NAIR BENEDICTO E A FOTOGRAFIA DOS ÍNDIOS MOLHADOS - ORALIDADE E VISUALIDADE FOTOGRÁFICA NOS ANOS 1980

Ddo. Caio de Carvalho Proença

PUCRS/CAPES – SEDUC-RS

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Resumo: O presente artigo pretende realizar uma análise do ensaio “Índios Molhados”, produzido por Nair Benedicto após parte de seu acervo molhar em uma enchente na sua casa. Estas fotos, produzidas em 1985 na região norte do Brasil com a temática indígena, foram ressignificadas após o acidente, que alterou suas tonalidades e visualidade. Tais fotografias podem ser contextualizadas em um momento de transformações sociais no Brasil, além de uma historicidade própria das imagens fotográficas produzidas sobre os povos indígenas no Brasil, conforme aponta Tacca (2011). Sobre contexto brasileiro da transformação da fotografia e da formação da carreira de Nair de cunho jornalístico para documental, Coelho (2005) apresenta quais mudanças o país vivenciou no sentido fotográfico e visual neste período. Desenvolveremos uma analise acerca da visualidade de Nair neste ensaio a partir da proposta de Ricœur (2000) e Mauad (2012), contemplando tanto a trajetória da fotógrafa e os usos das fontes ao longo do tempo.

Palavras-Chave: Nair Benedicto; Fotografia Documental; Indígenas no Brasil; Ditadura Militar.

Abstract: This paper intends to carry out an analysis of the essay “Índios Molhados”, produced by Nair Benedicto after part of his 35mm negative archive being submerged in a flood in his house. These photos, produced in 1985 in the northern region of with an indigenous theme, were re-signified after the accident, which changed its tones and visuality. Such photographs can be contextualized at a time of social change in Brazil, in addition to the historicity of the photographic images produced on indigenous peoples in Brazil, as pointed out by Tacca (2011). Regarding the Brazilian context of the transformation of photography and the formation of Nair's career from journalistic to documentary, Coelho (2005) presents what changes the country experienced in the photographic and visual sense in this period. We will develop an analysis about the visuality of Nair in this essay based on the proposal by Ricœur (2000) and Mauad (2012), considering both the trajectory of the photographer and the uses of the photography over time.

Key-words: Nair Benedicto; Documentary; Indigenous peoples in Brazil; Military dictatorship in Brazil.

O empenho deste texto é apresentar de quais formas Nair inicia seu olhar acerca da visualidade dos povos originários no Brasil dos anos 80, suas memórias, trajetória e produção fotográfica. Desde quando eu pesquisava as trajetórias dos fotógrafos das revistas Veja e IstoÉ nos anos 1970, a nível de mestrado em história1, havia entrado em contato com Nair em mais de uma oportunidade para descobrir como era sua relação com a fotografia. Num determinado aspecto, Nair esteve imersa pelo contexto social de miserabilidade e informalidade vivida pelos brasileiros dos anos 1960-1990. Nesse sentido, apoio-me nas leituras de Maria Beatriz Coelho (2012), Fernando de Tacca (2011) e depoimentos de Nair Benedicto2, que abordam o lugar da fotografia no Brasil e o contexto econômico-social vivido ao longo da Ditadura Militar (1964-85), além das diferentes visualidades fotográficas produzidas sobre os indígenas desde 1900 até 1980 para compreender a trajetória e sua visualidade.

Oriento a leitura dos relatos feitos por Nair Benedicto como fragmentos de memória do seu passado, de sua prática fotográfica, assumindo que a experiência dela envolve alguns aspectos bastante singulares: a experiência de viver na capital paulista ao longo do período da Segunda Guerra Mundial, a precarização das condições trabalhistas dos anos 1960, a insatisfação pessoal pelo abandono e da condição de vida dos brasileiros de forma geral, a sua circulação por todo território nacional documentando fotograficamente questões relacionadas ao mundo do trabalho, autonomia profissional, engajamento pelo fim da ditadura e, finalmente, o seu engajamento por uma causa humanística – a defesa da dignidade humana – que se desenvolve numa prática fotográfica de denúncia e também no seu aspecto pedagógico do olhar, ao narrar visualmente situações que remetem sentidos variados ao observador.

1 Cf. PROENÇA (2017). 2 A coleta de depoimentos junto com a fotógrafa priorizou a metodologia de história oral temática (Meihy, 2018).

No sentido de elaborar sua trajetória, Nair Benedicto assume um papel, através da sua prática documental3, de estabelecer rumos e guias das suas pautas principais na fotografia. De modo pessoal, se estabelecendo quase sempre como uma fotógrafa que atuava não apenas a partir de encomendas de fotografias, mas sim na busca de criar um repertório característico de suas motivações próprias. Desse ponto, surgem séries fotográficas que constroem a narrativa visual dos tempos da sua trajetória: os povos indígenas, a mulher no meio urbano, as condições políticas e lutas sociais no período da ditadura militar, a busca do outro e, também, as condições trabalhistas no Brasil.

I – Uma trajetória para a fotografia: a Nair Benedicto e o campo da fotografia brasileira nos anos 1980

Nair Benedicto possui uma vida praticamente inteira voltada a defesa de causas sociais, direitos humanos, preservação da terra e vida indígena e na defesa de causas trabalhistas. A fotografia foi a ferramenta que ela utilizou ao longo dos anos 1960, 70, 80 e até a atualidade para documentar e mostrar a quem quer ver as desigualdades e explorações ocorridas em diversos cenários e contextos brasileiros.

Ela nasceu em 1940, na cidade de São Paulo. Neta de quatro avós italianos que vieram para o Brasil como imigrantes, passaria sua infância por condições difíceis junto com seus pais. Nesse período que ainda era criança, Nair relembra que “vivia no bairro da Liberdade, e pertinho da nossa casa tinha a sede de um jornal que não era propriamente comunista, mas visto como transgressor nessa época”, e além de ter seus pais como figuras representativas de comprometimento com as dificuldades dos outros, percebeu que seu redor também existia a dificuldade e o acolhimento do outro, pois “quando a polícia batia nesse jornal, sempre lembro que era uma correria. Meus pais acolhiam crianças das famílias dos trabalhadores do jornal em casa, e lembro bem dessa arrumação de camas para dar lugar a mais uma criança4”.

3 Fotografia documental no sentido de LUGON (2007) e MONTEIRO; ETCHEVERRY (2019). 4 Depoimento de Nair Benedicto, realizada em Porto Alegre em Maio de 2016. Além das fotografias e da entrevista, utilizei-me de um levantamento fotográfico do seu acervo pessoal disponível em Livros

Benedicto é formada em rádio e televisão pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), em 1972. Nem todos os fotógrafos(as) desse período possuíam uma formação no Ensino Superior, Nair Benedicto se enquadra nesse momento como uma das profissionais da fotografia no país com formação universitária. Ao longo dos anos 1980 e 1990, a formação passa a se tornar mais comum nessa área, como relembra Maria Beatriz Coelho (2012).

Em 1969, o decreto-lei 972 criou a reserva de mercado para graduados em jornalismo. A disciplina de rádio, televisão e fotografia passou a constar nos currículos das faculdades, ainda que os fotógrafos continuassem a ser socialmente desvalorizados. Dos 129 fotógrafos, nascidos entre 1940 e 1970, que mais publicaram e participaram de exposições no Brasil, pelo menos 102 possuem curso universitário. (COELHO, 2012, p. 120).

Essa formação faz com que ela se relembre que antes de entrar na USP, teve contato com Vilém Flusser “ele era um pensador da fotografia brilhante. Também tive aulas de literatura com o Alexandre Barbosa, que nos propiciou muitos debates”, logo que entra na USP, Benedicto se queixa da situação acadêmica “na USP nós não tínhamos debates, o curso de comunicação era muito ruim, começamos a contestar tudo, nos mobilizamos e trouxemos o Rossellini e o Edgar Morin. Sem dinheiro sem nada, conseguimos fazer com que o curso se mobilizasse”. Essas mobilizações que Nair Benedicto se envolve ao longo de sua juventude são depois lembradas como momentos de formação de princípios “depois de 64 foi a gota d`água, tínhamos que nos posicionar, e ali foi um momento da minha vida de formação e aprendizagem sobre tudo o que estava errado. Para lutar e tentar mudar algo”.

Do ponto de vista fotográfico, o Brasil dos anos 1970 e 1980 também é o momento que as agências fotográficas e revistas semanais começam a surgir (PROENÇA, 2017; SOUZA JÚNIOR, 2015), se delineando em torno dos movimentos da profissionalização da fotografia (SOUSA, 2004; MONTEIRO, 2015) além da publicação de jornais independentes, como O Movimento. Benedicto colaborou com fotografias em revistas semanais, nas agências fotográficas e também “colaborava para o Movimento, que era um

fotográficos, no site N-Imagens, na revista Veja e IstoÉ, que me possibilitou acompanhar o lado público e social de sua trajetória e identificar alguns percursos na sua inserção no espaço público desse período.

jornal alternativo constantemente censurado nos anos 1970, assim como o São Paulo, um jornal organizado pelo Dom Evaristo Arns”, relembra Nair Benedicto.

A prisão de Nair ainda quando era estudante da USP, em 1969, ficando detida pelos militares durante 9 meses, quando era mãe de três filhos, casada e estudante de jornalismo, fez com que ela entrasse realmente no mundo fotográfico.

Quando eu fazia rádio e televisão na USP eu pensava seriamente em trabalhar com televisão, queria ser free-lance, fazer minhas discussões em pequenos formatos, coisas de dez minutos em vídeo profissional, queria produzir e oferecer produtos televisivos, sem vínculo empregatício com ninguém. Estava encaminhando bem. Eu até havia feito uma viagem para pesquisar equipamentos. O fato é que eu não consegui nada, porque, além de tudo, para trabalhar em televisão você tinha que apresentar o “raio” do atestado de boa conduta, cuja exigência era ilegal, totalmente ilegal, mas era exigido por todas as emissoras. Sem ele, você não permanecia em televisão alguma.

A sua prisão no DOPS cria o primeiro impedimento para seguir com a profissão que queria, de cinegrafista na televisão.

Esse impedimento fez a fotografia aparecer como uma alternativa em minha vida. Vi na fotografia a possibilidade de trabalhar com o que eu queria, que era a imagem. Mesmo que eu encontrasse dificuldades para mostrar minhas fotografias, a possibilidade era maior,eu podia trabalhar independente, sem vínculos empregatícios.5

A fotografia passa a ser a principal fonte de renda de Nair, que atua até hoje como fotógrafa, buscando além de denunciar os descasos sociais no Brasil, demonstra a sua afinidade e proximidade com causas que já vivenciava quando criança e estudante: as condições sociais dos trabalhadores e o futuro dos profissionais jovens. Ao longo dos anos 1970, após sair do espaço de repressão da ditadura, Nair Benedicto funda, junto com outros fotógrafos, a Agência F4 de Fotojornalismo. Atuou lá de 1979 a 1991, fotografando como freelancer para diversos veículos de comunicação no Brasil e exterior, como Veja, IstoÉ, MarieClaire, Paris Match, Newsweek e Time.

Os anos 1980 foram marcados por um crescimento na inauguração de agências de fotografia no país. A princípio, elas serviam como pequenos negócios da imagem, e

5 Depoimento de Nair Benedicto a Paulo César Boni (2013), publicado na revista discursos fotográficos.

obviamente faziam circular suas fotografias com mais organização do que as sucursais de jornais e revistas se propunham. O engajamento político, a reivindicação de direitos trabalhistas para os fotógrafos, viriam a surgir apenas no fim dos anos 1970 e início dos anos 1980, carregado pelo clima político em pleno processo de abertura democrática e lutas sindicais e trabalhistas no país6: Ágil Fotojornalismo (DF), Agência F4 (SP), Agência Ponto de Vista (RS), agência ASA (BA), Kamara-Ko (PA), Tyba (RJ), Geraes (MG), Extra Fotojornalismo (MG), Agência Angular (SP)7, por exemplo.

As agências formavam uma teia de relações e uma rede de profissionais que dialogavam pautas e objetivos em comum, tanto nos anos 1960 quanto nos anos 1980. A partir desse cenário político e social, as agências deixaram de ser apenas pequenos negócios de imagem para também compor as discussões sobre profissionalização do fotógrafo, criação de direitos trabalhistas para a categoria, tabelas fixas de valores e a luta por espaço visual, propriedade de seus negativos e autoria fotográfica, que eram temas não totalmente respeitados ainda no meio da imprensa nacional (COELHO, 2012).

Neste período que Nair Benedicto atuou na Agência F4, cada vez mais sua fotografia vai se tornando uma forma de expressar e dar a ver desigualdades vividas por diversas regiões do Brasil, em meio a ditadura militar. Nos anos 1980, em especial, Nair dedica-se também a fotografar os povos indígenas em cidades e nos interiores dos estados brasileiros.

Junto com o ambiente de abertura política no Brasil dos anos 1980, Nair Benedicto se junta a diversas causas a fim de denunciar visualmente situações precárias de vida, as lutas pela terra, as culturas dos povos originários e seus ritos. A presença dos indígenas no meio urbano e rural. Essa fotografia também pode ser percebida como uma forma de denúncia, característica do momento vivido nos anos 1970 e 1980 no Ocidente (SOUSA, 2004). Além disso, o olhar perante os indígenas no Brasil possui sua própria historicidade, que deve ser compreendida a fim de problematizar a visão e a visualidade (Menezes, 2015) produzida sobre os indígenas, e Nair Benedicto se enquadra nessa história.

6 Cf. SOUZA JÚNIOR (2015) e PROENÇA (2017). 7 Cf. PROENÇA (2017).

II – A produção fotográfica sobre os povos originários no Brasil: considerações historiográficas desta visualidade

Para Stuart Hall, o conceito de etnicidade na historiografia comumente vem sido elaborado a fim de perceber as construções de discursos que se fundam nas diferenças entre características culturais e religiosas de determinados grupos (HALL, 2003, p. 51). O foco de diversas visualidades8 construídas por fotógrafos acerca da imagem dos indígenas no Brasil quase sempre levaram em conta as diferenças entre os habitantes de centros urbanos, geralmente católicos, brancos e pertencente às elites até meados dos anos 1950, devido ao escasso acesso aos equipamentos fotográficos e inclusive a possibilidade de ser fotógrafo nessa época, perante um olhar do habitante das florestas atlânticas e seus ritos.

No momento que se iniciou os primeiros registros fotográficos sobre os povos indígenas no território brasileiro, o olhar foi do visitante que vê o exótico. Assim, no início do século XX, as fotografias dos indígenas circulavam como forma de apresentar, via cartões postais impressos, a figura exótica que sobrevivia de maneira diferente dos brancos. Essa visualidade constata um uso da visualidade produzida para exploração e exclusão, a partir da fotografia, pela visualidade de diferenças de costumes, vestimentas e fenotipias. A professora Lilia Schwarcz (1993) também reforça que esse olhar perante o outro não-branco era comum no século XIX e início do XX, muito devido às causas do cientificismo europeu ainda vinculado à um olhar segregante. Obviamente o discurso legitimado pela ciência fez uso das imagens, naturalizando o olhar perante os indígenas como estranhos, diferentes. Hall (2003) ainda apresenta que este significado atrelado ao termo de raça é uma construção social e política. Veremos que a construção social de raça também será reforçada ao longo da primeira metade do séc. XX pelos usos da fotografia indigenista.

Fernando de Tacca (2011) apresenta que houve pelo menos três momentos da visualidade fotográfica dos indígenas sendo produzida no Brasil: uma visão cientificista, outra atrelada a construção de imagem da nação e uma visão antropológica e simbólica,

8 No sentido de MENEZES (2005).

mais vinculada ao campo das artes visuais. O primeiro olhar é justamente o que vê os indígenas como seres “exóticos/selvagens”, um olhar conjugado pelo racismo cientificista do séc. XIX, “com fotografias em formatos de cartões-postais publicadas em revistas científicas europeias, após expedições de estrangeiros em busca dos índios amazônicos em seu habitat natural”, e continua,

A produção isolada dos fotógrafos aqui elencados, pertencentes ao século XIX e nas fronteiras do século XX, demonstram inicialmente uma presença exótica dos nativos nos trópicos – similar a muitas outras produções –, a alimentar o gabinete de curiosidades do mundo europeu sobre povos distantes e ‘primitivos’. Algumas fotos do período são abusivas de práticas de domínio do corpo de nativos como espetáculo visual e com grau elevado de superioridade na condução da produção fotográfica. As fotos realizadas pelo reverendo George Brown nas Ilhas Salomon, em 1902, são exemplares desse abuso (TACCA, 2011, p. 203).

Esse olhar do europeu viajante moldou a visualidade sobre os povos indígenas em um primeiro momento, já fundado antes mesmo do surgimento da fotografia, de modo a priorizar um olhar que separava o homem “civilizado” daquele “primitivo”. Ao longo do início do século XX, principalmente após as primeiras produções fotográficas da Comissão Rondon, a visualidade sobre os indígenas passa a se transformar não apenas em uma visão sobre o exótico, mas também sobre tradições pertencentes à cultura de qualquer brasileiro: o pertencimento àquela raça9.

Essa visão, que já fora construída de outras formas na literatura, música, escritos históricos e inclusive na política, de que os indígenas eram selvagens (e a parcela que fora dominada pelos brancos eram os bons-selvagens) foi se perpetuando e passando também por um processo que Lilia Schwarcz chama de “romantização da repressão dos povos indígenas no Brasil” (SCHWARCZ, 2019, p. 167). Esse processo de romantização fez parte da segunda visualidade construída fotograficamente sobre os povos indígenas no Brasil (Tacca, 2011, p. 204) quando da fundação do Serviço de Proteção ao Indígena (SPI, 1911) buscou integrar os povos, mapeando-se o local, desbravando suas terras e

9 Aí temos de reforçar a visão social de raça, muito discutida por Djamila Ribeiro (2019), Lilian Schwacz (2019) e Silvio Almeida (2019).

procurando estabelecer contato com eles. Esse processo de “redescoberta” foi problemático,

Nesse momento dado à voga do positivismo e das teorias deterministas raciais, a certeza do progresso e da evolução única levava a justificar uma política de extermínio, como se tais populações estivessem previamente condenadas ao desaparecimento. Apesar dos termos expressos na Constituição republicana, tardaria para que uma política sistemática de proteção e inclusão fosse implementada, e mesmo essa, nos tempos atuais, precisa de muita ratificação para que as terras indígenas não sejam sujeitas a constante risco e sob litígio e disputa de responsabilidade. (SCHWARCZ, 2019, p. 169).

A Comissão Rondon realizou de 1912 até 1956, a partir de sua Seção de Cinematografia e Fotografia, a publicação de fotogramas e álbuns fotográficos durante todo esse período. Nesse momento, a visualidade construída por fotógrafos que acompanhavam as Comissões do SPI foi utilizada pelas elites e por governantes a fim de elevar o sentimento nacional por meio de suas origens mais remotas: os povos indígenas e tudo o que eles representariam.

Os álbuns, os artigos publicados nos principais jornais do país e principalmente as apresentações dos filmes seguidas de conferências, funcionavam como uma espécie de marketing pessoal e uma forma de persuasão para a continuidade das atividades da comissão. Visavam principalmente a elite urbana, sedenta de imagens e informações sobre o sertão brasileiro, e principal grupo formador de opinião. Assim, Rondon alimentava o espírito nacionalista construindo etnografias de um ponto de vista estratégico e simbólico: a ocupação do oeste brasileiro através da comunicação pelo telégrafo, pela visualidade da fotografia e do cinema mudo. (TACCA, 2011, p. 206).

Esse uso, algumas vezes indiscriminado, da imagem dos povos indígenas moldou a segunda metade dos anos 1900 rumo ao sensacionalismo midiático10 e também ao ufanismo no “mito das três raças” de (SCHWARCZ, 1993). E essa imagem do indígena tradicional contribui para a formação de um imaginário coletivo sobre o indígena no Brasil, e “devemos principalmente à Comissão Rondon e à revistaO Cruzeiro a sedimentação dessa visão, ainda presente nos dias de hoje” (TACCA, 2011). A partir

10 Como no caso da fotorreportagem em Cruzeiro do casamento de uma indígena do caiapó com um sertanista, no viés do cruzamento entre as raças elaborado por Darcy Ribeiro, publicadas nas edições “Minha noiva é uma índia” (1 nov. 1952), “Kalapalos invadem a ‘cuiabá’ dos arranha-céus” (29 nov. 1952) e “Abandonada pelo branco morreu Diacuí” (22 ago. 1953).

dos anos 1970 e 1980, a visualidade sobre os povos originários passam a se transformar, principalmente pela produção fotográfica de Claudia Andujar (MAUAD, 2012).

Entre 1972 e 1977, quando é enquadrada na Lei de Segurança Nacional, Claudia (Andujar) realiza uma imersão fotográfica orientada pela determinação de “recriar as imagens do invisível”, afastando-se da perspectiva documental, na busca de uma expressão integral dos rituais xamânicos e da mitologia Yanomami. Este percurso é na pautado na relação de confiança que se desenvolveu na convivência de meses de permanência nas aldeias, permitindo-lhe elaborar uma nova abordagem da experiência fotográfica afastada dos padrões clássicos da representação indigenista (grifo nosso, MAUAD, 2012, p. 133).

Claudia Andujar registra o cotidiano dos Yanomami de maneira totalmente diferente das visualidades criadas pela fotografia na historiografia visual passada. Os registros dela nos induzem a perceber elementos mágicos presentes nos rituais11, que não são nos dado a ver por não pertencermos a cultura dos Yanomami. Nesse sentido, Tacca (2011, p. 220) aponta que Andujar “apresentar-nos a possibilidade do invisível, a fotografia assume outra função, a de magicizar nosso deslumbramento com as luzes imanentes do sobrenatural”, e continua, “revela uma poética sobre o outro muito distante do cerco imagético realístico da antropologia, e a ideia do índio tradicional ganha outra dimensão, agora contemplando a complexidade dessas culturas próprias”.

Dessa forma, percebe-se que algumas dimensões da visualidade sobre os indígenas pela fotografia possui uma historicidade clara, na divisão de uma visão positivista e antropológica, com qualidades realísticas do olhar europeu imerso nas discussões do racismo-científico do século XIX (SCHWARCZ, 1993); da fotografia ufanista e antropológica do período da primeira metade dos anos 1900, quando o indígena foi percebido nos campos da Sociologia, Antropologia e História como membro fundador da sociedade brasileira, reafirmando a partir do uso indiscriminado da fotografia para fins de marketing político e social dos governos e elites, que reafirmavam nesse momento o mito da chamada democracia racial (SCHWACRZ, 1993; ALBERTO, 201712) e, ao

11 A partir do uso de elementos óticos e da técnica fotográfica na mistura de cores, movimentos, sensações, conforme apresentado mais detalhadamente por Mauad (2012) e pela própria Claudia Andujar (2019) em depoimento no seu último livro fotográfico publicado pelo IMS. 12 A obra da professora Paulina Alberto é interessante na perspectiva de desconstruir a noção de democracia racial no Brasil, a partir de releitura e pesquisa acadêmica de intelectuais negros no século

longo dos anos 1970 e 1980 uma visualidade imersa no cotidiano dos indígenas, ainda que coexistindo com as outras visualidades passadas, presentes em outros meios além dos da academia e do campo das artes visuais.

O restante do texto será elaborado a partir das discussões no Simpósio Temático e tratamento das fontes visuais com autorização da agência N-Imagens. Outro texto semelhante está em processo de aprovação para publicação em revista A4, portanto este será alterado a fim de evitar autoplágio. Mas é representativo do que poderá ser apresentado no ST, caso for aprovado.

DEPOIMENTOS:

BONI, Paulo César. Entrevista: Nair Benedicto. Discursos fotográficos, Londrina, v. 9, n. 15, 2013. PROENÇA, Caio de Carvalho. Entrevista: Nair Benedicto. Laboratório de Pesquisa em História Oral, Programa de Pós-Graduação em História da PUCRS. Entrevista feita em Maio de 2016, Porto Alegre. BENEDICTO, Nair. Sobre mulheres e fotografia. 09 de outubro de 2019. Disponível em . Acesso em 20 de junho de 2020. ANDUJAR, Claudia. A luta Yanomami. Rio de Janeiro: Instituto Moreira Salles, 2019.

ACERVOS CONSULTADOS:

Laboratório e Pesquisa em História Oral, Programa de Pós-Graduação em História da PUCRS. Laboratório de Pesquisa em História da Imagem e do Som, Programa de Pós-Graduação em História da PUCRS. Acervo fotográfico da agência N Imagens, pelas fotografias de Nair Benedicto de 1985- 1989.

REFERÊNCIAS:

ALBERTO, Paulina. Termos de inclusão. Campinas: Editora da Unicamp, 2017.

XIX no Brasil, além de revisitar conceitos que forçaram o “Mito das três raças” de Darcy Ribeiro e outros intelectuais deste período em que as fotografias foram feitas pelas Comissões Rondon. Paulina Alberto é pesquisadora da Universidade de Michigan (EUA) e doutora em História pela Universidade da Pennsylvania (EUA).

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