Separação Do Acervo Da Escola Nacional De Belas Artes E a Constituição Do Museu Nacional De Belas Artes
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ENTRE PERDAS E DANOS: SEPARAÇÃO DO ACERVO DA ESCOLA NACIONAL DE BELAS ARTES E A CONSTITUIÇÃO DO MUSEU NACIONAL DE BELAS ARTES Marize Malta Hoje, quando visitamos o Museu Nacional de Belas Artes, especialmente a galeria do século XIX, lá estão dispostos os alicerces da arte brasileira musealizada, representados por artistas como Félix Émile Taunay, Marc Ferrez, Vítor Meireles, Pedro Américo, Porto Alegre, Léon Pallière, Almeida Reis, Zeferino da Costa, Belmiro de Almeida, Almeida Júnior, Rodolfo Amoedo, Eliseu Visconti, Rodolfo e Henrique Bernardelli... Ao observamos atentamente para as etiquetas das obras, boa parte delas irá registrar “Transferência da Escola Nacional de Belas Artes,1937”. O ano registrado marca a criação do Museu Nacional de Belas Artes, que re-territorializou grande parte do acervo que pertencia à chamada pinacoteca da Escola Nacional de Belas Artes, de modo a compor o seu próprio acervo artístico, conjunto de pretensa significância para toda a nação. A Academia Imperial de Belas Artes, depois denominada Escola Nacional de Belas Artes, (quando do advento da República), detinha uma coleção artística inestimável, montada paulatinamente desde seus primórdios, a partir de coleções particulares, doações, aquisições, envios de pensionistasI. Sua missão era oferecer ao alunado um conjunto de referências visuais da boa arte, investidas por cópias dos grandes mestres e por obras originais merecedoras de prêmios e prestígio, funcionando como uma espécie de enciclopédia visual artística, fonte segura para um aprendizado que implicava saber olhar para saber fazer. Sua coleção era denominada, de modo geral, de pinacoteca e considerada a maior e melhor em todo o país que, apesar de ter no ensino sua finalidade maior, era tida como uma referência visual pedagógica de gosto para todo e qualquer cidadão que desejasse se instruir nas belas artes. A potencialidade de ser referência para todo o país foi um dos motivos que levaram com que grande parte de suas obras fosse sequestrada para compor o acervo fundamental de uma outra instituição independente, o Museu Nacional de Belas ArtesII. Por mais que sejam raros os documentos institucionais que clarifiquem as disputas e os critérios de escolhas das obrasIII, ao acompanhar notícias dos periódicos de época, podemos perceber o jogo de forças políticas, as estratégias para justificar o desmembramento da coleção original, as ações que vieram a público para ‘esclarecer’ a opinião pública e tê-la como aliada. Nos documentos da Escola há silêncio. É preciso juntar fontes esparsas e notícias de diferentes segmentos, como pedaços de vidro usados para formar um vitral com alguma imagem reconhecível, de modo a se tentar escrever uma história que nos ajude a compreender o que compunha a pinacoteca da Escola antes de seu desmembramento e os jogos de força envolvidos para sua requalificação. Interessa-nos especialmente saber como o acervo se expunha, como as obras se comportavam junto com as atividades didáticas no edifício projetado por Adolfo Morales de los Rios na avenida CentralIV. Tal conformação pode nos sugerir outras formas de se apresentar a arte e historicizá-la, diferente daquela sugerida tradicionalmente pelo museu. No presente trabalho, procuramos perceber as principais referências da coleção didática, a relação do acervo da ENBA com o espaço do edifício da avenida Central, entendendo este acervo como todas as peças que se localizavam nos salões de exposição da pinacoteca e as que eram usadas diretamente nas salas de aula, porque, pelo que tudo indica, suas localizações não eram tão estáveis quanto podemos supor, sendo intercambiáveis conforme as demandas didáticas de cada professor. Se o primeiro prédio Marize Malta 143 da Academia Imperial de Belas Artes, localizado na Travessa das Belas Artes, em fins do século XIX, já não dava conta espacialmente de abrigar as demandas de ensino, do acervo e das exposições gerais, o novo prédio na Avenida Central, por vezes chamado de palácio das Bellas Artes, permitiria uma outra disposição atualizada das necessidades da instituição. Em 1º de setembro de 1909, a revista A Illustração Brazileira publicava reportagem sobre uma visita à nova sede da Escola Nacional de Belas Artes, na Avenida Central, inaugurada solenemente no mesmo dia. O articulista andou pelas dependências da escola, notificou que não era uma obra monumental, mas tinha encanto, e, especialmente, chamou atenção para a melhoria de condições que o novo edifício oferecia para o estudo da arte e abrigo de seu acervo, lembrando que “Rodolpho Bernardelli e quantos amam a arte, viam como as coleções se estragavam naquele velho e escuro edifício, sem luz, da antiga escolaV” . O velho e escuro edifício mencionado era o prédio projetado por Grandjean de Montigny, primeira sede da Academia Imperial de Belas Artes, que abriu suas portas em 1826. Em outra reportagem, mais de uma década depois, Adalberto MattosVI, escrevendo também para Illustração Brazileira, relembrava dos aspectos do velho prédio na Travessa das Bellas Artes. A austeridade predominava nos ambientes e as referências clássicas recebiam seus visitantes logo à entrada: Possuía a velha Escola um ambiente que obrigava quem quer que fosse levar a mão ao chapéu. O ambiente era austero, inspirador de respeito pelas decorações e situação das obras de arte. Ao centro do saguão o Gladiador Borghese, majestoso, cheio de movimentos. Ao alto, pelas paredes, os grandiosos baixo-relevos do ParthenonVII. Ali, as bases da formação do olhar artístico dos estudantes se pronunciavam, bem como se faziam notar os alicerces do que deveria ser entendido como boa arte, bela arte, belas artes. Em documento manuscrito intitulado “Notícia do Palácio da Academia Imperial de Bellas Artes do Rio de Janeiro – 1836 (Pintura, Esculptura, Architectura)VIII” , redigido em 1936, Oswaldo Teixeira (que seria o 1º diretor do MNBA, nomeado em 12/05/1937) registra para o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional as principais obras de referência que habitavam o velho prédio da Academia e em que salas estavam localizadas. Como exemplo, registramos as primeiras indicações do documento, que começava pela lista da coleção exposta muito tempo na primeira sala do prédio da AcademiaIX: Laocoonte, Vênus d’Arles, busto da Vênus de Médici, Cara de Phocion, estátua de Menelau, Diana CaçadoraX, Niobe com uma de suas filhas e um de seus filhos, Braços e Pés do GladiadorXI, Cabeça, Mãos e Pés de um Corpo Esfolado; Mercúrio Grego; Pernas e Braços do Orador RomanoXII. Oswaldo Teixeira talvez tentasse dar conta do que seriam as obras seminais que representavam, 100 anos antes, o núcleo didático da Academia e o que elas representavam (ele conta a história de cada uma das personagensXIII). Ao falar do Torso de Belvedere, Teixeira coloca entre parênteses a informação de que a mesma estátua se encontra nas atuais galerias de escultura da Escola Nacional de Belas Artes. Ao listar o quadro Deucalião e Pirra, de Annibale Caracci, avisa que “o quadro que possuímos no atual Museu de Belas Artes do Rio de Janeiro é um dos melhores da seção de arte antiga e tudo indica ser de Annibale Caracci (...)XIV” . Ali, ele exercitava a formação de um núcleo da boa arte ocidental, digna de figurar em um museu de arte nacional. O acervo já era denominado de museu de belas artes do Rio de Janeiro. Com o passar das gerações, o aspecto respeitoso da antiga academia projetada por Grandjean não abrigou mais condignamente as necessidades espaciais de uma instituição de ensino, apresentando, Marize Malta 144 segundo relatos, ateliês com pouca luz e espaços expositivos exíguos. Mesmo passando por três ampliações, em 1854-57, quando ganhou uma galeria para exposições, em 1882-84, quando se ampliou o segundo pavimento na parte central, e em 1885-86, com o acréscimo do 2º pavimento da pinacoteca , o prédio não satisfazia mais as necessidades da instituição. Havia reclamações de salas impróprias e da falta de acomodações convenientes. A coleção da pinacotecaXV se ampliara e o ensino da arte se expandira enquanto o prédio cerceava as possibilidades de crescimento da instituição. Com o novo edifício na avenida central, os espaços pareciam oferecer, com generosidade, um lugar de destaque para a arte no cenário da cidade capital. Imagem 1. Aula de pintura – modelo vivo. A Illustração Brazileira, n.7, set. 1909, p.120. Imagem 2. Aula de Desenho Figurado. A Illustração Brazileira, n.7, set. 1909, p.120. Marize Malta 145 Imagem 3. Secretaria da Escola Nacional de Belas Artes na avenida Central. A Illustração Brazileira, n.7, set. 1909, p.121 Imagem 4. Conselho Escolar, reunido sob a presidência de Esmeraldino Bandeira, ministro da Instrução Pública. Sentados à direita do ministro: Rodolfo Bernardelli, diretor da Escola, barão Homem de Mello, Graça Couto, Au- gusto Girardet, Modesto Brocos, Rodolfo Amoedo. À esquerda do ministro, sentados: Diogo Chalréo, secretário da Escola, Belmiro de Almeida, Araújo Vianna, Zeferino da Costa, Ludovico Berna, Henrique Bernardelli, João Baptista da Costa e Eliseu Visconti. A Illustração Brazileira, n.7, set. 1909, p.122. Marize Malta 146 Retomando o artigo de 1909, o repórter narrou o percurso da visita e registrou o que mais lhe chamou atenção, sugerindo como se articulavam os ambientes da nova sede da ENBA: Entra-se por um portão de bronze, que se encaixa na parede, de cimento armado. Há o primeiro saguão. Sobe-se para o segundo, onde há uma escada de mármore. Desse segundo saguão partem duas grandes galerias, para onde dão diversos salões de aulas. Ao fundo corre uma outra galeria, para onde dá o salão da biblioteca. Na parte da frente, estão instaladas a sala das congregações, a sala dos professores, a do diretor, a do secretário. Ao centro, abre-se um pátio, para a luz interior. No primeiro pavimento há, ao fundo, a grande galeria de exposição. Dá acesso a essa galeria uma linda escada em forma de S que desabrocha num belvedere he- lênico, e esse belvedere fica em frente da porta mestra da galeria e dominando dois lances de terraços verdadeiramente esplêndidos.