UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS Escola de Belas Artes

POESIA E REFLEXIVIDADE NA PRODUÇÃO DE TRÊS DOCUMENTARISTAS BRASILEIROS CONTEMPORÂNEOS: HELENA SOLBERG, E WALTER CARVALHO

MARIANA RIBEIRO DA SILVA TAVARES

Belo Horizonte 2007

MARIANA RIBEIRO DA SILVA TAVARES

POESIA E REFLEXIVIDADE NA PRODUÇÃO DE TRÊS DOCUMENTARISTAS BRASILEIROS CONTEMPORÂNEOS: HELENA SOLBERG , EDUARDO COUTINHO E WALTER CARVALHO

Dissertação apresentada ao curso de Pós-graduação da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre.

Orientador: Prof. Dr. Evandro José Lemos da Cunha

Belo Horizonte 2007

Tavares, Mariana Ribeiro da Silva, 1967- Poesia e reflexividade na produção de três documentaristas brasileiros contemporâneos: Helena Solberg, Eduardo Coutinho e Walter Carvalho / Mariana Ribeiro da Silva Tavares. - 2007. 115 f. : il.. -

Orientador: Evandro José Lemos da Cunha

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Minas Gerais, Escola de Belas Artes, 2006.

1. Solberg, Helena 2.Coutinho, Eduardo, 1933- 3.Carvalho, Walter, 1947- 4. Documentário (Cinema) – História e crítica - Brasil - Teses 5. Criação (Literária, artística, etc.) no Cinema – Teses 6. Diretores e produtores de Cinema Brasileiro – Teses I. Cunha, Evandro José Lemos da, 1950- II. Universidade Federal de Minas Gerais. Escola de Belas Artes III. Título

CDD: 791.4353

Para Gabriela e Pedro,

meus filhos.

AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador, Professor Doutor Evandro José Lemos da Cunha, pelos conselhos e apoio.

Ao Professor Doutor José Américo Ribeiro, pela valiosa contribuição na definição do tema deste projeto.

Aos meus pais, Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira e Hugo César da Silva Tavares, pelo apoio incondicional durante o trabalho.

Ao meu companheiro, Marcos Jorge Barreto, pelas conversas, sugestões e idéias.

E à Rede Minas de Televisão, que deu o apoio operacional para a gravação em vídeo

Betacam das entrevistas com os cineastas, no Rio de Janeiro.

RESUMO

Este trabalho procurou estabelecer um diálogo entre as reflexões de três cineastas brasileiros - Helena Solberg, Eduardo Coutinho e Walter Carvalho - sobre o processo de criação em documentário; identificar pontos em comum e divergências entre os diretores, que possibilitassem a compreensão do que seja o documentário hoje, suas tendências e sua função; analisar os procedimentos de criação e de elementos estilísticos de filmes realizados pelos três cineastas; investigar as condições que propiciaram aos documentaristas rever a relação com os objetos tratados em seus filmes, questionando as convenções desenvolvidas ao longo do século XX e tornando o documentário um laboratório de experiências estéticas e de conteúdo.

Palavras-chave: Documentário. Filme. Helena Solberg. Eduardo Coutinho. Walter

Carvalho.

ABSTRACT

This work objectived to set up a dialogue among the reflexions os three brazilian movie makers – Helena Solberg, Eduardo Coutinho and Walter Carvalho – concerning the creation process in documentary making; to identify what they have in common and in what they diverge so that it makes possible for us to understand what is a documentary nowadays, its tendencies and its function; to analyse the creation procedures and the stylistic elements of some films made by the three movie makers mentioned above; to investigate the conditions which made it possible for the directors to review the relationship among the subjects treated in their films, questioning the conventions which have being developed throughout the twentieth century and turning the documentary into a laboratory of esthetics and content.

Keys words: Documentary. Film. Helena Solberg. Eduardo Coutinho. Walter Carvalho.

LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1 - Helena Solberg em entrevista à Mariana Tavares, na residência da

cineasta (Rio de Janeiro, 09.06.05)...... 25

FIGURA 2 – Eduardo Coutinho em entrevista à Mariana Tavares, no escritório

do cineasta no Cecip – Centro do Rio de Janeiro, em 10.06.05...... 46

FIGURA 3 - Walter Carvalho durante a entrevista concedida à Mariana

Tavares, na residência do cineasta no Cosme Velho-RJ, em 09.06.05...... 65

FIGURA 4 - Fotografia de Walter Carvalho, Praia de Pernambuco, Guarujá-

SP, 1969...... 69

FIGURA 5 - Uma foto da série Matadouro público de Walter Carvalho...... 70

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ABPI Associação Brasileira de Produtoras Independentes de Televisão

EMB Empire Marketing Board

GPO General Post Office Unit

IDHEC Institut des Hautes Études Cinématographiques (Instituto de Altos

Estudos Cinematográficos)

MAM Museu de Arte Moderna

P&B Preto e branco

PBS Public Broadcasting Service (Rede Pública de Televisão)

PUC Pontifícia Universidade Católica

SBT Sistema Brasileiro de Televisão

UNE União Nacional dos Estudantes

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO...... 10

2 DA NATUREZA DO DOCUMENTÁRIO...... 16

3 HELENA SOLBERG...... 25 3.1 Artífice do documentário, um capítulo à parte entre os documentaristas brasileiros...... 26 3.2 As primeiras imagens, os primeiro filmes...... 27 3.3 Fase americana: do feminismo às relações entre Estados Unidos e América Latina...... 31 3.4 , o risco de Helena Solberg...... 35 3.5 A realização para a cineasta: um processo em aberto...... 42

4 EDUARDO COUTINHO...... 46 4.1 Uma trajetória...... 47 4.2 Um cineasta que não faz concessão...... 50 4.3 Os dispositivos de Eduardo Coutinho...... 53

5 WALTER CARVALHO...... 65 5.1 Walter Carvalho e o documentário...... 66 5.2 Da influência de Cartier-Bresson à experimentação...... 68 5.3 A imagem no documentário de Walter Carvalho...... 72 5.4 Janela da Alma : poesia e reflexividade a serviço do olhar...... 74 5.5 O documentário como autoconhecimento...... 76

6 CONCLUSÃO...... 80

7 FILMOGRAFIA...... 87

REFERÊNCIAS...... 88

APÊNDICE...... 90 10

1 INTRODUÇÃO

Esta dissertação pretende estabelecer um diálogo entre as reflexões de três documentaristas brasileiros - Helena Solberg, Eduardo Coutinho e Walter Carvalho - sobre o processo de criação em documentário. Pretendeu-se investigar a forma como esses documentaristas criam suas obras: os motivos que os levaram a se expressar no gênero, como percebem as modificações que vêm ocorrendo na linguagem do documentário, possibilitando mais liberdade de criação aos diretores e busca da autoria, o que consideram relevante no momento da criação e como consideram a questão da “verdade” em seus trabalhos.

Nesse confronto de idéias e reflexões, objetivou-se identificar pontos em comum e divergências entre os diferentes modos de fazer, ver e refletir o documentário contemporâneo brasileiro.

Entende-se o documentário como um gênero do cinema que, ao longo de seu desenvolvimento e afirmação no século XX, foi definido primeiramente em oposição ao filme de ficção, posteriormente, em oposição ao jornalismo e, também, a partir de sua função. Esse gênero constitui um universo plural de formas e temáticas, marcado atualmente por grande liberdade criativa. O documentário vem se constituindo, cada vez mais, num riquíssimo laboratório de experiências estéticas, ao mesmo tempo em que apresenta questões e reflexões que auxiliam a compreender o real.

Nesse sentido, adotou-se a definição do teórico Bill Nichols, que defende que o documentário não é uma reprodução do real e sim uma representação dele. Assim, é uma construção que espelha o ponto de vista, a visão de mundo dos cineastas. Nesse contexto, identifica-se no cenário contemporâneo uma forte tendência à reflexividade, que explicita 11

essa construção para o espectador, tornando-o cúmplice na aventura que representa visualizar os grandes filmes do gênero.

Para realizar este estudo, partiu-se dos quatro modos de representação levantados pelos teóricos americanos Bill Nichols e Julianne Burton nos anos 80 - expositivo, observacional, participativo e reflexivo - e em outros dois modos identificados por Bill Nichols em 2001 - performático e poético. Baseou-se, também, em algumas reflexões da pesquisadora portuguesa Manuela Penafria, realizadas no final da década de

90, e em publicações recentes sobre o gênero no Brasil, que vêm auxiliando a mudar o cenário marcado até o final do século XX por raríssimas publicações no país.

O corpo desta pesquisa foi realizado a partir de cinco horas de entrevistas gravadas em vídeo Betacam com os cineastas Eduardo Coutinho, Helena Solberg e Walter

Carvalho em junho de 2005, na cidade do Rio de Janeiro, e de análises estéticas e de conteúdo de quatro filmes desses diretores nas quais, apesar das diversidades estético- ideológicas, identificou-se o uso da reflexividade como ponto de confluência entre os três, tendência contemporânea no processo de criação em documentário.

O capítulo 2 estabelece algumas noções que constituíram a definição do documentário. Em primeiro lugar, em oposição ao filme de ficção, depois, em contraposição ao jornalismo e, por fim, a partir de sua função. Percorridas essas noções, foram levantados elementos que, a nosso ver, fazem parte da maneira com que os documentaristas hoje se lançam na aventura de realizar filmes que lidam com o real.

Destacou-se a idéia de Eduardo Coutinho, de que documentário é escavação , idéia que remete aos pioneiros ”filmes de cavação” da era muda no Brasil, que registravam um país exótico ainda desconhecido pela maioria dos brasileiros nos filmes de viagens. Esse caminho leva em conta que, hoje, o que diferencia os grandes documentários são as estratégias utilizadas pelos diretores na abordagem da realidade, mais até do que os objetos 12

retratados. Acredita-se que, na atualidade, com a enorme liberdade criativa com que os realizadores questionam as convenções que compõem a tradição do gênero, o documentário encontrou um campo profícuo para experimentação estética e de conteúdo.

Dessa forma, perdeu a obrigação de mostrar ”a vida como ela é”, tornando-se um meio de expressão dos cineastas.

O subitem 3.1 apresenta um panorama da trajetória da cineasta brasileira

Helena Solberg, que viveu por 30 anos nos Estados Unidos, onde realizou 11 documentários que investigaram as relações Estados Unidos x América Latina, sendo dois sobre o Brasil. Em 1995, de volta ao Brasil, realizou o premiado documentário Bananas Is

My Business sobre a trajetória de Carmen Miranda e, em 2005, criou a ficção Vida de

Menina . Este levantamento inicial da trajetória da cineasta visa a preencher uma lacuna de referências sobre a obra da diretora em publicações nacionais e também no meio acadêmico e inseri-la entre os grandes documentaristas brasileiros.

No subitem 3.2 mostra-se que o interesse de Helena Solberg pela questão da mulher, relatado pela pesquisadora Julianne Burton e presente nos primeiros filmes da cineasta, deslocou-se para as relações Estados Unidos x América Latina. Depois de 20 anos com mira na questão político-econômico-social, quando a cineasta contrapõe o drama humano à análise conjuntural, constatou-se uma nova fase, em que o cultural, visto do ponto de vista dos temas artísticos, ganha o primeiro plano, sem perder de vista o contexto histórico. Identificou-se também a presença recorrente de um imaginário próprio da diretora em seus filmes, o que incita a posteriores investigações sobre sua obra no doutorado. Por fim, percebeu-se uma eterna busca pela autonomia estético-ideológica em seus trabalhos e um risco permanente na busca de novas formas de expressão.

O subitem 3.3 expõe a ”fase americana” da cineasta e alguns fatores que possibilitaram a que Helena Solberg desenvolvesse sua carreira internacional num período 13

em que seus contemporâneos no Brasil tiveram seu raio de ação limitado pela ditadura militar.

A análise dos procedimentos estéticos e de conteúdo em Carmen Miranda,

Bananas Is My Business está apresentada no subitem 3.4, tentando mostrar por que o filme está entre os grandes documentários brasileiros dos anos 90 ao lado de Notícias de uma guerra particular (1999) de João Moreira Salles e Kátia Lund e de Santo Forte (1999) de

Eduardo Coutinho. Ao reconstruir os elementos essenciais que compõem o filme sobre

Carmen Miranda, sobressaiu-se seu caráter reflexivo, o que o singulariza. Relatou-se de que forma através da reflexividade a autora instaura um terceiro plano no filme: o da memória afetiva, reconstruindo e devolvendo a identidade perdida de Carmen Miranda.

No subitem 3.5 foram mencionadas as três fases essenciais relacionadas por

Helena Solberg em seu processo de realização em documentário, sem perder de vista o caráter ”aberto” de seus procedimentos, em que a flexibilidade/mutabilidade do real vai implicar essa atitude da cineasta.

O subitem 4.1 faz a trajetória de Eduardo Coutinho: dos tempos em que foi cinéfilo mirim na cidade de São Paulo, passando por algumas experiências no cinema de ficção no Rio de Janeiro, até sua definição pelo documentário a partir da experiência cinematográfica no Programa Globo Repórter dos anos 70. Essa vivência culminou na realização de Cabra Marcado para Morrer (1984), um marco na carreira do cineasta e no documentário nacional.

O estilo de Eduardo Coutinho é abordado em considerações gerais no subitem

4.2, identificando-se em seus documentários alguns dos modos de representação levantados por Bill Nichols e Julianne Burton. Destacou-se o fato de o cineasta ter amadurecido um estilo único, consoante os dispositivos - métodos de trabalho - que ele elegeu, principalmente a partir do documentário Santa Marta, Duas Semanas no Morro 14

(1987), e que foi se desenvolvendo nas produções posteriores. Mostrou-se como seus dispositivos se potencializam em Edifício Máster , filme realizado em 2002.

O subitem 4.3 traz os dispositivos de Eduardo Coutinho, seguindo as diferentes etapas no processo de elaboração fílmica: da temática abordada pelo cineasta ao processo de montagem. Esse levantamento foi elaborado a partir das informações concedidas pelo cineasta em sua entrevista. Percebe-se nesse processo a clareza dos métodos desenvolvidos por ele, que costuma não se afastar de dois princípios básicos: a prisão espacial (o princípio da locação única) e o espaço temporal (as filmagens acontecem num determinado espaço de tempo que, por sua vez, está vinculado a um plano de orçamento). Os dispositivos que o cineasta elegeu como métodos pessoais de trabalho são determinantes na forma final de seus documentários, marcada por síntese na fotografia, na montagem, no uso do som e com a continuidade garantida por meio do fluxo verbal dos depoimentos. Ele persegue os momentos-mágicos em que os entrevistados formulam, pela primeira vez, um raciocínio a partir das questões abordadas por ele.

O fotógrafo paraibano radicado no Rio de Janeiro, Walter Carvalho, mantém sua relação estreita com o documentário. Essa trajetória é mostrada no subitem 5.1. Em seqüência, o subitem 5.2 explicita de que forma a influência inicial que recebeu do fotógrafo francês Henri Cartier-Bresson (que depois também se tornou documentarista) vai se deslocar para um trabalho pessoal, de forte expressividade, com poder narrativo - talvez o germe para que se desdobrasse também para a direção cinematográfica. No subitem 5.3 estabeleceram-se algumas comparações entre os procedimentos de Walter Carvalho e

Eduardo Coutinho, apontando para uma confluência no que se refere à importância do plano como síntese dramatúrgica em seus filmes. Analisou-se, também, o processo de criação de Um Filme de Cinema , documentário que Walter Carvalho vem realizando nos 15

últimos quatro anos. E constatou-se que a reflexividade se faz também presente nesse filme ainda em processo de realização.

De forma genérica, o subitem 5.4 expõe como a reflexividade e a poesia se manifestam no documentário Janela da Alma feito por Walter Carvalho em co-direção com João Jardim e de que forma os diretores foram se aproximando do tema do filme - o sentido do olhar - durante a realização. O subitem 5.5 estabelece como o processo de criação de Walter Carvalho, além da fotografia, está também calcado na música. Para isso, utilizou-se o exemplo de Moacir, Arte Bruta, o mais recente filme do cineasta. E, por fim, a busca do cineasta pelo autoconhecimento no processo de realização de seus filmes.

Finalmente, pretendeu-se fazer uma defesa do gênero documentário.

Acreditamos que, no mundo atual, marcado pela saturação e padronização de imagens e sons, pelas inovações tecnológicas que democratizam os meios de produção e que, ao mesmo tempo, podem resultar na banalização das imagens e na excessiva valorização das tecnologias em detrimento dos conteúdos, o documentário será cada vez mais essencial , possibilitando o contrário da globalização: marcando diferenças, mostrando com pausas e reflexões a beleza das particularidades de culturas, povos e regiões do planeta.

16

2 DA NATUREZA DO DOCUMENTÁRIO

O cinema documentário foi e sempre será marginal. Não existe esta utopia de que um dia o gênero principal do cinema ou da narrativa seja o documentário. Há 100 anos que é assim. [...] O documentário por essência, ele é marginal. Não tem que achar ruim isso. Ser marginal não quer dizer que é um gueto. É saber que ocupa a margem e tentar aumentá-la. [...] Já melhorou de 10 anos para cá. Vamos aumentar mais, mas sabendo que a corrente principal é o filme de ficção. Aquele cara que sonha em ter 5 milhões de espectadores, vá fazer ficção 1. Eduardo Coutinho

Ao longo da história do documentário, o gênero foi definido em oposição, primeiramente, ao filme de ficção. Depois, em oposição ao jornalismo e também a partir de sua função. Algumas dessas noções são abordadas neste capítulo e também os elementos que, conforme se pôde perceber, compõem o universo do documentário. Esses elementos foram estabelecidos a partir de nossas reflexões, de entrevistas realizadas com os documentaristas Eduardo Coutinho, Walter Carvalho e Helena Solberg, da bibliografia consultada e dos filmes visionados para esta pesquisa.

Constatou-se, em primeiro lugar, a dificuldade em se definir o gênero. Autores referenciais têm opiniões divergentes, reflexo das modificações que o documentário vem sofrendo ao longo de sua história no século XX e início deste novo século XXI. Reflexo também da liberdade criativa que cineastas e produtores imprimiram ao cinema que lida com o real.

Para o pesquisador e professor norte-americano Bill Nichols, todo filme é um documentário. Mesmo a mais extravagante das ficções evidencia a cultura que a produziu

1 Todas as citações dos cineastas foram entrevistas dadas a Mariana Tavares para este trabalho. 17

e reproduz a aparência das pessoas que fazem parte dela (NICHOLS, 2005, p.26).

Segundo Nichols, existem dois tipos de filmes: ”documentários de satisfação de desejos”, que seriam as ficções; e ”documentários de representação social”, que seriam os documentários propriamente ditos.

Por mais experimental que seja uma obra de ficção, ela sempre trará informações sobre a época em que foi realizada: ela apresentará uma maneira de atuar dos atores, um formato de captação de imagens, etc., que evidenciam a época em que foram feitos. As obras ficcionais podem ser consideradas ”documentário” no sentido apontado pelo teórico: como documentos que falam da época em que foram realizadas.

Mas os filmes documentários, ou ”documentários de representação social”, como quer o teórico, e que são objeto deste estudo, não querem apenas falar de uma determinada época. Eles vão além para buscar ”escavar”, nas palavras de Eduardo

Coutinho, significações sobre uma determinada realidade: documentário é escavar, é cavar. Se você cavar um poço de petróleo fundo, você vai fundo. Se você fizer 300 mil poços...

Esta definição vai ao encontro da linha de pensamento do também documentarista Maurice Capovilla, contemporâneo de Coutinho na experiência pioneira em fazer documentários cinematográficos para o Programa Globo Repórter da TV Globo nos anos 70. Em sua definição, Capovilla contrapõe o documentário ao jornalismo:

Para o jornalista, o fato reportado é o fim do seu trabalho. Para o documentarista, o fato, que será o seu tema, é apenas um ponto de partida na busca de uma significação que pode estar na sua origem, mas cujo resultado transcende o próprio fato. Para o jornalista a árvore é uma árvore. Para o documentarista é o que ela esconde . É o que ela representa, muito além da sua aparência. Para o documentarista, o seu tema não passa de uma hipótese, enquanto ele não elege seus objetos e escolhe a estratégia de abordá-los, enfim, enquanto ele não encontra a sua maneira de narrar o que a realidade lhe propõe. Enquanto ele não encontra a linguagem própria para o seu tema, que surja das entranhas do próprio tema como uma necessidade imperiosa e fatal, ele não será um 18

artista criador diferenciado e único, ele não será um documentarista (CAPOVILLA, 2005, p.5) - (grifo nosso).

Nesse sentido, o documentário, tal como é visto hoje, almeja mais do que informar os fatos. É uma obra que vai a fundo, que investiga questões que não estão na superfície, não estão aparentes, para apresentar ao espectador um universo de contradições e reflexões, para proporcionar uma visão abrangente do real.

Esse real pode ser um fato histórico, uma pessoa, uma situação. O objeto que está no foco do documentário tornou-se flexível. Qualquer assunto pode ser tema de um documentário. O importante é a maneira com que o realizador trata o tema, as estratégias que ele irá utilizar para questionar esse real.

Os temas atuais são tão divergentes quanto as formas/estratégias com que os diretores os utilizam: vão da simplicidade de duas crianças brincando/ brigando em um dia chuvoso, como no documentário poético do mineiro Cão Guimarães - Da Janela do Meu

Quarto (2004), ao trabalho quase missionário de artistas-palhaços nos hospitais infantis de

São Paulo, Rio de Janeiro e Recife em Doutores da Alegria (2005), documentário de Mara

Mourão, premiado no Festival de Gramado em 2005.

Uma folha de papel voando em uma rua deserta pode ser o pretexto para um documentarista se expressar. Assim como as eleições presidenciais brasileiras em 2006.

Nestes primeiros anos do século XXI, os documentaristas vêm questionando as convenções que foram atribuídas ao gênero no século XX: o registro de situações do cotidiano, das expedições científicas a lugares/países exóticos no início do século; a missão social-educativo-informativa da escola inglesa de John Grierson nos anos 30; o carimbo de verdade mostrando a vida como ela é no Cinema Verdade dos franceses Jean Rouch e

Edgar Morin ou no Cinema Direto norte-americano dos irmãos Maysles, Richard Leacock,

Robert Drew e D.A. Pennebaker nos anos 60; o compromisso com as classes oprimidas no 19

documentário sociológico e etnográfico brasileiro dos anos 60 e 70, entre outras convenções.

Essa independência do gênero dessas convenções somada ao caráter marginal que lhe é inerente, aos orçamentos modestos para a produção (se compararmos ao cinema ficcional), ao advento do formato digital que possibilitou a democratização dos meios de produção, à inexistência de parâmetros, de regras, de manuais que ensinem um modo único de fazer documentário (ao contrário da extensa bibliografia encontrada sobre a ficção) proporciona, por um lado, questões quanto aos procedimentos, quanto ao fazer documental. Por outro, propicia grande liberdade criativa. O documentário tornou-se um campo fértil para a experimentação estética e de conteúdo.

O documentário é, hoje, nesses primeiros anos do século XXI, um laboratório de incertezas, tentativas e riscos. Como sabidamente lembra Eduardo Coutinho: no documentário o erro é essencial. É impossível fazer um documentário sem erro. O documentário é o erro, a precariedade, ele é baseado nisso. É incompleto, precário por essência e natureza. Esta frase remete à reflexão do fotógrafo e cineasta Walter Carvalho: aquilo que a gente entende de um determinado assunto e elege como sendo importante não quer dizer que seja. É a tua visão. É o que você acha que é. A fraqueza dos meus sentidos me impedem de eu saber a verdade.

É interessante perceber como as idéias do produtor escocês John Grierson, desenvolvidas nos filmes realizados no Empire Marketing Board (EMB) na Inglaterra de

1930 a 1933 e depois no General Post Office Unit (GPO) que ele criou dentro da Empresa

Britânica de Correios e Telégrafos logo em seguida, ainda são contemporâneas às questões apontadas por Coutinho e Walter Carvalho. Grierson não sugeria uma forma única no processo de criação. Ao contrário, defendia a idéia de que os filmes documentários deveriam ser criativos. Deveriam tratar a realidade de forma criativa. Portanto, os diretores 20

deveriam colocar em seus filmes seus pontos de vista, seu olhar, sua visão particular sobre o mundo.

Foi Grierson quem empregou pela primeira vez o termo documentário num comentário ao filme Moana de Robert Flaherty para o jornal New York Sun em fevereiro de 1926, como conta a pesquisadora portuguesa Manuela Penafria:

O termo documentário que Grierson utilizou [...] teve como referência a palavra francesa documentaire . Apesar de a palavra documentário se encontrar sujeita a uma utilização demasiado vasta, decidiu mantê-la; afigurou-se-lhe adequada para designar os filmes que classificava de categoria superior. Oriunda do francês, a palavra possuía já um percurso próprio, demonstrando grande flexibilidade, pois se aplicava a vários filmes, desde os que nos mostravam apenas o exotismo de locais distantes até aos que contavam uma história dramática (PENAFRIA, 1999, p.45).

A noção de liberdade criativa já estava presente no momento de ”batismo” do gênero quando Grierson cunhou o termo - liberdade que também se verifica na definição de Bill Nichols, que com propriedade relata que o documentário não é uma reprodução do real. É uma representação do real :

Se o documentário fosse uma reprodução da realidade,[...] teríamos simplesmente a réplica ou cópia de algo já existente. Mas ele não é uma reprodução da realidade, é uma representação do mundo em que vivemos. Representa uma determinada visão do mundo, uma visão com a qual talvez nunca tenhamos deparado antes, mesmo que os aspectos do mundo nela representados nos sejam familiares. Julgamos uma reprodução por sua fidelidade ao original – sua capacidade de se parecer com o original, de atuar como ele e de servir aos mesmos propósitos. Julgamos uma representação mais pela natureza do prazer que ela proporciona, pelo valor das idéias ou do conhecimento que oferece e pela qualidade da orientação ou da direção, do tom ou do ponto de vista que instila. Esperamos mais da representação que da reprodução (NICHOLS, 2005, p. 47).

Ao representar o mundo e não reproduzi-lo, o documentário entra no campo das artes. O foco muda do real reproduzido para a maneira, o olhar, a interpretação que o realizador oferece desse mundo. Nesta concepção, o teórico identificou, conjuntamente 21

com a pesquisadora norte-americana Julianne Burton (DA-RIN, 1995, p.101), primeiramente, quatro modos de representação dessa realidade: expositivo, observacional, interativo e reflexivo. E, mais recentemente, em 2001, Bill Nichols identificou mais dois modos: poético e performático (NICHOLS, 2005).

Como estamos no terreno da criação, o pesquisador lembra que esses modos não são estanques. Podem estar presentes em um mesmo filme ou até mesmo abrir caminhos para novos modos.

Essa classificação de Bill Nichols ajuda a compreender o documentário. Mas seus modos de representação jamais podem ser vistos como os únicos existentes a partir dos quais os realizadores fariam uma escolha prévia que induziria seus procedimentos durante o processo de realização. Como já dito, o processo de criação é livre. A maioria dos realizadores desconhece, inclusive, as classificações de Bill Nichols. Os documentaristas seguem muito mais sua intuição e formam um vocabulário próprio que se dá a partir da visualização de filmes, de leituras, do contato com outras artes e, sobretudo, fazendo filmes.

Ao longo desta pesquisa foi possível constatar a amplitude desse universo, que impede traçar uma definição única para o gênero. Mas conseguiu-se levantar alguns elementos que compõem esse terreno:

• Não há regras, manuais para a realização de documentário. Nas palavras do

documentarista Maurice Capovilla, o documentário se transformou num verdadeiro

laboratório de pesquisas e de linguagens.

• O risco é essencial no processo de realização, onde o diretor deve experimentar,

ousar. 22

• Geralmente, os documentários surgem a partir de uma ou várias questões, dúvidas

que afloram a partir do contato com um determinado tema. As dúvidas movem todo

o processo de realização .

• É preciso que o diretor tenha uma postura de humildade/simplicidade perante o

tema (quando há mais certezas do que dúvidas, o documentário corre o risco de se

tornar um filme institucional ou de propaganda).

• É o próprio tema que sugere ao diretor a maneira como ele deve ser

abordado/investigado . Se os procedimentos, as estratégias de investigação são

elaboradas distantes do tema, mais uma vez o filme correrá o risco de se tornar um

institucional.

• Geralmente, um amplo trabalho de pesquisa sobre o tema que será investigado

antecede a produção e o roteiro.

• Os roteiros são abertos, isto é, apresentam suposições, hipóteses, questões que

costumam ser jogadas por terra durante o processo de realização, visto que a

matéria-prima do documentário é o real com suas nuanças e mutações.

• O imprevisto e, por conseqüência, o improviso fazem parte do processo de

realização.

• A noção de tempo é fundamental. Ao contrário do jornalismo, o documentário

demanda tempo para ser concebido, elaborado, articulado e estruturado. E, na

mesma proporção, demanda tempo para ser visto, compreendido e concluído pelo

público.

• Costuma valorizar o ponto de vista humano, suas emoções, seus sentimentos. Ex:

um conflito político a partir do olhar de uma criança ou do olhar pessoal do próprio

diretor. 23

• A interpretação do diretor sobre o real, sua criatividade e originalidade em relação

ao tratamento que dará ao tema é fundamental, ao contrário do telejornalismo, que

costuma padronizar a maneira com que as reportagens são realizadas, anulando o

julgamento, a interpretação dos repórteres.

• O documentário é autoral. As reportagens televisivas transmitem, em última

instância, a opinião das empresas de comunicação ou dos grupos políticos, que são

os principais anunciantes dessas empresas.

• A autonomia ideológica do diretor em relação aos conteúdos tratados é

fundamental no processo de realização.

• O gênero dialoga com as mais variadas formas de expressão : narratividade

ficcional, animação, música, teatro, elementos do cinema experimental e de

vanguarda, performances, etc.

• Os documentários são perenes, enquanto as reportagens envelhecem da noite para o

dia.

• Em geral, o documentário se estrutura na montagem , ao contrário da ficção, que se

estrutura no roteiro.

• Aproxima as pessoas do tema não só por caminhos de investigação, como também

pela emoção.

Por fim, ressalta-se a reflexão da pesquisadora portuguesa Manuela Penafria que, acreditamos, evoca a forma com que a cineasta brasileira Helena Solberg atua em seus filmes e cujo trabalho será analisado no capítulo a seguir:

O seu olhar (do documentário) não se reduz ao óbvio; antes nos leva a visões diferentes sobre o mundo, permitindo-nos vê-lo de outro modo. Por esta razão há um apelo ao debate de idéias, à reflexão e ao envolvimento crítico, confrontados que somos por experiências diversas, sejam elas pessoais, sociais ou outras. Estamos perante um filme 24

fundamental; um filme que solicita uma constante inovação e experimentação de formas para conteúdos que nos são muito próximos. Se as temáticas tratadas dizem diretamente respeito à vida das pessoas e aos acontecimentos do mundo, a sua forma depende diretamente da criatividade do documentarista (PENAFRIA, 1999, p.78).

Considera-se a obra de Helena Solberg nessa direção. Formada pela Pontifícia

Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro em Línguas Neolatinas, onde conviveu com expoentes da geração cinemanovista como Cacá Diegues, Arnaldo Jabor e David

Neves, Helena realizou seu primeiro filme em 1966: o documentário A Entrevista , pelo qual recebeu valiosos conselhos de quando ainda estava no processo de concepção do filme e também a indicação do cineasta para a obtenção de financiamento para o curta.

A carreira da cineasta desenvolveu-se longe do Brasil - nos Estados Unidos - onde viveu por 30 anos, realizando 11 documentários que analisaram as relações Estados

Unidos x América Latina, sendo dois sobre o Brasil.

De volta a seu país natal em 1995, dirigiu Carmen Miranda, Bananas Is My

Business , documentário reflexivo que percorre a trajetória da pequena notável, selecionado pelo jornal Village Voice de Nova York entre os 10 melhores filmes de não-ficção de 1995, pelo crítico Andrew Sarris.

25

3 HELENA SOLBERG

[...] A imagem pode se produzir também dentro da sua cabeça. A palavra imaginação vem também disso. Eu acho que eu criei um mundo também de fantasias com os filmes que mais me marcaram, que foi o cinema italiano, o neo-realismo e também o cinema francês.

Em certo sentido, é verdade o que dizem as pessoas que os cineastas simplesmente refazem o mesmo filme ao longo de suas vidas, que nós (cineastas) apenas mudamos para diferentes aspectos dos mesmos temas. (tradução nossa). Helena Solberg (apud BURTON, 1986, p.92).

FIGURA 1 - Helena Solberg em entrevista à Mariana Tavares, na

residência da cineasta (Rio de Janeiro, 09.06.05).

26

3.1 Artífice do documentário,um capítulo à parte entre os documentaristas brasileiros

Helena Solberg está entre os mais importantes documentaristas brasileiros. Em cerca de 40 anos de carreira realizou 15 filmes – 13 documentários e duas ficções. Seu mais recente trabalho é a ficção em longa-metragem Vida de Menina (2005), que em sua gênese flerta com o documentário. O roteiro do filme baseia-se no livro-diário Minha vida de Menina – O Diário de Helena Morley 2, publicado pela primeira vez em 1942 e considerado por Gilberto Freyre uma História Natural do Brasil, único documento que existe no Brasil que fala do cotidiano sem ser memórias [...] em fim de século.

Em 1994, realizou o documentário, também em longa-metragem, Carmen

Miranda, Bananas Is My Business , premiado em sete festivais (nacionais e internacionais) e ainda selecionado para 21 festivais internacionais.

Casada com o produtor e diretor norte-americano David Meyer, com quem divide a titularidade da produtora Radiante Filmes , viveu por 30 anos nos Estados Unidos, onde realizou 11 documentários – a maioria para emissoras de televisão como o Public

Broadcasting Service, Rede Pública de Televisão (PBS), e também premiados internacionalmente. Em sua maioria, esses documentários investigam as relações entre a

América Latina e os Estados Unidos, observando as realidades sociais e políticas: eu sempre quis examinar, mesmo morando fora, as questões que me interessavam, continuaram sendo questões daqui (Brasil) ou questões relativas à América do Sul que eu fui descobrir só depois que sai do Brasil.

Em 1983, recebeu o National Emmy Award por From the Ashes ... Nicarágua

Today (Das cinzas... Nicarágua Hoje) 1982, documentário onde, através dos olhos de uma

2 Helena Morley foi um pseudônimo utilizado por Alice Dayrell Caldeira Brant que escreveu seu diário dos 13 aos 15 anos de idade, entre 1893-1895 na cidade de Diamantina, MG. 27

família camponesa, Helena Solberg tentou compreender o sandinismo e a transição política na Nicarágua no início dos anos 80.

Apesar dessa trajetória significativa, não encontramos referências à sua obra na bibliografia publicada no Brasil sobre os documentaristas brasileiros ou sobre o documentário nacional. A única ressalva é um parágrafo na Enciclopédia do Cinema

Brasileiro organizada pelos pesquisadores paulistas Fernão Ramos e Luiz Felipe Miranda

(RAMOS; MIRANDA, 2000, p.197).

Existem vários artigos publicados em revistas e jornais por ocasião do lançamento de Carmen Miranda, Bananas Is My Business , tanto no Brasil quanto nos

Estados Unidos. E também referências ao seu trabalho em sites de festivais e eventos relacionados a cinema. Mas, segundo a própria cineasta, não há pesquisa acadêmica sobre seu trabalho no Brasil.

Nos Estados Unidos, a pesquisadora norte-americana Julianne Burton, professora de literatura na Universidade da Califórnia em Santa Cruz, reconhecida como autoridade em cinema Latino-Americano, publicou em 1986 o livro Cinema and Social

Change in Latin América, no qual entrevistou vários cineastas latino-americanos. Do

Brasil, entrevistou Helena Solberg e Glauber Rocha.

3.2 As primeiras imagens, os primeiro filmes

Filha de pai norueguês e mãe brasileira, Helena Solberg nasceu na cidade de

São Paulo na década de 40, mas com dois anos de idade mudou-se para o Rio de Janeiro.

Em 1958, entrou para a Universidade Católica do Rio de Janeiro, onde estudou Línguas

Neolatinas: eu acho que foi a melhor coisa que eu fiz porque me abriu um mundo da imaginação 28

sem imagem. As imagens eram formadas dentro da cabeça, que é o que a literatura tem de maravilhoso, que é essa coisa: o filme se passa dentro da sua cabeça e cada livro é um filme para cada um.

Na Puc do Rio, conviveu e tornou-se amiga de jovens cineastas do Cinema

Novo, como Cacá Diegues, Arnaldo Jabor e David Neves. Como contou à pesquisadora

Julianne Burton (BURTON, 1986, p.82), todos trabalhavam num jornal semanal chamado

O Metropolitano , patrocinado pela União Nacional dos Estudantes (UNE) e distribuído como suplemento de domingo do Diário de Notícias. Passavam as tardes no escritório onde redigiam o suplemento e à noite freqüentavam as famosas sessões da cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM), ambiente que aos poucos despertou na estudante de Línguas Neolatinas o interesse por cinema.

Entre o trabalho no suplemento estudantil e a decisão de fazer seu primeiro filme, casou-se e teve seu primeiro filho. Conforme contou na entrevista a Julianne Burton, os papéis de mãe e dona de casa não lhe bastaram. Começou a sentir-se entediada e decidiu fazer um filme que investigasse a crise pessoal que vivenciava. Daí nasceu seu primeiro filme, o documentário A Entrevista , 16mm, 30 min, preto e branco, 1966. Nele, Helena

Solberg entrevistou cerca de 80 mulheres de classe média alta que haviam estudado no mesmo colégio de freiras que ela, o Sacre Coeur de Jesus. De posse de um gravador Nagra, operado por ela, ia às casas de suas contemporâneas de colégio e, a partir de um questionário, perguntava-lhes a respeito de suas aspirações na adolescência e suas atitudes em relação a decisões críticas: freqüentar a Universidade ou se casar.

Essas entrevistas foram montadas em voz over sobre belas imagens em preto e branco do ritual de uma mulher se vestindo e maquiando para o casamento. As diferentes falas das entrevistadas de certa forma questionam a imagem central da noiva e geram um clima de estranhamento. Ao final, Helena Solberg entrevista a noiva de forma direta. A imagem da noiva é cortada para imagens do golpe de estado de 1964. 29

A fotografia do filme foi feita pelo fotógrafo do Cinema Novo, Mário Carneiro, e a montagem pelo também cineasta do Cinema Novo, Paulo César Sarraceni. O filme foi selecionado para o Festival na Krakóvia (Polônia) e o Festival dei Populi em Florença

(Itália), onde recebeu menções honrosas.

Nessa primeira experiência encontram-se elementos que serão marcantes na obra da cineasta: a criação de um imaginário próprio, de imagens fantasiadas (o clima onírico dos depoimentos em voz over sobre as imagens da noiva se preparando) em contraponto ao contexto sociopolítico (imagens do golpe de estado de 1964). O tom poético e a análise social. Helena parte do indivíduo (noiva se preparando e também sua crise pessoal com os papéis do lar) para o universal (o posicionamento das mulheres nos anos 60 em relação às suas vidas, seus destinos).

Daí vem a força de seu documentário. Ao individualizar, humanizar as questões, partindo de histórias únicas, emociona. Ao mesmo tempo, abre a questão para um âmbito maior, trazendo informações criteriosas que ampliam a percepção de quem assiste aos seus filmes - aliança que gera, inclusive, atemporalidade em seus trabalhos.

Trata-se de uma grande artífice do documentário.

Vê-se, ainda, nessa primeira experiência, uma atitude em total consonância com o espírito de sua geração: uma câmera na mão, uma idéia na cabeça. Como contou a

Julianne Burton, o cineasta Cacá Diegues, seu contemporâneo, fez seu primeiro filme experimental pelos corredores da PUC, da mesma forma.

É impossível não se citar também Maioria absoluta (1964), documentário de

Leon Hirszman, com várias entrevistas sobre a questão do analfabetismo no Brasil, cujo gravador Nagra foi operado pelo jovem Arnaldo Jabor (RAMOS, 2004, p.88). Havia um encantamento com as entrevistas, decorrência dos primeiros Nagras que haviam chegado ao Brasil em 1962 e que possibilitaram a gravação sincronizada de imagem/som em 30

ambientes externos. Além da portabilidade e sincronicidade proporcionada por esses gravadores, essa geração havia, segundo David Neves (RAMOS, 2004, p.88), entrado em contato com Chronique d’un été (Crônica de um verão) , 1960, filme de Jean Rouch e

Edgar Morin, criadores do Cinema Verdade na França que, entre outros aspectos, fazia uso das entrevistas, com forte interatividade dos diretores.

Nessa mesma época, Helena Solberg teve experiências em trabalhos de outros cineastas, como O Padre e a Moça (1965), de Joaquim Pedro de Andrade. Ela escreveu para Joaquim Pedro pedindo para participar do filme, o que lhe possibilitou acompanhar as filmagens em São Gonçalo do Rio das Pedras-MG. Depois, foi continuísta em Capitu

(1968), de Paulo César Sarraceni, e assistente de direção de Rogério Sganzerla em A

Mulher de Todos (1969). Essas experiências inspiraram sua primeira ficção: o curta- metragem Meio-Dia (1970), 15min, filmado em 35mm e com atores profissionais. Na entrevista a Julianne Burton (BURTON, 1986, p 85), a cineasta conta que o curta foi inspirado em Zéro de Conduite (Zero de Conduta) de Jean Vigo e mostra uma rebelião de crianças em sala de aula que matam seu professor. Como banda sonora, apenas É Proibido

Proibir , música de vetada pela censura na época.

Nessas duas primeiras experiências, A Entrevista e Meio-Dia, definiu-se sua inclinação para os gêneros documentário e ficção. A articulação de um imaginário próprio em contraponto ao contexto sociopolítico e a experimentação estética com novas articulações da linguagem cinematográfica também se farão presentes. Identifica-se, também, uma busca obstinada pela liberdade autoral em face das instituições de onde obtém o financiamento para seus filmes. E, por último, a coexistência da atividade de realizadora com a de produtora. Helena Solberg sai a campo em busca dos financiamentos para seus filmes.

31

3.3 Fase americana: do feminismo às relações entre Estados Unidos x América Latina

Em 1971, Helena Solberg mudou-se com o primeiro marido e os dois filhos para Washington D.C., nos Estados Unidos. Como contou a Julianne Burton. Logo começou a trabalhar com um grupo de ativistas envolvido nas manifestações do May Day

1971 , a última grande manifestação antibélica da era Vietnã, quando milhares de pessoas de várias regiões do país se dirigiram para a capital, na tentativa de interromper o trabalho do Governo Federal em protesto à Guerra do Vietnã. As manifestações foram filmadas e resultaram em dois documentários, um deles com a colaboração da cineasta.

A experiência no May Day 1971 e a emergência do movimento feminista no país inspiraram seu primeiro documentário no país, The Emerging Woman (A Nova

Mulher, 16mm, P&B, 48min, 1975), que percorre a história do movimento feminista de

1800 até a década de 70 no século XX. O documentário tornou-se referência para o movimento a ponto de ter sido o filme oficial da Comissão Bicentenária Americana em

1976 - importante evento no país sobre a questão da mulher.

Essa receptividade originou mais dois filmes sobre o movimento feminista: The

Double Day (A Dupla Jornada , 16mm, cor, 60 min, 1975), exibido na Primeira

Confederação Internacional da Mulher, sediada na cidade do México em 1975, e também na Bolívia, Venezuela e Colômbia, e Simplesmente Jenny (16mm, cor, 30 min, 1978), premiado no American Film Festival em 1978 e selecionado para festivais na Jamaica,

Leipzig e no Centro George Pompidou em Paris em 1979.

Temendo ser identificada apenas como uma cineasta feminista 3, a partir do início da década de 80, Helena Solberg muda o foco de sua câmera para as relações

Estados Unidos x América Latina.

3 Em entrevista a Julianne Burton, p 92. 32

Ao observar a televisão do país, percebeu que, apesar dos milhares de horas de reportagens televisivas sobre os conflitos na América Central em situações diferenciadas como na Nicarágua, em El Salvador, na Guatemala e Honduras, os conflitos ficavam parecidos nas reportagens, permanecendo obscuro para o público o papel dos atores envolvidos, o que estava realmente acontecendo e o lado que os Estados Unidos estavam apoiando.

Essa questão moveu o quarto filme de Helena Solberg no país, From the

Ashes... Nicarágua Today (Das Cinzas... Nicarágua Hoje, 16mm, cor, 60 min, 1982), que recebeu o Emmy de 1983 da Academia de Televisão, Arte e Ciências dos Estados Unidos.

Interessavam-me os sentimentos das pessoas, as emoções, o elemento humano. O homem inserido dentro de uma guerra como a guerra da Nicarágua. O que estava se passando com a população, com as crianças, com as famílias. O que estava se passando com as relações familiares: dentro de uma mesma família pontos de vista diferentes. O abalo da estrutura familiar até por causa disso. Essas questões eram as que me interessavam mais.

O filme conseguiu emocionar as platéias no país, pelo fato de conjugar o lado humano e a conjuntura política. Essa abordagem incomodou William Bennett, então presidente do National Endowment for the Humanities, nomeado por Ronald Reagan,

órgão que havia sido um dos apoiadores do filme. Bennett liderou campanha agressiva contra o documentário acusando-o de fazer “propaganda socialista”.

Durante semanas, manchetes sensacionalistas atacaram From the Ashes...

Nicarágua Today, colocando a cineasta numa situação de risco naquele país. A controvérsia acabou por funcionar como publicidade às avessas para o filme. Depois, a premiação do filme, não só pela Academia, mas em mais três importantes festivais do país, colocaria um ponto final na polêmica.

Assim como From the Ashes... Nicarágua Today, foram realizados com apoio do PBS e também exibidos pela emissora: The Brazilian Connection (A Conexão 33

Brasileira, 16mm, cor, 60 min, 1982/83) e Chile: By Reason or by Force (Chile: pela

Razão ou pela Força, 16mm, cor, 60 min, 1983). Esses trabalhos também marcam o início da parceria com o produtor e diretor norte-americano David Meyer, com quem viria a se casar.

Seguiram-se várias obras que continuaram investigando as relações entre

Estados Unidos e América Latina, como Portrait of a Terrorist (Retrato de um Terrorista,

Betacam, cor, 30 min, 1986), também financiado e exibido pelo PBS; Made in

16mm, cor, 30 min, 1987; e The Forbidden Land (A Terra Proibida, 16mm, cor, 60 min,

1990), feito com o apoio do PBS e do National Film Board do Canadá .

Em 1986, investigou a questão indígena em Home of the Brave (Berço dos

Bravos, 16mm, cor, 60 min):

Foi um filme onde examinei tribos diferentes no mundo inteiro, procurando a ligação entre elas, o que havia em comum no povo nativo. O filme questiona se haveria uma possibilidade de, em países diferentes, tribos nativas juntar forças com a mesma questão. Aí houve na Europa uma grande conferência que reuniu tribos nativas de diferentes países onde eles discutiram entre eles o que havia em comum e quais eram as ações possíveis que podiam tomar para não haver a extinção dessas culturas.

A permanência da diretora nos Estados Unidos durante o período da ditadura militar no Brasil e em outros países latino-americanos possibilitou que ela tivesse a liberdade de atuação que teria sido impossível morando no Brasil em tempos de forte censura.

A residência por 30 anos na América do Norte possibilitou, ainda, acesso a informações sobre os países latino-americanos que, vivendo sob regimes ditatoriais, dificilmente seriam adquiridas apenas in loco . Possibilitou também acesso a mecanismos internacionais de financiamento - fatores que impulsionaram sua trajetória, resultando em 34

12 documentários de padrão internacional, reconhecidos por críticos americanos e como vimos, premiados em inúmeros festivais.

Esses filmes da fase americana de Helena Solberg merecem um estudo aprofundado que investigue tanto o conteúdo político - as relações entre os Estados Unidos e a América Latina - quanto a estética, a forma trabalhada pela cineasta, que conjuga poesia e análise histórica e mantém o ponto de vista dos indivíduos inseridos em suas diferentes realidades, sem nunca perder de vista a análise conjuntural.

No início da década de 90, ainda morando nos Estados Unidos, a cineasta começou a interessar-se por um assunto que se relacionaria tanto com a realidade norte-americana quanto a brasileira: a cantora brasileira Carmen Miranda. Um ícone de ambas as culturas e que, na opinião da cineasta, foi mais forte até para o imaginário norte-americano.

O interesse pela imagem da cantora resultou no premiado documentário

Carmen Miranda, Bananas Is My Business e deu início a uma nova fase em sua carreira em que a temática cultural passou para o primeiro plano. Sem deixar de lado o contexto político, o documentário traça um panorama da vida e obra da cantora, em busca de sua identidade.

A partir dessa época, percebe-se interesse gradual da diretora pela temática cultural: em 1997 dirigiu para o Channel 4 britânico o documentário Brasil em Cores

Vivas, Betacam, 25 min; em 2004, a ficção Vida de Menina e atualmente, trabalha na captação e pré-produção de seu próximo documentário A Visita (nome provisório), que irá investigar a relação entre literatura e música no Brasil: escritores que influenciaram letras de músicas brasileiras; poemas que deram origem a importantes canções no país.

35

3.4 Carmen Miranda, o risco de Helena Solberg

Carmen Miranda, Bananas Is My Business percorre a vida e obra da pequena notável, de seu nascimento, em 1909, em Marco de Canaveses (Portugal), até sua morte precoce, em 1955, com apenas 46 anos de idade, em sua casa em Bervely Hills, nos

Estados Unidos.

Helena Solberg investiga essa trajetória tentando encontrar a identidade de

Carmen e compreender o que aconteceu com sua imagem ao longo dos anos:

Uma coisa meio de detetive na busca de um personagem: quem era? Que mistério havia por trás desta mulher? [...] O que era aquela máscara? Por que a cara era quase sempre a mesma? O sorriso... Havia uma coisa meio máscara em Carmen. Que era uma coisa que depois eu achei que também era uma forma de se proteger bastante. Porque era uma pessoa bastante tímida.

Uma busca afetiva por sua trajetória visando a devolver à Carmen Miranda o que ela perdeu ou lhe tiraram ao longo dos anos: sua integridade, sua história e sua importância como embaixadora do Brasil que, de forma pioneira, levou a música brasileira para os Estados Unidos e criou um jeito particular de interpretar nossas canções.

Helena Solberg reconstrói a Carmen que foi desmembrada em muitas – “ the bomb-shell girl ” (a “garota-bomba” para os americanos), musa da política da boa vizinhança, uma fruta exótica brasileira, ícone americano e brasileiro, intérprete, cantora, performer , atriz, filha, esposa, irmã, etc.

Para recompô-la, empreende ao lado do marido, o produtor David Meyer, que assina junto com ela o filme, uma campanha internacional atrás de informações.

Colocaram anúncios em jornais de vários países:

Anunciamos que estávamos fazendo um filme e que gostaríamos de saber qualquer coisa sobre Carmen: pessoas que tinham informações sobre Carmen ou que tinham algum depoimento a dar ou que a 36

conheceram.[...] Além de todos os arquivos no mundo inteiro que nós examinamos.

O filme reúne fotografias, artigos de jornal, cartas escritas pela cantora, imagens de nove filmes que ela realizou para a 20th Century Fox , Cinédia, Columbia

Picture e Republic Pictures Corporation . Reúne também raras imagens de arquivo, como a chegada do caixão de Carmen Miranda ao Brasil em agosto de 1955 e a multidão que acompanhou seu enterro, arquivos pessoais em película de Carmen com a família e amigos e cenas de outros filmes que ajudam a reconstruir sua história, como desenhos animados e comédias que a parodiavam.

Apresenta, ainda, depoimentos raros de 16 pessoas que conviveram com a cantora: o antigo namorado, Aloysio de Oliveira, integrante do Bando da Lua (que a acompanhou aos Estados Unidos) e também responsável pelo repertório de seus shows ;

Aurora Miranda, irmã seis anos mais nova, que em vários momentos dividiu o palco com

Carmen e com ela morou em sua casa em Bervely Hills; a empregada de Carmen Miranda nos Estados Unidos, Stela Romero; o jornalista Caribé da Rocha; os compositores que criaram canções especialmente para ela: Synval Silva e Laurindo Almeida; o primeiro namorado, Mário Cunha; além de amigos e atores. Um elenco precioso de pessoas, a maioria já na casa dos 80 anos de idade, trazendo frescor, veracidade e, sobretudo, informações preciosas. São protagonistas da história de Carmen Miranda pessoas que conversaram, amaram, trabalharam, divertiram-se com ela. Vozes fundamentais que

Helena Solberg resgatou ainda em vida. Hoje, quase todos já faleceram.

Além dessas vozes, o filme apresenta também uma voz pessoal, de uma mulher que não se identifica, permanece over em todo o percurso da película e nos intriga: o que mais me fascina nela é a imagem. Como se houvesse alguma coisa escondida atrás de uma máscara impenetrável. Tenho tido sonhos estranhos sobre ela que têm me obcecado. 37

Sonhei que Carmen volta para a vida, para resolver algumas questões. Alguns assuntos pendentes. Ela foge do Museu que a tornou prisioneira e volta para Aliviada, em Portugal, onde nasceu.

Enquanto essa voz enigmática diz essas palavras em over , vê-se a imagem de

Carmen que sai de uma das vitrines de seu Museu e foge sorrateiramente. O clima é de suspense. Cordas de um violino pontuam a cena. Ao atravessar a porta do Museu, ouve-se o som de um vidro que se quebra. Em seguida, surpreende-se o pé de Carmen Miranda em sua inconfundível sandália plataforma, no lombo de um burrico.

O som é de uma canção portuguesa. Estamos em sua terra natal. E estamos também no terreno da ficção.

Ao introduzir essa voz que não se identifica e um ator para representar Carmen,

Helena Solberg introduz dois elementos fundamentais para a análise de Carmen Miranda,

Bananas Is My Business : a ficção e a reflexividade . Ao assumir o tom reflexivo, correu riscos. Pela primeira vez em sua filmografia recorreu abertamente a esse modo de representação. Podia não ter dado certo. Chegou a hesitar em utilizá-lo, mas foi incentivada pelo consultor de roteiro do filme, o cineasta Antônio Calmon, que lhe disse que esse poderia ser o grande diferencial do documentário. Ao recorrer à reflexividade, Helena

Solberg utilizou sua própria voz, que pontuou o documentário com um tom afetivo e coloquial. É como se Helena Solberg assumisse nossa dívida (nós = brasileiros) perante

Carmen e tentasse lhe devolver sua história. Mas é também a voz de uma amiga que procura pela identidade da cantora: quem era a garotinha que estudou num colégio de freiras na Lapa, no Rio de Janeiro, escola destinada aos filhos de pobres imigrantes europeus; quem era a jovem que transitava com desenvoltura por um ambiente eminentemente masculino de músicos e jovens compositores no Brasil dos anos 30; quem foi esta mulher que quando chegou aos Estados Unidos e foi recebida pela imprensa norte- 38

americana parecia uma boba ao pronunciar palavras desconexas no parco vocabulário inglês que possuía, soltando pérolas como the north american men are potatoes (os homens norte-americanos são batatas) ?!

Mas em momento algum do filme a diretora se identifica. Escuta-se essa voz feminina e apenas ao final lê-se nos letreiros que a narração é de Helena Solberg, informação que pode passar despercebida para o espectador. Portanto, fica-se sem saber ao certo quem fala. A impressão é de que se trata de uma amiga, alguém que conheceu

Carmen Miranda.

Mais que identificar essa voz, o que interessa é a dimensão que ela traz para o conteúdo fílmico. A reflexividade sugere um terceiro plano, que é o da memória afetiva, da subjetividade, do imaginário coletivo (norte-americano e brasileiro) que se tem de Carmen

Miranda e do desejo da diretora em identificar a mulher debaixo desse imaginário/mito/caricatura.

Para compreender melhor a reflexividade, recorreu-se à definição do teórico americano Bill Nichols:

O modo reflexivo é o modo de representação mais consciente de si mesmo e aquele que mais se questiona. O acesso realista ao mundo, a capacidade de proporcionar indícios convincentes, a possibilidade de prova incontestável, o vínculo indexador e solene entre imagem indexadora e o que ela representa – todas essas idéias passam a ser suspeitas. O fato de que essas idéias podem forçar uma crença fetichista inspira o documentário reflexivo a examinar a natureza de tal crença em vez de atestar a validade daquilo em que se crê. Na melhor das hipóteses, o documentário reflexivo estimula no espectador uma forma mais elevada de consciência a respeito de sua relação com o documentário e aquilo que ele representa (NICHOLS, 2005, p.166) - (grifo nosso).

Ao fazer tantas questões a respeito de Carmen Miranda, ao duvidar da imagem que lhe foi dada pelos norte-americanos e pelos brasileiros, ao questionar a imagem que a própria Carmen construiu para si e ao tentar “escavar” por baixo de toda a caricatura, atrás da máscara sempre sorridente de Carmen, o ser humano que ela realmente foi, Helena 39

Solberg se aproximou muito mais da realidade. Afinal, a realidade é feita de opostos, de contrastes, indagações, avanços e recuos, assim como a própria vida. E a vida de Carmen não foi diferente.

A realidade é também construída a partir das diferentes visões, interpretações que as pessoas têm do mesmo fato. Esta visão foi reforçada na década de 60, com o advento do Cinema Verdade na França e do Cinema Direto nos Estados Unidos, que abriram o microfone para diferentes vozes . Cada vez mais, no documentarismo mundial, constrói-se uma interpretação dos fatos a partir de várias vozes, de várias falas. Ou, então, a partir da subjetividade do autor do filme ou de um único personagem. Nesse cenário, a voz over passou a ser questionada pelos realizadores.

O tom de Helena Solberg é tão autoral que ela chega a inserir no início do filme uma fotografia dela mesma, aos dois anos de idade, imitando Carmen Miranda; e outra já maior, com sete anos aproximadamente, estabelecendo um contraponto entre seus tempos de colegial, estudante de um colégio de freiras, e a pré-adolescência de Carmen quando ela recebeu as influências do samba que descia dos morros cariocas nos anos 30.

A ficção , segundo elemento norteador do documentário, se dá de duas formas:

Primeiro, na reconstituição de momentos que sabidamente fazem parte da história da cantora, como quando ela caiu desfalecida em seu quarto em Bervely Hills na noite de sua morte em agosto de 1955 ou quando foi recebida com frieza em sua primeira vinda ao

Brasil, pelos convidados do então presidente Getúlio Vargas no Cassino da Urca. Ou, ainda, quando chegou de navio ao porto de Nova York e, como uma pessoa artificial, proferiu frases desconexas para os americanos.

A segunda forma é a partir da criação de situações relacionadas à memória afetiva : a atriz Letícia Monte, irmã da cantora , interpreta Carmen Miranda adolescente em várias situações prosaicas: dando adeusinho da sacada de sua casa ao lado 40

do pai; correndo na praia num maiô de época e dando beijinhos para a câmera ou trabalhando nos chapéus que ela criava e vendia para a sociedade carioca dos anos 30.

Essas seqüências foram criadas em P&B e montadas num ritmo acelerado, o que dá a impressão de serem realmente de época.

A Carmen Miranda adulta que vai para os Estados Unidos é interpretada pelo transformista carioca Erick Barreto, que já havia montado vários shows em que a interpretava, tendo estudado minuciosamente seus gestos e coreografias, como comenta

Helena Solberg: ele era a pessoa que melhor fazia a Carmen possível e imaginária. Ele estudou todos os gestos dela. A transformação de Erick era uma coisa realmente incrível.

Erick Barreto acompanhou Helena Solberg e David Meyer nos quatro países onde o filme foi rodado: Estados Unidos (Los Angeles), Inglaterra (Londres), Portugal

(Marco de Canaveses) e Brasil (Rio de Janeiro).

Além desses elementos - reflexividade, ficcionalização -, o filme traz, ainda, a encenação/interpretação de quatro importantes vozes que também fazem parte dessa história:

• Interpretação da voz de Carmen lendo uma antiga carta de amor, com o mesmo tom

e sotaque da cantora.

• Interpretação da voz do padre que a teria batizado em Aliviada, Portugal, lendo sua

certidão de batismo, sobre uma seqüência externa e interna de imagens da igrejinha

e pia batismal onde realmente Carmen Miranda foi batizada.

• Interpretações feminina e masculina das típicas locuções radiofônicas ”empoladas”

da época, que pontuam vários momentos do documentário: anunciando sua chegada

em NY, noticiando sua participação em diferentes filmes, seu casamento com o

produtor norte-americano David Sebastian, etc. 41

• Interpretação da voz do jornalista David Nasser em uma crítica bombástica na

imprensa brasileira, onde injustamente escreveu: “ Carmen esqueceu a língua

portuguesa, desaprendeu o ritmo do samba que a notabilizou, trocou as rendas da

baiana pela fantasia de cow girl do Texas e se entregou às tropas de ocupação.”

E ao final do filme, como um posfácio, vê-se a fotografia de uma senhora ao lado de Erick Barreto transformado em Carmen Miranda. Pela última vez, ouve-se a voz de

Helena Solberg pronunciar: para terminar eu queria dizer que a minha mãe que uma vez não me deixou ir ao enterro de Carmen reconciliou-se com ela e agora está tudo bem em casa.

O tom autoral é mais uma vez assumido e faz referência ao início do documentário que traz as imagens do enterro de Carmen pontuadas pela voz de Helena

Solberg, que lamenta ter sido proibida pelos pais de ir ao enterro quando era adolescente.

O filme termina abrindo novas possibilidades de interpretação sobre a vida da pequena notável, sua contribuição para a disseminação da música brasileira e, sobretudo, o reconhecimento que nós brasileiros lhe devemos.

Por fim, para compreender a abrangência do documentário, recorreu-se mais uma vez a Bill Nichols, que fala dos documentários politicamente reflexivos:

Passamos a olhar mais atentamente. Os documentários politicamente reflexivos reconhecem a maneira como as coisas são, mas também invocam a maneira como poderiam ser. Nossa consciência mais exacerbada abre uma brecha entre conhecimento e desejo, entre o que é e o que poderia ser. Os documentários politicamente reflexivos apontam para nós, espectadores e atores sociais, e não para os filmes, como agentes que podem fechar essa brecha entre aquilo que existe e as novas formas que desejamos para isso que existe (NICHOLS, 2005).

É exatamente isso que o filme possibilita: ao devolver a história da cantora brasileira, ao reunir os diferentes fragmentos de sua vida, sugere nas entrelinhas ou nas 42

”entre-imagens” que sua vida poderia ter sido outra. Ter tido um desfecho diferente. Em determinado momento o tom reflexivo fala que jamais poderíamos tê-la deixado voltar aos

Estados Unidos quando ela veio ao Brasil se recuperar de seu colapso nervoso - volta que resultou em seu ataque de coração e, em conseqüência, sua morte.

A amarração de todas as vozes no filme (somadas às vozes dos 16 entrevistados) aliada aos momentos ficcionais, à reflexividade e ao riquíssimo material de arquivo faz de C armen Miranda, Bananas Is My Business um dos grandes documentários brasileiros dos anos 90 ao lado de Notícias de uma guerra particular (1999), de João

Moreira Salles e Katia Lund, e Santo Forte (1998) de Eduardo Coutinho. Injustamente, nenhum dos livros que tratam do documentário nacional no período relaciona essa obra.

Torna-se urgente reparar essa falha.

3.5 A realização para a cineasta: um processo em aberto

Helena Solberg passa por três fases essenciais no processo de realização em documentário, em todas frisando a importância do realizador estar aberto para as novidades que surgem durante o processo da criação. A fase inicial se refere à definição do tema a ser tratado:

É quando você decide que você quer fazer ou que você tem uma idéia inicial de um filme. A partir daí a busca desse material (pesquisa inicial de informações sobre o tema) começa a revelar outras coisas que você não esperava. Isso é que é uma coisa bastante interessante, completamente diferente da ficção. É a própria vida, a própria investigação vai mudando você. E mudando a idéia que você tinha inicialmente. Você começa a duvidar um pouco de si mesmo e a dizer: “espera aí, tem umas coisas aqui que eu não esperava.” Esse é um processo maravilhoso, um processo muito rico.

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A segunda fase é o processo de filmagem/captação propriamente dito, que também para a cineasta acontece de forma aberta, de maneira bem diferente da ficção.

Como a matéria-prima do documentário é o real que é fluído e mutável, o registro desse real também deve se adaptar às suas oscilações. Não pode ser aprisionado num roteiro fechado. E como terceira fase, Helena Solberg aponta o processo de montagem:

É onde você busca a estrutura de seu documentário. Mesmo que você tenha aquela estrutura amarrada um pouco na sua cabeça - que você deve ter inicialmente, você precisa saber por onde você está indo, eu acho que o processo de edição é fundamental no documentário.

Se pensar-se que a edição/montagem de Bananas Is My Business durou cerca de um ano, resultando numa articulação sofisticada de todos os elementos apontados no capítulo anterior, pode-se não só entender como também concordar com esse ponto de vista.

Helena Solberg comenta, inclusive, que na ficção é diferente. A etapa mais aberta e mutável está na elaboração do roteiro, que depois de vários tratamentos atinge uma forma final que será levada para o set de filmagem e para a montagem, sendo que a montagem na ficção vai sofrer poucas variações em relação ao roteiro original, se comparada com o documentário.

Ao terminarem as reflexões sobre o trabalho de Helena Solberg, ressalta-se uma questão levantada pela cineasta na entrevista a Julianne Burton, em 1983, quando citou a crença de que os cineastas simplesmente refazem o mesmo filme ao longo de suas vidas, que apenas mudam para diferentes aspectos dos mesmos temas .

Se a questão da mulher esteve presente em seus primeiros filmes - A Entrevista

(1966) , A Nova Mulher (1975) , A Jornada Dupla (1975) e Simplesmente Jenny (1978) - esta questão se deu imbricada com a conjuntura política. Como dito no início das reflexões 44

sobre o trabalho da diretora, era a questão do indivíduo inserido num contexto mais amplo

– social e político.

Depois, Helena Solberg iniciou as investigações sobre as relações da América

Latina X Estados Unidos, resultando numa safra riquíssima de 10 documentários em sua fase americana.

A partir do presente estudo, identifica-se uma terceira fase, que coincide com seu retorno ao Brasil, onde a questão cultural ganha o primeiro plano, como no documentário sobre Carmen Miranda, na ficção Vida de Menina (2004) e no projeto atual

(em fase de pré-produção neste segundo semestre de 2006 com o nome provisório de A

Visita e que pretende investigar as relações entre a literatura e a música popular brasileira).

Mas a cineasta não deixa de lado o contexto social e político. Ao colocar a questão cultural em primeiro plano, o faz em relação à conjuntura econômica, política, etc. que se articula a esta questão.

Se considerar-se que em duas décadas – de 1975 a 1995 – predominou a questão das relações entre Estados Unidos e América Latina, incluindo o Bananas - concorda-se com essa idéia de um único filme que se mantém ao longo da vida dos cineastas.

Em relação à estética, essa idéia também se aplica, como se percebe nesta observação de Helena Solberg depois dela ter visto seguidamente seus filmes:

De repente, eu me dei conta que havia, sem eu ter jamais percebido, uma volta e uma insistência em certas imagens, em certos ângulos de câmera, em certas obsessões que escapavam. Filmes de assuntos diferentes, de repente, voltavam algumas coisas, eu pensei: Deus! Espero que ninguém tenha percebido. Eu mesma me dei conta disso porque eu estava assistindo um atrás do outro. Eu comecei a perceber umas insistências em algumas coisas, algumas obsessões com luz, com uma maneira de iluminar. Coisas que são suas, de cada um, muito especiais.

45

Esse estilo da cineasta, que está em plena maturidade profissional, resultará, ainda, inúmeros filmes de qualidade, tanto ficcionais quanto documentários. A parceria com seu marido, o produtor e cineasta norte-americano David Meyer, a retomada do cinema nacional com inúmeros mecanismos de incentivo, os contatos internacionais do casal, a liberdade política com que hoje os cineastas brasileiros podem trabalhar e a mudança para o Brasil certamente implicarão mais uma riquíssima safra em seu trabalho.

46

4 EDUARDO COUTINHO

Eu não faço para mudar o mundo, eu não faço porque sou assistente social, eu não faço porque eu quero sofrer, eu faço porque eu tenho prazer de fazer e, na verdade, nessa altura da vida, quando eu não estou fazendo documentário, nada mais me interessa. Eduardo Coutinho

FIGURA 2 - Eduardo Coutinho em entrevista à Mariana Tavares,

no escritório do cineasta no Cecip 4, centro do Rio de Janeiro, em 10.06.05.

4 O Cecip é uma organização não governamental (ONG) produtora de filmes e vídeos educativos e culturais que foi fundada em 1986. 47

4.1 Uma trajetória

Eduardo Coutinho nasceu na cidade de São Paulo, em 1933, e é filho do escritor e ensaísta Edilberto Coutinho. Na infância, foi um cinéfilo-mirim. A partir do momento em que atingiu idade suficiente para ir ao cinema sozinho, caminhava pelas ruas da cidade de

São Paulo para assistir aos programas duplos:

Eu fui cinéfilo fanático dos anos 43 a 52/53. Até que daí eu entrei numa escola de cinema. Passei a me interessar, descobri a cinemateca, eu comecei a me interessar por cinema. Não só como cinéfilo, mas comecei a me interessar pela história do cinema. O grande problema é passar de cinéfilo a fazer cinema. Coisa que era impensável no Brasil dos anos 40, começo dos anos 50.

Eduardo Coutinho estudou por dois anos na famosa escola francesa Instituto de

Altos Estudos Cinematográficos (IDHEC), em Paris, com bolsa do próprio Instituto 5. Suas primeiras experiências no cinema foram no campo da ficção. Nos anos 60, participou de alguns roteiros e dirigiu quatro filmes: “[...] o inacabado Cabra Marcado para Morrer

(1964), O Pacto, um dos três episódios de ABC do Amor (1966), o longa-metragem O

Homem que Comprou o Mundo (1968) e, já em 1970, Faustão, que veio a ser a última experiência de ficção que realizou (LINS, 2004, p.17).

Na década de 70, participou na elaboração de três roteiros de longas-metragens:

Os Condenados (1973), de Zelito Viana, Lição de Amor (1975), de Eduardo Escorel, e

Dona Flor e seus Dois Maridos (1976), de Bruno Barreto. Em 1975 foi convidado a trabalhar no Globo Repórter da TV Globo, onde descobriu sua vocação para o documentário:

Fiz ficção durante 10 anos. Quando larguei cinema fui para o Globo Repórter e foi lá que eu comecei a fazer documentário. Eu nunca tinha pensado em fazer documentário, sei lá por que e quando eu comecei a fazer lá, reportagem e documentário, eu realmente falei: “Pó! Era isso

5 Posteriormente, o IDHEC daria origem à FEMIS – a mais famosa escola de cinema da França, na atualidade. 48

que eu queria fazer na minha vida! E como eu sabia que se eu terminasse o Cabra ” (ele se refere ao filme Cabra Marcado para Morrer ) seria em forma documental, eu usei uns cinco anos do tempo que eu passei no Globo Repórter me preparando meio inconscientemente para fazer o Cabra.

Apesar da ditadura militar, cineastas que trabalharam no Globo Repórter na

época puderam atuar com relativa liberdade estética e de conteúdo, o que se tornou uma experiência única na televisão no período. Percebe-se nos filmes realizados para o programa o uso de planos-seqüências, câmera na mão, planos de dois minutos de duração dos entrevistados dando seus depoimentos (atualmente ninguém fala mais de 30 segundos no telejornalismo) e até mesmo a ficcionalização de acontecimentos históricos - elementos de linguagem que posteriormente seriam banidos do telejornalismo da emissora. A pesquisadora Consuelo Lins lembra que

o Globo Repórter estava conseguindo realizar uma experiência de documentário bastante singular. A equipe era formada por jornalistas, profissionais da própria televisão e vários cineastas, como Walter Lima Jr. e João Batista de Andrade, contratados da emissora, e Maurice Capovilla, Hermano Penna, Sylvio Back, Jorge Bodanski , entre outros, que eram convidados para dirigir alguns programas. Do cinema vinha também Dib Lufti, cuja experiência como câmera foi fundamental em muitos filmes do programa (LINS, 2004, p.19).

Coutinho fala dessa experiência, que representou uma rara oportunidade em sua formação, mais importante até que os anos em que estudou cinema em Paris:

Eu editava, eu fazia texto. Fiz uns seis programas 6 no Globo Repórter, grandes, de 40 minutos, sendo quatro no Nordeste. Foi uma escola extraordinária, apesar de todas as restrições de censura, de forma e de estética. E daí, eu fui fazer o Cabra e o Cabra tinha que ser documentário. E depois que eu fiz o Cabra não me interessou voltar a fazer ficção.

6 Seis Dias em Ouricuri (1976); Superstição (1976); O Pistoleiro de Serra Talhada (1977); Theodorico, Imperador do Sertão (1978); Exu, uma Tragédia Sertaneja (1979); O Menino de Brodósqui (1980).

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Cabra Marcado para Morrer definiu sua vocação para o documentário, afirmando-o nos cenários nacional e internacional 7 como um dos mais importantes documentaristas brasileiros. Isso em 1984, quando ele tinha 51 anos de idade. O filme tornou-se um marco no documentarismo nacional. Seu processo de realização em dois períodos distintos - 1964 e 1981 - resultou uma nova práxis , um novo jeito de fazer documentário. A partir deste filme, o cineasta realizou trabalhos para a TV Manchete e passou a ter mais possibilidades de financiamento para próximos trabalhos como Santa

Marta, Duas Semanas no Morro (1987) , Volta Redonda – Memorial da Greve (1989), O

Fio da Memória (1989), entre outros.

De Cabra Marcado para Morrer (1984) até o ano de 2005, quando realizamos a entrevista com Eduardo Coutinho, o cineasta havia realizado 15 documentários, amadurecendo suas questões em relação ao cinema e desenvolvendo um estilo único no documentarismo nacional. Isto sem falar nas experiências anteriores com ficção, totalizando cerca de 30 filmes realizados, incluindo-se as co-direções.

Encontramos um cineasta já maduro que, apesar de não escrever sobre cinema, pensa continuamente o cinema com um sentido crítico aguçado não só a respeito do que vê na televisão e nas salas de projeção, como também sobre seu próprio trabalho. Coutinho tem uma posição clara do que pretende com o documentário.

7 O filme recebeu importantes prêmios nacionais e internacionais como Tucano de Ouro (Melhor Filme), Prêmio da Crítica, Prêmio OCIC e Prêmio D. Quixote, I Festival de Cinema, Televisão e Vídeo do Rio de Janeiro – FestRio, 1984; Golfinho de Ouro do Cinema, Governo do Estado do Rio de Janeiro, 1984; Grande Prêmio, Cinéma du Réel , Festival Internacional do Filme Etnográfico e Sociológico de Paris, 1985; Prêmio do Júri Evangélico, da Crítica Internacional e da Associação Internacional de Cinemas de Arte XXXV Festival de Berlim, 1985; Prêmio Air France (1985). 50

4.2 Um cineasta que não faz concessão

Identificam-se nos documentários recentes de Eduardo Coutinho elementos do modo de representação interativo levantado pelo teórico Bill Nichols, uma vez que o cineasta interage com os entrevistados: intervém com perguntas, pontua, provoca, muitas vezes fazendo parte da imagem. Sua voz aparece, como ele mesmo diz, porque ninguém fala sozinho.

Seus filmes trazem também elementos da tradição do modo reflexivo, já que “o fazer fílmico” está presente. Como se aproxima de seus temas e como os focaliza são explicitados por ele geralmente no início de seus documentários.

Mas seus filmes apresentam elementos próprios ao cineasta, conseqüência dos dispositivos que ele criou para si - câmera que não sai do eixo, anulação da pesquisa sobre os personagens, utilização da luz ambiente, busca da auto-encenação dos entrevistados, realização das gravações num mesmo espaço geográfico e temporal, etc.

Como situar seu cinema? Tem elementos dos modos levantados, mas, antes de tudo, Coutinho é Coutinho. Desenvolveu um estilo único, um jeito de fazer que, mesmo em constante transformação, apresenta elementos recorrentes que se pode identificar em seus filmes, principalmente a partir do documentário Santa Marta, Duas Semanas no Morro

(1987). Trata-se de um ambiente marcado pelos primeiros-planos, pelos retratos falados, onde quem compõe esses retratos são os próprios personagens. A economia dos planos, da fotografia e da montagem tornou-se sua marca registrada. Não tem as “digressões visuais”, como ele gosta de chamar. Tampouco grandes manipulações na montagem.

É um cinema de três pólos, como situa Bill Nichols, na estrutura do documentário: num vértice, o cineasta com sua pergunta-indagação; no outro, o 51

personagem que se auto-encena; e completando a relação triangular, a câmera, cujo eixo não muda.

O cineasta propõe a continuidade de conteúdo em seus filmes por meio do fluxo verbal. Existe uma coerência que vai além dos planos, que transcende os cortes, provocando no espectador o desejo de seguir até o fim naquele ambiente de questões proposto pelo filme.

Ao ser econômico, e não perdendo tempo com a fotografia, seu cinema chama a atenção para o plano, que tem de se defender por si próprio, sem subterfúgios de iluminação, inserts , trilha sonora, sons incidentais, etc. Seus planos informam sobre onde estão as pessoas e seu ambiente sonoro são “instantâneos do momento”, como diz o cineasta. Ele filma o que está acontecendo no momento do encontro com os personagens e deixa isto claro, sem mascarar ou maquiar as situações.

O plano é rico dentro dele mesmo. Começa, desenvolve-se e encerra-se em si mesmo. Ao analisar esses planos, identifica-se essa coerência e, nesse sentido, pode-se dizer que a montagem em seus filmes também é interna aos planos.

A coerência se dá no fluxo verbal e também no interior de cada quadro. Ao evitar as oposições, as complementações, os contrastes, os grandes finais, as sugestões na montagem e a conotação, o cineasta vai na contramão do que pontua o teórico Bill Nichols, que defende a idéia de que os documentaristas fazem uso da retórica 8 para transmitirem seus pontos de vista. Certamente o teórico norte-americano não conhece o trabalho de

Coutinho. Mas o cineasta evita rigorosamente qualquer tipo de manipulação em favor de uma idéia prévia ou conteúdo. Ele abomina as conotações. Como ele mesmo diz, nada conota nada. Coutinho evita rigorosamente a retórica e a conotação para deixar em aberto

8 Pelo latim rethorica, eloqüência, oratória. Tradicionalmente, cinco são as partes do estudo retórico: a) a inventio ou descoberta de argumentos; b) a dispositio ou arranjo das idéias; c) a elocutio ou descoberta da expressão apropriada para cada idéia e que inclui o estudo das figuras; d) a memória ou memorização do discurso; e) a pronuntiatio ou apresentação oral do discurso para uma audiência (FERREIRA, 1999). 52

aos espectadores as questões que investiga. É um cinema quase “puro”, que remete ao que está sendo dito no instante de cada encontro com seus personagens. Nesse sentido, seus planos são autônomos. A unidade de seus filmes está nesses planos, onde a câmera raramente sai do eixo.

Pode-se dizer que a síntese de seus procedimentos está em Edifício Máster

(2002), no qual ele radicaliza seus dispositivos e os potencializa.

O cara que canta Frank Sinatra (ele se refere ao Seu Henrique que canta a canção My Way em Edifício Máster , 2002) se eu coloco ele em penúltimo lugar, ele bate o último. Se eu colocasse em último, o filme seria muito mais comercial. É porque ele deveria estar em último lugar que ele não entra em último, ele entrou no meio. E depois dele veio o quê? Um guarda que desce a escada. Nada tenta conotar. Ideologicamente, dramaticamente. [...] No resto, nunca é para conotar: agora vem um velho, agora um moço. Agora um alegre, agora um triste. Eu tentei ignorar inteiramente isso. E o filme resiste a essa loucura. Tem o ritmo da experiência e, na verdade, o público agüentou uma hora e cinqüenta de personagens montados sem conotação. É aberto, não é para dizer ”pense isso” 9.

Como diz Coutinho, esse procedimento de montagem está presente em praticamente todos os seus filmes. Os depoimentos em Edifício Máster foram praticamente montados na ordem em que foram filmados. O mesmo aconteceu em Babilônia 2000

(2001). O filme foi montado seguindo os horários em que foi filmado, sem quaisquer possibilidades de conotação. O cineasta chega a afirmar que odeia os documentários em mosaico em que se corta de um personagem para outro para dizer o que o espectador deve pensar. Para Coutinho, o personagem vira uma peça de engrenagem, o filme acaba utilizando, num pedaço da entrevista, uma parcela do que o personagem queria dizer: você acaba destruindo o personagem porque ele não existe fora da conexão da montagem. Ele entra ali dizendo aquela fala que é um trecho de uma fala gigantesca e que tem o antes e o depois. De repente, o pensamento dele pode ser totalmente distorcido.

9 Edifício Máster foi o filme de Coutinho que mais sucesso fez desde Cabra Marcado para Morrer . Ganhou o prêmio de melhor documentário no Festival de Gramado, no qual teve sua primeira exibição pública em agosto de 2002. Ficou vários meses em cartaz e atingiu um público de aproximadamente 85 mil espectadores (LINS, Consuelo 2004). 53

4.3 Os dispositivos de Eduardo Coutinho

O processo em Eduardo Coutinho é determinante. Ele cria para si métodos próprios, procedimentos que ele batizou de “dispositivos”. A palavra está relacionada à disposição, ordem, prescrição (FERREIRA, 1999). Seus filmes são fruto desses procedimentos, tão decisivos quanto os temas abordados e as pessoas com as quais conversa.

Esses dispositivos variam de um filme para outro, mas existem aqueles que se mantêm em seu trabalho, principalmente a partir de Santa Marta, Duas Semanas no Morro

(1987), quando o cineasta começou a se aproximar de uma síntese formal e de conteúdo em seus trabalhos.

Em seus documentários, Coutinho expõe de forma genérica alguns desses procedimentos, como nesse exemplo logo no início de Edifício Máster (2002): um edifício em Copacabana a uma esquina da praia; 276 apartamentos conjugados. Uns 500 moradores; 12 andares; 23 apartamentos por andar. Alugamos um apartamento no prédio por um mês. Com três equipes filmamos a vida do prédio durante uma semana.

Nesse exemplo, há dois dispositivos essenciais: a prisão espacial – trabalhar em espaços geográficos limitados, nesse caso, o espaço interno do próprio Edifício Máster - e um tempo definido para as filmagens – uma semana. Voltaremos a falar sobre eles ainda neste capítulo.

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• A predileção pelos pequenos temas

O cineasta tem predileção pelos pequenos temas: os moradores de uma favela, as pessoas que vivem do lixão, como vivem idosos em um povoado no interior da Paraíba, a vida num edifício de classe média no bairro de Copacabana no Rio de Janeiro.

Mas, antes de tudo, seu documentário está centrado nas pessoas anônimas.

Principalmente no que existe de diferente, de peculiar em cada indivíduo. É por isso que ele abomina as classificações sociológicas, as categorizações segundo as quais determinadas pessoas são típicas da classe média, do Nordeste brasileiro ou do operariado: quando você procurou o típico, você matou o singular que tem a pessoa. Simbolicamente você assassinou a pessoa e a relação. Todas são de alguma forma típicas. Tem que tentar o que está debaixo do típico . Que é aquilo que é singular ou que ela pensa que é singular.

Coutinho investiga as histórias de vida das pessoas, seu dia-a-dia, como foram parar ali, o que sentem em relação à solidão, de acordo com o tema de cada filme. Mas, como lembra Consuelo Lins, ele evita as perguntas que suscitem nos entrevistados opiniões sobre temas como política, economia, movimentos sociais, etc., o que para

Coutinho propicia falas pré-fabricadas, sem força e afasta a possibilidade de as pessoas se imporem de forma mais pessoal.

O cineasta costuma se referir ao sociólogo francês Pierre Bourdieu, que diz que a coisa mais importante na vida de um ser humano é ser ouvido, escutado, legitimado, justificado. E isso, nas palavras de Coutinho, vale para qualquer pessoa: qualquer um tem necessidade disso. As pessoas vivem pelo outro. Ninguém diz: eu sou um gênio e basta. É preciso ser justificado pelo outro. E ele pode ser justificado, legitimado enquanto favelado, ladrão ou presidente. 55

Este é, sem dúvida, um dos fatores do jogo que se estabelece entre o cineasta, a câmera e os personagens com os quais conversa. A câmera de Coutinho legitima essas pessoas, no sentido de dar-lhes autenticidade.

Seus documentários compõem o retrato dessas pessoas a partir de uma cumplicidade que se estabelece entre cineasta e personagem. É uma via de mão-dupla, onde o personagem se inventa, numa espécie de auto mise-en-scène a partir das provocações, indagações de Coutinho: todos são pessoas que se narram bem (SALLES,

2004, p.9).

E por isso mesmo, por se auto-encenarem ou se “autofabularem”, elas se tornam personagens. Coutinho as deixa à vontade. Ficam no ambiente que preferirem em suas casas. Livres, elas podem se auto-encenar, numa mistura, segundo o diretor, de teatro e verdade:

Ela conta como gostaria de ser vista por mim e talvez pelo público ou pelos outros, se é alguém de outra classe social em geral. Como ela gostaria de ser e, de repente, na fimbria disso, aparece como de fato ela é. O fato de que uma pessoa faça teatro para a câmera não tem nada de mau. Porque, na verdade, ela se revela fazendo teatro. Todos nós desempenhamos papéis sociais.

Para Coutinho, a função do documentário não é ensinar fatos históricos, o que cabe, segundo o cineasta, ao jornalismo. Para ele, o documentário deve tratar outros temas nos quais a questão da mentira e da verdade passa a ser secundária.

• À procura do momento mágico

A partir das auto-encenações dos personagens durante as entrevistas ou conversas, como ele gosta de chamar, o cineasta busca obter o que ele chama de “momento mágico ” - momento em que quem ele entrevista vai formular, pela primeira vez, um raciocínio que é fruto desse encontro com o cineasta e sua equipe: 56

O que eu quero sentir e que o público possa sentir, de uma forma vaga, é que aquilo que ela diz nunca foi dito antes, nunca será dito depois, independente se isso é verdade ou não .[...] E quando acontece essa coisa maravilhosa, de uma coisa que nunca foi dita daquela forma, porque a forma é essencial, não só o conteúdo, é uma coisa que eu estou dando para ela, porque ela vai dizer a coisa pela primeira vez e ela está dando para mim, sem ela eu não tenho o filme. É uma troca nesse nível.

Para obter esses momentos mágicos, o cineasta lança mão dos dispositivos que serão abordados de forma mais detalhada, a seguir.

• Primeiro dispositivo: a recusa da pesquisa

O primeiro é não fazer pesquisa sobre as pessoas que se vai entrevistar . Eu não faço as pesquisas, eu não conheço a pessoa que eu vou filmar. Eu vi em vídeo, ela não sabe o que eu vi direito, então quando ela me conta uma história, ela me conta como se fosse a primeira vez.

A questão da primeira vez é essencial.

Quem faz a pesquisa é a equipe do cineasta, já que por questões de cronograma e orçamento é impossível fazer documentário sem pesquisa prévia. Portanto, sua equipe faz um levantamento inicial, sem a presença do cineasta, das possíveis pessoas que possam render falas interessantes. A pesquisadora Consuelo Lins comenta que nas pesquisas para

Edifício Máster, das quais ela participou, a equipe ficou surpresa quando, diante das dificuldades em encontrarem pessoas interessantes, o cineasta indicou que fizessem perguntas de opinião, contrariando um de seus princípios, que é evitar esse tipo de pergunta - o que acabou não funcionando. Isso mostra que seus dispositivos são flexíveis e se adaptam às diferentes situações. Em Edifício Máster (2002), por exemplo, sua equipe realizou as entrevistas prévias nas duas semanas que antecederam as gravações.

As informações extraídas das entrevistas prévias servem de “pistas” que podem conduzir determinados momentos da conversa que será empreendida por Coutinho, como: 57

“fulano perdeu a mãe”, “é evangélico”, “fulana é garota de programa”, etc. Essas pistas norteiam a conversa do cineasta com seus personagens, que é aberta e muda de acordo com os conteúdos que ele obtém das pessoas. A esse respeito Consuelo Lins esclarece:

É essa concepção de cinema que faz Coutinho desconsiderar radicalmente a feitura de roteiros, prática que, para ele, desvirtua esforços e corrói o que mais preza no documentário: a possibilidade de criação de algo inesperado no momento da filmagem, e só ali . O documentário que interessa não reflete nem representa a realidade e muito menos se submete ao que foi estabelecido por um roteiro. Trata- se, antes, da produção de um acontecimento especificamente fílmico, que não preexiste à filmagem . Nas obras de Coutinho o mundo não está pronto para ser filmado, mas em constante transformação e ele irá intensificar esta mudança (LINS, 2004, p.12) - (grifo nosso).

É o “gesto cinematográfico” por excelência, em que a capacidade do diretor em criar, provocar um acontecimento norteia o processo de criação. Essa posição frente ao documentário tem suas raízes ao final dos anos 50, com o surgimento do equipamento portátil – câmeras de filmar de 16mm e gravadores de som sincronizados à imagem. A portabilidade do equipamento e o sincronismo imagem-som deram agilidade às equipes de filmagem, possibilitando a aproximação mais dinâmica da realidade, “surpreendendo” os acontecimentos e até provocando-os. E é justamente com o advento do som direto que

Eduardo Coutinho vai passar a se interessar pelo documentário.

• A busca pelos instantes únicos

Coutinho persegue os instantes únicos, quando a presença da equipe provoca certo tipo de ação ou fala que dificilmente poderia acontecer em outro momento:

Isso é real. O resto pode ser tudo mentira. O que a pessoa fala pode ser mentira. O real é que num certo dia, uma câmera, uma equipe de cinema e uma ou mais pessoas do outro lado tiveram um diálogo ou uma ação , mas em geral é diálogo mesmo e que aquilo é um momento . E a força dele é de ser aquele momento. O drama está no ato de filmar.

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Essa concepção vai nortear sua produção documental. A construção fílmica vai estar no momento da filmagem , no que pode resultar desse encontro único entre cineasta e pessoas anônimas. Esta é a base de seu cinema documental a partir desse período.

• Segundo dispositivo: a prisão espacial

O segundo dispositivo é fazer filme num lugar só , o que ele chama de prisão espacial . O cineasta define um espaço geográfico onde realiza as entrevistas e as filmagens adicionais. O tema do documentário se relaciona diretamente com o lugar. Por exemplo: as pessoas que vivem do lixão em uma favela carioca ou a vida num edifício de classe média em Copacabana:

Quando eu posso, eu faço filme num lugar só, mas num lugar pequeno, pode ser um prédio, se é um filme numa favela, se for a Rocinha não me interessa: lá tem 100 mil pessoas, 60 mil pessoas, já é complicado. [...] Essa comunidade que eu filmei (Sítio Araçás no Sertão da Paraíba, para “O Fim e o Princípio”, 2005) se parece com o Máster ( Edifício Máster , 2002), porque lá tem 400, 500 pessoas, se você tira as crianças sobram 200, 300 habitantes. Quer dizer, tem um mínimo de massa crítica para poder tirar os personagens.

E chega a radicalizar no dispositivo da “prisão espacial” ao expressar o desejo : o meu sonho um dia é fazer um filme numa casa só, com uma família ou ainda fazer um filme com um personagem só. 10

Para o cineasta, maior a limitação geográfica, maior é a liberdade do autor: eu podia dizer limite, limite espacial. Posso chamar de prisão, que é uma forma de humor negro para falar. Mas sabe o que é bacana da prisão? Se eu escolhi aquela prisão parece que é uma limitação. Mas nessa limitação que eu criei, eu sou absolutamente livre.

10 Em 1978, Eduardo Coutinho realizou o filme Theodorico, Imperador do Sertão, sobre um único personagem: o general Theodorico Bezerra, latifundiário do Nordeste. O documentário foi feito para o Programa Globo Repórter da Rede Globo. (LINS, 2004, p.22). 59

Ao escolher suas prisões espaciais, o cineasta tem a liberdade de fazer o filme que deseja sem correr o risco de sofrer a interferência de um possível patrocinador, de pessoas que não tenham sido escolhidas para as entrevistas, etc. As expectativas externas em relação ao filme são reduzidas, o que lhe dá enorme liberdade de atuação:

Negócio do prédio em Copacabana. Um filme que só tem gente falando, não tem nenhuma imagem da praia (Ele se refere a Edifício Máster ). Eu estou inteiramente livre, eu não devo contas a ninguém, entende? Isso me dá um prazer. Só tenho forças para filmar se for partir disso.

O cineasta se mantém nessa limitação geográfica, chegando a se recusar a entrevistar quaisquer personagens que estejam fora dela, mesmo correndo o risco de perder um grande personagem. O desafio é descobrir no lugar 10, 15 personagens potenciais. Se não descobrir, não tem filme. Um risco assumido pelo diretor.

• Terceiro dispositivo: delimitação do espaço temporal

O terceiro dispositivo é um tempo definido para a filmagem e que está ligado a um plano de orçamento . Durante esse tempo - que pode ser de uma semana, de um dia, um mês - o cineasta realiza as entrevistas e filma as imagens adicionais que poderão compor seus filmes. Santa Marta, Duas Semanas no Morro (1987), como o próprio nome indica, foi filmado em duas semanas , Babilônia 2000 (2001) em dois dias 11 , Edifício Máster

(2002) em uma semana, “O Fim e o Princípio ” (2005) em um mês.

Há também os documentários que ele filma por etapas, como Boca de Lixo

(1992), em que acompanhou mudanças na vida das pessoas que vivem do lixão, como nascimentos, mortes, etc.

11 O documentário simula que as filmagens foram feitas em um dia - na passagem de 2000/2001 - mas, segundo o próprio diretor, foi filmado também no dia três de janeiro, totalizando dois dias. 60

• Conversa é uma negociação de desejos

Nas conversas que Eduardo Coutinho propõe aos entrevistados, há o desejo do entrevistado e o desejo do cineasta. Como é recorrente nas entrevistas, o entrevistado quer contar histórias, expressar idéias que, muitas vezes, não vão ao encontro do tipo de informação que o cineasta deseja obter. É preciso, então, nas palavras de Coutinho, encontrar um modo de operar até o momento em que os desejos possam coincidir: conversa

é uma negociação de desejos. Ele pode ter desejo de contar várias histórias, de construir um personagem que eu posso não gostar. Por que pode ter exibicionismo que é ruim, que é arrogante.

E posso gostar.

Nesse jogo, o cineasta oscila entre uma postura passiva e outra ativa. Avança e recua. Em alguns momentos, chega a ser seco, quase agressivo, na tentativa de incitar o outro. Para Coutinho, nada está dado e, para tentar compreender as razões do outro, é preciso ser quase como uma criança de seis anos que tudo interroga:

Você tem que ser extremamente passivo e extremamente ativo. Feminino e masculino. Idealmente, além de ser bissexual do ponto de vista psicológico, o ideal, se você for extremamente extraordinário nisso, é ser criança de seis anos. Aquele que tudo o que você diz, ela diz: Como? Por que? Por que você disse isso? Qual o sentido disso? Como? Por que?

Nesse contexto, o cineasta frisa a importância dele (diretor) conseguir suportar o silêncio que às vezes se instala durante uma entrevista, quando se aborda um assunto que pode ser delicado para o entrevistado. A partir desse silêncio, a pessoa com a qual conversa tem que formular uma resposta. Pelo silêncio é possível saber como ela sai do fundo do poço, de uma situação limite em sua vida. Se o diretor entrar diante da câmera e chorar junto com a pessoa, a possibilidade de ele saber como ela sairia do ”fundo do poço” está 61

liquidada. É preciso suportar o silêncio constrangedor para ter a possibilidade de uma boa resposta.

• Quarto dispositivo: a câmera em posição fixa

O quarto dispositivo é trabalhar com a câmera em posição fixa diante das pessoas, sem mudar o eixo. O enquadramento pode variar do close ao plano mais aberto, mas o eixo da câmera dificilmente muda. Esse dispositivo se radicalizou a partir de Santo

Forte (1999) e passou a ser uma constante em seu trabalho e é decisivo para o quinto dispositivo que se relaciona à montagem.

• Quinto dispositivo: o corte descontínuo

O quinto dispositivo é o corte descontínuo . Coutinho corta seco da pessoa para ela mesma ou para outra, sem usar fusões ou qualquer outro tipo de transição. Ao assumir o corte, revela mais uma vez ao espectador seu processo, neste caso, o de montagem. Vale lembrar que esse tipo de montagem é evitado pelo telejornalismo, que normalmente recorre ao insert 12 para não cortar da pessoa, para ela mesma ou para outra, procedimento que ele abomina: você sai de uma situação de vida e vai para o insert. E o que eu odeio também, além da deselegância disso e de ser desnecessário, é que esse insert pode ter sido filmado dois anos depois.

Não tem aquela coisa do tempo, que é essencial. Eu filmo as coisas que estão acontecendo naquele momento .

Ao cortar descontínuo, o cineasta percebeu que a continuidade se mantinha pelo fluxo verbal. Apesar da evidência de descontinuidade na imagem, o espectador aceita

12 Procedimento no telejornalismo onde planos detalhes da cena (mãos do entrevistado, cinzeiro, etc.) são usados para “aliviar” os cortes da entrevista. 62

o corte porque ele utiliza planos de mais duração temporal - que podem variar de 20 segundos até quatro minutos, aproximadamente. Como são planos maiores, o corte não fica deselegante.

No plano sonoro, o diretor chama a atenção para o fato de que acaba existindo uma continuidade, seja ela ideológica ou mesmo do corpo sonoro . Daí a sensação de harmonia em sua montagem. Eduardo Coutinho utiliza a expressão “tudo monta” para se referir a esse dispositivo : por isso que o plano mais afastado é complicado, onde o corte é realmente, desagradável.Fora disso, você tem uma cabeça que se mexe,`tudo monta´, é extraordinário.

• Sexto dispositivo: os personagens se constroem pela fala

O sexto dispositivo é trabalhar na montagem, com personagens que se constroem pela fala . Às vezes tem ações, mas essa estrutura se dá basicamente pela fala. O cineasta ignora, num primeiro momento, as seqüências visuais. Essas seqüências virão depois, no processo de montagem. De vez em quando, monta as ações, mas, basicamente, começa o processo de montagem pelas falas dos personagens. São personagens cujas falas têm 30, 20 minutos, até serem reduzidos a tempos menores - um, dois, sete minutos. Um processo trabalhoso, no qual ele ouve a opinião da montadora Jordana Berg, de pessoas que o cercam e faz, eventualmente, projeções de copiões 13 : porque a gente fica tão dentro que não consegue mais ver de fora, entende?

13 Material bruto filmado, sem as reduções do processo de montagem. 63

• A preocupação ética

Ainda na montagem, outro tópico importante é a preocupação ética com o entrevistado. Para ele, não interessa tanto o que o intelectual vai achar dos personagens e sim como a comunidade da qual eles fazem parte irá percebê-los no filme. Se uma pessoa perde o emprego por causa do que disse no documentário, é ruim. Se ficar desmoralizada na comunidade, é ruim: eu não posso prejudicá-lo na comunidade onde vive.

Se há algum risco de um depoimento prejudicar eticamente o entrevistado,

Coutinho o suprime, mesmo sendo um grande depoimento:

Isso é uma corda bamba: o que você tira, o que você põe. Em documentário, é fundamental que se leve em conta a ética. A ética é uma estética. [...] Não tem manual para isso. Não tem nenhum manual dizendo. Cada caso é um caso. Você tem que conhecer o ambiente que você filmou, a pessoa que você filmou e ter certeza que deve ser feito isso ou aquilo e nunca você tem certeza absoluta.

• A utopia de estar “vazio” em relação ao outro .

Por ”estar vazio” Coutinho entende uma postura em que o cineasta esteja

”desarmado” em relação ao outro. Ele não está ali para julgar o outro e sim para conhecer suas razões e tentar entender por que ele tem essas razões :

Significa que você tem que ser preenchido pelo outro e aí tem um lado feminino e masculino. Porque não basta, se você ficar inteiramente vazio, se você não provocar com questões. Você pensa que é ficar na frente da pessoa e esperar que ela faça uma coisa maravilhosa? Tem o outro lado que é o lado mais agressivo, ativo.

Implacável consigo mesmo, acentua:

A todo o momento eu posso falar no momento errado, calar no momento errado e, quando falo, posso fazer a pergunta errada. A todo o momento quando eu estou montando, eu vou vendo os erros que faço. Quando eu 64

vejo o filme decupado, eu começo a ver o que eu filmei, eu xingo o fotógrafo um pouco, mas eu xingo muito mais a mim mesmo.

Coutinho chama a atenção para a singularidade de cada projeto de documentário e de como esses procedimentos devem variar de acordo com cada diretor: são dispositivos que cada um tem que armar para si , cada filme é diferente um do outro, para mim, é o que eu escolhi.

65

5 WALTER CARVALHO

A luz da fotografia só ilumina a superfície do objeto, é impossível penetrar no seu substantivo. Quando se faz um filme, na minha cabeça, eu acho que é necessário se descobrirem as camadas do objeto. O objeto tem várias camadas e a luz só penetra na superfície. Walter Carvalho

FIGURA 3 - Walter Carvalho durante a entrevista concedida à Mariana Tavares, na

residência do cineasta no Cosme Velho, RJ, em 09/06/05.

66

5.1 Walter Carvalho e o documentário

Walter Carvalho nasceu em João Pessoa, na Paraíba, em 1947. Irmão mais novo do documentarista Wladimir Carvalho ( O País de São Saruê, 1971), foi através dele que teve o primeiro contato com uma equipe de filmagem, acompanhando o irmão quando ainda era garoto. Essa experiência se deu dentro do chamado ciclo do documentário paraibano ainda nos anos 60, que revelou para o país talentos como Wladimir Carvalho,

João Ramiro Melo, Ipojuca Pontes e Linduarte Noronha.

Em 1968, Walter Carvalho mudou para o Rio de Janeiro e prestou vestibular para a Escola Superior de Desenho Industrial, onde se formou em Programação Visual.

Começou a se exercitar em fotografia fixa e a participar de várias exposições.

Seus primeiros trabalhos como fotógrafo cinematográfico datam do final dos anos 70 em filmes como: Que País é Este? 1977, de Leon Hirszman e Sargento Getúlio, realizado entre os anos de 1978 e 1983.

São desse período suas primeiras experiências na direção, com três curtas documentais filmados em 16mm pelo próprio Walter Carvalho: MAM S.O.S. (1978), sobre o incêndio do MAM do Rio de Janeiro; outro sobre a desativação da região do MAM, que era uma área famosa de prostíbulo no Rio de Janeiro; por fim, outro sobre a derrocada do prédio da UNE. Estes dois últimos ficaram inacabados: sempre fui deixando meus projetos para depois, não só por uma questão de sobrevivência, como de ser fotógrafo dos filmes que eu queria fazer, filmes dos amigos, filmes que eu tinha interesse.

A partir daí, sua carreira como fotógrafo deslanchou e ele passou a fotografar filmes documentários, ficções, comerciais para TV, programas especiais para a TV

Manchete, minisséries e novelas para a Rede Globo de Televisão, tornando-se um dos fotógrafos mais requisitados do audiovisual nacional. 67

Nesses 30 anos de atuação, sempre manteve forte ligação com o documentário, fotografando trabalhos que marcaram época, como Igreja da Libertação (1985), de Sylvio

Da-Rin; Terra para Rose (1988), de Tetê Moraes; Que bom te ver viva (1988), de Lúcia

Murat; as séries América e Blues , ambas de 1989, realizadas por João Moreira Salles para a

TV Manchete; Notícias de uma guerra particular (1999), também de João Moreira Salles em co-direção com Kátia Lund, entre outros.

E é também no documentário que se dá sua primeira experiência na direção de longas-metragens, com o premiado Janela da Alma (2001), um filme sobre o olhar, feito em co-direção com o amigo e cineasta João Jardim. O filme foi, inclusive, a maior bilheteria de documentário nacional na época de seu lançamento, em 2002, atingindo cerca de 135.000 espectadores 14 .

Dois anos depois, realizou, também em co-direção, desta vez com Sandra

Werneck, , O tempo não pára (2004), longa-metragem ficcional que percorre a biografia do astro da geração do rock nacional dos anos 80.

A terceira experiência acontece novamente no documentário com Moacir, Arte

Bruta (2005), um retrato do cotidiano do artista plástico esquizofrênico Moacir, que vive na Chapada dos Veadeiros, em Goiás.

Ao contrário de Eduardo Coutinho, que em quase 50 anos de carreira dirigiu cerca de 30 filmes, já tendo um estilo definido como documentarista, a carreira de Walter

Carvalho como documentarista e cineasta é recente. Mas traz na bagagem toda sua vivência como fotógrafo de cinema e como fotógrafo de imagens fixas, paixão primeira, que move toda a sua criação, como expressa o cineasta João Moreira Salles:

A fotografia atende a uma necessidade que é profunda em Walter, diria até primordial: o desejo de guardar um registro do mundo. Muitas pessoas escrevem diários. Walter fotografa. [...] As fotografias são uma

14 Dado obtido em conversa telefônica de Mariana Tavares com João Jardim em junho de 2005. 68

espécie de crônica visual dos lugares por onde passou, das pessoas que viu, de tudo o que observou (SALLES, 2005, p.8).

5.2 Da influência de Cartier-Bresson à experimentação

Quando começou a fotografar, nos anos 60, a grande influência em sua formação foi do fotógrafo francês Henri Cartier-Bresson (1908-2004), “pai espiritual da maioria dos fotógrafos do planeta” 15 , nas palavras de João Moreira Salles.

A percepção do instante ideal para o disparo da câmera, os instantâneos de pessoas em movimento em locais públicos, um tom romântico nas imagens captadas, a elegância, o enquadramento inusitado e o senso de geometria estão entre os elementos que aproximam Walter Carvalho do mestre francês, como comenta o próprio cineasta:

Quando eu comecei a fotografar, eu tinha uma relação muito próxima daquele tipo de reflexão de Cartier-Bresson. Quantas vezes saí de casa tentando fazer um “Bresson” na rua! [...] Hoje eu não vejo a fotografia dessa forma. Mas seguramente, isso foi uma coisa muito importante na minha formação de fotógrafo.

15 Catálogo já citado sobre a exposição Walter Carvalho: Fotógrafo. p 5. 69

FIGURA 4 - Fotografia de Walter Carvalho, Praia de Pernambuco, Guarujá-SP, 1969.

Fonte: Catálogo da Exposição: Walter Carvalho, Fotógrafo. Instituto Moreira Salles. SP.

Aos poucos, sua fotografia foi se distanciando do mestre francês, como na série

Matadouro público 16 , com fotografias em preto e branco contrastado, do ritual do abate de bois em diferentes matadouros do país, realizadas ao longo de 30 anos. São fotos com detalhes e planos mais abertos dos diferentes momentos do abate, apresentando a realidade crua da morte desses animais.

16 Esta série integra a exposição Walter Carvalho, Fotógrafo , já citada. 70

FIGURA 5 - Uma foto da série Matadouro público.

Fonte: Catálogo da Exposição: Walter Carvalho, Fotógrafo. Instituto Moreira Salles, SP.

Outro elemento importante em sua criação é a influência das artes plásticas.

Além da formação como gráfico-design no curso da Escola Superior de Desenho

Industrial, onde aprendeu a trabalhar com a representação da imagem no plano bidimensional, Walter Carvalho mantém o hábito de desenhar. Não são desenhos feitos para expor. São esboços, desenhos de observação que o artista realiza como um exercício constante: para não ficar só trabalhando com a questão da iluminação , segundo ele.

Suas imagens tanto no cinema como nas fotografias fixas trazem um algo a mais. Uma narrativa (SALLES, 2005) que remete a outros lugares, a outros personagens, outras situações. São imagens que levam à reflexão.

Talvez esse desejo de narrar presente em suas fotografias tenha feito dele um diretor de cinema. E mesmo quando fotografa filmes de outros diretores, seu trabalho também não se limita ao ofício de fotografar, ele chega a ser quase um co-diretor: eu 71

sempre participo da direção, eu não consigo ser só um fotógrafo, eu vou além: eu contribuo, eu ajudo, eu descubro, eu me interesso, não fico só na minha área.

Os espaços abertos e os grandes vazios são também recorrentes em seu trabalho. E um dos elementos que mais surpreende é sua versatilidade. Walter Carvalho é um fotógrafo que corre riscos. É capaz de dar um banho a menos na revelação do negativo de Madame Satã (2002), de Karim Aïnouz, para obter a luz tênue do bairro boêmio da

Lapa no Rio de Janeiro dos anos 30. De retirar a lente do plano focal do filme, alterando a perspectiva dela e o foco, para poder se aproximar da imagem abstrata que uma pessoa míope tem quando tira os óculos ( Janela da Alma) .

Sua versatilidade e experimentação originam imagens tão variadas quanto são os filmes contemporâneos brasileiros. Elas vão dos grandes planos filmados em cinemascope em Central do Brasil (1997), de , ao colorido saturado e os vazios nos céus em América; da granulação do preto e branco em Terra Estrangeira à expressividade das sombras em Lavoura Arcaica (2001), de Luís Fernando Carvalho. São estéticas tão variadas que muitas vezes surpreende ler seu nome nos créditos finais dos filmes.

Suas imagens estão submetidas à dramaturgia fílmica, estão a serviço da história a ser contada. Para ele, a fotografia é um recurso, um suporte, uma ferramenta do cinema. Você se utiliza da montagem, do roteiro, do argumento, dos atores, do som para o seu discurso cinematográfico.

72

5.3 A imagem no documentário de Walter Carvalho

O processo de criação em Walter Carvalho é menos rígido se comparado com os dispositivos de Coutinho. Nas suas palavras, o cinema documentário de Coutinho, ele é muito claro na sua postura, principalmente nesses últimos filmes: é de ser a palavra . O

Coutinho se baseia, se segura e se sustenta na palavra. A palavra é mais forte que a própria imagem.

Mas há um ponto em comum no trabalho dos dois cineastas: a importância do plano dentro do filme, que se manifesta de forma diferenciada em cada um. Se, em

Coutinho, o plano insere um conteúdo próprio, como uma unidade autônoma dentro do filme, em Walter Carvalho sua representação como síntese estética será essencial - influência direta e clara de seu trabalho como fotógrafo. Essa importância do plano fica clara nesse depoimento de Walter Carvalho para o site de Crime Delicado (2005), longa- metragem de Beto Brant, cuja fotografia é assinada por ele:

Segundo Jean-Luc Godard, uma questão fundamental no cinema reside exatamente na questão – onde e por que começar um plano e onde e por que terminá-lo. Portanto, o plano é o fundamento principal do cinema. Os planos são construídos na câmera e, depois, reconstruídos na montagem. Como na Engenharia, pedra sobre pedra, colocada uma a uma formando um todo. [...] Não se pode retirar uma sequer. 17

A importância do plano transparece também no novo documentário de Walter

Carvalho, Um Filme de Cinema , que ele vem realizando há quatro anos, de forma independente, mas com ajuda, na produção, de alguns amigos produtores. Nele, o fotógrafo vem se debruçando sobre planos que foram excluídos do processo de montagem tanto em filmes fotografados ou dirigidos por ele, como nos de outros diretores, como o polonês

Andrzej Wadja. Embora tenham sido excluídos da montagem final dos filmes, esses planos

17 Palavras de Walter Carvalho para o site do longa-metragem Crime Delicado (2005), de Beto Brant, que ele também fotografou. Em: www.dramafilmes.com.br 73

têm valor: seja do ponto de vista plástico (estético), da atuação do ator ou da importância dramatúrgica da narrativa dentro do próprio plano.

Walter Carvalho percebeu que poderia juntar esses planos dos mais variados filmes e montar uma história a partir deles. Além disso, vem também recolhendo entrevistas com cineastas e pessoas que não são ligadas diretamente ao cinema, como o dramaturgo e romancista paraibano , que lhe contou histórias de sua infância relacionadas ao cinema.

Carvalho vem se beneficiando do próprio tempo e do trabalho como homem de cinema para realizar esse documentário que reflete sobre o próprio cinema . Ele vai incorporando novas pessoas que encontra ao longo de suas viagens a trabalho. Entrevista essas pessoas e lhes pede planos que tenham sido excluídos de seus filmes. Por isso mesmo, o documentário está sendo feito em várias bitolas, de acordo com o equipamento que tem em mãos, no momento: já filmei em super 35, em 35mm, em 16mm, já filmei com vídeo. Tem uma seqüência que eu estou tentando resolver o que eu vou fazer com a fotografia. Fotografia estática.

Percebe-se também nesse processo o grande envolvimento do cineasta com seu ofício: uma relação muito carinhosa, um filme sobre a afetividade de uma pessoa com relação à sua própria atividade.

Fica clara também a necessidade de se conhecer o tema a ser investigado, de intimidade, familiaridade com o assunto a ser abordado no documentário. Nas palavras de

Walter Carvalho, é como se eu virasse a câmera dentro do próprio cinema. Pode-se, ainda, perceber na proposta de Um Filme de Cinema o grau de maturidade do cineasta em relação ao seu ofício. Trata-se de um fotógrafo e cineasta que percebe as imagens muito além da questão técnica, estética ou de registro. O que não está aparente é que interessa. 74

É um filme que atua nos modos reflexivo e ao mesmo tempo poético. Dentro dos modos de representação apontados por Bill Nichols, o reflexivo chama a atenção para as hipóteses e convenções que regem o cinema documentário. Aguça nossa consciência da construção da representação da realidade feita pelo filme (NICHOLS, 2005, p.63) .

Mas, ao exercer essa reflexividade, Walter Carvalho a faz também de maneira poética, que enfatiza as associações visuais, qualidades tonais ou rítmicas, passagens descritivas e organização formal, como lembra Bill Nichols (NICHOLS, 2005, p.62).

Reflexividade e poesia também estão presentes em Janela da Alma , um documentário sobre o olhar – tema, mais uma vez, caro ao cineasta.

5.4 Janela da Alma : poesia e reflexividade a serviço do olhar

Janela da Alma (2001) é, ao lado de Pelé Eterno, o documentário de maior público na produção recente brasileira. O argumento é do cineasta João Jardim, que convidou Walter Carvalho para o projeto. A idéia inicial era fazer um filme sobre a miopia , problema de vista comum aos dois diretores. Na pré-produção do filme, eles entrevistaram várias pessoas que pudessem contribuir para o assunto, incluindo o oftalmologista dos dois.

Outras entrevistas se sucederam, tendo a visão como mote: a visão do ponto de vista da

Física, da poesia, etc.

Os diretores também fizeram um levantamento inicial de várias pessoas que usavam óculos e tinham elevado grau de miopia, como Woody Allen e Jô Soares - que também poderiam ser entrevistadas nessa primeira etapa. Durante esse processo, o foco do trabalho foi se modificando:

75

O que é curioso é que durante esta pesquisa, nós começamos a descobrir que não era um filme sobre a miopia. Começamos a descobrir que estávamos falando do olhar . Quando menos esperamos, estávamos especulando a questão do olhar . Daí a frase quando lançamos o filme: “Um filme sobre o olhar.” Porque se tornou mais abrangente, mais interessante, falar do olhar do que da visão especificamente. Senão a gente, provavelmente, ia cair num didatismo ou talvez num academicismo, não sei. E ao mesmo tempo em que ficou mais abrangente , ao mesmo tempo o tema ficou mais abstrato.

A partir desta reflexão de Walter Carvalho, percebem-se dois traços importantes em seu processo de criação: primeiro, ele não trabalha com um tema fechado.

Assim como no processo de Um Filme de Cinema , a mudança do tema da visão para o olhar em Janela da Alma aconteceu ao longo do processo de realização do filme.

Outra característica é sua inclinação, em documentário, para temas abertos e abstratos, não vinculados a espaços geográficos, ao contrário de Eduardo Coutinho, que trabalha com os pequenos temas dentro de suas prisões espaciais.

A respeito de Janela da Alma , Walter Carvalho ainda conclui: então o filme nasce disso, de uma idéia que se desenvolve com um outro tipo de abordagem e resulta no filme. É curioso como o filme atinge um público enorme como documentário.

O filme tem uma bela fotografia e depoimentos extremamente poéticos de um elenco de intelectuais, artistas, pessoas diversas que possuem algum problema de vista, como o prêmio Nobel de literatura, o português José Saramago, o cineasta alemão Win

Wenders, a atriz , o músico Hermeto Paschoal, o escritor , entre outros.

Por fim, percebe-se em Janela da Alma o forte estilo pessoal que ele imprime

às suas imagens, o que faz lembrar, mais uma vez, Bill Nichols: a imagem é um documento do estilo do cineasta; ela é produzida por ele e dá mostras claras da natureza do envolvimento do cineasta com seu tema [...] – (NICHOLS, 2005, p.65). 76

E além dessa questão óbvia das imagens em Walter Carvalho, há também um outro elemento com o qual gosta de trabalhar e compor um espetáculo cinematográfico: a música.

5.5 O documentário como autoconhecimento

Ao contrário de Eduardo Coutinho, que não está preocupado com a estética cinematográfica e seu poder de atração pela imagem, pelos sons e por uma luz elaborada,

Walter Carvalho atua em outra direção: não exclui de seus filmes a possibilidade de espetáculo cinematográfico. Nesse sentido, além da elaboração fotográfica, sua reflexão, quando filma um documentário, se dá também pela música:

Eu quando filmo, eu filmo uma música na minha cabeça. Eu acabei de fazer um documentário Moacir, Arte Bruta (2005). É um documentário sobre um artista plástico esquizofrênico que mora afastado, mora no Planalto Central, perto de Alto Paraíso em Goiás, onde eu, no momento de filmar, eu não posso te dizer que eu tinha uma música pronta para aquele momento, mas eu tinha uma música imaginária na minha cabeça, que acompanhava aqueles momentos.

Para que Walter Carvalho pudesse se concentrar totalmente na direção do filme, a fotografia ficou a cargo de seu filho e assistente, Lula Carvalho. Foram seis dias de filmagens na Chapada dos Veadeiros e, no sétimo dia, Walter Carvalho visitou o artista para se despedir. Ele comenta que esse foi um momento de grande emoção entre ele e

Moacir: houve um momento de grande emoção entre nós, tamanho foi o envolvimento durante aqueles seis dias, que não é muito tempo.

Mais uma vez percebe-se seu envolvimento emocional com o tema que documenta, a ponto dele se confundir com o próprio objeto: 77

Eu não consigo fazer um documentário sem me envolver com isso emocionalmente. Por que? Porque eu faço cinema para me conhecer . A minha atividade como fotógrafo, como cineasta, como documentarista é para me conhecer também. Ao tentar me entender e ao tentar conhecer uma determinada realidade, eu de certa forma estou procurando me entender também.

Nessa relação que estabelece com o objeto, Walter Carvalho confunde seu ponto de vista com o objeto retratado. Sua postura, como já dito, é reflexiva e poética:

Eu não sou aquele fotógrafo, nem aquele documentarista que fica do lado de fora do assunto. Eu me envolvo emocionalmente, eu me envolvo de todas as formas, se tiver que me envolver, porque não necessariamente. Eu não procuro ter um distanciamento a ponto de ficar isento daquilo, como se pretendem os jornalistas, por exemplo.

A busca de Walter Carvalho em seu processo de trabalho é também o autoconhecimento. Não existe a preocupação em dominar totalmente o objeto retratado, como se existisse uma verdade absoluta sobre determinado tema:

Eu não me interesso pelo conhecimento completo do objeto que eu estou retratando, seja fotograficamente, seja do ponto de vista do documentário. Eu quero entender também o mistério que aquele objeto traz para mim . A luz da fotografia só ilumina a superfície do objeto, é impossível penetrar no seu substantivo. Quando se faz um filme, na minha cabeça, eu acho que é necessário se descobrir as camadas do objeto. O objeto tem várias camadas. E a luz só penetra na superfície.

Nesse sentido, a abordagem de Walter Carvalho vai além do que afirma Bill

Nichols quando se refere à “história do amor do cinema pela superfície das coisas, sua capacidade incomum de captar a vida como ela é” [...] – (NICHOLS, 2005, p. 177). Walter

Carvalho vai além da aparência externa das coisas para tentar decifrar sua essência, ou melhor, o mistério que despertam nele. Entramos no campo da subjetividade do autor, onde não existem respostas claras, certo ou errado, verdade ou mentira. O que está na essência e 78

não na superfície é que o interessa. Isso sugere o “escavar” citado por Coutinho.

Novamente, é a busca do que não está aparente.

A verdade aparente passa a ser secundária. O que importa é o que se pode apreender da realidade e também a relação do autor com o real: a fraqueza de meus sentidos que vai desde o meu tato até o olhar, o ouvido, o olfato, tudo, essa fraqueza humana me impede de conhecer a verdade. E se eu achar que eu estou muito perto dela, eu vou ficar temeroso.

Verifica-se nessas reflexões de Walter Carvalho um princípio, uma maneira de se colocar frente a seus temas, que será recorrente em seu processo documental - a não intervenção diante das realidades que ele investiga e, por conseqüência, a ausência de controle sobre essas realidades:

É aí que uma coisa em arte (e eu considero o documentário nesse sentido também), é quando uma coisa se transforma em outra. Quando um documentário pega um determinado tema e consegue captar o momento em que uma coisa se transforma em outra coisa , você está perto de realizar uma boa observação da realidade.

Esse poder de transformação exerce também fascínio em Eduardo Coutinho que, como visto, persegue os ”momentos mágicos” em suas estratégias de abordagem.

Momentos em que há também uma transformação do pensamento, dos personagens: quando essas pessoas formulam pela primeira vez um raciocínio inédito sobre suas vidas.

Nesses instantes, há uma construção, elaboração ou fabulação desses personagens, como visto no capítulo 4. Essa transformação pode se dar também, nas imagens, dentro do plano ou na maneira como o documentarista percebe a realidade:

Eu acho que o documentário Ônibus 174 (dirigido por José Padilha, 2002) é o maior exemplo disso. O documentário perto da aproximação de uma coisa que se transforma em outra e que isso eleva seu pensamento: Deixa de ser uma coisa feita por você sozinho e passa a ser de todos. Quando aquela compreensão se multiplica. [...] e quando o 79

documentário atinge um nível profundo disso que eu estou dizendo, ele vira ficção.

Ônibus 174 reconstitui no formato longa-metragem o seqüestro de um ônibus na zona sul do Rio de Janeiro em junho de 2000. Nele, a história do seqüestro é contada de forma paralela à história de vida do seqüestrador, intercalando imagens da ocorrência policial feita pela televisão. As duas narrativas dialogam formando um discurso que as transcende e dando pistas ao espectador dos motivos que fazem com que o Brasil seja um país violento. 18

Curiosamente, Ônibus 174 vai virar ficção nas mãos do diretor Bruno Barreto.

Esse é o próximo projeto do cineasta, que tem em seu currículo pérolas do cinema nacional como Dona Flor e seus dois Maridos (1978) - que teve participação de Eduardo Coutinho no roteiro - e a produção de ByeBye Brasil (1980) de . A ficção de Bruno

Barreto inspira-se no documentário de José Padilha e tem previsão de lançamento para

2007/2008.

Essa questão da transformação no documentário pode se apresentar em três momentos: na filmagem (quando uma coisa se transforma em outra), na montagem (cuja manipulação das imagens e narrativas sugere novos textos e novas narrativas) e, por conseqüência, na recepção do público (que muda e amplia sua visão sobre uma determinada realidade). Esse caráter transgressor do documentário é perseguido por boa parte de seus realizadores e também por Walter Carvalho.

18 www.dramafilmes.com.br 80

6 CONCLUSÃO

Os processos de criação hoje no documentário contemporâneo brasileiro são tão diversos quanto os filmes do gênero. A democratização dos meios de produção com o advento do formato digital no país, a partir da última década do século XX, a redemocratização no Brasil e, por conseqüência, a necessidade de se compreender melhor a gênese e os desdobramentos dos diferentes processos políticos, sociais e culturais e a impossibilidade da ficção responder a estas questões colocam o documentário hoje numa posição especial.

O cenário nunca esteve tão favorável à produção. As leis de incentivo nas diversas esferas - municipal, estadual e federal - têm possibilitado aumento significativo na realização. Concursos nacionais como o DOC TV - Programa de Fomento à Produção e

Teledifusão no Documentário Brasileiro - já em sua terceira edição; o Documenta Brasil –

Concurso de Apoio à Produção e Lançamento de Obras Audiovisuais Inéditas, do gênero

Documentário - realizado pela Associação Brasileira de Produtoras Independentes de

Televisão (ABPI TV) em parceria com o canal Sistema Brasileiro de Televisão (SBT); os editais para Documentário do Minc; o projeto Rumos do Itaú Cultural, entre outros, possibilitaram a expansão do gênero no país, que pode ser confirmada pelo aumento dos lançamentos nas salas do Circuito Comercial de Cinema, como chama a atenção o crítico

Amir Labaki, fundador e diretor do Festival É Tudo Verdade - principal vitrine do documentário na América Latina:

em 1998 estrearam dois documentários; quatro em 1999; seis em 2000; oito em 2001; 11 em 2002; cinco em 2003 (ainda assim, 15% do total de títulos nacionais efetivamente exibidos em salas); até alcançar a impressionante marca de 17 em 2004 e 13 em 2005, representando proporcionalmente, nos dois casos, nada menos que um terço dos filmes 81

nacionais que alcançaram distribuição comercial. O desempenho de cada título é o calcanhar-de-aquiles, com média largamente aproximada de 15-20 mil espectadores. Mas o avanço é inegável (LABAKI, 2006, p.12).

A expansão do documentário nacional também pode ser confirmada pelas premiações obtidas em festivais, onde a corrente principal é o filme de ficção, como os festivais de Gramado e Brasília.

Nesse cenário favorável, Eduardo Coutinho, Helena Solberg e Walter Carvalho têm se destacado, cada um à sua maneira. Coutinho é considerado pelos críticos e também no meio acadêmico o mestre do documentário nacional. A premiação de seu filme Santo

Forte no Festival de Brasília de 1999, quando recebeu o Prêmio de Melhor Longa-

Metragem, foi não só um marco para a carreira do cineasta como para o gênero no Brasil, despertando para a importância do documentário e certamente inspirando outros realizadores.

Em 1994, quatro anos antes, Banana Is My Business, de Helena Solberg, havia recebido quatro prêmios no mesmo festival, entre eles o Prêmio Especial do Júri e o

Prêmio de Melhor Filme pelo Júri Popular, mas sem obter a mesma repercussão na mídia e no meio acadêmico, como teve a premiação de Santo Forte.

Walter Carvalho, além de sua premiada carreira como fotógrafo de cinema, recebeu também inúmeros prêmios com Janela da Alma, entre eles os prêmios de Melhor

Filme no Festival de Cinema Brasileiro de Paris, no Festival de Cinema do Ceará e Melhor

Documentário na mostra BR de Cinema de São Paulo, sem falar no público atingido de cerca de 135.000 espectadores. Seu filme mais recente, o primeiro em que assina sozinho a direção, Moacir, Arte Bruta , vem também desenvolvendo uma bela carreira nos festivais do país.

Percebe-se essa posição de destaque no cenário nacional dos três cineastas e uma grande diversidade de estilos em seus trabalhos, reflexo da pluralidade de linguagens, 82

encontrada hoje no documentário. Apesar dessa diversidade, identifica-se na forma um elemento comum aos três: o uso da reflexividade; e no processo de realização pelo menos quatro pontos de identificação : uma busca obstinada pela autonomia em relação ao conteúdo e à forma de seus filmes, o uso de roteiros ”abertos” durante as filmagens, a coragem de correr riscos e a desconfiança em relação à ”verdade”.

A reflexividade manifesta-se de forma distinta em cada um. Eduardo Coutinho lança mão desse modo de representação quando, no início de seus filmes, explicita alguns de seus dispositivos. A reflexividade também está presente nos momentos em que a equipe de filmagem aparece e quando Coutinho adentra os espaços onde estão seus entrevistados e negocia com eles as entrevistas/conversas.

Mas é preciso lembrar que o modo de representação mais presente em seu trabalho é o participativo, já que o cineasta interage com seus entrevistados, provocando- os, incitando-os na postura ativo/passiva que utiliza em suas entrevistas. É um estilo participativo-reflexivo, já que, ao instigar as pessoas, o cineasta mostra, eventualmente, sua equipe e sua própria presença no quadro cinematográfico.

No documentário Carmen Miranda, Bananas Is My Business , analisado nesta dissertação, a cineasta Helena Solberg assumiu abertamente o tom reflexivo, embora o tenha conjugado a outras vozes, como as das pessoas que conviveram com Carmen

Miranda e as que são encenadas no filme. Mas a reflexividade dá o tom do filme e o singulariza.

Em Janela da Alma, de Walter Carvalho, a reflexividade presente remete à reflexividade do próprio cinema, já que o filme reflete sobre o sentido que está na base de qualquer processo de construção fílmica: o olhar. O modo poético também se faz presente a partir de associações visuais, organização formal e belas imagens, conseqüência de seu trabalho como fotógrafo. 83

O modo reflexivo nos filmes dos três cineastas não se faz por acaso. Cada vez mais, no documentário os cineastas fazem questão de explicitar para o público que cinema

é construção. Que existe uma equipe e procedimentos que norteiam o processo e que, por isso mesmo, o documentário não é o retrato da realidade. Ele não reproduz a realidade.

Trata-se, como visto nas palavras de Bill Nichols, de uma representação do real, na qual o ponto de vista, o olhar do diretor é determinante. O real no documentário é construído pelos vários elementos que o compõem.

Eduardo Coutinho persegue os momentos mágicos, em que o entrevistado elabora pela primeira vez um raciocínio e o enuncia durante a conversa. Nesse sentido, a questão da mentira e da verdade passa a ser secundária para o cineasta. Essa articulação do raciocínio fala mais do entrevistado do que as respostas prontas, pronunciadas sem que o entrevistado reflita sobre elas.

Ao ouvir as várias vozes que compõem o documentário sobre Carmen Miranda,

Helena Solberg aproximou-se mais da identidade da cantora luso-brasileira do que se tivesse utilizado uma única fonte de informação, uma única versão dos fatos.

Ao tentar desvelar as diferentes camadas do objeto que retrata em seus filmes

(seja este objeto uma pessoa, uma situação, etc.), Walter Carvalho aproxima-se mais da essência desse objeto.

Nesse contexto, a reflexividade torna-se uma ferramenta com a qual o diretor explicita seu modo de construção, uma forma de alertar os espectadores para a incompletude do documentário. Ele nunca poderá satisfazer todas as dúvidas quanto a um determinado tema e, quanto melhor for o documentário, mais dúvidas ele irá suscitar no espectador .

Por isso, verifica-se essa tendência à reflexividade. Talvez a próxima geração a condene, já que uma tendência sempre surge em oposição à anterior. Vale ainda um breve 84

comentário a respeito do risco , mais um ponto comum aos três cineastas no que se refere ao processo de criação.

São três diretores que assumem riscos no processo de criação, percorrem novos modos de representação, ouvindo mais o que a realidade tem a lhes oferecer como subsídio para suas investigações do que atuando com fórmulas prontas. Vê-se que os três iniciam seus trabalhos sem saber onde vão chegar - postura essencial na realização documental.

Durante esse percurso inusitado, ”desvelam” fragmentos de realidade que depois serão dispostos e reunidos na montagem.

Nesse caminho, se arriscam. Os métodos de Coutinho não são imutáveis. São norteadores de um processo que muda de acordo com o que o real lhe oferece. Além disso, ele também se arrisca ao se manter firme no dispositivo da prisão espacial e na recusa em empregar a conotação e a retórica na etapa final da montagem.

Walter Carvalho experimenta novas formas de captação e revelação das imagens que registra. Manipula as imagens quimicamente, fazendo experiências para a obtenção de novas texturas e tonalidades que possam imprimir uma atmosfera única em seus trabalhos.

Helena Solberg coloca seu imaginário na tela e se aventura em novos caminhos a cada filme que realiza. Cada filme é um filme . É uma aventura na qual a cineasta se joga e se expõe.

Nesse cenário plural, onde os procedimentos são vários, o único consenso é de que o documentário ajuda a compreender melhor uma determinada realidade. A diversidade de modos de representação, o caráter híbrido na confluência com outras linguagens, como a música, as performances, etc., tornam o domínio 19 do documentário cada vez mais rico. Isso sem falar das novas tecnologias, em que a imagem de um

19 Termo utilizado por Sylvio Da-Rin, que prefere compreender o documentário como um domínio, mais do que um gênero. 85

documentário pode ser captada até mesmo através de um telefone celular - o que potencializa o caráter de portabilidade do equipamento, tão celebrado pelos diretores do

Cinema Direto e do Cinema Verdade nos anos 60.

O único risco num mundo onde a tecnologia avança, com câmeras digitais de tamanho reduzido e a possibilidade de projeção de filmes nos mais variados suportes que acompanham o homem em sua mobilidade: telefones celulares, relógios, microtelas de computador, etc., é de se dar excessivo valor à tecnologia em detrimento do conteúdo. E também em detrimento da capacidade de um filme envolver, instigar, incomodar, trazer novos horizontes para as pessoas.

O risco é o de se dar mais valor à técnica que ao conteúdo que ela viabiliza.

Não se pode perder de vista que a tecnologia está a serviço do conteúdo. Essa perspectiva torna-se hoje fundamental, já que vivemos apenas o começo de uma longa era marcada pela saturação de imagens e sons. Como disse o Prêmio Nobel de Literatura, José

Saramago, em um dos depoimentos finais de Janela da Alma:

Vivemos todos numa espécie de Luna Park audiovisual, onde os sons se multiplicam, onde as imagens se multiplicam e aonde nós vamos cada vez mais nos sentir perdidos. Perdidos, em primeiro lugar, de nós próprios e, em segundo lugar, perdidos na relação com o mundo. Acabamos por circular aí, sem saber muito bem nem o que somos, nem para quê servirmos, nem que sentido tem a existência 20 .

Segundo o escritor, estamos vivendo hoje a alegoria da caverna de Platão

(TAVARES, 1985). As pessoas aprisionadas na caverna enxergam sombras e acreditam que elas sejam reais. Uma metáfora da saturação que se presencia não só na televisão, como também na internet, no cinema, sem falar dos espaços urbanos carregados de outdoors , avisos luminosos, vitrines, etc. Vivemos num mundo poluído de imagens que, em última instância, querem vender produtos e padrões de comportamento.

20 Depoimento de José Saramago no documentário Janela da Alma (2001), de João Jardim e Walter Carvalho. 86

Nesse cenário supersaturado, o documentário será cada vez mais essencial , mostrando a beleza das diferenças, das singularidades que existem nos homens, lugares e situações; realçando que para começar a compreender o outro é preciso desconfiar do que está aparente, das imagens estereotipadas, dos modismos; mostrando que só podemos nos aproximar da verdade por meio do imaginário, da ”escavação” profunda, do desvelo das camadas dos objetos; e, desta maneira, quem sabe, emitirmos menos juízos de valor em relação ao outro e sermos mais tolerantes e éticos. Nas palavras de Coutinho, pode ser uma utopia, mas:

Tudo é utopia. As que me interessam são as pequenas. As grandes não me interessam. Uma utopia é fazer cinema no Brasil. A outra é fazer cinema documentário no Brasil. A outra, é de ”estar vazio ou em igualdade com o outro” . É impossível, mas como é utopia é melhor que outras. É um fim a que você visa, ainda que nunca chegue.

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7 FILMOGRAFIA

Cabra Marcado para Morrer (1985). Dir: Eduardo Coutinho (Brasil).

Carmem Miranda: Banana is my Business (1995). Dir: Helena Solberg (Brasil e EUA).

Edifício Máster (2002). Dir: Eduardo Coutinho (Brasil).

Janela da Alma (2001). Dir: João Jardim e Walter Carvalho (Brasil).

Moacir, Arte Bruta (2005). Dir: Walter Carvalho (Brasil).

Nanook, o Esquimó (1922). Dir: Robert Flaherty (EUA).

O Fim e o Princípio (2005). Dir: Eduardo Coutinho (Brasil).

Um Filme de Cinema (nome provisório). Em elaboração. Dir: Walter Carvalho.

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APÊNDICE

Entrevistas com os cineastas Helena Solberg (09.06.05), Eduardo Coutinho (10.06.05) e Walter Carvalho (09.06.05).

• Helena Solberg

Entrevista realizada por Mariana Tavares para esta dissertação de Mestrado. Foi gravada em vídeo Betacam em 09.06.05, na residência da cineasta no Rio de Janeiro e contou com a colaboração do cinegrafista Guilherme Dutra e do iluminador Niênio Isidoro, ambos da Rede Minas de Televisão.

Mariana Tavares: Como se deu sua formação? Helena Solberg: A minha formação não tem nada a ver com cinema. Ela tem a ver com literatura. Eu fiz línguas neolatinas na PUC (Rio de Janeiro). Eu acho que foi a melhor coisa que eu fiz porque me abriu um mundo da imaginação. As imagens eram formadas dentro da cabeça. Que é o que a literatura tem de maravilhoso, que é essa coisa: o filme se passa dentro da sua cabeça e cada livro é um filme para cada um. Cada um faz uma leitura diferente de um livro. Eu acho muito interessante às vezes conversando com gente que quer fazer cinema, quer saber como começar ou o que deve fazer. Eu acho muito importante as pessoas terem o que dizer. E para você ter o que dizer você tem que ter conteúdo. Você tem que ter um mundo interior seu. Esse mundo só acontece você vivendo, você experimentando. Você tem que ser uma pessoa. O cinema atrai muito por causa do glamour fazer um filme. Se você perguntar a uma pessoa que quer fazer cinema: você tem alguma coisa a dizer? Você quer contar uma história? Que história você quer contar? Ou você quer entrar pelo lado da técnica, que pode também. Uma pessoa que se formou como diretor de fotografia. É uma outra questão. Mesmo esses têm que ir aos Museus, têm que olhar os quadros, têm que ter uma formação que vai além do cinema. Que vem da vida.

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MT: Você viveu muitos anos nos Estados Unidos... HS: Você é levada por questões pessoais de sua vida. Eu saí do Brasil. Tive que sair por razões pessoais e tive que buscar trabalho fora, num país estrangeiro, numa língua estrangeira, uma realidade muito dura. Essa realidade que é interessante para nós que é, de repente, ser vista como latina. Eu nem sabia o que era isso. Eua achava que era brasileira. O Brasil tem isso também: a gente ignora os outros países da América do Sul. É um país tão grande, temos uma cultura tão forte...

MT: Quais temas você se interessou em investigar nos Estados Unidos? HS: Eu sempre quis examinar, mesmo morando fora, as questões que me interessavam, continuaram sendo questões daqui ou questões relativas à América do Sul que eu fui descobrir só depois que saí do Brasil. Só depois que saí para fora é que eu comecei a me dar conta que havia todo um outro continente que nós brasileiros ignorávamos até bem pouco tempo. Agora nós estamos começando, quase sendo forçados a reconhecer essas coisas.

MT: Que tipo de questão você se interessou em investigar nessas relações EUA X América Latina? HS: Razões sociais, políticas que me interessavam muito. Quando começou a guerra da Nicarágua, eu fiz um documentário chamado: From the Ashes...Nicarágua Today (Das Cinzas...Nicarágua Hoje), que ganhou o National Emmy Award (1983), que foi um filme onde eu focalizei numa família camponesa e através dos olhos deles eu tentei ver o que era o sandinismo, o que eram as reformas, o que estava acontecendo no país.

MT: E o documentário Home of the Brave ? (Berço dos Bravos, 1986) HS: Home of the Brave foi um filme onde examinei tribos diferentes no mundo inteiro, procurando a ligação entre elas, o que havia em comum no povo nativo. O filme questiona se haveria uma possibilidade, em países diferentes, trechos nativas juntarem forças com a mesma questão. Aí houve na Europa uma grande conferência que reuniu tribos nativas de diferentes países onde eles discutiram entre eles o que havia em comum e quais eram as ações possíveis que podiam tomar em comum para não haver a extinção dessas culturas.

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MT: Nessas produções já havia uma mistura de linguagens como em Carmen Miranda, Bananas Is My Business (1995), como a introdução de elementos ficcionais, por exemplo? HS: Assim... não. Porque eu também estava trabalhando para alguém. A PBS – Public Broadcasting Service (Rede Pública de Televisão), uma cadeia pública de televisão americana. Eu acho que sempre houve uma questão poética. O que me interessavam eram imagens que podiam levar você a outros lugares. Eu nunca fiz jornalismo. Eu não me interessava só pelos fatos. Interessava-me além dos fatos: os sentimentos das pessoas, as emoções, o que estava envolvido, o elemento humano. O homem inserido dentro de uma guerra, como a guerra da Nicarágua. O que estava se passando com a população, com as crianças, com as famílias. O que estava se passando com as relações familiares, dentro de uma mesma família, pontos de vista diferentes. O abalo da estrutura familiar até por causa disso. Essas questões eram as que me interessavam mais.

MT: Mais através de depoimentos que representar através de imagens? HS: Sim.

MT: Como isso se deu em Carmen Miranda, Bananas Is My Business ? HS: Em Carmen muitas coisas acontecem que me interessam. Primeiro, ela é um ícone americano e brasileiro. Toda uma geração de americanos cresceu com Carmen Miranda, assistindo-a na TV, bonequinhas, desenhos animados de Carmen Miranda. Ela faz parte do imaginário norte-americano e do nosso também. Aliás, eu acho que mais lá do que aqui. Aqui houve uma questão que eu toco no filme, que é uma questão política de uma grande implicância com ela. Realmente ela estava inserida num momento da política da boa vizinhança em que Getúlio Vargas pensou em usá-la de certa forma. Ela se dizia embaixadora do Brasil. Ela aparece numa exposição do café, mostrando o café brasileiro. Ela é um foco de atenção e aquela imagem daquela mulher com todas aquelas frutas na cabeça e aquela imagem muito louca que foi o que deixou também os brasileiros meio constrangidos: Se aquilo era uma caricatura nossa, o que era aquilo. Essa foi a grande questão de Carmen que me interessava.

MT: Qual é a questão-chave do filme? HS: A questão-chave é a trajetória de uma pessoa extraordinária que sai daqui e se torna do dia para a noite nos Estados Unidos, sem falar uma palavra de inglês, a atriz mais bem paga. Isso é uma coisa absurdamente extraordinária. A questão-chave é um personagem tão 93

forte que deixou uma marca, uma imagem tão forte. A imagem de Carmen, ela continua interessante. Ela vai ficando cada vez mais kitch , ela acompanha os tempos. Cada vez interpretam aquela imagem de uma forma diferente. É uma espécie de uma esfinge para mim. E esse fato dessa rejeição que uma elite no Brasil fez a ela num dado momento que, aliás, o filme deixa bem claro, que o Caribé da Rocha (jornalista) diz que ela cantava música que era considerada música de negro, que era o samba, sendo branca. É um pouco aquela história do Elvis Presley, que faz aquela trajetória do rock que vinha dos spirituals , do blues , que é a cultura negra americana e o Elvis Presley de repente vem. Então o rock and roll vira, é aceito, porque está sendo cantado por um branco. Houve esta questão com Carmen. Definitivamente. Tanto que o grupo dela, o Bando da Lua, tinha diversos elementos que foram aos poucos sendo substituídos.

MT: Como surgiu a idéia do filme Carmen Miranda, Bananas Is My Business ? HS: Tem essas coisas misteriosas. Era um assunto que era tão óbvio para mim que eu podia fazer. Interessava-me fazer aquilo porque era uma pessoa que estava entre dois países que eu conhecia muito bem: o meu país e os EUA, onde eu morei durante muitos anos e onde eu percebi, de repente, a força também dessa imagem dela. Um assunto absolutamente fascinante de descobrir essa coisa meio misteriosa: Por que houve uma rejeição? Por que houve tanta controversa? Por que ela foi tão criticada, ao mesmo tempo em que ela era muito amada? Eu acho que, pelo povo em geral, eu acho que nunca houve dúvida sobre isso. Tanto que no enterro dela, foram dos enterros mais extraordinários que já aconteceram no Brasil: Milhares de pessoas nas ruas. Então ela tinha uma força, uma coisa muito especial nela.

MT: Havia uma coisa meio superficial nela... HS: O supérfluo é mais importante do que o essencial. Havia quase uma caricatura. Uma coisa meio tablóide. Aí eu achei que eu ia fazer essa caricatura, que era o Erick Barreto. Eu filmei com o Erick, que era um travesti no Rio de Janeiro, que faz a Carmen no filme. Porque ele era a pessoa que melhor fazia a Carmen possível e imaginária. Eles estudou todos os gestos dela. A transformação de Erick era realmente incrível. Eu o levei para lá, para filmar comigo. Filmei aqui, na Inglaterra, nos EUA.

MT: Por que usar a ficção no filme? HS: Eu gostava dessa idéia, desse lado ficcional porque havia coisas tão loucas sobre Carmen. Pessoas que eram tão absurdamente fanáticas por ela que nem o cara. Um inglês 94

que está entrevistado no filme. Inclusive casou com uma mulher e tentou transformá-la em Carmen Miranda. Quando a filha dele nasceu, ele deu o nome de Carmen Miranda. Tem C. Miranda tatuada nele todo. Ele tem uma sala na casa dele que é a sala C. Miranda. Na Austrália, tem um cara que tem uma floresta Rain Forest Carmen Miranda . Um bando de malucos que me perseguiu durante anos.

MT: Como vocês chegaram a essas pessoas? HS: Porque nós botamos anúncios em todos os jornais no mundo inteiro. Sobre tudo: buscando pessoas que tinham qualquer coisa sobre Carmen. Ou que tinham algum depoimento a dar ou que a conheceram. Você não imagina o que não apareceu... Além de todos os arquivos que nós examinamos.

MT: A forma do filme foi se dando no processo de realização? HS: Exatamente, com o próprio Erick. A convivência com ele. Os espetáculos que ele já havia feito (sobre C. Miranda), que eram muitos. Era muito interessante. Porque havia muita coisa ali. Muito material. Muito rico. Uma coisa meio de detetive na busca de um personagem: Quem era? Que mistério havia por trás dessa mulher? O que era isso? O que era aquela máscara? Por que a cara era quase sempre a mesma? O sorriso... Havia uma coisa meio máscara em Carmen. Que era uma coisa que depois eu achei que também era uma forma de se proteger bastante. Porque era uma pessoa bastante tímida. E você imagina a loucura daquele espetáculo e você ser uma pessoa resguardada. Que isso em diversas entrevistas com Laurindo de Almeida (compositor), com Caribé (jornalista) que foram muito próximos a ela, todos disseram: Carmen era muito tímida.

MT: Como se dá seu processo de criação em documentário? HS: Eu acho que existem assim, três fases bastante claras: Uma fase inicial que, digamos assim, é quando você decide que você quer fazer ou que você tem uma idéia que é uma idéia inicial de um filme. A partir daí, a busca desse material começa também a revelar outras coisas que você não esperava. Isso é uma coisa bastante interessante. Completamente diferente da ficção. A própria vida, a própria investigação vai mudando você. E mudando a idéia que você tinha inicialmente. Você começa a duvidar um pouco de si mesmo e a dizer: “Péra aí, tem umas coisas aqui que eu não esperava.” Esse é um processo maravilhoso. E um processo muito rico. Uma terceira fase, na sala de edição, que é onde você busca a estrutura de seu documentário. Mesmo que você tenha aquela 95

estrutura armada um pouco na sua cabeça, que você deve ter inicialmente, precisa saber para onde você está indo, eu acho que o processo de edição é fundamental no documentário.

MT: Quanto tempo levou a montagem de Carmen? HS: Um ano.

MT: Como se dá seu processo criativo? HS: Eu acho que essa questão do processo criativo é uma questão bastante densa, no sentido que ela vai aos processos do inconsciente, é quase uma coisa psicanalítica. Eu fui rever meus filmes. Muitos filmes que eu fiz há muito tempo e, de repente, eu me dei conta, por exemplo, que havia, sem eu ter jamais percebido, uma volta e uma insistência em certas imagens, em certos ângulos de câmera, em certas obsessões que escaparam. Filmes de assuntos diferentes, de repente, voltavam algumas coisas, eu fiquei: “Deus! Espero que ninguém tenha percebido.” Eu mesma me dei conta disso. Porque eu estava assistindo um atrás do outro. E comecei a perceber algumas obsessões com luz, com uma maneira de iluminar. Coisas que são suas. De cada um. Muito especiais. Que bom! Porque senão seria uma chatice! Eu digo que, no final, dá para pegar todos e fazer um para ver o que sai (rs).

MT: Você não fez escola de cinema, embora tenha convivido com o pessoal do Cinema Novo... HS: Mas eu tinha uma vasta cultura de cinema. Todo o cinema italiano, o neo-realismo. O cinema francês, a Nouvelle Vague , eu vi muito. Eu assisti muito mesmo. Eu ia para a Cinemateca do MAM do Rio de Janeiro, eu fui daquela geração. Nós víamos filme atrás de filme.

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• Eduardo Coutinho

Entrevista realizada por Mariana Tavares para esta dissertação de Mestrado. Foi gravada em vídeo Betacam em 10.06.05 no escritório do cineasta no Cecip 21 no centro do Rio de

Janeiro. A entrevista contou com a colaboração do cinegrafista Guilherme Dutra e do iluminador Niênio Isidoro, ambos da Rede minas de Televisão.

Mariana Tavares: Onde foram realizadas as filmagens de seu mais recente filme O Fim e o Princípio ? Eduardo Coutinho: É uma comunidade rural de 80 e poucas famílias e que a gente conseguiu, como não tinha pesquisa, meio por acaso que a gente achou. Mas a gente pegou uma moradora desse local (Rosa), que é uma professora de alfabetização e ela foi a mediadora da filmagem. Ela está presente em todas as filmagens. Ela tinha uma lista das 80 famílias, ela fez um mapa do lugar. E aí ela dizia: ”tal cara é interessante”. E eventualmente eu dizia: ”Esse não”. Então, foi comandado pelo acaso absoluto. Ela escolhia e ela não sabe o que é cinema, foi aprendendo um pouco na prática. E eu tinha pouquíssima noção das pessoas. A gente pegava e entrava na casa dessas pessoas e elas não sabiam que a gente ia vê-las e quando se estabelecia uma coisa interessante dramaticamente, a filmagem continuava. É um Edifício Máster um pouco, porque na verdade tem pouquíssima coisa da geografia do sítio. Tem algumas seqüências em que aparece um cara com uma boiada, uma árvore, mas quase não tem. E o resto são as pessoas falando. O mundo do qual elas falam é um mundo que não existe mais, que está acabando. E o fascínio do filme é isso. E ao mesmo tempo, fala numa linguagem como no sertão do Nordeste, lá na Paraíba. Todo sertão viveu muito isolamento. Eles falam numa linguagem que é arcaica para nós. O filme foi escolhido por isso: que lá, eu sabia que ia encontrar pessoas que não tiveram vidas geniais, mas que contam maravilhosamente suas vidas. Ou sua concepção de mundo, religião e tal. É um filme que fala da vida, da morte. São pessoas muito mais velhas.

74 ONG produtora de vídeos educativos e culturais, fundada em 1986 por Claudius Ceccon. Realizou mais de 100 vídeos institucionais e documentários e produziu também os documentários Santo Forte (1999) e Babilônica 2000, no ano de 2001. 97

MT: O que você quer dizer com ”tudo monta”? ED: Isso não é uma teoria, não é nada. Eu tinha que fazer um filme chamado Santo Forte , daí, como passou a ser possível fazer o transfer para filme, graças à Rio Filme o filme pôde ser feito. Daí, minha idéia era a seguinte: eu vou à casa das pessoas e vou conversar com as pessoas. Eu não vou filmar nada de suas casas: se tem um cachorro, um quadro na parede, uma máquina de escrever, não. Vou filmar a pessoa. Punha a câmera no mesmo lugar e durante uma hora a câmara não muda o seu eixo. Desde Santo Forte que nunca me aconteceu de mudar. Daí o problema do câmera, como ele é a essência como colaborador. Ele tem que sentir em que momentos ele pode fazer uma variação do tamanho do plano: do close ao plano mais aberto, para que, de repente, possa haver uma variação. Quando ele vai fazer isso, é uma solução que ele tem que ter. Eu tenho que ficar na pessoa. Não vou olhar no monitor. Freqüentemente, o plano é exatamente o mesmo, a pessoa está em primeiro plano e monta, principalmente se for plano próximo. Por isso que o plano mais afastado é complicado, onde o corte é realmente desagradável. Fora disso, você tem uma cabeça que se mexe, tudo monta, é extraordinário. Daí eu descobri que podia montar tudo, porque eu montei os cortes descontínuos, que é o nome que se dá a isso. Descontínuo, porque você sente que tem um corte. Acaba sendo harmonioso pelo fluxo verbal, porque a descontinuidade na imagem é evidente. Por que você aceita isso? Porque eu não uso plano de 10, 15 segundos, é quase impossível. Os planos geralmente duram 20, 50 segundos, um minuto, etc. Porque no plano sonoro há a aparência de uma total continuidade. Seja ela ideológica ou mesmo do som. Do corpo sonoro que dá essa unidade. [...] Isso aí são dispositivos que cada um tem que armar para si. Cada filme é diferente. Para mim, é o que eu escolhi.

MT: Quais são seus dispositivos? ED: São vários. Tem o dispositivo 1: quando eu posso, eu faço filme num lugar só. Mas num lugar pequeno: pode ser um prédio, uma favela. A Rocinha não interessa: lá tem 100 mil pessoas, 60 mil pessoas. Já é complicado. Agora, uma favela de cinco, três, duas mil pessoas, um prédio de 500 pessoas... Essa comunidade que eu filmei (Sítio Araçás no sertão da Paraíba para O Fim e o Princípio ) se parece com o Máster ( Edifício Máster ). Porque deve ter lá 400, 500 pessoas.Você tira as crianças, sobram 200, 300 habitantes. Quer dizer, tem um mínimo de massa crítica para poder tirar os personagens. Um dia, eu posso fazer um filme numa família só, uma pessoa só, mas eu tenho que ter um lugar que 98

tenha a possibilidade de escolher os que funcionam ou não. Então o dispositivo é: um lugar só, uma prisão espacial, um tempo também e um plano de orçamento. Então não posso passar dois anos lá no Tahiti. A filmagem no Máster durou uma semana, por motivos de orçamento. O Babilônia é feito em dois dias. Finge que é um dia, mas eu filmei também no dia três de janeiro. O essencial para mim é a prisão espacial e a relação com as pessoas. É isso simplesmente: tem uma câmera. A equipe aparecer é secundário. Por que minha voz aparece? Porque simplesmente se trata de um diálogo. Minha voz, quando pode sair, sai. Mas muitas vezes não sai, porque o que acontece é fruto de uma interação entre dois lados. O que está havendo no mundo naquele momento é o seguinte: Tem uma pessoa ou mais diante da câmera, tem uma equipe atrás da câmera e tem um diálogo. E o diálogo está na minha voz. Por isso que ela aparece: porque ninguém fala sozinho. Nessa relação, o que me interessa é que, de repente, há um desejo dele e um meu e a gente vê se consegue encontrar um modo de operar. Milhões de vezes o personagem tem o desejo de me contar uma história que não me interessa, que eu ouço até um momento por educação, até o momento que o desejo dele coincide com o meu. [...] Você tem que ser extremamente passivo e extremamente ativo. Feminino e masculino. Idealmente, além de ser bissexual do ponto de vista psicológico, o ideal, se você for extraordinário nisso, é ser criança de seis anos. Aquela que tudo que você diz a ela, ela diz: Como? Por que? Se você conseguir, já é um talento. Entrevista eu odeio. Eu não faço entrevista, eu faço conversa. Nada está dado, tudo pode ser indagado. [...] Espaço fechado, trabalhar em posição fixa diante das pessoas e tentar conseguir o momento mágico, o momento que você fala com as pessoas. Primeiro, eu não faço as pesquisas. Eu não conheço a pessoa que eu vou filmar, então enquanto ela me conta uma história, ela me conta como se fosse a primeira vez, a questão da primeira vez é essencial. O que eu quero que eu sinta e que o público possa sentir, de uma forma vaga, é que aquilo que ela diz nunca foi dito antes, nunca será dito depois. Independente se isso é verdade ou não. Mas quando as coisas são realmente extraordinárias, o personagem, uma situação é quando acontece essa coisa maravilhosa de uma coisa que nunca foi dita daquela forma, porque a forma é essencial, não só o conteúdo, e que nunca será dito depois. E por isso é um troço que eu estou dando para ela porque ela vai dizer a coisa pela primeira vez, ela está dando para mim, sem ela eu não tenho o filme, mas é uma troca nesse nível.

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[...] Isso é real, o resto pode ser tudo mentira. O que a pessoa fala pode ser mentira. O real é que num certo dia, uma câmera, uma equipe de cinema e uma ou mais pessoas do outro lado e que tiveram um diálogo ou uma ação e que aquilo é um momento. A força dele é de ser aquele momento. O drama está no ato de filmar.

MT: Tem uma coisa meio psicanalítica.... ED: Tem um sociólogo, Pierre Bourdieu, que diz que a coisa mais importante na vida de um ser humano é ser ouvido, é ser escutado, é ser justificado, é ser legitimado. E isso vai do favelado ao ser humano em geral. Ele tem necessidade disso. Tem a ver com psicanálise, mas o que acontece, o que é bacana, é que eu não sou psicanalista. Eu não estou lá para curá-la, eu não sou assistente social e toda relação de face-a-face, onde é que você tem relação de face-a-face: na história oral, na etnografia, sociologia, às vezes, pode ter alguma coisa de relação pessoal e você tem, claro que a psicanálise. Toda a atividade ligada à psicologia. Ela sabe que eu não sou analista. Agora é claro que tem uma coisa, que tem a ver um pouco com a psique da pessoa, que é o seguinte: ela faz isso pelo outro, se o outro não te justifica... ninguém diz eu sou um gênio e basta, ele tem que ser justificado pelo outro. E ele pode ser justificado, legitimado enquanto ladrão, favelado, presidente.

MT: Como você encontra seus personagens? ED: Quando você faz um filme documentário e dizem assim: Ah! Esse cara é maravilhoso porque ele é típico! Ele é típico de uma classe... Isso você matou a pessoa. Quando você procurou o típico, você matou o singular que tem a pessoa. Você assassinou. Simbolicamente, você assassinou a pessoa e a relação.Todas são, de alguma forma, típicas. Tem que tentar o que está debaixo do típico. Que é aquilo que é singular ou que ela pensa que é singular. O negócio da verdade. Porque eu digo que eu não faço entrevista, eu converso. O que acontece: a pessoa se dá em espetáculo um pouco para mim, ela faz a sua mise en scène , ela se dirige, ela se auto-encena. Por isso que ela fica no sofá que ela quer, ela pode atender telefone, ela não fica presa. Ela se desenquadra e aí é o problema do câmera. Se ele dormir depois de 10 minutos, não dá. Porque de repente, está em close , se o personagem sai de quadro, não dá. E essas coisas do corpo livre, você não engessa. Então, na medida em que ela não está engessada, ela se auto-encena. Porque ela está lá, não é pelo cachê, nunca. E ela vai contar coisas da vida e ela é livre para contar. Eu não estou lá para dizer: ”isto é mentira!”. Se fosse um troço histórico... Então lá, ela faz um composto, um 100

espetáculo que é teatro e é verdade, que são indiferenciados. Ela conta como ela gostaria de ser vista por mim e talvez pelo público ou pelos outros, né? Se é alguém de outra classe social em geral, como ela gostaria de ser e de repente, na fimbria disso, aparece como de fato ela é. O fato de que uma pessoa faça teatro para a câmera não tem nada de mau. Porque na verdade ela se revela fazendo teatro. Todos nós desempenhamos papéis sociais. Então usar essa possibilidade de autocriação da pessoa para o documentário. Porque eu acho que aí o documentário fica menos chato, entende? O documentário não é para ensinar como foi a revolução de 32, como é que foi a Segunda Guerra Mundial. Isso é uma função jornalística importante. O documentário deve ter outra coisa. Onde a questão da mentira e da verdade passa a ser secundária.

MT: Como você vê o documentário brasileiro dos anos 60/70? ED: Nos anos 60/70 criou-se uma coisa que o Bernadet (Jean Claude) falava do documentário sociológico e tal. O que é preciso entender é que era um troço apropriado à sua época. É uma época. Basicamente 69, é uma época de luta contra a ditadura, entende? Então, tentar entender a sociedade e, mesmo fora do Brasil, mas particularmente no Brasil, foram documentários que estavam vinculados ao seu tempo. O problema do documentário sempre foi, é ser considerado uma coisa que educa, uma coisa que diz a verdade. Todo mundo que vai ao cinema e diz assim: Ah! Eu vi o filme daquela favela, como é verdadeiro! É a visão ingênua da coisa. Até críticos que têm conhecimento e tal dizem coisas do tipo: Como é verdadeiro! E há um espaço para isso que é o espaço do jornalismo que a TV faz muito bem e que o cinema pode fazer eventualmente. Mas acho que há um espaço a ganhar do documentário que sai um pouco do gueto, é ser um documentário que o imaginário esteja presente. E para isso não precisa inventar um docudrama ficcional. Nada disso, ao contrário. Acho que não tem que apelar para nenhuma arma visual. Eu não estou interessado em reconstituir o passado. Eu não sei como foi o passado. Ninguém sabe. Poderá haver versões. Então, eu prefiro que uma pessoa me conte em palavras como ela vê o passado dela.

MT: Como você vê os docudramas? ED: Os americanos fazem muito. Em geral, eu acho que a reconstituição é tão mais medíocre que a realidade. Se você faz reconstituição de um passado, por que não faz três versões? Se você sugere para o espectador que há uma impossibilidade de conhecer o passado, como tem sempre três versões da história, por que não fazer três? Duas? Quatro? 101

Depois, uma quarta o diretor inventa. Todas são acertadas. Daí fica interessante. Mas o que é usado, assim como narração, o filme que utiliza narrador, bem eu acho que certos filmes exigem narrador. Por que às vezes não usar dois, três, cinco narradores? Que se desminta. Agora, ficar aquela voz única... Mas, enfim, a maldição do documentário é sair daquela coisa que educa.

MT: Por que você faz documentário? ED: Se é útil ou não, ninguém sabe. Se faz para mudar o mundo é melhor procurar outra profissão. Muda o olhar de algumas pessoas. Por que eu faço? As razões negativas eu sei: eu não faço para mudar o mundo, eu não faço porque sou assistente social, eu não faço porque eu quero sofrer. Eu faço porque eu tenho prazer de fazer e, na verdade, nessa altura da vida, quando eu não estou fazendo documentário (ele olha para o lado), nada mais me interessa. Para mim, é uma coisa importante para viver. E eu não tenho o menor interesse em fazer ficção e tal.

MT: Para que serve o documentário? ED: Uma coisa que eu estou convencido é o seguinte: uma coisa boa de saber, porque você já ”baixa a bola”: O cinema documentário, ele foi e sempre será marginal. Não há saída. Você pode sonhar com utopias socialistas... Não existe esta utopia de que um dia o gênero principal do cinema ou da narrativa seja o documentário. Não existe. Há 100 anos que é assim. Criou-se uma linguagem de Griffith para cá, etc. O ato de contar histórias fictícias tem 10.000 anos. O contar histórias na fogueira e tal. Isso, o cinema de ficção responde essa necessidade, a necessidade de sonhar, tem atores, essa coisa toda. O documentário, por essência, ele é marginal. Não tem que achar ruim isso. Ser marginal não quer dizer que é um gueto. Ser marginal é saber que ocupa a margem por razões evidentes que o filme não pode mudar e tentar aumentar a margem. O que é aumentar a margem? Que as televisões passem documentários. Que os cinemas, os festivais e etc. tivessem uma abertura para o documentário maior. Você não vai ficar contente com a margem, é tentar ampliar essa margem. Já melhorou de 10 anos para cá. Vamos aumentar mais. Mas sabendo que a corrente principal é o filme de ficção. Aquele cara que sonha ter 5 milhões de espectadores deve fazer ficção.

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MT: Você se lembra dos dados de público de seus filmes? ED: O Cabra ( Cabra Marcado para Morrer , 1984) foi há 20 anos. O cinema estava em outra fase, as pessoas iam ao cinema. Agora quase não vão e tal. Mas desses recentes que eu fiz, o Máster ( Edifico Máster ) foi o que teve mais público: 85 mil.Que é extraordinário.

MT: Por que? ED: Porque ele teve um lançamento mais caprichado, mais caro, isso é uma razão. A segunda é que, evidentemente, o Máster , como quem vai ao cinema no Brasil, hoje é um público basicamente informado de classe média, esse filme está muito mais próximo deles. Quem numa cidade grande do Brasil não morou ou vai morar num prédio desses? Quem não tem amigo ou parente que não morou ou vai morar num prédio desses? E fora isso, o tema da solidão que está no filme está em qualquer cidade grande. Esse filme, eu tenho certeza que ele foi visto principalmente por mulheres de 50 anos ou mais e foi visto como história delas e elas entraram no filme como num filme de ficção. Identificaram-se se projetando com a solidão daquelas mulheres lá. Eu digo com mulheres porque isso acontece mais com a mulher, né? Esse problema de morar sozinha e solidão.

MT: Qual foi o público de Santo Forte ? ED: O Santo Forte, na época, deu 17.500 pessoas. Foi extraordinário porque naquela época (1999) não tinha ainda público. O filme era dificílimo. Então eu já acho extraordinário. E o Peões e Entreatos não dá para comparar com filme nenhum porque eles passam em sessões corridas os dois filmes. Eles são dois. Tem gente que vê os dois. Por outro lado, eles têm menos sessões que um filme normal. Mas, na verdade, ele ( Peões ) já está aproximando de 60 mil. Já é ótimo.

MT: E o Cabra Marcado para Morrer ? ED: Eu falo do Cabra Marcado como se fosse um filme que não fosse meu. Eu acho que é um filme extraordinário. O filme foi feito em 1985. Que filme absorveu algumas das sugestões de Cabra Marcado ? Cabra Marcado já tinha uma narração com dois narradores, aparecia equipe, eu aparecia....

MT: Quando na infância você começou a gostar de cinema? ED: Eu não busco nada na infância. Eu digo sempre que eu odeio falar do passado. Calcule quando chegar à infância. É um assunto que eu nem gosto de pensar. Só posso te dizer que 103

eu era cinéfilo. Eu conheci a cidade de São Paulo pelo cinema, quando eu comecei a sair sozinho: oito anos, 10 anos, eu percorria bairros de São Paulo para ver programa duplo. Eu fui cinéfilo fanático dos anos 43 a 52/53. Até que, daí, eu entrei numa escola de cinema. Passei a me interessar. Descobri a cinemateca. Eu comecei a me interessar por cinema não só como cinéfilo, mas comecei a me interessar pela história do cinema. O grande problema é passar de cinéfilo a fazer cinema. Coisa que era impensável no Brasil nos anos 40, começo dos anos 50. A Vera Cruz faliu. Teve o Rio, 40 graus . Mas. enfim, cinema era inviável. Estava falido. Então acreditar que o Brasil poderia ter cinema. Isso só foi possível com o Cinema Novo. Por que os outros eram fenômenos isolados. A Vera Cruz foi um fracasso iminente. Aí tem o Humberto Mauro...

MT: A Atlântida... ED: A Atlântida fez uns 4/5 filmes sérios. O resto era chanchada. A chanchada com a TV liquidou-se. Acabou-se. Em 1960 a chanchada era agonizante já. Não tinha mais condição. Até que veio o Cinema Novo. Daí eu entrei no cinema. Fiz cinema, depois larguei. Fiz ficção durante 10 anos. Quando larguei cinema fui para o Globo Repórter e foi lá que eu comecei a fazer documentário. Eu nunca tinha pensado em fazer documentário. Sei lá por quê. E quando eu comecei a fazer lá, reportagem e documentário eu realmente falei: ”Pó! Era isso que eu queria fazer na minha vida!“ E como eu sabia que se eu terminasse o Cabra seria em forma documental, eu usei uns cinco anos do tempo que eu passei no Globo Repórter me preparando meio inconscientemente para fazer o Cabra . Eu editava, eu fazia texto. E eu mesmo fiz, não fiz muito, fiz uns seis programas no Globo Repórter, grandes de 40’, sendo cinco no Nordeste. Foi uma escola extraordinária. Apesar de todas as restrições de censura, de forma e de estética. E daí eu fui fazer o Cabra e o Cabra tinha que ser documentário. E depois que eu fiz o Cabra não me interessou voltar a fazer ficção.

MT: O Primeiro Cabra de 64 era uma ficção? ED: Era uma ficção com caráter documental. No sentido que era baseado numa história real. A Elisabeth fazia o papel dela mesma. Os outros atores eram camponeses, não eram atores. Era uma ficção, mas você vê, ninguém era ator no filme, entende? Havia muitos filmes nesse tipo, com não atores. O filme do Visconti, A Terra Trema, sobre os pescadores eram todos não atores. É um filme plasticamente, uma obra-prima extraordinária. Mas o meu não. Era um filme precário. Feito por um cara que estava começando a fazer cinema e com gente que tinha que fazer o papel, próximo à vida deles, 104

mas tinha que falar as frases. Eram analfabetos quase todos. Então, enfim, eu estava numa enrascada até que veio o golpe de estado e tal. E daí, quando voltei, acabei fazendo um documentário mesmo. Mas que se mistura com as cenas do passado que são ficcionais. A força do filme é muito disso. Às vezes você não sabe muito bem se é ficção ou se não é. E quando consegue isso, é ótimo. Você sai daquele campo fechado do documentário. Mas não é por docudrama. Aqui aconteceu por necessidade histórica. Porque parou. Porque houve o golpe. Não foi uma escolha estética. Simplesmente quando eu voltei, 17 anos depois, eu tinha que contar uma história que incluía os atores camponeses, que me incluía e ao próprio filme. E isso não acontece duas vezes na vida. Eu estava contando também minha vida ali. As peripécias de minha vida e isso não vai acontecer duas vezes. Você faz uma e olhe lá. E outra coisa, eu tinha largado cinema havia 10 anos e não voltaria a fazer cinema. Eu fiz um filme em 70 chamado Faustão , foi lançado em 71. Em 71, fui para o Jornal do Brasil. Eu tinha tido filho, não tinha jeito de... estava de saco cheio, cansado de cinema, daí fiz três anos no JB. Fiquei nove anos no Globo Repórter. Só em 81 voltei ao cinema ainda na TV Globo, quando eu filmei o Cabra . Fiz em película e graças a Deus eu estava na Globo até o lançamento, porque simplesmente eu pude não ganhar um tostão e, inclusive, botei dinheiro meu no filme.

MT: Que tipo de tema você gosta de abordar em seus filmes? ED: Eu faço filmes sobre coisas pequenas, entende? Por isso que eu te digo, a prisão espacial, faço um filme numa favela sobre religião, tem 2.000 pessoas na favela, eu podia fazer um filme em 20 lugares. No Rio Grande do Sul, o gaúcho desce de bombacha... Isso não interessa, eu fiz num lugar só. O foco é que importa. Eu não estou falando de Brasil. Eu estou falando de uma favela só e por esse fato acaba falando do Brasil. Documentário é escavar. É cavar. Se você cavar um poço de petróleo fundo, você vai fundo. Se você fizer 300.000 poços...Você pode cavar no lugar, escavar. Eu filmei o Santo Forte numa favela chamada Parque da Cidade, de 2.000 pessoas. Qual é a regra do jogo: se o cara morar numa esquina da favela e ele for maravilhoso, ele não pode entrar (no filme). Isso evita todo o lado ideológico que a gente tem, entende? O ideológico, o típico, etc. E é um desafio. Eu tenho que encontrar nesse lugar que eu tinha só uma pesquisa, fazer um documentário desse lugar. Eu preciso encontrar umas 10/15 pessoas maravilhosas, senão, não tem filme. [...] 105

Eu não vou procurar o pitoresco, o maravilhoso. ‘Ah! Esse é típico da alienação da classe média, só que ele mora em outro prédio.” Não me interessa. Tem que estar naquele lugar. Então, eu escolhi o Máster porque era um prédio interessante. Por isso que o Peões é mais complicado: porque eu tive que filmar num lugar imenso: o ABC. Fui ao Ceará. Então a prisão espacial ficou meio dissolvida pelo tema.

MT: Como foi o processo de Peões ? ED: Complicado, porque eu tinha um fato histórico, um gancho histórico complicado, você tem que ter uma relação com a história muito mais factual, mais verídica. Um cara que não fez greve não pode entrar no filme. Eu tive que ir ao sindicato, ter informações sobre pessoas, procurar pessoas. São Bernardo tem 700.000 habitantes. O ABC tem 2 milhões. Daí, fui para aquele lugar do Ceará. Mas sabe, é vasto demais o campo. O meu sonho um dia, é fazer um filme numa casa só, com uma família ou ainda fazer um filme com um personagem só.

MT: Como surgiu a idéia de Edifício Máster ? ED: Quando a Consuelo (Lins) me falou do prédio em Copacabana, que ela queria fazer um filme sobre o prédio onde ela tinha escritório, o ” clic” na cabeça, quando ela falou no prédio, eu pensei: ”achei uma prisão que não seja a favela”. Porque um prédio é uma unidade e como eu conhecia o Máster , eu tinha morado lá seis meses, aquele prédio e aquele corredor imenso, eu falei: ”pronto!” Isso é um mundo fechado. No final, você não tem nenhuma imagem do prédio. Inclusive, eu filmei de fora. Não tem nenhuma imagem do prédio. Isso é maravilhoso. A claustrofobia fica total. O que me atraiu foi isso: ”um prédio”. Esse prédio deu autorização. O síndico. Eu não sabia se o prédio era bom ou ruim. Eu não conhecia ninguém que morava lá. Daí, em duas semanas de pesquisa, você tem que achar um filme. Sem personagem você não tem filme. Esse desafio é que eu acho... Eu podia dizer limite, limite espacial. Posso chamar de prisão, que é uma forma de humor negro para falar. Mas sabe o que é bacana da prisão? Se eu escolhi aquela prisão, parece que é uma limitação. Mas nessa limitação que eu criei, eu sou absolutamente livre. Se eu faço um filme num morro sobre religião, ninguém vai querer botar dinheiro nesse filme, eu estou livre de qualquer especulação. Ninguém está interessado, nem a ficar no morro. E nesse sentido, eu sou inteiramente livre. Se eu fracassar, não tem o menor problema. Negócio do prédio em Copacabana, um filme que só tem gente falando, não tem nenhuma imagem da praia, eu estou inteiramente livre, eu não devo contas a ninguém, entende? Isso 106

me dá um prazer. Só tenho forças para filmar se for partir disso. Se eu for fazer um filme baseado no Grande Sertão Veredas , eu estou aniquilado de cara. Eu já entro com uma culpa monumental. Como é que eu vou fazer um filme à altura do Grande Sertão ? Eu não quero nenhum grande tema, fazer um filme sobre Canudos , não! Eu vou fazer um filme de coisa mais humilde, “mais pequena”: a vida num prédio. E ninguém faz filme sobre a classe média, então, tinha esse lado interessante. Agora, outra coisa: uma favela, o último dia do ano (ele se refere à Babilônia 2000 ), bom ou ruim: é um risco. Vamos lá. Vai ser superficial, cinco equipes, vamos ver o que acontece. Esse jogo é que dá prazer, entende?

MT: Como você vê a ética no documentário? ED: Tem diretores que não percebem que o problema do documentário é que o cara (personagem) existe antes do filme e vai existir depois. Então, se ele for demitido e o filme provocar isso, isso é ruim. Se ele ficar desmoralizado na comunidade, é ruim. Não é o que o intelectual vai achar dele, é se a comunidade onde ele vive. Eu não posso “prejudicar ele” na comunidade onde ele vive. Isso é que é difícil: a tentativa de ver o outro de igual para igual. Embora você seja de classe social superior, quase sempre, e mais do que isso, você tem a câmera e a montagem, você realmente tem um poder extraordinário. Mas na hora da filmagem, nesse encontro, que eu chamo de encontro, é encontrar naquele momento, que dura meia hora, uma hora, momentos que são de uma igualdade utópica e temporária. Mas isso é uma bela utopia. E na verdade eu preciso mais dele que ele de mim. [...] Agora, ao mesmo tempo, ele diz uma coisa extraordinária, que eticamente vai atrapalhá-lo e eu às vezes vou tirar esse troço que ele diz. Isso é uma corda-bamba: o que você tira, o que você põe. O que você deixa ou não deixa. Não tem manual para isso. Não tem nenhum manual dizendo. Cada caso é um caso. Você tem que conhecer o ambiente que você filmou, a pessoa que você filmou e ter certeza de que deve se feito isso ou aquilo. E nunca você tem certeza absoluta.

MT: Como você trabalha a montagem? ED: Eu esqueço todas as seqüências visuais que possam ter, porque isso vem depois, e trabalho com personagens que se constroem pela fala. Às vezes tem ações, mas basicamente pela fala. E aí começo com personagens que têm 30, 20 min (de duração), até serem reduzido a dois, sete, cinco minutos, mas leva tempo. Embora seja aparentemente fácil, é muito trabalhoso, porque tem minha opinião, eu ouço a montadora, eu ouço pessoas 107

que me cercam, eventualmente, faço projeções de copiões. Porque a gente fica tão dentro, que não consegue mais ver de fora, entende?

MT: Você adora trabalhar com mulheres, não? ED: Eu adoro [...] e geralmente as mulheres são as melhores espectadoras de meus filmes e geralmente são os melhores personagens, sabia disso? Por razões evidentes: a mulher se esconde menos que o homem. O homem que revela emoções é veado. Tem toda uma história. A mulher diz na maior tranqüilidade da história da vida dela, que ela foi corneada, que ela foi humilhada. Para um homem dizer isso, só se for masoquista.

MT: E com relação à equipe? ED: Eu não me interesso em trabalhar com o melhor fotógrafo do mundo. Assim como eu espero que ele também não espere trabalhar com o melhor diretor do mundo. É preciso que faça a liga, entende? Em documentário, são cinco, seis pessoas. Você passar um mês filmando e ter problemas... pelo amor de Deus. Não há por que ser uma coisa sofrida. É sofrido às vezes porque tem complicações. Mas tem que ser... respirar junto. Porque senão é insuportável, não é?

MT: Você concorda com a idéia de que Edifício Máster sintetiza melhor seus dispositivos? ED: Eu acho que ficou mais forte porque daí não tem cobertura. O som de um plano é o som daquele plano. Não tem off . Não tem nada. Nesse sentido sim. Não é por ser de classe média. É porque ele tem essa concentração que o Babilônia já tem quase todo, mas ele tem mais ainda. Cada plano tem o som. O som daquele plano. Nenhum som de um plano invade o outro plano. Não tem frescura visual, não tem quadro na parede. Tudo o que tem de imagem é do cotidiano das invasões, das entradas nossas. Do elevador. Dos corredores. Ele tem um princípio. E ele é feito em torno disso e se basta. Não precisa de perfumaria que eu odeio, né? Tem as janelas que eu acho fundamentais no filme. Os quartos vazios porque os quartos vazios são maravilhosos. Eu hoje nem sei de quem são os quartos. Não importa. Se são daquele velho, do outro lá. São quartos… Eles já são anônimos e depois esses quartos que estão no começo eles vão ser preenchidos por vidas. Então, para que que enquanto eu entrevisto, eu mostro o apartamento? Você tem uma geografia, 39 metros quadrados de espaço. Melhor decorado, pior decorado. Não importa. Eu não quero ligar. 108

Quando eu filmei o camelô que mora no apartamento que parece uma favela. Quando a câmera entra, você vê mais ou menos isso. Depois é a cara dele. Acabou. [...] Tudo é utopia. As que me interessam são as pequenas. As grandes não me interessam. Uma utopia é fazer cinema no Brasil. A outra utopia é fazer cinema documentário no Brasil. Para que, né? A outra utopia, então, é esta de estar vazio ou estar em igualdade com o outro. É impossível, mas como utopia é melhor que outras utopias. É um fim a que você visa ainda que nunca chegue.

MT: O que significa estar vazio durante as conversas? ED: Estar vazio é o seguinte: você tentar estar desarmado em relação ao outro. [...] As posições políticas, as idéias que o cara teve. Você não está lá para julgar o outro. Você está para saber as razões do outro e não as suas razões. E sabendo as razões do outro é tentar entender por que ele tem essas razões. Então, a partir disso você é um cara que está lá, vazio. É um vazio que tem que ser preenchido. Claro que é impossível ficar inteiramente vazio. É uma tentativa. Se eu vou ouvir o cara que é racista eu tenho que estar aberto para saber por que ele é e não é. Vazio significa que você tem que ser preenchido pelo outro. E aí tem um lado feminino e um lado masculino. Porque isso não basta. Se você ficar inteiramente vazio. Se você não provocar com questões não basta o vazio. [...] No documentário, o erro é essencial. É impossível fazer um documentário sem erro. O filme de ficção: Visconti, não tem erro! O grande poeta: não tem erro! O documentário é o erro, a precariedade. Ele é baseado nisso. O documentário é incompleto, precário, por excelência e natureza. Quando eu estou falando com as pessoas, quantas vezes eu digo o que não devia dizer. Quantas vezes eu deixo de perguntar uma coisa que eu devia perguntar para o público entender. Todo momento eu posso falar no momento errado, calar no momento errado e quando falar eu posso fazer a pergunta errada. Todo momento, quando eu estou montando, eu vou vendo as burradas que eu faço. [...] Conversa é uma negociação de desejos. Ele (o personagem) pode ter desejo de contar várias histórias, de construir um personagem que eu posso não gostar. Porque pode ter exibicionismo, que é ruim, que é arrogante. E posso gostar.

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MT: O que significa ser passivo e ativo na abordagem com o personagem? ED: Eu fui fazer o Peões e ninguém me definia o que era ser peão. O último cara que foi filmado, por coincidência, eu pergunto o que é peão. Ele dá uma definição dele. [...] Daí ele fala: Mas eu não queria que meus filhos fossem, minha vida, como eu. Daí, é outro problema. É o lado que eu já errei várias vezes: você não fala nada. Tem o silêncio. Se eu quisesse falar qualquer coisa, aquele silêncio não havia. Quando ele falou aquilo, ele estava com uma cara que ele tinha entrado no fundo do poço. Eu sei que ele está sofrendo, quando acabar a filmagem, ele vai ficar contente porque desabafou. O sofrimento é bom para ele e para o filme é maravilhoso. Como ele vai sair dessa? Passa um, passam dois, passam três segundos. E ele sente que o buraco afunda mais, porque eu não falo nada. Eu fico quieto. Eu estou atrás da câmera, você não está vendo, mas eu estou ali, com a cara ansiosa, tentando ser compreensivo, mas não posso falar, e ele lá. E depois de uns 28 segundos que ele grunhiu só, totalmente em silêncio, eu soube como ele saiu do fundo do poço e, mais maravilhoso, eu soube como ele saiu, com uma genialidade absoluta: Porque ele soube me botando no papel de vítima ou de interlocutor dele, porque ele me perguntou: ”você já foi peão”? Na hora que terminou o filme e foi absolutamente extraordinário. [...] Então tem momentos em que você tem que ser duro, inclusive , mas não pode chorar com o cara e entrar na câmera, sabe? Acabou a filmagem desse silêncio, a gente se abraçou. Eu agradeci muito.

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• Walter Carvalho

Entrevista realizada por Mariana Tavares para esta dissertação de Mestrado. Foi gravada em vídeo Betacam em 09.06.05, na residência do cineasta no bairro do Cosme Velho, Rio de Janeiro, e contou com a colaboração do cinegrafista Guilherme Dutra e do iluminador

Niênio Isidoro, ambos da Rede Minas de Televisão.

Mariana Tavares: Fale para a gente de Um Filme de Cinema , trabalho que você vem desenvolvendo nos últimos anos. Walter Carvalho: Eu estou produzindo, com a ajuda de alguns amigos produtores, um filme que eu chamo de Um Filme de Cinema, que é um documentário sobre o próprio cinema. A idéia inicial do filme nasceu quando eu comecei a perceber alguns planos dos filmes que eu fotografo ou dos filmes que eu fotografei. Planos que por alguma razão têm alguma importância para aquele filme ou por causa da beleza plástica ou por causa do momento, da emoção do ator ou da importância dramatúrgica daquele plano narrativo, etc. E na montagem, por alguma razão, ele não é usado, ele vira um excedente dentro da montagem. Eu comecei a perceber que eu poderia juntar esses planos dos mais diversos filmes que eu fotografei e montar uma história a partir desses planos. A idéia evolui para um outro caminho, na medida em que eu descobri que poderia fazer isso com filmes que eu não fotografei. [...] Na verdade, como eu trabalho um pouco, já faz quase 30 anos que eu estou filmando, que eu estou trabalhando com cinema, é um assunto que eu passei a me familiarizar com ele. Conheço um pouquinho desse universo da produção de um filme. Então eu estou me sentindo à vontade, um pouco para lidar com esse tema que é o tema que eu trabalho. Como se eu virasse a câmera dentro do próprio cinema.

MT: É um filme fora do filme... WC: Ou dentro, ele pode ser um filme fora, mas, num certo sentido, pode ser um filme dentro do próprio filme. Então eu entrevistei algumas pessoas, já tem alguns depoimentos. Depoimentos de pessoas que nem são ligadas ao cinema diretamente, como Ariano 111

Suassuna, que me contou histórias da infância dele em relação ao cinema, muito interessantes.

MT: Você está fazendo em 35mm? WC: Vai ser um tipo de documentário que vai ter várias bitolas, vários formatos. Já filmei em Super-35, já filmei em 35mm, já filmei em 16mm, já filmei com vídeo. Tem uma seqüência que eu estou tentando resolver o que eu vou fazer com a fotografia. Fotografia estática.

MT: Não deixa de ser uma declaração ao cinema... WC: Com certeza. Uma relação muito carinhosa. Um filme sobre a afetividade de uma pessoa em relação à sua própria atividade. [...] O cinema é um tipo de atividade que converge várias atividades nisso. De um certo ponto de vista, eu sou um artista plástico. Eu não faço exposições de pintura, mas eu sou formado em Design , eu sou Gráfico-Design , eu trabalho com objeto, estudei isso. Trabalho com o plano bidimensional, a representação da imagem no plano bidimensional. Sou fotógrafo. Antes de ser um fotógrafo de cinema, antes de ser um cineasta, antes de ser diretor, eu sou fotógrafo.

MT: O que deve ter num bom documentário? WC: Eu tenho uma tendência a gostar das coisas que me emocionam. A música, por exemplo, é uma coisa que me emociona. Eu, de vez em quando, me toco, me surpreendo absolutamente emocionado com a música. Eu acho que uma pessoa que se concentra numa sinfonia de Mozart, está indefesa. Perde a sua capacidade de reagir, entendeu? Está entregue, eu acho.

MT: Como surgiu a idéia de Janela da Alma ? WC: O Janela é uma idéia do João, meu grande parceiro, meu grande amigo, meu irmão. Ele me ligou e falou assim: “Waltinho, eu queria te convidar para fazer um trabalho comigo como diretor, eu não quero só como fotógrafo, eu quero você como diretor.”

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MT: Foi seu primeiro trabalho como diretor de longa-metragem? WC: De longa, sim. Eu acho que sim. Ele é muito míope (o João Jardim) e eu também sou. Naquela época, eu tinha oito de miopia, hoje eu tenho 10. Ele falou assim: ”eu estava pensando fazer um filme sobre a miopia”. O primeiro momento que ele falou, eu estranhei. Você já imagina uma pessoa de óculos. E aí a gente começou a conversar. [...] E a gente começou a desenvolver a idéia e começamos a entrevistar vários tipos de pessoas que podiam ter alguma ajuda a dar nesse sentido, inclusive o nosso oculista, que é um oculista comum.

MT: Como vocês fizeram o levantamento das pessoas que vocês iriam entrevistar? WC: Primeiro, a gente fez uma listagem de pessoas que usavam óculos, tinham uma miopia muito forte, que iam de Woody Allen a Jô Soares. Tinha um leque de pessoas muito grande. O que é curioso é que durante essa pesquisa, durante essas entrevistas que nós fizemos, nós começamos a descobrir que não era um filme sobre a miopia. Nós começamos a descobrir que nós estávamos falando do olhar. Quando menos esperamos, estávamos falando do olhar. Daí a frase quando lançamos o filme: ”um filme sobre o olhar”. Porque tornou-se mais abrangente, mais interessante falar do olhar do que da visão especificamente. Senão a gente provavelmente ia cair num didatismo ou talvez num academicismo, não sei. E ao mesmo tempo que ficou mais abrangente, o tema ficou abstrato. Então o filme nasce disso. O filme nasce de uma idéia que se desenvolve com um outro tipo de abordagem e resulta no filme. É curioso como o filme atinge um público enorme como documentário.

MT: Como você define o documentário hoje? WC: Eu acho que o documentário que vê através da câmera abre essa janela e consegue, através dessa janela, transmitir uma alma, uma vida, uma verdade, eu acho que isso pode ser a definição de um documentário.

MT: Tem algum filme ou escola no cinema que tenha te marcado mais? Influenciado? WC: O Cinema Novo. O Cinema Novo foi importante para eu entender um pouco mais não só de cinema, como do próprio país. O Cinema Novo, a Bossa Nova, eu tenho 58 anos.

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MT: Você chegou a fazer filmes naquela época? WC: Não, quando eu comecei a querer entender de alguma coisa, coincide exatamente com a Bossa Nova. Já era uma consagração e aí você junta isso à geração dos que viram nascer , Caetano, Gil, Milton. Eu acho que isso foi determinante. Foi a primeira vez que eu comecei a ouvir Bob Dylan, foi a primeira vez que eu comecei a ler Cabral. Em 68, eu estava com 20 anos, 21 anos. Com certeza foi uma pessoa que foi muito importante para eu entender foi o Glauber. Acho que Glauber, Nelson (Pereira dos Santos) e Joaquim Pedro são responsáveis por uma geração. Por um entendimento que uma geração passou a ter das coisas, entende?

MT: Antes do Janela você já tinha feito curtas... WC: Eu fiz curta. Eu fiz um documentário sobre o incêndio do MAM, MAM S.O.S, e depois eu comecei a fazer um documentário sobre a desativação da região do MAM, que era a região do prostíbulo mais famoso do Rio de Janeiro. Eu cheguei a filmar a desativação, mas nunca terminei esse filme. Depois eu acompanhei sozinho, com uma câmera e um gravador pendurado, tentando gravar sozinho a derrocada do prédio da UNE. O prédio foi sendo derrubado e eu ia lá e filmava, também nunca acabei esse filme.

MT: O curta sobre o incêndio no MAM foi finalizado? WC: Foi, esse foi. É um problema de sobrevivência mesmo. Sempre fui deixando meus projetos para depois, não só por uma questão de sobrevivência, como de ser fotógrafo dos filmes que eu queria fazer, filmes dos amigos e que eu tinha interesse e tal. [...] Para mim, o que é interessante no documentário é exatamente isso: é a capacidade que você tem de não controlar o que você vai fazer: É exatamente aí onde está o grande entendimento. É aí que uma coisa em arte e eu considero o documentário nesse sentido também, é quando uma coisa se transforma em outra. Quando um documentário faz, pega um determinado tema e consegue registrar o momento em que uma coisa se transforma em outra coisa, você está perto de realizar uma boa observação da realidade. [...] Considerando que o documentário é uma reflexão, uma observação e um entendimento da realidade. E quando o documentário atinge um nível profundo disso que eu estou dizendo (de uma coisa que se transforma em outra), ele vira ficção. Ele é tão perto da realidade que ele fica ficção. Ele fica ficcionado. Eu acho que o Ônibus 174 é o maior exemplo disso. O 114

documentário perto da aproximação de uma coisa que se transforma em outra e que isso eleva o seu pensamento. Deixa de ser uma coisa feita por você sozinho, você, que eu digo, uma equipe, e passa a ser de todos. Quando aquela compreensão se multiplica.

MT: Tanto pode ser transformada pela própria forma do documentário ou estar no momento em que as coisas estão se transformando... WC: É possível. Eu acho que é mais a maneira com que você vê aquilo. Porque muitas vezes uma coisa que pode estar se transformando na sua frente, nem sempre é tão interessante pelo fato de estar se transformando.

MT: Fale mais de seu envolvimento com os filmes que você fotografa... WC: Eu sempre participo da direção. Eu não consigo ser só um fotógrafo. Eu vou além: eu contribuo, eu ajudo, eu descubro, eu me interesso, eu não fico só na minha área. Até por que eu acho que a fotografia é um recurso, um suporte, uma ferramenta do cinema. Você se utiliza da montagem, do roteiro, do argumento, dos atores, do som, para o seu discurso cinematográfico.

MT: Que tipo de documentário você se interessa em fazer? WC: Eu acho que o tipo de documentário que eu me proponho a fazer não deixa de lado a possibilidade do próprio espetáculo cinematográfico. Eu não tenho o menor problema, não me comparando, mas me colocando como documentarista . Minha reflexão quando filmo documentário se dá através também da música. E quando filmo, eu filmo uma música na minha cabeça. Então eu acabei de fazer um documentário Moacyr, Arte Bruta. É um documentário sobre um artista plástico esquizofrênico que mora afastado, mora no Planalto Central, em Alto Paraíso em Goiás, onde eu, no momento de filmar, eu não posso te dizer que eu tinha uma música pronta para aquele momento, mas eu tinha uma música imaginária na minha cabeça que acompanhava aqueles momentos. Para mim, o que é um documentário? O exemplo que eu poderia dar, que eu pudesse através de uma metáfora falar para você, é daquele artista popular que trabalha com madeira no Nordeste, que pega um tronco de madeira grande, bruta, tirada da árvore e transforma aquilo numa onça ou numa pessoa ou num bicho qualquer. E ao ser perguntado por alguém como é que ele faz para transformar aquele tronco de madeira numa girafa, ele responde: ”Eu pego a madeira e tiro tudo que não é girafa”. Documentário para mim é isso: Você ao se deparar com o assunto que você acha que entende dele, porque para você retratar um assunto, você tem 115

que entendê-lo. Ao se aproximar desse assunto, eu acho que você tem que, não só no momento de filmar, como no momento de montar, ser capaz de perceber o que não é do assunto e tirar. Agora, eu não consigo fazer um documentário sem me envolver com isso emocionalmente. Por que? Porque eu faço cinema para me conhecer. A minha atividade como fotógrafo, como cineasta, como documentarista é para me conhecer também. Ao tentar me entender e ao tentar conhecer uma determinada realidade, eu, de certa forma, estou procurando me entender também. Se eu estou diante de um assunto que eu estou retratando, e eu estou tentando através dele me conhecer, eu me coloco dentro dele.