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Gluck: 300 anos do reformador

Em post recente, abordamos a primeira grande reforma da história da ópera, representada essencialmente por (1698-1782). Dessa vez, aproveitando a comemoração dos 300 anos do compositor alemãoChristoph Willibald [Ritter von] Gluck (1714-1787), completados neste mês, comentaremos a segunda reforma na ópera, por ele conduzida.

Maria Antonieta abriu as portas para a carreira de Gluck na França.

Situando o mestre no tempo, Gluck fez parte de uma leva de artistas alemães “exportados” para Paris em meados do século XVIII, como Friedrich Melchior, o famoso Barão Grimm (1723-1807), e dominou a cena parisiense de 1774 a 1779, graças à proteção de uma ex-aluna, que se tornaria rainha da França: Maria Antonia Josepha Johanna von Habsburg-Lothringen, mais conhecida como Maria Antonieta (1755-1793). Escreveu mais de 100 óperas, das quais apenas cerca de 40 são conhecidas.

Sammartini, professor de Gluck que influenciou muitos compositores do Classicismo.

A formação musical de Gluck foi concluída em Milão com o mestreGiovanni Battista Sammartini (1700-1775) e lá mesmo na Itália teve suas primeiras óperas representadas até 1745, como Artaserse (1741), sobre libretos de Metastasio, que ainda reinava absoluto na época. Passou anos viajando e apresentando seus trabalhos em Paris e Londres – onde o grande Georg Friedrich Händel (1685-1759) o recebe, mas afirma (com sua famosa “delicadeza”) que seu cozinheiro sabe contraponto melhor que ele – e ainda: Leipzig, Dresden, Viena, Copenhague e Praga – nesta última estreou sua bela ópera , também com libreto de Metastasio, da qual temos um vídeo abaixo com uma ária magnífica – deleite para os oboístas. Somente em 1752, voltou à Itália para apresentar La Clemenza di Tito – novamente libreto de Metastasio (percebe-se aqui a onipotência do poeta no período), que foi musicado mais de 50 vezes, sendo a versão de Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) a mais famosa.

Gluck: “Finché un zefiro soave” (Ezio)

[kad_youtube url=”https://www.youtube.com/watch?v=K0zif-quWiU” maxwidth=”600″] Conde Durazzo, personagem visionário e decisivo na nova concepção operística de Gluck, assim como foi o Barão van Swieten (1733-1803) na carreira de Mozart.

Tudo mudou na vida de Gluck quando ele finalmente foi contratado em 1754 para trabalhar como compositor dos teatros imperiais de Viena, onde, graças ao seu diretor, o conde e diplomata Giacomo Durazzo (1717-1794), teve contato intenso com a opéra-comique francesa. Essa experiência contribuiu para desviar Gluck das convenções da seria italiana. Assim, na própria capital austríaca, Gluck apresentou suas novas óperas cômicas a partir de 1758, culminando com La Rencontre imprévue ou Les pèlerins de la Mecque, de 1764 – cuja abertura podemos assistir no vídeo abaixo (note-se que a música turca estava em moda na Viena da época).

Gluck: “Ouverture” (Les pèlerins de la Mecque)

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Calzabigi, grande parceiro de Gluck na reforma da ópera.

No dia 17 de outubro de 1761, Gluck fez representar no Burgtheater de Viena o balé em três atos ou Le Festin de pierre, com argumento e coreografia de Domenico Maria Angiolo Gasparini, mais conhecido como Gaspare Angiolini (1731-1803), futuro coreógrafo deOrfeo ed Euridice, e a colaboração de Ranieri Simone Francesco Maria de’ Calzabigi (1714-1795), futuro libretista de Orfeo. Calzbigi acabara de passar dez anos em Paris e incitou Gluck a romper com a estética convencional de Metastasio.

Don Juan fazia parte de uma corrente reformista do balé, com tendência a privilegiar os aspectos expressivos e humanos da dança diante dos aspectos puramente decorativos. Neste ponto, já era um prenúncio de Orfeo, tanto assim que, para a versão francesa desta ópera, Gluck retomaria para a Danse des furies, a chacona final de Don Juan (áudio abaixo). A propósito, o chamado Sturm und Drang em música teve nessa chacona a sua primeira manifestação na história, segundo a musicóloga francesa Brigitte Massin.

Gluck: “XXXI. : Allegro non troppo” (Don Juan) http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2014/07/Gluck-“Chaconne-–-Allegro-n on-troppo”-Don-Juan.mp3

Um ano depois de Don Juan, foi a vez da montagem de , no mesmo teatro, em 5 de outubro de 1762 – a primeira manifestação da “reforma da ópera” que seria empreendida por Gluck. Seu tema remete às origens da ópera: a Euridice de Jacopo Peri (1600) – considerada a primeira ópera – e o Orfeo de Claudio Monteverdi (1607). Mas se Gluck aparentemente olhava para trás, esta obra desbravou outros caminhos para a ópera. A nova abordagem de Gluck focava a ação dramática, em lugar das distrações virtuosísticas. Já no início se percebe a qualidade diferenciada dessa obra-prima: um coro lamenta a morte de Eurídice em tom formal e elegíaco, enquanto Orfeu chora por ela num estilo vocal eletrizante que prenuncia a era romântica (áudio abaixo). Essa mistura de dois mundos sonoros é puro Gluck, diz Alan Riding no seu guia.

Gluck: “Ah! Se intorno a quest’urna funesta” (Orfeo ed Euridice) http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2014/07/Gluck-“Ah-Se-intorno-a-ques t’urna-funesta”-Orfeo-ed-Euridice.mp3

O momento mais famoso de Orfeo ed Euridice e talvez a passagem musical mais famosa de Gluck – que neste post comemorativo não podia faltar – é a ária “Che farò senza Euridice?”, cantada em tocante tristeza e desespero de Orfeu ao perder sua amada pela segunda vez (áudio abaixo).

Gluck: “Che farò senza Euridice?” (Orfeo ed Euridice) http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2014/07/Gluck-“Che-farò-senza-Eurid ice”-Orfeo-ed-Euridice.mp3

A segunda manifestação viria somente em 16 de dezembro de 1767, após novas viagens de Gluck à Itália – onde ainda trabalhou com libretos de Metastasio. O mestre apresentou , também com libreto de Calzabigi. Essas obras inauguraram uma nova concepção da ópera, mais sóbria e mais dramática, de que a dedicatória de Alceste representa o manifesto das ideias reformadoras de Gluck.

“Pensei restringir a música à sua verdadeira função, servir à poesia na expressão e nas situações dramáticas, sem interromper a ação ou arrefecê-la com ornamentos inúteis, supérfluos […] Pensei, além disso, que meus maiores esforços deveriam reduzir-se a buscar uma bela simplicidade e evitei exibir dificuldades em detrimento da clareza”. [Trecho do prefácio de Gluck em Alceste]

Alceste é mais conhecida pela ária “Divinités du Styx”, interpretada por grandes cantoras do século XX, quando a ópera foi redescoberta, como podemos conferir no vídeo abaixo com a respeitada soprano norte-americana Jessye Norman. Na ária, o rei Admeto está morrendo, e seu povo está por isso desesperado. O deus Apolo recusa um sacrifício animal, anunciando que Admeto viverá apenas se a outra pessoa for sacrificada em seu lugar. A rainha Alceste suspeita que ela é a vítima desejada por Apolo, declarando que vai renunciar à vida por amor.

Gluck: “Divinités du Styx” (Alceste)

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Em 1770, foi levada uma terceira ópera, ainda com libreto de Calzabigi, . Um grande trabalho de Gluck que ainda permanece adormecido. Conta com apenas uma gravação, dirigida por Paul McCreesh pela Deutsche Grammophon. Bela música e cenas profundamente dramáticas perfeitamente integradas. Gluck registrou sua estratégia em elaborar “musicalidades diferenciadas” entre troianos e espartanos pelo “contraste entre a natureza rude e selvagem de um lado (Esparta) e toda a delicadeza do outro (Troia)”. Gluck conduz a transição da ópera barroca para a clássica com toda maestria. Ele frequentemente quebra a convenção da fórmula ária-recitativo – inserindo breves seções recitadas ou adicionando interjeições de outros personagens dentro das árias. O efeito está no fortalecimento do drama num caminho que olha decisivamente para o futuro, de Mozart para frente. No áudio abaixo está uma de suas mais belas passagens, a comovente ária de Paris do quarto ato (áudio abaixo).

Gluck: “Di te scordarmi, e vivere!” (Paride ed Elena) http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2014/07/Gluck-“Di-te-scordarmi-e-vi vere”-Paride-ed-Elena.mp3 Rousseau, célebre admirador de Gluck.

Em 1772, François-Louis Gand Le Bland du Roullet (1716-1786), diplomata da França em Viena, redigiu para Gluck um libreto em francês baseado na tragédia Ipfigénie, de Jean-Baptiste Racine (1639-1699). Tendo decidido conquistar Paris, Gluck preparou-se para isso metodicamente e, em 1773, passou lá uma temporada numa expedição exploratória. Assim sendo, em 1774, fez representar sucessivamente na capital francesa Iphigénie en Aulide (19 de abril) e Orphée et Euridice (2 de agosto), versão francesa de Orfeo ed Euridice. O filósofo, escritor e compositor Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) declarou em bilhete ao cavaleiro Gluck: “Iphigénie derruba todas as minhas ideias. Ela prova que a língua francesa é tão capaz quanto outra qualquer de uma música forte, tocante e sensível ”.

Em 23 de abril de 1776, seguiu-se uma versão francesa de Alceste. O público fica desorientado por não poder classificar Gluck nem entre os italianos, nem entre os franceses. Aqui cabe uma referência à chacona final deAlceste (áudio abaixo), certamente uma das músicas mais belas que saíram da pena de Gluck, coroando o encerramento de sua ópera. Sopros sonoros, cordas brilhantes, tímpanos possantes e trompetes solenes.

Gluck: “Chaconne” (Alceste) http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2014/07/Gluck-“Chaconne”-Alceste.mp 3

O musicólogo francês Roland de Candé sintetiza bem a concepção reformadora da ópera formulada e implementada por Gluck:

1. O interesse dramático é mais bem distribuído: há apenas três atos, em vez de cinco, e o prólogo convencional, que dispersa a atenção, é abandonado. A unidade de ação possibilita a expressão de sentimentos mais fortes e mais naturais.

2. A abertura anuncia o drama. Ela situa seu cenário e seu clima psicológico, servindo-se por vezes dos temas da partitura, como na grandiosa e admirável abertura de Iphigénie en Aulide, ópera da qual o compositor alemão Richard Wagner (1813-1883) era profundo admirador – o vídeo abaixo com o maestro Riccardo Muti é particularmente sublime. Ela pode ter o caráter de uma sinfonia descritiva, pela qual começa a ação, e encadear-se diretamente à primeira cena, como em Iphigénie en Tauride (áudio abaixo).

Gluck: “Ouverture” (Iphigénie en Aulide)

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Gluck: “Introduction – ‘Grand dieux! Soyez-nous secourables’” (Iphigénie en Tauride) http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2014/07/Gluck-“Introduction”-Iphigé nie-en-Tauride.mp3

3. Ao recitativo secco acompanhado ao cravo, Gluck prefere um recitativo arioso acompanhado pela orquestra (áudio abaixo). O gênero fica mais patético e não impõe a ruptura de continuidade.

Gluck: “, que le sang qui m’unit avec vous” (Armide) http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2014/07/Gluck-“Armide-que-le-sang-q ui-m’unit-avec-vous”-Armide.mp3

4. Além disso, as árias nunca são parênteses inúteis. São sóbrias, naturais, sem os ornamentos necessários ao bel canto, que, nas palavras do compositor alemão, “desfiguram há muito a ópera italiana e que, do mais pomposo e do mais belo de todos os espetáculos, fazem o mais ridículo e mais aborrecido”. Um dos mais refinados exemplos dessa ideia de Gluck está na ária celestial de Efigênia no segundo ato de Iphigénie en Tauride – talvez a mais bela da ópera (áudio abaixo).

Gluck: “Ô malheureuse Iphigénie” (Iphigénie en Tauride) http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2014/07/Gluck-“Ô-malheureuse-Iphigé nie”-Iphigénie-en-Tauride.mp3

5. Os coros participam da ação. Em Alceste, o coro que representa o povo é um “personagem” de primeiro plano (áudio abaixo), como se verá mais tarde nas óperas do russo Modest Petrovich Mussorgsky (1839-1881), um dos herdeiros de Gluck.

Gluck: “Que les plus doux transports succédent aux alarmes” (Alceste) http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2014/07/Gluck-“Que-les-plus-doux-tr ansports-succédent-aux-alarmes”-Alceste.mp3

6. A função dramática da orquestra é considerável. A instrumentação não é ornamentada, mas funcional. A orquestra romântica está em formação, com uma busca de caracterização instrumental de certas personagens ou de certas situações, que procede da ideia doleitmotiv . Um exemplo do emprego funcional, e intencionalmente suave, da orquestra está na representação do ambiente dos Campos Elísios em Orfeo. No áudio abaixo, podemos sentir a natureza, com os pássaros cantando, que deslumbra o pastor na ópera. Música de suprema qualidade.

Gluck: “Che puro ciel” (Orfeo ed Euridice) http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2014/07/Gluck-“Che-puro-ciel”-Orfeo -ed-Euridice.mp3

Piccinni passou a representar a oposição à reforma de Gluck em Paris.

Com o impacto de suas belas óperas reformadas em Paris, Gluck atraiu, de uma só vez, calorosos partidários e violentos detratores, do que deveriam decorrer, a partir de 1777, as controvérsias da famosa “querela dos gluckistas e dos piccinnistas”. Niccolò Piccinni (1728-1800) foi um dos mais populares compositores de ópera no seu tempo. Em 1760 ele compôs, em Roma, a opera buffa de grande sucesso La Cecchina, ossia La buona figliuola, com libreto de Carlo Goldoni (1707-1793), executada em todas as importantes capitais europeias – o que o projetou bastante internacionalmente e o fez ser contratado em Paris. Na capital francesa, Piccinni passou a ser o símbolo dos conservadores e manipulado por esses como força contrária às inovações de Gluck. A polêmica não opôs tanto os dois compositores, cujas relações pessoais continuaram sempre cordiais. Na verdade, não era a música que estava em causa, ou, pelo menos, não apenas a música, segundo Brigitte Massin. A despeito de todas as proclamações lançadas, a batalha entre ópera “dramática” (Gluck) e ópera “musical” (Piccinni) na verdade não aconteceu: pouco tempo depois, sem alardes nem manifestos, Massin afirma que Mozart iria mostrar como transcendê-la…

No plano artístico, Massin ressalta que Gluck simplificou os libretos, despojou a música de todo ornamento inútil, ligou a abertura orquestral ao drama em si mesmo, humanizou o recitativo, fez com que o coro participasse da ação e preocupou-se com o aspecto psicológico. Entretanto, não hesitou em proclamar que, para atingir tais fins, a música era apenas um meio, entre outros.

As reformas de Gluck praticamente nada tiveram a ver com o desenvolvimento da opera buffa. Gluck foi para Mozart um exemplo. Este ficou a dever-lhe principalmente Idomeneo (1781) no gênero . No mais, a influência de Gluck também pode ser percebida em algumas passagens de Don Giovanni e nas citações do balé Don Juan na ária de Pedrillo de Die Entführung aus dem Serail e no fandango de Le Nozze di Figaro (áudios abaixo).

Gluck: “XX. Moderato” (Don Juan) http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2014/07/Gluck-“XX.-Moderato”-Don-Ju an.mp3

Mozart: “Fandango” (Le Nozze di Figaro) http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2014/07/Mozart-“Fandango”-Le-Nozze- di-Figaro.mp3

Berlioz, o principal herdeiro de Gluck no Romantismo.

O herdeiro mais autêntico de Gluck não foi o classicismo vienense dos anos 1780, mas – por intermédio de músicos da Revolução Francesa, como Étienne Nicolas Méhul (1763-1817) – o compositor do Romantismo francês Louis Hector Berlioz (1803-1869), como podemos observar na sua grande ópera Les Troyens. De qualquer modo, a carreira de Gluck marcou sua época com um dos dois acontecimentos de grande envergadura que precederam a plena maturidade de Franz Joseph Haydn (1732-1809) e do próprio Mozart – o Sturm und Drang foi o outro fenômeno. Gluck no final da vida.

Nas bases das cinco principais obras de Gluck (Orfeo, Alceste, Iphigénie en Aulide, Armide e Iphigénie en Tauride), todas de caráter elevado, impregnadas de sinceridade e grandeza neoclássica, encontram-se, segundo Massin, princípios humanitários e ideais éticos fundamentais como a amizade, o amor conjugal, o espírito de sacrifício e, sempre, a vitória destes princípios e ideais sobre as forças destrutivas, inclusive a morte. Com justa razão, ele pôde definir sua música como a “linguagem da humanidade”, o que tem tudo a ver com a frase de Haydn ao partir para Londres: “O mundo inteiro compreende minha linguagem”.