apresentações, porém me lembro daqueles sarcasmos, que tanto as crianças como os instrutores entendiam bem. Nosso grupo apresentou “Auschwitz do Céu – Auschwitz da Terra”: como recém-chegados ao Céu, descobrimos com espanto que no mundo lá em cima também havia seleções e crematórios. Ou, em outra cena da peça: para espanto do cirurgião em atividade em Auschwitz do Céu, os mesmos vermes, emissários epidêmicos da morte de Auschwitz, eram descobertos nos intestinos dos pacientes. (KULKA, 2014, p. 34)

Dessa forma, Kulka evoca as tentativas – momentâneas, mas intensas e de sobrevida –, por transgredir pela paródia e o humor negro o negror da lei imutável da noite. Ele se pergunta sobre outras manifestações daquele pensamento, sobre abrir uma brecha no presente e lidar com a lei imutável por diferentes meios, através de outros tipos de protesto:

Protestos como o cabaré satírico no alojamento dos jovens do campo das famílias, o recurso de continuar a preservar os valores da herança humanística com que tínhamos sido criados [...] Obviamente foi só por um breve momento, um jogo para o qual fui arrastado, mas a causa era real: o desejo de retaliar, o desejo de vingar, o desejo de ver uma realidade diferente que viria depois. Por um instante, ele foi concreto. Mais uma vez, porém, volto à questão: foi, afinal de contas, um momento muito breve, minutos apenas, e no entanto permaneceu gravado em minha memória, com toda a pompa dos homens da SS na plataforma, dos prisioneiros, aquela enorme cerimônia. Não obstante, no ponto crucial daquela experiência permaneceu aquele brado, aquele pensamento, e as reflexões do menino que olhou tudo sem pestanejar. Mas volto à questão: teria havido outros momentos como esse, outras manifestações semelhantes, de que me lembro, que teriam subvertido a lei imutável? Muito estranhamente, essa busca nos recessos da memória – tão distintiva e tão seletiva, ao que parece, no modo como essas imagens da Metrópole se alojaram na minha consciência – me conduz a outra experiência de formação: um encontro com a herança humanística da cultura ocidental. (KULKA, 2014, p. 36)

20 Conforme Lázaro Droznes (2018), é necessário pensar no humor como estratégia de sobrevivência, nesse sentido: “O humor judeu é uma forma da dor, do sofrimento [...] O humor é nossa arma secreta [...] Quem não ri está morto antes de morrer.” (DROZNES, 2018, p. 4).

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Aquelas vozes e lembranças das As últimas testemunhas, segundo a escritora Svetlana Aleksiévitch (2018), não podem ser ignoradas ou domesticadas. O grito do seu silêncio não se deixa calar mais na história, nem na literatura, pois as suas lágrimas na sua leve fragilidade portam o peso incomensurável da vida, de um mundo, do sentimento expressado no pensamento que se cita em lugar de prefácio, evocando uma pergunta e resposta de Dostoiévski:

Será que encontraremos absolvição para o mundo, para a nossa felicidade e até para a harmonia eterna se, em nome disso, para solidificar essa base, for derramada uma lagrimazinha de uma criança inocente? E ele mesmo respondeu: essa lagrimazinha não legitima nenhum progresso, nenhuma revolução. Nenhuma guerra. Ela sempre pesa mais. Uma só lagrimazinha… (ALEKSIÉVITCH, 2018, p. 9)

Entre as lembranças remanescentes de Kulka – que se guardam encharcadas em lágrimas, não simplesmente de si, por si ou para si, e que no meio das tonalidades escuras e ruinosas do abismo, às vezes têm cores –, surge um arco-íris que não deixa de fulgir, envolvido na imagem nevoenta e rasgado pela matéria cinzenta da catástrofe que implica a Metrópole da Morte. Uma ponte traumática dessas que em chave se portam e deportam, sem paradeiro conhecido, entre as marcas da memória ferida, exilada, solicitada e sem chão fixo a imaginar e lembrar a passagem súbita à agressão brutal (FLUSSER, 2014, p. 17). Assim, o relato de Kulka, resistente, criativo e interpelante diante da fratura irreparável, entretece-se com ardente paciência, como uma espécie de reafirmação das acusações e da justiça incondicional.

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OTTO DOV KULKA

CHARA BEM AMOS

JOHN FREUND

DINA GOTTLIEBOVA-BABBITT

EVA GROSS

YEHUDA BACON

MICHAEL HONEY

DITA KRAUS

MICHAEL KRAUS

EVELINA MEROVÁ

ZUZANA RUZICHOVÁ

MARIANNE HERMANOVA

BREDRICH STEINER

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Figura 6. Evelina Merová Figura 7. Dita Kraus. Figura 8. Fredy Hirsch

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5. DESCONSTRUÇÕES DO FAMILIAR E O CAMPO DAS FAMÍLIAS

O Familienlager foi o nome de um incomum e contrastante setor em Birkenau, destinado às famílias judaicas deportadas do gueto de Theresienstadt. Sua criação se deu em setembro de 1943 e obedeceu ao plano nazista de manter isolado, por um período específico de tempo, um grupo de aproximadamente cinco mil prisioneiros judeus, na sua maioria checas. Nos cartões de registo, a legenda “6 SB ” assinalava que teriam tratamento especial21. Contudo, conforme a pesquisa histórica, o mais provável é que Himmler queria usar o campo das famílias como lema propagandístico para enganar a Cruz Vermelha ante uma visita do Comitê Internacional, tal como se pensava fazer no gueto de Terezin (WACHSMANN, 2015, p. 78). O campo das famílias em Birkenau é reconhecido por Otto Dov Kulka, em suas lembranças da infância, como um espaço de hospitalidade catastrófica. O BIIb foi um local extraordinário, perpassado pela estranheza do familiar no coração dos infernos, na proximidade das câmaras de gás e dos fornos crematórios. As experiências, encontros, desencontros, ensinos, encenações, aniquilações, ruínas e ausências marcaram profundamente a memória do sobrevivente e constituíram as bases da sua formação educativa e do seu conhecimento cultural e histórico.

No fim de seis meses, ou no decorrer de uma noite, todos os 5 mil, ou todos os que restavam dos 5 mil que chegaram conosco em setembro de 1943, foram aniquilados. Naquela noite de março de 1944, quase todos eles morreram nas câmaras de gás, com exceção de alguns que só por acaso estavam hospitalizados e foram deixados vivos para enganar os outros – os médicos e os pacientes –, minha mãe e eu entre eles. (KULKA, 2014, p. 76)

Em dezembro de 1943, um segundo grupo de aproximadamente cinco mil prisioneiros havia sido deportado para o campo das famílias, mas só o primeiro foi exterminado. Desde então, a sensação da morte semestral se tornou inexorável, porque não existia mais a confiança de sobreviver, ganhada com os supostos privilégios do local. Pelo contrário, a lei fatal que os destinava a desaparecer via-se mais sistemática e irrevogável que nunca. A sua liquidação final foi um procedimento radical executado pelos nazistas no mês de julho de 1944, mandando os prisioneiros dispensáveis para as câmaras de gás, enquanto outros foram

21 O termo "Sonderbehandlung" era usado em documentos pela burocracia nazista para as ações em geral como espécie de "disfarce" para o que realmente ocorria na pratica: a deportação, a expropriação, o confinamento e o extermínio.

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enviados a trabalhos em outros campos concentracionários.

Até o último representante era o lema do extermínio. Ou, como de jeito lapidar, sentenciava Himmler: até que nenhum possível vingador exista para as gerações alemãs por virem22. Segundo as pesquisas, famílias completas foram levadas e devoradas pelo programa de extermínio nos campos. Assim, os sobreviventes jogados no desamparo desse regime aturdidor23 teriam que suportar o duplo trauma de ver-se na comoção desse confinamento e com a dor dos familiares e próximos desaparecidos. “Aqueles que sofreram maior comoção ao ficar recluídos em Auschwitz foram crianças que se encontraram de súbito abandonadas” (WACHSMANN, 2015, p. 402). Segundo a pesquisa de Nikolaus Wachsmann (2015), havia alguns outros campos concentracionários com recintos ou barracões especiais, destinados ao isolamento das crianças judias e separado de outras instalações pelo arame farpado, como foi o caso de Majdanek. Por outra parte, no Leste existiram outros locais semelhantes em condições espantosas. Por exemplo, em Vaivara, confinavam na parte inferior do campo secundário de Ereda, junto aos prisioneiros doentes. Ali, não havia lugar para a inocência. As crianças tinham que viver no silêncio e em conformidade com as normas do recinto, sob a ameaça das seleções e, com frequência, obrigadas a atuar como adultos. Aos poucos, seus rostos amadurecidos demais e até seus jogos clandestinos (como os chamados em Birkenau: “passar revista” ou “câmara de gás”) estavam impregnados pelas marcas do terror.

O relato de Kulka testemunha acerca desses jogos de protesto e resistência inventiva, perpassados por uma espécie de curiosidade e ousadia inconsciente. Quando lembra o jogo que desenvolvia com algumas crianças no campo das famílias, conta que consistia em tentar tocar o arame farpado eletrificado. Em certa ocasião de distúrbios no local, sofreu as queimaduras de um eletrochoque. Sobreviveu, mas, por causa da corrente elétrica que perpassou seu corpo, experimentaria uma sensação flutuante de não saber se estava entre

22 Em Les enfants et les adolescents dans le système concentrationnaire nazi, que se encontra entre os Dossiers et documents d’Izieu, lembra-se da condição extrema que ameaçava os mais novos, nomeadamente as crianças judias que eram deportadas aos campos de extermínio, onde a maioria era selecionada e, depois, assassinada, segundo a política genocida que se resume nas palavras lapidárias de Himmler: “Acho que não haveria justificativa para o extermínio de homens se fosse permitido que seus vingadores, na forma de seus filhos, crescessem entre nossos filhos e netos” (DIDI- HUBERMAN, 2009, p.18).

23 Como lembra Kulka no seu relato, o primeiro encontro direto com o campo de Auschwitz era fulminante e aturdidor não só para os menores. Assim se escuta entre outros testemunhos, nos que se sublinha certa sensação de aturdimento no deportado, que não lhe deixa entender o que acontece.

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vivos ou entre mortos, diante da lei da morte, tremor e intermitência que o acompanharam na escrita da sobrevivência. Assim, na orfandade e na solidão, nenhuma ilusão parece corromper a dureza da lei do tanatobiopolítico mundo dos campos. Ali, despossuído de mínima proteção da civilização, o prisioneiro sentia a

morte muito próxima, mas sempre futura, que não perdeu nada de sua angústia, mas que se cernia como uma sombra familiar sobre os atos e sobre os projetos. A existência cotidiana se representava na encruzilhada da vida e do nada. O prisioneiro judeu passava com seu tormento e sua prudência secreta ao lado dos camaradas não judeus que quiçá não suspeitavam as paisagens que albergava dentro dele. (LEVINAS, 2009, p. 128)

Um artigo de pesquisa histórica desenvolvida por Kulka, quando se deu a abertura dos arquivos de documentos que tiveram o sigilo revogado, permitiu indagar os motivos e aprofundar sobre a vida social do campo das famílias. O texto “Gueto em um campo de extermínio: história social dos judeus no período do Holocausto e seus limites finais”, que acompanha o relato do sobrevivente, como epílogo, aborda questões de vital importância, que tentam responder à incógnita do Familienlager. Nesse artigo – sem referir-se à sua passagem pelo campo, nem recorrer ao uso da primeira pessoa, respeitando a presumível impessoalidade da pesquisa histórica científica –, trata desse caso único, que, além da questão que constitui em si, “nos dá oportunidades de examinar alguns problemas fundamentais da história dos judeus no período do Holocausto, que dizem respeito a uma situação praticamente incomparável de existência humana e social in extremis” (KULKA, 2014, p 133). Os seguintes elementos constituem os contrastes que caracterizavam o bloco e o distinguiam de outros locais: as famílias prisioneiras não eram separadas em campos diferentes, entre homens, mulheres e crianças. Era permitido o uso de roupas diferentes do habitual pijama listrado. A administração interna do campo estava a cargo dos judeus. Além disso, as famílias podiam ficar mais próximas e também foram autorizadas a escrever para seus parentes em Theresienstadt, para aqueles que ainda não haviam sido deportados e mesmo para amigos em países neutros, a fim de transmitir a impressão de que a deportação para o leste não significaria necessariamente a morte. Porém, as imagens de cartões-postais que Kulka cita no relato também mostram a tentativa de advertir, de modo sigiloso, sobre a realidade terrível que era o regime do “tio morte” em Auschwitz-Birkenau.

No entanto, Kulka também rememora gratamente esse espaço-tempo. No meio do

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terrível caos, reuniam-se crianças e jovens em bloco e realizavam-se diversas atividades de educação, cultura e sociabilidade. Isso tornou “o centro da vida espiritual e cultural do lugar, pois era um lugar onde peças eram encenadas, e concertos executados – e tudo, evidentemente, a 150 ou duzentos metros da plataforma de seleção e a trezentos ou quatrocentos metros dos crematórios” (KULKA, 2014, p. 43). Esse lugar, perpassado pelas dificuldades próprias de um local reservado ao confinamento e ao extermínio, era enxergado por muitos prisioneiros, principalmente os mais novos, como um lugar onde ainda eram possíveis a educação, a arte, a ludicidade, a resistência, a amizade, a solidariedade, os surpreendentes acontecimentos e as aprendizagens inesquecíveis. Inclusive, depois do triste episódio da aniquilação do primeiro grupo, tentou- se manter as atividades comunitárias, ainda que com mudanças, pois líderes como Hirsch já não estavam lá. Esses espaços de vida que emergem no meio do caos são prova de que, ainda que as restrições e humilhações tivessem o objetivo de destruir a pessoa física e moralmente, confrontando uns contra outros, as pessoas eram capazes de sobreviver se estivessem juntas.

O estudo histórico de Kulka sublinha a atitude de manter-se como um organismo de vital sociabilidade, ainda nos momentos em que as condições pareciam mais hostis. Dessa forma, tentariam sobreviver com a força da coletividade no terror. Observam-se, nos primeiros grupos estabelecidos no campo das famílias, tentativas de dar continuidade às atividades comunitárias e à vida social e educativa que manteve muitos em pé de sobrevivência no contexto do gueto de Terezin24 Mas também se mostra que a continuidade dessa tendência que o historiador identifica na vida social judaica em 1933, no regime repressor imposto sob o Terceiro Reich, interrompe-se irreversivelmente no encontro com os campos concentracionários, onde as estruturas comunitárias sofreram um processo de atomização radical. O autor se refere particularmente à situação dos derradeiros

24 Annette Wieviorka (2016) lembra que que os nazistas usaram o gueto de Terezin como instrumento de propaganda e fachada de engano em massa. Arrumaram o campo, de forma que ninguém soubesse da carnificina em curso, para a visita do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, conduzido por , em julho de 1944. No diário da sobrevivente Helga Weiss (2013), ela relata que passou, na infância, pela experiência do horror em Terezin, depois pelos campos de Auschwitz, Freiberg, Mauthausen e voltou a Praga depois da guerra. Através do relato e das imagens de fotos e desenhos, testemunha-se a estratégia nazista e a farsa que são obrigados a representar os prisioneiros. Isso eleva uma denúncia diante desse império do absurdo cínico e do engano, assim como da cumplicidade dos que, de dentro e de fora, condescendiam com o extermínio. Os desenhos e as fotografias tomadas a propósito dos preparativos para a visita da Cruz Vermelha em Terezin, em janeiro de 1944, mostram ambientes cheios de arrumações e parafernálias, que tentavam disfarçar a ignomínia, espetáculo que a sobrevivente não duvida em chamar de comédia. Uma macabra comédia armada para encobrir o trágico extermínio dos judeus da Europa.

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sobreviventes que permaneceram no campo ainda depois das deportações e das liquidações dos seus familiares, qualificando essa situação de uma continuação da história dos judeus na qualidade de indivíduos. Assim pensa, e sonda historicamente, no campo das famílias, identificando duas dimensões heterogêneas e inextricáveis que ali têm lugar: “a perpetuidade dos judeus como sociedade mesmo diante do processo de extermínio em massa, juntamente com a sobrevivência dos judeus como indivíduos na população multinacional de prisioneiros do maior campo de concentração e extermínio nazista” (KULKA, 2014, p. 137). Conforme a sobrevivente Dagmar Lievlobá: “as pessoas, estando em condições péssimas, lutavam unidas, se ajudavam uns aos outros e faziam grupos para sobreviver. Inclusive surgiram amizades de toda a vida. Acho que os que sobreviveram foram aqueles capazes de sentir essa solidariedade, de lutar juntos” (LAUERMANN, 2017, p. 32). Dagmar, que também passou por Terezin em junho de 1942 e depois por Auschwitz-Birkenau, conta seu testemunho em Estou aqui por um erro, texto do historiador Marek Lauermann, lembrando sua sorte de sobrevivente: “O azar supôs que sobrevivesse, ainda que não fosse meu destino, e pelo acaso estou aqui” (LAUERMANN, 2017, p. 34). Um erro no registro do ano de nascimento a livrou de morrer junto à sua família na liquidação definitiva do campo familiar de Birkenau em julho de 1944. Nessas paragens sinistras, o mínimo tem grande relevância e o relevante é degradado ao mínimo. Um simples erro poderia implicar a passagem entre a vida e a morte, entre o silêncio e a voz, chamada pela mesma lei do silêncio a testemunhar e herdar na ausência dos desaparecidos. No relato, lembra como “o transporte de dezembro e todo o chamado campo familiar foram liquidados em julho de 1944. No momento da liquidação estavam nele meu pai, minha mãe e Ita. Os três pereceram na câmara de gás25.

25 Marifé Santiago Bolaños, no prólogo de Canto de un abejorro en la primavera para Dagmar Lieblová, escreve a partir do testemunho de Dagmar Lieblová: “Inevitablemente, imagino a la jovencísima adolescente Dagmar Lieblová en Terezín. Un error, dice ella, hace que siga con vida. Canta la música de Hans Krása, , el abejorro… En 1941 este juego escénico, esta ópera delicada, infantil, este cuento se estrena en el asilo judío de Praga. Hans Krása ya había sido deportado, no puede asistir a este pase clandestino de su obra… Entre 1942 y 1945, en Theresienstadt, Brundibár se representará más de cincuenta veces, ese abejorro poliniza la vida. Hans Krása, sin embargo, como la mayor parte de quienes integraron aquel acontecimiento, será asesinado en Auschwitz-Birkenau... No se trata de engañar, de escenografiar un mundo de belleza donde la belleza no cabe. Bien al contrário, la beleza solo sabe rebelarse contra la aberración y permanecer en vela. Una ópera para los niños y las niñas, un maestro, un violín, dibujos, cuentos, para las niñas y los niños... Millones de seres humanos fueron destruidos durante la época infame del antisemitismo hitleriano. A los que no se asesinó, los que no perecieron, portarían la huella de aquella verdad ontológica y cimentadora tatuada en el alma. Una evidência apodíctica. La superficie de las cosas como objetividad del mundo. Se está lo que se es. Dagmar Lieblová, un error de quien escribiera el año de su nacimiento la salva de Auschwitz. Y ella sigue en la vida

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À escuta do testemunho de Lieblová, Lauermann diz que o Holocausto, sobretudo, é história da gente corrente e comum. Essa afirmação apoia-se nas paulatinas transformações da sociedade e da “gente normal”, nos seus íntimos detalhes e expressões, pela violência e exclusão26 que se tornam habituais. Trata-se da naturalização cotidiana das repressões, ofensas, restrições, proibições, humilhações contra as comunidades estigmatizadas pela determinação essencialista da origem, pátria, corpo, gênero, pensamento, ideologia política. Essa rotinização do extermínio começa com a indiferença conivente e a rejeição de parte da opinião pública e de outros setores que olhavam inermes, como cúmplices, e ainda lucraram com o trágico destino dos “inimigos internos e externos”, considerados dessa forma pela lógica autoimunitária do poder nacional-socialista. O testemunho continua a perturbar, com o silêncio estrépito de restos insepultos e com a precariedade da dignidade vulnerada. Luta para que o grito autoritário dos assassinos e pressupostos vencedores não seja o último a falar. Lembrando que, ainda entre os escombros da humanidade faminta e aterrorizada, sobreviver ao Lager é recordar os cimentos dessa humanidade. O historiador, então, dedica-se a escrever sobre a memória das pessoas judias que sofreram a experiência concentracionária. E, dessa forma, a história se expõe à escuta das testemunhas como chave ética contra o esquecimento, procurando os testemunhos sobre as dores, as dificuldades e o tratamento dessas experiências-limite, especialmente na zona de Kutná Hora. A sobrevivência se pensa não apenas como preservação de si, mas se relaciona com a possibilidade de aceder a essa solidariedade de lutar com outros viventes e morrentes e não apenas contra eles. Segundo lembra outro sobrevivente do “campo das famílias”, o rabino Sinai Adler: “As experiências da vida em um campo demostram que o homem tem a capacidade da eleição... porque pode conservar um reduto de liberdade espiritual, de

mandada por su misma no-voluntad que ha sido convertida en judía y deportada con los suyos. Esa no-voluntad es la que combatirán profesores, profesoras, artistas en los campos de exterminio. A esa no-voluntad es a la que vencerá un cuento infantil trascendido por la circunstância, Brundibár, como abejorro polinizador de algo que no puede desaparecer en el abandono ni en la errancia.” (LAUERMAN, 2017).

26 Como pode-se ver no estudo do filólogo Vitor Klemperer, quem analisa a linguagem do Terceiro Reich nas expressões corriqueiras em que acontece a estigmatização, marginação e violência, ao mesmo tempo, oferece uma perspectiva de tonalidade testemunhal diante da guerra que passa pela língua, a atmosfera da sociedade desse tempo, no teor das conversas entre pessoas comuns, os tipos humanos, as esperanças e medos, os heroísmos anônimos, as pequenas covardias nas configurações e discursos reativos da terra e do sangue puros que refundam e instam às pulsões de violências remanescentes na ideia essencialista do povo na pretensa superioridade fixa e dada miticamente.

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independência mental, inclusive naqueles cruéis estados de tensão psíquica e indigência física” (ADLER, 2013, p. 39). Também em seu relato sobre a sua experiência nos campos de concentração, Viktor Frankl (2008) narra o sofrimento da existência nua exposta ao frio, à fome, à ameaça contínua da morte. Mas sem deixar de sugerir que, apesar das dificuldades da situação, a luta pela dignidade da vida, pela liberdade e pela humanidade continua latente e constitui um chamado de esperança e responsabilidade que alenta, na procura do sentido da existência exiliada.

Figura 9. Sobreviventes de Auschwitz: crianças, bebês e mulheres, 1945

Figura 10. Desenho infantil do gueto de Theresienstadt.

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Figura 11. Prisioneiros judeus esperando a seleção depois

de descerem do trem, Birkenau, Polônia, 1944.

6. A INQUIETUDE DAS IMAGENS

Volto à primeira hora da nossa chegada. Essa cena da noite, da escuridão, das luzes, daquela grade de colunas e arame farpado de horizonte a horizonte, é uma das imagens recorrentes gravadas em mim, e eu a elaborei e a construí na imaginação, seja em sonhos, seja em situações particulares nas quais torno a mergulhar naquele tempo. (KULKA, 2014, p. 84)

A leitura diante das imagens está próxima da experiência do umbral, ou seja, à espreita dos rastros no retorno sem retorno entre os múltiplos limiares que entreabre. A interpretação se entretece na escuta das latências nas encruzilhadas entre memória e imaginação. De certa forma, as reflexões se aventuram nas passagens incessantes pelo umbral do testemunho imagístico, em diálogo com o texto, diante das paragens da Metrópole da Morte e sua lei inexorável, entre paisagens espectrais onde, na medida em que se avança, isso se subtrai. Lembrando uma prática cara a Benjamin, através das montagens das imagens- pensamento27, bem se poderia dizer que Kulka lê a história a contrapelo, o que jamais se reduz

27 Imagens-pensamento são registos de um colecionador: lugares, objetos, memórias e sonhos. Forma breve, do aforismo, do fragmento, da pequena crônica, diversamente vazada num “pensamento feito de imagens” e numa

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à simples negação. Porém, não se contenta com modelos disciplinares dogmáticos e se aventura na errância das imagens, questionando a pretensa transparência no movimento espontâneo pelo qual um historiador constitui, em geral, a própria historicidade de seus objetos de estudo (DIDI- HUBERMAN, 2015, p. 102). Com a dinâmica da montagem deslizante entre as imagens e as narrativas que remontam à Metrópole da Morte, estremecem-se e desmontam as abordagens positivistas e fundamentalistas demais da história, da história da arte e da literatura dos campos concentracionários.

No texto de Kulka, comparecem imagens de diversos registros imagéticos, como desenhos, fotos, retratos, gravuras como a de William Blake, afrescos como o de Miguel Ângelo, ruínas como nas fotos das visitas ao que foi o campo de Auschwitz-Birkenau. Algumas aparecem entrelaçadas ao texto e outras são evocadas no relato. Imagens e narrativas ressoam entre elas. As imagens marcadas pela memória traumática não param de tremer e de estremecer a configuração convencional da representação. Essa inquietude e vertigem puxa o pensamento, dissemina a escrita e não deixa lugar a uma representação entendida como dada, fixa ou plena.

As escritas e as fotografias da Metrópole da Morte dialogam na multiplicidade sem iludir as tensões que carregam. Walter Benjamin, caminhante flaneur da cidade, de certa maneira, foi atingido pelo horror da persecução dessa lei fatal que anos mais tarde se materializaria na solução final e acabaria por se configurar no que, para uma criança como Kulka, seria a Metrópole da Morte. Benjamin pensou a possibilidade do diálogo inquieto entre a escrita e a fotografia. O escrever precisa não esquecer o fotografar, assim como o fotógrafo necessita ler suas imagens, tentar certa mediação dialética com a narrativa. Kulka parece sensível a essa dupla questão. Desse jeito, seu texto permite perceber ligações imprevisíveis entre escrita, fotografia, narrativa e história, como traços perpassados pelo rastro diferencial do tempo dilacerado.

Assim, intercaladas no texto de Otto Dov Kulka, elas não figuram apenas como simples acompanhantes complementares das palavras, nem se deixam reduzir pela autoridade ou centralidade do discurso. O diálogo complexo e deslizante entre as imagens e o relato entreabre a leituras do mundo dos campos que não se deixam encaixar na costumeira oposição

“linguagem imediata... capaz de responder activamente às solicitações do momento” (BENJAMIN, 1991, p. 65).

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entre tais regimes de signos. Rastros feridos da memória interpelam e atravessam diferencialmente suas configurações, sem anular o silêncio interruptor que os solicita. Ardem, erram e restam tão fugazes e marcantes como as cinzas da história fraturada no presente convulso, em que de nada vale pretender fugir de imago, achando da realidade um refúgio.

6.1 Errância espectral

A história da humanidade é sempre história, história de fantasmas e de imagens, porque é na imaginação onde tem lugar a fratura entre o individual e o impessoal, o múltiplo e o único, o sensível e o inteligível e, ao mesmo tempo, a tarefa de sua dialética recomposição. As imagens são o resto, a pegada de todo o que os homens que nos têm precedido, têm esperado e descartado, temido e desterrado. E posto que é na imaginação onde algo como a história se tem feito possível, é na imaginação onde esta deve decidir-se de novo uma e outra vez. (AGAMBEN, 2010, p. 53)

As imagens, de algum modo, invocam os espectros que espreitam. A memória é possível através delas. As imagens podem ser pensadas como phantasma, como afeição, que afeita corpo e pensamento. A relação com o tempo leva à lembrança, e esta está mediada pela imaginação: “A memória não é possível sem uma imagem (phantasma), a qual é uma afeição, um pathos da sensação e do pensamento” (AGAMBEN, 2010, p. 14). Agamben, em Ninfas, pensa as mitológicas deidades gregas como imagens da imagem. A difícil relação com as ninfas mostra a complexa relação da humanidade com as imagens. Através delas, reflete a propósito do Atlas Mnemosyne, de Aby Warburg, considerando que “trabalhar com imagens significa nesse sentido operar na encruzilhada do corpóreo e o incorpóreo, mas também, e nomeadamente, do individual e o coletivo” (AGAMBEN, 2010, p. 51). O trabalho de Warburg, à escuta da vibração da matéria nas imagens e nos signos, expõe uma reformulação fecunda em favor da apreciação da potência mnêmica e pensante do icônico. O Atlas se considera como história de fantasmas, teoria e prática da função da memória humana por imagens. O projeto amplo e inconcluso em que comparecem milhares de imagens ambicionava percorrer entre seus painéis o processo histórico da criação artística na modernidade. Como a figura mitológica grega, tenta suportar nas costas o mundo, o mundus imaginalis. Sua pesquisa adquire o rigor e o intuito de uma gaia ciência das imagens sem simplificações dogmáticas. Com a errância e as supervivências das imagens do Atlas Mnemosyne, Warburg permite considerar a questão dos rastros da memória coletiva, que perpassam, anacronicamente, a antiguidade, o renascimento, a modernidade, até nossos dias.

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Por outro lado, na pesquisa desenvolvida por Georges Didi-Huberman, a respeito do trabalho de Warburg, e no encontro de pensadores como Benjamin, fala-se dos atlas das imagens que portam e suportam o mundo, a memória e a tragédia da cultura que faz arder o olho da história. Assim, é possível repensar o papel das imagens e considerar as sensibilidades e saberes inquietantes que ativam, suas viagens e transformações, assim como as montagens e desmontagens representacionais que dinamizam e as ideias em fuga que afloram entre seus intervalos. Em Diante do tempo, Huberman nota que, tanto para Warburg quanto para Benjamin, a imagem está no cerce nevrálgico da vida histórica:

A imagem não está na história como um ponto sobre uma linha. Ela não é nem um simples evento no devir histórico, nem um bloco de eternidade insensível às condições desse devir. Ela possui – ou melhor, produz – uma temporalidade com dupla face: o que Warburg havia apreendido em termos de “polaridade” (Polarität) observáveis em todas as etapas da análise, Benjamin, por sua vez, acabaria por apreendê-lo em termos de “dialética” e de “imagem dialética” (Dialektik, dialektische Bild). (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 106)

Segundo o saber jovial do Atlas ou gai saber inquieto das imagens, as imagens trazem rupturas epistemológicas, sendo “uma forma visual do saber. Ao mesmo tempo, que uma forma sapiente do ver” (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 12). Articulam o paradigma estético da forma visual e o paradigma epistémico do saber, subvertendo a rigidez das oposições e formas canônicas e a condição de existência fundamental de tais paradigmas. As imagens jogam um papel vital na montagem, desmontagem e remontagem do saber histórico. Porém, a duplicidade constitutiva delas impede a redução a um simples documento dado e fixo da história e, simetricamente, não deixa idealizar a obra de arte como um puro momento do absoluto. A imagem como cruzamento das sobrevivências, em que o sentido se suspende, pensa-se como imagem dialética, sendo “uma oscilação não resolvida entre um estranhamento e um novo acontecimento do sentido” (AGAMBEN, 2015, p. 31). Como imagens dialéticas, as constelações que se entretecem no livro de Kulka permitem percorrer a complexidade dos ritmos e dos contrarritmos na Metrópole da Morte. Entre as suas latências e suas crises, as sobrevivências e seus sintomas, tomam a história a contrapelo. As imagens que se montam e desmontam no texto de Kulka transportam e mexem nas diversas camadas da história e no pensamento desviante de caminho ao impensado. Entre imagens e textos, entretece-se a coreografia dos passos, saltos e sobressaltos entre múltiplas temporalidades e espacialidades. Poder-se-ia pensar nas imagens dialéticas de Benjamin,

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pelas polaridades e tensões que carregam, na derivante disseminação e no declinar-se delas mesmas em formas plurais, desmultiplicando-se em devir-fluxo (ALLOA, 2015, p. 7). Por não anular esses confrontos entre as imagens da memória e da pesquisa histórica, trabalha-se sua escrita com essa energia tensiva, por exemplo, quando como o sobrevivente decide voltar para andar pela desolação de Auschwitz no incessante retorno sem retorno:

Andar por aquela desolação em meio à polaridade na qual sempre sinto ali, naturalmente, a presença pulsante da vida e da morte, o maquinário daquela história medonha que não acontece mais. É isso que sempre me atrai de volta àquela medonha lei imutável que se apodera de mim e não me larga e cuja essência, para mim, permanece lá. (KULKA, 2014, p. 123)

Assim se entretecem constelações de imagens-pensamento carregadas tensiva e polarmente, em movimentação titubeante, aqui/lá, entre a vida e a morte, entre a imutabilidade da lei e a penúltima liberdade. Deixa-se ressoar no silêncio o tremor ligeiro e imperceptível que manifesta sua vibração viva, sua vida errante e espectral, embargada em ruínas. Agamben afirma:

As imagens de que está feita nossa memória tendem, de jeito incessante, no curso de sua transmissão histórica a ficar fixas em espectros, e trata-se de restituí-las à vida. As imagens estão vivas, mas feitas como estão de tempo e de memória, sua vida é já e sempre Nachleben, supervivência, ameaçada sem cessar e em transe de assumir uma forma espectral. (AGAMBEN, 2015, p. 23) Para Benjamin, a imagem se relaciona com aquilo em que o que tem sido se une, de modo fulminante, com o agora em uma constelação. No instante da suspensão, a imagem dialética se concebe como limiar entre o imóvel e o movimento. Falando das imagens dialéticas, Agamben (2010, p. 37) lembra que “a teoria benjaminiana não contempla nem essências, nem objetos, mas imagens”. Elas se definem por um movimento dialético que é captado no momento da sua suspensão. A imagem dialética não se reduz à oposição dicotômica, nem à tríade da lógica hegeliana. Sua dinâmica não deixa de ser tensiva. A tensão não se resolve nas sínteses definitivas do sujeito do saber absoluto. As reflexões e pensamentos deslizantes parecem suspendidos bruscamente pela constelação dialética e intensiva das imagens da Metrópole da Morte. Essa constelação montada entre os restos impressos entre as imagens do texto é densa, capaz de relacionar o passado com o presente através de um pedaço de coro, um tijolo, uma foto, um cartão-postal, uma gravura, uma página escrita entre o diário das cinzas, no rastro dos cacos, da história perpassada pelo desastre.

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As imagens implicam múltiplas dimensões. A histórica é uma delas, pois nelas há vida, estão vivas, como lembra Agamben, a partir de Benjamin: elas têm uma vida ninfal, histórica. As imagens transmitidas pela memória histórica não são inertes, nem inanimadas. Têm vidas póstumas, supervivências. Porém, adverte Agamben, elas teriam necessidade de que o sujeito, assumindo-as, una-se a elas. Assim se podem cristalizar e tornar espectros que agem entre a gente. Às vezes se precisa até liberar-se delas. Mas caberia perguntar: isso é possível? Entre sonho e vigia Kulka não apenas capta, mas é tomado pelas imagens, assim elas voltam a cobrar vida, enquanto desperta nelas e delas, no vaivém da escrita errante e espectral.

Na relação intensiva das imagens, os termos não se fusionam, mas se mantêm em tensa coexistência. Elas estão perpassadas pelas forças astrais e monstruosas. Vestígios do sujeito dividido diante da porta da lei da Metrópole da Morte, atravessado pela ferida, partido ao meio, como aparece em “uma foto do portão com suas portas de malha de ferro, e, diante, dele, eu cortado ao meio”. (KULKA, 2014, p. 28) Figura 12. Auschwitz-Birkenau, verão de 1978

Com as imagens-pensamento que povoam as paisagens da Metrópole da Morte, seguindo Benjamin, poder-se-ia pensar na imaginação lendo o que não tem sido escrito. Das imagens mnêmicas, oníricas, poéticas, dos desenhos, das gravuras, das fotos, das imagens técnicas, surgem diversas leituras dos mundos da criança e do adulto retornante, leituras do não escrito, que entre nós se multiplicam e continuam suas metamorfoses. As imagens mnêmicas não são algo inerte, animadas pelas tensões que as perpassam. Estão carregadas com energia capaz de movimentar e perturbar os corpos. No corpo a corpo, através delas, as gerações podem encontrar-se, embora também possam perder-se a si mesmas. Essa dualidade indissociável da imagem sugere os limites e os deslimites da representação imagística. Além disso, supõe que as imagens não só se configuram segundo a normatividade da morte. A imaginação, na perspectiva de Kulka (2014), ainda com suas asas dobradas pelo

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peso da Metrópole inexorável, não deixa de estar imantada pela solicitação das cinzas e pelo desejo infinito da justiça.

6.2 Desenhos no extremo

Nas cartas, nos desenhos, se sente latir o coração das crianças. Melhor que em um longo discurso, se exprimem neles a ternura, a gratidão, a necessidade de umrefúgio tranquilo e cheio de alegria, o desejo de que cada um reencontre a sua família. (Sabine Zlatin)

Em À dessein, le dessin, Derrida (2013) sublinha que a questão do desenho passa como um traço gráfico diferencial entre diversas séries, dentre elas: a visão e a memória, o visível e o invisível, o olho e a mão, o previsível e o imprevisível, o sensível e o inteligível, permitindo reinterpretá-las no seu traçado, colocando em jogo a pressuposta solidez de suas demarcações, configurações e hierarquias. Segundo ele, o desenho relacionar-se-ia com a memória do porvir, com a irrupção do imprevisível que assalta, aquilo que nada seria sem as ruínas e os rastros em apagamento28.

Nesse sentido, conforme lembra a interpretação desse pensamento sem desígnio de antemão predeterminado a respeito do desenho (DERRIDA, 2013, p. 55), para Derrida, o desenhista seria um cego vidente, um vidente sensível à invisibilidade no coração da visibilidade. O sobrevivente, no seu relato, assim como nas fotos, desenhos, gravuras, entre outros gêneros icônicos que atravessam e o visitam e que montam para remontar à Metrópole da Morte, de certa maneira porta essa cegueira que estrutura a visão e reenvia na relação com o tempo, o outro, a memória, o esquecimento, o porvir. Nesse sentido, está exposto sem ter uma autoridade absoluta sobre o campo da visão, porque não deixa de estar entrelaçado, em próteses de origem, pela rede de relações inextricáveis e imprevisíveis que relançam seu ponto de vista entre múltiplas perspectivas e heteronomias.

28 Em distintas obras, o pensador se endereça à questão do desenho, retoma a herança da sua origem perpassada pelo rastro do fugitivo. Na preparação e improvisação, segue e se deixa seguir sem nada a ver pelo seu traço diferencial em diversas obras, em que sublinha o rastro errante das suas alteridades que irrompem, impregnam e portam o pensamento na memória espectral das ruínas, e no inesperado que vem delas, sem arribo pleno, na improbabilidade que mantém a relação de abertura com o porvir aqui e agora, como em Memórias de cego (DERRIDA, 2010) ou também em Pensar em não ver (DERRIDA, 2012).

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Entre os desenhos que Otto Dov Kulka retoma, cita e monta no seu relato, encontra-se o traço de Dina Gottliebova Babbitt. A sobrevivente checo-estadunidense, pintora e animadora, dedicou-se, desde criança, às artes e entrou no Instituto de Belas Artes em Praga antes da invasão alemã à Checoslováquia em 1939. Quando esteve em Auschwitz, em 1944, foi obrigada por a desenhar e pintar retratos de ciganos, também considerados como inimigos do regime racista, para identificar as cores e os traços caraterísticos da fisionomia. Através das fotos, Mengele não podia satisfazer a vontade representacionista, nem obter as evidências científicas que lhe interessavam, baseadas na resolução ardilosa e na disposição capaz de sustentar e reforçar as supostas teorias e mitos sobre a inferioridade racial dos povos judeus, ciganos e outros. A diferença fatal entre a vida e a morte perpassa o traço da desenhista e pintora.

Figura 13. Dina Gottliebova

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Figura 14. Prisioneiros trabalham na entrada no “campo das famílias” em Auschwitz- Birkenau, 1946. Desenho de Dina Gottlieb

Figura 15. Desenho infantil do gueto de Theresienstadt.

Em 1937, a jovem artista ficou impressionada com a estreia mundial do primeiro filme animado da Walt Disney, Branca de Neve e os sete anões. Ousou assisti-lo em 1939, em Praga, ainda infringindo as restrições que impediam o ingresso de judeus a locais públicos e

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culturais. Em 1942, aos 19 anos, foi deportada com sua mãe para o gueto de Terezín. Ali se tornou voluntária na enfermaria, trabalhou na oficina de pintura29 e ajudou as crianças a sobrelevarem essa áspera vida com jogo, arte e humor.

Em setembro de 1943, tal como Kulka quando criança, Dina foi enviada para Auschwitz- Birkenau. Ao final desse ano, nas pegadas do filme antes visto, a pintora fez um mural sobre Branca de Neve e os sete anões, para uma obra que estavam preparando a propósito do conto, junto com as crianças do bloco 31 dirigido por Fredy Hirsch. Ali, contra o impossível e improvável, montaram um musical de Branca de Neve. Entre os espectadores, estavam alguns SS, como Mengele, que, depois de apreciar a apresentação, não tardariam a continuar com o automatismo genocida. Entretanto, a qualidade da artista não passou despercebida pelo Doutor Morte. Babbitt começou a trabalhar como sua desenhista em troca da sua própria vida e da vida de sua mãe. Os retratos da artista, em que aparecem os rostos das crianças, jovens, mulheres, homens, logo assassinados, trazem o testemunho do ignominioso sistema representacionista que procurava legitimar-se, manter o poder soberano, manipulando e criando os seus inimigos para logo submetê-los e destruí-los. Mas a pintora não pretende uma caricaturização da tragédia, nem se esquece dos limites da representação do desenho, tampouco de que nada do que ali acontecia poderia se reduzir a conto de fadas. As imagens não podem simplesmente substituir o drama vivido por seres humanos reais que sofreram, em corpo e alma, o fatal destino da Metropóle da Morte. Nesse sentido, Aarón Cohen, no documentário Paraíso em Auschwitz, relembra uma situação dessas quase impossíveis que aconteceram a Dina em Auschwitz. Em uma ocasião na enfermaria, onde Mengele fazia seus experimentos e lhe ordenava desenhar as diferentes partes dos corpos reduzidos a cobaias, ela viu ao longe uma família de anões: “Eram ‘sete’. Eu não podia acreditar o que estavam vendo meus olhos. Era como se meus anões do bloco tiveram descido do mural e cobraram vida. Não consegui evitar um sorriso pelos anões e o mágico número ‘sete’, mas eu não era Branca de Neve e eles, eram reais” (KULKA, 2014, p. 42).

29 Como lembra Aarón Cohen (2017), em um artigo dedicado à pintora, a oficina de pintura do gueto, em que laboravam reconhecidos pintores judeus dessa época, era dirigida pelos SS. Eles forneciam materiais e ordenavam pintar as representações conveniadas de uma realidade totalmente falseada e propagandística, a despeito do que realmente acontecia. Porém, a resistência artística lograria deixar testemunho. Os pintores clandestinamente pintaram a cruenta noite que, na realidade, era a vida no gueto. Assim, pode-se apreciar os motivos de Branca de Neve e os sete anões, que Dina pintava, como atos de resistência criativa no testemunho imagístico.

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O desenho da artista (Figura 14) que se encontra no texto de Kulka está marcado pela experiência da tortura e do trabalho forçado até a morte. Ali aparece o Kapo e os corpos cadavéricos dos prisioneiros, que arrastavam uma carreta de materiais por uma via sob o olhar vigia do soldado alemão e seu cachorro. Kulka monta essa imagem de punição pública em seu relato como um episódio marcante, que ficou nitidamente gravado na sua memória com a ardência silente da ferida desde a perspectiva da criança. Assim, a imagem de Dina reenvia e deixa evocar no relato aquele incidente em que as pancadas e açoitadas atingiram um prisioneiro, punido enquanto os outros eram forçados a assistir. Nessa recordação, uma atmosfera fantasmagórica espectraliza sua memória. As imagens intempestivas saturam o ar com uma mistura de névoa e uma visibilidade úmida e silenciosa. O ar da névoa faz cada detalhe visível no ilegível. No campo da invisibilidade, são possíveis os traços do visível. Assim, desenhos e desenhistas, testemunhos e testemunhas, sobreviventes e sobremorrentes, são tomados pelo outro para outro, endereçados na cega errância das imagens, reenviando ao que resta, na invisibilidade do buraco negro, no sem testemunha nem testemunho, e sem cessar, interpelando a testemunhar. Os espectros das imagens e os textos deportam, naquela manhã nevoenta, onde a visibilidade é nítida. Mas ao longe desaparecem intermináveis, até desenhar um ponto singular, ponto de uma ferida, de um trauma único e que itera intermitente, constelar, que, sem perder sua marca singular, entretece-se com outros rastros e experiências-limite. Assim se evoca quando os SS organizaram um chamado na praça do campo e um prisioneiro que tentou se ocultar na latrina coletiva foi encontrado e espancado. Essa “cerimônia” de punição pública e quase divertimento para os carrascos não foi a única no cotidiano dos campos, mas a que se gravou com toda a violência na sua memória. A imagem que o relato descreve não está sobrecarregada de detalhes e joga entre a opacidade e o nítido da invisibilidade cortante da névoa. Apesar dos golpes que chovem sobre o crânio, não têm o barulho dessa situação absurda, os golpes batem maquinais e de um jeito que, no tímpano da memória, as ações acontecem, exilando as palavras no silêncio:

Tudo aconteceu como que em silêncio, sem som, no ar saturado de névoa, e, no entanto, tudo também estava perfeitamente nítido e próximo, cada detalhe visível. O prisioneiro, em uma espécie de dança grotesca, estrambótica, tenta se esquivar dos golpes e proteger os lugares onde é golpeado. Chovem pancadas por todos os lados e, sempre na esteira, as manchas vermelhas na cabeça. Como se fosse uma espécie de jogo. A impressão que me ficou marcada na memória – sem nenhuma consciência moral do ato de tortura – permaneceu apenas como uma imagem na minha

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mente: o jogo de taco jogado pelos homens de verde da SS, os Kapos em seus trajes bem passados de prisioneiro, o prisioneiro, de cabeça raspada, com um uniforme de prisioneiro imundo, sendo espancado e torturado. De sua pessoa como um todo eu gravei apenas uma parte: a brancura do crânio onde as manchas vermelhas brotavam e o sangue escorrendo pela face. (KULKA, 2014, p. 54)

Conforme conta Kulka, o horror dos crematórios se desenha na forma de um buraco na memória. A experiência primordial da ferida, a que persistiu, é o trauma. Memória de branca inquietude que permite lembrar um texto de Georges Didi-Huberman, em que se tocam as feridas das que não se pode falar, nem há como não tremer e falar, ainda que seja entrecortadamente, e sem esperança de escapar ao seu influxo. Dupla impossibilidade de dizer, de se calar. Porque a boca não suporta o seu grito, porque o poder que espanca e trabalha para o esquecimento remendou, em tentativas de reparação, a sua conveniência ou, ainda, a sequestrou, formando brancas inquietudes que perpassam a história. Mostrar isso, lacunar e doloroso, implica montar esses acontecimentos monstruosos e catastróficos de modo que, sutil e miniaturalmente, assume o tremor que deixa vibrar e estremece os fundamentos das nossas abordagens dogmáticas e percepções pressupostas. Pode-se notar através dos trabalhos da artista Esther Shalev-Gerz30 como os silêncios irrompem, deixando ressoar imagens dialéticas, entre os testemunhos dos sobreviventes (DIDI-HUBERMAN, 2017, p. 33). Então, é possível falar da matéria impura dessa brancura das feridas e traumas como o silêncio de quem retorna do inferno e desenha, silente e cego, o trauma, a ferida, a insuportável inquietude que marca as imagens que não cessam de espreitar. Entre traços diferenciais e signos interrompidos, assinala-se a promessa em infinito perjúrio, que nada garante nem redime, mas não deixa de destinar-se, de manter na abertura com o desconhecido, com o que não se tem relação fixa nem dada, esses que se foram, os que estão, aqueles que talvez venham. Entre os traços iconográficos da catástrofe, os desenhos das crianças e dos jovens prisioneiros nos guetos e nos campos são muito relevantes, pois são imagens vindas do olhar dos mais novos diante da experiência-limite. Não têm a pretensão de suavizar ou de ser mais

30 A artista lituana, há algumas décadas, trabalha nas suas instalações com a memória em movimento e a história da Segunda Guerra Mundial desde o ângulo do lembrar, o passante como espectador ativo e a alteridade no tempo e no espaço. As obras acolhem testemunhos, como em MenschenDinge: O aspecto humano das coisas, realizada entre 2004 e 2006 para os memoriais de Buchenwald e de Mittelbau-Dora.

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reais que a realidade, mas são inscrições afins ao desejo de escrita da criança ameaçada pelo extermínio. Fornece-lhe um jeito para encarar o acontecimento traumático, para portar e responder, a partir da resistência criativa, à hostilidade da experiência concentracionária. A aventura do traço entre cartografias e escritas do desastre mostra as potentes sensibilidades das crianças e inteligibilidades em ocasiões invisibilizadas. Assumidas desde uma perspectiva testemunhal, eles expõem os vestígios e as constelações das imagens-pensamento da Metrópole da Morte. Nelas, surpreende o olhar detalhista e trapeiro da criança que enfrenta o dilema de insistir em desenhar nessa situação extrema de apagamento dos traços da existência dos aniquilados. Os rastros desses desenhos sem desígnio preestabelecido não deixam de questionar e problematizar nossos atos de olhar, escrever, ler e interpretar, deixando tremer as configurações representacionais amparadas em modelos de realidade e de linguagem soberbos e totalitários baseados e emparentados na mesma lógica que levou à perpetração do nefasto.

Vale lembrar o diário da sobrevivente Helga Weiss, que trata do apelo feito por seu pai em uma carta que ele lhe envia de um campo de concentração, instigando-a a desenhar tudo aquilo que viesse. Seu testemunho entretecido entre desenhos, imagens fotográficas recopiladas após a guerra, os cadernos e as folhas de diário apresentam entrecruzados narrações, fragmentos, visões e desenhos de uma criança em trânsito para a adolescência, exposta à experiência do horror em Terezín e às passagens pelos campos de Auschwitz, Freiberg, Mauthausen e a volta em Praga depois da guerra. Assim, as impressões dessas experiências inscritas no texto dialogam, mesmo na interrupção, com os desenhos, entre fragmentos de memória e imaginação de outras paisagens, ao deixar ressoar o chamado da amizade interrompida pelas chamas: “esqueça as horas de sofrimento, / Mas nunca as lições que ensinaram. / Em memória de Francka”. Ou mais adiante: “Quando o prato principal for batatas e nabos, / Terezín está contigo” (WEISS, 2013, p. 32). Memória das imagens dialéticas, impregnadas de melancolia, e às vezes de alegria. Entre os desenhos, aparecem os sonhos, assim como os dejetos, cujos traços e sombras impregnam, com a presença do ausente, como naquele datado de 10 de março de 1943, intitulado “Raspando os restos”. O corpo curvado do idoso faminto na procura dos restos de uma batata podre deixa ressoar a figura trapeira daqueles que recolhem o deixado de lado, no passo inclemente dessa maquinaria de inanição e morte. Pode-se encontrar, nos testemunhos imagísticos dos desenhos que anexa Kulka ao seu

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texto, vindo tempo depois do choque e diante da experiência traumática, a infinita exigência de imaginar, de traduzir inacabadamente entre imagem e texto, tarefa incompleta que se torna indissociável da sobrevivência. Os testemunhos da catástrofe de crianças e jovens, em desenhos, poemas, cartas e diários, trazem suas impressões e sentimentos. Manifestam, como nenhum outro, essa dimensão de vulnerabilidade, resistência e imaginação do testemunhar. Esses traços, às vezes pouco acolhidos pelos estudos do testemunho e da memória histórica, constituem fonte fecunda para perceber as dimensões aporéticas e paradoxo-poéticas do testemunho. Também fazem notar as dinâmicas, tensões e relações que a memória implica, pelas suas sensibilidades, a curiosidade e as descobertas, que na vulnerabilidade e talvez de outro modo que saber, poder ou ser, nos oferecem. Entre as cinzas, constitui-se a matéria corrosiva, resi-restante e iniludível do testemunho.

Entre outras constelações narrativas e imagéticas, pode-se falar dos textos reunidos por Catherine Coquio (1999) e Aurélia Kalisky (2007) em L’Enfant et le génocide: témoignages sur l’enfance pendant la Shoah. A obra constitui um esforço por recolher, montar e não deixar perder no esquecimento os restos dessas memórias dos desaparecidos. Já a coleção inédita de fotografias, desenhos, cartas e fragmentos de testemunhos, reunidos com o apoio da Maison d’Izieu e da Fondation pour la Mémoire de la Shoah e apresentados por Jean- Christophe Bailly e Kathel Houzé (2012) em La colonie des enfants d’Izieu 1943-1944, mostra a possibilidade de remexer nas camadas da história e percorrer o destino das crianças e dos adultos capturados pela Gestapo e pela armada alemã em 6 de abril de 1944.

As imagens desenhadas e as fotografias que apresenta o texto de Helga Weiss (2013), assim como a aposta do jogo da imaginação na escrita, constituem formas de resistência e de intervenção criativa dentro desse estado de coisas que tenta obliterar qualquer possibilidade de expressão ou liberdade. Entre as ruínas, essa memória sobrevive. Ao oferecer-se seu testemunho, eleva-se uma denúncia diante desse império do absurdo, do engano e da cumplicidade com a carnificina, como manifestam os desenhos da sobrevivente e as fotografias tomadas a propósito da visita da Cruz Vermelha em Terezín, em janeiro de 1944, cheia de preparativos que tentavam disfarçar a ignominia e que a testemunha não hesita em chamar de comédia. Essa cena permitiria fazer um diálogo com o relato de Kulka, quanto a sua experiência em Auschwitz, no Familienlager. Diante dessas imagens-limite, com portões deslizantes, de limiar trêmulo e

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interminável, que transbordam as nossas capacidades e deixam tremer a intencionalidade da consciência segura de si, entrecortando o sollus do sujeito com consequências incalculáveis, Otto Dov Kulka se arrisca, como já na sua infância o fazia, na fronteira entre a vida e a morte. Como lembra Flusser (2014), é que a expressão literária, imaginária e imagística – apesar de impossível, falta infinitamente – tem uma tarefa tão difícil como inadiável. “Tarefa praticamente impossível imaginar tudo isso. Tarefa indispensável.” (FLUSSER, 2014, p. 208). O texto chamado Terezín é dedicado aos poemas de Edith Arnhold (1981). A poeta, nascida na Alemanha e radicada no Brasil, canta cavando seu canto envolvido em cinzas e endereçado aos já idos, chamando a ler, escrever, imaginar o praticamente inimaginável, a montar e desmontar o inconcebível, o indigesto, o indigerido, que “se esconde no próprio núcleo da cena atual e a corrói de dentro para fora” (FLUSSER, 2014, p. 207).

Sem ter experimentado essas tensões inevitáveis e o desafio diante do praticamente inconcebível, não se pode compreender, avaliar, engajar ou decidir na cena atual. Por isso, segundo Flusser, a leitura desses poemas é fundamental na tentativa impossível de imaginar o inimaginável, de dar à luz o inconcebível, sem apagar suas sombras, de escutar os restos que resistem ao silêncio, chamando a atuar no presente. Nesse sentido, seria possível pensar na necessária leitura do relato de Kulka. Os rastros espectrais e errantes das suas palavras e imagens, que portam e deportam à Metrópole da Morte, não deixam de alumbrar nos distintos contextos necropolíticos e do estado de exceção que afetam as cidades e sociedades atuais.

7. DAS ARQUITETURAS DA METRÓPOLE DA MORTE ÀS MORADAS DO TESTEMUNHO

Kulka (2014) lança um olhar melancólico sobre as paisagens e arquiteturas da Metrópole da Morte entre as ruínas, entretecendo a memória na vibração retornante das imagens aí impressas. Evoca as múltiplas camadas temporais e espaciais que comparecem entre o corpo de imagens e palavras. Através da narrativa e da fotografia, seguem os vestígios de caminhos pouco frequentados que o endereçam a Auschwitz- Birkenau e logo em Struthoff, além de outros locais, por cartografias registradas na sua câmara e no seu caderno de diário. Na caminhada pela Metrópole da Morte e suas imediações próximas e longínquas, o passado se descobre como aquilo que, incessante, atualiza-se na sua apresentação, na descontínua e íntima interpelação daqueles que atravessam as imagens e são tocados por elas.

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Conforme lembra Jean-Christophe Bailly, no texto A frase urbana:

A cidade, no seu tecido vivente e táctil é como um gigantesco depósito de imagens, de imagens com frequência perdidas que não aparecem senão na memória do passante. E que estagnam, esperando, como uma reserva que o ritmo percorre e às vezes acorda. Toda cidade é como uma memória dela mesma que se oferece a ser penetrada e que se infiltra na memória de quem a atravessa. (BAILLY, 2013, p. 65)

As imagens e os fragmentos que perpassam o passante são desconhecidos e invisíveis, mesmo para quem os carrega e fica exposto entre eles. Também passam despercebidos para os guardas das necrópoles da memória histórica ou para os turistas que passam alheios entre sua materialidade sinistra e ficam alienados pelas representações que pressupõem uma configuração totalitária da história, que exclui o resto dos vestígios de outras constelações possíveis. O vínculo entre a fotografia e a cid e a cidade dá a pensar no que lembra Jean-Luc Nancy, em A cidade ao longe, nos seguintes termos:

A cidade e a fotografia se correspondem uma com a outra. Talvez até se pudesse dizer que se contém uma à outra: A cidade está sempre na foto, assim como a foto deve, em um princípio, nascer na cidade. À cidade, em efeito, pertence a existência múltipla, móvel, instantânea que a fotografia preferentemente captura e surpreende. (NANCY, 2013, p. 75)

A Metrópole da Morte percorre-se entre relato e fotografia, na sua rede de pulos e descontinuidades, entre suas intimidades e exterioridades. “A cidade e a foto são dois sistemas de captura da passagem: ambas, ao igual que o passante capturado, nunca cessam de passar por ali” (NANCY, 2013, p. 76). Entre as fotografias de Kulka aparecem alguns restos, coros de calçados, cascas e outros troços de materiais que pega e coleciona das passagens pelas paragens da ausência onde viaja entre corpo, imagens e palavras, por Auschwitz-Birkenau, Strutthof, Jerusalém, Praga. Esses detritos que desbordam a categorização de objeto histórico dado e fixo, a disposição da historiografia positivista são cacos que guardam a memória, a senda perdida do conhecimento, a interrupção do sentido pressuposto de antemão e as possíveis associações, estranhamentos e correspondências entre espaços e tempos diferentes e longínquos. Assim, irredutível a uma continuidade temporal ou espacial, e desmarcando-se da historiografia convencional, Kulka é sensível a eles como um trapeiro atento ao caleidoscópio dos detalhes entre as necrópoles da nossa era.

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Vale lembrar a figura do colecionador é cara a Benjamin, para quem a história das imagens dialéticas desintegra-se, dissemina-se em imagens. O historiador, entre alegorista e melancólico, monta e remonta, compõe e destaca as imagens-pensamento vindas das ruínas entre memória e imaginação. Como afirma Márcio Seligmann-Silva (1999) a propósito do autor do Passagen-Werk:

O trabalho deste catador de detritos, de restos, transforma esses elementos desprezados, recusados – recalcados/denegados – pela sociedade na matéria do seu conhecimento. Ele dá a esses objetos uma nova significação, eles transformam-se num tesouro porque encerram a verdadeira história da sociedade que os produziu. (SELIGMANN-SILVA, 1999, p. 184)

Esses restos da história, rastros e resíduos da catástrofe, que se acumulam e coletam, permitem remontar, mexer e remexer entre as camadas do tempo, para configurar e experimentar leituras do microcosmo da Metrópole, da civilização e da cultura à escuta das vítimas e do silêncio que ainda embarga a tragédia do desastre.

Os traços claro-escuros da fotografia, pensada como skiagrafia ou escrita de luz e sombra, transporta e deporta o fugitivo à presença espectral das ruínas, ao que foi atingido pela lei da morte e cuja ausência condensa. Nancy afirma: “A fotografia se entrega a uma suspenção: imobiliza uma ausência, a retirada de uma presença” (NANCY, 2013, p. 76). Ainda no seu coração autotélico, a fotografia está endereçada ao outro. Ao rastro diferencial do tempo que passa e perpassa, dilacerado no suspenso cintilante da instantânea. Entre as múltiplas espectralidades das fotografias, testemunha-se. A fotografia resta irredutível a uma verdade axiomática, ao sentido pleno, transparente e logocêntrico. Desse modo, seria possível falar das poéticas e das políticas do testemunho fotográfico? Derrida (2012), no ensaio “Aletheia”, que acompanha as fotos de Kishin Shinoyama, pensa o corpo da fotografia como a figura da mulher, que, segundo o filósofo, “gosta de mostrar que se esconde no próprio limiar da luz” (DERRIDA, 2012, p. 306). Assim, refere- se à iminência do ato fotográfico, à espera sem horizonte que entretece, no desejo de decifrar e deslizar-se nas suas dobras, contrastes e enclaves. Como o pensador afirma, a mutação fotográfica, como toda técnica, não se reduz exclusivamente ao seu acontecimento moderno:

mas pertence à physis, ela marca a différance da relação a si em uma physis que se olha, uma, única, só consigo mesma, ela que vem e se afasta de si própria o tempo de se ver e, portanto, de cegar a si mesma – e que se ama. Que gosta de se esconder, como dizia Heráclito da physis (Kryptesthai philei). (DERRIDA, 2012, p. 308)

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O traço diferencial atravessa o desejo da escrita skiagráfica que se aventura entre luz e sombras. Ele impele o sobrevivente pelas paisagens da memória e da imaginação, permitindo traçar cartografias intermitentes entre o sonho, a vida, a morte, a sobrevida, e a sobrevivência. “O desejo é também o desejo da fotografia. Desde sempre. Desde que há physis, e mesmo que isso seja muito antigo, a fotografia sempre terá sido iminente, incessantemente, a própria iminência no desejo” (DERRIDA, 2012, p. 309).

***

Entre as textualidades labirínticas e as paisagens da memória e da imaginação no texto de Kulka, descobrem-se vestígios de espacialidades e temporalidades pouco frequentadas. As arqui- texturas do campo de Auschwitz não têm sido muito visíveis para a pesquisa histórica, nem mesmo para a literária, como o lugar reservado às famílias, que existiu durante um período específico, de 1943 a 1944.

Auschwitz se constrói como campo de concentração e vai mudando ao longo de sua história, no intuito de implementar o domínio absoluto sobre a vida e a morte. Ele é erigido sob um modelo arquitetural endereçado ao extermínio, como dita a lei. Essa lei última é ela mesma negror e fechamento de um plano reitor da construção sistemática, plena e eficiente para a destruição e a solução final, que exclui qualquer outro rastro diferencial, procurando impor só a totalidade megalômana da Grande Morte. Segundo a concepção nazista, o trabalho criador baseia-se na eficácia. A coerência e a homogeneidade sistemática são elementos caraterísticos nos quais se procura sustentar a sua autorreferencialidade mítica. Assim, acredita-se que a capacidade engendra a “raça”, e o poder confiante dessa vontade ilimitada basta para preservar-se na sua arte da eternidade (MICHAUD, 2009). Segundo Eric Michaud, distintos regimes fascistas se baseiam no princípio idealizado da política estetizada, em que a população se modela sob o “gênio artístico” do ditador. Apesar das características comuns, seria enganoso pressupor uma vinculação tão imediatista e midiática entre um pressuposto estilo do Terceiro Reich, a representação arquitetural do corpo político erigido sobre o mito nazista e a ideologia da estética da solução final e da solução final estética. Inclusive, pode-se lembrar o que afirma Albert Speer, arquiteto-chefe e ministro de armamento do regime nazista:

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Na realidade não existia um ‘estilo do Führer’, por muito que a equipe da imprensa do Partido falasse dele incessantemente. O que constitui como arquitetura oficial do Reich era apenas o neoclassicismo transmitido por Troost, que mais adiante, ao transformá-lo, exagerá-lo ou ainda seria deformado até o ridículo. Hitler achava ter encontrado nas tribos dóricas alguns pontos de conexão com o seu mundo germânico, o que fazia que apreciasse mais o caráter supratemporal do estilo classicista. Ainda assim, seria um equívoco procurar um estilo arquitetônico com base ideológica. Isso não teria respondido ao seu pragmatismo (MICHAUD, 2009)

Dessa forma, Albert Speer, nos desenhos de Nuremberg ou no prédio da cancelaria, adotaria um desenho de modelo classicista e idealizante, caraterizado pelo conjunto representativo orientado para o eixo dominante, lembrando a ambição das edificações da fachada marcial, fechada sobre si. Essas edificações se elevam monumentais, com suas cúpulas de ostentação heroica, onde deixar ressoar, uniformes, o alvoroço e as trombetas do “povo da terra e do sangue puros”, na adoração de um corpo político totalitário elevado sobre o caos social e as ruínas das vítimas silenciadas31. Por outro lado, Rosenberg (2016) no seu texto Der Mythos des 20. Jahrhunderts (1930) O mito do século XX, tenta demostrar a superioridade do homem teutônico, sua medida e racionalidade arquitetônica sobre outros povos. Ele afirma que a mistura racial teria sido a causa da queda das grandes sociedades, expondo a radicalização tergiversadora do darwinismo evolucionista social. Dessa maneira, a refundação desse mito se inscreve no espírito fundamentalista e racial da grande cultura que anima a arquitetura interna e externa do nazismo. Segundo Rosenberg (2016), a edificação que em si exprime a expansão da vontade do espaço vital puro seria um reflexo perfeito do sangue germânico digno de ser cultivado:

Cada raça tem a sua alma e cada alma a sua raça – uma arquitetura interna e externa singular, uma aparência caraterística e estilo de vida, e uma relação única entre as forças da vontade e da razão [...]. Cada raça cultiva o seu ideal mais elevado. A infiltração massiva de sangue e ideias estranhas transforma ou destrói isso, e o resultado desta metamorfose interna é o caos e, às vezes, a catástrofe. (ROSENBERG, 2016, p. 57)

Vale lembrar que as relações entre arquitetura e poder perpassam a história. Segundo Eric Hobsbawm (2013), em tempo de rupturas, e ainda mais nos nacionalismos e na “Europa

31 Debórah Dwork e Robert Jan Van Pelt (2004, p. 124) lembram que, “como poderosa testemunha de um passado partilhado, a arquitetura monumental carregava a geração atual com um senso de orgulho nacional que transcendia as divisões políticas e sociais”.

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dos ditadores”, entre 1930 e 1945, procurava-se que o âmbito arquitetônico exprimisse a megalomania pela riqueza e o poder32 . Mas dito vínculo não é simples, nem imediato, pois às vezes a fragilidade dura das pedras testemunha, entre suas marcas e incisões, tentativas absolutistas dos sistemas totalitários que pretendem inscrever seu domínio. Isso que se tenta imprimir se relaciona a uma arqui-textura acabada e plena de si, clausurada no culto à vontade de si mesmo e sem outro espaço aos outros que o seu domínio, ocupação, afastamento e extermínio. Essa situação pode ser olhada na tendência ao fechamento absoluto da representação, reflexo de si, pretensamente autossuficiente, grandiosa, sistemática, impassível rastro que se expande entre diversos espaços do nazismo. Diante das paisagens de Auschwitz, entre torres uniformes, blocos, campos classificados e zonas industriais, da estação, da rampa e do arame farpado, e diante das bétulas de Birkenau33, caberia perguntar: existe um fascínio no nazismo pela arquitetura do extermínio edificada na Metrópole da Morte? Todavia, as memórias de uma cidade, no murmúrio espectral de suas rachaduras e criptas, como aquelas que embargam a Metrópole da Morte, revoltam e reenviam, onde menos se espera, entre traços que parecem distantes. Dizem de outras texturas e interrupções, além do poder, perpassadas pela abertura da ferida e pela força das alteridades dos rastros e ruínas dos moradores espectrais, dos desaparecidos, cuja ausência marcante resta e transborda entre os muros, subsolos e outros resquícios remanescentes e indômitos desses espaços do terror.

32 Hobsbawm faz essa afirmação no texto Um tempo de rupturas: sociedade e cultura no século XX. Historicamente, o poder tem se servido da arte para sua própria glória e preservação, com fins propagandísticos, para transmitir e naturalizar o sistema de valores do Estado, para sua posta e organização teatral no público. Os regimes como o fascismo e o nazismo se achavam arquitetos de edifícios novos, não se propunham a restaurar ou a melhorar a sociedade, mas transformá-la e reconstituí-la segundo a vontade e o ideal do povo convenente ao regime. Inclusive, quando se tratava de restaurar, os ditadores almejavam movimentar o passado nacional em seu favor, com a criação de mitos ou invenções que fossem necessárias. Tratava-se de proibir as vozes dissidentes e de fazer obrigatória a ortodoxia estatal. “Naqueles sistemas o poder não apenas impôs à arte umas exigências descomunais, mas também para a arte ficou difícil, e inclusive impossível, escapulir das exigências e os controles da autoridade política [...] Assim pois, o que o poder destruiu e afogou na era dos ditadores é mais evidente que o conseguido. Esses regimes se destacaram mais por impedir que os artistas indesejáveis criassem obras indesejáveis que por encontrar uma arte de qualidade que expressasse suas aspirações” (HOBSBAWM, 2013, 0070. 228).

33 Segundo lembra, em Cascas, Georges Didi-Huberman: “‘Bétulas de Birkenau’ foram as árvores, ‘Bétulas’ é Birken; ‘Bosque de bétulas’, Birkenwald, que deram nome ao lugar que os dirigentes do Campo de Auschwitz julgaram por bem, como é sabido, dedicar especificamente ao extermínio das populações judaicas da Europa” (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 101).

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No que tange aos campos da morte que foram disseminados pela Europa na Segunda Guerra Mundial, no texto de Nikolaus Wachsmann (2015), KL História dos Campos de Concentração Nazistas, estuda-se globalmente a transformação, o funcionamento e o imposto neles. Mostra-se que o elemento central do sistema consistia no terror engendrado pelo Estado nazista, através dos diversos métodos que combinaram a escravidão, a exploração industrial, o estupro, o ultraje e as mais novas técnicas e tecnologias do extermínio, entre outras formas de aniquilamento mais rudimentares. As convenções do partido nazista foram realizadas em Nuremberg a partir de 1932. Já em 1936, época das Olimpíadas e da instalação do congresso de Nuremberg, a vontade e a genialidade foram tomadas como valores de superioridade racial e, impulsionadas pela pragmática da maquinaria propagandística, tentaram estruturar uma atmosfera de força e otimismo irrefutável. Foi uma nação idealizada à Germânia, sob a batuta do trabalho purificador34 de quem a opinião pública35e o seu séquito entronaram como mestre o supremo arquiteto da Alemanha. Isso ocorreu com a atitude conivente da maioria da sociedade alemã e de boa parte do mundo, pois “o medo inspirava silêncio. Todo alemão sabia dos campos de concentração, onde sempre havia lugar para mais um. A complacência encorajava o silêncio.” (DWORK & PELT, 2004, p. 123). Com a guerra – na qual ninguém parecia acreditar, mas que já estava em curso, segundo o senso e a autolegitimação da concessão do espaço vital que defendia o nazismo – os avanços ardilosos e relampagueantes trouxeram maiores angústias para as diversas nações ocupadas, nomeadamente para os judeus, opositores políticos e outros setores vistos como inimigos e usados como bodes expiatórios para reascender violências raciais e fundamentalistas. Com a invasão da Áustria e logo da Polônia e de outras nações, o correspondente assédio aos principais inimigos desde o olhar do Reich trouxe consequências lamentáveis para os judeus das nações anexadas. Isso porque o plano nazista ambicionava a reconstrução e a purificação do mundo daqueles povos36 considerados como uma doença para

34 Assim, a sinistra expressão alemã "Arbeit macht frei", "o trabalho liberta”, pendurada nas entradas de vários campos de extermínio – como em Auschwitz I, onde a inscrição foi feita por prisioneiros metalúrgicos e erigida por ordem dos nazistas em junho de 1940 –, mostra o lado terrível da concessão e da exploração imposta por trás desse slogan ardiloso, que esmagaria e incineraria a tantos.

35 Opinião pública que, como lembra a pesquisa histórica Otto Dov Kulka (2009), não foi suficientemente incisiva em impedir a discriminação dos judeus e de outras comunidaes exterminadas. E inclusive, às vezes, foi um fator considerável na constituição do olhar tendencioso, acrítico e conveniente com o sistema da solução final, que permitiu elevar o ardor pelos valores enaltecidos na cultura ariana e que potencializou a indiferença da marginalização racial do povo judeu e seu extermínio.

36 Vale lembrar que a noção de povo é controversa, pois ainda que muitos escritores e sobreviventes judeus de Auschwitz falam nesses termos pode-se cair em uma radicalidade identitária.

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si, a ser exterminada.

Em 27 de abril de 1940, o campo de Auschwitz foi fundado em um antigo quartel militar da cidade de Oświęcim, situada no território da Alta Silésia. Inicialmente, foi pensado para opositores políticos poloneses. Em 4 de maio de 1940, o SS Rudolf Höss foi nomeado comandante do campo. Segundo a confissão dos carrascos, a ordem vinda da chefatura das SS estabelecia que o Campo de Auschwitz seria o local adequado para concretizar o projeto da solução final, promovido, entre outros, por Himmler. Essa eleição era justificada sublinhando-se a vantagem da localização e as facilidades para o transporte, assim como por tratar-se de um território fácil de isolar e ocultar. Isso foi nomeadamente apreciado pelo sistema nazista, obcecado com o sistemático apagamento das pegadas do aniquilamento. De acordo com as ordens do comando geral das SS, após as visitas de Himmler ao campo para tirar os corpos enterrados nas valas comuns e proceder a cremá-los, “também havia que eliminar as cinzas, de jeito que não se pudesse calcular no futuro o número de cadáveres cremados” (HESS & SPEER, 2017, p. 108). Embora grande parte das estruturas do horror, ao final, tenha sido desmontada por ordem dos nazistas, diante da iminente chegada dos russos e dos aliados, o relato daqueles sobreviventes que foram designados como Sonderkommando e que puderam ver, ainda que sem tocar, o coração do buraco negro, é testemunha dessas paragens pouco frequentadas. Mostra a metódica relojoaria que apagava rastros do extermínio no nazismo. “Eles poderiam muito bem ter usado dinamite, mas queriam desmontar metodicamente todo o interior da estrutura: os fornos, as portas da câmara de gás e todo o resto. E isso devia ser feito pelo pessoal do Sonderkommando, pois éramos os únicos que podiam ver o interior das câmaras de gás” (VENEZIA, 2007, p. 60).

O ritmo frenético da guerra e o aceleramento dos processos pelo desenvolvimento tecnológico do extermínio se manifestariam em mudanças, reconfigurações e anexos nas instalações do campo e intensificariam o ritmo sempre agitado de Auschwitz. Com a chegada dos novos prisioneiros e a urgência da eliminação dos rastros, viu-se a necessidade de ampliar a cidade, abrindo barracões novos, estendendo os Bunker ou acondicionando outros para câmaras de gás, fazendo construir mais fornos crematórios37

37 A firma de engenharia alemã Topf & Söhne de Erfurt foi encarregada da construção dos fornos, utilizados pelos nazistas nos campos de Auschwitz-Birkenau, Buchenwald, Belzec, Dachau, Mauthausen, Gusen. A firma participou da catástrofe de forma mais direta desde que, em 1939, foi contratada pelo regime para construir um forno móbil para incinerar os corpos duma epidemia massiva de tifo em Buchenwald. Logo se intensificou a colaboração com a construção dos fornos fixos e de maior capacidade em distintos campos. Diz-se que o

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Auschwitz, a três quilômetros do campo principal. Assim se deu origem ao campo de Birkenau, que seria chamado Auschwitz II, inicialmente previsto como campo para prisioneiros de guerra, sobretudo soviéticos. Porém, foi tomada a decisão de torná-lo um campo principalmente judeu. Tal orientação foi confirmada por uma ordem de Himmler, datada de 25 de janeiro de 1942. Dessa forma, o abismo na história avança com seu negror, afogando gritos na brancura tétrica dos crematórios. Em 1943, o campo de Birkenau se expandiu, com a abertura de um novo setor chamado BII, maior do que o BI. Essa nova zona do campo foi subdividida em vários setores separados por arame farpado. Desse modo, o setor BIIa se tornou o setor de quarentena e dos homens; o BIIb, o campo para as famílias judias deportadas de Theresienstadt; o BIIc foi utilizado em 1944 como campo de trânsito, sobretudo para mulheres judias deportadas da Hungria; o BIId se tornou o campo masculino; o BIIe, o campo para famílias ciganas Rom e Sinti e, enfim, o setor BIIf se tornou o hospital dos homens. O conjunto do setor BI foi transformado em campo feminino. A singularidade do que traça Auschwitz não pode simplesmente se reduzir a um absolutismo puramente singular e histórico38 . Sua significância abissal permeia e solicita reler a história, no intuito de não deixar que isso se repita, e não apenas para tranquilizar a boa consciência e redimir a cumplicidade da ciência e do saber eficiente. Não se trata de assimilar Auschwitz no horizonte da compreensão pura com um dado sobre a quantidade dos mortos, de fumaça que os fornos dali expulsaram pelo ar (e cuja cinza insepulta e inconsistente39ainda se espalha e se dissemina pelo mundo, deixando tremer as suas edificações, programas e projetos, solicitando portar na incompletude e no inacabado da sua memória por vir aqui e agora), ou do recorde macabro que ostenta em matéria de escravidão, experimentações e

engenheiro-chefe e desenhista do dispositivo Kurt Prüfer (reconhecido em matéria de incineração de corpos desde 1920, época em que os avanços e a tecnologia da incineração dos mortos ganham importância), logo após a Segunda Guerra Mundial e ao ser tomado prisioneiro, no depoimento dado aos soviéticos, afirmou que visitou o campo de Auschwitz em não menos de cinco vezes, para a instalação dos fornos. Disse que sabia, desde a primavera de 1943, da sua finalidade nefasta. Segundo a pesquisa de Javier Gomez Perez, o engenheiro dos crematórios teve “12 visitas a Auschwitz para comprovar que não se produzem rachaduras e que a gordura serve de combustível. Desde esse momento ‘Topf e Hijos’ foram os principais subministradores de fornos crematórios destinados a todos os campos de concentração e extermínio de Europa” (PEREZ, 2014, p. 45).

38 No texto La lección de Auschwitz, Joan-Carles Mèlich lembra do perigo que há no fato de absolutizar o nome de Auschwitz: “Quiero decir que en demasiadas ocasiones el horror del Auschwitz histórico, singular, nos impide ver el Auschwitz simbólico, el horror de los otros escenarios concentracionarios, los otros escenarios de muerte que siguen vigentes en nuestro mundo.” (MÈLICH, 2004, p. 49). 39 Cf. Jacques Derrida (2009).

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mecanismos de aniquilamento. O que ali acontece e passa sem passo não é nada fácil, deixa sem chão, jamais cessa de não passar40. Interrompe a acontecimentalidade pressuposta e assegurada, suspende a transparência do sentido, rachado no cerne pela catástrofe: diante, no limiar de Auschwitz, o cálculo do sentido se esgota e desaba no encontro fulminante e traumático. A intensidade da lei que ali governa, e cujas ramificações se estendem como tumor na memória41 , deixa estupefato, fazendo tremer até a medula do saber absoluto. Do chão ao teto, nada nas edificações da cultura resta ileso. Entre as rachaduras, palpita o murmúrio inapagável dos seres deportados, ultrajados, enganados, explorados, famintos, órfãos, tirados das calçadas, excluídos dos sítios públicos e privados, jogados ao trem do gado e, logo na rampa, cegados pelas luzes e ensurdecidos pela língua gritante e pelos latidos dos cães. São marcados nesse regime fechado na sistematicidade do aniquilamento automatizado, vácuo e exacerbado nas câmeras de gás e nos fornos, proibidos de sepultura, testamento, grito, lágrima, rosa ou qualquer rastro de existência. Eles solicitam, mesmo na distância inexprimível do desconhecido, não ficar esquecidos na noite da incompreensibilidade definitiva42. Essas rachaduras não se deixam axiomatizar nem suturar por completo, nem apagar pelo aparente sossego da restauração. Continuam a vibrar e solicitar o desmantelamento da lógica sistemática que estrutura a Metropóle da Morte e seus recintos-satélite, cujos cimentos, tentáculos, receptáculos e ramificações se estendem, em variadas formas, até nossos dias, propagando a neutralização e o extermínio dos outros. No texto de Kulka, algo extraordinário acontece nesse ordinário dominado pela lei da Grande Morte. Dentre outros acontecimentos, está o trato diferencial que, na chegada a Auschwitz, ele recebeu do grupo das famílias checas vindas de Terezin, na primavera de 1943. Foi levado para um bloco especial, um espaço destinado à farsa ardilosa armada pelo nazismo

40 Diria-se, com Claude Lanzmann, no filme Shoah (1985): "Le temps, pour moi, n'a jamais cessé de ne pas passer."

41 Como afirma Emmanuel Levinas, para alguns sobreviventes a lembrança dessa experiência se porta como um tumor na memória. “Há mais de um quarto de século nossa vida se interrompia e sem dúvida a própria história. Nenhuma medida viria a conter mais as cosas desmedidas. Quando se tem esse tumor na memória, vinte anos não podem mudar nada.” (LEVINAS, 1976, p. 142).

42 O testemunho não fica simplesmente consignado na incompreensibilidade, nem apenas se trata de algo homogêneo ao horizonte previsto pela compreensão. Solicita certo compreender inquieto ou na incompreensibilidade iniludível. Quiçá poder-se-ia falar, com Werner Hamacher (2018), de um compreender detraído.

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e que tinha como finalidade fazer acreditar ao Comitê da Cruz Vermelha sobre as supostas condições ótimas dos prisioneiros no campo43.

Entre essas arquiteturas do terror e das fachadas do plano nazista, não se pode esquecer da hospitalidade catastrófica que teve lugar ali, a poucos metros das câmeras e dos fornos, no coração dessas estruturas levantadas pela hostilidade radical à vida e, inclusive, mesmo à morte. Dentre esses acontecimentos do impossível que marcaram e alentaram a não desfalecer muitos dos sobreviventes, está a abertura do bloco que acolheu as crianças e os jovens, com a solidariedade e a luta sem resignação de seres ainda justos, dentre os quais se evoca a memória de Fredy Hirsch. Em Gerações de uma cidade, produto de uma conferência em Praga, Jacques Derrida se refere às responsabilidades e às memórias que espectralizam a cidade. “Como responder a uma cidade? Como responder de uma cidade?” (DERRIDA, 2015, p. 132). Assim, quiçá, poder-se-ia falar da responsabilidade diante da Metropóle da morte? Como é possível responder literariamente à semelhante responsabilidade in-finita? Trata-se de algo que se reduz apenas ao âmbito das possibilidades e das capacidades pressupostas ao habitante, historiador, escritor, construtor, sobrevivente ou testemunha? Poder-se-ia falar da exigência infinita que solicita e deixa tremer os planos, os pressupostos, diante, no limiar, no umbral da lei, dessa Metrópole da Morte? E como se dá certa resposta não simplesmente da ordem autonômica na relação da responsabilidade entrecruzada pela memória e a imaginação no texto concebido por Kulka, não apenas diante da Metropóle da Morte, mas também diante de Praga, e de outras cidades evocadas na sua aventura, sondando e deslizando-se entre os seus detritos heterogêneos e pelos deslocamentos e rachaduras da escrita e da literatura? Assim, o sobrevivente viaja entre as ruínas do sonho e da realidade, entre fragmentos e discursos interrompidos e estranhamente emaranhados, pelos limiares instáveis entre memória e imaginação, deixando-se transitar pelas ruas de diversas cidades encriptadas, seladas e desseladas, entre as portas, os passadiços e becos sem saída que entretecem as múltiplas avenidas do texto, atravessando diversos cenários, mas todos eles marcados pela marca imutável do abismo:

43 A propósito da farsa e da atitude complacente do comitê da Cruz Vermelha enviado para certificar-se sobre o tratamento dado aos prisioneiros no regime nazista durante a guerra, é interessante ver a entrevista que Claude Lanzmann faz a Maurice Rossel, um dos representantes do comitê da Cruz Vermelha, no texto de transcrição da entrevista feita em 1979, Un vivant qui passe: Auschwitz 1943 – Theresienstadt 1944.

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Fragmentos sobre fragmentos, em grandes partes, uma após a outra, mas sempre fundamentado na totalidade e em uma certeza clara; e o tempo, ou a mudança do tempo, não possuía nem poderia possuir nenhum significado. O que mudou nele foi apenas o cenário, que transitou entre a Metrópole da Morte – Auschwitz – e a Metrópole da minha terra natal – Praga. (KULKA, 2014, p. 118) No primeiro capítulo dos três que extrai do seu diário, Kulka descreve um sonho, que se chama “Praga dos judeus e a Grande morte”. Trata-se de uma anotação de 28 de julho de 2003. A narrativa do sonho desliza entre uma rua deserta e invernal de Praga, no antigo Bairro Judeu, de onde é chamado para a prefeitura judaica, pois precisa receber um veredito e apresentar-se no prédio com a torre barroca e os relógios com numerais hebraicos e romanos: “no momento em que recebi essa ordem me pus a caminho, um caminho que não terminará antes do fim do sonho e não antes de hoje, antes desta hora e de todas as horas que seguirem a esta”. (KULKA, 2014, p. 113). A imagem da prefeitura judaica em Praga, do fotógrafo checo Jiri Vsetecka, (Fig. 16) mostra esse local vazio e desértico descrito entre as arquiteturas do sonho. Umas imagens levam a outras, na errância espectral da escrita, fotos, documentos e sonhos se entrecruzam:

A imagem que então me surgiu na mente, baseada nas fotografias e nos documentos daquele período da história dos judeus de Praga – durante as deportações em massa e depois – foi a daqueles poucos que ficaram e foram postos para trabalhar catalogando, registrando e arquivando “os tesouros do glorioso passado judaico”, um passado que estava enregelado e metido no frigorífico. Emudecido. (KULKA, 2014, p. 115)

O caminho até lá, até o veredito que destina aos fornos ou ao instrumento tradicional de enforcamento, no meio das sombras dos mortos e da pouca gente silente e concentrada nos afazeres catalogadores e arquivadores, repete-se, calmamente. Uma e outra vez, o sonhador vê-se andando naquela mesma rua, querendo chegar ao destino mencionado na ordem do veredito. Ele diz estar ciente da finalidade de ir até aquele prédio.

O que estava se passando lá dentro era o que se passava na estrutura que abrigava as câmaras de gás em Birkenau, para onde me ordenaram ir, e aonde fui e escapei, e fui mandado de volta e assim por diante. E tudo acontece calmamente, sem que uma palavra seja proferida por aqueles que trabalham ali dentro como sombras escuras, à bruxuleante luz do fogo das fornalhas. (KULKA, 2014, p. 116)

Porém, ao encontrar-se na porta cinza-claro da prefeitura trancada, o sombrio dia de

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inverno se dissolve na clareza de um dia de verão. O contraste muda e a rua deserta se transfigura em luz e atmosfera povoada, ainda que a multidão de pessoas na rua seja indiferente à angústia do sonhador, por chegar de qualquer jeito aonde fosse chamado.

Então, na ocorrência do sonho reconstruído se encontra com uma voz vinda de outra parte, tratava-se da sobrevivente Livia Rothkirchen: “velha conhecida do meu pai e minha, ex- funcionária do Yad Vashem e habitante das paisagens da Metrópole da Morte daquela época, sorrindo radiante para mim e me chamando com alegria, ‘Pane Kulka, Pane Kulka, vždyť to už je všechno pryč!’ – ‘Sr. Kulka, sr. Kulka, tudo isso já passou e desapareceu, viu?’ (KULKA, 2014, p. 117). O sonho se preserva na memória e, assim, traduz-se na escrita, atravessado pelo testemunho e na improbabilidade da chegada. Sem se reduzir na pressuposta transparência de um sentido fixo ou dado, arrisca entre as cidades invisíveis44 do campo visível e nos rastros da Metrópole da Morte, que se entrecruzam nas pegadas e limiares de Praga. Cidade de nascimento e cidade de morte se tornam indecidíveis, na sua posta em abismo do abismo, diante da decisiva porta de ferro, que, como Kulka afirma, terá de ser aberta finalmente para ele. “O que mudou neles foi apenas o cenário, que transitou entre a Metropole da morte – Auschwitz- e a metrópole da minha terra natal –Praga” (KULKA, 2014, p. 118). Outra cidade que reenvia o testemunho de Kulka é a Jerusalém do final dos anos de 1960, no capítulo em que fala das paisagens de uma mitologia particular. Nesse episódio, ele descreve a visita que fez sozinho ao monte do templo, a desolação da parte nordeste, depois do Domo da Rocha, no caminho para a Porta da Misericórdia, o Portal Dourado, selado. Como lembra em nota de rodapé, a Porta da Misericórdia é um dos principais portões do mundo da cidade antiga e, construída no período Bizantino, foi selada por fora e por dentro da edificação da muralha otomana no século XVI. Segundo as narrativas da religião judaica e cristã, acredita-se que, por aquela porta, o Messias entrará em Jerusalém. Diante dessa estreita porta, o sobrevivente percebe um Deja vu, ainda que nunca tenha estado naquele lugar:

Atravessei a praça de lajotas, passei pela magnificência antiga que sobreviveu. Continuei pela área inculta, desolada, recoberta de mato e de espinheiros altos – não tão altos, mas densos, escuros, cinzentos –, e uma quietude esmagadora vinha junto enquanto eu me aproximava da descida

44 No livro As cidades invisíveis, Italo Calvino (1990) sugere pensar como o âmbito do sonho permite viajar entre as cidades invisíveis e os rastros imperceptíveis do visível entre o sonho e a imaginação.

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para o portão bloqueado. De repente fui tomado por uma certeza absoluta, que não podia questionar: já estive neste lugar! (KULKA, 2014, p. 96)

Na imagem 17, aparece uma foto do local em cujos detalhes pode-se apreciar a estrutura recoberta de mato e espinhos cinzentos. Em sua visita, Kulka para ao lado de um arame farpado enfarulhado, jogado no mato que crescia livre, e pergunta-se pela associação possível desse material com Auschwitz. (Figura 18) Assim, essas paragens se vinculam à primeira visita feita a Auschwitz anos após a guerra (uma viagem que aparentemente havia se perdido entre a memória), quando, com 14 anos, o menino foi convocado a testemunhar no julgamento de criminosos em Cracóvia, em 1946. As estruturas em ruínas daqueles locais estão carregadas de marcantes significantes históricos. São as ruínas que permitem caminhar pelo monte do templo e atravessar as camadas seladas pela passagem do templo, pulando entre múltiplas espacialidades e temporalidades sem desconhecer o trauma e as feridas que povoam esses recintos. A porta, as portas, os portões, lembradas, imaginadas, visíveis, invisíveis, secretas, cavadas, encriptadas, labirínticas, fechadas, trancadas, derruídas, abertas, expostas, entreabertas como os lábios das feridas moventes e sem sutura do tempo e do espaço, não deixam de conduzir e transportar em seus limiares intermináveis. A cada palavra, silêncio, imagem e sonho, entreabrem- se miríades de caminhos e se entretecem, na interrupção, redes de relações insuspeitas. Nessas passagens entre vida, morte, sonho e escrita, uma anotação de diário, datada de 22 de janeiro de 2001, retorna entre as paisagens ruinosas dos crematórios, ali no invisível onde nenhum olhar pode arriscar-se sem cinzas entre as pálpebras.

Não sei como entrei, nem mesmo como era possível entrar, mas entrei e estava lá dentro. Vi ali uma longa câmara, uma estrutura de concreto que não tinha sido destruída, devendo sua condição arruinada apenas a anos de abandono. A estrutura ficava toda na superfície e era iluminada pela luz do dia. Havia também uma mesa muito comprida e bancos de tábuas rústicas. Sentava-se à mesa um grupo de visitantes que estava fazendo turismo em Auschwitz, todos israelenses, não jovens, mas provavelmente nenhum deles, assim me pareceu, tinha vivido em Auschwitz naqueles dias, em seu período de “glória”. (KULKA, 2014, p. 119)

As posições e os papéis, no âmbito do sonho, podem mudar vertiginosamente. O guia local explica aspectos sobre a estrutura e as funções acerca do campo, nessa paisagem onírica. É o Dr. Mengele. Esse sujeito transfigurado no sonho, apesar das mudanças, não deixa dúvidas de ser aquele doutor horrendo que Kulka havia visto na sua infância em Auschwitz.

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Então, lembra-se de ligar ao seu pai Erich, falecido em 1995, para que viesse entrevistar Mengele, apesar dos protestos e gestos estarrecidos dos israelenses que não haviam experimentado o horror, ainda que estivessem sentados na mesa entre as ruínas. Contudo, Kulka fala com aquele Mengele, cicerone da atual diretoria polonesa, e lhe pergunta pelo seu paradeiro em todo o seu tempo de fuga, ao que recebe como resposta que ele não havia se afastado, sempre esteve ali, na construção em ruínas, remanescente e espectral:

Não estranhei muito seu emprego atual, mas o que estranhei, e lhe perguntei explicitamente, foi: “Onde esteve durante todos esses anos desde aquele tempo?”. Sua resposta, que lhe pareceu a mais natural e óbvia do mundo, foi: “Como assim, onde estive? Estive aqui. Estive aqui o tempo todo”. Isto é, nesta construção, em meio a estas ruínas, nesta construção singular sobre cujas funções não pode restar dúvidas, muito embora sua forma não ateste isso. Mas claramente ele tinha estado ali todo o tempo. E era impossível duvidar, ou não parecia haver razão nem causa para isso. Talvez como uma daquelas aparições atemporais que habitam misteriosas construções antigas ou suas ruínas. (KULKA, 2014, p. 121)

O devaneio poderia parecer material propício para uma leitura psicanalítica das suas imagens, indícios e rastros. Entretanto, nessas travessias pelo sonho, não se trata de fazer um corolário de interpretações, já que Kulka diz não acrescentar nenhuma tentativa de interpretação, mesmo se houver ampla margem para isso (KULKA, 2014, p. 122). Contudo, as experiências de leitura e escrita que pulsam e se ativam com a visitação das imagens- pensamento solicitam e deixam tremer as partilhas pressupostas do sentido, reenviando, entre as experiências singulares plurais, marcadas entre os signos turbulentos, os avessos e os contra-avessos da errante textualidade testemunhal. No percurso inquieto das arquiteturas da morte às moradas do testemunho, a língua em exílio da literatura posta em suspenso e sem deixar-se essencializar, de jeito nenhum está livre das cesuras, das tensões e das aporias do impossível. Desde a hospitalidade da literatura do testemunho, entreabrem-se espaços para o acolhimento das vozes remanescentes e turbulentas, espectralizando esses locais de difícil memória. Assim, o teor testemunhal, irredutível ao ficcional, não impede pensar que “não há testemunho que não implique estruturalmente em si próprio a possibilidade da ficção, do simulacro, da dissimulação, da mentira e do perjúrio – quer dizer, também, da literatura, da inocente ou perversa literatura que joga inocentemente a perverter todas estas distinções” (DERRIDA, 2004, p. 24). O texto de Kulka transita no limite do impossível, resta secreto, expõe-se e expõe, tornando- se manifesto e público sem deixar a reserva do segredo. Na intermitência

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demorada, põe em xeque a demarcação segura demais entre o axioma determinante e o perjúrio. Diante da lei, da chave, do schibboleth que marca e data, porta e deporta no testemunho da Metrópole da Morte. A porta reservada à testemunha é também uma metálica rosa de ninguém (CELAN, 1999). A Metrópole que Kulka reconstrói no seu relato testemunhal está feita com os rastros da memória e com os materiais da imaginação. Através dos restos latentes do passado no presente, imagens e lembranças visitam e deportam o sobrevivente que experimentou, quando criança, diversas experiências-limite entre os muros de Auschwitz-Birkenau. Essa mirada detalhista para tudo aquilo que fica nas margens, para esses elementos novos que surgem no pensamento e no mundo, envolve as lembranças dessa cidade onde impera a lei imutável da morte, no corpo a corpo com a imagem e o espaço, através dos imaginários e mitologias, das relações inesperadas e dos olhares detalhistas na perspectiva do assombro da criança exposta ao abismo, que interrompe a pretensa autossuficiência da paisagem adulta e historicista.

Figura 16. Prefeitura judaica em Praga

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Figura 17. Porta da misericórdia-Jerusalem

Figura 18. Auschwitz-Birkenau

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8. UMA PAISAGEM CINZENTA E AZUL

Era uma paisagem muito melancólica, de muita desolação [...] não era mais uma paisagem da infância, era uma paisagem de cemitério, o enterro de Auschwitz estava enterrado. Enterrado, mas ainda assim amplo, como uma espécie de vasto cemitério de horizonte a horizonte. (KULKA, 2014, p. 22)

A paisagem, no relato de Kulka, considera-se a partir do corpo a corpo e da experiência que relaciona o sujeito à diversidade do mundo. Essa experiência sensível de uma simbolização entre o corpo e o mundo entretece-se entre a paisagem, a história e a imaginação, em que o visível e o invisível aparecem concomitantes e não cessam de chamar- se e entrecruzar-se, sem, por isso, confundir-se. Nesse sentido, vale lembrar Michel Collot (2013), a respeito da compreensão de uma paisagem literária, pois ela não apenas se esgota em uma região ou país específico, mas também envolve o modo de abordagem e expressão. Assim, “ultrapassa qualquer localização geográfica e qualquer base biográfica. [...] não é necessária ou exclusivamente natural [...] implica um sujeito [...] dá-se a ver a partir de um ponto de vista” (COLLOT, 2013, p. 50-51). Para o filósofo, a noção de horizonte é constitutiva da paisagem e se enlaça entre o traço imaginário, os fatores objetivos e a perspectiva do sujeito. Nas moradas do testemunho, trabalha-se com as ruínas, e não com construções monumentais, espetaculares e plenas de si. Não se trata de tornar-se prova, informação, certeza ou arquivo. Isso pode ser visto no olhar das fotos tiradas nas visitas e viagens de Kulka, nos contornos, retornos e caminhadas entre diversas paragens e tempos perpassados pela catástrofe. Essa preferência pelas ruínas caracteriza a andadura do escritor trapeiro, que se afasta dos locais onde a memória parece inerte, enquadrada de maneira dada e fixa. O escritor caminha entre os cacos, na procura das pegadas da violência e do excluído ainda latente no seu apagamento incessante, entre restos ressonantes deixados de lado por passos pretensamente surdos, que desconhecem as profundezas emaranhadas no bosque das bétulas.

Nas memórias de Georges Didi-Huberman de sua viagem a Polônia, registradas entre cascas, à escuta da escrita anterior ao alfabeto entre os resíduos que restam dos campos, lê-se: “sob as árvores de Auschwitz-Birkenau, o olhar arqueológico torna evidente o horror pulsante que o museu institucionaliza como História” (DIDI-HUBERMAN, 2009, p. 18). Já no texto de Kulka, pode-se perceber um efeito de estranhamento diante da zona de Auschwitz, hoje dedicada à indústria cultural. O sobrevivente prefere dirigir-se às ruínas de

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Birkenau45, em que a terminação ‘au’, como lembra Didi-Huberman, ressoa como um grito de exclamação e interjeição do sofrimento. Ali no invisível, onde a sombra das bétulas palpita, cobertas pelo musgo do tempo, os troços e traços atestam dramas desconhecidos entre as escritas ardentes e semiapagadas entre cinzas46. As imagens fotográficas inscritas por Didi-Huberman (2009), em Cascas, permitem sondar e contrastar diferentes temporalidades, remontando ao caleidoscópio das imagens- pensamento, entre os múltiplos, heterogêneos e até discordantes tempos que perpassam a imagem, como um pássaro ou uma borboleta, entre o arame farpado colocado na barbárie de Birkenau e o arame farpado instalado tempos depois pela restauração e a cultura da memória. Entre essas viagens no retorno sem retorno entre as necrópoles do período nazista, não se pode esquecer o efeito anômalo que se produz. Com sua sensibilidade pensante, Boris Pahor (2010), em seu livro Necrópole, aborda sua volta ao campo de Struthof, onde esteve em cativeiro na Segunda Guerra Mundial. Ele trata dessa tendência pacificadora ou neutralizadora da turbulência testemunhal das ruínas, entre alguns locais da memória, restaurados segundo um modelo que privilegia a introjeção tirânica, idealizante e amnésica da soberania estatal, que ergue o seu poder no fechamento arcôntico para si no relativo ao arquivo. Assim se podem evocar, entre as ruínas da imagem e da escrita no texto de Kulka, as chaminés (Figura 19). Imagem que desborda e expõe a sensibilidade ao extremo. Como Agamben (2008) explana, a imagem das chaminés remonta ao odor nauseabundo da morte que os fornos crematórios irradiam: “Para alguns a fetidez é o sinal do ultraje supremo que Auschwitz desferiu contra a dignidade dos mortais” (AGAMBEN, 2008, p. 74). A arquitetura infernal de Auschwitz deixa pensar nos círculos infernais dantescos – no inferno aqui, ao céu aberto e na superfície da terra. As referências ao inferno e ao Hades no relato de Kulka não têm a intenção de estetizar, mitologizar ou caricaturizar a tragédia. Apesar da multiplicidade de referências e configurações culturais nas quais se aventura e itera através da escrita e dos seus processos tradutórios entre a vida e a morte – a imaginação e a memória, a voz e a letra, a letra e o desenho, o desenho e a e

45 "au" significa "vale", como em "Blumenau", "vale das flores". Birkenau significa "vale das bétulas". 46 Na terra polonesa, a bétula, que não vive mais de 30 anos nos países temperados, resiste até 100 anos ou mais, ecoa o uivo de milhares de dramas, atestados apenas por alguns manuscritos semiapagados, sepultados nas cinzas pelos membros do Sonderkommando. Prisioneiros judeus encarregados do trâmite dos cadáveres e eles próprios destinados à morte.” (DIDI-HUBERMAN, 2003, p. 34).

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a gravura, a gravura e o silêncio, o silêncio e a música, a música e a arquitetura, entre outras passagens pelas fronteiras e travessias dos gêneros que se arriscam entre o testemunho –, nada se reduz à mania pós-modernista, nem à simples ostentação ou representação definitiva, nem a uma solução final estética que ignora o desmedido e a queda dos modelos e dos axiomas configurados diante do acontecimento catastrófico.

Figura 19. Desenho infantil do gueto de Theresienstadt.

Assim, não é reducionismo nem esteticismo de belas letras o que se faz ao voltar-se e ver- se deportado através das imagens e do espaço literário no curso deslizante do infernal. O poeta Édmond Jabès (1991) diz, em sua reinterpretação moderna do dantesco, no texto O Inferno de Dante47: “Auschwitz é o inferno onde milhões de seres humanos foram os mártires inocentes de uma monstruosa empresa de inferiorização, de desvalorização, de rebaixamento sistemático do homem diante dos espantados da morte, tão degradada ela mesma, que pela primeira vez conheceu o asco.” (JABÈS, 1991, p. 13). As artes e literaturas do testemunho, perpassadas pela hospitalidade do desastre, acolhem as vibrações e os tremores do grito cinzento ecoando entre os prados das bétulas de Birkenau. Estes não deixam de deslizar a língua à beira árida do silêncio e reenviar no caminho, quiçá impossível, ao outro, segundo o endereçamento meridional e a mudança de ar que traça o poema para Paul Celan. Nesse sentido, vale mencionar a conferência de Hélène Cixous (2013, p. 9), O grito da literatura: “Primeiro gritamos. Despois escrevemos: traduzimos no ultrasilêncio da escrita os gritos agudos e breves da realidade. A literatura é

47 Vale lembrar que A divina comédia e, em especial, a parte "O inferno" aparecem no relato Se questo è un uomo (1947), de Primo Levi. Além disso, "O inferno" de Dante também é um elemento constitutivo da peça de teatro Die Ermittlung (1965; O interrogatório), de Peter Weiss, sobre os julgamentos de , em 1961-1962.

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para uivar longamente, jogar gritos até a música; o direito aos gritos que a realidade e a comunidade nos proíbem”.

A necessidade de acolher múltiplas abordagens e perspectivas à escuta desses rastros ressonantes, que unem redes de relações insuspeitas a respeito de Auschwitz, induz ao diálogo interdisciplinar e aos processos incessantes da tradução intersemiótica. Eles se agenciam no encontro das musas solicitadas ao portar das cinzas, na encruzilhada entre arquitetura, literatura, imagens, testemunho, ética, política, memória e imaginação. Por outro lado, cabe comentar como, na Bienal de Arquitetura de Veneza em 2016, tentou- se acolher a memória das arquiteturas de Auschwitz. A ocasião contou com o historiador, professor de arquitetura cultural e especialista na pesquisa acerca do extermínio, Robert Jan Van Pelt. Em 2002, ele escreveu, com Debórah Dwork (2004), um reconhecido estudo sobre a história do Holocausto, baseado em documentos de arquivo, cartas, diários, testemunhos, vindos de narrações orais arquivados ao longo de quinze anos em múltiplos países do mundo. Além disso, ele testemunhou como perito da defensa no julgamento orquestrado pelo polêmico negacionista David Irving. Também deve-se fazer alusão ao texto escrito com Debórah Dwork (1996), Auschwitz: 1270 to the Present, em que são examinadas as condições e o complexo processo histórico que tornaria possível a constituição do local de assassinato mais letal da Alemanha nazista. Ali, há coleta e pesquisa em meio a centenas de planos arquitetônicos que os nazistas não conseguiram destruir, bem como projetos e documentos em arquivos provinciais e federais municipais. Isso mostra como a cidade de Auschwitz, seus acampamentos e cidades- satélite foram peça central na solução final projetada sob o comando nazista. A instalação proposta na bienal esteve baseada na pesquisa de Van Pelt, O caso de Auschwitz: provas do julgamento Irving, de 2002. Tratou-se de trazer à tona a dimensão testemunhal ético-política na arquitetura, que não só funcionaria para elevar regimes totalitários, mas, a contrapelo do domínio da estética representacionista plena de si, remontaria ao buraco sombrio da história, entre os rastros e fragmentos dos espaços perpassados pela branca inquietude que desmonta, silente, as patranhas vociferadas pelo negacionismo e pela indiferença. Para dar forma concreta à proposta, Van Pelt esteve acompanhado por Donald McKay, arquiteto e professor da escola de Arquitetura da Universidade de Waterloo, em Ontário. A equipe também incluiu Anne Bordeleau e Sascha Hastings. Por outra parte, aos poucos, a memória histórica de Auschwitz vem acolhendo as vozes e os rostos das testemunhas sobreviventes. Nesse sentido, vale lembrar que, até o mês

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de julho do 2020, o arquiteto nascido na Polônia e naturalizado americano Daniel Libeskind apresenta uma instalação temporária na cidade de Oświęcim, em comemoração aos 75 anos da libertação do campo, chamada Through the Lens of Faith. A instalação, em parceria com o fotógrafo Caryl Englander e o curador Henri Lustiger Thaler, reúne 21 retratos e testemunhos de sobreviventes do campo, poloneses e ciganos. Estão espalhados em painéis verticais de aço de três metros de altura, alinhados em ambos os lados por um caminho, formando no reflexo do chão uma figura uniforme e listrada sob a sombra das árvores e que leva ao Memorial e Museu de Auschwitz. Afirma o arquiteto: “Não podemos entender os milhões que foram assassinados no Holocausto, mas podemos entender a história de uma pessoa. Esta exposição coloca as histórias dos sobreviventes em foco e tece seus relatos íntimos com o contexto do campo e da vida contemporânea” (WALSH, 2019, s/p).

Figura 20. Through the Lens of Faith. Libeskind, 2019.

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Figura 21. Vístula, o Grande Rio do Tempo

9. VÍSTULA: O RIO DAS CINZAS ENTRE AUSCHWITZ-BIRKENAU E NATZWEILER- STRUTHOF

Ainda que Otto Dov Kulka afirme que há rios que não podem ser atravessados, junto às margens dos textos e dos imaginários, vale lembrar as relações inesperadas que entretecem algumas ligações entre Auschwitz e Struthof. Esses campos foram atravessados pela lei da morte e pelos rastros das memórias, que fazem transbordar o rio Vístula. Assim, é possível pensar em relações e estranhamentos possíveis entre o relato de Kulka e outros textos de sobreviventes, como Boris Pahor (2013), que testemunha desde sua experiência no campo de Struthof no relato Necrópole. As referências ao rio Vístula embargam as lembranças de Kulka, como esse rio serpentino que leva ao mítico Hades. A necrópole da morte tem múltiplas ramificações comunicantes e redes tentaculares que banham e perpassam tempos e espaços diferentes do sistema nazista. Desse modo, ampliam o seu alcance letal até locais longínquos, locais-satélite que permitem pensar nessas ligações imperceptíveis entre Auschwitz e Struthof, em vários momentos do texto, assim como em algumas imagens fotográficas.

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O rio Vístula48 é o mais longo que banha a Polônia. Nasce na alta Silésia e desemboca no mar Báltico. Faz parte de uma zona cuja bacia hidrográfica, na antiguidade romana, era conhecida como Germânia Magna. Historicamente, foi uma rota importante e disputada como meio de aceso a diversas regiões da Europa49. Com a construção de um canal, no final do século XIX, seu caudal foi reduzido e o rio até chegou a chamar-se Vístula Morto – em alemão, Tote Weichsel, e, em polaco, Martwa Wisła. O complexo de campos de concentração de Auschwitz foi edificado na confluência do Vístula e do rio Solá. O Vístula emerge com sua corrente grave e deslizante de imagens-pensamento no texto de Kulka, quando o sobrevivente vai com um motorista no seu retorno de táxi a Auschwitz: “passamos pelo rio Vístula [Wisla] enquanto ele me contava sobre o ‘Wislazla’, que significa ‘Vístula malvado’ que transborda e inunda o campo carregando pessoas e gado” (KULKA, 2014, p. 12). E, logo, volta a deslizar-se nele por uma associação quase inconsciente:

Que emergiu da tagarelice do motorista de Cracóvia, do rio Vístula que transbordava, que serpenteava por todos aqueles caminhos que me aproximavam mais e mais de lugares que eu reconheci. Eu os reconheci como se estivesse numa espécie de sonho. Talvez não os reconhecesse e apenas imaginasse que reconhecia, mas isso não tem importância. Eu me calei, e por fim pedi a ele que também fizesse silêncio. (KULKA, 2014, p. 20)

Logo depois de passar por Auschwitz – na ampla rede de cidades-satélite conectadas pela lei da morte, que se dissemina pela Europa no período nazista –, ficou ligado a um campo em particular, uma das filiais ou cidades-satélite da Metrópole da Grande Morte, o campo de concentração de Natzweiler- Struthof, para onde foi levada a mãe de Kulka depois de Auschwitz. Nessas proximidades, ela morre:

no extremo norte, na costa do mar Báltico, no estuário do rio Vístula; o rio que, como os trilhos de trem, seguia sem pressa da orla de Auschwitz para a vasta e terrível floresta que agora atravessa também as terras daquele campo

48 O nome Vístula foi recolhido por primeira vez na História natural de Plinio, O Velho, no ano 77 a. C., que utiliza o vocábulo Vistula com uma variante masculina Vistillus. A raiz de Vistula evoca o indo-europeu ‘ueis’̯ , 'supurar, fluir lentamente'. E pode encontrar-se em diversos hidrônimos europeus.

49 Como é possível verificar no relato do Mariscal Mijail Tujachevsky, La marcha hacia el Vístula: La campaña soviética de Polonia de 1920, no período entre guerras o rio foi motivo de frenética disputa pelos exércitos polacos e os soviéticos.

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para mulheres judias, como vi na viagem em que procurei o lugar onde minha mãe estava sepultada. (KULKA, 2014, p. 70)

Anos depois da catástrofe e na procura dos rastros da mãe desaparecida, Kulka continua pelo curso do Vístula e encontra, graças a testemunhas, o túmulo da mãe. Ela havia se contagiado da febre tifoide quando estava fugindo, com um grupo de mulheres de Struthof, até finalmente morrer na data de 25 de janeiro de 1945. Mais adiante, também fala da ocasião em que reconheceu o lugar sem lápides, onde sua mãe teria sido enterrada, no local próximo do massacre brutal de todos os que restavam, encontrado a partir do testemunho da única alemã ainda viva que pertencera à população alemã da época. A situação para as mulheres grávidas nos campos da morte era muito difícil. Como se lembra, no testemunho da enfermeira Olga Lengyel (2018), consignado no seu relato intitulado Os fornos de Hitler, para o anjo da morte o campo não era uma maternidade. No capítulo chamado “Nascimentos malditos”, ela descreve os problemas angustiantes pelos quais deviam passar mães e filhos em Auschwitz. Ambos eram destinados ao cumprimento da lei fatal imposta pelos captores, a não ser que o bebê fosse antes declarado natimorto. A enfermeira, portadora do peso da culpa pelas funções que deveria cumprir, não míngua sua responsabilidade no terrível crime. Apesar de ter salvado algumas mães, confessa que “os alemães conseguiram nos transformar em assassinas. [...] Até hoje a imagem daqueles bebês mortos me assombra” (LENGYEL, 2018, p. 54). O Vístula arrastra Kulka pelo rio intransponível das cinzas e a travessia comunica-o com as águas míticas do tempo, no retorno sem retorno ao Stix50 O rio do ódio, segundo a mitologia grega, é uma ninfa e também um rio infernal no Hades dedicado a ela. Estige também é o nome do rio da invulnerabilidade e da promessa, do voto mais sagrado que pode ser feito e nem mesmo os deuses podem quebrar, por isso é “fonte de entorpecimento e de exílio para os deuses culpados de falso juramento” (VERNANT, 1990, p. 182). Sua corrente aporética também implica a separação dos que se amam, ligando à aventura órfica e à trágica

50 Convém conferir a pesquisa de Jean Pierre Vernant (1990), que diz respeito ao mito e ao pensamento na Antiguidade grega: “O próprio fluxo temporal é uma força de ruína semelhante ao Stix arcádico. A irremediável força de destruição que aniquila todas as coisas aqui da terra, o monstruoso fluir que nada pode reter.” (VERNANT, 1990, p. 184). Mas esse mítico rio de morte, silêncio e esquecimento, imbuído pela força da impureza capaz de corroer o metal mais incorruptível, tinha também certo efeito catártico de renovação, que guarda uma relação concomitante com sua contraparte, a fonte da memória. Desse modo, a meléte mnémes, o exercício de memória não se pode simplesmente dissociar da travessia interminável entre as agrestes águas da ruína.

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impossibilidade de Eurídice para voltar à vida:

Naquela tragédia predeterminada, para a qual evoquei o mito de Orfeu e Eurídice, era impossível atravessar o Stix do rio Vístula para voltar à vida. Só era possível seguir por ele, ir para o norte com sua correnteza. E como a lei imutável alcançava até a pequena morte – até a pequena existência – pelas mãos das mulheres hipócritas do hospital, talvez mensageiras do destino, a Grande Morte alcançou minha mãe, também, ali. (KULKA, 2014, p. 94)

O curso do rio Vístula deixa escombros entre as beiras da memória, cascas que, com a força da ruína, resistem e restam entre os rastros das cinzas que nele desembocaram, na tentativa nazista de se desfazer das pegadas assassinas quanto aos restos das vítimas incineradas. Confessam os carrascos:

Enquanto continuava a cremação ininterrompida, as cinzas que caíam das grelhas eram retiradas constantemente e pulverizadas. Se transportavam logo em caminhões até o Vístula e se jogavam na água a palhadas. A água as levava de imediato, já dissolvidas. Do mesmo jeito se procedia com as cinzas das fossas no Búnker II e o Crematório IV. (HESS, 2017, p. 39)

Na passagem pelas memórias do Vístula, as paisagens adquirem a cor da ausência que impregna os troços dos sapatos das vítimas, deixados como restos daqueles que desapareceram na catástrofe. Suas marchas tortuosas testemunham a surpreendente ligação entre a Métropole de Auschwitz e Stutthof:

Não só as pessoas foram apanhadas pela lei imutável, apesar de terem deixado aquele lugar, mas também os sapatos das vítimas, daqueles que pereceram, acompanharam-nos até lá. E a poderosa corrente do rio Vístula, “o Vístula malvado”, o rio de cujo trecho inicial começáramos a nos aproximar então, no meu retorno anterior a Auschwitz com o motorista tagarela de Cracóvia, que relatou as malvadezas do Vístula que transbordava e fazia mal às pessoas e aos animais, e onde eram jogadas as cinzas dos cremados – isto é, em seu afluente, o Sola, que deságua nele: esse Vístula, que atravessa a Polônia de sul a norte, até as planícies da Prússia Oriental, e se derrama como uma espécie de grande delta no mar Báltico, simbolizava aquela ligação, a ligação com a lei imutável da qual não há como escapar. (KULKA, 2014, p. 91-92)

A ligação entre Auschwitz e Struthof através do Vístula ficou mais compreensível com a jornada feita por Kulka ao campo de Struthof em outubro de 1992. É perceptível a conexão líquida e misteriosa ou a corrente densa da temporalidade que perpassa e envolve os campos concentracionários de Auschwitz e Struthof: “Uma ligação misteriosa com uma forte

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corrente de água; a corrente do tempo que atravessava a Metrópole da Morte e, bem longe dela, em uma de suas cidades satélites, deságua no mar Báltico” (KULKA, 2014, p. 104).

Conforme uma leitura comparativa que não confunda simplesmente a singularidade plural das paisagens, nem esqueça os limites e limiares na porta de entrada a cada testemunho, talvez seja possível interpretar as curvas do rio Vístula, que espectralizam o texto de Kulka ao lembrar sua experiência em Auschwitz, no entrecruzamento que não ilude a relação diferencial e de estranhamento, com outros textos testemunhais, como os caminhos da memória cheios de curvas fechadas que levam Boris Pahor ao seu retorno a Struthof, anos depois do cativeiro na Necrópole. Nesses relatos, ainda que por desvios diversos, os sobreviventes narram o retorno ao campo de concentração que foi seu local de cativeiro na Segunda Guerra Mundial, anos depois de sofrerem essa experiência diante da qual, como diria Jean Amery (2001), já não se pode sentir como em casa no mundo. Ao mesmo tempo, são esses locais de trevas, cheios de detalhes e rastros, que se resistem ao passo indiferente do tempo, que constituem o âmbito catastrófico e acolhedor das lembranças familiares e sinistras, tatuadas sob a lei imutável da morte. Nessa viagem de volta aos infernos aqui na terra, imagens- pensamento emergem da noite. Dessa maneira, o rio porta e deporta a memória entre suas cinzas, comunicando Auschwitz e Struthof sob a lei da separação e da interrupção radical. E se interpreta como vaso comunicante51 perpassando o Hades, entre os textos testemunhais de Otto Dov Kulka e Boris Pahor. O fluxo e influxo dessa lei terrível não se reduziam a Auschwitz, apesar de que ali fosse aplicada e sofrida com intensidade sem par. Também se estendia por redes geográficas e até por paisagens psíquicas insuspeitadas, deixando marcas cinzentas, traumáticas e iniludíveis nas paisagens e nas textualidades dos testemunhos. O Vístula embarga a atmosfera de silêncio. Rio das cinzas e da memória, sua correnteza lenta quase transforma a paisagem em sonho52 Bachelard (1998) chama de águas

51 O escritor cubano José Lezama Lima, na sua Introdução aos vasos órficos, ao aproximar-se da antiguidade e da noite dos órficos, reflete a propósito dos vasos órficos e de suas inscrições comunicantes, entretecendo redes de relações significantes entre diversas temporalidades e espacialidades, em que o estelar e o abissal se vinculam nas materialidades do imaginário: “En algunas hojas de oro, conservadas en el Museo Británico, se aconseja por los órficos en los himnos que allí se escribían, que se huya en el Hades de la fuente del ciprés blanco, que produce el somnífero olvido; que se busque, por el contrário, el Lago de la Memoria, y que allí se comience el recitativo: Yo soy hijo de la tierra y del cielo estrellado.” (LIMA, 1971, p. 106).

52 Nesta altura, seria interessante dialogar com o pensamento de Gaston Bachelard (1998), pois, com seu olhar poético e a reconfiguração simbólica dos elementos e das complexidades da natureza, afirma que a imaginação

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compostas aquelas que se mesclam de todas as cores, os sabores e os cheiros, compreendendo a dissolução dos sólidos na água e na combinação das diversas matérias. Mas nem essas águas compostas saberiam dar conta exata dos remoinhos das águas secretas do Vístula, que não cessam de expor ao sobrevivente as ondulantes feridas da memória. Em parte, pesadas, lentas, túrbidas, em mal de água, água em falta do seu elemento vivo, as águas que fluem e confluem pelo relato de Kulka, mostram um gênero diferente das águas bachelardianas, ao mesmo tempo que deixam comparecer traços daquelas, e talvez se pudessem chamar cinzentas. Águas de morte, que deixam emergir imagens e sensações que guardam a lembrança das lágrimas enlutadas pela mãe desaparecida, mas que também se ligam às águas da vida, às águas pré-natais e amnióticas do útero materno. Nesse devaneio materializante, nessa materialidade móvel e contraditória do Vístula, vaivém no margrave das cinzas, que transporta no sonho indissociável do despertar, ecoa a narrativa líquida. Na memória úmida que deriva entre as águas maternais, águas femininas, que não somente são águas de tânatos, mas também são amorosas, comparadas com a mãe. E não por esse candor, menos revoltadas e violentas que as frias águas do mar, do Báltico em outubro, onde o Vístula desemboca, com suas ondas furiosas, e onde as línguas europeias, não apenas, mas sim nomeadamente a alemã, em cinzas, são portadas no silencioso coração do seu nome fechado. Nessas paisagens mítico-oníricas, o fluxo das reflexões se desencadeia e as imagens- pensamento se precipitam. Para o leitor, nenhum salva-vidas. Na intermitência fulgem, entre a beira dos vivos e a beira dos mortos. Ninguém pode iludir a interpelação íntima e turbulenta dos restos sem resto. De certa forma, também o sobrevivente Boris Pahor (2013), em Necrópole, sente suas tensões singulares quando visita a sua morada das cinzas em Struthof:

partido ao meio, nessa atmosfera que o silêncio, agora, quase transforma em sonho. Quando estou longe daqui também me sinto dividido; nessas horas, o que me condiciona é justamente a antiga atmosfera do lugar. Talvez

não é simplesmente a louca da casa. Ela adianta como referencial de análise enquanto o mundo nada seria sem devaneios. Assim, na obra chamada A Água e os Sonhos, o autor pensa as águas através dos imaginários e das relações imprevisíveis que deslizam não somente como matéria fixa e dada, nem como mero recurso ou segundo fins de exploração ou preservação. Elas têm significâncias e banham de significados múltiplos, possuem vozes, cheiros, cores, sabores. Segundo a pluralidade das tonalidades, classificariam-se em: águas profundas, que são águas dormentes, águas mortas e águas pesadas, entre outras. Segundo Bachelard (1998), as águas se associam ao sonho e, em seus reflexos, duplicam-se o mundo e as coisas, e também o sonhador aventurado numa experiência onírica.

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nem mesmo a ave fênix conseguiria livrar-se para sempre das cinzas de onde levantava voo. (PAHOR, 2013, p. 44)

Com frequência na história, os rios têm sido usados como mausoléus do esquecimento. Cemitérios em movimento, eles mesmos destruídos pela pretensão de domínio dos seres humanos. Neles, são jogados os corpos triturados e calcinados como no fosso comum do devir. Percorrer com a memória e a imaginação sua pele líquida, beiras e rocas, implica arriscar-se nas voragens dessas águas que, outrora, acolhiam os corpos insepultos. Por que não pensar nos rios como testemunhas silentes das guerras? Por que não escutar os signos das suas naturezas ocultas?

Ao navegar e sondar entre os rios e silêncios da memória de outras guerras, é interessante olhar uma retrospectiva recente do artista colombiano Juan Manuel Echavarría, intitulada Rios e silêncios e exposta no Museo de Arte Moderno de Bogotá e no Centro Cultural Palatino, em San Juan de Pasto. Ali se apresentaram distintas obras que, a partir de múltiplas perspectivas, acolhem (desde o testemunho das vítimas, dos sobreviventes, dos carrascos), a memória da guerra que tem atravessado a Colômbia há décadas. Mais de duzentas mil vítimas foram desaparecidas, jogadas entre os afluentes que entretecem a sua hidrografia53. Em uma obra chamada Requiem NN, remonta-se às tumbas de Porto Berrío, local marcado pela violência. Mostra como os seres humanos, sem nome conhecido e cujos corpos foram resgatados das águas do Rio Magdalena pelos moradores das costas, segundo o artista, “se humanizam na morte”. E, de outro lado, os sobreviventes e familiares que resistem a renunciar ao luto, para ainda albergar os restos anônimos daqueles que a guerra levou.

Então, trata-se de escrever à escuta desse ressoar entre o rio e o silêncio, desse réquiem da noite e da névoa, para lembrar e tentar fazer visível o que corre o risco de ficar no invisível e nas profundezas do esquecimento. Algo falou no silente, algo calou; vocês! Rios não escutados; cantava-lhes Paul Celan, cujo corpo foi acolhido pelo Sena na cesura fatal. O silêncio, acreditava o poeta, ensina a cor das águas: “A cor dia-gris / dos / vestígios das águas profundas.” (CELAN, 1999, p. 149).

53 Conferir o texto De río en río, do sociólogo Alfredo Molano Bravo (2017), em que se percorrem diversas regiões do Pacífico colombiano, mostrando as vicissitudes das guerras que marcaram as entranhas da sua história através de mais de cinquenta anos.

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Dessa maneira, o testemunho de Kulka a respeito dos vestígios do Vístula, imantado pela corrente que porta o drama da sua mãe desaparecida no desastre, mergulha e joga por entre canais de águas escuras, subterrâneas e labirínticas para trazer, traduzir e partilhar o que talvez pudessem pensar-se como os bilhetes-túmulos de uma sobrevivência enlutada. Nela, o trauma da separação e a promessa em falta da despedida aparecem indissociáveis na sua heterogeneidade e no intuito interminável de fazer uma morada dolorosa à memória dela, mas também daqueles companheiros do bloco liquidado, dos desaparecidos chacinados no estuário do Vístula, dos que jazeram como figuras na neve de sua própria marcha fúnebre.

No capítulo chamado “No estuário do Grande rio do tempo na costa do Mar Báltico”, é relatada a viagem que, em tempos de pós-guerra, fez Otto Dov Kulka, em companhia de seu pai Eric, a Danzig e a Struthof, na procura do túmulo da mãe.

Fomos procurar o túmulo, procurar a cidade-satélite da Metrópole da Morte – e lá chegamos. O portão, ao contrário do de Birkenau, estava bem conservado, e os prédios que recebiam os visitantes eram tão bem guardados quanto preservados, com salas de museu e salas de pesquisa para os funcionários do local, que naquele meio-tempo fora transformado em memorial. (KULKA, 2014, p. 103)

Estando como visitante, a descrição do campo de Struthof que faz Kulka sublinha o caráter memorial e a organização que se tem imposto no local. Porém, Kulka prefere separar- se do grupo inicial e decide caminhar sozinho em direção à floresta, onde, segundo lhe informaram, encontrava- se o campo das mulheres judias de Auschwitz. A atitude de reserva frente ao arrumado demais e que suspeita da boa vontade da restauração lembra a Boris Pahor, quando, como visitante nesse mesmo campo que foi seu cativeiro durante a guerra, resiste a aceitar que a impostura das remodelações e o avanço do gramado se impunham sobre as marcas do extermínio (PAHOR, 2013). Dessa forma, Kulka se encontra andando, tateando e, sem saber, atravessa pelo vasto gramado, pois o campo de Stutthof “era uma espécie de campina, uma vastidão que parecia quase interminável, desolada e no entanto de algum modo cultivada, com a grama aparada, uma espécie de grande gramado a estender-se – não interminavelmente, mas até a orla de uma grande floresta negra, além da qual, nos disseram, ficava o mar” (KULKA, 2014, p. 112). E assim, passando de um monumento a outro, aproxima-se da floresta desolada e primordial, onde, entre charcos e árvores, recita um kadish pelos mortos. Ao voltar dessas imediações, encontrou-se com umas tiras de couro em decomposição, “a única coisa distinta naquela grama”, e que correspondiam aos milhares de sapatos pertencentes às vítimas de

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Auschwitz, enviados a Struthof para serem consertados e auscultados na procura de possíveis tesouros. Kulka levara consigo um pedaço desses restos, assim como aconteceu em sua visita às ruínas do bloco dos jovens e das crianças em Birkenau e aos crematórios, quando pegou restos de tijolo e os levou para sua casa em Jerusalém. Outro resto que guardara para si seria uma fotocópia da ficha da sua mãe como prisioneira do local, onde não registra-se a causa, nem a data de morte dela. Assim, a procura do seu paradeiro os levara até o vilarejo de Koszewo, localizado no extremo da linha de trem que conduzia à balsa usada para transportar passageiros para o outro lado do grande estuário do Vístula. Antes de poder fazer essa travessia, nas proximidades de uma casa, sua mãe e umas companheiras de fuga encontraram asilo ao escapar de Stutthof. E ali, pelo testemunho de seu avô e do pessoal funerário, finalmente descobriram o lugar sem lápides onde ela foi enterrada. Finalmente, é possível determinar de onde vêm e para onde levam as memórias dessas águas turbulentas, que diluem cálculos, corroem álibis e garantias, trazendo mais de um incômodo aos navegantes, leitores e intérpretes, tão bem acostumados ao chão firme e ao fundamento puro das suas abordagens? Não há resposta conclusiva, mas talvez seja preciso dizer que, entre esse testemunho, que não se sabe se porta ou se é portado pelas cinzas do Vístula, decanta-se a memória da água, para aqueles expostos ao naufrágio da noite. Talvez, como sugerem na sua errância as palavras, as contra-palavras e as cesuras do poema celaniano, ainda no cerne da sua autotelia, endereçado às praias desconhecidas e improváveis, de caminho impossível ao outro: “um jorro de água se abre passo através, um jorro de coração, um rio, tu conheces seu nome, as beiras estão cheias de dia, como o nome, tu o palpas com a mão: Alba” (CELAN, 1999, p. 334).

10. DIÁLOGO COM A HISTORIOGRAFIA

Os acontecimentos catastróficos que têm perpassado o século XX até nossos dias fazem tremer as perspectivas da história e os métodos historiográficos. Os axiomas, as representações e os sentidos da história não ficam imunes. Walter Benjamin, um dos filósofos mais sensíveis dessa história interrompida, percebe que a reflexão histórica não pode se iludir da atenção ao campo narrativo. Nele, ressoam mais de uma voz entre as camadas das ruínas da história, removidas e emergindo entre o testemunho da precariedade, da perda da linguagem e da finitude radical dos corpos expostos à brutalidade técnico-instrumental das

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guerras. Assim, “a escritura do historiador tem para Benjamin um caráter testemunhal, ela reinscreve o ‘real’ em um agora que sai do tempo -fragmentando a sua visão linear em estilhaços. Mais ainda: essa escritura é a metamorfose desse agora que se manifesta como espaço escritural” (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 184).

A obra de Benjamin problematiza as fornteiras entre a escrita dita científica, teórica e prosaica e, por outro lado, a escritura fragmentada, opaca, ruinosa, que caracteriza tradicionalmente o universo poético. Indo ao confronto das realidades abusivas, a literatura testemunhal chama a atenção para novos caminhos e perspectivas. Nesse sentido, o testemunho constrói uma memória que estaria se opondo ao registro tradicional da historiografia como modelo positivista. Além do mais, fornece elementos para pensar e imaginar outras formas de relacionar-se com o mundo e lidar com as feridas que perpassam o tempo, espacializando-se no traumático do real. Dessa forma, o chamado de “escovar a história a contrapelo”, que Benjamin afirma nas “Teses sobre o conceito de história” (1987), exige ler criticamente a história, aqui e agora, como um acúmulo de violências, reescrevê-la abrindo a historiografia para o discurso testemunhal, olhando as ruínas e ouvindo as vozes dos esquecidos. Como se em cada detalhe e tonalidade se atendesse a recepção de outras faces silenciadas na história, expostas à vulnerabilidade das ruínas que se amontoam e às remoções das camadas que acordam para endereçamentos irredutíveis aos pressupostos do conhecimento absoluto ou às perversões historiográficas. Trata-se de uma exigência infinita da tradução como tarefa inacabada, pois o intraduzível da catástrofe resulta mesmo no infinito que puxa toda a exigência. É o que lembra Maurice Blanchot (1990) a propósito da trajetória, perpassada pela experiência traumática, do pensamento em Emmanuel Levinas, com quem não deixou de manter um diálogo inconcluso: “Como filosofar, como escrever na memória de Auschwitz, na memória daqueles que nos disseram, por vezes em notas enterradas ao pé dos crematórios: sabei o que se passou, não esqueçam e, ao mesmo tempo, nunca vós sabereis” (BLANCHOT, 1990, p. 39). Isso não quer dizer que aquilo deva ficar enterrado no inefável, mas que, doravante, o paradoxo e a aporia irrompem nos discursos e perturbam o “chão dourado da história”, deixando tremer as versões oficiais do acontecido com o inconfessável e dissidente do testemunho. Nesse sentido, vale lembrar que essa atenção ou escuta da história ao narrativo está presente em diversas reflexões de pesquisadores como Gallie (1964), White (2014) e A. Danto (1989). De sua parte, Paul Ricoeur (2007) considera a narração e o relato na relação

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da consciência do tempo no discurso. Por sua vez, Michel de Certeau (1982) e P. Veyne & L. Stone (1990) refletem acerca da narração histórica como alternativa diante da historiografia científica, baseada nos modelos tradicionais da disciplina, como aqueles provenientes da perspectiva marxista ortodoxa e, de outro lado, da escola dos Anais. Em A escrita da história, Certeau (1982) se pergunta o que o historiador fabrica quando se torna escritor. Assim, tenta reconciliar a racionalide e a ficção, a técnica e o sonho, as práticas de narração de forma oscilante e inestável, pois a experiência exige outras formas de escrever a história. Nesse sentido, a sua operação historiográfica propõe reivindicar a história como narração, pois a escrita da história se vincula com a ausência e a morte. Dessa forma, repensar a prática historiográfica permite reconhecer a presença da morte no meio dos vivos. Por outro lado, assinala que o historiador trabalha nas margens, levando em conta a diferença e os desvios, mas não uma totalização. Pensar na narração histórica implica considerar que não se pode desconhecer a relação do historiador com a interpretação. Leva-se em conta que a narração se trata de um processo de produção polifónica do sentido, que nos permite conceber a história como sujeitos historicamente situados. Isso ocorre porque o historiador não fala apenas enquanto espectador passivo ou desde uma reflexão impessoal e sem intenções, nem simplesmente a partir de uma instância abstrata, pura, transparente, alheia, autonomamente soberana e omnisciente, capaz de englobar e dominar plenamente o acontecimento. Para Kulka, historiador reconhecido por suas pesquisas na história no período nazista54, trata-se de aproximar-se pela experiência da escrita literária e de deixar virem, sem vinda plena, os rastros do passado no presente, pela porta do relato entretecido diante da lei da cidade da morte. O intuito é não encarar mais essa situação-limite desde um olhar afastado, analítico e baseado no objetivismo do cientista histórico55. O buraco de Auschwitz o impele

54 Entre suas obras históricas, destacam-se as pesquisas que compõem o texto editado junto a Eberhard Jäckel, traduzido em inglês como The in the Secret Nazi Reports on Popular Opinion in Germany, 1933-1945. (KULKA & JÄCKEL, 2010), além de outros estudos sobre o papel da opinião pública no regime totalitário nazista (KULKA, 2009). Ao final de seu relato literário, está anexado, como apêndice, um artigo acerca do campo das famílias em Auschwitz, baseado nos documentos disponíveis sobre esse local específico e elaborado através dos elementos da pesquisa e da escrita histórica de caráter científico acadêmico (KULKA, 2014).

55 O historiador, sem simplesmente rejeitar a sua profissão, é ciente dos limites do discurso histórico científico e da exigência da objetividade nesses afazeres. Assim, sente a necessidade de aventurar-se na escrita literária, pois é impelido por suas paixões, através da marcante experiência das leituras de obras como as de Kafka, Kleist, Dostoievski, Shakespeare e de outros escritores da literatura israelita, checa, alemã, entre outras que parecem suscitar em Kulka certa afinidade. Porém, sente-se chamado a oferecer seu testemunho, por tanto tempo silencioso, pelo estranhamento diante das representações literárias e artísticas, ou seja, pelas tensões que também podem vir

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a dialogar. A chave ética do testemunho nos coloca a questão do acolhimento. Em diálogo com Kulka, Saul Friedländer se pergunta sobre o significado do evento extremo que marca Auschwitz. Através de pesquisas historiográficas e reflexões, discute os limites e as dificuldades da representação. Dessa forma, procura questionar a naturalização, a pacificação e o reducionismo dessa fratura diante da qual a história não pode ficar mais indiferente, entendendo o trabalho histórico para além da autossuficiência do domínio disciplinar. Eles tentam acolher os vestígios desses rostos e restos silenciados pelo sistema assassino do Terceiro Reich.

Atentos à inquietação dos restos no presente e sensíveis ao corte na história que provocou Auschwitz, eles não procuram uma verdade axiomática conhecida, ou uma prova tranquilizante do domínio do acontecimento. Como testemunhas da história abismada, Friedländer e Kulka compartilham a experiência concentracionária na infância singularmente perpassada pela tragédia da guerra e do nazismo. Em When Memory Comes, Friedländer (1979) narra a experiência de sua infância marcada pelo drama como judeu checo, confrontado com o nazismo e a perda. Mais tarde, na sua autobiografia Where Memory Leads: My Life (FRIEDLÄNDER, 2016), escrita quase quatro décadas depois, ele se pergunta: O que vem e para onde leva a memória? Lembra como se levanta da perda e constitui a vida humana. Ali, coloca questões relevantes e intermináveis a propósito da memória e de sua vinda turbulenta, passagem que perpassa incessante, sem passar completamente, locomoção que deporta ao tempo incessante do não passo. "Le temps, pour moi, n'a jamais cessé de ne pas passer" (LANZMANN, 1985). Essa inquietação vai ao encontro das reflexões de Kulka, pulsadas pelas paixões da literatura. A sua escrita se deixa tomar pela vinda do que não cessa de revir. E assim costura, sem iludir tensões e marcas diferenciais, suas paixões históricas ao fio de suas reflexões sobre a memória e a imaginação da experiência extrema, deixando acontecerem aqueles murmúrios que ressoam no silêncio desmedido do desastre. Para o historiador, o chão não é um local fixo, e o abismo na história não deixa edificação tranquila ao seu olhar. Ruínas que, de começo, solicitam e excedem a dimensão do saber fixo e dado, deslizando sob seu influxo espectral na vertigem do sono e das

a gerar as literaturas do testemunho, nas suas tentativas de aproximar-se da experiência desmedida dos campos genocidas e atravessar pela porta da Metrópole da Morte.

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associações inesperadas, deixando vacilar o chão da consciência histórica reduzida a uma racionalidade técnico- instrumental. Embora, durante muito tempo, Kulka tenha tentado separar seu passado biográfico do passado histórico, a visitação intempestiva das memórias do horror e os momentos marcantes dessa experiência-limite, vividos na infância, permaneceram latentes. Isso sinaliza que a historiografia na qual tentou se apoiar não foi suficiente, pois, referindo-se ao seu tempo no lager, ele diz: “sua memória e imaginação me atingiram e me assustaram, talvez de modo subconsciente, para confrontar diretamente a dimensão daquela morte e eu apenas tentei ignorar a barreira daquela porta, e entrar através dela disfarçado ou metamorfoseado” (KULKA, 2014, p. 65).

Talvez Kulka tenha decidido, a princípio, o caminho do historiador, tentando evitar o olho sem pálpebras que quase o tocou durante sua infância, mas que o assombrou e ainda o faz, e em cujo margrave milhares de seres foram incinerados. Mas nada impede que a ferida ainda aberta solicite justiça, para comparecer outramente diante da lei, entre os gritos ressonantes e no silêncio das ruínas de Birkenau. E também para assumir a sistemática lei da Metrópole da Morte, sem ignorar sua radicalidade e suas ramificações que se estendem pelo tempo e pelo espaço, pela memória e pela imaginação, mas sem esquecer o seu avesso, isso que enigmaticamente o sobrevivente chama “minha penúltima liberdade”. Conforme Hayden White (2014), estudamos o passado por muitas razões diferentes e de diversas maneiras, das quais a histórica é apenas uma56 Segundo o teórico, não se deve confundir literatura e história, nem ficção e fato, mas é necessário um reexame dessas relações. Supõe equivocamente que “o tratamento literário de eventos moralmente carregados como o Holocausto implica uma ‘queda’ do realismo histórico na ficção” (WHITE, 2014, p. 17). O dogma da superioridade da verdade histórica sobre a supostamente enganosa imaginação literária e artística perpassa o jeito de pensar a história desde a antiguidade ocidental e remonta pelo menos a filósofos gregos, como Platão e Aristóteles. Esse pressuposto é questionado ao longo do relato de Kulka, pois, por mais que se almeje a

56 O passado não apenas existe na forma com que é concebido pelos historiadores. O historiador não possui um domínio absoluto sobre o acontecimento, nem o pretenso monopólio do saber histórico, conforme lembra Marc Nichanian, a respeito da perversão historiográfica. O relato de Kulka, sem menosprezar o trabalho histórico ao qual tem dedicado tantos anos da sua vida profissional, expõe suas limitações: uma delas consiste em que a pressuposta capacidade autonômica do historiador na reconstituição e explicação objetiva do passado não garante uma verdade imutável.

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verdade, não basta uma perspectiva historicista autossuficiente, positivista, que se presume com o domínio puro e instrumental sobre o acontecimento. Nesse sentido, a incursão no espaço literário não quer dizer um simples rebaixamento, nem uma confusão com a singularidade do traço histórico científico. Em resposta aos comentários de Hyden White a partir da sua leitura do relato acerca das paisagens da Metrópole da Morte, Kulka observa que não se trata de diluir a história na literatura. Em seu texto, jamais deixa de lado essa diferença. Antes, trata de escrever na escuta e na dinâmica dessa inegável e imprevisível relação, tensa e intensiva (KULKA, 2014). Assim, reconhece os limites de cada via e tenta um diálogo desviante e interpelante entre as dimensões heterogêneas que não deixam de visitar-se, de entrar em tensão e acolher-se.

Continuamente, lembra-se da relutância em se confundir o ofício da história com os rastros autobiográficos e mesmo com a criação literária. Desde o começo, coloca-se a tensão latente entre o discurso histórico e a narração literária e mesmo poética, pois o confronto entre as imagens da memória e a representação da pesquisa histórica (KULKA, 2014) implica não apenas uma mudança no estilo da pesquisa e da escrita, mas o tremor das certezas e a abertura do solo sobre o qual o historiador costuma realizar seu trabalho. Dessa forma, o texto de Kulka sublinha o caráter específico e rigoroso da disciplina, da metodologia e da pesquisa histórica em múltiplos momentos do relato. Sem desvirtuar esse caminho de conhecimento e sentido do mundo, que é também sua vocação, considera seus limites e a mudança de ar como uma viragem entre os desvios e a abertura na direção do imprevisível e improvável. Isso implica estar voltado à experiência de narrar e imaginar pela literatura, pelos poemas e pelas imagens, pelas paisagens da memória marcadas pela morte e pelo amor.

A partir da interpretação de White, é possível perguntar: será que a arte e a literatura apenas são complementos da ciência? Não estariam afetadas pelos encontros, repressões, enclaves, encriptamentos do desastre que as perpassam? Além disso, é problemática a afirmação de White quando vincula a obra de Kulka ao gênero da colagem. Colocando-a como um exemplo de expressão literária pós-modernista, corre-se o risco da etiqueta tergiversadora, que pretende a neutralização da obra ao incluí-la em uma definição duvidosa e homogeneizante dos traços, devires e revenires deslizantes e diferenciais que a atravessam. Kulka responde: No entanto, como expliquei na introdução do livro e em algumas das entrevistas que dei após sua publicação, Landscapes foi não concebido como um livro. Origina-se em meus diários, e um pouco mais tarde, em

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monólogos gravados em fita, que foram escritos ou falados para minha autocompreensão. Tanto as entradas do diário quanto as gravações foram mantidos estritamente privados, de modo a não interferir com o meu trabalho acadêmico impessoal. (KULKA, 2014, p. 38) Dessa forma o texto de Kulka, sem se reduzir a um tratamento artístico estetizante, nem a um tratamento literário apenas ficcional, que, supõe-se, deixaria despercebida qualquer dimensão poética e política do testemunho, antes se desliza entre a rede narrativa da experiência que entrelaça mitologias, emoções, reflexões. Constitui o microcosmo do que foi Auschwitz-Birkenau para a criança, partícipe das pegadas espectrais e dos rastros em movimento que se e que o seguem, já adulto, no decurso da sobrevivência, do esquecimento, da memória e da escrita.

Assim, paisagens instáveis cobertas de cicatrizes errantes resistem ao saber em excesso, seguro de si, pois pese às tentativas de explicação: “Permaneceu ali a inexplicável paisagem de ruínas. – A história tenta explicar o inexplicável. Como sai de um solo verdadeiro, tem então de terminar no inexplicável. À maneira de uma parábola de Kafka.” (KULKA, 2014, p. 56). Embora a tarefa histórica exija sem concessões o verdadeiro, não deixa de se chocar contra experiências- limite que, deixando cair na noite os horizontes definidos de antemão, solicitam outra caminhada e a reinvenção incondicional da noção de verdade, ainda amparada no chão dos pressupostos onto- teológicos sobre o que se eleva à violência do sacrifício e da razão instrumentalizada. No filme documentário de Stefan Auch, Die vorletzte Freiheit. Landschaften des Otto Dov Kulka, diálogo poético entre imagem e relato, pode-se escutar a pergunta que inquieta o sobrevivente: “O que significaria Auschwitz?”. Essa interrupção interpela a responder sem definições acabadas, desborda as certidões, afeta com consequências incalculáveis o sentido, a literatura, a cultura, o conhecimento, o credo, a imaginação, a memória, a história, a historiografia, enfim, as lembranças frágeis e douradoras da criança exposta e perplexa, temerosa e curiosa, vulnerável e, ainda assim, resistente e criativa, diante da desmedida do abismo nos campos de concentração. Desse modo, o paradoxo e a aporia entre polaridades difíceis e sem solução garantida irrompem no discurso e perturbam “o chão dourado” da história, fazendo tremer as versões oficiais do acontecido com o inconfessável e dissidente testemunho. A meia voz, entre cinzas, puxa a tarefa histórica para outras paragens, não simplesmente utópicas, mas talvez endereçadas para o impossível. Sem que essas vias cheias de heterogeneidades e desvios sejam mais ou menos valiosas que outros traçados desafiantes e fecundos, entreabrem-se e

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entrefecham densas e complexas redes de relações, entre as voltas e revoltas nos limiares do tempo e do espaço, atrás dos rastros e restos que ainda cintilam entre a areia marcada da memória e o vento que sopra esquecendo, no murmúrio tênue, que não acaba de apagar-se por completo. Na mudança de ar, há o eco de testemunhos inesquecíveis, que, para além do relato histórico dos vencedores, trazem-nos: “A imagem de nossos antepassados oprimidos” (BENJAMIN, 1989, p. 175). Tais pisadas ainda brilham na terra, herança ferida e ferinte que rompe o continuum temporal e exige combater a amnésia do presente e as pretensões progressistas de borrar o passado.

10. POÉTICAS E POLÍTICAS DO (AN)ARQUIVO

O testemunho abala as estruturas de poder e a lógica do arquivo. (Márcio Seligmann-Silva)

A partir das reflexões de Jean-Christophe Bailly em relação aos arquivos, no texto L'Ineffacé, pode-se afirmar que eles não se reduzem à simples massa inerte de documentos. Tratam- se de materiais que levam a pensar e sonhar, pois são tanto fragmentos de história, de saber, como de emoção. Nesse sentido, refletir sobre a questão do arquivo e do anarquivamento implica oscilar no vaivém aporético entre o desejo infinito e a resistência: paixão, desejo insaciável do arquivo, assim como remoção e resistência criativa contra os estragos provocados pela representação plena da história oficial, que tende a assumir uma relação tirânica sobre o arquivo, seja através da sua ausência ou do seu excesso. O relato testemunhal de Kulka aproxima-se de um arquivo em desconstrução, pois o desordena, lançando diante dele um olhar distanciado do objetivismo. Deixa estremecer a racionalidade instrumental do poder inerente ao arquivo através das reflexões, dos silêncios, dos pulos fragmentários e das travessias entre memória e imaginação, escrita e imagem, vigília e sonho. Entretece um arquivo literário e imagístico em anarquivamento e desagregação inconclusa, que se monta e desmonta a contrapelo da historiografia tradicional e das relações tirânicas ao arquivo. Está na sondagem sem sossego dos vestígios que se entrecruzam, levando à memória dos restos ressonantes, ainda invisíveis e pouco frequentados por algumas

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historiografias e produções literárias testemunhais dos campos de concentração. Nesse sentido, é preciso ressaltar a importância dos artistas e escritores do testemunho como anarquivadores, sublinhando também as experiências de leitura que suscitam. Trata-se de assumir, sem poder fazê-lo por completo, o risco e o rigor não soberano de si da pesquisa arquivista57 estando endereçados não apenas para as narrativas do passado, mas para re- mexer entre as ruínas latentes e descobrir os cacos não ouvidos da história, como coletores dos rastros resistentes à noite e à nevoa, aos negacionistas, mesmo que às certezas da versão mantida como o oficial da história. Dessa forma, é urgente pensar na relação indissociável entre memória, história e arquivo, criando espaços de acolhida para aqueles arquivos turbulentos vindos da literatura e das artes de teor testemunhal, sem pretender neutralizar as suas alteridades. Isso porque não existe apenas uma via de montagem ou desmontagem dos arquivos. Assim, os sobreviventes, como anarquivadores, trazem perspectivas múltiplas. Diante da lei, suspeitam e se sublevam ante a representação plena de si e do regime de um ponto de vista autoritário, que deixa visível o que lhe convém e se presume sólido detentor do saber absoluto na sua omnisciência todo-poderosa.

Figura 22. Ruínas do crematório n°11 em Auschwitz-Birkenau.

57 Desse rigor, é testemunho o texto de Kulka, e não apenas pelos múltiplos e diversos arquivos (e não só da memória histórica), que pesquisou para sua preparação, elaboração e escrita, mas também pelo trato com eles, respeitoso e responsável, e ao mesmo tempo em que, atento aos perigos de cair na relação tirânica do excesso ou na ausência de arquivo, aventura-se entre os seus limiares pelo viés turbulento do estético e do literário de teor testemunhal.

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Entre 2004 e 2005, trabalhei como arquivista no Arquivo Histórico da Universidade de Nariño, na Colômbia. Nesse encontro e desencontro com o arquivo, dentre as atividades a serem realizadas, encontravam-se o atendimento aos pesquisadores visitantes, a manutenção dos arquivos, além de dar conta desse suporte material e da sua fragilidade. O serviço também incluía ler, transcrever, traduzir e interpretar trechos de livros que já estavam se apagando pelo tempo. Trabalhei com fragmentos que eram necessários se remontar, desmontar, montar. Foi uma tarefa quase impossível de leitura, de tradução e de esforço interpretativo, de inscrição de rastros, entre os limiares da memória e a imaginação, que depois devia registrar- se em um suporte virtual. Isso tudo com o intuito de estabelecer alguma conexão entre a experiência no corpo a corpo com o arquivo e as contra-assinaturas que perpassam e dinamizam essa relação. O cheiro de café misturado com a humidade do papel velho provocava uma atmosfera envolvente. Ali, os espectros do arquivo brincavam de esconde-esconde, mostravam-se e se ocultavam entre as estantes e os maços de documentos, enquanto ficava à escuta dos rastros ressonantes do porvir. Essa experiência aproximou-me de outro modo ao arquivo, pois através dela se experimenta a sua estrutura espectral, encriptada, incômoda, cuja complexidade sempre reserva um problema de tradução iniludível. Como pano de fundo, ficou aquela lembrança do arquivo contaminado e da minha fragilidade nele. Diante dos papéis antigos em decomposição, deteriorados pela umidade, falta e ausência, numa dupla precariedade que solicitava (an)arquivar. A partir dessa experiência, sensível às falhas da instituição do arquivo, experimentando sua falta e incompletude e, por outro lado, exposta às suas criptas, contaminações, ruínas e espectros, pode-se enxergar uma relação inquieta com o arquivo. Diante daquela alteridade transversal que o imanta, abriam-se as aporias do impossível: a infinita tarefa de interpretar, imaginar e traduzir e, também, o selamento de um secreto absoluto.

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Em Mal de arquivo, Jacques Derrida (2001) reflete a propósito do poder arcôntico do arquivo, o poder do mandamento, em diálogo com o pensamento do historiador Yerushalmi, a partir de O Moisés de Freud: judaísmo terminável e interminável. Nota-se que a questão do arquivo está perpassada pelo excesso de uma relação trágica e inquieta, porque não deixa de

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expor o espectro do arquivo absoluto, à loucura de achar que tudo é arquivável. E, por outro lado, se nada fosse arquivado, arrisca-se um narcisismo dogmático. Assim, a história dificilmente seria possível, pois esse desejo de constituir e salvar o arquivo, bem como o ardente apagamento que, inextricável, estrutura-o, resta latente nas entranhas e faz parte iniludível de nós.

Dessa maneira, ao pensar no ofício do historiador, mas também em outros apaixonados pelo arquivo, Elisabeth Roudinesco (2006) lembra que existem dois limites impossíveis, dupla tentação e interdição que limita e ilimita forjando uma dinâmica aporética em relação ao arquivo: o saber absoluto e a soberania interpretativa do eu.

Existe em todo historiador, em toda pessoa apaixonada pelo arquivo uma espécie de culto narcísico do arquivo, uma captação especular da narração histórica pelo arquivo, e é preciso se violentar para não ceder a ele. Se tudo está arquivado, se tudo é vigiado, anotado, julgado, a história como criação não é mais possível: é então substituída pelo arquivo transformado em saber absoluto, espelho de si. Mas se nada está arquivado, se tudo está apagado ou destruído, a história tende para a fantasia ou o delírio, para a soberania delirante do eu, ou seja, para um arquivo reinventado que funciona como dogma. (ROUDINESCO, 2006, p. 14)

Nesse sentido, é vital pensar com Derrida. Não há um conceito de arquivo puro, uma noção dada e fixa dele, pois, com efeito, é suscetível de diversas partilhas, mutações, próteses e metamorfoses. Essa relação, experiência e conceito de arquivo, que, de princípio, expõe as alteridades, heterogeneidades e diferença disseminal que ele implica, ajuda a repensarmos criticamente os arquivos, nas suas mutações, em um contexto histórico marcado pelas desconstruções que acontecem e interpelam na desconstrução dos arquivos do mal: “Os desastres que marcam o fim do milênio são também arquivos do mal: dissimulados ou destruídos, interditados, desviados, ‘recalcados’” (DERRIDA, 2001, p. 34). Isso coloca em diálogo diversas problemáticas:

Com os múltiplos debates sobre o holocausto judaico e os horrores promovidos pelo nazismo, a naturalização do genocídio na segunda metade do século XX e pela criação do Tribunal Penal Internacional, até a constituição da categoria do crime contra a humanidade, foram colocados como questões políticas e éticas no plano internacional. É ainda nesse contexto histórico que foi enunciado como discurso político a existência de Estados fora-da-lei, com os desdobramentos militares que isso teve na política intervencionista norte-americana, empreendida por Bush, assim como se constituiu a problemática do testemunho, nos diferentes registros da história, da literatura, da arte e da filosofia. Ao lado disso, o estatuto da pena de morte. (BIRMAN, 2008, p. 108)

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Portanto, contra certa concepção “soberanista” que institui uma relação tirânica ao arquivo, no sentido em que este se supõe garantido pelo Estado soberano e reservado exclusivamente aos membros de uma comunidade poderosa, e contra a face fechada e a historiografia cúmplice dessa maquinaria monopólica do arquivo, é necessário se expor à soleira do testemunho. O intuito é enfrentar a violência bio-tanato-política do arquivo burocrático, acordar às ressonâncias insepultas da memória e manter a abertura com o porvir aqui e agora. A necessidade hiper-ética de pensar as urgências do tempo e responder ao chamado difícil da justiça pelos outros implica repensar criticamente a lógica arquivista e os seus efeitos. Isso porque, ainda hoje, o sistema genocida se associa à construção de arquivos para continuar neutralizando e submetendo viventes, sobreviventes e sobremorrentes.

O processo civilizatório extremadamente violento no século XX baseado na razão ocidental, esse constructo que levava em si um arquivo que era constantemente redesenhado e cujas origens também foram projetadas, desde o Renascimento, na Grécia antiga, foi derretido sob o calor dessas catástrofes. O abalo no arquivo central do Esclarecimento levou a uma disseminação dos saberes. Trata-se do conhecido “fim das grandes narrativas”, não só no sentido benjaminiano, da morte do narrador, mas também da morte dos grandes discursos que procuravam dar sentido (um sentido monológico) à humanidade e à sua história e devir. Ao invés da fé cega na razão e na sua capacidade de revelar a verdade, surge cada vez mais ao longo da Modernidade um outro modo de pensar e de agir que desconfia dos arquivos. (SELIGMANN-SILVA, 2017, p. 11)

Nesse sentido, desconfiar dos arquivos implicaria não renunciar ao desejo infinito da ruína, do inarquivável pulsando e chamando entre eles. É precio pensar e acolher os rastros e espectros que os constituem e ao mesmo tempo os deslocam, limitam e ilimitam, pois, já de começo, a ruína não deixa de estruturar as suas fundações e deslocamentos. Tratar-se-ia de questionar a pretensa solidez dos arquivos do mal como arquivos que foram promovidos pela relação de domínio e poder, através da figura do arconte58 (arkheion)59 e de um Estado

58 Segundo Márcio Seligmann-Silva (2013), o detentor da chave do arquivo, o que tem o poder sobre ele, deve ser pensado como aquele que tem os documentos necessários para se abrir o caminho para processos jurídicos e julgamentos justos. Por outro lado, o arconte é também o porteiro da lei, aquele que não deixa os oprimidos adentrarem seu palácio, mas esse guardião da lei e da memória deve ser provocado e abalado em sua arrogância despótica.

59 Inicialmente, uma casa, um domicílio, um endereço, a residência dos magistrados superiores, os arcontes eram aqueles que comandavam. Aos cidadãos que detinham e assim denotavam o poder político, reconhecia-se o direito de fazer ou representar a lei. Levada em conta a sua autoridade publicamente reconhecida, era em seu lar, nesse lugar que era a casa deles (casa particular, casa de família ou casa funcional), que se depositavam os

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patriarcal. Este, além de se apropriar dos arquivos, pretende preservar-se no poder, na lógica política do arquivamento burocrático, indissociável da ideia da Este, além de se apropriar dos arquivos, pretende preservar-se no poder, na lógica política do arquivamento burocrático, indissociável da ideia da soberania estado-nacional que se impõe desde a modernidade e continua assumindo exclusivamente para si o uso da violência e a última palavra. Assim, mantém o arquivo das atrocidades fechado em uma lógica que se reproduz em distintos contextos até nossos dias60. Ainda hoje, em contextos de horror civilizacional e progressista, arquivos continuam a ser elevados interesseiramente como dados fixos e disponíveis ao melhor pagador61 . Apesar disso, e ainda que a liberdade seja impedida por impedir o seu vazamento62, as escritas da sobrevivência continuam a questionar os embates (tecno)(bio)políticos do nosso cotidiano, resistindo aos documentos produzidos como positividades na sua materialidade.

No regime nazista, tudo foi feito para que os atos criminosos fossem apagados. A ausência do arquivo, seu ocultamento ou selamento, vincula-se ao poder, a quem disputa sua

documentos oficiais. Os arcontes foram os seus primeiros guardiões. Não eram responsáveis apenas pela segurança física do depósito e do suporte. Cabiam-lhes também o direito e a competência hermenêuticos. Tinham o poder de interpretar os arquivos (DERRIDA, 2001, p. 12-13).

60 No contexto brasileiro, essa lógica de um arquivo fechado sob a chave do poder soberano estatal e das forças armadas tem recalcado os processos da abertura e da (re)elaboração das memórias da ditadura militar. Assim, permite a impunidade dos carrascos e dificulta o processo de luto, com as consequências nefastas e reativas que isso traz para a sociabilidade e a política hoje (SAFATLE, 2019). De outra parte, no contexto colombiano, essa lógica do veto ao acesso, com as variações singulares contextuais e históricas respectivas, ainda se manifesta, não apenas no fechamento do arquivo através do uso excepcional da violência pelo estado, mas também no seu trato ardiloso, conveniente, manipulador e tergiversador. Contudo, nas artes, nas literaturas e em outras manifestações de teor testemunhal, desenvolvem-se experiências de anarquivamento que se relacionam ao arquivo de outro modo e põem em questão o fechamento e a última palavra do poder soberano oficial.

61 Na chamada era da informação, junto ao uso intensivo das novas tecnologias e o compartilhamento digital, a coleta, o processamento, o fluxo e a mercantilização dos arquivos e dos dados atinge patamares inéditos, assim como a luta pela sua possessão e o poder que se exerce através deles nas distintas esferas da vida pública e privada, cobrando dimensões industriais e pós-industriais. É o que sugere Sergio Amadeu da Silveira (2014), no estudo em que fala das dinâmicas dos arquivos e dos dados nas sociedades informacionais, entre os dispositivos do capitalismo e o controle informático.

62 Julian Assange, fundador de wikileaks, talvez não seja o único a sofrer esse flagelo da censura hoje, do isolamento forçado e da violação dos direitos humanos, no uso excepcional da violência legitimada e naturalizada (da mordaça ou da desacreditação pela propaganda negra), praticado, não sem brutalidade, pelas nações pretensamente mais civilizadas e bem-educadas do mundo. Isso mostra como, de lado a lado, o arquivo está perpassado pela dimensão política, e o seu vazamento deixa tremer o poder hegemônico que se ergue e preserva sobre seu pressuposto domínio. Por isso, talvez Assange assuma uma posição não tão negativa como se pressuporia diante da censura, pois ela é sintomática de como o poder treme: “A censura é sempre um motivo de celebração. É sempre uma oportunidade, porque revela medo da reforma. Significa que a sua posição no poder é tão precária que você precisa se preocupar com o que as pessoas pensam” (ASSANGE, 2015, p. 12)

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apropriação. Assim, nota-se, no regime em que se pressupõe possível seu domínio ou desaparecimento, uma relação tirânica sobre o arquivo. Roudinesco afirma:

Difícil não é executar o ato criminoso, mas apagar seu vestígio: o genocídio dos judeus pelos nazistas é a prova disso. Tudo foi feito para que o vestígio desse ato fosse apagado, e, no entanto, ele retornou aonde não era esperado. Sob esse aspecto, a ausência de vestígios ou a ausência de arquivo é tanto um vestígio do poder do arquivo quanto o excesso de arquivo. (ROUDINESCO, 2006, p. 68)

Contudo, nos testemunhos, os sobreviventes, que experimentaram o rastro diferencial do desastre, a partir das suas feridas, marcas e exílios, criaram e reinventaram suas difíceis heranças – entreabrem-se outros modos de relacionar-se ao arquivo. Esses testemunhos oscilam na tensa relação entre a impossibilidade de dizer o evento limite e a necessidade iniludível de fazê-lo, sem paralisia nessa aporia, mas resistindo decisivamente com suas narrativas ao desígnio alheio e excludente imposto pelo discurso do espírito absoluto da história. As camadas de vozes esquecidas, remexidas entre o húmus do tempo, lembram que Auschwitz não é passado, pois os seus tremores ainda vibram entre os sismos do nosso tempo. Desse modo, faz falta pensar na abertura poética e política ao testemunho, na geração de espaços que não deixem de lado as suas rachaduras e discursos entrecortados, nem cedam à restauração conveniada. Além disso, é necessário um trabalho do trauma incessante, uma vez que “o testemunho não é uma mera repetição do passado, mas a construção desta reconstrução simbólica do mal sofrido e angustiante preparação (Angstbereitschaft) contra o seu retorno potencial” (SELIGMANN-SILVA, 2000, p. 35). Essa abordagem da história, sempre aberta a uma interpretação incessante, não se imuniza dos impasses e das lagoas da memória, nem do indissociável elemento imaginário do testemunho, na escuta do não enunciável, do impoder da língua em falar, dos restos inarquiváveis. A experiência-limite que Kulka experimentou como uma criança exposta à catástrofe no campo de concentração, ainda que traumática, não impede o retorno aos campos e o desejo de escrever e narrar, de inscrever-se a si na pegada do rastro do outro, no testemunho de uma infância vulnerada pelo regime nazista, enganada e submetida entre os locais reservados às famílias nos campos de extermínio. Tais tentativas de elaboração dos testemunhos e da tarefa infinita da memória ressoam com toda a sua carga catártica. Conforme aponta Márcio Seligmann-Silva, torna-se um importante espaço da escuta, baseado na justiça auricular dos

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sobremorrentes, ecoando a afirmação de Benjamin:

O tédio é o passaro de sonho que choca os ovos da experiência. O menor sussurro nas folhagens o assusta. Seus ninhos – as atividades intimamente associadas ao tédio- já se extinguiram na cidade e estão em via de extinção no campo. Com isso, desaparece o dom de ouvir e desaparece a comunidade dos ouvintes (...) Ela se perde porque ninguém mais fia ou tece enquento ouve a história. Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais profundamente se grava nele o que é ouvido. de si mesmo está o ouvinte, tanto mais profundamente se impregna do ouvido” (BENJAMIN, 1994, p.205).

No relato, o silêncio das vítimas desmonta o barulho espetacular da violência. É uma deposição do sujeito diante da tortura do outro, esmagado na silenciosa queda da noite contra seu corpo. Então, trata-se de acolher o silêncio da vítima, o desamparo do sofrimento, no dom da escuta às imbricações, despojos e contradições, no tremor sem álibi. É preciso portar sendo portado no turbilhão da sua memória e transmitir essa injustiça, essa herança, vital e moribunda, aos outros, às gerações por virem. Às vezes, “é preciso não só calar, mas também mostrar aquilo do que não pode falar-se. E não apenas mostrá-lo, mais ainda, montá-lo” (DIDI- HUBERMAN, 2015, p. 77). A montagem de Kulka, entre palavras, silêncios, imagens errantes, entretece e destece uma sorte de procedimentos (an)arquivadores, escovando a história a contrapelo, deixando tremer pressupostos dogmáticos e fundamentalistas. Nas textualidades de teor testemunhal entretecidas por Kulka, o arquivo de Auschwitz- Birkenau, ao que se remonta, na montagem e desmontagem da Metrópole da Morte, deixa comparecer fragmentos de memória, imaginação e silêncios interligados entre portas e limiares, vasos comunicantes marcados, diante da lei imutável da Metrópole da Morte. Daí que sua soberania, de começo, esteja exposta à sua própria ruína. Trata-se, assim, de um arquivo espectral, um arquivo que arde entre cinzas e que, apesar do apagamento, ainda porta os restos dos corpos ausentes, um corpus de ausência e silêncios que não deixa calar. Portanto, para ele, é necessário discernir entre história e literatura, ainda que nenhum desses campos exclua o outro. São, para Kulka, inscrições distintas. Mas ele assume o risco de trabalhar na sua montagem testemunhal, desmontando os pressupostos e as certezas seguras demais de si, pois os vestígios resistem ao domínio absoluto que sobre eles se pretende ter e, “finalmente, deve aceitar-se que a história se constitui em torno a buracos postos infinitamente em questão, que nunca podem-se preencher” (DIDI-HUBERMAN, 2004, p. 9).

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Dentre as fontes arquivistas63 que percorre Kulka, está o acervo de seu pai, hoje guardado nos arquivos que ficam no subsolo do Monte da Recordação, no Yad Vashem. Para outras fontes de imagens, escritas narrativas e poéticas, assim como para as fotografias, foram importantes os arquivos do Yad Vashem, do Museu Estadual de Auschwitz-Birkenau, do Museu de Struthof, do Museu Memorial do Holocausto dos Estados Unidos, entre outros arquivos da memória e da imaginação que lhe permitiram montar e desmontar as paisagens da Metrópole da Morte. Em sua aventura literária, a relação, o tratamento, enfim, a atenção de Kulka com o arquivo poderia caracterizar-se como anarquivadora, no sentido de experimentá-lo na sua elasticidade labiríntica (mais que apenas como uma essência clausurada e imutável). E também recorrer a formas sempre novas de montagem e desmontagem na escrita do desastre que atravessa a história, sem ceder à simples estetização, nem assumir um trato pretensamente autonômico, positivista e soberanista diante dos fragmentos e dos momentos frágeis da memória enlutada. O jeito de relacionar-se com o arquivo, de traçar coreografias no corpo a corpo com suas múltiplas criptas, tensões e disputas em jogo, entretece-se como uma espécie de poética, que não é da ordem do que se impõe, mas do que expõe, sem abandonar o decisivo, que, com efeito, deixa acontecer na dimensão ética e política em mais de uma língua e processo tradutório. Desssa forma, o testemunho, como meio de inscrição da violência e como canal de busca da justiça, abre os arquivos e os espaços para o trabalho da memória e da imaginação. Propõe um arquivamento criativo e vital da nossa época, pois são necessárias as latências dessa memória por vir, um arquivo que não feche as portas aos limiares instáveis entre escrita e imagem. O arquivo arde, como o lembram de maneira diversa J. Derrida e G. Didi- Huberman. Assim, talvez poder-se-ia pensar que, sem a chama e a faísca que o constituem, nenhum arquivo existiria. A construção do arquivo, seu selamento ou des-selamento não são sem a ardência e as ruínas que o deixam comparecer. Desse modo, a construção de um arquivo, quer seja escondido, enterrado ou desperdiçado, entreabre-se nessa relação paradoxo-aporética entre o apagamento e a sobrevivência dos rastros e das testemunhas do desastre.

A questão do arquivo no relato de Kulka se assume sem negação, nem idolatria, pois tanto o saber absoluto como a censura e a indiferença tornam-se nefastos. Ela não perpassa

63 Além do arquivo pessoal, anotações dos seus diários, viagens e sonhos.

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simplesmente como um instrumento de uso ou de classificação exaustiva. Não se toma só, na exclusiva perspectiva historicista, nem soberanista ou do culto excessivo que resulta numa contabilidade privada da imaginação. Tampouco, deixa-se enquadrar em uma técnica, um programa ou uma fonte referencial prevista e definitiva ou como depósito inerte, como despensa embalsamada e neutral de documentos prontos e à disposição ou reduzível a um dispositivo de vanguarda no mundo artístico atual ou no pulular das tendências literárias pós- modernas. Assim como também não se reduz ao essencialismo de um pretenso “arquivo de si”64 ou apenas para si, reflexo de uma tendência narcísica no culto do mesmo, baseado na presumida plenitude da identidade de um sujeito que se pressupõe autossuficiente. Entre escritas e imagens, as Paisagens da Metrópole da Morte arriscam e jogam, ardem no arquivo em anarquivamento incessante, na memória lacunar e entrecortada dos restos sem resto, e não na omnisciência englobante e no exibicionismo da voz narrativa como pleno domínio e deleite de si. Conduz para as espectralidades errantes do sujeito dividido, ressonante, desviante, ferido, imantado, portado e deportado entre as margens e os cacos da história65. As alteridades e paixões do (an)arquivamento impregnam incondicionalmente a literatura e as artes do testemunho. Entretecem modos de resistência criativa e de desmantelamento das perversidades da racionalidade arcóntica, falogocêntrica, amnésica e das maquinarias burocráticas da morte em nome das que se continua a assassinar, a submeter, a calar, a explorar sobre o domínio monopólico dessa insaciável fissura da pulsão (an)arquiva.

64 Segundo Roudinesco: “Quanto à questão do culto de si, ela se relaciona ao mesmo tempo com o arquivo e a psicanálise e, mais precisamente, com o surgimento, durante o último quarto do século XX, de um “arquivo de si”, de um culto do narcisismo que põe em primeiro plano, contra e para além do tratamento psicanalítico, uma prática de autoanálise ou de autoterapia, fundada numa valorização da imagem de si.” (ROUDINESCO, 2006, p. 10).

65 Pensamento ferido e experiência interpelante do outro sem a qual nada seria o sujeito e que rompe com a superestimação da figura de um “sujeito desprovido de sentido histórico, atemporal, sem passado nem futuro; um sujeito limitado ao claustro de sua imagem no espelho.” (ROUDINESCO, 2006, p. 51).

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Figura 23. Sapatos desmanchados em Struthof, remetidos de Auschwitz para

“tratamento adicional”, outubro de 1992.

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11. ENTRE K

Kafka (1999) e Kleist (2004, 1985) comparecem no relato de Kulka, corpo a corpo com o corpus da sua literatura66. A imagem de três K, em relação estranha e familiar, entrecruza-se nas linhas e entrelinhas do texto, no devir entre o sonho e o trauma, a escrita e a leitura, a vida e a sobrevivência diante da lei e o azar da Metrópole da Morte. Marca o testemunho de Kulka. Dessa forma, entre notas imantadas na destinerrância dos K, seguem-se o ritmo não inequívoco, a destinação da letra ao(s) outro(s) e a ninguém, entre as letras assinaturas e contrassinaturas de Kafka, Kleist, Kulka. São aqueles que entreabrem no devaneio e no devir de vidas e obras feridas, estremecidas, metamorfoseadas, marcadas pela lei imutável nos suaseus diveros entrecruzamentos, como cartas enviadas sem sentido fixo, nem transparente, nem predeterminado da memória, do porvir, do imaginário pelas alteridades transversais do tempo e do espaço. A leitura dos livros do escritor Bernd Heinrich Wilhelm Von Kleist levou Kulka a compreender a sua intuição acerca da inexorabilidade e das resistências que perpassam a literatura assinada por esses K:

Quando li as histórias de Kleist, acho que compreendi o que na época apenas intuí. Compreendi o enorme e terrível impulso para voltar e me resignar, ou talvez o apego à volta e a resignação com a ordem e com a aterradora lei que jazia adiante. Em Michael Kohlhaas e em O terremoto no Chile, era a lei imutável que estava fadada a se concretizar, contra a qual cada revolta parecia não mais do que um pequeno, desesperançado e inútil adiamento. (KULKA, 2014, p. 58)

Ao lembrar-se da sua experiência na marcha da morte, após Auschwitz, reconhece que aquela jornada jamais o levaria para a liberdade última. Antes, descobre o que implica

66 Próteses de origem entre os rastros dos rastros desses K que se montam e desmontam entre o relato e, de alguma forma, ainda que seja oblíqua, sem confundir a singular, mas também plural relação diante da porta da lei que portam e pela qual são portados, permitem pensar que o rastro autonômico não seria sem as espectralidades da letra, as errâncias do graphein no nome, que traçam relações inesperadas nas heteronomias da literatura. Esses K, quiçá, não deixaram de atender, cada um de distinto modo, às paixões da literatura que os fez tremer como o lugar, o acontecimento de “todos esses segredos sem secreto, de todas essas criptas sem profundeza, sem mais fundo que o abismo do chamado e da destinação, sem mais lei que a singularidade do acontecimento, a obra” (DERRIDA, 1989, p. 172).

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estar marcado, pois a cada vez que volta, não deixa de descobrir que continuaria preso como habitante dessa Metrópole, na qual não se entra nem se sai ileso: “daquela lei que não deixa lugar para ser salvo, para violar essa terrível justiça pela qual Auschwitz tem de permanecer Auschwitz.” (KULKA, 2014, p. 60). Nos tremores pela incessante retornância sem retorno da catástrofe, emparenta-se com a literatura de Kleist, a cada volta e reviravolta, entre a espectralidade das errantes palavras e imagens em ruínas:

Naquela volta, com a conclusão do último ato, que eu não tivera então o “privilégio” de vivenciar – o ato de descer pelas ruínas que sobreviveram, pelo menos por aquelas da câmara de gás do crematório –, aquela lei imutável seguiu seu curso, a “joia da coroa foi trazida de volta” – a de Kleist, ou na verdade a de Kulka –, e encerra-se a odisseia na qual permaneci jungido e amarrado àquele lugar. (KULKA, 2014, p. 60)

De outra parte, Kafka, e as múltiplas K que ele suporta e que o deportam aos leitores, entre outras personagens, retratos, autorretratos e ruínas, visita as paisagens da Metrópole da Morte. Entra pela intertextualidade do testemunho, desde as ruínas do começo. E com esta nota se abre o texto:

Permaneceu ali a inexplicável paisagem de ruínas. – A história tenta explicar o inexplicável. Como sai de um solo verdadeiro, tem então de terminar no inexplicável. À maneira de uma parábola de Kafka. (KULKA, 2014, p. 5)

Assim o historiador, sem poder obter respostas, nem explicações satisfatórias no solo do que o discurso histórico estabelece como verdadeiro e inequívoco, prefere afastar-se no que não para de tremer. Sem chão estável, acolhe o inexplicável, mesmo o absurdo, sem poder renunciar ao impossível e traumático, mas real. Assim se desliza na língua de Kafka67, à maneira de uma parábola68 e na atmosfera da sua tensão dialética herdada, conforme

67 Jacó Guinsburg denomina as narrativas curtas de Kafka como “a Grande Parábola, oca, sem referencial”: permanece o gesto edificante da parábola; mas se há um ensinamento, este revela a perplexidade do homem diante do mundo moderno. E, de acordo com Enrique Mandelbaum, Kafka seria portador de uma “escritura que, por estar condenada a ser solta, lança uma ponte para o impossível” (Enrique Mandelbaum, Franz Kafka: um judaísmo na ponte do impossível, p. 55). Walter Benjamin também apresenta uma reflexão pertinente sobre as parábolas de Kafka: “Porém, conhecemos a doutrina contida nas parábolas de Kafka e que é ensinada nos gestos e atitudes de K., nos animais kafkianos? Essa doutrina não existe” (Walter Benjamin, Franz Kafka: a propósito do décimo aniversário de sua morte, p. 148).

68 Segundo Vilém Flusser (2014), Kafka deixa viver não de jeito imediatista, mas por contraste, o impensado e inarticulável na experiência da leitura dos seus textos que se dão ao leitor como parábolas. “A mensagem de Kafka é uma parábola, como o foram as mensagens dos profetas de , e neste sentido Kafka é um elo da

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Flusser, da multiplicidade singular da língua de Praga, que informa entre oscilações, altibaixos e polaridades a sua mensagem parabólica, prematura e profética, destinada sem destinatário fixo, lançada “em nossa direção ainda que não nos alcançasse em cheio” (FLUSSER, 2014, p. 195)69

Como Kulka reconhece em um fragmento das suas paisagens, Kafka o acompanha nos seus percorridos, em observações, perplexidades e estranhamentos, entre as suas lembranças e imagens da Metrópole da Morte e a sua lei totalitária e imutável, nas suas terríveis encarnações em múltiplos tempos e espaços. Nomeadamente, volta a Kafka quando percebe a uniformidade incômoda entre algumas produções das artes, que tentam testemunhar o desastre com um olhar unidimensional. Com elas, não sente aquela sorte de empatia vibradora, mas sente a estranheza, assim como o eu embargado pelo rastro da diferença, o estranhamento que o atravessa, sendo o único autêntico que sente em relação a essas representações, a isso chama a “autenticidade do estranhamento”. Então, quando sente a necessidade desse outro K pulsam o desejo da escrita e as latentes alteridades que deixam comparecer esse signo (sobre)vivente e (sobre)morrente, inidentificável, itirerante e iterante, sem documentos, que importa, porta e deporta: “como é muito comum, como quase sempre faço em períodos de aflição, eu me refugio em Kafka, seja nos diários, seja em suas outras obras.” (KULKA, 2014, p. 106). Entre essas heteronomias dos relatos kafkianos que se entrecruzam nas suas páginas e que Kulka abre ao acaso, estão O veredito, A colônia penal e Diante da lei. Na epígrafe que abre os capítulos desta pesquisa, logo na Introdução, pode-se apreciar a relação com a literatura kafkiana e a referência específica a Diante da lei, nomeadamente à porta da lei, a sua abertura inquietante e aporética, para quase todos, mas só para aquele que

cadeia da tradição judaica. Mas é uma parábola absurda, e por isso mesmo consegue provocar no leitor ‘simpático’, a vibração, a vivência do absurdo.” (FLUSSER, 2014, p. 203).

69 Como Flusser sugere no ensaio chamado “Esperando por Kafka”. Para essa obra, ainda que uma seja a chave de acesso, isso não garante certeza, nem identificação plena alguma ou que ela não seja sub-repticiamente falsa, levando também inesperados destinatários a descortinar aquelas vivências íntimas insalváveis e sem salvação diante delas, que relegamos ao esquecimento. Assim, o autor de Diante da lei se pensa como alguém que vive e sofre as situações contemporâneas a ele, mas que talvez também se trata de um mensageiro extratemporâneo, um Jeremias sem idade para os habitantes da Jerusalém ainda não destruída, embora ameaçada de destruição, assim como para outras Jerusalém que se derivam pela história em diversos tempos e espaços. “Um profeta (porque Kafka é um profeta, embora heterodoxo, da tradição judaica), que confessa sub-repticiamente a inautenticidade de sua mensagem cifrada, tornando- a, por isso mesmo, duplamente autêntica. Para recorrermos a uma imagem, diria que Kafka não se esforça por esconder a chave do seu código, mas confessa, sub- repticiamente, que se trata, possivelmente, de uma chave falsa.” (FLUSSER, 2014, p. 194).

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espera diante dela, para quem a porta se fecha. Dessa forma, essa força fatal da lei se imprime entre tudo o que registra Kulka nas paisagens e na sua mitologia particular, como única entrada e saída – uma saída, talvez, ou um desfecho –, a única que existe só para ele. Isso implica que não pode entrar naquele lugar, na Metrópole que testemunha, de nenhum outro modo, por nenhuma outra porta. Mas também significa que talvez outros porvires conseguirão entrar pela porta, de formas imprevisíveis, assim como é possível aproximar-se, através do reenvio incessante da literatura, da porta que Kafka abriu, que se destinava unicamente a K., a mais e menos de um K. Embora só uma porta ofereça acesso à sua mitologia particular, ela não deixa de estar enlaçada a mais de uma herança, às judaidades e à heterodoxia que porta e reporta às diversas mitologias coletivas, aos imaginários socioculturais, que, na sua relação reinventiva, herda o sobrevivente. A analogia com Diante da lei é significativa. Através dela, tenta-se responder ao enigma da surpreendente ocupação do presente com aquele passado traumático, que vivencia constantemente, porém no qual cria e ao qual escapa reiteradamente. Ali, cria paisagens mescladas com cenas da realidade, do sonho e da época da infância e do observador, do menino crescido que olha perplexo para isso tudo e que, antes que a porta se feche, faz perguntas, muitas desnorteantes, e as transmite no intuito de decifrá-las. Dessa forma, desmantela pressupostos, na profusão de uma crença sem dogmas na qual acredita, sem saber pleno e acabado e sem deixar de lado Kafka, Kleist, entre outros K. Não deixa que a memória das paisagens da infância se perca sem remédio na noite, paisagens para as quais parte na procura da liberdade. Não se trata daquela experiência da liberdade que supõe uma forma definitiva, completa, última, mas que não deixa de encaminhar-se para “minha penúltima liberdade”.

12. A PENÚLTIMA LIBERDADE: NO AZUL DA NOITE

O azul no céu aberto de Auschwitz-Birkenau, cercado entre arame farpado e afastado entre bétulas, é uma imagem que resta das sombras da fumaça nos crematórios. Contradição e concomitância entre a beleza do azul, no olhar da criança de onze anos, e o horror noturno da carnificina nazista. A inquietude das imagens solicita encarar essas aporias do impossível, sem cuja visitação não seria possível andar e desandar entre as paragens traumáticas da memória e da imaginação perpassadas pela ferida. Desde a hospitalidade catastrófica, do acolhimento em que deslizam as imagens marcadas pela noite e o despontar azul da infância, a escrita de Kulka passa sem passo, entre

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pulos e sobressaltos por múltiplos portões e limiares do tempo e do espaço, entretecendo imagísticas, narrativas e poéticas. Entre o rio infernal das cinzas, aqui, na superfície do Hades. Entre os traços do mítico onírico particular e as marcas da memória coletiva perpassados pelo genocídio do povo judeu. No seu trabalho das passagens pela Metrópole da Morte, passagem nos múltiplos sentidos do termo e suspenso o sentido transparente de uma passagem plena, Kulka entretece o escrito com o deixado de lado. Coforme Benjamin, atento aos trapos, não apenas para inventariá-los, mas fazendo-lhes justiça, desmontando, montando-os no seu relato, através da colagem que não trai seu desconhecido. Segundo Benjamin, citado por Seligmann-Silva (1999, p. 68), “o escrito é como uma cidade para a qual as palavras representam milhares de portões”. Mesmo assim, entre a espectralidade das imagens e as palavras errantes, o testemunho estremece os fundamentos e coloca em xeque não apenas a autossuficiência positivista do historiador-narrador omnisciente e imparcial e a soberbia monológica e representacionista do conhecimento, mas também o estatuto da literatura tradicional que se desvincula das ruínas e das imagens-pensamento. É assim como Kulka olha através das inquietas imagens da sobrevivência, na penúltima liberdade que reserva sem fim à última palavra ao outro, portando sua memória e esquecimento. Aliás, deixa-se portar no seu rastro irruptivo e desviante. Semelhante a um fotograma tomado do filme dirigido por Stefan Auch, chamado Die vorletzte Freiheit. Landschaften des Otto Dov Kulka (2018), uma imagem que toma e reenvia entre a aridez ruinosa e a imensidade do azul, da vida à morte, do trauma que persiste na memória testemunha à promessa sem esperança garantida, na sobrevida entre escritas e imagens, no incessante retorno sem retorno.

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Figura 24. Otto Dov Kulka

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REFLEXÕES FINAIS

Na pesquisa, procurei mostrar que a escrita da história, sem desconhecer a especificidade nem o método científico da disciplina, não desenha apenas um caminho possível. Indo à contramão dos pressupostos da historiografia tradicional e ao encontro da análise desenvolvida pelo historiador Hayden White (2015), este autor se refere ao texto de Otto Dov Kulka afirmando que a literatura não é um âmbito ilegítimo no estudo da experiência concentracionária. Então, tentei argumentar que o engajamento pessoal dos traços autobiográficos, a reflexão do historiador israelita reconhecido no estudo do totalitarismo nazista e o destino dos judeus nesse difícil período se entrecruzam e dialogam, sem confundir- se.

O percurso interpretativo entre as paisagens da Metrópole da Morte levou a refletir na lei imutável da Grande Morte, que marca essas paragens e arquiteturas da memória e da imaginação. Segundo Kulka, a lei imutável da Metrópole da Morte transporta em metáfora o que surgiu em Auschwitz como a quintessência do mito e a ideologia nazista. Diante da lei e diante da porta desse mundo clandestino vivido quando criança, entre 1943 e 1945, Kulka foi testemunha durante anos. O segredo e a linguagem espectral restam irredutíveis à assimilação do positivismo e à perversão historiográfica, em sua tentativa de pleno domínio do acontecimento, e daí se entreteceram algumas reflexões.

Como já percebido por White (2015) e ratificado por Kulka (2015, p. 41), a estrutura da narração, que porta os traços de uma espécie de antiestrutura, não corresponde a uma narrativa linear e resiste a uma coerência uniforme. A travessia dos gêneros, uma sorte de método desviante, e o cultivo do ritmo da palavra falada, fiel com suas sinuosidades e tonalidades diversas, constituem uma arte que Kulka desenvolveu com genialidade e ardente paciência. Isso faz com que, a cada leitura, encontremo-nos diante de uma materialidade viva, que leva para cantos pouco frequentados pela história e mesmo pela literatura do testemunho, vinculada à experiência concentracionária.

Assim, a colagem permeia a cada avanço, pulo e retorno sem retorno, configurando uma espécie de prosema, um incomum encontro entre prosa e poesia, junto a certo entrelaçamento entre o textual e o visual. Pulsam para outras modalidades na leitura e na escrita do livro do mundo (SELIGMANN-SILVA, 1999).

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Os exercícios de leitura e de escrita que aqui se ensaiaram não deixaram indene a crítica nem a avaliação literária. No entanto, o intuito da pesquisa não se conformou em fazer o esperado e tornar um texto inexplicável mais explicável. Tampouco se estabiliza no elogio do incompreensível. O corpo a corpo com o texto e as contingências no processo investigativo me levaram a desenvolver uma montagem dinâmica, certa experiência de análise e escrita que não se deixam configurar plenamente no canônico modelo das teses. Estou ciente de que as linhas aqui inscritas e suas redes de relações não obedecem aos parâmetros ainda predominantes nesse gênero no âmbito acadêmico universitário. O movimento seguido não é o habitual. Os tremores e traumas do desastre não deixam pé a uma instalação fácil nesse chão, que se supõe assegurado, nem convém a uma representação acabada, programada como plena de si.

A interpelação das ruínas e a exigência infinita do portar me chamaram a caminhar de outro jeito entre essas paragens da Metrópole da Morte, menos através de um saber onipotente e consabido, ainda sequaz do estado de coisas imposto por essa Lei. Tentei caminhar levada no retorno sem retorno, com o pesar e o luto que se porta no coração, no limiar em que esse mundo, o mundo único que é cada uma e cada um, tem partido. E assim agradeço a orientação errante, o acompanhamento livre e confiante de quem generosamente me acolheu, sugeriu e deixou ir aonde me levaram os passos, as interrupções, a distância, as lágrimas e o ar entrecortado.

Esse itinerário cheio de encontros que fizeram possível o texto aqui apresentado também me levou um dia a escrever para Otto Dov Kulka por e-mail para convidá-lo a uma entrevista, que não foi possível fazer, mas sua resposta não foi uma simples negativa. Mais do que isso, foi um alentador agradecimento, em que esclareceu que ele já tinha dito tudo o que tinha a dizer a respeito da sua experiência no seu texto testemunhal. E, então, senti, como lembrando ao final do relato de Kafka, que o guardião me dissera que a porta diante da lei, ainda que fosse destinada ao camponês, justamente se fecharia. Fechadura que jamais interpretei como uma simples clausura, mas como se fosse uma chamada no limite e que ainda ressoa: a não desistir de arriscar-me na experimentação da escrita e à partilha desta pesquisa.

O mesmo Kulka acreditou, durante anos, que seus monólogos gravados em fitas concebidos para sua autocompreensão e os textos de seus diários íntimos que serviriam para entretecer o texto final, dificilmente, poderiam ser partilhados com alguém mais, incluso consigo. A isso se poderia acrescentar a dificuldade de compreender o hebraico, língua a que foram trazidos pela primeira vez, e para aqueles leitores que se interessaram. Outro rastro significativo no testemunho é o processo tradutório, que, sem iludir o intraduzível, entreabre-o

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para outros, o que poderia se relacionar com uma espécie de escrita da sobrevivência. Isso fala de como o ensaio, como seu autor gosta de nomeá-lo, ainda no seu movimento autotélico, não deixou de ser concebido à mercê do convite amigo, ou melhor, pela visitação dos outros, e assim de estar generosamente endereçado ao desconhecido.

Como partilhar um sonho? De que jeito fazer com que esses sonhos, que não param de voltar entre os trechos dos diários e as imagens vertiginosas montadas entre o texto, sejam publicados sem extinguir seu mistério fugitivo? Como é possível que as narrativas reflexivas trazidas ao redor dessas ruínas se entrecruzem com as imagens e com outros traços dos arquivos pesquisados? É a única opção o binarismo entre o explicável e o inexplicável? Não irrompe o testemunho como esse terceiro excluído (para falar com Aristóteles ou, de outra parte, com Derrida), que não se deixa atrapalhar no terreno supostamente estável da verdade, nem da falsidade? Não poderia talvez uma tese colocar e alentar essas incômodas perguntas em vez de chegar a uma resposta, a uma conclusão e solução definitiva?

Parece justa, então, a afirmação de Kulka em uma conferência em que falou de seu texto testemunhal como o escopo insurgente e quase tradutório do seu relato: “Aqui, então, está o testemunho da inseparabilidade de meu pensamento e escrita em ambas as dimensões, o acadêmico e o literário.” (KULKA, 2015, p. 37). No limite entre a ciência histórica e essas paisagens “extracientíficas”, ressoa a epígrafe, a parábola de Kafka parafraseada e alterada por Kulka, a mesma que abre o texto literário e que, anos atrás, usou de outro jeito na sua ortodoxa tese de doutorado.

Ali, entre os restos dessas paisagens em ruínas, também faz eco a insurgência ética da memória, na esteira de Walter Benjamin, pensador-poeta-revolucionário que, ainda hoje e mais do que nunca, convoca-nos e nos inspira. O seu chamado transpassa o tempo e o espaço. Aos oitenta anos do aniversário da sua partida, ainda nos interpela com o rumor insubmisso dos rastros no presente, com a escuta aguda e caleidoscópica nos detalhes e a atenção insone acordada ao sonho, diante das pretensões dos idólatras da Metrópole da Morte, cujos tentáculos fascistas ainda pretendem se estender além do arame farpado de Auschwitz, entre outros contextos em que a intransigência ardilosa dessa Metrópole ameaça asfaltar o tempo e o espaço e fazer acreditar que sua necropolítica não tem limites. O testemunho vindo das crianças constitui fonte fecunda para perceber as dimensões de fragilidade e imaginação. Entre desenhos, poemas, cartas, diários, impressões e sentimentos manifesta-se uma ética da memória. Assim, as reflexões de Kulka hoje abrem espaços de

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acolhida. Por outro lado, contribuem para o desenvolvimento de um pensamento crítico e criativo do testemunho, a partir das relações, distinções e traduções a respeito do evento-limite dos campos de extermínio e permite refletir acerca dos efeitos da catástrofe na atualidade. Na Colômbia, assassinatos de lideranças indígenas e sociais, feminicidios, violência policial, perseguição política e deslocamentos, entre outros crimes de lesa-humanidade continuam a acontecer enquanto o governo fascista promove o revisionismo e o negacionismo. Na atualidade, o Centro Nacional de Memória Histórica tornou-se um local de memoricídio, pois o seu diretor Darío Acevedo, grande amigo do ex-presidente Uribe, retirou o país da Coalizão Internacional de Sítios de Consciência. Com isso, não só pretende silenciar as vozes das vítimas dos massacres, mas também desacreditar nos avanços do processo de paz e desconhecer mais de cinquenta anos de conflito armado no país. Essas políticas do esquecimento afetam profundamente as vítimas e as comunidades que lutam pela verdade, justiça e reparação. Porém, em um ato de resistência coletiva ao apagamento, lembrando seus mortos e celebrando, na memória, as vidas que têm sido apagadas pela violência, muitas populações retiraram seus arquivos desse local. Dentro desse estado de coisas que tenta obliterar qualquer possibilidade de expressão ou liberdade somos chamados a construir formas de resistência. No Brasil, a violência ditatorial continua até hoje. As práticas da ditadura ainda repercutem no revisionismo negacionista do governo de extrema-direita. A desmemória, o genocídio dos indígenas, o racismo, a violência contra as mulheres e as mudanças educacionais, que procuram uma pedagogia do mesmo como condição totalizadora, mostram uma parte da terrível situação na qual se encontra o país. Durante a atual pandemia o luto nos atravessa, mas a luta também está acontecendo. Diante da tragedia dessas realidades nefastas de países que hoje parecem campos de extermínio, e contra o paradigma da necropolítica e a autopreservação do fascismo, torna-se urgente uma nova ética da responsabilidade e do cuidado. Como o propõe Kulka, ao lembrar os atos clandestinos de resistência, sobrevivência e sobrevida que aconteceram em meio a um sistema letal. Assim, nas reflexões de Kulka, o ato ético da escritura em memória da Mãe não deixa de alentar a luta pela justiça. A singularidade do seu testemunho atravessado pelo luto expõe o adeus, a exigência da responsabilidade e do retorno sem retorno do sobrevivente, que promete portar no coração aos que se foram.

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NUMERADOS. Direção: Dana Doron, Uriel Sinai. 2012.

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