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FICÇÃOTELEVISIVAINSPIRADAEM JORGE AMADO: DE GABRIELAA TIETA

Isabel Ferin Cunha∗

Índice cença (Mesquita e Rebelo, 1994; Ribeiro, 2002). O segundo período, corresponde a um cenário de 1 Contextos e conceitos...... 1 ajustamento à legislação europeia, no qual se in- 2 Gabriela: dar a ver os quotidianos da po- sere a reprivatização da economia e a abertura aos lítica e da intimidade...... 4 privados do mercado dos media, após aprovação 3 Alguns apontamentos conclusivos... 16 do Decreto-Lei número 53/91 de 26 de janeiro de Bibliografia...... 17 1991. As séries Tenda dos Milagres e Teresa Ba- tista Cansada de Guerra e a Tieta mar- cam o período de transição do monopólio estatal de televisão para uma situação de mercado, com o 1 Contextos e conceitos início das atividades dos dois operadores privados S obras de Jorge Amado inspiraram algumas de televisão, SIC (Sociedade Independente de Te- A das e séries brasileiras, produzi- levisão) e TVI (inicialmente Televisão da Igreja e das pela TV Globo, que tiveram grande visibili- após 1997, Televisão Independente). dade em Portugal: a telenovela Gabriela, emitida Aquando da emissão da Gabriela, anos se- entre maio de 1977 e janeiro de 1978 na RTP1; a tenta, os dados sobre audiências – não havia em- série Tenda dos Milagres com início no dia 21 de presas nem técnicas adequadas a medições de au- outubro de 1990 na RTP2; a telenovela Tieta que diências – eram escassos e não foram feitos estu- foi exibida na RTP1 entre outubro de 1990 a maio dos de receção. No início da década de noventa de 1991 e Teresa Batista Cansada de Guerra que cerca de 85% das famílias portuguesas possuíam inaugurou a programação da SIC em outubro de televisão e os dados de audiência eram aferidos re- 1992. gularmente por uma empresa. Nesse período de Estas obras de ficção seriada foram emitidas transição de uma situação de monopólio para uma em dois períodos políticos e mediáticos distintos situação de mercado, a questão da medição das au- que convém relembrar. O primeiro período tem diências começou a impor-se de forma imperativa. no centro a exibição de Gabriela e foi para o ar Os valores de audiometria associados a programas, em 1977, acompanhando o final do PREC – Pro- vinham condicionar a capacidade das televisões cesso Revolucionário em Curso, que se seguiu ao captar cotas de publicidade, ou seja financiamento, 25 de abril de 1974 – e o início do processo de e estabelecer preços para anunciantes em todos os normalização democrática. Nesse período o pa- segmentos de horários. Na compreensão atual dos norama mediático nacional caracterizava-se pelo media a ideia de audiências está vinculada à afe- monopólio estatal de televisão e pelas nacionaliza- rição do número de indivíduos consumidores de ções dos órgãos de comunicação, acompanhados determinado produto de televisão, dependendo da de lutas internas entre fações partidárias, das quais aplicação de tecnologias de audiometria e estatís- são exemplos o caso República e Rádio Renas- tica que permitam calcular os consumos de televi- ∗Universidade de Coimbra, Faculdade de Letras. de reprodução, distribuição, comunicação pública ou transforma- ção da totalidade ou de parte desta obra carece de expressa auto- c 2018, Isabel Ferin Cunha. rização do editor e do(s) seu(s) autor(es). O artigo, bem como a c 2018, Universidade da Beira Interior. autorização de publicação das imagens, são da exclusiva respon- O conteúdo deste artigo está protegido por Lei. Qualquer forma sabilidade do(s) autor(es). Isabel Ferin Cunha são à fração de segundo e em valores universais, selho, Professor Marcelo Caetano, periodicamente como share, rating, audiências médias e totais. Os se dirigia aos portugueses pela televisão. índices de audiência permitem avaliar quantitativa- O panorama mediático televisivo em Portugal, mente a adesão que os produtos/programas obtêm nos anos setenta, assentava no monopólio estatal aquando a sua emissão. As audiências são, nesta de televisão, em 387 512 aparelhos de televisão perspetiva, aproximações quantitativas aos gostos registados (Barreto, 1996) e nos dados de audiên- e validam, quer tendências de consumo, quer a pre- cia da empresa de sondagens Norma que, em 1970, ferência por determinado tipo de programa tele- calculava que 78,8% da população portuguesa que, visivo, quer ainda a publicidade emitida. Dados tendo televisão, assistia regularmente às emissões. desta natureza, para os dois períodos que pretende- Independentemente da fiabilidade destes dados – a mos analisar, são ainda indicativos tendo em consi- eletrificação do país, nesse momento, não ultrapas- deração o monopólio estatal televisivo que vigorou sara os 60% do território – começava a desenhar- até ao início das emissões da SIC, em outubro de se um consumo de massas associado à televisão e 1992. uma programação vocacionada para este público. A ideia de receção envolve a apreensão pelos Neste contexto a rádio era o meio com maior pe- indivíduos de sentidos veiculados nas mensagens netração junto das audiências e mesmo após a re- mediáticas. Há muitas formas de entender esta volução de Abril, tendo um papel preponderante apreensão, que correspondem a diversas perspeti- em todo o país. Durante o período revolucioná- vas teóricas sobre o papel dos media, os seus efei- rio a programação da rádio centra-se na informa- tos nos indivíduos e na sociedade, a capacidade ção, nos debates políticos, no teatro, nos progra- de negociação que cada indivíduo e a coletividade mas de auditório, nos discos pedidos e nas músi- tem dos sentidos das mensagens, ou ainda a pro- cas de protesto. Mantém-se no ar, também, pro- pensão dos cidadãos e dos consumidores mediáti- gramas de humor e rádio novelas, como o folhetim cos satisfazerem necessidades e obter satisfações Simplesmente Maria emitido na Rádio Renascença pessoais a partir do uso dos media. Estes estudos até final de 1974 (Teves, 1998). Convém reter que não foram, também, realizados aquando da emis- o êxito deste folhetim tem antecedentes nos anos são em Portugal, das adaptações dos romances de sessenta, nas fotonovelas e nas revistas direciona- Jorge Amado à televisão. das para mulheres. Estas publicações circulavam nos cafés dos bairros, entre amigas e nos cabelei- Para compreender o impacto da ficção televi- reiros, num período em que se acelerou as migra- siva exibidas em Portugal, a partir da adaptação ções rurais para os centros urbanos e se assistiu à dos romances do escritor Jorge Amado, teremos entrada das mulheres das classes médias e médias que recuar até ao início da revolução de 25 de abril baixas no mercado de trabalho, em decorrência da de 1974 e recordar alguns fenómenos anteriores. industrialização e das guerras coloniais. Primeiramente lembramos que o Movimento das Após a revolução de Abril, o movimento a que Forças Armadas (MFA), além de ter utilizado os se designou PREC procurou criar uma dinâmica de meios de comunicação para concatenar o ataque revolução cultural, utilizando quer o exército, quer e derrubar o poder ditatorial, identificou a neces- associações culturais, com o objetivo de fazer sair sidade de controlar os órgãos de informação ao do subdesenvolvimento largas camadas da popu- ocupar, fisicamente, a rádio e a televisão. Em se- lação (Dionísio, 1994: 452). Neste contexto, co- gundo lugar, os mesmos meios serviram de cor- meça a tomar forma uma indústria mediática vo- rente transmissora ideológica de opções partidá- cacionada para públicos de massa, onde sobressai rias e “deram voz” a movimentos reivindicativos a indústria cultural brasileira, que tivera nos anos e organizativos de cidadãos, permitindo, em mui- trinta grande penetração em Portugal, nomeada- tos momentos, diversas manipulações ideológicas mente através da literatura, da música, do teatro da informação e da comunicação (Maxwell, 1999: e do cinema. 76;137; Reis, 1994: 16-17). As primeiras reflexões, críticas, sobre a in- A enunciação deste percurso pressupõe que dústria cultural advêm dos integrantes da Es- existia na sociedade uma clara compreensão que o cola de Frankfurt (Benjamin, 1978; Horkheimer e campo dos media envolvia audiências, bem como Adorno, 1978; Adorno, 2003) que nos finais do sé- estes determinavam processos de receção e de per- culo XIX e inícios do século XX, se debruçaram so- suasão dos públicos. Para esta compreensão muito bre a mercantilização das formas culturais ocasio- contribuíra as Conversas em família, programa po- nadas pelo surgimento das indústrias de entreteni- lítico do Estado Novo, em que o presidente do con- mento na Europa e nos Estados Unidos. Em plena www.bocc.ubi.pt 2 / 18 Ficção televisiva inspirada em Jorge Amado: de Gabriela a Tieta expansão da televisão, Morin (1967: 11) define a do “império colonial” como Luanda, Nova Lisboa cultura de massa como um corpo de símbolos, mi- (Huambo), Lourenço Marques (Maputo) e Beira – tos e imagens concernentes à vida prática e à vida locais onde a imprensa “cor-de-rosa “ tinha uma imaginária, um sistema de projeções e de identifi- vitalidade muito apreciável – ou ainda às cidades cações específicas. Segundo este autor a cultura de de Cabo-Verde, onde a música e a literatura brasi- massas é uma cultura que apresenta contradições leiras tinham angariado um vasto público. entre as exigências produtivas da industrialização, Dada a escassez dos dados sobre audiências de tais como a homogeneização, a estandardização e televisão, a reconstituição do ambiente, ou melhor as necessidades inerentes à individualização e ino- a tentativa de aproximação aos contextos que rode- vação próprias de um mercado de consumo. aram a receção dessas obras só pode ser feita recor- A televisão surge dentro deste contexto, como rendo a jornais e a revistas contemporâneas que se o meio privilegiado de comunicação de massa, per- dirigiam a públicos diversos. Assim, para enqua- mitindo alternar os sentidos (ver e ouvir) e as si- drar a receção da telenovela Gabriela, recorremos tuações de envolvimento e distanciamento, ofere- a dois periódicos que atingiam um público vasto cendo simultaneamente formas de entretenimento e se aproximavam da sensibilidade política domi- cultural e participação social (Buonanno, 2008: nante da época: o semanário O Jornal (1975-1992) 41). A televisão reflete, ainda, sobretudo no prime- e o Diário de Lisboa (1921-1990). O Jornal foi um time ou horário nobre, as mudanças políticas, eco- semanário direcionado para um público-alvo de nómicas e culturais das sociedades, os ritmos de classes médias assalariadas ideologicamente pró- trabalho e os quotidianos e suas expectativas. É, ximas do centro-esquerda. Caracteriza-se pelo seu também na televisão, e principalmente no horário fotojornalismo e por apresentar secções bem de- nobre, que empresas, anunciantes e programadores limitadas de Artes, Espectáculos, Cinema, Rádio, procuram compatibilizar as expectativas das audi- Teatro e Televisão. O Diário de Lisboa, foi um jor- ências com diretivas políticas e indicadores soci- nal diário vespertino, próximo da esquerda comu- oeconómicos, que seguem o princípio dar ao pú- nista, que tinha como público-alvo trabalhadores blico aquilo que o público quer ver (Gitlin, 1994; da indústria e dos serviços. Aos fins-de-semana Newcomb, 2002). publicava um suplemento cultural designado Sete- A(s) indústria(s) cultural (ais) brasileira(s) já ponto- Sete. tinham tradição em Portugal, mas adquiriram novo No final da década de oitenta e início de no- folgo no início dos anos sessenta, momento em venta, após sucessivos planos de reajustamento que o Brasil começa a consolidar determinados económico liderados pelo FMI, os indicadores eco- segmentos da cultura de massa e a exportar os seus nómicos e sociais portugueses aproximavam-se produtos, tais como a música popular (MPB), li- lentamente dos países integrantes da União Eu- vros e revistas e programas de ficção televisiva ropeia (UE). No campo dos media, surgem os (Straubhaar, 1984). Para compreender este fenó- primeiros grupos privados com projetos na im- meno teremos que relembrar, igualmente, as re- prensa (por exemplo, Independente, 1988, e Pú- lações culturais transatlânticas incentivadas pela blico, 1990) e na rádio (por exemplo, TSF, 1988), ditadura na década de sessenta – com o objetivo enquanto a televisão estatal consegue uma maior de manter os emigrantes ligados às suas origens estabilidade e independência dos poderes políticos – tais como as tournées de atores, cantores e ar- e governamentais a partir da revisão constitucional tistas portugueses no Brasil – por exemplo, Laura de 1989, que abriu caminho à atividade de opera- Alves, Amália Rodrigues e Raul Solnado – bem dores privados neste sector (Paquete de Oliveira, como as presenças na rádio e na televisão de ar- 1992). tistas brasileiros, como Vinícius de Morais, Tom Para contextualizar as obras de ficção televi- Jobim ou Juca Chaves. Recorda-se, também, a siva adaptadas das obras de Jorge Amado, emitidas presença desde o início do século XX da indústria entre 1990 e 1992, consultámos a Revista Maria, editorial brasileira em Portugal, nomeadamente a a Revista do Semanário Expresso e o jornal diário presença de coleções de livros publicados pelas Público.A Revista Maria é uma revista semanal Livraria Martins de São Paulo e da Livraria Edi- direcionada para mulheres, com cerca de 389 500 tora do Globo, então com sede em Porto Alegre, exemplares de tiragem nesse período, que teve iní- ou já nos anos sessenta, os fascículos temáticos cio em novembro de 1978 e contém rúbricas de e os livros de banda desenhada editados no Bra- aconselhamento de beleza, culinária, moda, suges- sil e vendidos em Portugal. Lembramos, ainda, tões da semana, mas também mantém outras rú- que esta presença estendia-se às grandes cidades bricas como: Aconteceu na Igreja Universal do www.bocc.ubi.pt 3 / 18 Isabel Ferin Cunha reino de Deus; Sexo; Conto da semana; Diário nal quer económico, criam uma constante tensão de Maria; Horóscopo e Bebé do ano. A revista do e expectativa. O estatuto social das audiências é, Expresso integra o semanário com maior tradição na generalidade, muito mais modesto que o con- em Portugal, direcionado preferencialmente a um junto das personagens apresenta, sendo que os pro- público de quadros médios e superiores, profissio- blemas que enfrentam são comuns (sucesso eco- nais liberais e europeístas, politicamente mais pró- nómico, sexo, poder e competição social, quotidi- ximos do chamado centro político da governação anos familiares e sociais conflituosos, problemas (PS/PSD). No período em análise tem uma estra- de saúde, drogas, álcool, etc. ), mas apresenta- tégia de discussão de políticas públicas, nomeada- dos de forma mais concentrada e intensiva do que mente dos meios de comunicação social, ao que realmente vivenciam no quotidiano. Uma das ou- não será estranho o facto do seu proprietário, Fran- tras características deste género ficcional é a espe- cisco Pinto Balsemão, ter concorrido a uma das li- culação sobre o desenvolvimento da trama, sendo cenças para televisão. O diário Público insere-se que em cada episódio há uma promessa de reso- na nova dinâmica de mercado criada após a libera- lução das questões pendentes. Esta estratégia nar- lização do campo dos media em 1989. Este diário, rativa proporciona prazer às audiências, pois sus- vocacionado para um público jovem, escolarizado, cita uma interatividade próxima dos jogos de adi- urbano e europeísta, tem uma estratégia cosmo- vinhação, permitindo aos espectadores confrontar polita, dando grande relevância à opinião política, as suas competências narrativas com o desenvol- aos assuntos internacionais e à cultura. vimento do enredo e comportamento das persona- A consulta destes periódicos, sem esgotar todo gens. o espectro social e político, pretendeu abranger, Quando em 17 de Maio de 1977 se inicia a nos respetivos períodos temporais analisados, di- exibição da telenovela Gabriela, adaptação do ro- ferentes públicos e recolher diferentes sensibilida- mance de Jorge Amado, produzida pela TV Globo, des da opinião pública, nomeadamente através dos havia já um público que era frequente consumi- críticos de televisão. dor de diversos produtos da indústria cultural bra- sileira, nomeadamente da obra literária de Jorge Amado. A chegada a Portugal de um contin- 2 Gabriela: dar a ver os quotidianos gente de intelectuais brasileiros exilados da dita- da política e da intimidade dura, após o 25 de abril veio, também, dinamizar esta aproximação, sobretudo se tivermos em conta A telenovela é um género televisivo com origens a presença de encenadores como Boal e José Celso soap opera na norte-americana, que por sua vez e a intervenção, bem como parcerias, que mantive- foi desenvolvida a partir da radionovela e da foto- ram no teatro português. novela, com heranças advindas da tradição literá- Nos jornais da época as secções com notícias ria ocidental, tais como folhetins literários seriados referentes à cultural brasileira eram frequentes e nos jornais, revistas e novelas para senhoras e ra- com grande visibilidade. Por exemplo, na secção parigas. Reis e Lopes (2002:401-402) consideram Artes/Letras/Espectáculos de O Jornal, do dia 6 de que a estrutura externa de uma telenovela obedece maio de 1977, que antecede o início da chegada da aos condicionamentos socioculturais e às solicita- telenovela Gabriela pode-se ler na página 24, es- ções económicas (publicidade, etc.) que a envol- crito por José Vaz Pereira: vem. A telenovela caracteriza-se principalmente por três características: a hora e a frequência da emissão, a economia da sua construção e o tipo de “Lisboa teve oportunidade, na última audiência que atrai. Trata-se de um programa diá- semana, de apreciar três filmes brasi- rio semanal, com custos de produção relativamente leiros. Para um cinema que nunca nos baratos que atrai sobretudo audiências adultas fe- visita é um pequeno acontecimento, mininas. Os enredos das telenovelas são funda- quase uma lança em África. Pode mentalmente povoadas por pessoas da classe mé- ser que a promoção seja feita, daqui dia e média alta. É constante o recurso a enredos para o futuro, por via indirecta, isto sociais e familiares complexos e a relações emo- é, quando a TV vier a exibir anun- cionais e interpessoais intrincadas, onde o poder e ciada série «Gabriela, Cravo e Ca- a expectativa de sucesso e fracasso, quer emocio- nela», romance da Baía baseado na 2 Pereira, José Vaz, “Hora do Brasil”, O Jornal, 06/05/1977, p. 24. www.bocc.ubi.pt 4 / 18 Ficção televisiva inspirada em Jorge Amado: de Gabriela a Tieta

obra do mesmo nome do grande Jorge Artes/Letras/Espectáculos/Televisão, do dia 1 de Amado...”2 Abril de 1977, na página 26, com o título ,” «Gabi- rela, cravo e canela»: seis meses de folhetins diá- Na mesma página e na mesma matéria é anun- rios”. Nesta notícia salienta-se que o folhetim era Dona Flor e seus dois maridos ciado o filme , ins- uma adaptação realizada pela TV Globo do Rio de pirado no livro do mesmo escritor e realizado pelo Janeiro, do romance com o mesmo título de Jorge cineasta Bruno Barreto, com música de Chico Bu- Amado, escrito em 1952, publicado em Portugal arque. Uma página à frente lê-se: dois anos depois, e que contara com a colabora- “Salas cheias de um público entusiás- ção de James Amado, irmão de Jorge Amado, para tico, tem marcado a ainda curta car- supervisor da adaptação. Ainda não conseguindo reira de «Barraca contra Tiradentes», identificar o género televisivo telenovela, a mesma espectáculo apresentado pelo grupo notícia refere que a série televisiva com um total de teatro independente «A Barraca» de 131 capítulos de 30 minutos cada, será apre- e com encenação do dramaturgo bra- sentada entre nós na versão original e prolongar- sileiro Augusto Boal”.3 se-á durante seis meses. Mais à frente salienta que a crítica brasileira que normalmente não perdoa a A chegada da Gabriela à RTP1 insere-se num mediocridade das novelas a considerou como uma processo maior da expansão da indústria cultural das realizações mais equilibradas da Globo por brasileira, a que não é estranha a “moda Portugal” espelhar uma experiência de grande importância no Brasil, que decorre da contraposição entre a re- na pesquisa da autêntica cultura brasileira. volução dos cravos, cantada por Chico Buarque no Na segunda-feira 16 de maio de 1977, dia que Fado Tropical, e o regime de ditadura vivido nesse antecede o início da exibição da telenovela Gabri- país. A este contexto acresce mais uma restrutura- ela,O Diário de Lisboa (DL), apresenta na pá- ção interna da RTP, uma das muitas que se sucede- gina cinco, dividindo o espaço com uma notícia ram no pós PREC, e que foi conduzida por Carlos sobre “Ainda a ‘guerra’ da RDP: comunicado da Cruz e em seguida por José Niza,4 com o objetivo Secção PS” uma publicidade (mais de metade da de despolitizar e despartidarizar a sua programa- página) a Jorge Amado, onde o escritor aparece ção. A chegada de Gabriela inclui-se, ainda, no no lado esquerdo numa fotografia a meio corpo, lançamento de uma nova grelha de programação, tendo no canto superior direito um close da atriz considerada pelo novo diretor adaptada às neces- Sónia Braga (Gabriela) e desenhos representando sidades deste país, neste momento.5 A integração as principais personagens e atores de Gabriela. Na desta telenovela neste novo mapa de programação mesma publicidade, numa tarjeta de fundo preto deve-se, também, no nosso entender, à presença lê-se: após esgotar 10 edições em livro, Portu- em Portugal, no pós 25 de abril de muitos intelec- gal recebe Gabriela pela televisão. Com o mesmo tuais brasileiros ligados ao teatro, cinema e artes. cheiro de cravo, o sotaque baiano e a cor de ca- Em 1977 a situação política encontrava-se em nela. Em baixo encontram-se os logotipos da RTP acelerada mudança com vista à estabilização de- e da Rede Globo. Na mesma publicidade há re- mocrática. O público estava saturado de progra- ferências biográficas e à obra do autor, bem como mas políticos e a derrocada do império colonial, à sua adaptação à televisão uma recriação para- bem como a chegada dos retornados, envolvia nos- cinematográfica da rede Globo do livro de Jorge talgias identitárias que encontravam ecos nos con- Amado. Na sexta-feira, dia 20 de abril, o DL faz teúdos e nas formas da indústria cultural brasileira. uma reportagem sobre a 47a Feira do Livro de Lis- Assim, um novo género televisivo, a telenovela, e boa6 e escreve que: um autor conhecido, Jorge Amado, davam a Ga- briela um sucesso garantido. “A Europa-América apontou as bate- O primeiro anúncio no O Jornal desta te- rias para Gabriela, cravo e canela. lenovela surge numa notícia breve na rúbrica A sensual Sónia da versão televisiva 3 Feio, Lurdes, “Barraca contra Tiradentes: o êxito de uma as duas fases mais importantes na remodelação da programação” companhia tem um reflexo positivo sobre o teatro em geral”, O , 22/4/1977, p. 26. Jornal, 06/05/1977, p. 25 5 In: O Jornal: Artes/Letras/Espectáculos/ Televisão“Maio e 4 José Niza “Garantiu que, embora socialista, não está na RTP Outubro próximos – as duas fases mais importantes na remodela- para fazer a política do Governo nem do Partido e ‘sim para me ção da programação” , 22/4/1977, p. 26. guiar por aquilo que define a Constituição” In: O Jornal: Ar- 6 “Entre surpresas e bancas de artesanato’: Gabriela manda na tes/Letras/Espectáculos/ Televisão“Maio e Outubro próximos – feira (do Livro)”, Diário de Lisboa, Nacional, sexta-feira, 20 de maio de 1977, p.4. www.bocc.ubi.pt 5 / 18 Isabel Ferin Cunha

ocupa, sugestiva, a capa. A edição num estilo humorístico e de crítica social, algu- (que é a décima) tem uma tiragem de mas das observações mais interessantes sobre este 10 mil. Só numa hora venderam-se género televisivo, tanto na perspetiva da produção cem. A Lorge (sic.) arrasta Amado. como da receção. Ainda Gabriela não tinha um Assim estão-se a vender bem Dona mês de exibição e ele desmontava as técnicas que Flor e seus dois maridos, Os subter- permitem a este género criar grandes audiências,7 râneos da Liberdade e o Cavaleiro da iluminando os subtemas e enredos que têm mais Esperança... No Centro do Livro Bra- poder para as captar: sileiro...Gabriela, cravo e canela, em edição brasileira, a 208 escudos, tam- “....no lançamento de qualquer tele- bém vende.” novela, o criador avança logo com quatro ou cinco temas e fica à espera Na capa de O Jornal de 20 a 26 de abril, se- dos «ibopes», das consultas à opinião mana em que se iniciou a emissão da referida tele- pública. O tema que mais interessou, novela, concorrendo com títulos como “Quem está é o que passa a ser explorado com em crise: a Universidade ou o ministro? Inquérito mais intensidade...” em Coimbra, Porto e Lisboa (págs. 2/5) (fotografia Neste contexto, o crítico refere como o bordel do ministro Sottomayor Cardia)” lê-se numa das Bataclã e a sensualidade das suas meninas toma- outras chamadas Cá está ela Gabriela ! Álvaro ram conta da telenovela, por serem uma novidade Salema: o romance; Francisco Mata: o folhetim e suscitarem interesse do público, mas ao mesmo (págs. 28/29). Nestas duas matérias que têm de- tempo traduzirem a sensibilidade do autor do ro- senvolvimento nas páginas de Artes/ Letras/ Es- mance: pectáculos/ Televisão, Francisco Mata comenta os primeiros episódios, refletindo sobre a capacidade “«Gabriela» brasileira faquianda ma dos portugueses entenderem o sotaque brasileiro não anda. A ação arrasta-se, a mina e traduzir as falas enriquecidas do português fa- das «meninas» do Bataclã não pode lado no Brasil. Demonstra, também, preocupação acabar de um momento para . sobre os horários de exibição dos episódios, que Dado o interesse que suscita nos po- oscilam de dia para dia e não parecem estar ade- vos tementes a Deus, o assunto é um quados aos ritmos de uma grande audiência. Estas achado miraculoso. Mas se o próprio duas temáticas acompanharão todos os episódios Jorge Amado considera que o espírito da Gabriela, sendo que a questão da língua e do da obra não sai diminuído nem defor- sotaque extravasará para a questão cultural e a RTP mado, quem sou eu para desmentir?” irá, a partir de então, fixar os horários da teleno- vela após o telejornal, delimitando deste modo o Na mesma peça o crítico dá conta da opinião horário nobre. A matéria de Álvaro Salema “Ga- pública, ou de uma certa opinião pública conserva- briela, cravo e canela – verdade humana, brasileira dora e pertencente às classes altas que além de não e universal” discorre sobre a obra literário de Jorge parecer apreciar o género lhe atribui traços porno- Amado, ressaltando os diversos momentos da sua gráficos: obra, o compromisso com os oprimidos e os hu- “...uma certa camada da população mildes, o período de maior engajamento político e parece não estar a apreciar muito a o exílio que sofreu. O crítico enquadra Gabriela, telenovela, pouco simpática como é no período de brasilianismo, mais especificamente para os caciques e para as senho- de bahianismo visceral e, citando o prefaciador da ras burguesas, desumanizadas...Até primeira edição deste romance em Portugal Fer- já acusaram a pobrezinha de porno- reira de Castro, sublinha que o romance é uma das gráfica!”. grandes criações de Jorge Amado que demonstra o forte poder de comunicabilidade, uma perene co- Ao aproximar-se do final da exibição de Gabri- munhão com os seus humildes heróis. ela, Mário Castrim considera que é o maior êxito Mário Castrim, pseudônimo de Manuel Nunes nos 20 anos de TV e penitenciar-se-á por ter vati- da Fonseca, crítico de televisão do DL, foi um es- cinado, no início da sua transmissão, a falência do pectador atento das telenovelas e deve-se a ele, género em Portugal: 7 Castrim, Mário “Canal da Crítica: Gabriela – pró e contra ela”, Diário de Lisboa, Televisão, terça-feira, 31 de maio de 1977, p. 15. www.bocc.ubi.pt 6 / 18 Ficção televisiva inspirada em Jorge Amado: de Gabriela a Tieta

“ Errei na previsão feita há seis me- elementos advindos das suas intervenções políti- ses. Meus cálculos fundavam-se no cas. Na chamada, ao cimo da página 4, lê-se: obstáculo da pronúncia, dos parti- cularismos e idiotismos brasileiros; “Aquilo que o leitor vê no seu televi- fundavam-se numa incorrecta apre- sor e pensa que é a série completa da ciação das capacidades telenoveles- Gabriela não tem paralelo com esta cas; fundavam-se ainda num conhe- história de sangue, suor e briga que cimento imperfeito do telenovelismo Sete-Ponto-sete revela em primeira ti- brasileiro”.8 ragem. Aqui se conta como coronéis de cacau, jagunços, fazendeiros, se- A telenovela tal como as suas congéneres ame- nhoras piedosas e outras personagens ricanas, as soap operas, foram prioritariamente conspiraram para derrubar o que po- desenvolvidas como um género ficcional televi- deria ter sido um belo romance de sivo direcionado para audiências femininas (Kil- amor. Mas Gabriel, a autêntica, so- born, 1992). Contudo, em Portugal, a perceção brevive a estas e outras intrigas. Já que temos, a parir dos indicadores recolhidos em agora, revelamos um segredo: a flor periódicos, é que Gabriela foi lida preferencial- que ela traz nos cabelos é um cravo mente como um romance de Jorge Amado ficci- encarnado” onado para televisão. Em seguida, na mesma página, estão as foto- “Realização de qualidade e interpre- grafias de 16 figuras públicas conotadas com diver- tações de alto nível, transformaram sos quadrantes políticos e identificados com per- o romance de Jorge Amado. E se a sonagens da Gabriela. Por exemplo, o embaixa- adaptação não foi fiel, a obra ganhou dor americano Franco Carlucci, que teve uma in- em popularidade. O próprio Jorge tervenção política saliente no período do PREC, é Amado referindo-se à interpretação identificado como Coronel Ramiro Bastos. Dono de Fúlvio Stefanini, enviou-lhe um bi- de cacau e representante em Ilhëus dos interesses lhete onde dizia: «o seu Tonico é me- do seu Governo. Dita ordens em toda a região lhor que o meu».”9 e controla os coronéis do cacau e jagunços alta- Muitos portugueses conheciam Jorge Amado e mente especializados. Ao então primeiro-ministro as suas convicções políticas. Por essa razão Gabri- Mário Soares é atribuída a personagem de Nacib: ela não teve apenas um público feminino, mas ob- Ele é o dono do bar. Um tanto despistado. Nacib teve uma receção extremamente politizada, abran- quer dar-se bem com toda a gente, e depois lixa- gendo mais de três milhões de espectadores, ho- se, como na última quinta-feira. Mas, tal como mens e mulheres, que em Ilhéus não viram uma no folhetim, só dá por ela quando é tarde demais. terra estranha mas sim semelhanças com a situa- Freitas do Amaral, então dirigente do CDS, surge ção portuguesa de luta pela queda da ordem esta- como Coronel Coroliano, Compadre do coronel belecida, a dos coronéis, com todo o caciquismo, Ramiro, aparentemente bonacheirão, sabe que os repressão, machismo, etc..10 jagunços aparecem quando ele quiser. Faz pa- Com base nestes argumentos poderemos expli- relha com o coronel Melk (identificado como Sá car a visível politização da receção da telenovela, Carneiro, PPD/PSD) e não desdenha uma partidi- como ilustra a capa da agenda da semana do DL, nha de cartas com o coronel Amâncio (identificado Sete-Ponto-Sete de 23 a 29 de Julho de 1977, inti- como tenente-coronel Galvão de Melo, um dos mi- tulado “As cenas proibidas de Gabriela” onde nas litares de direita mais ativos do MFA). páginas 4 e 5, se glosam diálogos das personagens Na página seguinte, em forma de banda de de- do romance. Nesta matéria, que não se encontra senhada, e com a frase advertência: contém ce- assinada, estão elencados as personalidades políti- nas eventualmente alarmantes, o tema da reforma cas, nacionais e internacionais, com maior proemi- agrária, que dominou os primeiros anos da revo- nência, sendo-lhes atribuídas nomes e característi- lução do 25 de abril, é glosada com recurso a fo- cas de personagens do romance Gabriela, a par de tografias da época e legendas alusivas ao enredo 8 Castrim, Mário, “Canal da crítica: Gabriela, Gabriela, e as melhor que o meu...’”, Diário de Lisboa, sexta-feira, 4 de novem- razões de gostar dela”, Diário de Lisboa, quarta-feira, 17 de no- bro de 1977, p. 4. vembro de 1977, p. 13. 10 Mata, Francisco, “Jorge Amado a Stefanini: ‘O seu Tonico é 9 Mata, Francisco, “Jorge Amado a Stefanini: ‘O seu Tonico é melhor que o meu...’”, Diário de Lisboa, sexta-feira, 4 de novem- bro de 1977, p. 4. www.bocc.ubi.pt 7 / 18 Isabel Ferin Cunha da telenovela. Assim, na primeira fotografia que a telenovela , enfatizando a exigência do público ocupa a largura da folha e mostra um conjunto para que o romance de Jerusa e Mundinho tenha de trabalhadores rurais segurando uma faixa que como desfecho o casamento. Uma situação que ocupa o centro da imagem lê-se reforma agrária não vem no romance, mas é exigência do público covardemente assassinada! Na mesma fotografia e elemento essencial para angariar audiências no vê-se ao longe a guarda republicana a cavalo e a grande mercado do telenovelismo brasileiro. Em legenda Sob a mira das armas dos jagunços, os seguida chama a atenção para como a política uti- manifestantes não se amedrontaram e ali mesmo liza como instrumentos factores que parecem nada abriram a grande faixa, para que o crime ficasse ter com a política, dando como exemplos as arti- na memória das gentes. manhas do coronel Ramiro antes das eleições e re- Um outro número do Sete-Ponto-Sete, de 22 a flete sobre o impacto da emissão da Gabriela que 28 de Outubro de 1977, páginas 10 e 11, volta a não diz isto, mas dá a ver isto. Comentando em dedicar-se a Gabriela, ilustrando as páginas com seguida sobre a receção destas imagens pelos es- personagens da telenovela lendo jornais portugue- pectadores e cidadãos portugueses, chama a aten- ses da época, em função das sensibilidades políti- ção para a força do audiovisualismo num país com cas. Assim, por exemplo, vê-se o coronel Rami- cerca de 40 por cento de analfabetos e uma grande res, com o jornal Retornado (dirigido aos portu- percentagem de indivíduos durante anos e anos gueses regressados das colónias) aberto e com a afastados da prática política. Compara ainda as seguinte legenda Este jornal é muito bom...e de- estratégias eleitorais vividas na Ilhéus da teleno- pois tem cada pretinha! ou Mundinho com o Diá- vela com a situação política portuguesa, nomeada- rio de Lisboa e os dizeres Sete-ponto-sete só ao mente para a recuperação das forças políticas mais sábado...falta de papel chegou aí, né mesmo? e ao centro e à direita e aos interesses que represen- ainda Gabriela, sem jornal, e a legenda “sei ler tam: Não vamos agora falar do Sá Carneiro, do não”. No canto esquerdo, em jeito de despedida e Freitas do Amaral, etc., etc. Vamos só perguntar de balanço da emissão da telenovela: quais são as forças que os apoiam, e só então po- deremos avaliar das suas políticas. Há que ver o “Não adianta chorar. A Gabriela rosto das pessoas, como se ele fosse a máscara das condiciona meia hora forças sociais”. E termina não só reafirmando que por dia. Nesta meia hora, o merce- a Gabriela é uma fonte de ensinamentos, mas ape- eiro fecha a porta do cavalo, a Do- lando para que os espectadores não se esqueçam lores não está nem para os amigos, de ler dois romances, politicamente mais contex- e um reaccionário nosso conhecido tualizados, como Terras do Sem-Fim e S. Jorge de manda o CDS às urtigas para ver a Ilhéus. Bié de corpo inteiro e o doutor Eze- quiel a meio copo. Quando amanhã Mas este crítico compara também as peripé- um coca-bichinhos fizer a História de cias de Ilhéus ao ambiente de ditadura brasileira Portugal entre as 20.35 e as 21.15, e assim escreve a propósito do episódio de Glori- há-de (sic.) saber-se que ninguém fez nha12 que A telenovela, essa alarga o âmbito da puto...Manda a verdade que se diga, crónica: ela não se limita a retratar Ilhéus, ela as personagens do folhetim também refere e acusa e denuncia inúmeros aspectos da se preocupam com o destino dos por- actualidade brasileira, em particular, e do capi- tugueses.. ” talismo, em geral13. No mesmo sentido vai uma outra crónica, onde faz trocadilho entre a perso- No dia 28 de outubro, o crítico de televisão do nagem do então ditador brasileiro, general Geisel, DL, Mário Castrim, na crónica intitulada “Canal acusado de prender e matar membros da oposição da crítica: Gabriela, mas...aviso ao púbico: a cró- política, e a personagem do coronel Jesuíno Assas- nica de hoje fala de política”11 começa por tecer sino chamou Glória a Geisel, perdão! a Jesuíno.14 comparações entre o romance de Jorge Amado e Ou ainda falando sobre a prisão da personagem do 11 Castrim, Mário, “Canal da crítica: Gabriela, mas...aviso ao se aos seus desejos. Em represália o coronel proibiu-lhe não só púbico: a crónica de hoje fala de política”, Diário de Lisboa, Te- sair como abrir a janela da casa onde estava instalada pelo mesmo. levisão, sexta-feira, 28 de outubro de 1977, p. 13. 13 Castrim, Mário, “Canal da Crítica: a janela de Glorinha”, 12 Personagem que interpreta o papel de uma mulher mantida Diário de Lisboa, quinta-feira, 27 de outubro de 1977, p. 13. pelo coronel Jesuíno. Este mandara matar a mulher o amante por 14 Castrim, Mário, “Canal da Crítica: por quanto tempo Glori- ciúmes, sendo que Glorinha ao saber deste facto recusou entregar- nha, terás tua janela fechada?”, Diário de Lisboa, sábado, 29 de outubro de 1977, p. 15. www.bocc.ubi.pt 8 / 18 Ficção televisiva inspirada em Jorge Amado: de Gabriela a Tieta doutor Ezequiel pelos coronéis Amâncio e Melk, guém para a gente rir porque nin- refere que o povo brasileiro compreendeu certa- guém fez uma promessazita política mente a alegoria e que este caminho prognostica o para a gente sorrir...felizmente há a avanço das massas populares do Brasil.15 Gabriela e o Nacib aos beijitos na A politização da receção da Gabriela atinge cama para entreter a gente mas lá aspetos de teoria da conspiração, quando no final que aquilo entretém disso é que não da sua transmissão o público compreende que se- há dúvida e a prova é que o meu rão emitidos menos episódios em Portugal daque- pai já tirou outra vez a Televisão do les que foram anunciados no início (160 episódios) prego e chega a casa todos os dias e transmitidos no Brasil. Assim, o DL, surge com mais ou menos direito para não per- uma chamada a toda a largura da primeira página der uma coronelada do Ramiro e do na sua edição de quarta-feira, dia 16 de novembro Amâncio ou uma intriguita do Mundi- “Tiraram 30 episódios à Gabriela”. Mesmo que nho agora de quem ele gosta do fundo no desdobramento da matéria se refira que se trata do coração é do Tonico Bastos que de uma estratégia de comercialização da TV Globo anda na safra das viúvas e das órfãs para o estrangeiro, acrescenta-se, logo em seguida, e que mexe as sobrancelhas de uma que De qualquer modo é muito estranho que a Ga- maneira que deixa a minha mãe der- briela fosse exibida na integra num Brasil com um retida por dentro e a suspirar por fora regime ditatorial e seja exibida truncada no demo- a minha vizinha. Adélia até já tem o crático Portugal. É muito estranho!16 retrato dele à cabeceira ao lado do re- No dia seguinte, de novo na primeira página, trato do Clark Gable que era um To- reiterando a teoria da conspiração, o mesmo diá- nico americano que já morreu...” rio escreve que foram retirados aspetos importan- tes nomeadamente os comentados pelo ator Paulo Neste trecho além de se contextualizar uma soci- Gracindo (coronel Ramiro) num outro programa edade que vive no limiar da pobreza – um pai de de televisão: “O actor Paulo Gracindo, intérprete família em dificuldades e com hábitos de consumo 17 do coronel Ramiro afirmou, na «Cornélia» , pe- de álcool – e apresentar duas mulheres, uma ca- rante milhões de espectadores que havia uma cena sada e uma solteira, vivendo de amor romântico, de um tiro no seu funeral, muito curiosa. Não a vi- identificam-se os elementos que tornam Gabriela, mos cá! e mais à frente continua nas “...cenas dos o único programa de entretenimento que vale a próximos capítulos, toda a gente viu Nacib a fu- pena ser seguido. Aprofundando os quotidianos e gir (e deixar cair o chapéu) ao ser alvejado por ligando-os à situação política que se vivia em Por- um dos coronéis. No episódio seguinte a cena não tugal, o crítico contínua: apareceu. Porquê?18 Mantendo determinadas leituras políticas, mas “...mas como eu ia dizendo se não fazendo ressoar a sensibilidade dos espectadores e fosse a Gabriela a vida aqui na Graça das espectadoras, o escritor Luís Sttau Monteiro, era uma estopada de todo o tama- aliás o crítico que assina Guidinha, de O Jornal,19 nho olá se era uma razão da Gabriela faz uma crónica na secção Tempo Livre, que a par- ser tão popular é que entre a Graça tir de uma reconstituição do ambiente social do e Ilheús há poucas diferenças mesmo popular Bairro da Graça em Lisboa, nos permite muito poucas também cá temos os apreender o clima da receção daquela telenovela: nossos Ramiros os nossos Amâncios e “Esta semana foi uma porcaria aqui as nossas Marias Machadões dessas na Graça porque não aconteceu nada então temos uma data delas em todas mas é que mesmo nada sim porque as casas e em todas as ruas olá se te- não houve um discurso na Televi- mos e Ramiros temo-los de todas as são para a gente dormir porque não idades e feitios temos Ramirões Ra- se levantou um inquéritozito a nin- miritos e Ramiricos gordos e magros 15 Castrim, Mário, “Canal da crítica: da Gabriela à vilanagem. 18 “Quem tirou episódios à Gabriela?” Diário de Lisboa, Diário de Lisboa, sexta-feira, 11 de novembro de 1977, p. 16. quinta-feira, 17 de novembro, 1977, primeira página. 16 “Tiraram 30 episódios à Gabriela”, Diário de Lisboa, quarta- 19 Sttau Monteiro, Luís, “Os Tonicos e os Ramiros da Graça”, feira, 16 de novembro de 1977, primeira página. O Jornal: Tempo Livre, 29 de Julho de 1977, p. 39. 17 «Cornélia» foi um programa de auditório exibido na mesma época. www.bocc.ubi.pt 9 / 18 Isabel Ferin Cunha

barbudos e rapados fardados e à pai- dos anos vinte do século XX, a qualquer cidade sana...” de província de qualquer país latino, conclama as mulheres (“ belas adormecidas” e “princesas”) Abrangendo um outro público, Mário Dioní- a abrir por dentro os seus castelos fortes, sabia- sio, na rúbrica Ideias e Opiniões de O Jornal de 26 mente ferrolhados. Convida também as jovens a 20 de agosto , escreve sobre a sua estadia de férias lutar pelos seus direitos e convicções com sinceri- no Hotel Palace do Buçaco, um dos hotéis mais dade, mesmo que tenham de se opor aos seus pro- conceituados e glamorosos de Portugal na altura, genitores e ao sistema estabelecido. Isto para que onde uma burguesia conservadora e expectante so- terminada a série da Gabriela, que você não se li- bre os destinos da revolução se alvoroçava para as- mite a exclamar: «que pena ter acabado! Era tão sistir à Gabriela: bonito!» – mas se tenha tornado, de certo modo, noutra pessoa. Mais inteligente. Mais esclarecida. “...Toda aquela gente de ar solene Melhor. e distante se dirigia apressadamente, Aprofundando o mesmo tema, Mário Castrim, ma non troppo, é evidente, para al- numa outra crónica22 enfatiza a ação educativa da gures, em todo o caso com uma vi- Gabriela ao comentar a sua insubmissão perante vacidade pouco própria da sua alta ao coronel Jesuíno denunciando o assassinato da compostura que me aguçou a curio- sua mulher acusada de adultério: Estamos num sidade. O seu destino era um salão país onde muitos maridos «enganados» supõem cheio de cadeiras, antecipadamente que podem dispor da vida da mulher para lava- marcadas com revistas, com lenços, rem a sua honra. A condenação, a denúncia dessa com malas de senhora, dispostas em mentalidade, decerto não vai mudar já a realidade plateia frente a um grande aparelho social mas é imprescindível para uma transforma- de televisão, ao lado do qual havia ção. Em seguida comenta que esta mulher, ape- outro, mais pequeno, para quem não sar de não ter saída aparente para a sua condição lograsse arranjar lugar conveniente e ter sido proibida de abrir a janela para a rua – o para ver bem o primeiro. Divertido e único entretenimento e uma metáfora da sua vida espantado descobri: era a Gabriela!" – mantém a luta pelas suas convicções. Cotejando Após esta surpresa vivida por Mário Dionísio, a telenovela com o romance escreve: ele comenta que toda aquela gente, hóspedes de “o episódio da luta por manter a sua um hotel de luxo, manifestamente hostil ao 25 de janela não existe no romance escrito, abril e certamente contrária à teoria da luta de embora aqui, como em tantas ou- classes, seguia com afinco as peripécias da obra tras ocasiões, a telenovela não ofenda adaptada de Jorge Amado. Um autor cujos livros o espírito da obra original...Jorge foram muitos anos proibidos ou se vendiam à so- Amado diz que a janela de Glória capa, fugindo à ordem política apoiada por aqueles constituía um escândalo. A teleno- hóspedes que detestavam o coronel Melk e o Je- vela, portanto, não fez mais que tele- suíno, troçavam do Tonico Bastos, se mantinham visualizar o escândalo, mostrá-lo em reservados perante o coronel Ramiro, se condoíam acção. Por estas e outras é que a Tele- com aa Glorinha e a Pretinha, torciam por Mari- novela é mais romance do que o pró- alva e por Jerusa. prio romance...”. Para reconstruir a receção, na perspetiva do gé- nero, é importante a matéria de Isabel da Nóbrega, A receção desta obra de ficção pode, ainda, ser intitulada Gabriela (II) publicada no Diário de Lis- aferida através de um Inquérito publicado em O boa.21 Neste artigo de opinião a autora centra- Jornal de 21 de outubro de 1977 que tendo uma se nas lutas de emancipação da mulher, afirmando chamada na primeira página intitulada “Gabriela: que as personagens de Jorge Amado devem ser um apenas folhetim? É não” (com fotografias dos ato- convite à reflexão, ultrapassando a situação de se res Sónia Braga, Gabriela, e Fúlvio Stefanini, To- falar muito de Gabriela e não se discutir Gabri- nico Bastos), continua nas páginas 13 a 16, com ela. Para além de comparar a sociedade de Ilhéus o título sugestivo “ ‘Gabrielomania’ instala-se em 20 Dionísio, Mário, “Crónica de Verão”, O Jornal: Ideias e opi- 22 Castrim, Mário, “Canal da Crítica: a janela de Glorinha”, niões, 26 a 31 de agosto de 1977, p. 18. Diário de Lisboa, quinta-feira, 27 de outubro de 1977, p. 13. 21 Nóbrega, Isabel, “ Gabriela (II)” , Diário de Lisboa, terça- feira, 6 de setembro de 1977, p. 3. www.bocc.ubi.pt 10 / 18 Ficção televisiva inspirada em Jorge Amado: de Gabriela a Tieta

Portugal: as mil ‘leituras’ de um folhetim” e o se- que duas humildes negras de Ilhéus ajoelhassem a guinte sub-título: seus pés e lhe beijassem as mãos. Enfatizando em seguida que esta cena, apenas pode prognosticar a “... o que veem as pessoas na «Ga- ascensão de um novo Ramiro Bastos, talvez mais briela» ? O gostoso celofane em que liberal. Acrescenta ainda que isto poderá ser atri- a história de Jorge Amado foi embru- buído à censura da ditadura brasileira, mas que na lhada? O acessório, portanto, em de- verdade estas imagens anularam a luta que demo- trimento do que ainda possa restar rou tantos meses contra os coronéis facínoras. de importância? As respostas fomos A tentativa de reconstrução da receção desta encontrá-las junto das pessoas. Pes- obra de ficção televisiva inspirada no romance de soas que, afinal, revelaram certas pre- Jorge Amado envolve ainda, no nosso entender, ocupações...” duas questões de natureza diferente. A primeira Neste inquérito, que recolheu depoimentos de destas questões, que merecia um estudo aprofun- populares nos transportes e outros espaços públi- dado, relaciona-se com as ilustrações que acom- cos, acrescentou-se, igualmente, as opiniões de panham as matérias quer sejam fotografias, de- profissionais dos media e políticos de todos os qua- senhos, caricaturas, cartuns ou frames retirados drantes. Os autores, não identificados desta ma- da emissão televisiva. Neste trabalho, seria im- téria, que ocupa as páginas 13 a 16 e é ilustrada portante ter como categoria de análise a sensu- por fotografias da telenovela e dos políticos, têm alidade e erotização das imagens femininas, no- consciência que a receção é um processo com- meadamente das personagens principais (Gabriela, plexo, escrevendo que a perspectiva e a argúcia Malvina, Jerusa, Glorinha, Maria Machadão e me- de cada telespectador varia consoante as possibi- ninas do Bataclã), bem como as representações do lidades que a vida lhes deu...” mas também com a masculino nas personagens dos coronéis e dos ga- “cultura” e a “idade”, salientando que isso os le- lãs Nacib, Mundinho e Tonico Bastos. Há primeira vou a auscultar opiniões de “diversas camadas”. vista parece existir uma contradição entre a politi- Esta observação, embora espontânea, corrobora a zação de grande parte das matérias presentes nos ideia de receção como um conjunto de interações e jornais e as ilustrações que as acompanham, prin- negociações realizadas pelos sujeitos sociais (Hall, cipalmente face às fotografias e frames, muitas de- 1980). Ao mesmo tempo, chama a atenção para as las portadoras de uma carga de sensualidade a que possíveis identidades mediadoras (idade, género, os portugueses não estavam habituados. educação) e consequentes atividades cognoscíveis Em segundo aspeto prende-se com consoli- que permitem conferir sentido a esta telenovela dação da presença da indústria cultural brasileira (Martim-Barbero, 1997). em Portugal, logo mais pela exploração de uma Estes inquéritos populares sobre a telenovela agenda televisão/Jorge Amado, que envolveu o Gabriela, que ocupam três páginas, têm em co- lançamento do filme de Bruno Barreto “Dona Flor mum quatro aspetos fundamentais: a politização e os seus dois maridos”25: da receção e colagem à realidade política portu- Puxa/ Gabriela e Mundinho, os da sé- guesa; o enquadramento na vida quotidiana e nos rie da TV que faz os portugueses es- comportamentos dos inqueridos; a emancipação quecer...ou antecipar...a hora do jan- da mulher e as questões de género; a descoberta tar, juntos num filme! Êxito garan- da telenovela como género televisivo e suas poten- tido, bichas à porta. Ainda para mais cialidades. adaptado de um romance de Jorge Chegamos deste modo ao fim da emissão te- Amado, «Dona Flor e os seus Dois levisiva, que é anunciada em chamadas como “ 23 Maridos». O filme é bom, é mau? Luto nacional: acabou ‘Gabriela’” e a “ A ter- Não interessa muito. «Eles» estão lá. rível e derradeira imagem de Gabriela”24. Neste último artigo, Francisco Mata em O Jornal, faz A partir daqui abre-se o espaço para uma pre- um balanço cáustico ao escrever que achou lamen- sença continuada das telenovelas da TV Globo nos tável, infelicíssima e degradante a última imagem mapas-tipo de programação dos dois canais do ser- da bela e longa série: o dr. Mundinho consentir viço público em Portugal. 23 Mata, Francisco, “Luto nacional: acabou ‘Gabriela’”, O Jor- briela’”, O Jornal, Artes/Letras/Espectáculos/ Televisão, 25 de nal, Artes/Letras/Espectáculos/ Televisão, 18 de outubro de 1977, novembro de 1977, p. 28. p. 28. 25 Pereira, José Vaz, “Dona Flor e o resto”, O Jornal, Ar- 24 Mata, Francisco, “A terrível e derradeira imagem de ‘Ga- tes/Letras/Espectáculos/ Cinema, 30 de setembro de 1977, p. 28. www.bocc.ubi.pt 11 / 18 Isabel Ferin Cunha

Jorge Amado como fator audiências no Vila Faia, em 1982, que se anunciou como uma al- mercado televisivo ternativa para quem não gosta de brasileiradas29, foram produzidas pela RTP e produtoras privadas, 30 No final da década de oitenta e início dos anos no- cinco telenovelas portuguesas que correspondem 31 venta, o país encontrava-se quase totalmente co- a uma fase de pioneirismo, em que produtores, berto pela televisão e as obrigações políticas assu- guionistas e atores buscam o caminho da portuga- midas pelo governo português, com a entrada na lidade. União Europeia, obrigaram à abertura do campo Com os sucessivos planos de reajustamento dos media à iniciativa privada. Nessa mesma dé- económico, tendentes a aproximar a economia cada, e já com a televisão a cores, surgem as son- portuguesa das economias europeias, alastram os dagens e as medições de audiências e, simultane- potenciais públicos dos media, situação que se amente, as administrações da televisão pública in- deve ao aumento de escolarização, da urbanização corporam o princípio que é o publico quem manda e de relativo bem-estar social (Almeida, 1994:57- dando origem a grelhas com menos programas po- 70). No campo dos media a legislação sobre Co- líticos, mais programas de entretenimento e muita municações, prevista na Lei de Bases de 88/89, programação estrangeira (Agee e Traquina, s.d.: tornaram possível a reorganização do setor, com 118-122). Simultaneamente observa-se a um re- vista a permitir a abertura à iniciativa privada, em- forço do acesso dos portugueses a tecnologias que bora mantendo o setor Estado. Assim, em 1993, possibilitam a privatização do uso dos meios de foi criada a holding Comunicações Nacionais que comunicação e os seus conteúdos (Monteiro e Po- reuniu as empresas públicas de Correios, Telefo- licarpo, 2011: 330). Esta situação permite que no nes, Rádio e Televisão e a Marconi, sob a liderança início da década, cerca de 76% da população possa da Portugal Telecom, a qual virá mais tarde a ser ver televisão todos os dias numa média de quatro parcialmente privatizada (Sousa, 2000: 31-51). O horas diárias. crescimento da publicidade tornou viáveis novos A estação pública oscilou, ao longo destes projetos profissionais na área da informação na im- anos, entre potenciais modelos de gestão e de pro- prensa e na rádio. A aprovação da Lei de Televisão o gramação, no entanto, especializou e vocacionou n 58/90 veio viabilizar e tornar economicamente para públicos diferentes os dois canais: o canal 1 atraentes os projetos da SIC (que iniciou as ativi- (RTP1) foi direcionado para oferecer um serviço dades a 6 de Outubro de 1992) e da TVI (Televisão generalista, enquanto no canal 2 (RTP2) a grelha da Igreja, depois Televisão Independente que ini- procurou atender os gostos de um público potenci- ciou atividades a 20 de Fevereiro de 1993). A en- almente mais cultivado. Este direcionamento para trada em funcionamento das estações privadas deu públicos potencialmente diferentes não impediu origem a um novo mercado televisivo concorren- que a ficção seriada televisiva (telenovelas e séries) cial, onde a ficção seriada teve um papel fulcral. constituísse um aspeto estruturante da oferta dos Neste contexto é preciso, ainda, ter em conta dois canais. De 1980 a 1989,26 a RTP1 emitiu 37 o papel da TV Globo como fornecedora de ficção telenovelas e séries, a soap-opera americana Dal- seriada. Por um lado, esta emissora tinha já uma las e as séries Balada de Hill Street e Fame, além década e meia de relações comerciais com o grupo de séries ingleses e italianas. As telenovelas bra- do Estado, RTP, por outro apoiou, desde o início, a sileiras, cerca de 37 de 1980 a 198927, mantinham criação da SIC da qual foi acionista (Sousa, 1997). os níveis de audiência e criaram, com o telejornal, Em dois anos, de 1993 a 1995, a publicidade mi- a receita de sucesso do prime-time português: tele- grou em quase 50% dos canais públicos para a SIC, novela brasileira-telejornal-telenovela brasileira.28 acompanhando a transferência das audiências para Após a emissão da primeira telenovela portuguesa, este canal privado.32 A partir do verão de 1994, 26 Costa, J.P. da (2002). Telenovela: um modo de produção. alização: 14 a 17 de Abril de 1998, pelo Centro de Sondagens da Lisboa: Edições Universitária Lusófonas. SIC. 27 Costa, J.P. da (2002). Telenovela: um modo de produção. 29 “E a Telenovela Portuguesa?” Diário de Notícias, 28 de fe- Lisboa: Edições Universitária Lusófonas. vereiro de 1981. 28 Uma sondagem efetuada em 1998 apurou as telenovelas que 30 Vila Faia (1982), Origens (1983), Chuva na Areia (1985), os portugueses consideraram mais marcantes na década de oi- Palavras Cruzadas (1987) e Passerelle (1988). tenta: Escrava Isaura (1978), Guerra dos Sexos (1984) e Roque 31 Costa, J.P. da (2002) Telenovela: um modo de produção. Santeiro (1987). Cfr.: Sondagem Telenovelas/SIC: as 20 novelas Lisboa: Edições Universitária Lusófonas. preferidas dos portugueses. Universo: Eleitores residentes em 32 Gonçalves, M. A. ,“ Um ano de televisão a quatro” Público, Portugal Continental e Regiões Autónomas. Amostra: Aleatória 1994, pp. 24-25. e representante do universo, com 848 entrevistas telefónicas. Re- www.bocc.ubi.pt 12 / 18 Ficção televisiva inspirada em Jorge Amado: de Gabriela a Tieta

as telenovelas brasileiras exibidas na SIC, chegam se essa intenção até ao fim do horá- a captar 80% a 85% do total das audiências. O rio nobre, algures entre as dez e as grupo Imprensa, a que pertence a SIC, e o sema- onze. A partir daí há um «desenchi- nário Expresso, bem como revistas de coração e mento»... A par do enchimento fun- de televisão, concertam uma agenda periódica so- ciona o princípio da horizontalidade. bre as telenovelas exibidas, o que permitiu dar uma Ao longo da semana , o MTV, a sé- grande visibilidade às produções e aos temas tra- rie juvenil, o concurso, as notícias, as tados.33 telenovelas e as séries (ou filmes, à A luta pelas audiências no arranque deste mer- terça e à quinta) começam sempre à cado constitui o enquadramento para a reflexão mesma hora. ....Os dois princípios re- da receção das séries Tenda dos Milagres (RTP2, feridos têm sido explicitamente enun- 1990) e Teresa Cansada de Guerra (1992, SIC) ciados pelos responsáveis da SIC, em bem como a telenovela Tieta (1990-1991, RTP1) especial Emídio Rangel. Quando ele de Jorge Amado: produtos que tinham provado ter diz que a programação foi feita a pen- audiências. No estalar da concorrência ambas as sar no Canal 1 da RTP, diz algo que é estações, RTP e SIC, não hesitaram e recorreram manifesto...”35 a produtos que reuniam ingredientes de sucesso comprovado, como as adaptações brasileiras para Mais uma vez, também, é reconhecido o pa- a televisão das obras de Jorge Amado. pel da Globo no mercado televisivo português, Teoricamente poderemos enquadrar este mo- desta vez como conselheiro da SIC, ao referir mento na passagem da paleotelevisão para a ne- que a conselho da TV Globo, decidiu-se agar- otelevisão (Eco, 1983; Casseti e Odin, 1990), um rar pelos cornos o touro RTP-1 às telenove- momento em que os operadores de televisão, in- las da RTP contrapõem-se agora telenovelas; às cluindo os públicos, pressionados pela concorrên- notícias, notícias; e por aí adiante. A san- cia e pela necessidade de lucro das empresas, co- duiche duas-telenovelas-com-um-telejornal-pelo- meçam a alterar os contratos de comunicação e a meio é comum aos dois canais...”.36 restruturar o fluxo da oferta com vista a otimizar Neste contexto a exibição nas televisões das produtos e audiências. A ilustrar esta mudança en- obras de ficção inspiradas em Jorge Amado adqui- contramos uma matéria publicada no Expresso Re- rem, na perspetiva da receção, dimensões muito vista, aquando do início das emissões da SIC em distintas em comparação com o que observámos outubro de 1992, onde se coteja “A programação na Gabriela. Antes de mais, o início da década de da RTP e a contraprogramação da SIC analisadas noventa é pautado pela preparação da televisão pú- hora a hora” e se dá conta das estratégias utilizadas blica para enfrentar a concorrência dos operadores pela SIC para manter a audiência e assim desviá- privados e o fim do monopólio estatal. Deste facto 37 las da RTP.34 dá conta uma entrevista do Expresso Revista ao então diretor, José Eduardo Moniz, sobre as altera- “...A SIC elaborou a sua grelha se- ções no mapa-tipo de programação dos dois canais gundo o princípio tradicional de en- de televisão pública. Neste cenário os entrevista- chimento. Abre com um programa, dores interrogam um dos mais influentes cidadãos em concreto o MTV, que atrai uma em Portugal sobre a capacidade da RTP fazer face, faixa muito limitadada audiência, em no futuro, à concorrência dos operadores privados. concreto os mais jovens. Daí para A resposta do diretor remete para os hábitos de a frente vão-se sempre acrescentando consumo instalados, pela televisão pública no mer- faixas de público... O objectivo é con- cado, bem como para as vantagens que a proteção seguir que pouco depois das seis e do Estado e do erário público traz a uma empresa meia, quando arrancar a primeira te- de televisão pública. lenovela, a família inteira queira ver a SIC. Idealmente é suposto manter- “ ...talvez seja mais fácil perguntar às 33 “A televisão já não é o que era”, Dossier Revista Expresso, 36 “Televisão dois mais um”, Revista Expresso, sábado, 25 de 24/05/97. setembro de 1992, p. 17-R. 34 “Televisão dois mais um”, Revista Expresso, sábado, 25 de 37 Viera, Joaquim e Costa, António, “ Entrevista a José Edu- setembro de 1992, p. 14-R a 23-R. ardo Moniz: o Sr. RTP”, Expresso Revista, sábado 4 de agosto de 35 “Televisão dois mais um”, Revista Expresso, sábado, 25 de 1990, p. 4-R a 9-R. setembro de 1992, p. 16-R.

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privadas o que vão fazer para com- abrangem, naquele momento, 16 horas de progra- bater a RTP. ..Não vejo a TV privada mação semanal na RTP e que o produto ocupa uma como um mal para a RTP. Chamo a parte de leão em todas as grelhas ou mapas-tipo atenção para o facto da conciliação de televisão portuguesa, continuando treze anos da qualidade dos programas com os depois de Gabriela a entusiasmar as audiências interesses comerciais nem sempre ser portuguesas que não dão sinais de querer outra possível, o que será um problema dos coisa:41 privados. Toda a gente sabe que as formulas para atrair grandes audi- “No princípio, quando a primeira te- ências deixam na maioria dos casos lenovela chegou aos ecrãs de lado de muito a desejar em qualidade. ... Pro- cá do mar, ninguém ligou muita im- curámos delinear uma grelha de qua- portância a “Gabriela”. Não se po- lidade, mas que interessasse a gran- deria imaginar que o fenómeno viesse des faixas da população”38 (p. 8-R) a ter repercussões tão grandes e du- rante tanto tempo...Corria o ano de Segundo o então diretor, a preparação da RTP 1977 e a TV Globo comemorava, com para enfrentar a concorrência pressupunha altera- o livro de Jorge Amado adaptado por ções que envolvessem novas experiências de pro- Walter Durst, os dez anos da sua exis- gramação tais como distanciar as ofertas do canal1 tência. Mas, passada a estranheza (RTP1) daquelas apresentadas no canal2 (RTP2). inicial, o país parava” Mas o resultado desta tentativa não parece con- vencer. João Lopes, crítico de cinema e televisão, O mesmo crítico descreve o mapa-tipo da RTP escreve aquando do lançamento do novo mapa de em novembro de 1990 como contendo sete pro- programação, em outubro de 1990,39 que a nova duções brasileiras, todas exibidas nos horários de grelha de programas refletiu uma vontade de refor- maior audiência. Na RTP1, Kananga do Japão, ao mulação da estratégia da RTP mas acrescenta: será domingo à noite; Tieta todos os dias após o Tele- que a vocação do Canal 2 é fingir parecer-se com jornal da noite; Top Model, há hora do almoço e o Canal 1? Em seguida discute a importância do Ti-Ti-Ti, ao fim da tarde. Na RTP2, em princípio prime-time, afirmando que este conceito não deve destinada a públicos mais específicos, são emiti- estar, numa televisão pública, associado exclusiva- das as séries Vida Nova, aos sábados, Tenda dos mente à captação de grandes audiências, pois isto Milagres às sextas e Xingú. leva a que a renovação da RTP seja puramente ilu- No mesmo sentido vai a apresentação de Ti- sória dado que grandes audiências fazem com que eta, onde na secção Televisão a matéria “Do novo para a RTP, a única ideia de «prime-time» conti- mundo à velha novela”42 é acentuada a continui- nue a chamar-se telenovela. dade do género – depois, telenovela vai, telenovela Esta crítica à telenovela vai ser constante nos vem – ressaltando o escritor que Tieta do Agreste dois periódicos de referência analisados, Expresso começa com a vantagem de partir de um romance e Público, sendo que o argumento dominante de Jorge Amado. centra-se no facto deste género se manter há mais Uma perspetiva diferente apresenta a Revista de dez anos no prime-time português, sem alter- Maria direcionada para o público feminino e com nativas. Mas como observa João Lopes Prova- uma secção dedicada à programação da televisão. velmente, essa é uma expressão directa do «país Nesta secção, e apresentando o mapa-tipo da RTP, real».40 Assim, o contexto de receção dos críti- a revista nota que as séries brasileiras invadem a cos, entre 1990 e 1992 das séries e da telenovela RTP, fazendo a distinção entre as telenovelas dos inspiradas em Jorge Amado, é diverso daquele que horários habituais e as quatro propostas de qua- descrevemos anteriormente em Gabriela. Carlos lidade que irão ser emitidas. Entre estas insere- Câmara Leme, crítico do Público num texto in- se a série Tenda dos Milagres, inspirada em Jorge titulado “RTP-Globo!”, regista que as telenovelas Amado e adaptada por Aguinaldo Silva e Regina 38 Viera, Joaquim e Costa, António, “ Entrevista a José Edu- RTP”, Revista Expresso, sexta-feira 5 de outubro de 1990, p. 93- ardo Moniz: o Sr. RTP”, Expresso Revista, sábado 4 de agosto de R. 1990, p. 8-R. 41 Leme, Carlos Câmara, “RTP-Globo !”, Público, Fim-de- 39 Lopes, João, “Cultura: Televisão: dramas e programas da semana, sexta-feira, 2 de Novembro 1990, p. 10. RTP”, Revista Expresso, sexta-feira 5 de outubro de 1990, p. 93- 42 Gonçalves, M. A. “Do novo mundo à velha novela”, Público, R e 94-R. Local, Televisão, 29 de outubro de 1990, p. 43. 40 Lopes, João, “Cultura: Televisão: dramas e programas da www.bocc.ubi.pt 14 / 18 Ficção televisiva inspirada em Jorge Amado: de Gabriela a Tieta

Braga, com 29 episódios. Assinala que a sua fundo. Este tema está muito vinculado à luta pe- realização vem comemorar o vigésimo aniversá- las audiências entre a RTP1 e a SIC, no arranque rio da TV Globo e descreve os temas focados na das emissões desta televisão privada, tal como re- série como exóticos, caracterizando a cultura da ferimos anteriormente. Assim em março de 1991, Bahia como um o vulcão, bem conhecida por Jorge ainda sem estar a SIC no ar, a Revista Expresso Amado. A matéria termina com a seguinte sín- faz uma matéria intitulada “Até onde pode ir a TV” tese direcionada ao leitor: No fundo trata-se do onde se discute o sexo na televisão45 a propósito da confronto do telespectador com uma realidade que emissão dos filmes de Oshima, Império dos Senti- muitos gostariam de não ter de enfrentar: a ques- dos, e de Pedro Almodovar, a Lei do Desejo. Na tão do preconceito racial, que no Brasil é muito discussão sobre o tema aflora-se o horário de trans- subtil.43 missão de Tieta, às 20h e 30m, considerado impró- Este texto reflete o tom que domina todas as prio para crianças, pela Associação Portuguesa de outras apresentações de telenovelas, seguindo o Espectadores de Televisão: mesmo padrão de cobertura realizado para todas estas matérias, as quais envolvem a identificação “... embora a Lei de Televisão consi- dos temas dominantes, capazes de suscitar inte- dere que a partir das 22horas se en- resse do público, assim como entrevistas a ato- tre em pleno horário adulto , os pa- res destacados. O distanciamento perante a cultura pás portugueses não vão em severida- afro-brasileira – nomeando os terreiros, mães-de- des europeias; às dez, ainda os peti- santos e o candomblé, uma seita religiosa – é o as- zes se riem gostosamente das últimas peto mais saliente desta abordagem, seguindo-se a aventuras de Tieta. Desde há algu- preocupação pelo racismo, que dá origem a uma mas semanas, a RTP trata de man- longa entrevista com a atriz negra Chica Xavier, dar os meninos para a cama antes da intérprete da mãe-de-santo Magê Bassã. Nesta en- telenovela, que os oito mil sócios da trevista, a atriz fala da gratificação que tem no de- Associação Portuguesa de Especta- sempenho desta personagem, da esperança que os dores de Televisão... consideram «le- humildes no Brasil depositaram nela e no desejo siva» para a personalidade dos infan- de igualdade que acalenta: tes. José Eduardo Moniz afirma que a antecipação da deita dos catraios “Meu grande desejo é de um dia dei- não se deve aos alegados calores de xar de ser uma actriz negra para ser Tieta, mas apenas a «estudos pedagó- apenas uma actriz. Essa classifiação gicos»...”.46 de actriz negra não existe, como tam- bém não existe uma actriz branca ou A mesma revista apresenta uma sondagem rea- uma actriz amarela. O actor negro só lizada pelo EXPRESSO/Euroexpansão sobre quem é chamado para papéis de emprega- assiste e concorda com a emissão de cinco pro- dos ou pessoas de classe baixa. Até gramas considerados sexualmente ousados: Tieta, aí, tudo bem. É o reflexo da situação Strip-Tease, A Lei do Desejo e Império dos Senti- do negro no nosso país. Mas ser indi- dos. Entre estes programas Tieta recolhe 90% de cada apenas como uma actriz negra, audiências, sendo que 85% concorda com o horá- não faz sentido.”44 rio da emissão.47 Em 1992, já estando a operar a SIC, o Expresso Um outro tema constante neste período é a dis- Revista volta a publicar uma nova matéria “Televi- cussão da sexualidade na televisão, que não es- são e Moral” onde as imagens sobre sexo, sobre- tando exclusivamente associada à ficção seriada tudo nas telenovelas exibidas em horário-nobre, brasileira tem, Tieta e as séries Tenda dos Mila- são amplamente evocadas como nocivas à socie- gres e Teresa Cansada da Guerra, como pano de dade.48 Numa entrevista o então secretário de es- 43 Caderno TV: “Séries brasileiras invadem a RTP: Quatro pro- 46 “Até onde pode ir a TV?, ” Revista Expresso, sábado, 2 de postas de qualidade”, Revista Maria, no 619, semana de 19 a 15 março de 1991, p. 16 R. de setembro, pp. 36 a 37. 47 “Até onde pode ir a TV?, ” Revista Expresso, sábado, 2 de 44 Caderno TV: “Magé Bassã de Tenda dos Milagres, Chica março de 1991, p. 20- R. Xavier ‘Meu maior prazer é fazer amigos’”, Revista Maria, no 48 “ Televisão e Moral”, Revista Expresso, sábado 21 e novem- 623, semana de 17 a 23 de Outubro de 1990 p. 31 e 32. bro de 1992, pp. 12-R a 19-R. 45 “Até onde pode ir a TV?, ” Revista Expresso, sábado, 2 de março de 1991, pp. 16 R- a 20-R. www.bocc.ubi.pt 15 / 18 Isabel Ferin Cunha tado da Cultura Santana Lopes afirma que o pre- gam detentores possa circunscrever- ocupa mais as telenovelas do que o Império dos se a uma pequena região”.52 Sentidos,49 dado que envolve uma exposição con- tinuada a um produto advindo de uma cultura exó- Em síntese, a receção das obras de Jorge gena. João Lopes escreve na mesma revista que a Amado, adaptadas para a ficção televisiva, neste sexualidade é a questão fulcral na discussão sobre período, só pode ser compreendida à luz do fluxo televisão e moral e que valeria a pena perguntar, de conteúdos televisivos, pautado pelo contínuo visto que as telenovelas são a verdadeira forma da programação e dos horários. A este requisito dominante da ficção na sociedade portuguesa... se acrescem as estratégias dos operadores com o ob- a telenovela é um caso modelar de abordagem das jetivo de não deixarem escapar espectadores, nes- relações que têm a ver com o amor, a entrega, o tas salientamos a capacidade de encadear produ- carinho, a ternura e o radicalismo que tudo isso tos, apelando a interesses que fazem o denomina- pode envolver?50 No entanto, na sondagem reali- dor comum, como sejam histórias com sexo e al- zada pelo EXPRESSO/Euroexpansão, os resultados guma dose de violência. revelam que os portugueses aceitam sem drama- tismo as cenas mais «ousadas» (em tempos dizia- se eventualmente chocantes) da TV. O que eles – os 3 Alguns apontamentos conclusivos portugueses médios, com telefone e com televisão Ao longo deste texto pretendemos demonstrar que – parecem rejeitar é a exibição de homossexuali- a receção das obras de Jorge Amado, na perspetiva 51 dade. da ficção televisiva, pontua dois períodos distintos Estas polémicas não cabem na Revista Maria, da história política e mediática em Portugal. Em onde a rotina da apresentação e follow-up da fic- 1977, vivia-se o fim do PREC e iniciava-se o pro- ção televisiva mantém um contínuo ao longo des- cesso de normalização democrática. A sociedade, tes anos. Deste modo, no início das atividades do por conseguinte os espectadores, encontravam-se primeiro operador privado a revista escreve que politicamente motivados, após o fim de uma dita- uma das grandes apostas da SIC é a história de dura de quarenta anos e uma revolução democrá- uma baiana corajosa, Teresa Batista. Evocando a tica. autoria de Jorge Amado, refere que a série de 28 Recordamos, também, que a paleotelevisão episódios mantem a continuidade de outras histó- (Eco, 1983) era, fundamentalmente, um aparelho rias de mulheres que deram origem aos seus ro- de televisão, colocado numa sala, onde toda a fa- mances e foram ficcionadas na televisão: mília se reunia para assistir a um determinado pro- grama e comentar. Ao mesmo tempo, o fim do PREC teve como consequências retirar, progressi- “ Teresa Batista Cansada de guerra é vamente, os cidadãos das ruas, do espaço público, mais uma obra de Jorge Amado adap- levando-os a retornar ao espaço privado. Foi as- tada para televisão. À semelhança do sim, pela mão da Gabriela que a televisão, um que acontecia com Gabriela Cravo e dispositivo domesticado (Silverstone, 1995; Bu- Canela e Tieta do Agreste, a heroína é onanno, 2008), amparou a transição (democrá- uma jovem , singela e sensual, tica) e consolidou a paleotelevisão em democra- com uma personalidade muito forte, cia. Quando Gabriela foi transmitida os media e que vive num ambiente de muita luta a televisão encontravam-se na quase totalidade nas e miséria. A sua história é densa, trá- mãos do Estado e, o principio de informar, edu- gica e envolvente. Ao escrever o ro- car e entreter ainda era percetível. Com esta te- mance, Jorge Amado teve a preocupa- lenovela adaptada a partir de um grande escritor ção de transmitir factos reais do dia- brasileiro, mas sobretudo de um grande escritor de a-dia. Na verdade, o auto sempre de- língua portuguesa, os requisitos de uma televisão nunciou, através daa sua obra, os ex- pública pareciam ser atendidos. Havia, ainda, mui- cessos dos poderosos, ainda que esse tos portugueses, pelo menos duas gerações, que ti- imenso poder de que alguns se jul- nham vivido nas colónias africanas e tinham expe- 49 “ Televisão e Moral”, Revista Expresso, sábado 21 e novem- 51 Belard, Francisco,“ Televisão e Moral”, Revista Expresso, bro de 1992, pp. 14-R e 15-R. sábado 21 e novembro de 1992, pp. 20 e 21-R. 50 “Televisão e Moral”, Revista Expresso, sábado 21 e novem- 52 Caderno TV: “ Surgem as telenovelas portuguesas e Teresa bro de 1992, pp. 19-R. Batista”, Revista Maria, no 726, semana de 7 a 13 de Outubro de 1992, pp. 38 e 39. www.bocc.ubi.pt 16 / 18 Ficção televisiva inspirada em Jorge Amado: de Gabriela a Tieta riências atlânticas e tropicais, o que garantia em- Costa, J. P. da (2002). Telenovela um modo de pro- patias com a temática. dução. Lisboa: Edições Universitárias Lusó- No início dos anos noventa, a situação polí- fonas. tica e mediática era radicalmente diferente. A en- Dionísio, E. (1994). 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