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Bellum, bellus A guerra dos sexos Bellum, bellus A guerra dos sexos Bellum, bellus War of sexes

Paolo Lollo Tradução: Cristiane Cardoso Lollo

Resumo A guerra traz consigo o horror da destruição e da morte, horror que o poeta alemão Reiner Maria Rilke, em uma de suas elegias, chama de das Schrecklich , que não é outra coisa senão o ponto de chegada de um começo radiante, bellus ( das Schöne ). De um lado a guerra, uma confrontação entre dois exércitos; do outro, o amor, um face a face entre dois sujeitos em busca do desejo. Nos dois casos, duas entidades se encontram face a face em uma indecisão e uma dúvida, mas também em uma relação que os une e separa. A relação sexual pode ser vivida como um con%ito, uma relação de força e uma tensão contínua, ou como uma relação de amor onde a diferença é levada em conta. Um homem e uma mulher são separados pela sua diferença sexual. A guerra dos sexos é a consequência de uma relação fundada no bellum , na confrontação de força, numa relação quantitativa que faz da diferença de forças a única diferença possível. Existe também um con%ito entre Diké (a justiça) e Nomos (a lei). Um con- %ito que é uma ligação e uma tensão. Diké representa a lei oral que antecede e funda o Nomos , a lei escrita. No início ( am Anfang ) a justiça dos deuses e a lei dos homens estão em um face a face, em um equilíbrio, depois eles se distanciam e entram em con%ito. A arte, o belo, das Schöne , é o ato de fundação de toda relação humana. O ato de criação, aquele do início, que aparece em sua beleza, coloca em harmonia a justiça dos deuses e a lei dos homens. Justiça e lei surgem a partir de um ato de separação, que é o ato mesmo de criar. Cada criação é um ato de diferenciação que separa, mas que, num primeiro momento não entra em con%ito. Existem dois tempos para essa separação, dois tempos consequentes que produzem o bellus e o bellum . O primeiro privilegia a ligação; o segundo, a oposição. Essa relação permite inscrever simboli- camente no psiquismo que o dois, o real, vem depois do UM. Édipo mata o pai real apagando, assim, o UM simbólico, sua origem. Antígona é sua 0lha e sua irmã ao mesmo tempo. Ela é fruto de um incesto. Como se livrar da maldição que sobreveio por causa desse sacrilégio? Como reparar o crime do Édipo pai?

Palavras-chave : Bellum, Bellus, Guerra, Amor, Gozo, Direito, Lei, Sideração, Desideração.

A guerra, a arte e a de-sideração Bellum coloca em cena o con%ito, um due- Na primeira conferência 1 falamos sobre a lo entre dois exércitos, cada um tendo como oposição entre bellum e bellus . E a pergun- objetivo a rendição do adversário, a sua des- ta agora é: como articular essa oposição? feita. deve ser derrotado, deve cair

1. Esta é a segunda de três conferências proferidas no seminário Direito, Psicanálise e Sexualidade: Universal e Diversidade , realizado pelo Circulo Psicanalítico da Bahia em Salvador, nos dias 12 e 13 dez. 2012. A primeira conferência foi publicada na Estudos de Psicanálise , n. 43 p. 117-128), lançada em jul. 2015, com o título O nome e a lei, a “sensoalidade” e o direito.

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no campo de batalha, morto, siderado. É um na posição de sujeito dividido e siderado momento de imobilidade absoluta onde a por sua divisão. Uma posição histérica que destruição sai vitoriosa. demanda a interpretação de seu sintoma. A sideração é a consequência do terrí- Diante dele está a obra, sintoma mudo, que vel presente no campo de batalha. Alguns se apresenta como objeto a. O artista, en- instantes após a cessação das hostilidades, quanto sujeito dividido/silencioso, mas his- todo movimento é suspenso. É um momen- tericamente atuante, produz um objeto que to traumático, tudo )ca paralisado. É o )m projeta (como efeito do retorno) o silêncio do con*ito, uma suspenção do tempo. Esse siderante de seu mistério. O sujeito artista só horror é o que Rilke chama de Schrechlich , o é capaz de produzir um objeto porque é divi- ponto de chegada de um movimento que, no dido. Sua palavra/ato, no entanto, não preen- início, era bellus ( das Schöne ) e que, em seu che o campo do outro. Ele se torna então ob- estado )nal, se torna horrível. Guerra, mor- jeto que, no campo do outro se transforma te, sideração. em signi)cante primordial. Esse signi)cante Uma vez que chegamos ao extremo, um é dividido, não é total e, por essa razão, pode recomeço é sempre possível. Não falo de vir a ser (no sentido de devir, devenir, tornar- um retorno, mas de um renascimento. De se), pois participa da falta enquanto objeto a. repente um novo começo é factível. Parece Bellus coloca face a face um sujeito silen- um paradoxo, mas só pode haver ‘de-sidera- cioso e dividido que age e um objeto miste- ção’ se houver sideração. Só se pode retomar rioso – o objeto da criação, em vias de tor- o movimento se em algum momento houve nar-se. uma parada. Esse movimento de de-sidera- ção é o caminho em direção ao desejo e ao Relação de força e relação de amor belo. Mais adiante abordarei os segredos do O con*ito ( bellum ) introduz no campo de “sidus ”, 2 que, como veremos, é fundamental batalha um agente que se coloca como verda- para compreendermos o que é o desejo. Por de e se opõe contra o outro, contra o inimigo. enquanto apresentarei apenas a oposição si- O discurso da guerra é o discurso do mestre, deração e ‘de-sideração’ como signi)cantes do senhor. Esse con*ito se con)gura em uma que dialogam com o duo bellum e bellus . relação de força. No campo, em uma tensão Essa dualidade tem como efeito duas con- armada, as forças se medem e se confrontam. sequências: a guerra e o amor. De um lado, A força do senhor age para dominar o outro o confronto de dois exércitos, de duas ‘divi- e tem como objetivo ganhar o confronto, a sões’, duas metades em con*ito, em oposição; )m de manter submissos os escravos, graças do outro, a divisão entre sujeito e objeto que a uma nova vitória. Esse é de fato o discurso

permite o desejo, o amor e a relação estética. do mestre que, na posição de S 1 se impõe ao Duas entidades face a face, que vivem uma outro. Nessa dialética, é sempre possível que indecisão e uma dúvida, 3 um con*ito que ao o escravo reverta a situação, ganhe a guerra mesmo tempo divide e une. Podemos dizer e se torne mestre, enquanto o senhor cairá e que o con*ito pode levar à sideração, mas se tornará escravo. Esse tipo de con*ito fun- também à beleza, à arte e ao desejo. dado na força serve de modelo para a políti- Na criação artística existe um confronto ca e para certos tipos de relações pessoais. A entre sujeito e objeto, que se encontram face relação sexual, por exemplo, pode ser vivida a face como em um espelho. O artista está como uma relação de força. Um homem e uma mulher são separados por suas diferenças sexuais. A guerra de se- 3DODYUDODWLQDTXHVLJQL¿FDHVWUHOD xos é a consequência de uma relação fundada 3. Em alemão dúvida se diz Zweifel , palavra cuja raiz é Zwei , que VLJQL¿FDGRLV sobre o bellum , sobre o confronto de forças,

72 Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 44 | p. 71–82 | dezembro/2015 Bellum, bellus A guerra dos sexos uma relação quantitativa, que faz da diferen- hetero, uma vez que consiga remover o recal- ça de forças a única diferença possível. Duas que da castração e, assim, não permanecer pessoas de sexos diferentes se confrontam em uma relação de força, sadomasoquista. negando suas diferenças físicas anatômi- Um homem pode muito bem reconhecer em cas que são, na verdade, expressão de uma seu parceiro uma diferença que passa pela qualidade. Recalcando a diferença sexual, sua singularidade, física ou não, e que não um casal homem/mulher é obrigado, em tem nada a ver com uma diferença de for- sua relação, a inventar outra diferença capaz ça. Contrariamente, um casal heterossexual de anular a identidade e desativar, assim, a pode muito bem funcionar, e isso acontece ameaça de fusão, de aniquilação. Se o sujeito frequentemente, em um modelo homo (con- não reconhece a diferença de características fusão de identidade) e produzir, assim, uma sexuais, visto que elas são recalcadas, a única guerra permanente. A relação sexual se dá maneira de escapar da ameaça do idêntico é na articulação das diferenças, físicas e sub- inventar para o sujeito outra diferença que jetivas. Essa articulação pode entrelaçar uma será, dessa vez, quantitativa e, consequente- heterogeneidade no casal homossexual e le- mente, mensurável. var a uma relação onde o estabelecimento de O con)ito entre os sexos ( bellum ) surge uma diferença qualitativa é possível. no seio de um casal quando os dois parceiros Em de0nitivo, para sair da confusão que não são capazes de se diferenciar em termos leva ao idêntico, é preciso fazer a diferença qualitativos. A posição fálica, seja ela mascu- entre bellum e bellus , entre guerra e subli- lina, seja feminina, seria então uma maneira mação. A guerra dos sexos, vivenciada por de acessar um tipo de diferença, dentro da casais tanto heterossexuais quanto homosse- esfera da força. Dois idênticos, ou seja, duas xuais pode encontrar uma saída de-siderante pessoas que fazem abstração de sua real di- dando lugar ao bellus e tirando o falo desse ferença sexual podem criar arti0cialmente lugar de força. Bellus e bellum são, portanto, uma diferença (retorno do recalcado) por dois lados diferentes de uma mesma moeda: meio de uma oposição quantitativa onde um o da força, que é mais quantitativo, e o da tenta mostrar que é mais forte que o outro, arte, que é qualitativo. Cada sujeito carrega mais viril, o que seria uma diferença baseada em si esses dois lados que quase sempre se na inferioridade ou na superioridade. confundem. O sujeito que não é divido tem Minha experiência clínica tem me mos- suas ações dominadas pelo ponto de vista trado que, em um grande número de ca- quantitativo. sos, a relação homossexual vem como uma Frequentemente nossos analisandos vi- tentativa de sair do impasse do homo (do vem relações sociais do ponto de vista do sexo idêntico) pelo caminho da força e sua con)ito e da força: “se eu faço isso, depois mensurabilidade. A homossexualidade la- ele vai fazer isso e aquilo, vou sair perdendo. tente está, creio eu, na origem da guerra de Ele vai ganhar e me dominar”. Nessa lógica sexos numa relação heterossexual. Um casal não há laços simbólicos com o outro, mas heterossexual que vive uma relação homos- somente relações de guerra, de con)ito que, sexual, onde o homem e a mulher não são por não se basearem no simbólico, se deslo- capazes de reconhecer sua diferença, visto cam para o real da confrontação através de que isso resultaria no reconhecimento da atos que são uma prova de força. O con)ito possibilidade de castração, será levado a (bellum ) traz a questão da relação. Se a do- uma confrontação de forças e a um con)ito minante da guerra é a confrontação entre permanente. forças, a dominante do amor é a relação sim- Está claro então que um casal homosse- bólica, vivenciada como aspiração, tendência xual pode muito bem funcionar de um modo à unidade ( syn-bollein ).

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A sexualidade traz, a partir da etimologia de invoca a justiça, que é o alvo do direito. da palavra sexo, a questão do “dois”, ou seja, Sua essência é repartir, distribuir o gozo com da divisão. A palavra “sexo” vem do latim, justiça. O amor é de"nitivamente a impossi- secare , que signi"ca cortar em dois. A sexua- bilidade de ser UM, ele é sempre uma relação lidade remete, então, à diferença, em grego, a dois. Podemos, então, concluir que existe diaphora, formada pelo pre"xo dia , que sig- relação sexual, mas ela existe como con"r- ni"ca separação e phero que signi"ca portar. 4 mação de que os dois sexos são e continua- O sexual coloca logo de entrada a questão da rão separados (diferentes). diferença de sexos, que é uma diferença real A expressão “relação sexual” é na verdade e traumática antes de se tornar simbólica. O um oximoro, pois “relação” exprime a união amor é a tentativa de transformar em unida- e a separação sexual. A relação sexual seria, de simbólica o real dividido. Da sexualidade então, um terceiro lugar, que con"rma a se- passamos ao amor, à unidade (UMmor). Da paração dos dois sexos. Se a relação sexual diferença vivida como con*ito passamos ao existe, ela existe enquanto simbólica de um bellus , à beleza do amor, uma beleza que é real que continua separado. A relação sexual símbolo de unidade, de um universal impos- coloca junto, por um instante, simbólico e sível no real, porém desejado e possível sim- real sem que essas duas dimensões se con- bolicamente. fundam, sem que fusionem. O Um do Um- A diferença sexual é a diferença por exce- mor, mas também do U(m)niversal não é lência. A di"culdade de aceitar a diferença de uma fusão de dois, mas uma articulação de línguas, de culturas, de formas, vem da di"- diferenças. Bellum e bellus podem se articu- culdade de aceitar a diferença sexual, ligada lar, mas nunca fusionar. Da mesma maneira à questão da falta e, portanto, da castração. Nomos e Diké 5 podem se articular, mas nun- Abordar a questão da sexualidade nos ajuda ca se confundir. a compreender melhor a oposição entre bel- Segundo Lacan, a lei tem a função de, lus e bellum , ou seja, entre a beleza que pro- seguindo certa justiça, repartir o gozo, que duz a atração e o amor, e bellum , que produz deve ser distribuído e retribuído. O gozo o con*ito e está na origem da luta dos sexos. contínuo, que se apresenta Bellus e Bellum devem caminhar juntos, em em movimento que vai e vem sempre ligada uma articulação que os une e separa. ao mar, precisa ser fracionado. A lei tem um papel fundamental de barreira que contém a O 1mor , o gozo e o direito força do gozo, que a corta em pedaços e di- “O gozo do Outro não é o signo do amor”, minui seu poder destrutivo. É ela que o dis- disse Lacan ([1972-1973] 1982, p. 12). O tribui e o retribui com justiça, ou seja, ela lhe que seria, então, o amor para Lacan? Talvez atribui um valor mensurável. A lei é capaz de uma tensão de Eros em direção ao UM: UM- transformar a qualidade de afetos em valor mor. O que podemos dizer é que o amor é quanti"cável, de transformar a qualidade em recíproco e se aplica a duas pessoas, e cada quantidade. uma empurra em direção ao Um sem jamais A palavra “gozo” 6 nos remete ao signi"- chegar. Para que essa tensão exista, é preci- cante latino gaudium cuja origem etimológi- so dois pontos separados, é preciso que haja ca se encontra na Bíblia hebraica, no nome lugar para a diferença. O gozo do Outro não é o signo do amor, pois somente o gozo recí- 5. Divindade grega que representa a Justiça, também conhecida proco pode ser esse signo. Essa reciprocida- como Dice ou ainda Astreia. Filha de Zeus e Têmis, ela não usa vendas para julgar. Disponível em: . 4. A: do pre"xo -a (-an antes de uma vogal ou h mudo): privativo, 6. Segundo o Código Civil é “[...] o direito de gozar e dispor de algo de signi"ca ‘sem’ ou ‘parada’ ou ‘falta de’; * phoro , phoréo , phorèse : do forma absoluta contanto que a forma do usufruto não seja proibida grego phoreo , phorô , pherein ( -phore , -phorie ), carregar, ter em si. por lei ou regulamentos” (artigo 544 do Código Civil Francês).

74 Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 44 | p. 71–82 | dezembro/2015 Bellum, bellus A guerra dos sexos de Gad, o sétimo "lho de Jacó cuja mãe era Parece-me importante ressaltar aqui que Zelfa, a serva de Lia. Primeira esposa de Jacó, a raiz da palavra hebraica “ Maol ” é Mul , que Lia se tornou estéril depois de ter colocado signi"ca “palavra” ( mila ). Isso mostra a rela- no mundo quatro crianças. Gad, na Bíblia, ção que existe entre circuncisão, corte e fun- é um hápax legómenon , ou seja, uma pala- ção simbólica (de limite) da palavra. vra ou expressão que aparece uma única vez O gozo tem a característica de ser um con- no texto. 7 Quando Gad vem ao mundo, “Lia tínuo. Ele é bem próximo da pulsão, está na diz: ‘Que sorte!’ e chamou-lhe Gad”. 8 Rachi, 9 origem do movimento. No entanto, o gozo é em seu comentario de Gênesis, rea"rma Gad sempre endereçado ao outro, que representa como sorte e , e refere o versículo para ele seu limite, uma resistência. Quando de Gênesis à Isaias 65.11, 10 onde Gad apare- o exército começa a batalha, ele encontra a ce como a divindade da felicidade. Para fa- resistência do inimigo. Uma resistência que zer esse paralelo Rachi toma como base uma o limita e que o impulsiona a ir mais longe, interpretaçao midráshica do versículo de sem limite, sem borda, em direção à destrui- Isaías: “Porque ele nasceu circuncidado”. ção. Outra possibilidade seria aceitar o limi- Gad signi"ca, então, felicidade que car- te, abrir mão do desmedido e tentar chegar rega um sinal inscrito em seu corpo: a cir- a um acordo. Isso signi"ca que os dois lados cuncisão. O corte de um pedaço da pele que devem aceitar a perda e a vitória, a "m de cobre o prepúcio, símbolo fálico de potência. que se estabeleça um compromisso entre Circunciso em hebreu é Maol, que signi"ca as partes, ou seja, tanto um quanto o outro “cortado”. É nesse corte que se encontra a devem aceitar a cincurcisão, a perda real de felicidade, o Gaudium latino. Na raiz da pa- uma parte da totalidade do corpo que pode- lavra “ Maol ” encontramos “enfraquecer, cor- ríamos entender como sendo uma renúncia tar, retirar à força”. a uma destruição total do outro a partir da A partir da raiz Gad encontramos Gadol e aceitação da lei. Uma circuncisão simbóli- Gadah . Se, de um lado, Gadol signi"ca gran- ca que permite reconhecer o limite, ou seja, de, forte, potente e pode exprimir a ideia de permite ao sujeito aceitar suas limitações e um gozo exagerado, o verbo Gadah , por sua reconhecer sua falta, como sendo estrutural. vez, signi"ca abater, cortar, rachar, e expri- A partir dessa falta é possível a aceitação da me a ideia de mesura. Gad introduz um gozo Lei, um terceiro, entre os duelistas, que faz outro que integra a mesura e o simbólico da corte, separação. lei. O verbo hebreu Gadah nada mais é que a circuncisão do adjetivo Gadol . A potência Diké e Nomos de Gadol, que se confronta ao outro em um Existe uma tensão entre Diké (Justiça) e No- con4ito com o objetivo de destruí-lo é em mos (Lei). É uma relação, um duelo. Diké Gad cincuncidado pela lei que permite go- representa a lei oral, que precede e funda o vernar o gozo e mesmo sublimá-lo. Nomos , a lei escrita. Em sua origem ( am An- fang ), a lei dos homens e a justiça dos deuses estão face a face. No início, a lei e a justiça 7. O autor se refere à Bíblia hebraica (Torá), que compreende os cinco primeiros livros (Pentateuco) da Bíblia cristã. se respeitam, depois os duelistas entram em (N.T.). con4ito, eles se distanciam . Bellus (das Schö- 8. Gênesis 30.11 (Bíblia de Jerusalém). ne ) é o duellum em seu início. Das Schöne é 9. Commentaire de Rachi sur la Torah. Creteil: Editions NESS, 2000. Tome 1 - Berechit/La Gênese, p. 295. o ato de fundação da relação humana. No (Collection Houmach-Rachi.). início Deus criou o céu e a terra. Com um 10. “Mas, quanto a vós que abandonais a Iahweh, que vos só e mesmo ato Ele criou e separou o céu e esqueceis do meu nome santo, que preparais uma mesa para Gad, que ofereceis misturas em taças cheias a Meni” a terra. Podemos dizer que sua separação dá (Bíblia de Jerusalém). testemunho de sua ligação.

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O ato de criação, de começo, aparece em Do fato de ter matado seu pai, sua origem sua beleza, coloca em harmonia a justiça dos advém a obstrução da função simbólica e, deuses e a lei dos homens. Justiça e lei são por conseguinte, a função criadora também criados em um ato de separação, que é um é obstruída. Resta a pulsão de morte ( dia- ato de criação. Cada criação é um ato de di- bolique ). O interdito do incesto nos diz que ferenciação que separa, mas que ainda não não podemos (é proibido) nos unir, fusionar é con$ito. Existem dois tempos dessa sepa- com a nossa origem – isso seria não levar em ração, dois tempos consequentes que produ- conta o agenciamento do tempo. Não pode- zem bellus e bellum . O primeiro privilegia a mos criar algo que nos criou. Não podemos separação, e o segundo, a oposição. encontrar no futuro o nosso passado. O laço O fato de serem diferentes não signi%ca social – do qual o laço entre pai e %lho é o que não se relacionem. Essa relação permi- modelo – é construído sobre um pacto do te inscrever no psiquismo que o dois vem qual os deuses são testemunhas: a aceitação depois do Um. Édipo mata o pai e apaga, de dois interditos, o do incesto e o do assas- assim, o Um simbólico. Ele se coloca no lu- sinato. Édipo desa%ou esses dois interditos. gar do pai real; um lugar que ele não pode Antígona é %lha e irmã de Édipo. Ela é fruto ocupar mas somente usurpar – ele não pode de um incesto. Como se liberar da maldição ser %lho e pai ao mesmo tempo. O lugar produzida por esse sacrilégio? Como reparar simbólico do pai, de marido vai se revelar o crime de seu pai? rapidamente vazio. Ele não pode ocupar a Antígona vai tentar reparar esse erro obe- casa número 1 do pai, pois ele é o sinal, en- decendo a todo custo às ordens dos deuses. quanto %lho, de que essa casa já está ocu- Ela as toma ao pé da letra. Seus dois irmãos, pada. No entanto, ele a ocupa contra a lei Polinices e Etéocles disputam entre si o trono dos deuses, e se deita com uma mulher que de Tebas e se matam. O rei Creonte ordena é sua mãe. Ele é o %lho de sua mulher, ele é o enterro de Etéocles e proíbe o de Polini- consequência mas se coloca na posição de ces, pois ele teria transgredido as leis da ci- causa, de origem. A psiqué humana tem a dade. Antígona desobedece às ordens de seu inscrição, em ferro e fogo, do número Um. tio Creonte e enterra seu irmão, pois assim O dois está ligado a ele como consequência. queriam os deuses... Por isso será condena- Esse agenciamento é o Logos vivo. Simbó- da a uma morte terrível. Assim, Hermon, lico é a ligação entre 1 e 2, onde é sempre seu noivo, %lho de Creonte, quando desco- o 1 que precede o 2 e que pode se associar bre que Antígona morreu emparedada – se in%nitamente aos outros números, aos ou- entregou à morte ao desobedecer seu futuro tros signi%cantes. O signi%cante 1 é o sig- sogro – se mata a punhaladas. A morte toca- ni%cante da precedência, o antes, o começo. ra também sua irmã e a mulher de Creonte, Quando o 2 não se refere ao que o precede, mãe de Hermon. se transforma em signo morto, na impossi- Respeitando a lei dos deuses – dar se- bilidade de fazer syn-bolein e então de agir, pultura aos mortos –, Antígona vai contra pois ele é privado de seu começo. Sua lei, o interdito do assassinato e do suicídio. Es- aquela do %lho, se transforma em persegui- tranho que ela não veja que, respeitando dora (não simbólica), pois ele é privado do o direito à sepultura de seu irmão, ela vai agenciamento natural à sua origem: ao 1. contra uma lei muito mais importante, que Édipo mata seu pai, se casa com sua mãe é a lei da vida. Ela destrói sua própria vida e põe no mundo quatro %lhos, que são ao e a de seus próximos. Ela se obstina a exe- mesmo tempo seus irmãos e irmãs. No re- cutar uma lei que diz respeito aos mortos, lato do mito, Édipo ignora isso. Ele não sabe mas não pensa nas consequências nefastas e não pode nem imaginar, nem representar. de tal resolução.

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Não há sexual. Não existe relação, não existe ligação Proponho interpretar a surpreendente a!r- íntima na ordem do real entre os dois sexos, mação de Lacan (1979): “A relação sexual pois eles são, por de!nição, separados. não há” 11 à luz de uma outra a!rmação O que pode existir é uma relação simbóli- menos surpreendente mas que abre a uma ca, ou seja, externa, representada pela deriva perpectiva: “[...] o discurso analítico só se do verbo latino secare que signi!ca cortar, sustenta pelo enunciado de que não há” (L+- separar. A relação sexual exprime um signo ,+/, [1972-1973] 1985, p. 17). Aqui abro um outro que o real dos corpos, que mostram parênteses para dizer que o discurso cientí- uma diferença impossível de apagar. Uma !co se sustenta da a!rmação contrária: “há”. relação sexual, uma ligação da diferença cor- Fechando parênteses, voltemos ao nosso poral, em si, in natura , não existe. Relação, “não há”. A psicanálise parte da ideia de que ligação. “não há” e nos reenvia a uma falta que esta- Podemos entender como ligação que ar- ria no fundamento do processo psíquico e, ticula dois elementos que continuam separa- assim sendo, de todos os processos de aqui- dos ou podemos imaginá-lo como uma rela- sição do saber. Essa ideia da falta na relação ção, como uma fusão de duas matérias que amorosa nos remete ao objeto a, que per- formam UM. Lacan nos explica que “[...] a mite a construção do sujeito e abre espaço relação sexual, não existe... não existe, exceto para que o desejo surja. Lacan ([1972-1973] incestuosa”. Então, existe relação sexual ape- 1985, p. 14) continua sua a!rmação dizen- nas nessa fusão com sua origem. A relação do que “[...] de que é impossível colocar-se a como fusão do corpo de dois sexos diferentes relação sexual”. Vemos, então, que “não há” não existe, pois essa diferença que eu de!ni- está ligado a uma impossibilidade de “colo- rei paralela é seu fundamento. car-se a relação sexual”. Outra coisa é a diferença mãe e !lho, que Se analisamos a expressão “relação se- é sexual, mas que conserva um grau de ho- xual”, podemos ouvir que nela existe uma mossexualidade, aquela que houve no ven- oposição. É um oximoro, ou seja, uma !gura tre materno, antes da diferença sexual do retórica que exprime dois sentidos opostos. feto. Existe, nesse momento, uma fusão, e Como na expressão “uma noite iluminada” não uma relação. Uma fusão que em muitos exprimimos dois sentidos paradoxais. De casos continua depois do nascimento. Exis- fato, a luz contradiz o próprio da noite, que te, então, relação sexual incestuosa. Existe é ser escura. também relação sexual se entendemos como A relação sexual é um paradoxo da mes- articulação de duas diferenças reconhecidas ma ordem, pois a palavra “sexo” deriva do simbolicamente. verbo latino secare que signi!ca cortar, se- No entanto, não podemos pegar um cor- parar. A relação sexual exprime uma relação po de uma mulher e um corpo de um homem entre essa distância. É a tentativa de unir o e fusioná-los. Para que haja uma relação se- que ontologicamente está separado, é dife- xual é preciso que haja também o outro, que rente. Então, a relação sexual enquanto tal haja palavra. É o que distingue o homem do não existe, pois não existe relação, não existe animal, de fato. A relação sexual é impossível ligação entre a origem de toda a diferença, a como tal. Esse “como tal” indica seu real, no sentido próprio da palavra. Lacan (1985, p. 17-18) diz: “[...] o gozo 11. LACAN, 1979, p. 9s. “Le rapport sexuel, il n’y en a pas, mais enquanto sexual é fálico, ou seja, ele não se cela ne va pas de soi. Il n’y en a pas, sauf incestueux. C’est très exactement ça qu’a avancé Freud — il n’y en a pas, sauf incestueux, dirige ao outro como tal”. Até o gozo precisa ou meurtrier. Le mythe d’Œdipe désigne ceci, que la seule personne de um intermediário, um signi!cante, o falo, avec laquelle on ait envie de coucher, c’est sa mère, et que pour le père, on le tue.” para se dirigir ao outro.

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O gozo, “enquanto sexual é falico”, o que tura afrontando, assim, uma morte certeira. signi"ca que entre o um e o outro não existe Ela se rebela (re- bellum ) contra a lei emiti- uma relação de fusão, mas entre os dois o que da por seu tio e decide agir: “[...] quanto a liga e o que separa é o falo. Falo remete à falta meu irmão eu o sepultarei! Belo para mim (o verbo falhar é testemunha disso), pois ele que em seguida morra... erguerei um túmulo substitui de maneira imaginária e simbólica para meu irmão muito amado” (S45649;<=, a falta real do pênis. Da mesma maneira a 2006, p. 87). relação sexual como fusão não existe, no en- Sua ação surge como um gesto de amor tanto ela existe pelo viés do falo. e de piedade. Ela vai cobrir seu irmão com um véu de terra e depois proceder aos ri- Distância entre o direito e a lei tuais fúnebres. Surpreendida pelos soldados Voltemos a Antígona e a questão da justiça. de Creonte, ela é capturada e condenada à Entre o direito divino e a lei humana existe morte. Antígona se coloca do lado do amor. uma distância. Se existe uma relação entre os Creonte lhe diz que ela ama sim, mas os mor- dois não é fusão mas uma tensão que reli- tos e que, então, deve descer à sepultura para ga os dois. Se existisse uma fusão entre lei e amar os que lá estão (S45649;<=, 2006). direito, isso seria uma confusão, no sentido Creonte, fechado em sua verdade-toda, que o legislador poderia se achar o criador se coloca na posição de um legislador surdo de uma lei toda poderosa, eterna e justa à aos apelos da justiça. Seu "lho, Hémon, lhe qual ele não se submeteria, pois a Justiça é faz, como muita lucidez a seguinte obser- ele mesmo. Então, legisladores ou deputados vação: “[...] não creias que só tuas decisões no parlamento devem continuar modestos e sejam acertadas e justas” (S45649;<=, 2006, reconhecer que a lei não recobre totalmente p. 108). Da mesma maneira, Antígona, louca a justiça e que há sempre um resto. de amor pelo seu irmão morto, adere a ou- O ditador vai se achar o grande legislador tra verdade-toda, a dos deuses, que encarna atribuindo a si mesmo o direito de criar uma uma lei que não cessa de não se escrever. A lei que adere perfeitamente (em um tipo de lei dos costumes, uma lei oral, que se opõe à fusão) à justiça suprema. Esse tipo de relação lei do rei Creonte, que, ao contrário, é uma anula perigosamente a distância que existe lei escrita. entre a justiça e a lei. Então, sustento que a A psicanálise, assim como Antígona, está relação entre Diké , a justiça e Nomos , a lei, é à escuta de uma palavra que não cessa de não sempre da ordem do dois e não tem fusão. A se escrever e se opõe aos decretos que con- questão que surge é: como articulá-los? gelam a lei em uma escrita que na verdade é uma de suas interpretações possíveis. A lei Antígona contra Creonte escrita deve ser sempre colocada em questão. e contra os deuses O dispositivo analítico serve a manter viva a Antígona se opõe, então, ao seu tio por uma palavra que tem a tendência a se “ancorar”, 12 questão de justiça. Seus irmãos, Etéocles e a se congelar em um signo que se tranforma Polinice estão em con1ito. Eles se matam. em pura imagem e perde seu caráter simbó- Creonte decide dar sepultura ritual a Etéo- lico. cles e não a Polinice. A atitude de Creonte O analista através da sua escuta ajuda a é injusta e iníqua. Contra essa iniquidade se palavra do analisando a surgir com sua carga insurge Antígona. Creonte ameaça de morte metafórica, forçando-a a tornar-se. Essa pa- quem ousar dar a Polonice a sepultura ritual, lavra que não cessa (que não precisa) de se prevista pelos costumes. Antígona não hesita nem um pouco, está decidida a realizar esse 12. Jogo de palavras entre ancre (âncora) e encre (tinta), que em gesto de piedade e dar a seu irmão a sepul- francês têm a mesma pronúncia.

78 Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 44 | p. 71–82 | dezembro/2015 Bellum, bellus A guerra dos sexos escrever mantém vivo o sujeito e ao mesmo tais, sem os quais não há sociedade possível; tempo seus direitos, os direitos do homem. entre eles, o mais importante, o interdito do A psicanálise é a guardiã dos direitos do incesto. homem que são, na minha opinião, a garan- A partir disso, como compreender a lei- tia de uma lei justa mas também da possibili- tura que Lacan faz de Antígona? Conhece- dade de que uma lei, uma palavra, não perca mos o (nal da história: Antígona morre. Ti- sua carga simbólica. Deve existir, então, uma résias, o adivinho cego, capaz de interpretar relação entre esse real impossível, o real da a vontade dos deuses acusa Creonte “[...] de justiça, e o real dos direitos do homem, ou deter na terra um cadáver que pertencia aos seja, da lei escrita. O simbólico é essa solda- deuses subterrâneos”. Ele diz: “Você mantém dura entre o oral e a escrita, entre possível e aqui um morto, você retira os seus direitos”. impossível. A lei simbólica não é a lei sim- Os direitos são as oferendas, os rituais, que plesmente, mas é a lei e a justiça articuladas são dele por direito. juntas. A tragédia termina com as palavras do Aliás, quando as crianças ou os adoles- Corifeu: “[...] a sabedoria é de muito a pri- centes estão em revolta, eles estão porque meira das condições da felicidade. Não se sofreram injustiças. Nas entrevistas, eles nos deve nunca cometer impediedade para com dirão: “sim, mas minha irmã não teve esse os deuses”. São os deuses que ditam as regras mesmo tratamento” ou “meu pai me bate...”. da justiça. Não respeitar essas regras signi(- Conhecemos muito bem isso, sabemos que ca, então, cometer impiedade. A pietas é um a injustiça não é tolerável por uma criança. tipo de amor e de respeito dos homens para No entanto, os adultos aceitam ser gover- com os deuses. Ele é, no entanto, recíproco. nados de qualquer maneira e aceitam tran- Se os homens respeitam os deuses, honram quilamente a injustiça. Eles não se revoltam. as suas regras, os deuses terão piedade deles As crianças, e mais raramente os adultos, se e lhes concederão sua graça. Mas os homens revoltam quando percebem que a lei não tem devem temê-los, na falta do que os deuses se relação com a justiça. Essa separação sem tornam terríveis, impiedosos. contato é insuportável para o inconscien- O capítulo XIV da Poética , de Aristóteles, te. Eu diria que essa separação é diabólica e explica que a tragédia deve provocar duas nada simbólica se tomamos a palavra “diabó- emoções: o terror e a piedade. Chamando-os lico” ao pé da letra.13 para a cena, a tragédia permite a catarse, ou Há sujeito quando acedemos ao simbó- seja, uma depuração, uma puri(cação 14 das lico, ou seja, quando o ser humano é capaz emoções. A tragédia “[...] deve representar de fazer da linguagem uma ferramenta de fatos que despertem o medo e a piedade”. criação e de transformação do real. O sujeito Essas paixões que lembram a fragilidade da faz, então, de sua palavra a ferramenta que existência humana são constitutivas do hu- lhe permite agir simbolicamente a separa- mano. ção edipiana. É através da palavra que pode- Breuer e Freud utilizaram essa descober- mos fazer agir a ordem simbólica, através da ta grega da catarse para fazer um método de qual um pai exerce uma lei que respeita as tratamento. O relato que o paciente faz de diferenças generacionais e o lugar que cada seu “trauma psíquico” é na verdade segui- membro ocupa na familia: esposa, mãe, (- do por uma descarga de afeto (ab-reação), lho, pai. Essa separação edipiana é a lei não que constitui a catarse propriamente dita escrita, que coloca os interditos fundamen- (F2568, [1925/1924] 1996). A tragédia tem

13. “Diabo” signi(ca em grego “ diabolein ”; dia : separar e bolein : 14. Katharsis (κάθαρσις) é o nome da ação que corresponde ao jogar. Essa palavra se opõe a “ symbolein ”, que signi(ca reunir. verbo kathairô (καθαίρω), “limpar, puri(car, purgar”.

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por objetivo a catarse, a purgação do Pa- para além de Diké . “ Ektos Até ”, para além do themata , ou seja, das paixões que sucitam o Até a vida mesmo é ameaçada. Ouvimos a medo e a piedade. homofonia da palavra Até , que, nos lembra Para Lacan a estrutura da ética é a estrutu- Hades , o lugar dos mortos. 16 ra da psicanálise. Assim como a psicanálise, A psicanálise nos leva a reconhecer esse a tragédia é fundada sobre a ideia de separa- limite nas imediações do qual surgem duas ção e de limite. Para a tragédia o campo dos emoções: o medo e a piedade. A catarse é deuses é separado do campo dos homens, e produzida por sua vez pela beleza ( das schö- a tragédia coloca em cena essa confusão, que ne ) que é o efeito de uma obra de arte cons- deriva do fato, por exemplo, de que os ho- truída sobre o respeito às proporções e for- mens querem ser semelhantes aos deuses. mas. O movimento cíclico mesmo, que vai Antígona vai além dos limites humanos: do belo (o começo) ao terrível (a morte), que ela desa'a, por um lado, Creonte – sua lei – e renova o processo com um novo recomeço, por outro lado, os deuses. Essa é a crítica que um novo renascimento, é fundado sobre o lhe faz sua irma Ismênia: ela vai além dos li- limite, ou seja, sobre um terceiro lugar que mites. O limite é dado pelos deuses, que são representa o corte signi'cante. impiedosos se não respeitamos a justiça. O A ação de Antígona não é um ato de pie- Até “άτη” é o 1agelo enviado pelos deuses dade nem de criação, pois não é uma sepa- como castigo por essa desobediência. O Até ração, uma instauração de limite. Somente é uma cegueira de espírito, uma distração, um corte pode criar um lugar intermediá- uma loucura. 15 rio, que cria um laço entre lei e justiça. Esse Lacan observa que essa palavra se repete lugar, que chamamos falo , permite integrar 20 vezes na tragédia. Essa insistência indica uma perda, uma distância em relação à lei e que “ Até ” é uma palavra-chave, que designa à justiça. Esse lugar faz laço e separação, ao o limite humano para além do qual termina mesmo tempo, e nos evoca o Omphalos , que o mundo humano. Antígona, que quer de- para os gregos era o umbigo do mundo, lugar fender a justiça que impõe o sepultamento de direção e de voz divina, oracular, lugar do de todo ser humano, ultrapassa o limite e se limite. transforma, como diz Lacan, em inumana. Seu erro foi ter ido longe demais, para além do Até “εκτος άτη”. Abstract Seu desejo visa o para além, seu carater #e war brings with it the horror of death and é implacável, sem medo e sem piedade. Sua destruction. Horror that the German poet posição é bem descrita na tragédia (verso Rainer Maria Rilke calls schreklich at one of 559/560): “[...] sua alma é morte destinada a his elegies, and which is but the arrival of a vir em ajuda aos mortos”. O caráter mortí- shining beginning, bellus (das Schöne). At one fero do desejo de Antígona é dado pelo fato side the war, the confrontation between two de ela não sustentar o limite entre o céu e a armies, on the other love, a face to face of two terra; ela prossegue e vai além. beings in their seach for desire. On both sides Não há mais cortina, não há separação two beings face each other through indecision que faça o corte que a linguagem instaura and doubt, though also a relantionship that na vida do homem, o corte signi'cante que unite and divide. Sexual relation might be ex- confere ao homem o poder de ser o que ele perienced as a con$ict, a power relationship é: anulado. Antígona está para além da lei e and a continous strain, or as love relationship

15. Um 1agelo é enviado pelos deuses gregos sobre os países considerados culpados de crimes ou de sacrilégios. 16. Ades ( Ἅιδης ) indicava o “reino dos mortos”.

80 Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 44 | p. 71–82 | dezembro/2015 Bellum, bellus A guerra dos sexos were dierences are handled. A man and a Referências woman are parted by their sexual dierence. Sex war is the consequence of a bellum grou- nded relationship, a strenght €ght, a quanti- ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Abril Cultural, titative struggle in which strenght power dis- 1984. similarity acts as the only possible dierence. FREUD, S. Um estudo autobiográ$co (1925 [1924]). A conict between Diké (Justice) and Nomos In: ______. Um estudo autobiográ€co, inibições, sinto- (Law) also exists. A conict that also is a bin- mas e ansiedade, análise leiga e outros trabalhos (1925- ding instance and a tension. Diké plays as the 1926). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. oral law that procedes and establishes Nomos, Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 15-78. (Edição stan- dard brasileira das obras psicológicas completas de the written law. In the beginning (am Anfang) Sigmund Freud, 20). the gods justice and human law are face to face, at balance, some kind of equilibrium, ISAAC, S. Le Commentaire de Rachi sur la Torah . Cre- then they spread apart and grow to conict. teil: Editions NESS, 2000. Tome 1 - Berechit/La Gêne- Art, the beautiful (das Schöne), is the founding se. (Collection Houmach-Rachi). act of every human relationship. „e creative LACAN, J. L’escroquerie psychanalytique. Ornicar? act, that in which the beginning appears at his Bulletin périodique du champ freudien, Paris, 1979. beauty, harmonizes the god’s and man’s justice. Justice and law arise from a parting act which LACAN, J. O seminário, livro 20: mais, ainda (1972- is the same as a creative one. Each creation 1973). 2. ed. rev. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de M. D. Magno. Rio de Janeiro: is a dierentiation act that spreads apart but Zahar, 1985. (Campo Freudiano no Brasil). which, for a moment, doesn’t conicts. „ere are two moments to this separation, two su- SOPHOCLES. Antigone. In: ______. Tragédies Com- cessive moments that produce bellus and bel- plètes . Paris: Gallimard, 2006. lum. „e €rst privileges the bond, the second opposition. „is relationship allows that the Recebido em: 04/08/2015 ‘two’, the real, cames a er the ‘one’. Oedipus Aprovado em: 04/09/2015 kills the real father and as so erases its origin, the symbolic ‘one’. Antigone at the sametime is his sister and his daughter. She cames from an Sobre o autor incest. How to throw away the curse that came from such sacrilege? How to repair the crime Paolo Lollo from Oedipus the father? Filósofo e psicanalista. Pesquisador da Universidade Paris 13 Keywords: Bellum, Bellus, War, Love, Joy, (Unité Transversale de Recherche Psychogenese Law, Sideration, Desideration. et Psychopathologie). Secretário da Associação Insistance – Art, Psychanalyse, Politique. Membro do comitê de redação da revista Insistance (França). Membro do conselho editorial da revista Fundamentos, publicação da Universidade Federal do Piauí. Autor do livro Passagens, transmissão da psicanálise e direitos do homem (Rio de Janeiro: Contra Capa, 2015.

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