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A INTERPRETAÇÃO DE UMA ESTROFE DA CANÇÃO “BREATHE”, DO , COMO UMA EXPERIÊNCIA RELIGIOSA E EM BREVE DIREÇÃO À DOUTRINA ESPÍRITA THE INTERPRETATION OF A VERSE OF THE SONG “BREATHE”, U2, LIKE A RELIGIOUS EXPERIENCE AND SOON TOWARDS THE SPIRITIST DOCTRINE Rogério Duarte Fernandes dos Passos1 Resumo: O trabalho objetiva considerar uma das estrofes da canção “Breathe”, do grupo de rock irlandês U2, e, superando o mero deleite e o comumente visível na cena pop musical, proceder a uma análise e interpretação consoante à da Doutrina Espírita, especialmente, em um de seus fundamentos básicos, justamente a reencarnação. Palavras-chave: U2, canção “Breathe”, cultura pop e religiosa, Doutrina Espírita, interpretação de música, rock Abstract: The study aims to consider one of the stanzas of the song “Breathe”, from the Irish rock group U2, and, overcoming the simple delight and the commonly visible in the music pop scene, make out an analysis and interpretation according to the Spiritist doctrine, especially in one of its fundamentals: the reincarnation. Keywords: U2, song “Breathe”, pop and religious culture, Spiritism, music interpretation, rock

INTRODUÇÃO Objetiva-se com o presente texto trazer a interpretação de uma estrofe da canção “Breathe”, do grupo de rock irlandês U2, acrescentando uma análise não tradicional ou eurocêntica, de forma a alcançar a ótica e os fundamentos da Doutrina Espírita – ou o Espiritismo, e/ ou mesmo, simplesmente, Doutrina –, dentre eles, notadamente a reencarnação. Para tanto, resgataremos brevemente a história da trajetória musical e pessoal dos integrantes da banda, bem como os elementos principais da Doutrina Espírita e a própria canção citada em análise, culminando na conclusão que a mesma possui referenciais aptos à permissão da leitura sugerida no artigo, e mesmo, de outras não triviais ao universo corriqueiro da indústria do entretenimento.

1 Mestre em Direito Internacional pela Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP). Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Docente em escolas técnicas do Centro Estadual de Educação Tecnológica Paula Souza (CEETEPS), em Hortolândia e Campinas, no Estado de São Paulo. E-mail: [email protected]. 2

1. UMA BREVE TRAJETÓRIA DO U2 COM ÊNFASE NOS PRIMEIROS ANOS: RISCOS, ÊXITOS E, FINALMENTE, AS VISITAS AO BRASIL Não é tarefa simples reconstruir a trajetória do U2, uma das mais importantes bandas de rock da história da música e os artistas de maior projeção popular irlandesa em todos os tempos, no que atentar-nos-emos, sobretudo, aos seus anos iniciais, assim tomando o período que se localiza entre o surgimento do grupo, em 1976, até à consolidação definitiva no mercado norte-americano e mundial, consubstanciada no álbum “”, lançado no ano de 1987. Outrossim, como dito, o marco inicial do grupo remonta ao ano de 1976 – período na história da banda conhecido como “early years” –, quando alunos da “Mount Temple Comprehensive School”, na Malahide Road, em Clontarf, Dublin, Irlanda, responderam a um anúncio do baterista Lawrence Joseph Mullen Junior para a formação de uma banda. Naquele cenário pós-punk, dos jovens que compareceram para o primeiro e caótico ensaio na cozinha da casa do fundador, restaram o próprio Lawrence – adquirindo o nome artístico “Larry Mullen Junior” –, Paul David Hewson –, vocalista, assumindo o nome artístico de (sendo que no começo de carreira ficou conhecido também como “Bono Vox”) –, David Howell Evans – nome artístico “”, o guitarrista –, e Adam Charles Clayton – nome artístico “”, o contrabaixista –, que conseguiu entrar no grupo especialmente por possuir um instrumento. Os músicos ainda detinham uma formação musical precária e faziam “covers” de outras bandas até alcançar a coesão necessária para sustentar a convicção da arriscada, incerta e difícil carreira musical do universo pop rock, em especial para artistas que gravam na Língua Inglesa e que são oriundos de um país então periférico neste cenário. 3

Figura 1. O U2 no palco em seus primeiros anos de carreira (na história da banda, os chamados “early years”).

Fonte: U2BR (2018). Disponível em . Acesso 25 Dez. 2018. Após os provisórios nomes de “Feedback”, entre 1976 e 1977, e “The Hype”, entre 1977 e 1978, surge a denominação “U2” – nome do famoso avião de espionagem norte- americano abatido sobre a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas em 1960 ou mesmo um possível trocadilho com a expressão “you too” (você também, em inglês) –, com Bono assumindo a liderança do grupo com entusiasmo e personalidade, ainda que toda a banda engajasse-se no seu aperfeiçoamento técnico-criativo e igualmente pela busca por oportunidades de divulgação de suas canções na mídia e à possíveis gravadoras. Desse período é curiosa (e famosa) uma carta assinada pelo executivo Alexander Sinclair, em 10 de Maio de 1979 à frente da gravadora “RSO Records Limited”, de Londres. Nela, em resposta a Bono – à época ainda residindo na casa de seu pai, localizada no notório (e agora turístico) endereço da Cedarwood Road, nº 10 (na correspondência provavelmente datilografada de forma equivocada como “Cobewood Road”), em Dublin –, ele gentilmente recusa o pedido de gravação de um álbum, ainda que tivesse ouvido a fita cassete com o material do U2 (FOLHA DE SÃO PAULO, 2014).

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Figura 2. Carta de resposta do executivo Alexander Sinclair rejeitando a proposta do U2 para a gravação de um álbum no ano de 1979.

Fonte: FOLHA DE SÃO PAULO (2014). Disponível em . Acesso 25 Dez. 2018. Nesse ínterim inicial, o U2 entregava-se ao palco de forma visceral, com performances muito intensas – inclusive com Bono jogando-se sobre a plateia –, em exemplo do que se deduz da audição do disco “Another Time, Another Place: Live at the Marquee London”, rara e incompleta gravação de 29 de Setembro de 1980 (e cujo original formato físico em vinil encontra-se restrito a colecionadores e assinantes do “site” oficial do grupo), obtida no “The Marquee Club”, lendária casa de música que existiu na capital inglesa entre 1958 e 2008. Os shows prosseguiam também em turnês pela Europa feitas em vans velhas, cujas viagens eram pausadas pelo descanso em surrados sacos de dormir (PASSOS, 2017a, p. 181). Ao lado da divulgação europeia, a popularidade na terra natal era crescente, a ponto do U2, mesmo sem um álbum de estúdio gravado, registrar em apresentação no estádio nacional de Dublin um público de cerca de duas mil pessoas, igualmente revelando a proximidade dos 5

fãs com os integrantes da banda no momento em que mais de trinta pessoas da plateia sobem ao palco para com eles dançar, expondo o grupo ao interesse de produtores musicais (U2. A BIOGRAFIA ILUSTRADA, 2013, p. 26). Com a ajuda dos familiares, a deambulação pelo êxito global não se revelou longa, uma vez que a gravação do primeiro álbum, “Boy”, também ocorre já em 1980, disparando a escalada crescente – com significativa participação a partir de 1978 do empresário Paul McGuinness, que ficou com o grupo até 2013, quando, então, vendeu sua participação nos negócios da banda e foi substituído por –, em que capítulos de destaque podem ser mencionados em álbuns como “War”, de 1983 – sublinhado pelo período da Guerra Fria (1945-1991) –, “The Unforgettable Fire”, de 1984 – inaugurando novas sonoridades, o tema dos direitos humanos e a contemplação da natureza –, “The Joshua Tree”, de 1987 – celebrando a experiência existencial com a música popular norte-americana –, e “Achtung Baby”, de 1991, este último parcialmente gravado no icônico “Hansa Studios”, de Berlim, apropriando-se da profusão de reunificação alemã (Deutsche Wiedervereinigung) e da redefinição geopolítica mundial, simbolizada pela queda do Muro de Berlim a partir de 09 de Novembro de 1989. Porém, a trajetória do U2 não foi construída sem a assunção de riscos, no que o projeto de internacionalização da banda apostou quase que exclusivamente no aspecto performático do grupo, como se viu no show “Live at Red Rocks: Under a Blood-Red Sky” – gravado em 05 de Junho de 1983 no expressivo “Red Rocks Amphitheatre”, em Morrison, localidade próxima a Denver, capital do Colorado, nos Estados Unidos da América. Na ocasião, em data da turnê do álbum “War”, embora com intensa chuva e lotação incompleta, Bono, The Edge, Larry Mullen Junior e Adam Clayton, cientes do imenso volume de recursos investidos na empreitada – que contaria com a direção de Gavin Taylor (1942-2013) e produção de Jimmy Iovine –, decidiram ir adiante com o evento, notabilizando-o com um dos grandes momentos do rock na década de 1980, a ponto do magazine “”, publicação especializada em música e cultura pop, incluí-lo no rol dos cinquenta épicos e maiores álbuns gravados ao vivo em todos os tempos (MENCONI, 2015), tendo a apresentação da canção “” – na qual Bono se destaca por pendurar-se em equipamentos de som e fincar junto ao público uma bandeira branca, enunciando um libelo pacifista – como uma das imagens icônicas da união entre música, religiosidade, política e direitos humanos que afirmaram o grupo daí em diante. Por sinal, nesse período, sem receio de investir nas letras temas políticos e religiosos, ao modo de “New Year’s Day”, reconhecida pelo “riff” de contrabaixo – em grande 6

desenvoltura de Adam Clayton – e piano, “Sunday Bloody Sunday” torna-se marcante pela introdução assinalada por uma bateria de compasso militar – em originalíssima contribuição de Larry Mullen Junior – que a faz notória em todas as apresentações da banda, trazendo referência ao domingo de 30 de Janeiro de 1972 no qual, no bojo do conflito religioso que marcou a história da Irlanda e Irlanda do Norte, em um protesto pacífico na cidade norte- irlandesa de Derry (conhecida também como Londonderry), soldados britânicos reprimiram os ativistas e alvejaram manifestantes católicos, deixando quatorze mortos e vinte e seis feridos. Igualmente com referências religiosas e apesar das controvérsias iniciais acerca do significado da letra – inserida no delicado contexto do conflito religioso e político irlandês –, vale destacar que “Sunday Bloody Sunday” torna-se referência entre as canções pacifistas e de protesto, inaugurando uma longa agenda do U2 dedicada a causas ambientais – em exemplo do concerto em desaprovação à usina nuclear de Sellafield (“Stop Sellafield”), em 08 de Dezembro de 1992 –, de direitos humanos e civis, de filantropia, desarmamento, combate à fome e pobreza, comércio justo entre as nações e perdão da dívida externa de países em desenvolvimento, em pautas que ao longo dos anos foram amplamente defendidas nos shows e pronunciamentos públicos dos integrantes do grupo. No mesmo esteio é importante mencionar que no ano de 1984, no contexto de assumir os riscos de esboçar uma nova sonoridade, é que o U2 concebe o álbum “The Unforgettable Fire”, trazendo a produção musical de Brian Eno e Daniel Lanois e com eles estreando uma decisiva parceria para o encontro de arranjos ainda mais inventivos e etéreos na gravação das composições em estúdio. Desse trabalho, em tributo ao líder pacifista Martin Luther King (1929-1968) tem-se a canção “Pride (In the Name of Love)”, que se tornando um dos grandes êxitos comerciais do disco, credencia o grupo a apresentar-se em 13 de Julho de 1985 na data inglesa do “”, festival protagonizado pelos músicos e Midge Ure que objetivava arrecadar fundos para o combate à fome na Etiópia. Nesse concerto registrado no antigo Estádio de Wembley, em Londres, a banda planejava incluir “Pride (In the Name of Love)” – seu sucesso no momento – no “setlist” de três faixas. Contudo, após “Sunday Bloody Sunday”, ao longo da canção “Bad”, com um desempenho imprevisível para a audiência de milhões de pessoas ao redor do mundo, Bono retira uma fã da plateia para dançar, praticamente abandonando o palco e forçando a banda, de forma visceral, a improvisar a melodia por mais de dez minutos. O que poderia ser considerado como um erro de performance do vocalista, acabou por trazer a exposição e popularidade em âmbito norte- americano e mundial. 7

No bojo dessa exposição, após estampar a capa da edição de 27 de Abril de 1987 da revista norte-americana “Time” e apostando no impacto das apresentações ao vivo em estádios lotados ao longo da turnê do álbum “The Joshua Tree” – na qual se registraram ameaças de morte a Bono, especialmente por conta da canção “Pride (In the Name of Love)” –, o U2 confia ao então jovem diretor Phil Joanou a direção do filme-concerto “Rattle and Hum”, que lançado em 1988, mescla gravações em preto e branco com outras fortemente coloridas. Mesmo tendo um baixo orçamento e recepção não muito calorosa da crítica, a película alcança condição de registro fundamental para a compreensão da gênese da banda, de suas convicções, interações e influências musicais. Ademais, a partir da trajetória construída nas músicas e turnês que se seguiram ao primeiro trabalho de estúdio, com a assunção e administração de riscos inerentes àqueles que publicamente defendem causas e convicções de ordem religiosa, política, e que igualmente desejam consolidar-se no universo artístico “mainstream”, o status da banda no universo pop- rock revelou-se grandioso e com sucesso – ainda que sem exposição maciça e permanente na mídia –, materializando uma jornada apta a muitas considerações que não caberiam neste texto. Figura 3. U2 recebendo o prêmio Grammy pelo álbum The Joshua Tree. Da esquerda para a direita: The Edge, Adam Clayton, Larry Mullen Junior e Bono.

Fonte: O POVO (s. d.). Disponível em . Acesso 25 Dez. 2018. Após anos de espera e expectativa dos fãs, o U2 desembarcou no Brasil para shows no Rio de Janeiro em 28 de Janeiro de 1998 (que inicialmente aconteceria no Estádio Mário Filho, o “Estádio do Maracanã”, mas, por problemas de logística, acabou tendo lugar no 8

Autódromo Internacional de Jacarepaguá Nelson Piquet), além de outras duas datas no Estádio Cícero Pompeu de Toledo, o “Estádio do Morumbi”, em São Paulo, justamente, 30 e 31 de Janeiro de 1998, trazendo a turnê “Pop Mart” (de divulgação do álbum “Pop”). Houve um breve retorno em 23 de Novembro de 2001 para uma apresentação nos estúdios da tevê Globo, no Rio de Janeiro (para a divulgação do álbum “All That You Can’t Leave Behind”), cidade que inclusive serviu de cenário para a gravação do videoclipe da canção “Walk On”. Já em uma turnê propriamente dita – a “Vertigo Tour”, de divulgação do álbum “How to Dismantle an Atomic Bomb” –, a banda retornou para mais duas apresentações no Morumbi em 20 e 21 de Fevereiro de 2006, voltando ao mesmo estádio com a “360º Tour” em 09, 10 e 13 de Abril de 2011, e com a “ 2017” (em celebração aos trinta anos do lançamento do icônico álbum “The Joshua Tree”), nas datas de 19, 21, 22 e 25 de Outubro de 2017. Em todas as ocasiões as entradas rapidamente esgotaram-se. Ao que tange aos trabalhos musicais propriamente ditos, sem mencionar a contribuição majoritária na trilha sonora do filme “The Million Dollar Hotel”, dirigido pelo alemão Wim Wenders em 2000, os fonogramas lançados pelas diferentes plataformas da Internet, “singles”– materiais contendo uma ou três canções, “cada uma com menos de dez minutos de duração” –, os “extended play” (EP) – tendo de uma a três canções com “pelo menos dez minutos de duração e um tempo de execução total de trinta minutos ou menos”, ou com “quatro a seis músicas com um tempo de execução total de trinta minutos ou menos” (LANDR, 2015), os registros não oficiais (os chamados “bootlegs”, geralmente gravados de apresentações na televisão, rádios ou mesmo shows, até mesmo tidos como gravações “piratas”), trilhas sonoras para o cinema, coletâneas, “lados b” (“b-sides”), e os discos disponibilizados apenas para os assinantes do “site” oficial do U2, podemos cronologicamente mencionar ao longo da carreira do grupo os seguintes álbuns – “long play” (LP) –, assim considerados os registros “com seis ou mais músicas com mais de trinta minutos de duração” (LANDR, 2015): 1) “Boy”, de 1980; 2) “October”, de 1981); 3) “War”, de 1983; 4) “Under a Blood-Red Sky” (1983, ao vivo, também disponível em formato EP e em vídeo); 5) “The Unforgettable Fire”, de 1984; 6) “The Joshua Tree”, de 1987; 7) “Rattle and Hum”, de 1988 (contendo performances ao vivo e ainda em formato de vídeo); 8) “Achtung Baby”, de 1991; 9) “Zooropa”, de 1993 (por muitos também considerado em EP); 10) “Original Soundtracks 1” (projeto experimental de trilhas sonoras imaginárias não assinado pela banda e gravado sob o pseudônimo “Passengers”, ao lado de Brian Eno e outros artistas convidados, em exemplo 9

de . e do tenor , 1935-2007), de 1995; 11) “Pop”, de 1997; 12) “All That You Can’t Leave Behind”, de 2000; 13) “How to Dismantle an Atomic Bomb”, de 2004; 14) “No Line on the Horizon”, de 2009; 14) “Songs of Innocence”, de 2014; e 15) “Songs of Experience”, de 2017, sendo que estes dois últimos trabalhos trazem a influência conceitual da poesia de William Blake (1757-1827). Figura 4. U2 em pôster promocional de divulgação do álbum “Pop”, de 1997. Da esquerda para a direita, Larry Mullen Junior, The Edge, Bono e Adam Clayton.

Fonte: HOT PRESS (2017). Disponível em

2. O DELEITE E A INTERPRETAÇÃO DAS CANÇÕES DO U2 É surpreendente como uma banda tão talentosa e de tão significativo conteúdo artístico como o U2, traga sucesso ao mesmo tempo em que não apareça com frequência na grande mídia de muitos países, e que ao longo de mais de quatro décadas arraste multidões em seus shows por quaisquer lugares do mundo por onde se apresente. Mesmo cantando em inglês, o U2 consegue exibir para os fãs de outros idiomas uma linguagem musical e visual que se torna universal, transmitindo uma mensagem de empolgação, volúpia e – em menor medida para o grande público – de religiosidade, atraindo até mesmo aqueles que se declaram ateus. 10

Figura 5. U2 (da esquerda para a direita, Adam Clayton, Bono, The Edge e Larry Mullen Junior) em uma de suas exibições ao longo da segunda The Joshua Tree Tour (na canção Where the Streets Have no Name), que inclusive teve lugar no Estádio do Morumbi, em São Paulo, Brasil, no segundo semestre de 2017.

Fonte: CONCERTS IN BRAZIL (s. d.). Disponível em . Acesso 25 Dez. 2018. Para a maioria dos fãs, por exemplo, em canções como “Until the End of the World”, é perfeitamente possível crer no embate, no descontentamento e desilusão entre um casal de namorados. Contudo, sendo parte da trilha sonora do filme de 1991 de mesmo nome de Wim Wenders, leituras mais profundas como as de DIRANI (2005), STOCKMAN (2006) e CROPP (2013), nos indicam uma “veia religiosa” – perfeitamente apoiada pela performance da banda ao vivo – em que o U2 noticia o contato de Jesus Cristo e Judas Iscariotes a partir da Última Ceia, materializando a vitória do bem contra o mal. Dentre tantas outras canções, podemos encontrar essa veia religiosa do U2 em “Out of Control”, do álbum “Boy”; em todas as canções do álbum “October”; em “Sunday Bloody Sunday”, “Drowning Man”, e “40”, do álbum “War”; em “I Still Haven’t Found what I’m Looking For”, “” e “Where the Streets Have no Name”, do álbum “The Joshua Tree”; “Silver and Gold” e “”, do álbum “Rattle and Hum”; em “Ultraviolet (Light my Way)”, “One”, “Mysterious Ways” e a própria “Until the End of the World”, do álbum “Achtung Baby”; em “Stay (Faraway, So Close!)” (igualmente integrante de filme homônimo de Wim Wenders, de 1993), do álbum “Zooropa”; as faixas “Please”, “Wake up Dead Man”, e “If God will Send his Angels”, do álbum “Pop”; em “Walk on” e “Grace”, do álbum “All that You Can’t Leave Behind”; em “Vertigo”, “Love and Peace or Else” e “Yahweh”, do álbum “How to Dismantle an Atomic Bomb”; além de “Magnificent” e “Breathe”, do álbum “No Line on the Horizon”. 11

Mais recente expansão de espiritualidade do U2 pode ser constatada na faixa “Ahimsa” – a palavra em sânscrito para não violência –, lançada em 21 de Novembro de 2019 em parceria com o músico e produtor musical indiano A. R. Rahman e as cantoras Khatija Rahman e Raheema Rahman (U2.COM, 2019). Executada na primeira visita do grupo à Índia em 15 de Dezembro de 2019, exalta a meditação e a superação do sofrimento como “o ato de acordar para um sonho”, trazendo na letra trechos do hino do “Tirukkural”, um texto clássico do idioma tâmil que traz mil e trezentas e trinta estrofes de conteúdo ético e moral (JOE, 2019). Vale mencionar outras significativas experiências de sentimentalidade e vivência espiritual da banda – e, sobretudo, do vocalista Bono –, como nas letras do mais recente álbum “Songs of Experience”, lançado em 1º de Dezembro de 2017 – em particular nas faixas “Love is All we Have Left”, “Lights of Home” e “Love is Bigger than Anything in its Way” (PASSOS, 2017b) –, bem como em canções como “One Tree Hill”, do álbum “The Joshua Tree”, dedicada ao amigo e assistente pessoal do vocalista, o maori neozelandês Greg Carroll (1960-1986) – e com menção ao cantor chileno Victor Jara (1932-1973) –, novamente em “Out of Control” e “”, de “Boy”, “Tomorrow”, música do já citado repertório do disco “October”, “Lemon”, de “Zooropa”, “Mofo”, de “Pop”, e “Iris (Hold me Close)”, do trabalho “Songs of Innocence”, as nove últimas inspiradas em sua mãe, Iris Rankin Hewson – nascida em 1926 e que faleceu em 1974 quando o cantor do U2 contava com quatorze anos de idade – e “Kite”, do álbum “All that You Can’t Leave Behind”, e “Sometimes You Can’t Make It on your Own”, de “How to Dismantle an Atomic Bomb”, com versos compostos por Bono a partir da experiência de convívio com as filhas e dedicadas a seu pai, Bob Hewson, nascido em 1925 e falecido de câncer em 2001. Feitas essas considerações, nossa análise se concentrará em um dos versos da canção “Breathe”, no que acreditamos que esse exercício de interpretação, incorporação e apropriação do U2 em vários contextos – sobretudo, o religioso – são fundamentais para ultrapassar a dimensão do mero deleite e proporcionar um aprofundamento na compreensão da própria arte da banda irlandesa, portadora de grandeza estética e complexidade.

3. O VERSO EM ANÁLISE DA CANÇÃO “BREATHE” Com produção secundária da dupla Eno/ Lanois e primordial de Steve Lillywhite – o produtor principal dos álbuns “Boy”, “October” e “War” e a quem também coube a mixagem da canção – “Breathe” é construída em “riffs” de guitarra que mesclam acordes e notas intercaladas por “delays” e outros efeitos – característica marcante das contribuições de The 12

Edge no grupo –, expondo na letra, em princípio, reflexões oriundas de um contexto de inquietações amplas, que se deslocam desde a circunstância singular de viver angustiado e de necessitar atenção em New York – cidade muito apreciada por Bono e importante no histórico de turnês da banda –, até mesmo à instabilidade da vicissitude presente relacionada a distintas questões perpassadas no quotidiano de forma mais ou menos intensa, como as materiais, as de saúde, as espirituais e, mesmo, as econômicas de um mundo globalizado. Ademais, a canção “Breathe”, como nos indica CALHOUN (2009) e JOE (2010), no geral, é capaz de trazer vários indícios de interpretação, em que no início, mencionando o dia de 16 de Junho, pode estar ligada ao feriado “Bloomsday”, na Irlanda (relacionado à personagem Leopold Bloom, da obra “Ulysses”, do escritor dublinense James Joyce (1882- 1941) – cujo enredo acontece justamente nesta data –, ou ao Massacre de Soweto, na África do Sul (“Soweto uprising”), ocorrido em 16 de Junho de 1976, congruente à luta do grupo contra o “Apartheid”, o regime racista que vigorou oficialmente na África do Sul entre 1948 e 1994. No encarte da edição “deluxe” do álbum “No Line on the Horizon”, Bono dedica um “feliz aniversário” ao amigo, ativista e político Nelson Mandela (1918-2013) – personalidade notória na luta contra o citado regime segregacionista e vencedor do prêmio Nobel da Paz em 1993, e que em sua trajetória acabou por comandar a nação entre 1994 e 1999 –, modificando essa data para 18 de Junho, dia do nascimento do ex-presidente sul-africano, como que fazendo uma versão definitiva e final para a letra (CALHOUN, 2009; JOE, 2010). “Breathe” revela-se uma canção complexa em melodia e letra, na qual Bono parece agregar ingredientes do “rap” ao encaixar astutamente a voz ao longo dos compassos – controlando eficientemente a respiração para a audição das palavras –, e enunciando o viés humanístico tradicional do U2, conjuga elementos exteriores e interiores do eu lírico em argumentos que remontam, já no início da música, aos aspectos “grosseiros” da existência – como na citação das “ações chinesas” e do “novo vírus asiático” –, até a busca pelo alívio definitivo, o espiritual, por meio da fé – visto a referência simbólica do “benzedeiro”, o “Ju Ju man”, e que culmina na presença diante da Igreja de St. John Divine, em New York –, induzindo-nos conclusivamente à possibilidade de restauração obtida no espectro não vingativo ou comutável em penas cruéis ou perpétuas e, evidentemente, de amor justo e infinito de Deus, como não apenas se estuda no Espiritismo – como se verá a seguir –, mas, igualmente em outras religiões e vertentes cristãs. Aprofundando a perspectiva que desejamos nos concentrar – e alcançado o trecho que nos propusemos a analisar –, contido na “quinta estrofe” – assim considerada a partir da 13

respiração do vocalista do U2 na música (visto que o encarte do álbum não traz indicação específica de versos) –, a letra de Bono nos diz: Every day I die [Todos os dias morro], again [novamente], and again I’m reborn [e novamente renasço]; Every day I have to find the courage [Todos os dias tenho que encontrar a coragem]; To walk out into the street [Para caminhar pela rua]; With arms out [De braços abertos]; Got a love you can’t defeat [Pois possuo um amor que você não pode derrotar]; Neither down or out [Nem rebaixar ou desprezar]; There’s nothing you have that I need [Afinal não há nada em você que eu necessite]; I can breathe [Posso respirar]; Breathe now [Respirar agora]... [a tradução livre é nossa] Não se negue que Bono, o autor da letra, como publicamente se sabe, é um católico irlandês, trazendo essa circunstância em seu trabalho. Todavia, como já dito em outro escrito (PASSOS, 2016), mesmo com explicações reveladoras como as de STOCKMAN (2006), e, igualmente de DIRANI (2005) e CALHOUN (2009), não é raro encontrar admiradores do U2 que afirmam que nas canções a banda escreve as histórias de suas vidas pessoais. Dito isso, acreditamos que é possível fazer apropriações particulares do conteúdo do U2 – inclusive fora da perspectiva eurocêntrica, da língua inglesa e da vertente católica – no que inserimos a interpretação da Doutrina Espírita e um dos seus fundamentos basilares, justamente a reencarnação, que acrescente-se, não é criação ou revelação do Espiritismo, estando registrada e presente desde as escrituras mais antigas da humanidade.

4. “BREATHE” EM UMA LEITURA ESPÍRITA 4.1. Breves notas sobre o Espiritismo Codificada pelo pedagogo francês Hippolyte Léon Denizard Rivail, pseudônimo Allan Kardec (1804-1869) – que adotou para diferenciar seus trabalhos espirituais dos de natureza pedagógica –, inicialmente com o auxílio de diferentes médiuns, a Doutrina Espírita, enquanto sistematização vem à tona a partir de 1857 com suas obras básicas – “O Livro dos Espíritos”, de 1857, “O Livro dos Médiuns”, de 1861, “O Evangelho segundo o Espiritismo”, de 1864, “O Céu e o Inferno, ou A Justiça Divina Segundo o Espiritismo”, de 1865, e “Obras Póstumas”, lançado em 1890 – trazendo como fundamentos a existência de Deus – princípio e finalidade de tudo – e Jesus, nosso exemplo, modelo e guia para a humanidade; a comunicabilidade entre encarnados e desencarnados por meio da mediunidade, representando mundo corporal e mundo espiritual; a lei da causa e efeito (em que a nossa condição atual é decorrente de atos pretéritos, sobretudo, de vidas anteriores); a pluralidade de mundos habitados com vida inteligente; e, claro, a reencarnação, em que no livre arbítrio, o espírito 14

nasce e renasce para aprender, tendo no esteio da bondade divina, a possibilidade de se redimir e evoluir através de muitas existências (LAURENTI, s.d.). Assinale-se que, dessa forma, os espíritos reencarnam, e com a bênção do esquecimento na vida encarnada presente, justamente para não reviver rivalidades e sentimentos deletérios – concedida no desiderato de um Deus não vingativo, perfeito e infinitamente bom –, renascem quantas vezes forem necessárias para atingir a evolução, no que a Doutrina Espírita manifesta respeito a todas as religiões e a todos os povos, valorizando todos os esforços feitos em direção da caridade e do bem, inclusive, entendendo-os aptos a guindarem o indivíduo ao progresso e à felicidade. Como bem explicou o próprio Allan Kardec (1966, p. 7), as manifestações objeto de estudo da Doutrina Espírita são fonte de muitas ideias novas, sem representação na linguagem usual e que requerem em princípio o uso da analogia e a construção de um novo vocabulário, abordando a totalidade dos pontos da metafísica e da moral, e mesmo, a quase totalidade de conhecimentos humanos. Objetivando trazer respostas para a existência material presente, o Espiritismo – sem possuir sacerdotes, ritos ou símbolos – apresenta a vida metafisicamente, tendo obtido grande desenvolvimento no Brasil pelo trabalho de caridade, filantropia, assistência social e aprofundamento doutrinário de numerosos trabalhadores e médiuns. Entre estes últimos, destaca-se Francisco Cândido Xavier, o “Chico Xavier” (1910-2002), expoente da cultura brasileira que trouxe maior completude, engrandecimento e elevação ao legado codificado por Kardec, complementando, em essência – no que se adiciona o concurso do espírito Emmanuel, o seu mentor espiritual – que as provações do mundo não devem nos abater e que as dificuldades que nos surpreendem são testes os quais nos cabe buscar aproveitamento, de forma que vivenciamos a situação mais adequada em relação ao nosso próprio aspecto espiritual, onde possuímos o corpo físico que nos favorece aos avanços no âmbito íntimo (EMMANUEL; XAVIER, 1977, p. 25-27). Acresça-se que o clima social é o cenário das atividades à nossa disposição para o emprego dos recursos da experiência, na presença dos companheiros que nos auxiliarão no aperfeiçoamento desejado, de maneira que aqueles que nos deixam na jornada são afeições que se afastam provisoriamente para a aquisição de maior segurança (EMMANUEL; XAVIER, 1977, p. 27). Na percepção que o ser humano é um espírito ainda em evolução e na convicção que Deus é o mesmo para todos, a prática do bem, do bom senso, do livre arbítrio conjugado à responsabilidade, do autocontrole, do perdão, do desapego à matéria, do diálogo e tolerância, dos bons pensamentos, atos e boas palavras, e exercício da humildade e simplicidade, da 15

justiça, da oração, da resignação, da reparação, da não maledicência, da não violência, da fé no futuro, da reforma íntima e do estudo e trabalho orientado em favor de auxiliar sem julgamentos e não fazer ao outro aquilo que não se queira receber, somando-se a tarefa da caridade e da fé raciocinada – reitere-se, com Jesus Cristo na referência e modelo a ser seguido – são valores que se constituem também em alicerces do Espiritismo, consolidado por desenvolvimento histórico e pela experiência, reflexão e proposta de esforço rumo ao inadiável e incessante adiantamento. Ciência, religião, filosofia e proposta de vida, superadas estão as fases de demonstrações ou de fenômenos físicos afirmadores da Doutrina em “caráter permanente” ou “contínuo”, de sorte a termos a conclamação para o progresso e evolução em temas prementes da humanidade e à própria reforma íntima rumo a um planeta de regeneração. Ademais, em termos de Espiritismo – concretizando o Consolador prometido por Jesus –, como em meados de 1920 lecionou Fred Figner (1866-1947) (s.d., p 9-10, 20, 24-25, 33), objetiva-se seguir os ensinos do Cristo, que, por sua vez, os fez em nome d’Aquele – o maior de todos – sem atacar crenças ou pessoas, afinal, na convicção que fatos não são ficção e que o pensar é o que cada um pode e não o que quer, reafirma-se o dever de não fazer aos outros aquilo que não gostaria que fosse feito a si mesmo, de forma que a busca pela verdade não é destrutível via sofismas, visto ser ela de Deus. Como já afirmado anteriormente, sendo eixo axiológico de toda a Doutrina, Jesus Cristo é o Mestre, sendo portador de uma filosofia que ora parece muito simples, ora deveras complexa em seu significado e alcance como bússola orientadora do comportamento e destino humano. Sobre o tema, Terezinha Oliveira (1930-2013) (OLIVEIRA, 2017, p. 8) traz relevante contribuição, aduzindo que Era comum, em seus discursos, o Mestre recorrer às parábolas, histórias singelas e comparativas, que contém, sob a forma alegórica, verdades importantes e uma conclusão moralizante. Adequadas ao público heterogêneo, porque a narrativa prende a atenção e o simbolismo facilita a compreensão em assuntos transcendentes, as parábolas também auxiliam na guarda e reprodução do ensino e permitem se enunciem verdades que, de outro modo, dificilmente seriam aceitas ou sequer escutadas. Contando parábolas Jesus evitou, ainda, que, no futuro, preciosos ensinamentos seus chegassem a ser deturpados pela ignorância ou pela má fé. Assim, a autora assevera que algumas parábolas encantando gerações por meio da beleza e elevação dos ensinamentos, e outras apresentando complexidade no entendimento, nos desafiam à inteligência e sensibilidade na busca da interpretação que seja mais lógica e condizente com o pensamento do Cristo, no que podemos ter o auxílio do Espiritismo e a 16

inspiração de bons espíritos (OLIVEIRA, 2017, p. 9). A isso, acrescentamos que todos os esforços feitos dentro dos princípios da busca de transcendência e aperfeiçoamento para o alcance do bem – até mesmo por meio da arte concebida em favor do progresso moral – são aptos para a aproximação e melhor compreensão dos ensinamentos do Mestre, e mesmo, capazes de pugnar por uma existência em elevação, objeto do Espiritismo e de qualquer religião.

4.2. A leitura do U2 – e em especial de verso da canção “Breathe” – no contexto espírita Feita a breve digressão sobre a Doutrina, na interpretação das canções do U2, além do consumível e visível na cena pop (PASSOS, 2016), ela nos traz a possibilidade de uma experiência transcendental, metafísica, artística e religiosa, apta, inclusive, a nos guindar na reflexão espírita, inclusive com apoio no Evangelho, especialmente no fundamento da reencarnação. Sobre ela, no bojo de um excerto da canção “Breathe” e nesse sentido interpretativo, podemos mencionar a passagem das Escrituras contida em João 3:1-7, na qual Nicodemos vai se encontrar à noite com Jesus – provavelmente querendo se proteger das convenções sociais – interpelando o Mestre em exercício de humildade acerca dos ensinamentos que pregava, afinal, deveria ser um enviado de Deus; ele, inclusive, indaga, como sendo velho, poderia novamente estar no ventre materno e nascer, no que escuta que se não houver nascimento da água e do espírito, não se entra no Reino de Deus; o que é nascido da carne é carne, e do espírito é espírito; há de se renascer de novo. Assim, como dito, protegido das convenções sociais – afinal, era um doutor da Lei de Moisés, conhecedor da Torá –, Nicodemos busca sabedoria e completude junto a Jesus, em passagem apta a trazer sentido restituidor ao real conteúdo do Evangelho, que não olvida acerca do processo evolutivo do espírito através de várias vidas em direção ao bem e à felicidade. Novamente Therezinha Oliveira (OLIVEIRA, 2016, p. 108), bem nos elucida essa passagem no diálogo de Nicodemos com Jesus: Neste diálogo, Jesus ensina teoricamente a reencarnação. Nicodemos pensou no mesmo corpo nascendo de novo (o que não é possível). Jesus corrigiu esse erro: “o que é nascido da carne é carne”, o corpo segue a lei natural da decomposição da matéria; reafirmou que para “entrar no reino de Deus” (alcançar planos espirituais elevados) há necessidade de renascer tanto da água (símbolo da matéria) como do espírito; ou seja, reencarnar no mundo material, mas também renovar-se intimamente, progredir. Usou o ar (pneuma, símbolo do elemento espiritual) como comparação para explicar que sentimos a presença e manifestação do Espírito reencarnado, através do seu novo corpo, mas não podemos identificar de onde veio (o passado é 17

providencialmente esquecido) nem apontar-lhe um futuro (vai depender do seu livre arbítrio) [itálicos e negritos no original]. Já se mencionou acerca das várias possibilidades interpretativas de “Breathe”, no que uma das mais sólidas, como já mencionamos, está na homenagem a Nelson Mandela, cuja música, inclusive, consta da trilha sonora do documentário que o aborda intitulado “Miracle Rising: South Africa”, dirigido em 2013 por Yann Arthus-Bertrand – portanto, posterior ao lançamento do álbum “No Line on the Horizon”, de 2009 – no que é de se anotar também que ali há a inserção de uma letra diferente, mencionando a data de nascimento do líder sul- africano, em que Bono chegou a declarar à Michele Sparks, produtora da película, que a canção, de fato, tinha sido escrita para ele (McGEE, 2013). Por sinal, essa mesma versão alternativa de “Breathe”– quase só com voz, “backing vocals de The Edge”, efeitos e violão – foi incluída no “compact disk single” da música “Ordinary Love”, lançado em 29 de Novembro de 2013. Deixando de lado essa letra e tomando o texto daquela contida no álbum “No Line on the Horizon”, nesse exercício exegético, pode-se alcançar um enfoque multidisciplinar, trazendo outra abordagem cultural e religiosa, sobretudo, ligada ao Espiritismo, onde, até mesmo indo por um caminho distinto do Catolicismo de Bono, encontre-se na menção de morrer e renascer a assertiva da reencarnação – como dito, um dos fundamentos da Doutrina codificada por Kardec –, em que o ato de abrir os braços seja metaforicamente a misericórdia de Deus no perdão e na oportunidade do espírito de se redimir das faltas cometidas em uma de suas existências. Prosseguindo nessa estrofe, só o amor e a bondade levam à evolução, jamais configurando um desperdício, no que o mal nada pode contribuir ao progresso. Assim, esse mesmo perdão vindo da bondade infindável de Deus é justamente a possibilidade necessária e ofertada através da reencarnação, onde a esperança do espírito que busca se redimir, reparar o mal e progredir se faz representar no ato de respirar ao longo de uma existência infinita e imortal no plano imaterial. Bono pensou na reencarnação ou mesmo na Doutrina Espírita para escrever essa estrofe? Essa pergunta poderia ser feita diretamente a ele, no que a sua filiação católica não nos indica essas probabilidades. No entanto, não se pode subestimar Bono, um intérprete com capacidade de domar plateias, um intelectualizado letrista apto a alcançar percepções não triviais e transmitir mensagens que talvez até ele próprio desconheça, e que cujo talento encanta fãs por conseguir ilustrar a trajetória individual de cada um deles. E é justamente aí que reside a beleza da mensagem, em uma linguagem de alcance inestimável, vindo de encontro ao chamado do coração de cada ser humano. 18

Ademais, é certo que o vocalista do U2 não se deixa guiar pelo óbvio e a complexidade de suas letras nos conduz para muito além do vazio, da superfície e do tradicionalmente visível na cena consumista, instantânea, passageira e frágil do entretenimento pop, proporcionando uma experiência interior e metafísica. Bono vai além até mesmo das mensagens características de louvor do estilo gospel, uma vez que ele e o U2 despertam inquietações não raro pouco assimiladas por alguns críticos e pela mídia, que, no lançamento de um novo álbum, não raro tecem críticas desfavoráveis, mas anos mais tarde, o reverenciam na condição de clássico. Defensor dos direitos humanos e civis – assim como toda a banda – Bono nunca desprezou nenhuma religião – a ponto de ao longo de toda a turnê “Vertigo”, na performance de “Sunday Bloody Sunday”, introduzir a pequena canção (“snippet”) “Coexist”, que afirma “Jesus, Jew, Muhammad, it’s true, all sons of father Abraham” (Jesus, Judeu, Maomé, é verdade, todos filhos do pai Abraão) –, colocando-se verdadeiramente tolerante e cristão, e mesmo com os acertos e erros de todo o ser humano imperfeito, demonstra por meio de ações práticas ser um espírito que muito se esforçou para alcançar a evolução, como preconiza a Doutrina Espírita. Afinal, como da mesma forma se enuncia em Tiago 2:14-20, temos que a fé sem obras, torna-se morta. E Bono e o U2, na sua militância em favor de um mundo melhor, como são de conhecimento notório, têm obras de sobra, não se intimidando pela exposição da imagem e, paradoxalmente ao lado do carinho dos fãs, também por ameaças e pelo recebimento de maledicências severas. Não se negue a importância do guitarrista The Edge nessa missão. Soberano no instrumento, com os característicos arpejos e “delays” – onde combina diferentes afinações e recursos, possivelmente separando amplificadores para maior controle na mixagem das músicas (DARLING, 2006) –, ajuda a comunicar por meio de distintos modelos de guitarra com melodias impressionantes – inclusive com vocais e tocando teclado, piano e outros –, no que é seguido com competência na harmonia rítmica por Adam Clayton – autodidata no contrabaixo que formalmente somente viria a estudá-lo quando a banda já possuía renome mundial –, e Larry Mullen Junior (reconhecidamente com o status de fundador do grupo), na bateria, e posteriormente, percussão e também teclado. Aliás, todos os membros do U2 envolvem-se com ações de caridade, que numerosas, nem caberiam nesse texto. O espírito Emmanuel, de grande importância no Espiritismo, enuncia que “a maior caridade que podemos fazer pela Doutrina Espírita é a sua própria divulgação”. E é inclusive nesse sentido que temos o presente ensaio.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS O U2 fez de sua trajetória musical algo que foi muito além da música, embora ela tenha sido o vetor para a realização de seus sonhos e propostas de vida. A ponto de nesse sentido ouvirmos na parte final da letra da própria canção “Breathe” a crença de “alcançar-se a graça dentro do som”. Por sinal, a fé em um futuro melhor alicerçada nas boas ações do presente – fundamento do próprio Espiritismo e amplamente demonstrada em obras da codificação da Doutrina, em exemplo de “O Céu e o Inferno, ou A Justiça Divina Segundo o Espiritismo”, de Kardec (KARDEC, 2007) – é uma atitude constante da banda, mesmo quando os seus integrantes assumiram uma postura típica de estrelas de rock no ínterim e a partir do álbum “Achtung Baby”, período que inaugura Bono trazendo consecutivamente as figuras de “The Fly”, “The Mirrorball Man”, “Mr. McPhisto”, “Bonoman” e “Shadow Man” como variações de seu alter ego, desenvolvidas até mesmo para ironizar os críticos e os “haters”, que nunca lhe deram descanso, e o próprio “showbusiness” como um espaço que não deveria ser levado tão a sério. Figura 6. Bono no visual de seu alter ego “The Fly”, exibido na turnê “Zoo TV”, promocional do álbum “Achtung Baby”.

Fonte: TRIPOD (s. d.). Disponível em . Acesso 25 Dez. 2018. Dentre inúmeras outras ações, este é o U2, que corajosamente já chamou a atenção do mundo para o Cerco de Sarajevo – ao longo da Guerra da Bósnia-Herzegovina, entre 1992 e 1995 – trazendo talvez o primeiro grande show na capital bósnia após o conflito, ocorrido no Estádio Koševo em 23 de Setembro de 1997, com ingressos a preços reduzidos –, que clamou e contribuiu pela liberdade da líder oposicionista Aung San Suu Kyi, em Mianmar (antiga Birmânia) – ainda que no contexto da “realpolitik” estivesse ela posteriormente envolvida nas controvérsias acerca da repressão à minoria étnica muçulmana rohingya no próprio país –, que 20

pôs-se em turnê em favor da Anistia Internacional em 1986 (“ Tour”), que registra Bono ilustrando ao lado das filhas Jordan e Eve versão de “Pedro e o Lobo”, de Sergei Prokofiev (1891-1953), em benefício do tratamento especializado de pacientes terminais (PROKOFIEV, 2003), e que o tem caminhando na noite de Natal pela “Grafton Street”, em Dublin, cantando gratuita e entusiasticamente ao lado dos amigos ao mesmo tempo em que pede donativos para a caridade. Figura 7. Pôster de divulgação do show do U2 em Sarajevo, em 23 de Setembro de 1997. Da esquerda para a direita, Adam Clayton, Bono, Larry Mullen Junior e The Edge.

Fonte: PINTEREST (s. d.). Disponível em . Acesso 25 Dez. 2018. Se o objetivo da prece é elevar a alma a Deus, a distinção de fórmulas não deve trazer desigualdade entre crentes e descrentes de sua eficácia, menos ainda dentro do Espiritismo, no que deve acrescentar-se ao fato a assertiva que Deus aceita todas as orações, bastando que consigo tragam a sinceridade (KARDEC, 2014, p. 10). Independentemente da interpretação, pela obra e, especialmente, pela música, o U2 se converte em prece para os ouvintes. 21

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