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RECENSÃO

Marcello Caetano. Uma Biografia (1906-1980), de Francisco C. Palomanes Martinho, por Josep Sánchez Cervelló

Análise Social, liii (1.º), 2018 (n.º 226), pp. 217-224 https://doi.org/10.31447/as00032573.2018226.11 issn online 2182-2999

edição e propriedade Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Av. Professor Aníbal de Bettencourt, 9 1600-189 Lisboa [email protected] RECENSÕES 217

https://doi.org/10.31447/as00032573.2018226.11

martinho, Francisco C. Palomanes . Uma Biografia (1906-1980), Lisboa, Objectiva, 2016, 589 pp. isbn 9789896651367

Josep Sánchez Cervelló

O autor quer deixar claro, desde o prin- Não que estas questões não surjam na cípio, que a sua biografia procura, essen- obra. Elas aparecem, mas de forma mais cialmente, aprofundar questões de ordem tangencial. Tal facto, evidentemente, não política e intelectual. No entanto, a obra mancha o detalhado estudo que faz da não se cinge exclusivamente ao perso- personagem biografada, uma vez que o nagem, abarcando também o seu con- autor trabalhou uma enorme quantidade texto histórico. Como tal, não se centra de fontes documentais, tanto arquivísti- na intimidade familiar, nem nos círculos cas como bibliográficas e hemerográficas, económicos ou de interesses, nem sequer bem como testemunhos orais de grande nos convívios com os seus discípulos e relevância. apoiantes que lhe “aqueceram a cadeira” Martinho assinala, reiteradamente, esperando a sua chegada à presidência do que Marcello Caetano era totalmente governo como, por exemplo o grupo “da previsível e que o era porque manteve ao Choupana”, que adotou o nome desse res- longo de toda a sua vida o pensamento taurante do Estoril. reacionário com que cresceu. Os seus pais 218 RECENSÕES

eram originários do distrito de Coimbra Neste contexto, é muito revelador e, como frequentemente sucede, as zonas o empenho de Caetano e de Teotónio rurais caracterizam-se por um forte con- Pereira em editar a revista Ordem Nova servadorismo. O seu pai era monárquico (março de 1926 a março de 1927), que e um fervoroso católico, que foi viver na também se definia como “Revista anti- sua juventude para Lisboa, onde exer- -moderna, anti-liberal, anti-dem­ ocrática, ceu diversas profissões até se conver- anti-burguesa e anti-bolchevique. Con- ter em funcionário público. Casou-se tra-revolucionária, reaccionária, católica, com Josefa Maria das Neves e foi nesse apostólica e romana; monárquica, into- ambiente familiar que cresceu o futuro lerante e intransigente”. Os seus enun- presidente do Conselho. ciados evidenciavam já o radicalismo No período de entre-Guerras, o con- das suas propostas e, evidentemente, texto português e internacional favore- Caetano forjou-se no combate contra a ceu o auge das ditaduras, reforçando as esquerda que, à época, possuía também correntes autoritárias, antidemocráticas e tiques autoritários derivados da influên- ultranacionalistas. Foi neste período que cia bolchevique. O jovem Caetano reve- Marcello Caetano aderiu ao Integralismo lou-se também um paladino da Igreja Lusitano. Os Integralistas pretendiam Católica pois, como assinala o autor, o estabelecer uma monarquia corporativa, seu pensamento formava parte de uma em consonância com as correntes mais tradição não somente anti-liberal, mas fraturantes da direita radical europeia. O também anti-iluminista, marinada num sidonismo foi igualmente outra peça do profundo pessimismo sobre a condição puzzle reacionário que ajudou a formatar humana, pelo que confiava na vontade ideologicamente a direita radical, junta- divina para moldar as mentes e as pes- mente com a Cruzada Nacional D. Nuno soas. Politicamente, e como bom conser- Álvares Pereira. vador, possuía o sentido do poder e da O radicalismo de direita era fruto das sua preservação. Não acreditava no papel sequelas de que padeceu Portugal após a político das massas, mas antes no das eli- Grande Guerra europeia, tal como suce- tes superiores que eram o escol que devia deu também em Itália. Ambos os países, conduzi-las e formá-las. apesar de se encontrarem do lado dos Depois da chegada de Salazar ao vencedores, não obtiveram qualquer com- poder, uma parte do Integralismo Lusi- pensação. Mas os governos autoritários tano optou por diluir-se no , não foram património exclusivo dos Esta- e isso mesmo fizeram Teotónio eC­ aetano. dos que não conseguiram obter os frutos Estes quadros foram chamados a servir o desejados do conflito. Também Espanha, Estado. Marcello, com 23 anos, foi con- que foi neutral, acabou sob a ditadura de vidado pelo ditador para ser o auditor Primo de Rivera em 1923. Esta vaga auto- jurídico do Ministério das Finanças. Três ritária acabou por desembocar no golpe anos mais tarde doutorou-se com uma de Estado de 28 de maio de 1926. tese sobre A depreciação da moeda após a RECENSÕES 219 guerra, e com 27 anos, quando o regime do que o franquismo, não tendo Portugal se institucionalizou, contribuiu para a sofrido uma guerra civil. Os interesses redação do novo texto constitucional, britânicos e norte-americanos fiavam-se em conjunto com outros juristas. Nesse mais em Salazar do que na oposição polí- mesmo ano ingressou como docente na tica, que se restruturou em 1943. A Base Faculdade de Direito da Universidade de das Lages e a necessidade que Portugal Lisboa. refreasse uma suposta intervenção do Caetano, na sua juventude e no início franquismo a favor do Eixo, beneficiaram da sua idade adulta, fez gala de uma fervo- o salazarismo. rosa fé que, como é sabido, o abandonou A miséria desse período de guerra no final da sua vida devido, em grande provocou as greves de 43 que, segundo parte, às consequências do Concílio Vati- Caetano, eram não apenas inevitáveis cano II e às politiquices da diplomacia como também reconhecidas pela gene- cardinalícia. Também demonstrou ser, ralidade das pessoas como justas. Esta ao longo da sua vida, um inamovível pes- demarcação, entre outras, de Caetano em simista. Este seu traço de carácter, pensa relação à postura oficial do regime foram Martinho, pode ter sido potenciado pela bastante habituais, como forma de assim doença depressiva da sua mulher. demonstrar a sua autonomia. Um dos aspectos ideológicos que nor- Entre 1940-1944, Caetano foi comis- tearam o pensamento de Caetano foi o sário nacional da . corporativismo, entendido como a orga- Apesar de ser um salazarista convicto, nização económica e política que permi- como assinala Martinho, sugeriu, tia conciliar os interesses do patronato durante este período, que se reduzisse e dos trabalhadores, evitando a luta de a censura à imprensa e que a Assem- classes. Este sistema postulava que a eco- bleia Nacional fosse mais autónoma em nomia devia servir, sobretudo, os interes- relação ao governo. Pedia também uma ses da nação e beneficiar as classes mais maior proteção social para os trabalha- desfavorecidas. Obviamente, a realidade dores, o fortalecimento dos sindicatos foi outra. A verdade é que nas ditadu- nacionais e o fim dos abusos praticados ras o Estado sempre se colocou ao lado na indústria mineira e nas obras públicas. dos patrões, inviabilizando o modelo. Do mesmo modo, apoiado na sua con- Caetano pensou que com a criação de dição de jurista, criticou os excessos da grémios profissionais e sindicatos nacio- pvde/. A maior parte destas críticas nais o corporativismo se expandiria. No ao regime eram enviadas por correio a entanto, a revolução corporativa que pre- Salazar, razão pela qual raramente trans- conizava não existiu. Para mais, após a piravam para a opinião pública. vitória aliada em 1945, o corporativismo Em setembro de 1944, Caetano foi era o que de mais parecido havia com o nomeado ministro das colónias, cargo regime fascista. Contudo, o Estado Novo que ocupou até fevereiro de 1947. Os pôde contornar muito melhor a situação homens fortes do executivo eram, além 220 RECENSÕES

de Caetano, Botelho Moniz, ministro viria a ser presidente, entrando também do Interior, e Santos Costa, ministro da mais tarde para o Conselho de Estado. Guerra. Botelho e Caetano tinham um Em 1949, o presidente da República, bom entendimento, o que não acontecia marechal Carmona, estava com 80 anos. com Santos Costa que tinha um carácter Ainda assim, Salazar propô-lo de novo prepotente e desejava o controlo absoluto como candidato à reeleição. Face a esta da corporação militar. situação, Caetano, através dos seus Caetano era tudo menos heterodoxo apoios na un e na administração, pro- no que tocava à colonização e aos direi- pôs que Oliveira Salazar avançasse para tos de Portugal sobre os territórios que a Presidência da República, esperando administrava. Contudo, assinalando suceder-lhe à frente do governo. Salazar, alguma originalidade no debate sobre o no entanto, opôs-se veementemente pois futuro dos impérios coloniais, mostrou- não queria um cargo representativo sem -se por diversas ocasiões partidário da poder efetivo e preferia manter-se na pre- autonomia progressiva e participada, o sidência do Executivo. que incomodava os militares integracio- Em 1951, e perante a crescente hostili- nistas e os salazaristas de longa data. Era dade internacional ao colonialismo luso, também bastante cáustico com o partido foi efetuada uma reforma constitucional único da ditadura: a União Nacional com a qual se enterrava o império portu- (un), que como ficou demonstrado nas guês, substituindo-o pelas denominadas eleições de 1945 foi incapaz de superar a províncias ultramarinas. Portugal con- mobilização opositora. vertia-se, no papel, num estado pluri- Em fevereiro de 1947, Salazar levou continental e multirracial “do Minho a a cabo uma remodelação ministerial e Timor”. demitiu Caetano devido às suas reitera- Nesse mesmo ano falece o marechal das críticas à un, cuja comissão executiva Carmona. Salazar, com o apoio das For- dizia ser apenas uma espécie de agência ças Armadas, apresentou para o cargo o geral dos interesses regionais junto do general Craveiro Lopes, que contou com executivo de Lisboa e que, nos diversos a colaboração de Caetano na sua campa- distritos do país, era uma casca vazia de nha para as eleições que, inevitavelmente, conteúdo. o regime venceu. Contudo, Salazar, entendendo que Em 1955, Caetano regressa ao valia mais manter o seu assíduo cola- governo, desta vez como ministro da borador por perto do que afastado, Presidência, esforçando-se por exibir, convidou-o, em março de 1947, para neste cargo, a sua face mais amável. Em presidente da Comissão Executiva da un. nome do chefe do executivo, deslocava- Marcello ocupou o cargo até 1949 e, após -se às reuniões internacionais da , a sua demissão, Salazar atraiu-o de novo da efta, etc. Procurou também coorde- para a área governativa nomeando-o pro- nar, no âmbito da sua pasta, os ministros curador da Câmara Corporativa, da qual e os diversos escalões da administração RECENSÕES 221 do Estado, visando uma atuação harmo- adquirisse eficiência, infraestruturas e niosa. Apesar dos esforços de atualização se modernizasse com novas disciplinas. do regime, o desentendimento entre San- Na qualidade de máximo representante tos Costa e Caetano e entre o primeiro e o da comunidade académica, sofreu a presidente da República Craveiro Lopes, crise estudantil de 1962, que se esten- provocaram uma importante crise. deu às três universidades do país, e que o ­Salazar perdeu a confiança no presidente obrigaria a renunciar ao cargo devido às da República e apoiou a nomeação para cargas policiais dentro do recinto univer- o cargo do submisso almirante Américo sitário. Essa atitude valeu-lhe o apreço de Thomaz. A oposição, por seu lado, esco- amplos setores da sociedade que consi- lheu o general que, deraram que o seu gesto se alinhava com superando todas as expectativas, realizou a defesa da autonomia universitária e de uma campanha brilhante, direta e con- uma posição mais liberal. tundente, denunciando as misérias da Caetano sabia que, como sucedia em ditadura e garantindo que se vencesse as Espanha com Franco, Salazar devido à eleições demitiria o ditador. O governo sua idade, tinha os dias contados e soube, recorreu à violência policial e à desinfor- como refere Martinho, situar-se “numa mação, através dos meios que controlava, zona confortável longe das crises quoti- acabando por obrigar o “general sem dianas do regime” e esperar a sua ocasião. medo” ao exílio no Brasil. O acidente de Salazar em agosto de 1968 Ultrapassado o tufão Delgado e com e a sua posterior incapacitação deram o almirante Américo Thomaz na Presi- a Marcello a oportunidade de chegar à dência da República, Salazar ficou com Presidência do Conselho. Muita gente as mãos livres para realizar uma remo- acreditou que a sua eleição iria permitir delação do gabinete cujo objetivo era liberalizar o regime. promover a saída tanto de Santos Costa Caetano, enquanto gestor público e como de Caetano e reforçar o fragilizado privado, foi operante e eficiente, segundo governo que se via afetado tanto por a maioria dos testemunhos recolhidos divisões na instituição militar, como pela por Martinho, e era intelectualmente incapacidade da União Nacional para uma pessoa muito respeitada mas, como liderar a política portuguesa e reforçar a chefe do Governo foi um desastre. Entre atuação governamental. outras razões porque não possuía o senso O confronto entre Santos Costa e Cae- político que teve Salazar ao organizar e tano, de acordo com Martinho, permite contemporizar as diversas famílias do vislumbrar uma nova corrente política regime assegurando-lhes a sua parte dentro do Estado Novo: o marcelismo. proporcional de poder. Além disso, a Caetano começou então a sua, suposta, sua chegada à Presidência do Conselho travessia do deserto. Em 1959 foi desig- foi muito condicionada pelos ultras do nado reitor da Universidade de Lisboa, regime, que não queriam que se levassem­ esforçando-se para que a universidade a cabo experiências com as colónias, 222 RECENSÕES

sendo advertido pelo presidente da democrática; e, no âmbito externo, pen- República, Américo Thomaz, que se pro- sou-se que as eleições poderiam ajudar movesse uma política diferente “os mili- a desbloquear o clima de hostilidade em tares interviriam”. E tal foi o que acabou relação a Portugal, que era cada vez mais por acontecer, embora não no sentido criticado nos fora internacionais. ­Caetano esperado pelos ultras. sabia que não perderia as eleições, con- A questão colonial não pode ser de tando com o seu prestígio pessoal e, modo algum banalizada, uma vez que o sobretudo, com a manipulação do voto “ultramar” era considerado por muitos que lhe garantia uma vitória contundente. portugueses, incluindo sectores da opo- No entanto, em perspetiva histórica, é sição, como património nacional e garan- possível afirmar que as eleições de 1969 tia da grandeza e subsistência da pátria foram um fracasso para C­ aetano, uma lusitana. Tal pode ser comprovado lendo vez que, apesar de muitos dos integrantes os programas elaborados nos diversos das listas da União Nacional serem gente distritos pela oposição onde em muitos nova, se viu obrigado a incluir nelas mui- deles nem sequer se menciona o pro- tos dos seus declarados inimigos, os quais, blema colonial e, nos de Ponta Delgada 20 dias depois de inaugurada a legislatura, e Braga em que o assunto é efetivamente apresentaram uma moção na Assembleia mencionado, se afirma que a perda das Nacional com vista a manter inamovível a colónias implicava a desaparição de Por- política ultramarina de Salazar. E, a partir tugal como nação independente. de então, os seus inimigos conspiraram Ao chegar ao poder, Caetano recebeu para manter operativo o legado de Salazar uma herança complicada: um territó- nessa questão crucial. rio com drásticos desequilíbrios regio- Os limites do poder de Caetano fica- nais; uma população desinformada pela ram claros quando teve de enfrentar a censura; uma elevada emigração; e gra- ala mais ortodoxa da ditadura. Caetano ves problemas resultantes da persegui- procurou libertar-se desse jugo. Assim, ção política e da guerra. Mas, acima de afirmou, em setembro de 1970, que a tudo, recebeu uma guerra generalizada permanência em África se justificava nas principais colónias; um conflito sem pelos portugueses ali residentes e para sentido nem perspetivas, que consumia fazer face aos compromissos internacio- quase metade do orçamento nacional e nais assumidos pelo Governo. Atreveu-se condicionava a vida de todo o país. ainda a sublinhar que a independências Com o objetivo de se consolidar no das colónias não significava a perda da poder e ampliar a sua base de apoio, nacionalidade. Ideia que os ultras do ­Caetano tratou de aproveitar as eleições regime consideraram um sacrilégio já de outubro de 1969 para referendar a sua que, segundo estes, Portugal sem as coló- postura colonial e, desta forma, reforçar nias seria devorado por Espanha. a sua imagem junto dos seus pares da Neste contexto, em dezembro de 1970, ­ditadura e legitimar-se face à oposição o presidente do Governo apresentou na RECENSÕES 223

Assembleia Nacional um ante-projeto de preocupação dominante tudo o que se revisão constitucional, com a intenção referia ao Ultramar”. de encontrar uma via intermédia entre Desta forma, enganam-se aqueles que os deputados liberais e os de extrema- pensam que Caetano poderia ter sido o -direita e realizar as reformas que consi- Adolfo Suárez de Portugal porque, como derava necessárias. Para isso, modificou sublinha Palomares Martinho, estava a constituição de 1933 no articulado que demasiado apegado ao seu pensamento se referia à estrutura do Estado, segundo colonialista, tão generalizado entre os o qual Portugal, continuando a ser um da sua geração. Mais do que com Suá- país unitário, passava a possuir regiões rez, Caetano assemelha-se infinitamente autónomas com poderes próprios. Tal mais com Carlos Arias Navarro, que ocu- não resolveu o problema da guerra, no pou o governo de Espanha após o assas- entanto. Os movimentos nacionalistas sinato de Carrero Blanco, em dezembro africanos não combatiam para continuar de 1973. a depender de Portugal política e econo- Arias Navarro sabia que, depois do micamente e Caetano sabia-o. Por isso 25 de Abril português, devia liberali- disse a Alçada Baptista, o entrevistador zar o regime, mas temia a revolução e menos servil com quem o ditador se cru- mostrou-se indeciso sobre o caminho a zou, em 1973: “Se V. me pergunta o que tomar, enquanto a agitação se genera- é aquilo que mais veementemente desejo, lizava por todo o país. Assim, Juan Luís dir-lhe-ia que é a paz no Ultramar”. A Cebrian, comentando o Depoimento de preocupação com a guerra ocupava a Caetano, sublinhou que em Espanha maior parte do seu tempo de trabalho. “após o 25 de Abril os imobilistas de Assim, afirmava: “Levanto-me cedo, sempre puseram-se em marcha e um ano tomo o pequeno-almoço e leio os jornais mais tarde pode dizer-se que as suas vitó- da manhã. Trabalho toda a manhã em rias não foram pírricas nem desprezíveis. casa. Até às 11 procuro tratar dos assun- Durante todo o ano de 1974 sucederam- tos que exigem um pouco mais de tempo -se assim as contradições, os fracassos e a e aproveito para escrever algum relatório, incoerência política, fruto, em definitivo, se é necessário. Depois reservo uma hora da luta que se desenrola no seio do poder para tratar da minha correspondência (…) Tudo isso, no entanto, terminou e à pessoal e para responder (…) Ao meio- confusão sucedeu o desânimo. A oposi- -dia chega a pasta do Gabinete com as ção moderada queimou os seus navios e informações dos Negócios Estrangeiros deu o não final ao Estatuto de Asociacio- e do Ultramar que tenho sempre que nes, pedra angular da ansiada evolução rever”. Esta obsessão pelo Ultramar tam- (…) A continuidade, sem mais, da situa- bém a atribuía Caetano ao seu anteces- ção não é possível. Dizer ‘quisemos mas sor, ao referir que Salazar “subalternizou não pudemos’, como os marcelistas por- todos os restantes problemas do governo tugueses, não conduz a nada. Sobretudo e da administração, passando a ter como porque Caetano, na verdade, pode, mas 224 RECENSÕES

não se atreveu” (Informaciones, n.º16497, anos de guerra, e sem nenhuma pers- 20/01/1975, p. 14.) petiva de que a situação militar pudesse Outro dos aspetos-chave que men- melhorar. ciona Martinho é o da instituição militar, Como conclusão devo assinalar que a que se dividiu após a sua intervenção na obra de Palomares Martinho é altamente Grande Guerra e aumentou a sua auto- recomendável, pelas fontes que fornece nomia relativamente ao poder civil. Este e que nos permitem conhecer melhor cenário ajuda a perceber o reviralhismo e Marcello Caetano e, sobretudo, pela sua o putschismo desde os anos de 1930 até clareza expositiva. aos anos de 1960. Esta fratura alargar- -se-ia após a não recondução presidencial sanchéz cervelló, J. (2018), Recensão “­Marcello de Craveiro Lopes, e com a imposição do Caetano. Uma Biografia (1906-1980), Lisboa, almirante Américo Thomaz nas eleições Objectiva, 2016”. Análise Social, 226, liii (1.º), de 1958, e ao modo como o regime lidou pp. 217-224. com o general Humberto Delgado. Josep Sánchez Cervelló » [email protected] » Esses antecedentes foram determi- Departament d’Història i Història de l’Art, Facul- nantes para compreender o 25 de Abril, tat de Lletres, Universitat Rovira i Virgili » Cam- que acabou por ser uma necessidade pus Catalunya, Avinguda Catalunya, 35 — 43002 ­Tarragona, Espanha. para os militares desgastados por 13