METRÓPOLES EM FORMAÇÃO

O crescimento e as transformações das cidades brasileiras através do cancioneiro popular

Nivaldo Vieira de Andrade Junior1

INTRODUÇÃO

A Música Popular produzida no Brasil no século XX possui um destaque que a maior parte das demais manifestações artísticas brasileiras não possui. O Brasil é um dos poucos países do mundo em que a música local é mais ouvida que aquela estrangeira. Além disso, a música popular brasileira conseguiu uma projeção no exterior comparável apenas às músicas populares produzidas em alguns poucos países, como Estados Unidos, Inglaterra e Cuba. Ao longo do último século, alguns compositores, cantores e músicos estiveram entre as personalidades brasileiras de maior destaque no exterior. De uma maneira geral, as nossas canções populares conseguem chegar a uma quantidade de pessoas bastante superior às que têm acesso à literatura brasileira, às nossas artes plásticas ou ao nosso cinema, por exemplo. Desta forma, o cancioneiro popular acaba tendo uma participação definitiva na formação do imaginário coletivo, seja no Brasil, seja no exterior.

A música popular muitas vezes tem também importante papel no registro consciente das transformações pelas quais passa a cidade, antecipando conseqüências ou mesmo influenciando nestas modificações. Este registro é ainda mais significativo quando consideramos que a música popular brasileira, tal como a compreendemos hoje, começa a se consolidar como elemento cultural fundamental dentro do panorama nacional a partir da década de 1940, a chamada “Era de Ouro do Rádio”; este período coincide com a fase de maior crescimento daquelas que, desde o início do século XX, são as duas maiores cidades brasileiras: São Paulo e . São Paulo, de nona maior capital brasileira em

1 PPGAU/FAUFBA. E-mail: [email protected]

1872, cresce até tornar-se, já em 1890, a quarta mais importante cidade do país; e em 1900 ultrapassa finalmente Salvador e Recife, tornando-se menor apenas do que a capital federal, Rio de Janeiro. Com o processo da industrialização acelerada e a transferência da capital nacional do Rio de Janeiro para Brasília, São Paulo torna-se, em 1960, a maior metrópole do Brasil.

O objetivo deste trabalho é investigar como o cancioneiro popular brasileiro interpreta o espaço urbano destas duas metrópoles – e, desta forma, da metrópole brasileira em geral – a partir do segundo quartel do século XX, buscando entender especificamente como os diversos compositores percebem as sucessivas transformações na configuração espacial das principais aglomerações urbanas do Brasil.

Para tanto, analisaremos em primeiro lugar a produção individualmente voltada a cada uma destas metrópoles no seu período de maior crescimento, que corresponde ao período que vai da consolidação do como “estilo musical” brasileiro por excelência durante o Estado Novo getulista (1937-54) até o surgimento e apogeu do movimento musical denominado Tropicália (1967-69). Este período inclui ainda a “era de ouro do rádio” e a aparição e ascensão da , esta última a partir de 1958. Em seguida, analisaremos um problema comum a todas as grandes metrópoles brasileiras – e dos países em desenvolvimento de uma maneira geral: a questão das favelas, do seu surgimento até os dias de hoje.

1. RIO DE JANEIRO

1.1. O Centro do Rio e o “urbanismo demolidor”

Em 1927, o Prefeito do Rio de Janeiro Prado Junior contrata o arquiteto-urbanista francês Alfred Agache para fazer um “estudo do plano de reordenação, expansão e embelezamento para a cidade do Rio de Janeiro.”2 O plano desenvolvido por Agache tem como objetivo “transformar o centro do Rio num centro governamental monumental”3 e para isso decide, entre outras coisas, pela demolição do morro da Favela 4. Em 1928, ao tomar conhecimento das intenções do planejador, o sambista Sinhô, então um dos

2 PINHEIRO, Eloísa Petti. Europa, França e Bahia: difusão e adaptação de modelos urbanos (Paris, Rio e Salvador). Salvador: EDUFBA, 2002. p. 167. 3 Ibid., p. 173. 4 Segundo HOUAISS (2001, p. 1315), a acepção habitação popular do termo favela “surge após a campanha de Canudos, quando os soldados, que ficaram instalados num morro daquela região, chamado da Favela, provavelmente por aí existir grande quantidade da planta favela, ao voltarem ao Rio de Janeiro, pediram licença ao Ministério da Guerra para se estabelecerem com suas famílias no alto do morro da Providência e passaram a chamá-lo morro da Favela [...]; o nome se generalizou para ‘conjunto de habitações populares’ ”. 1 compositores populares mais conhecidos do Rio de Janeiro, se indignou de tal forma que, além de tentar reverter tal idéia através de contatos com um ministro de Estado com o qual mantinha relações sociais, compôs um samba, A Favela Vai Abaixo, que se tornou muito conhecido na época:

Minha cabocla, a Favela vai abaixo Porque lá o luar é diferente Ajunta os troço, vamo embora pro Bangú Não é como o luar que se vê desta Favela Buraco Quente, adeus pra sempre meu Buraco No Estácio, Querosene ou no Salgueiro Eu só te esqueço no buraco do Caju Meu mulato não te espero na janela Isto deve ser despeito dessa gente Vou morar na Cidade Nova Porque o samba não se passa para ela Pra voltar meu coração para o morro da Favela 5

Outro interessante exemplo de canção surgida para protestar contra demolições de espaços urbanos significativos na história do Rio de Janeiro é o samba Praça Onze, sucesso no carnaval de 1942. Este samba, de autoria do compositor Herivelto Martins e do ator , trata da então iminente destruição da Praça Onze para a abertura da Avenida Presidente Vargas. A Praça Onze (de Junho, em homenagem à data da Batalha de Riachuelo na Guerra do Paraguai) era o local onde, na década de 1910, as baianas do morro da Saúde, em cujas casas surgiu o samba, se encontravam com os ex-escravos radicados no morro do Estácio de Sá, onde surgiria em 1929 a primeira escola de samba, chamada Deixa Falar. Os desfiles das escolas passariam então a acontecer na própria Praça Onze, e em 1930 já eram seis escolas no total. Os autores do samba temiam pelo desaparecimento das escolas de samba com a destruição da Praça – teoria que, como sabemos, se revelaria infundada:

Vão acabar com a Praça Onze Porque a Escola de Samba não sai Adeus, Não vai haver mais Escola de Samba, não vai minha Praça Onze, adeus Chora o tamborim Já sabemos que vais desaparecer Chora o morro inteiro Leva contigo a nossa recordação Favela, Salgueiro Mas ficarás eternamente em nosso coração Mangueira, Estação Primeira E algum dia nova praça nós teremos Guardai os vossos pandeiros, guardai E o teu passado cantaremos6

1.2. A expansão para a Zona Sul

5 SINHÔ. A Favela Vai Abaixo. In: LIRA CARIOCA et al.. É Sim, Sinhô. Kuarup, 1999. 6 MARTINS, Herivelto; GRANDE OTELO. Praça Onze. In: MARTINS, Herivelto. Que Rei Sou Eu?. [S.l.]: Atração/FUNARTE, 1989. 2 A cidade cresce, se amplia, e nos anos seguintes o protagonismo nas canções passará da cidade central para os bairros da Zona Sul carioca, para onde as classes mais abastadas se transferiam, em particular Copacabana, retratada nesta canção homônima de 1944 (gravada pela primeira vez em 1946):

Existem praias tão lindas, cheias de luz E à tardinha o sol poente Nenhuma tem o encanto que tu possuis Deixa sempre uma saudade na gente Tuas areias, teu céu tão lindo Copacabana, o mar eterno cantor Tuas sereias sempre sorrindo Ao te beijar ficou perdido de amor Copacabana, princesinha do mar E hoje vive a sussurrar: Pelas manhãs, tu és a vida a cantar Só a ti, Copacabana, eu hei de amar7

Até mesmo o baianíssimo se encantará por Copacabana e comporá uma canção em sua homenagem (Sábado em Copacabana, de 1952), inclusive registrando como parceiro o playboy Carlos Guinle, que em troca lhe introduzia na nova sociedade carioca, instalada no bairro: “Um bom lugar, pra se encontrar, Copacabana / Pra passear, à beira-mar, Copacabana / Depois um bar, à meia-luz, Copacabana / Eu esperei por essa noite uma semana”. A Copacabana quase suburbana de João de Barro e Alberto Ribeiro, na canção de Caymmi de oito anos depois, já está se transformando no centro da boêmia carioca, ainda que mantenha algumas características de um bairro tranqüilo, à beira-mar.

Em 1958, surge a Bossa Nova e, com ela, o bairro de Ipanema substituirá Copacabana como protagonista das canções. Tom Jobim, o principal nome da Bossa Nova junto com João Gilberto, após ter morado em Ipanema durante a infância, voltara a viver lá desde meados dos anos 1950, no famoso endereço da rua Nascimento e Silva, 107. Lá ele conheceu João Gilberto, e também compôs, em 1957, as canções de “Canção do Amor Demais”, histórico LP gravado pela já então famosa Elizeth Cardoso e considerado o marco inicial do movimento: o disco era exclusivamente dedicado à obra de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, e apresentava pela primeira vez uma gravação do violão revolucionário de João Gilberto8. Em 1962, Jobim e Moraes compuseram aquela que se tornaria, a partir de 1964, a música brasileira mais conhecida no exterior: Garota de Ipanema. A “moça do corpo dourado do sol de Ipanema”, num “doce balanço a caminho

7 BARRO, João de; RIBEIRO, Alberto. Copacabana. In: COSTA, Gal. Todas as Coisas e Eu. [S.l.]: Indie, 2003. 8 CASTRO, Ruy. Ela É Carioca: uma enciclopédia de Ipanema. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. pp. 25-34. 3 do mar”9, colocaria definitivamente o bairro de Ipanema – e a Zona Sul carioca de uma maneira geral – numa posição de destaque no imaginário coletivo universal: o Rio de Janeiro passa a ser o “Rio que mora no mar”, que “é sol, é sal, é sul”10 – a ensolarada Zona Sul passa a representar a própria cidade.

Entretanto, Ipanema também vai se modificando, através da especulação imobiliária que verticaliza intensamente o bairro e, em 1974, Vinícius de Moraes e Toquinho compõem uma Carta ao Tom onde fica claro o saudosismo daquela outra Ipanema, tão recente. Em 1977, o próprio Tom Jobim, juntamente com Toquinho e , faz uma Paródia à Carta ao Tom, em que a crítica à transformação de Ipanema provocada pela especulação se aproveita do tom de paródia para ser ainda mais direta:

Carta ao Tom Carta ao Tom (Paródia) Rua Nascimento Silva, 107 Rua Nascimento Silva, 107 Você ensinando pra Elizeth Eu saio correndo do pivete As canções de “Canção do Amor Demais” Tentando alcançar o elevador Lembra que tempo feliz, ah! que saudade! Minha janela não passa de um quadrado Ipanema era só felicidade A gente só vê Sérgio Dourado12 Era como se o amor doesse em paz Onde antes se via o Redentor Nossa famosa garota nem sabia É, meu amigo, só resta uma certeza A que ponto a cidade turvaria É preciso acabar com a natureza Esse Rio de amor que se perdeu É melhor lotear o nosso amor13 Mesmo a tristeza da gente era mais bela E além disso se via da janela Um cantinho de céu e o Redentor [...]11

1.3. O Rio da Tropicália

A Bossa Nova, ainda que trouxesse uma série de inovações musicais ao velho samba ao se deixar influenciar pelo jazz norte-americano, mantinha nas letras as mesmas temáticas românticas e saudosistas dos tradicionais de vinte, trinta anos antes. Uma mudança mais radical da percepção do espaço urbano acontecerá apenas a partir de 1967,

9 JOBIM, Tom; MORAES, Vinícius de. Garota de Ipanema. In: JOÃO GILBERTO; GETZ, Stan. Getz & Gilberto. [S.l.]: Verve, 1964. 10 MENESCAL, Roberto; BÔSCOLI, Ronaldo. Rio. In: ANDRADE, Leny; RIBEIRO, Pery et al.. Gemini V: Show da boate Porão 73. [S.l.]: Odeon, 1965. 11 TOQUINHO; MORAES, Vinícius de. Carta ao Tom. In: JOBIM, Tom et al.. Tom, Vinícius, Toquinho & Miúcha: Gravado ao Vivo no Canecão. [S.l.]: Som Livre, 1977. 12 A empresa Sérgio Dourado Empreendimento Imobiliários S.A. foi uma das principais responsáveis pela verticalização e conseqüente densificação de Ipanema entre as décadas de 1960 e 70. 13 JOBIM, Tom; BUARQUE, Chico; TOQUINHO. Carta ao Tom (Paródia). In: BUARQUE, Chico. Chico Buarque – Letra e Música. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 148. 4 com um movimento musical intitulado Tropicália, liderado por e , com o apoio de nomes consagrados, como Nara Leão, e principiantes, como Tom Zé.

O movimento tropicalista na música surge inserido num contexto artístico e cultural muito mais amplo. Além da influência de movimentos artísticos anteriores, como a Antropofagia Cultural e a poesia concreta, suas interfaces com outras manifestações artísticas contemporâneas foram múltiplas e diversificadas. Além disso, o próprio nome do movimento veio de uma analogia, feita pelo fotógrafo dos filmes de , Luiz Carlos Barreto, com a obra Tropicália, do artista plástico Hélio Oiticica.

No que diz respeito à relação entre música e cidade apresentada nestas canções, mais do que os espaços abordados, que são múltiplos, o que importa é a mudança na abordagem em si. Politicamente, em 1968 – ano em que o movimento chega a seu ápice e em que são gravadas as principais canções – o Brasil se encontrava há quatro anos sob uma ditadura militar que ainda duraria outros dezessete anos e que, a partir da decretação do Ato Institucional nº 5, em 13 de dezembro daquele ano, cercearia cada vez mais as liberdades individuais. No contexto internacional, 1968 é o ano dos movimentos de contestação por todo o mundo, sendo particularmente marcantes as manifestações estudantis de maio em Paris, a primavera de Praga e os protestos contra a guerra do Vietnã, nos Estados Unidos.

Toda esta situação de instabilidade e de contestação estará refletida nas canções tropicalistas. A marcha É Proibido Proibir, que Caetano Veloso defendeu no III Festival Internacional da Canção, em 1968, e que o levou a ser vaiado, execrado em público e desclassificado do Festival, teve seu título inspirado numa foto publicada na revista Manchete de uma pichação feita por estudantes em um muro de Paris: défense d’interdire. A cidade representada nesta canção é uma cidade em convulsão pelas manifestações populares: “os automóveis ardem em chamas / derrubar as prateleiras / as estantes, as estátuas, as vidraças / louças, livros, sim.”14

As relações diretas entre o movimento estudantil de maio de 1968 em Paris, suas repercussões no Brasil e o imaginário tropicalista não se resumem apenas a esta canção de Caetano. Defendida por Gilberto Gil no mesmo Festival, Questão de Ordem já falava do desaparecimento de militantes, de comícios e de outras situações típicas daquele momento político: “se eu ficar em casa / fico preparando / palavras de ordem / para os

14 VELOSO, Caetano. É Proibido Proibir. In: VELOSO, Caetano; MUTANTES. Compacto Ao Vivo Caetano e Mutantes (Festival). [S.l.]: Polygram, 1968 5 companheiros / que esperam nas ruas / pelo mundo inteiro”; “se eu sair agora / pode haver demora / demora tão grande / que eu nunca mais volte”. 15

O clima de uma cidade tensa, sitiada pelos militares, fica claro em pelo menos duas canções do disco-manifesto do movimento tropicalista, intitulado Tropicália ou Panis et Circensis, também lançado em 1968. O bolero Lindonéia, de Caetano e Gil, fala de “cachorros mortos nas ruas / policiais vigiando”16; o ritmo do bolero e a delicadeza da voz de Nara Leão contrastam fortemente com a força da letra, onde as referências à ditadura são mais do que claras. Enquanto Seu Lobo Não Vem, apenas de Caetano e incluída no mesmo disco, também reflete a situação política. Nela, mais uma vez referências ao universo militar – botas, bombas, bandeiras – se misturam a outras imagens antagônicas, de alegria e tranqüilidade – flores e o carnaval carioca, com o desfile da Mangueira na avenida Presidente Vargas: “vamos passear na floresta escondida, meu amor / vamos passear na avenida / Vamos passear nas veredas, no alto, meu amor / há uma cordilheira sob o asfalto // A Estação Primeira de Mangueira passa em ruas largas / Passa por debaixo da avenida Presidente Vargas”; “Vamos desfilar pela rua onde Mangueira passou / vamos por debaixo das ruas // Debaixo das bombas, das bandeiras, debaixo das botas / debaixo das rosas, dos jardins, debaixo da lama // Debaixo da cama.”17

O mais importante a ser lembrado neste período de instabilidade política e de controle militar, segundo Caetano e Gil, é que “é preciso estar atento e forte” “pra este sol, para esta escuridão”, pois afinal “tudo é perigoso”: “atenção para as janelas no alto / atenção ao pisar o asfalto, o mangue / atenção para o sangue sobre o chão.”18 Contudo, apesar de toda a tensão, ainda há um otimismo explícito: “tudo é divino, maravilhoso.” Como canta , a musa do movimento, em Mamãe Coragem: “eu por aqui vou indo muito bem / de vez em quando brinco carnaval / e vou vivendo assim: felicidade / na cidade que eu plantei pra mim / e que não tem mais fim / Não tem mais fim / Não tem mais fim.”19 A mesma situação de otimismo transparece em Baby, cantada também por Gal Costa, que chega a destoar das demais canções pelo romantismo saudosista e pelo lirismo –

15 GIL, Gilberto. Questão de Ordem. In: _____. Compacto Simples. [S.l.]: Polygram, 1968. 16 GIL, Gilberto; VELOSO, Caetano. Lindonéia. In: Tropicália ou Panis et Circensis. [S.l.]: Polygram, 1968. 17 VELOSO, Caetano. Enquanto Seu Lobo Não Vem. In: Tropicália ou Panis et Circensis. [S.l.]: Polygram, 1968. 18 GIL, Gilberto; VELOSO, Caetano. Divino Maravilhoso. In: COSTA, Gal. Gal Costa. [S.l.]: Polygram, 1969. 19 VELOSO, Caetano; TORQUATO NETO. Mamãe Coragem. In: Tropicália ou Panis et Circensis. Polygram, 1968. 6 apesar de conter uma certa tensão nas entrelinhas: “não sei, comigo vai tudo azul / contigo vai tudo em paz / vivemos na melhor cidade / da América do Sul.”20 O oposto absoluto de Baby, pela morbidez e surrealismo da letra, será a música-título do disco, Panis et Circensis, outra parceria de Gil e Caetano, só que desta vez executada pelo Mutantes: “mandei fazer / de puro aço luminoso um punhal / para matar o meu amor e matei / às cinco horas na avenida Central / mas as pessoas da sala de jantar / são ocupadas em nascer e morrer.”21

A cidade – quase sempre o Rio de Janeiro – percebida pelos tropicalistas é precursora de uma visão pós-moderna: é a cidade vista como cenário e da aceitação da invasão do espaço urbano pela propaganda. Longe de considerar este aspecto negativo, Caetano Veloso, em Superbacana, usa como cenário a mesma Copacabana já cantada por tantos outros antes, como Dorival Caymmi, João de Barro e Ronaldo Bôscoli. Porém a Copacabana de Caetano é fragmentada e nela o mundo todo está representado: “estilhaços sobre Copacabana / o mundo em Copacabana / tudo em Copacabana”; “o mundo explode longe, muito longe / o sol responde, o tempo esconde / e o vento espalha e as migalhas / caem todas sobre Copacabana”. É a propaganda que domina o espaço urbano – “Superbacana, super-homem, superflit, supervinc, superist”; há ainda a referência aos desenhos animados e às histórias em quadrinhos: “a moeda número um do Tio Patinhas não é minha / um batalhão de cowboys / barra a entrada da legião de super-heróis / e eu superbacana” e “me engana, esconde o superamendoim / e o espinafre biotônico”22, que por sua vez nos remetem às publicações do grupo de arquitetos britânico Archigram e suas propostas iconoclastas e visionárias que surgiram cerca de quatro anos antes e que, em 1968, ainda eram produzidas sob a forma de quadrinhos e grafismos com super-heróis, permeados por uma ingenuidade pop tipicamente inglesa.

Outra canção do mesmo disco é Paisagem Útil, uma resposta à jobiniana Inútil Paisagem; aqui a cidade apresentada pode ser considerada quase um paradigma da urbe pós-moderna, por unir uma compreensão das qualidades locais do Rio de Janeiro com uma visão cosmopolita da cidade invadida pela publicidade – “no alto do céu uma lua / oval, vermelha e azul / no alto do céu do Rio / uma lua oval da Esso” ou “olhos abertos em vento / sobre o espaço do Aterro / sobre o espaço sobre o mar / o mar vai longe do Flamengo”. Aqui, o novo e o antigo, natureza e construção se misturam – “frio palmeiral

20 VELOSO, Caetano. Baby. In: Ibid.. 21 GIL, Gilberto; VELOSO, Caetano. Panis et Circensis. In: Ibid.. 22 VELOSO, Caetano. Superbacana. In: _____. Caetano Veloso. Polygram, 1968. 7 de cimento” – num cenário com fortes tintas surrealistas – “o céu vai longe e suspenso / em mastros firmes e lentos”; “os automóveis parecem voar”.23

A apologia à propaganda no cenário urbano, que Caetano propõe ao transformar o luminoso da Esso em lua, seria referendada por Robert Venturi, Steven Izenour e Denise Scott Brown, em Learning from Las Vegas, de 1972:

[...] são os sinais e os anúncios da estrada, com suas formas escultóricas ou suas silhuetas pictóricas, com suas posições específicas no espaço, seus contornos inclinados e seus significados gráficos, que identificam e unificam a megatextura. Estabelecem conexões verbais e simbólicas através do espaço, comunicando complexos significados através de centenas de associações em alguns segundos e desde longe. O símbolo domina o espaço. A arquitetura não é suficiente. E como as relações espaciais se estabelecem mais com os símbolos do que com as formas, a arquitetura desta paisagem se converte em símbolo no espaço mais do que em forma no espaço. A arquitetura define muito poucas coisas: o grande anúncio e o pequeno edifício são as regras da estrada 66.

O rótulo é mais importante que a arquitetura. Isto se reflete no orçamento do proprietário. O rótulo, em primeiro plano, é um indecoroso alarde; o edifício, em segundo plano, uma modesta necessidade. O barato aqui é a arquitetura. Às vezes, o próprio edifício é um anúncio.24

2. SÃO PAULO

2.1. A São Paulo em transformação de Adoniran Barbosa

Sem sombra de dúvida, não é possível compreender como a música popular brasileira enfoca a cidade de São Paulo entre as décadas de 1950 e 1970 sem analisar a obra de Adoniran Barbosa (1910-1982). Praticamente um personagem criado pelo compositor paulista25 João Rubinato, Adoniran estará para sempre ligado aos bairros surgidos em São Paulo a partir da imigração italiana. O português cheio de erros e com forte influência italiana utilizado por Adoniran nas suas composições – sendo ele próprio filho de imigrantes da região do Vêneto – ajudou a consolidar, no imaginário coletivo, a imagem do paulistano típico em geral e do morador de bairros como o Brás e o Bexiga, em particular.

Acima de tudo, Adoniran acompanhará o processo de transformação da pequena São Paulo na maior metrópole do hemisfério sul. A obra de Adoniran está de tal forma conectada a esta São Paulo mutante que, para compreender este primeiro período de

23 _____. Paisagem Útil. In: Ibid.. 24 VENTURI, Robert; IZENOUR, Steven; SCOTT BROWN, Denise. Aprendiendo de Las Vegas: El simbolismo olvidado de la forma arquitectónica. Barcelona: Gustavo Gili, 2000. (1972). p. 35. 25 Incrivelmente, Adoniran não era paulistano: nasceu em Valinhos e só passou a viver em São Paulo em 1932, aos 22 anos de idade. 8 transformação da capital paulista, nos basta analisar a sua produção. Os acontecimentos urbanos servem como pano de fundo dos problemas cotidianos dos personagens de suas canções. A melhor definição da relação entre a cidade de São Paulo e suas transformações e as músicas de Adoniran Barbosa é, inquestionavelmente, aquela feita por Antônio Cândido na contracapa do LP Adoniran Barbosa, em 1975:

[...] São Paulo muda muito, e ninguém é capaz de dizer aonde irá. Mas a cidade que nossa geração conheceu (Adoniran é de 1910) foi a que se sobrepôs à velha cidadezinha caipira, entre 1900 e 1950; e que desde então vem cedendo lugar a uma outra, transformada em vasta aglomeração de gente vinda de toda parte. A nossa cidade, que substitui a São Paulo estudantil e provinciana, foi a dos mestres-de-obra italianos e portugueses, dos arquitetos de inspiração neo-clássica, floral e neo- colonial, em camadas sucessivas. São Paulo dos palacetes franco-libaneses do Ipiranga, das vilas uniformes do Brás, das casas meio francesas de Higienópolis, da salada da Avenida Paulista. São Paulo da 25 de Março dos sírios, da Caetano Pinto dos espanhóis, das rapaziadas do Brás, na qual se apurou um novo modo cantante de falar português, como língua geral na convergência dos dialetos peninsulares e do baixo -contínuo do vernáculo. Esta cidade que está acabando, que já acabou com a garoa, os bondes, o trem da Cantareira, o Triângulo, as cantinas do Bexiga, Adoniran não a deixará acabar, porque graças a ele ela ficará, misturada vivamente com a nova, mas, como o quarto do poeta, também ‘intacta, boiando no ar’.

[...] Lírico e sarcástico, malicioso e logo emocionado, [...] ele é a voz da Cidade.26

Adoniran foi, acima de tudo, um artista múltiplo: atuou do picadeiro do circo ao cinema, passando pela televisão e pelos programas de rádio, onde interpretou dezenas de personagens. Entretanto, apenas no ano de 1955 uma de suas músicas terá sucesso a ponto de torná-lo conhecido como músico e compositor: trata-se de Saudosa Maloca, em gravação dos Demônios da Garoa – também estreantes e iniciando uma parceria com o compositor que duraria até a sua morte:

Se o senhor não tá lembrado Mais, um dia Dá licença de contá Nóis nem pode se alembrá Que aqui onde agora está Veio os home c’as ferramenta Esse edifício arto O dono mandô derrubá Era uma casa véia Peguemos todas nossas cois as Um palacete assobradado E fumo pro meio da rua Foi aqui, seu moço Preciá a demolição Que eu, Mato Grosso e o Joca Que tristeza que nóis sentia Construímo a nossa maloca Cada táubua que caía

26 CÂNDIDO, Antônio. Texto da capa original do LP Adoniran Barbosa, 1975. In: BARBOSA, Adoniran. Adoniran Barbosa 2 em 1. [S.l.]: EMI, s.d. 9 Duía o coração [...]27

Este samba, composto em 1951, se aproveita, através do espaço onde se desenvolve a história dos três personagens, para retratar a demolição dos “palacetes assobradados”, então abandonados, arruinados e invadidos por aqueles que não tinham onde morar, e a sua substituição pelos arranha-céus, que viriam modificar completamente o skyline da cidade, criando uma nova e definitiva imagem de São Paulo.

Oito anos depois, o protagonista de Saudosa Maloca passa por uma outra situação, também vinculada às transformações pelas quais São Paulo vinha passando: a compra de um terreno onde se constrói irregularmente e, em seguida, “regulariza-se” a construção através do auxílio (talvez recompensado com propina) de um “amigo”, fiscal da prefeitura:

Eu arranjei o meu dinheiro Por onde andará Trabalhando o ano inteiro Joca e Mato Grosso Numa cerâmica Aqueles dois amigos Fabricando pote Que não quis me acompanhar E lá no alto da Mooca Andarão jogados Eu comprei um lindo lote Na avenida São João Dez de frente, dez de fundos Ou vendo o sol quadrado Construí minha maloca Na detenção Me disseram que sem planta Minha maloca Não se pode construir A mais linda que eu já vi Mas quem trabalha Hoje está legalizada Tudo pode conseguir Ninguém pode demolir João Saracura Minha maloca Que é fiscal da prefeitura A mais linda deste mundo Foi um grande amigo Ofereço aos vagabundos Arranjou tudo pra mim Que não têm onde dormir28

Com o “progresso” e a transformação urbana, cresce também, por parte dos citadinos, o medo da perda de valores e referências culturais, como nos alerta o mesmo Adoniran em Viaduto Santa Efigênia:

Venha ver Eu me lembro que uma vez você me disse Venha ver, Eugênia Que o dia que demolissem Como ficou bonito Morria tudo O viaduto Santa Efigênia De tristeza

27 BARBOSA, Adoniran. Saudosa Maloca. In: DEMÔNIOS DA GAROA. Demônios da Garoa 2 em 1. [S.l.]: EMI, 2003. 28 BARBOSA, Adoniran. Abrigo de Vagabundo. In: NUNES, Clara. Esperança. [S.l.]: EMI-Odeon, 1979. 10 Foi aqui que você nasceu Você usava luto Foi aqui que você cresceu Arrumava sua mudança Foi aqui que você conheceu E ia embora pr’o interior [...]29 O seu primeiro amor

2.2. A visão dos tropicalistas

Para Adoniran, o mesmo progresso que transforma a cidade, apagando da memória dos seus habitantes os espaços urbanos mais caros, é também indiferente às necessidades de sobrevivência das populações de baixa renda. É a provinciana cidade de São Paulo se transformando em uma metrópole imensa, contudo não menos conservadora; ao mesmo tempo, percebe-se a agressividade reprimida dos seus habitantes nos tratos do cotidiano; isto é o que nos mostra o tropicalista Tom Zé que, apesar de reconhecer todos os defeitos da cidade, não deixa de amá-la:

São São Paulo quanta dor [...] Salvai-nos por caridade São São Paulo meu amor Pecadoras invadiram São oito milhões de habitantes Todo o centro da cidade De todo canto e nação Armadas de ruge e batom Que se agridem cortesmente Dando vivas ao bom humor Correndo a todo vapor Num atentado contra o pudor E amando com todo ódio A família protegida Se odeiam com todo amor O palavrão reprimido São oito milhões de habitantes Um pregador que condena Aglomerada solidão Um festival por quinzena Por mil chaminés e carros [...] Em Brasília é veraneio Gaseados a prestação No Rio é banho de mar Porém com todo defeito O país todo de férias Te carrego no meu peito E aqui é só trabalhar30

Um outro tropicalista baiano, Caetano Veloso, comporia dez anos depois a sua declaração de amor a São Paulo, e em alguns momentos parece mesmo se justificar por não tê-la feito antes (“é que narciso acha feio o que não é espelho”). Caetano mistura referências aos poetas concretos, como Augusto e (“é que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi / da dura poesia concreta de tuas esquinas” e “eu vejo surgir teus poetas de Campos e espaços”), ao e ao filósofo-compositor (“tuas oficinas de florestas / teus deuses da chuva”) e a José Agripino de

29 BARBOSA, Adoniran; ALOCIN. Viaduto Santa Efigênia. In: BARBOSA, Adoniran. Adoniran e Convidados. [S.l.]: EMI-Odeon, 1980. 30 TOM ZÉ. São São Paulo. In: _____. Tom Zé. [S.l.]: Rozemblit, 1968. 11 Paula (“Panaméricas de Áfricas utópicas”) e Vinícius de Moraes (“túmulo do samba mais possível”); compara Sampa – esta mistura entre samba e São Paulo acabou se tornando um apelido quase oficial da cidade – a outras cidades brasileiras, com clara desvantagem para a primeira: “e quem vem de outro sonho feliz de cidade / aprende depressa a chamar-te de realidade / porque és o avesso do avesso do avesso do avesso”. Entre a declaração do início – “alguma coisa acontece no meu coração / que só quando cruza a Ipiranga e a avenida São João” – e o afago final – “e os Novos Baianos passeiam na tua garoa / e os Novos Baianos te podem curtir numa boa” – vêm as críticas sociais e econômicas a São Paulo: poluída, capitalista e com bolsões de miséria – “do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas / da força da grana que ergue e destrói coisas belas / da feia fumaça que sobe apagando as estrelas”.31

Entretanto, como o próprio Caetano já anunciara nesta canção, “a mais perfeita tradução” de São Paulo é . A obra desta ex-mutante e eterna tropicalista será quase toda dedicada à capital paulista e sempre a abordará como a metrópole cosmopolita brasileira por excelência, uma espécie de Nova Iorque tupiniquim, onde a superpopulação e os imensos edifícios com centenas de apartamentos geram uma (falsa?) sensação de anonimato dos seus habitantes: “prisioneiros de um arranha-céu / lá embaixo o mundo cruel / é tão chatinho”32; ou “do meu esconderijo no milésimo andar / espio noite e dia sua vida secreta / o frio de São Paulo me faz transpirar / sou vítima da sua janela indiscreta”. 33 Os espaços urbanos mais significativos de São Paulo são também, devido às suas multidões e ao anonimato delas decorrentes, palcos prováveis das situações mais surreais: “Na sexta-feira eu cruzava calmamente o Viaduto do Chá / por um segundo me bateu uma vontade doida de pular, e pulei / a Kombi que passava eu achatei / Meu corpo ensangüentado se esfacelou pelo asfalto / e eu saquei: dessa vez exagerei.”34

3. A QUESTÃO DAS FAVELAS

Provavelmente, uma das características mais significativas das grandes metrópoles brasileiras a partir da segunda metade do século XX são as favelas. Ainda que suas configurações espaciais variem de cidade para cidade – se instalando nas formações rochosas dos morros, no caso do Rio de Janeiro, enquanto em Salvador ocupa os grotões

31 VELOSO, Caetano. Sampa. In: _____. Muito (Dentro da Estrela Azulada). [S.l.]: Polygram, 1978. 32 LEE, Rita; CARVALHO, Roberto de. Vírus do Amor. In: LEE, Rita. Rita e Roberto. [S.l]: Som Livre, 1985. 33 _____. Vítima. In: Ibid.. 34 _____. Glória F. In: Ibid.. 12 insalubres e as encostas íngremes –, elas têm em comum o fato de se desenvolverem basicamente em dois tipos de terrenos: aqueles, muitas vezes públicos, cuja ocupação não é indicada por questões de segurança ou esgotamento pluvial – o que gera constantemente nestes assentamentos problemas de enchentes, deslizamentos, etc.; e aqueles de propriedade privada, ainda não ocupados formalmente, por estarem voltados à especulação imobiliária – são terrenos que estão aguardando valorização e, quando finalmente for, em termos econômicos, interessante ocupá-lo formalmente, seus proprietários tratarão de expulsar os invasores da gleba. Ambas as situações serão abordadas em uma série de canções nas mais diversas cidades.

O processo da formação das favelas é de tal forma significativo que foi tema de um famoso samba em 1966, Favela, de autoria do compositor mangueirense Padeirinho:

Numa vasta extensão E assim a região Onde não há plantação Sofre modificação Nem ninguém morando lá Fica sendo chamada de “nova aquarela” Cada um pobre que passa por ali É aí que o lugar Só pensa em construir seu lar Então passa a se chamar E quando o primeiro começa Favela 35 Os outros, depressa, procuram marcar Seu pedacinho de terra pra morar

3.1. A visão romantizada das favelas cariocas

Como já vimos, as Escolas de Samba cariocas sempre estiveram estreitamente ligadas às favelas nas quais surgiram. Os compositores vinculados a estas escolas se orgulhavam da sua origem e, de uma maneira extremamente romântica, apresentavam os morros cariocas quase como paraísos terrestres. Apresentamos aqui apenas alguns exemplos – de um universo existente interminável – de sambas que apresentam o morro ou a favela dessa forma idealizada:

Lá em Mangueira (1943) A Voz do Morro (1955) Lá em Mangueira Eu sou o samba Aprendi a sapatear A voz do morro sou eu mesmo , sim senhor Lá em Mangueira Quero mostrar ao mundo que tenho valor É que o samba tem seu lugar Eu sou o rei dos terreiros Foi lá no morro Eu sou o samba

35 PADEIRINHO; PESSANHA, Jorge. Favela. In: LEÃO, Nara. Manhã de Liberdade. [S.l.]: Polygram, 1966. 13 Um luar e um barracão Sou natural daqui do Rio de Janeiro Lá eu gostei de alguém Sou eu quem leva a alegria Que me tratou bem Para milhões de corações brasileiros38 E eu dei meu coração Exaltação à Mangueira (1956) No morro a gente Mangueira, teu cenário é uma beleza Leva a vida que quer Que a natureza criou No morro a gente O morro com seus barracões de zinco Gosta de uma mulher Quando amanhece, que esplendor! [...]39 E quando a gente Sei Lá, Mangueira (1968) Deixa o morro e vai embora Vista assim do alto Quase sempre chora Mais parece um céu no chão Chora, chora 36 Sei lá Ave Maria no Morro (1942) Em Mangueira a poesia Barracão de Zinco Feito um mar se alastrou E a beleza do lugar Sem telhado, sem pintura Pra se entender Lá no morro barracão é bangalô Tem que se achar Lá não existe felicidade de arranha-céu Que a vida não é só isso que se vê É um pouco mais Pois quem mora lá no morro Que os olhos não conseguem perceber Já vive pertinho do céu E as mãos não ousam tocar Tem alvorada, tem passarada, alvorecer E os pés recusam pisar Sei lá, não sei Sinfonia de pardais [...] A Mangueira é tão grande 37 Anunciando o anoitecer [...] Que nem cabe inspiração40

Da mesma forma, a relação da violência e da criminalidade com os morros cariocas existe desde os primeiros sambas, ainda que também de maneira romantizada. Embora o típico malandro carioca, com terno de linho branco e sapato bico fino de duas cores, de “lenço no pescoço e navalha no bolso”, seja característico da Lapa e arredores, os morros também tiveram seus malandros temidos e respeitados, que possuíam tamanho poder local a ponto da polícia real muitas vezes não se arriscar a subir o morro ou, mesmo que o

36 MARTINS, Herivelto; PRAZERES, Heitor dos. Lá em Mangueira. In: MARTINS, Herivelto. Carnaval de Rua. [S.l.]: Mocambo, 1957. 37 MARTINS, Herivelto. Ave Maria no Morro. In: JOÃO GILBERTO. João. [S.l.]: Polygram, 1991. 38 ZÉ KETI. A Voz do Morro. In: ZÉ RENATO. Natural do Rio de Janeiro: sobre os sambas de Zé Kéti. [S.l.]: MP,B, 1996. 39 COSTA, Aloísio Augusto da; SILVA, Enéas Brittes da. Exaltação à Mangueira. In: CONJUNTO A VOZ DO MORRO. Roda de Samba Vol. 3. [S.l.]: RGE, 1967. 40 ; CARVALHO, Hermínio Bello de. Sei Lá, Mangueira. In: No Tom da Mangueira. Rio de Janeiro: SACI, 1992. 14 ousasse fazer, não conseguisse obter da população informações sobre os crimes ali ocorridos:

Saudosa Mangueira Malvadeza Durão Tenho saudades da Mangueira Mais um malandro fechou o paletó Daquele tempo em que eu batucava por lá Eu tive dó, eu tive dó [...] Tenho saudade do terreiro da Escola Morreu Malvadeza Durão Eu sou do tempo do Valente, mas muito considerado [...] Velha Guarda, o que é que há? O morro estava em festa quando alguém caiu O que é que há? Com a mão no coração sorriu Eu sou do tempo em que o malandro não descia Morreu Malvadeza Durão Mas a polícia no morro também não subia41 E o criminoso ninguém viu42

Estes compositores, provenientes do morro, reconhecem na “bandidagem” local seus heróis – até o ponto de autores não diretamente vinculados a favelas ou Escolas de Samba apresentaram esta mesma visão idealizada dos malandros dos morros cariocas. No caso de Charles, Anjo 45, de , o personagem-título da canção é apresentado como “protetor dos fracos e dos oprimidos / Robin Hood dos morros, rei da malandragem / um homem de verdade, com muita coragem”. Após “marcar bobeira” e “tirar férias forçadas numa colônia penal”, Charles está voltando ao morro e, para celebrar o seu retorno, “vai haver batucada / missa em ação de graças / whisky com feijoada e outras milongas mais.”43

3.2. Uma visão mais crítica das favelas a partir dos anos 1960

Apenas a partir da década de 1960, os compositores passarão a abordar mais criticamente as condições de vida nas favelas – e, surpreendentemente, um dos primeiros autores de projeção a fazê-lo não será um carioca, mas o paulista Adoniran Barbosa, com Despejo na Favela (1969):

Quando o oficial de justiça chegou Não tem nada não, seu doutor Lá na favela Amanhã mesmo vou deixar meu barracão E contra seu desejo [...] Pra mim não tem problema Entregou pra seu Narciso Em qualquer canto eu me arrume Um aviso, uma ordem de despejo De qualquer jeito eu me ajeito Assinada “Seu Doutor” Depois, o que eu tenho é tão pouco

41 MARTINS, Herivelto. Saudosa Mangueira. In: _____. Carnaval de Rua. [S.l.]: Mocambo, 1957. 42 ZÉ KETI. Malvadeza Durão. In: ZÉ RENATO. Natural do Rio de Janeiro: sobre os sambas de Zé Kéti. [S.l.]: MP,B, 1996. 43 BEN, Jorge. Charles, Anjo 45. In: _____. Jorge Ben. [S.l.]: Polygram, 1969. 15 Assim dizia a petição: Minha mudança é tão pequena ”Dentro de dez dias quero a favela vazia Que cabe no bolso de trás E os barracos todos no chão” Mas essa gente aí É uma ordem superior Como é que faz? Ô, ô, ô, ô, meu senhor [...]44

Seja pela possibilidade de despejo, como no caso de “Seu Narciso” acima, seja pelas enxurradas e deslizamentos, como no exemplo de Agüenta a Mão, João (1965), Adoniran irá denunciar como um morador da favela pode, de um momento para o outro, perder tudo o que possui:

Não reclama Agüenta a mão, João Contra o temporal Que amanhã tu levanta um barracão muito melhor Que derrubou seu barracão Com o Cebide, coitado Não reclama Não te contei? Agüenta a mão, João Tinha muita coisa mais no barracão Com o Cebide aconteceu coisa pior A enxurrada levou seus tamancos e um lampião Não reclama E um par de meias que era de muita estimação Pois a chuva só levou a sua cama O Cebide ‘tá que ‘tá dando dó na gente Não reclama Anda por aí com uma mão atrás e outra na frente45

No mesmo período, no Rio de Janeiro, alguns compositores tradicionalmente vinculados às Escolas de Samba dos morros, como Zé Keti em Opinião (1964), ainda que admitissem as dificuldades da vida nas favelas, seguem defendendo-a de maneira idealizada:

Podem me prender, podem me bater E ponho na sopa e deixa andar Podem, até deixar-me sem comer Fale de mim quem quiser falar Que eu não mudo de opinião Aqui eu não pago aluguel Daqui do morro eu não saio, não Se eu morrer amanhã, seu doutor Se não tem água eu furo um poço Estou pertinho do céu46 Se não tem carne eu compro um osso

Por outro lado, a Bossa Nova, tão fortemente vinculada à Zona Sul e cujas canções eram compostas por jovens de classe média de Copacabana e Ipanema, também nos anos 1960 passa a conciliar esta visão romantizada dos morros com uma crítica à situação de

44 BARBOSA, Adoniran. Despejo na Favela. In: _____. Adoniran e Convidados. [S.l.]: EMI-Odeon, 1980. 45 BARBOSA, Adoniran; CORDOVIL, Hervê. Agüenta a Mão, João. In: BARBOSA, Adoniran. Adoniran e Convidados. [S.l.]: EMI-Odeon, 1980. 46 ZÉ KETI. Opinião. In: LEÃO, Nara. Opinião de Nara. [S.l.]: Polygram, 1964. 16 abandono das favelas, como se pode perceber em O Morro Não Tem Vez (conhecida no exterior como Favela): “O morro não tem vez / e o que ele fez já foi demais / mas olhem bem vocês / quando derem vez ao morro / toda a cidade vai cantar // Morro pede passagem / morro quer se mostrar / abram alas pro morro / tamborim vai falar.”47 E é , um bossanovista politizado – ao contrário da maior parte dos colegas da Zona Sul –, quem defenderá que “o morro existe, mas pede pra se acabar”, pois “tristeza é só o que se tem pra contar”; segundo o autor “o morro ama / um amor aflito / amor bonito / que pede outra história.”48

As críticas mais contundentes com relação ao que representam as favelas nas metrópoles brasileiras, entretanto, só aparecerão de fato nos anos 1980, primeiramente com os expoentes do chamado Brazilian Rock. Para Lobão, em Revanche, “a favela é a nova senzala”49; já para os Paralamas do Sucesso a cidade formal, com relação às favelas, “lhes nega oportunidades / mostra a face dura do mal”:

Todo dia Alagados, Trenchtown, Favela da Maré O sol da manhã vem e lhes desafia A esperança não vem do mar Traz do sonho pro mundo quem já não queria Nem das antenas de TV Palafitas, trapiches, farrapos A arte de viver da fé Filhos da mesma agonia Só não se sabe fé em quê E a cidade A arte de viver da fé Que tem braços abertos num cartão postal Só não se sabe fé em quê50 Com os punhos fechados da vida real Lhes nega oportunidades Mostra a face dura do mal

3.3. A cidade dividida pelo crime organizado: o caso do Rio de Janeiro

O controle cada vez mais amplo do tráfico organizado de drogas e de armas sobre as favelas, somado às sempre maiores desigualdades sociais do país, transforma os morros cariocas crescentemente em territórios autônomos do restante da cidade, onde o que vale são outras leis e há, de fato, poderes paralelos. O Rio de Janeiro passa a ser visto como uma cidade fragmentada, à beira de uma guerra civil; nesta cidade-partida, onde “cada

47 JOBIM, Tom; MORAES; Vinícius de. O Morro Não Tem Vez. In: JOBIM, Antônio Carlos. The Composer of Plays. [S.l.]: Verve, 1963. 48 LYRA, Carlos; GUARNIERI, Gianfrancesco. O Morro (Feio Não É Bonito). In: LEÃO, Nara. Nara. [S.l.]: Elenco, 1964. 49 LOBÃO; VILHENA, Bernardo. Revanche. In: LOBÃO. O Rock Errou. [S.l.]: RCA-Victor, 1986. 50 BARONE, João; RIBEIRO, Bi; VIANNA, Herbert. Alagados. In: PARALAMAS DO SUCESSO. Selvagem?. [S.l.]: EMI-Odeon, 1986. 17 ribanceira é uma nação”, é iminente a chegada da “noite da fogueira desvairada”, como nos alerta o carioca Chico Buarque: Rio de ladeiras São Sebastião crivado Civilização encruzilhada Nublai minha visão Cada ribanceira é uma nação Na noite da grande À sua maneira, com ladrão, Fogueira desvairada Lavadeiras, honra, tradição Quero ver a Mangueira Fronteiras, munição pesada Derradeira estação Quero ouvir sua batucada, ai, ai51

É a mesma visão do Rio de Janeiro – a “grande guerra entre o morro e a cidade” – que apresentará, três anos depois, o pernambucano Alceu Valença: Um dia eu tive um sonho O pão e circo e o poder da maioria Que havia começado a grande guerra Um país em harmonia Entre o morro e a cidade Com seu povo alimentado E o meu amigo Melodia [...] Era o Comandante-em-Chefe Alguém falava, eu entendia Da primeira bateria Nós precisamos conviver em harmonia Lá do morro de São Carlos [...] Ele falava, eu entendia Pantera Negra, FM Rebeldia Você precisa escutar a rebeldia 52 Transmitindo da Rocinha Primeiro comunicado

Outros autores, como os cariocas Paulo César Pinheiro e Wilson das Neves, alertam para a “guerra civil” que haverá n’O Dia em que o Morro Descer e Não For Carnaval:

O dia em que o morro descer e não for carnaval O povo virá de cortiço, alagado e favela Ninguém vai ficar pra assistir o desfile final Mostrando a miséria sobre a passarela Na entrada a rajada de fogos, pra quem nunca viu Sem a fantasia que sai no jornal Vai ser de escopeta, metralha, granada e fuzil Vai ser uma única escola, uma só bateria (É a guerra civil) Quem vai ser jurado? Ninguém gostaria O dia em que o morro descer e não for carnaval Que desfile assim não vai ter nada igual Não vai nem dar tempo de ter o ensaio geral Não tem órgão oficial, nem governo, nem liga E cada uma ala da escola será uma quadrilha Nem autoridade que compre essa briga A evolução já vai ser de guerrilha Ninguém sabe a força desse pessoal Que a alegoria é u m tremendo arsenal Melhor é poder devolver pra esse povo a alegria O tema do enredo vai ser a Cidade Partida Senão todo mundo vai sambar no dia No dia em que o couro comer na avenida Em que o morro descer e não for carnaval53

51 BUARQUE, Chico. Estação Derradeira. In: _____. Francisco. [S.l.]: RCA -Victor, 1987. 52 VALENÇA, Alceu. FM Rebeldia. In: _____. Andar Andar. EMI-Odeon, 1990. 18 Se o morro descer e não for carnaval

No caso de Rio 40 Graus, os compositores definem o Rio de Janeiro como “purgatório da beleza e do caos”, “capital sangue quente do Brasil”, “do melhor e do pior do Brasil”, e “maravilha mutante”; cidade “com governos misturados, camuflados, paralelos / sorrateiros ocultando comandos”. Terminam por perguntar “quem é o dono desse beco? / quem é o dono dessa rua? / de quem é esse edifício? / de quem é esse lugar?”; afirmam e exigem: “é meu esse lugar / sou carioca, pô!”54

4. BIBLIOGRAFIA

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53 NEVES, Wilson das; PINHEIRO, Paulo César. O Dia em Que o Morro Descer e Não For Carnaval. In: NEVES, Wilson das. O Som Sagrado de Wilson das Neves. [S.I.]: CID, 1996. 54 FAWCETT, Fausto; ABREU, Fernanda; LAUFER. Rio 40 Graus. In: ABREU, Fernanda. SLA 2 – Be Sample. [S.l.]: EMI-Odeon, 1992. 19 MUGNAINI Jr, Ayrton. Adoniran: Dá Licença de Contar.... São Paulo: Editora 34, 2002. PINHEIRO, Eloísa Petti. Europa, França e Bahia: difusão e adaptação de modelos urbanos (Paris, Rio e Salvador). Salvador: EDUFBA, 2002. VELOSO, Caetano; FERRAZ, Eucanaã (org.). Caetano Veloso: letra só. São Paulo: Cia. das Letras, 2003. VENTURI, Robert; IZENOUR, Steven; SCOTT BROWN, Denise. Aprendiendo de Las Vegas: El simbolismo olvidado de la forma arquitectónica. Barcelona: Gustavo Gili, 2000.

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