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Dossier mÁrIo soAres Pai fundador e enfant terrible: Mário Soares e a democracia em

Com a morte de mário soares, acaba o século XX em Portugal. A sua vida resumia quase todo o século. soares ainda tinha conhecido as grandes iguras da I república, políticos como António maria da silva (que não admirava), ou intelectuais como Jaime Cortesão (de quem se considerava discípulo).

Texto originalmente publicado no jornal Observador, 8 de Janeiro de 2017

stava em fotografias com Não houve ninguém em Portugal, da di- Norton de Matos (em reita à esquerda, que não tivesse tido Soares 1949) ou com Humber- Por como adversário num momento ou noutro. to Delgado (em 1958). Rui Ramos Todas as correntes de opinião o acusaram, A ditadura salazarista Conselho editorial, incluindo o partido que fundou. Para a di- Nova Cidadania prendeu-o, deportou-o reita nacionalista, Soares era o principal e exilou-o. Depois de responsável civil da descolonização de 1974. E1974, venceu e perdeu eleições, foi primeiro- Para o PCP, era o culpado do fracasso do -ministro, foi Presidente da República. Por PREC em 1975 (Álvaro Cunhal jamais lhe isso, desde pelo menos 1996, quando acabou perdoou). Muitos dos seus correligionários o seu mandato presidencial, que quase todos vida, uma coerência que convém reconhe- socialistas lamentaram a sua negligência desejaram tratá-lo como uma personagem cer. Não era uma coerência doutrinária, ideológica e o seu favorecimento da direi- histórica. Mas Soares, por mais avançado como a que tornou Álvaro Cunhal célebre ta em 1978 (governo com o CDS), em 1983 nos anos, nunca se dispôs a cumprir o papel entre a burguesia portuguesa, mas um ou- (governo com o PSD) ou em 1987 (quando de pai fundador do regime, a pairar sobre tro tipo de coerência, que explica, entre ou- proporcionou a primeira maioria absoluta querelas e confrontos. Enquanto esteve tras coisas, porque é que, tendo submetido de Cavaco Silva). E a direita passou a enca- activo, e esteve-o quase até ao fim da vida, o país à austeridade em 1983, ao lado do rá-lo como um dos seus adversários mais fez questão de tomar partido e de dividir as PSD, a contestou em 2013, ao lado do PCP. radicais na fase final do governo de Cavaco opiniões. Ainda foi candidato presidencial, Silva (1994-1995) e, mais tarde, durante o contra tudo e contra todos, em 2006, aos o “enfant terrible” Da Democracia governo de Passos Coelho (2011-2015). Es- 82 anos. Ainda protagonizava polémicas Tanto como o clássico “pai fundador” do tes rancores têm uma razão: toda a gente, em 2014, aos 90 anos. actual regime, Mário Soares foi também o em certo momento, pensou que podia con- No fim, todos tinham razões para o ad- seu “enfant terrible”: o “sapo” que muitos tar com Mário Soares, apenas para ficar mirar, e todos tinham razões para o criticar. tiveram de engolir, a pedra no caminho desiludida com ele. Porque Soares nunca O político que confrontara Vasco Gonçal- de quase todos. No presente regime de- quis representar o papel que os outros lhe ves na Fonte Luminosa, em Julho de 1975, mocrático, Soares enfrentou e contestou destinaram na história. foi o mesmo que, em Novembro de 2014, toda a gente: em 1975, Álvaro Cunhal; quase quarenta anos depois, defendeu José em 1980, o general Eanes, mas também oposicionista sem quixotismo Sócrates diante da prisão de Évora. Houve Francisco Sá Carneiro; em 1994, Cavaco Se quiséssemos resumir a vida política de quem, nos últimos tempos, referisse a sua Silva, mas também António Guterres; em Mário Soares, poderíamos dizer que ele idade como atenuante. Sim, Soares enve- 2014, , mas também contestou todas as grandes propostas e si- lhecera. Mas não mudara. Houve, na sua António José Seguro. tuações de poder do seu tempo. Foi esse o

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papel histórico deste filho-família, literato década de 90, identificou-se com todos os com o Presidente da República, o general e advogado da Baixa de Lisboa. Antes de que contestavam a adaptação do Estado e Eanes; na Presidência da República, entre 1974, combateu a ditadura salazarista, mas da sociedade portuguesa à globalização e 1986 e 1996, acabou por chocar com o go- também a hegemonia que o PCP procurou à integração monetária europeia. Ajudou verno chefiado por Cavaco Silva. Foi como exercer sobre a oposição. Depois de 1974, a fazer assim a democracia no que o regi- “opositor” que Soares exerceu o poder. resistiu ao domínio do PCP aliado ao mili- me teve de melhor, mas também de pior. Soares tem assim pouco a ver com as tarismo progressista, mas contrariou tam- Inicialmente, Soares acreditou que o figuras tutelares de outros regimes por- bém, quanto pôde, o reformismo liberal seu Partido Socialista, fundado em 1973, tugueses, como Fontes Pereira de Melo, que a direita tentou protagonizar. Em geral, seria um pequeno partido, fiel da balança durante a Monarquia Constitucional, ou embora nem sempre, conseguiu ser o polo entre uma grande democracia-cristã e um Salazar, sob o . Fontes, em à volta do qual se conjugaram forças varia- grande Partido Comunista, como na Itá- liberdade, e Salazar, em ditadura, foram das para resistir ao que pareciam ser mo- lia. Era talvez a posição que mais lhe teria políticos de governo. Soares foi acima de vimentos irresistíveis: primeiro, o terceiro- agradado, em que a influência seria maior tudo um político de oposição, mesmo -mundismo do socialismo militar; a seguir, do que a responsabilidade. Mas nada se quando estava no governo. Por isso, para a europeização do liberalismo económico. passou assim. Em vez disso, o PS tornou- além dos filiados no seu partido, Soares Para Mário Soares, a oposição parece -se em 1975, não só o partido mais vota- reuniu à sua volta personalidades em tran- ter sido, não só uma atitude natural, mas do, mas o único partido verdadeiramente sição, desgarrados das suas famílias parti- um vantajoso ponto de partida em políti- nacional, com votos no sul e no norte do dárias de origem: ex-marcelistas, ex-CDS, ca. Em 1969, foi sondado por marcelistas país (por contraste, o PPD, o CDS e o PCP ex-comunistas, ex-esquerdistas, ex-PSD. liberais para se aproximar da ditadura, eram sobretudo partidos regionais). Em Todos procuraram nele o político sempre provavelmente em troca de um tratamen- 1976, quando formou governo, discutiu-se disponível para fazer aliados em todos os to privilegiado num hipotético processo de a sua vocação “mexicana”, isto é, o seu su- campos no combate contra alguém. liberalização conduzido por Marcello Cae- posto projecto de fazer do PS um partido A tendência de Soares não foi tanto a de tano. Recusou, talvez porque não confiasse como o Partido Revolucionário Institucio- constituir um poder dominante, mas a de em Caetano, mas também porque não quis nal, durante décadas no poder no México. reagir aos poderes tendencialmente domi- deixar ao PCP o monopólio da resistência De facto, Soares acabou por passar os pri- nantes em cada momento. Foi assim que à ditadura. Em 1974, aconselhou o general meiros vinte anos do regime sobretudo em se afirmou e adquiriu poder e influência. Spínola a que chamasse o PCP para o I Go- oposição — mesmo quando foi primeiro- Porque nunca o fez quixotescamente, para verno Provisório, mais uma vez para não -ministro ou Presidente da República: no perder. No Verão de 1975, teve uma epifa- deixar os comunistas aproveitar a oposição governo, entre 1976 e 1978 e entre 1983 e nia numa praia do Oeste, cheia de famílias numa época que se previa agitada, com a 1985, esteve quase sempre em confronto e de automóveis: num país com uma classe descolonização e a crise económica. Em média veraneante, o comunismo não era 1978, quando o general Eanes forçou a sua possível. Kissinger julgou-o destinado a ser demissão de primeiro-ministro, no meio um Kerensky. Ele sempre soube que era de um ajustamento negociado com o FMI, possível ganhar. Mais de trinta anos depois, declarou que se sentia “livre como um pás- em 2011, terá tido outra intuição. Perante saro”. Todos julgaram que ironizava. Era uma população envelhecida e uma Euro- provavelmente mesmo assim. pa dividida, ter-se-á convencido de que a Donde é que vinha este culto da opo- rejeição do ajustamento negociado com a sição? Soares percebeu que, numa so- A tendência de troika seria outra causa auspiciosa. E não ciedade plural e complexa, todo o poder hesitou em misturar-se com os seus antigos suscita dúvidas e resistências, criando Soares não foi tanto inimigos comunistas na Aula Magna, nem oportunidades de acção política. Por ou- a de constituir um em permitir-se os maiores excessos verbais. tro lado, as suas ideias de liberdade e de poder dominante, Era um homem de oposição, mas sempre anti-capitalismo, derivadas da síntese do de uma oposição concebida para ganhar. radicalismo republicano de 1910 com o mas a de reagir Nunca foi um homem de causas perdidas. progressismo marxista de 1945, faziam de aos poderes Se nunca foi um Dom Quixote, tam- facto muito mais sentido como ideias de tendencialmente bém nunca foi simplesmente um irascí- oposição, do que como ideias de governo. vel, dominado pelo simples gosto de con- Através dos seus protestos e impugna- dominantes em trariar. Em 1970, no exílio a que o con- ções, Soares marcou o desenvolvimento cada momento. denou o governo de , do actual regime democrático em Portu- Foi assim que se evitou isolar-se e estendeu a mão a toda gal: num primeiro momento, nos anos a gente, incluindo o PCP, que o atacara 70 e 80, impediu o estabelecimento de afirmou e adquiriu ferozmente no ano anterior, durante a uma ditadura militar influenciada pelos poder e influência. guerra entre a CDE e a CEUD em Lisboa. comunistas, e ajudou à fundação de uma Porque nunca o fez Nunca perdeu o instinto de sobrevivên- democracia pluralista, com uma econo- cia política. Viu-se isso em 1974, quando mia de mercado, enquadrada pela NATO quixotescamente, conseguiu definir uma plataforma políti- e pela União Europeia; depois, a partir da para perder ca abrangente: fim da guerra em África,

Ano XIX • número 61 • PrImAVerA 2017 Nova cidadaNia 21 Dossier mÁrIo soAres através da negociação com as guerrilhas, de se definir: “homem de esquerda”, ou, É fácil imaginar Mário Soares no fim pluralismo partidário (“valor essencial”), mais detalhadamente, “republicano, laico do século XIX ou no princípio do sécu- e “abertura à Europa”. Percebeu, antes da e socialista”. Era, com efeito, de esquerda, lo XX, ao lado de José Maria de Alpoim direita democrática, que não valia a pena sem os alçapões biográficos de François ou de Cunha Leal. Foi político como o resistir à retirada militar de África, apesar Mitterrand, que no fim da vida revelou seu amigo Júlio Pomar foi pintor. Ini- do custo para as populações europeias e as suas raízes fascistas. Soares vinha de cialmente, como muitos dos jovens da africanas. Mas percebeu também, antes uma família republicana, com um pai que sua geração e meio social, Mário Soares da maior parte da esquerda, que não se- foi governador civil do partido de Afon- imaginou que podia ser escritor. Cultivou, ria viável nem desejável um regime que so Costa. No imediato pós-guerra, como aliás, as referências literárias e os gostos se afastasse demasiado dos padrões da muitos filhos de famílias oposicionistas, artísticos típicos dos profissionais liberais Europa ocidental. Por isso, tendo-se dis- teve uma passagem pelo Partido Comu- do princípio do século XX. Mas a política posto a ser um “socialista” avançado, pre- nista. Mas quando o partido o procurou constituiu, de facto, a razão da sua vida. feriu o socialismo com “rosto humano” e empurrar para a clandestinidade, recu- “Desde criança que fui atingido pela polí- “realista”. Foi-lhe assim possível, em 1975, sou: percebeu que seria reduzido a uma tica”, escreveu em 2014 no prefácio ao seu conspirar ao mesmo tempo com a Igre- simples condição de funcionário obedien- livro Cartas e Intervenções Políticas no ja Católica, a diplomacia americana e os te. Não era essa a sua ideia da política. Exílio. Em 1950, no seu primeiro livro, As moderados do MFA. Com isto, ajudou a O primeiro termo da sua definição é “re- Ideias Políticas e Sociais de Teófilo Braga, evitar que a campanha de 1975 contra o publicano”. O republicanismo de Mário So- examinou a questão do “primado da luta domínio comunista tivesse o contorno de ares referia-se, naturalmente, à herança da política sobre todas as outras actividades”. um choque entre a esquerda e a direita, República de 1910-1926. Mas Soares decla- Mas a política que, para usar a sua como a guerra civil de Espanha em 1936. rou-se “republicano”, nesse sentido, quando expressão, “atingiu” Mário Soares, não Foi, sem dúvida, o seu maior contributo deixou o PCP, a partir da década de 1950, foi uma política qualquer. Ainda sob o para o desenvolvimento em Portugal de numa época em que a forma republicana já Estado Novo, mesmo quando fazer polí- uma democracia europeia. não dividia. O seu laicismo também esteve tica não podia ser, para ele, mais do que No célebre debate da RTP com Álva- sempre limpo dos rigores anti-clericais de conspirar, a sua ideia de política corres- ro Cunhal, em Novembro de 1975, Soa- 1910. Por isso, republicanismo e laicismo pondia já à de uma sociedade democrá- res aludiu ao que poderia ter sido o seu nunca o limitaram nos seus contactos po- tica e aberta: foi a esse tipo de política futuro caso se tivesse disponibilizado líticos, como haviam limitado os velhos re- que sempre aspirou. para dar cobertura à conquista do poder publicanos de 1910. Antes e depois de 1974, Queria predominar e mandar – re- pelo PCP: talvez um dos “Prémios Le- Mário Soares tratou com católicos e monár- servar o governo para os seus amigos, nine” com que a União Soviética costu- quicos sem problemas. preencher o Estado com os seus apoian- mava distinguir os “idiotas úteis”. Soares Soares dizia-se ainda “socialista”. tes? Sem dúvida, como qualquer polí- não era idiota, nem tencionava ser útil. Mas nunca esteve condicionado, como tico. Mas, ao contrário de outros, quis Os comunistas nunca lhe perdoaram, os sociais-democratas do norte da Eu- predominar e mandar sempre num re- alguns socialistas nunca o perceberam, ropa, por uma máquina sindical pesada gime pluralista, com eleições livres e e muita direita não soube agradecer-lhe. (em 1974, aliás, o PS quase não existia debates abertos. para além de um grupo de amigos). Re- Na primeira “Carta de Paris” publi- republicano, laico, socialista publicano, laico e socialista, Soares pôde cada no jornal “República” em 1971, ex- e … político assim fazer política com todo o virtu- plicou aos seus leitores portugueses que Perguntar-me-ão: muito bem, Soares osismo e desassombro, sem constran- os debates, conflitos, antagonismos e teve sempre uma atitude de oposição, e gimentos de doutrina ou organização. “complicadas coligações dos partidos” da contribuiu assim para construir em Por- Como político, era capaz de charme mas França eram uma fonte de dinamismo e tugal a actual democracia; mas o que era também de brutalidade. Implacável num até de força. Em Portugal, predominava ele, de facto? Soares fez muita questão momento, era magnânimo no outro. então uma cultura anti-política, partilha- da igualmente pelos tecnocratas da dita- dura e pelos revolucionários da oposição: a maior parte das figuras da vida pública Queria predominar e mandar – considerava a pluralidade e o debate como perniciosos aos seus grandes objectivos: reservar o governo para os seus no governo, a defesa da nação do Minho a amigos, preencher o Estado com Timor; na oposição, a construção de uma os seus apoiantes? Sem dúvida, sociedade socialista de tipo soviético ou chinês. Pouca gente, como Soares, foi ca- como qualquer político. Mas, paz de conceber a divisão e a luta políticas ao contrário de outros, quis como algo que não era necessariamente predominar e mandar sempre um mal. De Mário Soares, pode dizer-se que foi o maior político do seu tempo, num regime pluralista, com como de outros se pode dizer que foram o eleições livres e debates abertos maior escritor ou o maior pintor.

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