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FREITAS, S. P. R. de. Ciclos de terças em certas canções da música popular no Brasil. Per Musi, Belo Horizonte, n.29, 2014, p.125-146. Ciclos de terças em certas canções da música popular no Brasil Sérgio Paulo Ribeiro de Freitas (UDESC, Florianópolis, SC) [email protected] Resumo: Com as transformações que marcam a história artística e teórica da tonalidade harmônica, os planos tonais que percorrem os chamados ciclos de terças menores (C:A:F#:Eb:C:) e ciclos de terças maiores (C:E:Ab:C:) tornaram-se uma solução de expansão e renovação que afetou a composição musical em diversos gêneros e estilos. Estudando o emprego destes planos simétricos em canções produzidas no Brasil na segunda metade do século XX, este texto procura observar como tais escolhas podem ser impactantes na valoração de obras e artistas em determinado campo da música popular. Palavras-Chave: Ciclos de terceira; plano tonal; teoria e crítica da música popular. Cycles of thirds in certain songs of popular music in Brazil Abstract: Due to the changes that characterize the history of art and theory of harmonic tonality, tonal plans that cover the so-called cycles of minor thirds (C:A:F#:Eb:C:) and cycles of major thirds (C:E:Ab:C:) have become an expansion and renovation solution that affected different genres and styles of music. By studying the use of these symmetrical plans in Brazilian songs from the second half of the twentieth century, this paper attempts to shed light on how such choices can have an impact on the valuation of works and artists in the field of popular music. Keywords: Cycles of thirds; tonal plan; theory and criticism of popular music. 1 – Introdução Uma das temáticas envolvidas no estudo da música Neste amplo campo avaliativo, o presente texto destaca popular diz respeito ao reconhecimento daquilo que o conhecido argumento de que, dentro de certos é posto junto, ou composto, em uma canção. As limites, levar em conta o traçado dos planos tonais competências em reconhecer referências, e também pode contribuir para tal reconhecimento de referências a inevitável possibilidade de não percebê-las ou de realçando aspectos e interações, nem sempre evidentes, desconhecê-las, conformam circunstâncias que apuram que deixam transparecer como diferentes músicas tomam ou deturpam nossa apreciação valorativa quando parte de uma espécie de conversa de longa data onde lidamos com questões de autenticidade, originalidade vários harmonistas participam escutando, re-escutando, ou reprodução, de criação de algo novo a partir de obras dizendo e re-dizendo. O estudo dos planos tonais pode pré-existentes, de adaptação, empréstimo, citação ou indicar que certas canções configuram-se como um rearranjo de outras fontes, de produção através da mistura tipo de criação que zela por um reter, um conservar, um ou fusão de elementos diversos etc. Assim, tal reconhecer repetir que se combina com um modificar aos poucos é uma consabida condição analítica, um pré-requisito e com os outros. Não se trata então de um romper, de complexo que, direta ou indiretamente, está embutido um inventar do nada, de um ato criativo autônomo que em todo um vocabulário crítico, consideravelmente usual, almeja fazer o que nunca se fez. Voltando a percorrer onde se encontram noções-chave como: “apropriação”, trajetos costumeiros, tais canções parecem dizer que “bricolagem”, “colagem”, “guerrilha semiótica”, importa conviver, assumir o contágio e o pertencer, “hibridismo”, “rapinagem”, “recontextualização”, “relações importa transformar, o tomar para si, o comparar e o interpoéticas”, “releitura”, “ressignificação”, “sincretismo”, ser comparado. Em suma, a consideração dos planos “trabalho intertextual” (cf. SHUKER, 1999). tonais auxilia ouvir interlocuções musicais favorecendo PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.29, 234 p., jan. - jul., 2014 Recebido em: 09/05/2012 - Aprovado em: 15/01/2013 125 FREITAS, S. P. R. de. Ciclos de terças em certas canções da música popular no Brasil. Per Musi, Belo Horizonte, n.29, 2014, p.125-146. a compreensão de que determinadas composições são mais ou menos usuais, expressam essa dualidade que, ao soluções de reinvenção que, além dos sons propriamente mesmo tempo, é simples e complexa, abstrata e concreta: ditos, em diferentes medidas e de diferentes maneiras, alguns acordes cumprem o papel de centro enquanto levam em conta algo das muitas memórias que estão pré- outros exercem atração ou são atraídos para tal centro. maturadas na vasta cultura da tonalidade harmônica. Alguns são de repouso e outros de movimento. Alguns são principais e outros secundários, sonoridades coadjuvantes Para reexpor sinteticamente a noção de “plano tonal”, que concorrem para um objetivo comum. Alguns são parafraseando SCHOENBERG (2001, p.410), digamos essenciais e outros são acessórios ou ornamentais. que, sob aspecto limitado, podemos compreender a Alguns são da estrutura profunda e outros da estrutura harmonia de “toda composição como uma cadência de superfície. Então, a noção “lugar de chegada” (cf. mais ou menos extensa e rica, cujas mínimas partes FREITAS, 2010, p.393), grosso modo, equivale ao que integrantes não seriam cada um dos acordes, mas sim os é conhecido no campo da jazz theory como “target acordes de conclusões parciais”, os acordes de chegada, chord” (cf. RAWLINS e BAHHA, 2005, p.61). E, na teoria “colocados no ponto-chave de cada segmento de forma”. musical, como “meta tonal”, “ponto de fechamento” ou Se estiverem “ordenados” segundo determinados critérios “centro tonal” como diz MEYER (2000). Como “cadential e valores, estes lugares de chegada dispostos um após goals” (CAPLIN, 1998, p.196) ou “acorde de descanso outro delineiam uma espécie de “grande cadência”: o (Ruheklang)” nos termos de LA MOTTE (1993, p.275). E chamado plano tonal. também como “acorde significante”, aquele que “revela o sentido (significado)” e a “coerência tonal”, aquele A metáfora do plano tonal procura então representar, que, distinguindo-se do grupo dos “acordes gramaticais”, em uma imagem teórica, o alinhavo que demarca o “sublinha a especial intenção arquitetônica [...] dentro de prosseguimento das mudanças dos lugares de chegada uma frase” ou “seção de uma obra, ou de uma obra inteira” (acordes, áreas tonais e tonalidades) ao longo de uma (SALZER, 1990, p.32). Neste sentido, o operador “lugar obra musical. Aproximando-se daquilo que CAPLIN de chegada” correlaciona-se com noções schenkerianas (1998, p.195) chamou de “overall tonal organization”, conhecidas, tais como “prolongação harmônica” e tal plano é um expediente técnico analítico que atende “tonicização” (cf. FREITAS, 2010, p.380-385 e 403-405). uma demanda artística, afetiva e comunicacional, pois “o E está claramente correlacionado ao âmbito conceitual fato [...] é que nossa sensibilidade auditiva reage diante daquilo que SCHOENBERG (2004, p.37) definiu através das mudanças de regiões acústicas” (BARCE, 1978, p.19). da metáfora espacial das “regiões” tonais (cf. DUDEQUE, Barce chamou esta arte da combinação das sonoridades 2005, p.101-110). em grande escala de “sistema de contraste entre regiões acústicas”. A ideia é que, uma vez estabelecida uma 2 – Ciclos de terceira: o elogio aos planos tonalidade, o harmonizador passa a trabalhar com uma tonais estirados espécie de “corpo elástico, capaz de distender-se e de contrair-se em todas as direções”. Do manejo criativo Dentre as tantas disposições dos lugares de chegada que desse corpo elástico resultam diferentes relações sonoras podemos ouvir nos diversos repertórios da tonalidade que ajudam a compor diversificados efeitos expressivos. harmônica moderna (grosso modo, séculos XVII e XVIII) e contemporânea (séculos XIX ao XXI), particularizam- Na música clássica e romântica, o plano tonal de uma se aqui, em certas canções representativas da chamada composição consistia em sistematizar a variedade e “música popular brasileira”, ou “MPB”, dois planos a tensão construtivas graças a troca planificada de tonais que se tornaram possíveis e conhecidos a partir níveis acústicos e de modificações da escala. Nas da inclusão, tanto artística quanto teórica, das célebres composições breves, isso se conseguia com ligeiros “vizinhanças de terceira que envolvem transformações deslocamentos tonais ou com um forte contraste cromáticas” (KOPP, 2002). Ou mais especificamente, tonal para logo voltar a tonalidade inicial. Nas trataremos de canções em tonalidades maiores que, composições extensas, o plano tonal podia chegar extrapolando os limites da “hierarquia tradicional dos a ser muito complexo e significava um verdadeiro tons vizinhos” (cf. FREITAS, 2010, p.389-390), valorizam esforço criador (BARCE, 1978, p.19-20). as inovadoras relações de terceira (maior ou menor, abaixo ou acima) entre áreas tonais de modalidade maior que O termo correlato “lugar de chegada” procura representar circunvizinham cromaticamente um I grau combinando a concepção geral de que as escolhas e combinações os acordes (graus, regiões e/ou tonalidades) de bVI, VI, dos acordes e áreas tonais se fazem por meio de dois bIII e III. Então, tomando a tonalidade de Dó Maior como comportamentos, vontades de construção ou funções referência, observaremos escolhas que contrastam as complementares e essencialmente distintas. Alguns regiões acústicas de Láb Maior (Ab:), Lá Maior (A:), Mib acordes ou áreas tonais cumprem o papel de meta, Maior (Eb:) e Mi Maior (E:). o ponto de mira que se procura atingir, o objetivo, a finalidade, o princípio e o fim. E outros são meios, aquelas A este grupo de áreas tonais prediletas acrescenta-se harmonias que possibilitam a preparação e o alcance da ainda a controversa área tonal que, provisoriamente, meta, os passos que nos tiram de um estado de repouso pode-se chamar de “submediante da submediante”, ou e nos dirigem a um determinado fim. Diversas analogias, seja, o lugar de chegada assentado no distante #IV:, ou 126 FREITAS, S. P. R. de. Ciclos de terças em certas canções da música popular no Brasil. Per Musi, Belo Horizonte, n.29, 2014, p.125-146. bV: conforme o caso. Na tonalidade de Dó Maior, o acorde bastante desenvolvida por teóricos do século XIX, tais ou área tonal de Fá# Maior (F#:) ou Solb Maior (Gb:).