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Ilustrações de Vera Tavares

Prefácio de José Nuno Martins

l i s b o a : tinta‑da‑china MMVI Índice

Prefácio 9

Nota do autor 13

Chico Buarque © 2006, Carlos Vaz Marques e Edições tinta‑da‑china, Lda. Rua João de Freitas Branco, 35A A unanimidade é o cemitério dos artistas 17 1500‑627 Lisboa Maria Bethânia Tels.: 21 726 90 28/9 | Fax: 21 726 90 30 E‑mail: [email protected] Eu não sou, o tempo todo, uma coisa só 39 Milton Nascimento

Título: MPB.pt Sofri o preconceito de negro contra negro 55 Autor: Carlos Vaz Marques Hermeto Pascoal Ilustrações: Vera Tavares Revisão: Tinta-da-china Não tem público mais inteligente do que os pássaros 73 Design e composição: Vera Tavares Ivan Lins

1.ª edição: Dezembro de 2006 Passei uns vinte anos não gostando da minha voz 95 isbn 972‑8955‑17-0 Maria Rita Depósito Legal n.º ???????/?? O meu trabalho é trilha sonora na vida de alguém 117 O primeiro homem era tambor 139 É só mistérios, não tem segredos 155 Tom Zé Estou condenado à originalidade 173 Lenine Precário, provisório, perecível 193 Chico César Prefácio O mundo está a empalidecer 215 Edu Lobo Foi o diplomata Vinicius que me afastou da carreira diplomática 235 Vanessa da Mata O talento sem muito trabalho não serve para nada 255 Egberto Gismonti Eu, aliás, não posso ouvir Carlos Vaz Marques todos os dias. A mata é muito mais importante do que música 275 Ouço‑o apenas como se ouve a rádio, no carro ou em casa, Ney Matogrosso sempre entre dois actos. Mas quando acontece, pára-se-me o As pessoas tímidas são muito perigosas 297 tempo. Fico ligado e preso à conversa de Pessoal e… Transmissível. Quantas e quantas vezes já me aconteceu ficar parado, den‑ Canso-me muitas vezes de ser eu 321 tro do carro estacionado à porta de casa, para acabar de ouvir o programa até ao fim… É que Carlos apurou uma técnica própria e exclusiva para as suas notáveis entrevistas radiofónicas, como se jogasse xadrez com cada um dos seus interlocutores. Para isso, procede ao estudo minucioso de todos os trajectos do entrevistado, o que, na prática, lhe permite antecipar toda a organização estrutural do encontro. E depois dispõe meticulosa‑ mente as pedras da sua imaginada construção. Mais do que saber o que pergunta, Carlos Vaz Marques conhe‑ ce, afinal, quase tudo o que vai obter como resposta, sem por isso deixar de se manter intelectualmente muito atento e disponível quanto às pequenas (e às grandes) surpresas que, de repente, tra‑ zem a flor do sal àquela simples conversa. Num saboroso registo em que a curiosidade do jornalista re‑ produz e acentua o hipnotizado interesse do ouvinte, em cada uma das diversas perguntas jogadas, Carlos arma já o desfecho próximo de cada tema.

[] Nota do autor

Há uns anos, da primeira vez que o entrevistei, Caetano Veloso ga‑ rantiu-me que «a música popular brasileira é o que melhor funcio‑ na no Brasil». A vitalidade dos consagrados e os novos talentos que continuam a surgir não desmentem as palavras de Caetano. Este li‑ vro é um tributo a essa vitalidade e a essa capacidade de renovação. Desde o nascimento, em 2001, do programa Pessoal e… Transmis- sível, na TSF, os músicos do Brasil têm tido lugar nele, sempre que passam por Portugal. A frequência com que as principais figuras da MPB continuam a atravessar o Atlântico é a prova do espaço que ocupam no imaginário musical e poético de muitos portugue‑ ses. É também a prova de que Portugal é hoje, naturalmente, mais brasileiro, com a presença de um grande número de imigrantes. As entrevistas aqui transcritas são apenas uma parte (pouco mais de metade) do número de programas que realizei com músi‑ cos do Brasil. Escolher estes dezasseis nomes não foi fácil. O peso dos consagrados foi, inevitavelmente, um critério. Independente‑ mente dos gostos de cada um, figuras como Chico Buarque, Cae‑ tano Veloso, Maria Bethânia e Milton Nascimento são já ícones vivos da MPB. Nomes obrigatórios, portanto. Outro critério foi o de escolher as entrevistas menos marcadas temporalmente pelo lançamento de um determinado disco ou pelo pretexto de um determinado concerto, de modo a poderem continuar a ser tão actuais hoje como no momento em que foram gravadas.

[13] m p b . p t

Dado que uma parte essencial da expressividade destes artistas é a sua própria voz, este livro foi pensado desde o primeiro mo‑ mento, parcialmente, como um áudio-livro. O disco que o acom‑ panha reproduz o índice e a ordem de entrada em cena dos diver‑ sos entrevistados na versão escrita. Os excertos escolhidos não se limitam, no entanto, a ser uma ilustração sonora do que está no papel. A maior parte desses fragmentos (quando o entrevistado canta ou ri ou dá a uma frase a sua inflexão pessoal) não se deixam captar pela transcrição. É por alguns desses instantes que estes Entrevistas encontros, todos eles, de uma forma ou de outra, são tão especiais para mim. O que desejo é que possam vir a sê-lo, também, para o leitor/ouvinte. Falta referir que este livro não teria existido sem o contributo de muita gente. Poupo, aos leitores, a lista (pessoal e… intrans‑ missível) dos meus sentimentos de dívida e de gratidão, mas faço questão de que a última palavra seja para todos os que me têm ajudado tanto das mais diversas formas: obrigado.

Carlos Vaz Marques [email protected]

[14] Chico Buarque

Não acho que a literatura seja a coisa mais importante na minha vida nem na vida de ninguém. A unanimidade é o cemitério dos artistas Por fidelidade às origens? Não, porque eu sinto‑me músico. Mesmo durante a escrita de um livro, tenho a impressão de ser um músico que está a escrever um romance.

Um músico que tirou umas férias? Não, que se dedica à literatura mas com cabeça de músico. Sinto­ Na agitação de fim de tarde no Leblon, há um pequeno laboratório ‑me músico mesmo quando escrevo. Ao escrever um livro, quan‑ de momentos de beleza em plena actividade no último andar de um do me dedico à literatura, não mexo absolutamente com música. prédio de apartamentos. É um espaço residencial adaptado a estúdio Não escuto música, não ligo o rádio, não toco violão. Ainda assim, de gravação onde, desta vez, nada se grava. Uma figura magra, ligei‑ eu escrevo como um músico. A minha literatura é uma literatura ramente encurvada, de guitarra em punho, enfrenta oito músicos com musical. a tranquilidade de quem anda nesta vida há quatro décadas. Chico Buarque e a banda que o acompanha fazem os últimos ensaios antes Se, por absurdo, tivesse de escolher — para mandar para o espaço — do regresso ao palco de um músico afastado da música durante oito uma única das suas obras, escolhia um disco ou um livro? anos. O violão esteve posto de parte para que Chico pudesse escrever o Eu tenho a impressão de que os livros são mais bem acabados, romance Budapeste, a que não faltaram elogios e prémios. Apesar da são mais bem resolvidos do que as canções. Mas eu não mandaria fama e do reconhecimento, no Brasil e pelo mundo fora, afirma que não para o espaço, não. se leva especialmente a sério. Nem na música nem na literatura.

Para dar notícia de si a uma eventual civilização distante. Quando preenche a ficha num hotel já escreve escritor ou ainda escreve Acho que ninguém ia compreender o livro. A música viaja músico? melhor. Músico.

Apesar dos três romances que já publicou. Isto, no fundo, era para tentar perceber se se leva mais a sério como Sempre. Músico. músico ou como escritor. É, mas eu não me levo especialmente a sério. Mesmo naqueles períodos em que está a dedicar‑se exclusivamente à literatura? Nem numa coisa nem na outra? Músico. De forma nenhuma.

[18] [19] Maria Bethânia

A música é que rege o mundo. Eu não sou, o tempo todo, uma coisa só não sou dona dessa voz. Ela mora em mim. Foi Deus que botou ela aqui e ela mora em mim. Obviamente que, fora de todo o pra‑ zer, de todo o delírio, tem também o compromisso, a seriedade de cuidar. Aprender a respirar, a não magoá‑la. Cuidar dela como se cuida de um bebé.

A voz é frágil? Ela é múltipla e única. Não há outra voz assim. Os anos e a idade A voz humana é de uma fragilidade absurda. Uma corda vocal é foram‑lhe limando todas as pequenas arestas na utilização de um ins‑ mais fina do que um fio de cabelo. trumento límpido como a água. Única na voz, múltipla no repertório. Maria Bethânia divide‑se entre os grandes textos de poetas que em‑ Tem truques, mezinhas para a voz? prestaram talentos ímpares à música popular e histórias de amores e Sempre, tem que ter. Primeiro que tudo ter juízo, cuidado. Aque‑ desamores em canções açucaradas de que não esconde a predilecção. Diz cer muito a voz antes de cantar. Tenho que escolher a tonalidade que é uma pessoa simples e com isso faz questão de arrumar o assunto. que me favoreça, não a que esperam que se alcance. Respeitar o Do que ela gosta mesmo de falar é das divindades com quem tem um que você tem. trato familiar. Se há um rosto para a devoção, pode ser o desta mulher. Por detrás da lenda sobre os caprichos da diva e os humores daquela a Falou de Deus, Nossa Senhora, qual é o lugar da religião na sua que chamam a rainha da MPB, revelou‑se‑me neste fim de tarde uma vida? mulher serena e generosa. Salve, Rainha. Eu tenho um espírito muito livre. Preciso de coisas que me limi‑ tem um pouco. Religião é uma dessas coisas. Para mim, é impor‑ De onde é que lhe vem essa voz? tante e prazeiroso. Meu Deus. De onde vem minha voz? Eu não sei [risos]. Vem de Deus. Um dos seus discos é até um disco de orações. É uma oferta que lhe foi feita ou uma conquista? É um disco que eu fiz especialmente em homenagem a Nossa Se‑ Deus dá. Nossa Senhora. Tudo o que é sagrado dá. O que você nhora. Porque eu tenho com ela uma adoração. É talvez — dos tem que fazer é aproveitar e utilizar para o que você acha que é elevados, dos encantados, celestiais — a mais próxima de nós. importante. No meu caso, humildemente, utilizo a minha voz A mais terrena. Ela viveu em Belém, casou com São José, teve fi‑ para cantar para o meu povo. Para viajar com a história do meu lhos, engravidou, ela teve barriga, ela pariu. Isso é lindo. Eu me povo, da minha região, fora da minha região. Do meu Brasil. Sou sinto com uma intimidade muito grande com ela, que eu não te‑ uma cantora popular, esse é o grande orgulho que eu tenho. Mas nho verdadeiramente com Deus, por exemplo.

[40] [41] Carlinhos Brown

A alegria torna os homens iguais. O primeiro homem era tambor disse: brown? Mas eu não sou brown. Aí, os meus amigos come‑ çaram a rir. Viram que eu não gostei da brincadeira… Disse: vou me embora, realmente; eu já não fui um convidado da festa, fui levado pelos meus amigos. E fiz até um samba: «não seja um cara orgulhoso / tenha um pouco de compreensão / nunca vá numa festa sem ser convidado / pois vai dar muita confusão». Eu nunca cantei essa música. Não sei como você foi buscar isso na minha Energia é a palavra que melhor define Carlinhos Brown. Ele é im‑ memória. Realmente, eu fiz esse samba. proviso permanente, invenção, intuição. Apesar do reconhecimento e do imenso sucesso, com os , ao lado de Marisa Monte e Ficou zangado, mas depois integrou isso. , há momentos em que não esconde um resto de rai‑ Porque os amigos perceberam a gozação e começaram a dizer: va pela infância desfavorecida, pela discriminação que ainda sente, brown, brown. E como tinha muitos Carlinhos no grupo — ti‑ pela miséria dos bairros pobres, como aquele em que ainda hoje vive, nha o Carlinhos da Caloi 10, a marca da bicicleta o identificava, a que não gosta que chamem favelas. Prefere falar de comunidades. tinha o Carlinhos de seu António, Carlinhos de Alaíde, eu era Na sua, a do Candeal Pequeno, em Salvador, aprendeu a canalizar Carlinhos de Madalena, antes de ser Carlinhos Brown, porque a raiva para a música. É também isso que tenta ensinar hoje aos mais minha mãe se chama Madalena — era uma turma de Carlos. E o novos nos projectos e Lactomia, duas bandas de percussão Brown é que me distinguia. que já ultrapassaram as fronteiras da e até do Brasil. Mais do que apenas músico, Carlinhos Brown é um agitador cultural. É verdade que antes de ser Brown era menino de rua? Na verdade, desse conceito de menino de rua, eu até tomo cui‑ António Carlos Santos de Freitas é Carlinhos Brown desde quando? dado para falar. O que é viver nas ruas senão viver em busca da Carlinhos Brown acho que desde os doze anos. novidade?

Quem é que lhe deu esse nome que ainda usa? Mas era aquilo a que se chamava um pixote? Foi numa festa. Eu, de repente, fui levado por uns amigos. Aquilo Sim, na época. Na verdade, um pivete. Antes de se chamar pivete era na parte mais alta do meu bairro, uma parte de melhor po‑ se chamava capitães da areia. der aquisitivo. Eu tinha comprado uma roupa nova, que inclu‑ sive nem dava direito em mim. Comprei errado. Aí, eu entro no Como no romance de Jorge Amado. salão e começo a dançar com os amigos. O dono da festa é que É. Veio o pivete, veio o pixote e veio o menino de rua. Aí, sim, não gostou. E disse: o que é que esses browns querem daqui? E eu vem toda a destruição. Porque capitães de areia eram os pobres

[140] [141] Caetano Veloso

Fazer canções não dá muito trabalho. Canso‑me muitas vezes de ser eu Na Suécia?! Eu nunca fui à Suécia.

Mas, se calhar, podia ter descoberto a sua baianidade na Suécia. É. Mas não foi. Não fui à Suécia. Foi no Rio, mesmo. Eu dizia isso não era para chocar. Dizia porque achava mesmo. Eu pensava. Eu gostava das notícias que chegavam da Suécia por causa da liber‑ Já houve quem lhe chamasse o profeta da utopia brasileira e ele gosta. dade sexual e da experiência da social‑democracia, que eu achava Como gosta de cinema, de frases provocatórias, de se ver em fotogra‑ superior àquele negócio do comunismo da União Soviética. Meus fias antigas. Cinema, já experimentou, mas diz que dá muito trabalho. amigos comunistas ficavam contra, porque diziam que aquilo era Nas fotografias já não gosta de se ver como é hoje porque acha que uma contrafacção burguesa para impedir o avanço da revolução. já foi mais bonito. Por pura provocação, diz que ainda se sente sueco Eu sempre fui desconfiado desse pessoal. (nunca foi à Suécia), que se acha muito melhor do que Chico, Milton e todos juntos (embora os considere a todos muito melhores Mesmo nos momentos mais radicais da sua actividade e da sua expo‑ do que ele) e garante que só faz canções por ser preguiçoso e porque as sição pública? canções não lhe dão trabalho a fazer. Apesar de sentir que a lusofonia Aí, eu ficava cada vez mais sueco. Eu fui ficando cada vez mais é um gueto, Caetano Veloso continua a «gostar de roçar sua língua sueco. pela língua de Luís de Camões». Ainda é sueco, hoje? Sente‑se, em primeiro lugar, baiano, brasileiro ou cosmopolita? Sou. Rapaz, quando eu morava em Santo Amaro, no interior da Bahia, no coração do Recôncavo da Bahia… Em que sentido? No mesmo sentido.

A cidade onde nasceu. Não é loiro, alto e espadaúdo. A cidade onde nasci. Eu dizia: sinto‑me um sueco. Ah, não. Loiro, alto e espadaúdo não. Eu sou sueco, é outra coisa. O que acontece é o seguinte: eu estive, faz poucas semanas, na Aí, era cosmopolita. Espanha e cantei no País Basco e depois na Catalunha. E na Ca‑ É para você ver. Eu acho que, primeiro, eu sou cosmopolita. A ver‑ talunha eu falei: sempre disse, sou catalão. Quando estava exilado dade é essa. Esse negócio de baiano veio depois. em Londres, eu fui a Espanha pela primeira vez — a convite do

[322] [323] 1. Chico Buarque: não sei 27. Lenine: conversa com o divino 2. Indicativo P&T 28. Chico César: ritmos do nordeste (Pat Metheny) 29. Edu Lobo: 3. Maria Bethânia: BI musical descoberta da bossa nova 4. Milton Nascimento: 30. Vanessa da Mata: o sério e o safadinho o primeiro palco 5. Hermeto Pascoal: eu e eu 31. Egberto Gismonti: 6. Ivan Lins: cantado por Ella o país do acaso 7. Maria Rita: filha de Elis 32. Ney Matogrosso: 8. Carlinhos Brown: observar e ser observado festa de baptismo 33. Caetano Veloso: sou sueco 9. Marisa Monte: 34. Chico Buarque: sentimentos comuns sucesso escandaloso 10. Tom Zé: descoberta do violão 35. Maria Bethânia: duas faces 11. Lenine: revoluvisionário 36. Milton Nascimento: 12. Chico César: Eva era negra preconceito de negro 13. Edu Lobo: 37. Hermeto Pascoal: o empurrão de Vinicius encontro com Miles Davis 14. Vanessa da Mata: 38. Ivan Lins: copos de coragem padrinho e madrinha 39. Maria Rita: 15. Egberto Gismonti: esperava apanhar pancada o nome da música 40. Carlinhos Brown: 16. Ney Matogrosso: BI artístico sou filho do Carnaval 17. Caetano Veloso: 41. Marisa Monte: relação informal canso-me de mim 42. Lenine: ao sabor do ocaso 18. Chico Buarque: 43. Tom Zé: a escala do nordeste não sou unanimidade 44. Chico César: 19. Maria Bethânia: confissões ao violão mudo as letras 45. Edu Lobo: na toca 20. Milton Nascimento: 46. Vanessa da Mata: vozes masculinas canção da vizinha 21. Hermeto Pascoal: os pássaros 47. Egberto Gismonti: 22. Ivan Lins: voz aguda música dá para tocar 23. Maria Rita: fama e trabalho 48. Ney Matogrosso: 24. Carlinhos Brown: primeiro hit eu não sou velho 25. Marisa Monte: deusa música 49. Caetano Veloso: dar certo 26. Tom Zé: música maluca 50. Tom Zé: made in Brasil