Metrópoles Em Formação

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Metrópoles Em Formação METRÓPOLES EM FORMAÇÃO O crescimento e as transformações das cidades brasileiras através do cancioneiro popular Nivaldo Vieira de Andrade Junior1 INTRODUÇÃO A Música Popular produzida no Brasil no século XX possui um destaque que a maior parte das demais manifestações artísticas brasileiras não possui. O Brasil é um dos poucos países do mundo em que a música local é mais ouvida que aquela estrangeira. Além disso, a música popular brasileira conseguiu uma projeção no exterior comparável apenas às músicas populares produzidas em alguns poucos países, como Estados Unidos, Inglaterra e Cuba. Ao longo do último século, alguns compositores, cantores e músicos estiveram entre as personalidades brasileiras de maior destaque no exterior. De uma maneira geral, as nossas canções populares conseguem chegar a uma quantidade de pessoas bastante superior às que têm acesso à literatura brasileira, às nossas artes plásticas ou ao nosso cinema, por exemplo. Desta forma, o cancioneiro popular acaba tendo uma participação definitiva na formação do imaginário coletivo, seja no Brasil, seja no exterior. A música popular muitas vezes tem também importante papel no registro consciente das transformações pelas quais passa a cidade, antecipando conseqüências ou mesmo influenciando nestas modificações. Este registro é ainda mais significativo quando consideramos que a música popular brasileira, tal como a compreendemos hoje, começa a se consolidar como elemento cultural fundamental dentro do panorama nacional a partir da década de 1940, a chamada “Era de Ouro do Rádio”; este período coincide com a fase de maior crescimento daquelas que, desde o início do século XX, são as duas maiores cidades brasileiras: São Paulo e Rio de Janeiro. São Paulo, de nona maior capital brasileira em 1 PPGAU/FAUFBA. E-mail: [email protected] 1872, cresce até tornar-se, já em 1890, a quarta mais importante cidade do país; e em 1900 ultrapassa finalmente Salvador e Recife, tornando-se menor apenas do que a capital federal, Rio de Janeiro. Com o processo da industrialização acelerada e a transferência da capital nacional do Rio de Janeiro para Brasília, São Paulo torna-se, em 1960, a maior metrópole do Brasil. O objetivo deste trabalho é investigar como o cancioneiro popular brasileiro interpreta o espaço urbano destas duas metrópoles – e, desta forma, da metrópole brasileira em geral – a partir do segundo quartel do século XX, buscando entender especificamente como os diversos compositores percebem as sucessivas transformações na configuração espacial das principais aglomerações urbanas do Brasil. Para tanto, analisaremos em primeiro lugar a produção individualmente voltada a cada uma destas metrópoles no seu período de maior crescimento, que corresponde ao período que vai da consolidação do samba como “estilo musical” brasileiro por excelência durante o Estado Novo getulista (1937-54) até o surgimento e apogeu do movimento musical denominado Tropicália (1967-69). Este período inclui ainda a “era de ouro do rádio” e a aparição e ascensão da Bossa Nova, esta última a partir de 1958. Em seguida, analisaremos um problema comum a todas as grandes metrópoles brasileiras – e dos países em desenvolvimento de uma maneira geral: a questão das favelas, do seu surgimento até os dias de hoje. 1. RIO DE JANEIRO 1.1. O Centro do Rio e o “urbanismo demolidor” Em 1927, o Prefeito do Rio de Janeiro Prado Junior contrata o arquiteto-urbanista francês Alfred Agache para fazer um “estudo do plano de reordenação, expansão e embelezamento para a cidade do Rio de Janeiro.”2 O plano desenvolvido por Agache tem como objetivo “transformar o centro do Rio num centro governamental monumental”3 e para isso decide, entre outras coisas, pela demolição do morro da Favela 4. Em 1928, ao tomar conhecimento das intenções do planejador, o sambista Sinhô, então um dos 2 PINHEIRO, Eloísa Petti. Europa, França e Bahia: difusão e adaptação de modelos urbanos (Paris, Rio e Salvador). Salvador: EDUFBA, 2002. p. 167. 3 Ibid., p. 173. 4 Segundo HOUAISS (2001, p. 1315), a acepção habitação popular do termo favela “surge após a campanha de Canudos, quando os soldados, que ficaram instalados num morro daquela região, chamado da Favela, provavelmente por aí existir grande quantidade da planta favela, ao voltarem ao Rio de Janeiro, pediram licença ao Ministério da Guerra para se estabelecerem com suas famílias no alto do morro da Providência e passaram a chamá-lo morro da Favela [...]; o nome se generalizou para ‘conjunto de habitações populares’ ”. 1 compositores populares mais conhecidos do Rio de Janeiro, se indignou de tal forma que, além de tentar reverter tal idéia através de contatos com um ministro de Estado com o qual mantinha relações sociais, compôs um samba, A Favela Vai Abaixo, que se tornou muito conhecido na época: Minha cabocla, a Favela vai abaixo Porque lá o luar é diferente Ajunta os troço, vamo embora pro Bangú Não é como o luar que se vê desta Favela Buraco Quente, adeus pra sempre meu Buraco No Estácio, Querosene ou no Salgueiro Eu só te esqueço no buraco do Caju Meu mulato não te espero na janela Isto deve ser despeito dessa gente Vou morar na Cidade Nova Porque o samba não se passa para ela Pra voltar meu coração para o morro da Favela 5 Outro interessante exemplo de canção surgida para protestar contra demolições de espaços urbanos significativos na história do Rio de Janeiro é o samba Praça Onze, sucesso no carnaval de 1942. Este samba, de autoria do compositor Herivelto Martins e do ator Grande Otelo, trata da então iminente destruição da Praça Onze para a abertura da Avenida Presidente Vargas. A Praça Onze (de Junho, em homenagem à data da Batalha de Riachuelo na Guerra do Paraguai) era o local onde, na década de 1910, as baianas do morro da Saúde, em cujas casas surgiu o samba, se encontravam com os ex-escravos radicados no morro do Estácio de Sá, onde surgiria em 1929 a primeira escola de samba, chamada Deixa Falar. Os desfiles das escolas passariam então a acontecer na própria Praça Onze, e em 1930 já eram seis escolas no total. Os autores do samba temiam pelo desaparecimento das escolas de samba com a destruição da Praça – teoria que, como sabemos, se revelaria infundada: Vão acabar com a Praça Onze Porque a Escola de Samba não sai Adeus, Não vai haver mais Escola de Samba, não vai minha Praça Onze, adeus Chora o tamborim Já sabemos que vais desaparecer Chora o morro inteiro Leva contigo a nossa recordação Favela, Salgueiro Mas ficarás eternamente em nosso coração Mangueira, Estação Primeira E algum dia nova praça nós teremos Guardai os vossos pandeiros, guardai E o teu passado cantaremos6 1.2. A expansão para a Zona Sul 5 SINHÔ. A Favela Vai Abaixo. In: LIRA CARIOCA et al.. É Sim, Sinhô. Kuarup, 1999. 6 MARTINS, Herivelto; GRANDE OTELO. Praça Onze. In: MARTINS, Herivelto. Que Rei Sou Eu?. [S.l.]: Atração/FUNARTE, 1989. 2 A cidade cresce, se amplia, e nos anos seguintes o protagonismo nas canções passará da cidade central para os bairros da Zona Sul carioca, para onde as classes mais abastadas se transferiam, em particular Copacabana, retratada nesta canção homônima de 1944 (gravada pela primeira vez em 1946): Existem praias tão lindas, cheias de luz E à tardinha o sol poente Nenhuma tem o encanto que tu possuis Deixa sempre uma saudade na gente Tuas areias, teu céu tão lindo Copacabana, o mar eterno cantor Tuas sereias sempre sorrindo Ao te beijar ficou perdido de amor Copacabana, princesinha do mar E hoje vive a sussurrar: Pelas manhãs, tu és a vida a cantar Só a ti, Copacabana, eu hei de amar7 Até mesmo o baianíssimo Dorival Caymmi se encantará por Copacabana e comporá uma canção em sua homenagem (Sábado em Copacabana, de 1952), inclusive registrando como parceiro o playboy Carlos Guinle, que em troca lhe introduzia na nova sociedade carioca, instalada no bairro: “Um bom lugar, pra se encontrar, Copacabana / Pra passear, à beira-mar, Copacabana / Depois um bar, à meia-luz, Copacabana / Eu esperei por essa noite uma semana”. A Copacabana quase suburbana de João de Barro e Alberto Ribeiro, na canção de Caymmi de oito anos depois, já está se transformando no centro da boêmia carioca, ainda que mantenha algumas características de um bairro tranqüilo, à beira-mar. Em 1958, surge a Bossa Nova e, com ela, o bairro de Ipanema substituirá Copacabana como protagonista das canções. Tom Jobim, o principal nome da Bossa Nova junto com João Gilberto, após ter morado em Ipanema durante a infância, voltara a viver lá desde meados dos anos 1950, no famoso endereço da rua Nascimento e Silva, 107. Lá ele conheceu João Gilberto, e também compôs, em 1957, as canções de “Canção do Amor Demais”, histórico LP gravado pela já então famosa Elizeth Cardoso e considerado o marco inicial do movimento: o disco era exclusivamente dedicado à obra de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, e apresentava pela primeira vez uma gravação do violão revolucionário de João Gilberto8. Em 1962, Jobim e Moraes compuseram aquela que se tornaria, a partir de 1964, a música brasileira mais conhecida no exterior: Garota de Ipanema. A “moça do corpo dourado do sol de Ipanema”, num “doce balanço a caminho 7 BARRO, João de; RIBEIRO, Alberto. Copacabana. In: COSTA, Gal. Todas as Coisas e Eu. [S.l.]: Indie, 2003. 8 CASTRO, Ruy. Ela É Carioca: uma enciclopédia de Ipanema. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. pp. 25-34. 3 do mar”9, colocaria definitivamente o bairro de Ipanema – e a Zona Sul carioca de uma maneira geral – numa posição de destaque no imaginário coletivo universal: o Rio de Janeiro passa a ser o “Rio que mora no mar”, que “é sol, é sal, é sul”10 – a ensolarada Zona Sul passa a representar a própria cidade.
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