O Show E a Música De João Gilberto Pedro Duarte
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Viso · Cadernos de estética aplicada Revista eletrônica de estética ISSN 1981-4062 Nº 5, jul-dez/2008 http://www.revistaviso.com.br/ Melhor do que o silêncio: o show e a música de João Gilberto Pedro Duarte Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) Rio de Janeiro, Brasil RESUMO Melhor do que o silêncio: o show e a música de João Gilberto Este artigo foi escrito após o show de João Gilberto apresentado no dia 24 de agosto de 2008, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Narrando os acontecimentos do show, o artigo elabora sua interpretação sobre o procedimento artístico de João Gilberto. Sua abordagem, contudo, não é a da crítica musical técnica, mas, antes, a de certa crítica da cultura com viés filosófico. Palavras-chave: João Gilberto – diferença – repetição – silêncio – Brasil ABSTRACT Better than silence: João Gilberto's concert and music This article was written after the show presented by João Gilberto on August 24, 2008, at the Teatro Municipal of Rio de Janeiro. In discussing the show, the article describes an interpretation of João Gilberto’s artistic process. The approach, however, is not through a critique of musical technique, but rather through a criticism of culture with philosophical bias. Keywords: João Gilberto – difference – repetition – silence – Brazil DUARTE, P. “Melhor do que o silêncio: o show e a música de João Gilberto”. In: Viso: Cadernos de estética aplicada, v. II, n. 5 (jul-dez/2008), pp. 1-15. DOI: 10.22409/1981-4062/v5i/61 Aprovado: 27.10.2008. Publicado: 29.12.2008. © 2008 Pedro Duarte. Esse documento é distribuído nos termos da licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial 4.0 Internacional (CC-BY-NC), que permite, exceto para fins comerciais, copiar e redistribuir o material em qualquer formato ou meio, bem como remixá-lo, transformá-lo ou criar a partir dele, desde que seja dado o devido crédito e indicada a licença sob a qual ele foi originalmente publicado. Licença: http://creativecommons.org/licenses/by-nc/4.0/deed.pt_BR Accepted: 27.10.2008. Published: 29.12.2008. © 2008 Pedro Duarte. This document is distributed under the terms of a Creative Commons Attribution-NonCommercial 4.0 International license (CC-BY-NC) which allows, except for commercial purposes, to copy and redistribute the material in any medium or format and to remix, transform, and build upon the material, provided the original work is properly cited and states its license. License: http://creativecommons.org/licenses/by-nc/4.0/ Viso · Cadernos de estética aplicada n. 5 jul-dez/2008 , Canção do amor demais que ele dá a cada nota musical. Foi com essas palavras que Ruy 1 4 Sérgio Sant’Anna, “O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro”. é diferente. JG é um cara que se valoriza pelo silêncio, as pouquíssimas apresentações e os discos, muito selecionados. Quer dizer, ele se valoriza apresentações e os discos, muito selecionados. Quer dizer, Show de música, principalmente, eu tenho o maior desânimo de ir. Há filas Show de música, principalmente, eu tenho o maior desânimo de ir. em público, é um acontecimento que vem com muito peso. O mesmo peso demais, todos aqueles fãs uniformizados de classe média contente. E a maior parte dos shows é apenas um disco cantado ao vivo. O caso do João Gilberto também pelo que não faz, os shows que não dá. E quando se dispõe a cantar Melhorquedo oomúsica silêncio: show João·e de Pedro Gilberto a Duarte mudou tudo. Reorganizou o espaço, que agora tinhairradiavam pontodali, focal.dele, Pareciacomo que setodos linhas invisíveis – nossos olhares, na verdade – nos celulares e dos olhares, surgiu aquele homem de monge,terno devagare egravata, calmosóbrio, sobrequase um o palco. Foi assim que, já em sua primeira música, que implantava o silêncio. Era a sua música. Eramúsica. sua silêncio. a o que implantava No meio do suntuoso Municipal, do exagero das falas, das roupas e das fotos, dos aturdido zunido das pessoas conversando sem parar entre si – antescomo sede tornou apresentaçõesregra artísticas – calou. De súbito,altura, em certo clima Masreverencial. logo se mostrou que não era apenas a mitificação fez-se silêncio – ainda, àquela carregando o próprio violão, João Gilberto, em sua impecável discrição,tomou assem rédeasesforço, do que se passava, amansando o que estava ao seu redor. Todo o estardalhaço do entretenimento acontecera. Mas aconteceu. acontecera. entretenimento do estardalhaço Foi com a mesma delicadeza de sempre que, ao entrar no palco, passos lentos, habitual reclusão. Era tanta badalação antes e depois do show que, se não fosse pelo durante, talvez ninguém notasse que algo cuja essência passa incólume por todo este os eingressos nem os convidados que deixaram inúmeros daqueles que estavammuitos nas ditas filas semEm lugar. três horas, os cerca de mil e quinhentos ingressos à venda com contrastava sua João de figura Gilberto da reincidência a Nos jornais, esgotaram-se. homem”, não resta dúvida, pelo furor em torno dodefinitivamente. show Erade 2008,evento que raro,ela opois acolheu suas cercado defoi muita Não aspompa. faltaram filas de comprarpara Tudo horas escassas. apresentações tornam-se cada dia mais Eis que, cinqüenta anos depois, no dia 24 de agosto de 2008, João Gilberto entrava no palco do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Se a cidade, em 1958, lidava com “outro Tom Tom Jobim e, de resto, o encanto que tomaria, um ano 1958. distante de o Erajácariocas. a um, os músicos e os cidadãos violão nas faixas “Chega de saudade” e “Outra vez” do disco de Elizete Cardoso, João, finalmente, seria notado. Daí pra frente, veio a parceria com Janeiro, sem saber, estava lidandoJaneiro, com sem outro saber, homem”. Castro, ao contar a história da bossa nova, narrou o após a retornoprimeira e fracassada detentativa na cidade. DestaJoão vez, depois de Gilbertogravar o famoso ao Rio “Nada parecia ter mudado em João Gilberto, exceto a voz e o violão, mas o Rio de Viso · Cadernos de estética aplicada n. 5 jul-dez/2008 , 2 5 * Melhorquedo oomúsica silêncio: show João·e de Pedro Gilberto a Duarte estranheza. “João Gilberto é assim: fica sempre no limite entre o esquisito e o genial” escreveu um colunista após o Eleshow. tem razão. Mas, a origor, genial, por definição, Sua relação com a música é tão acostumados, desprovidasejam elas do mercado oudas do profissionalismo burocrático, que injunçõesprovocam menores a que estamos seja, pesa na balança da vida. Na sua figura envelhecida de 77 anos, aparece a história da persistência do homem na abertura da relação com o ser, na qual tudo se erro. o para deixa espaço faz que não máxima atenção, sua Daídesfaz. nasce e se gravidade é aquilo que faz pesar, João Gilberto não se recusa a ela. Pelo contrário. Ele se desenvolve nela. Ela é seu meio, seu modo de Suaestar. música, por mais leve que Dado o início do show, só restava acompanhá-lo escutando. Sua voz está porquemais trazgrave em si, no corpo e no espírito, a gravidade da própria vida. Se a força da seu violão e só o seu violão o compreende. o violão seu eo violão seu só violão. Dizendo assim, parece até que são três coisas, quando, na verdade, são uma só. É por isso que João Gilberto não pode ter acompanhamento. Pois só ele compreende Da dispersão à precisão. Somos colocados em outraporém voltagem,mais intensa.mais João baixaGilberto enos arrancaíntima, do turbilhão em quelança estávamosem esua tãonos famosa simplicidade: voz e violão. Nada mais. Só ele, sua voz, seu No show, esta mutação é eletricidade comoa que estamos umhabituados. Do exagero choqueao mínimo. Doàs excesso ao pouco. avessas, em que nos é tirada a Teatro Teatro Municipal às dimensões de uma casa, de uma pequena sala na silenciar ouvi-lo. para qual precisam então que milhares amigos, de alguns para baixo ele canta comentado que a bossa nova nasceu na zona sul do Rio média,em apartamentos da ouclasse seja, em intimismo. ambienteMas o impressionante é que, para além da empiria, a música de João reduz o doméstico, em rodas de amigos. Ela carrega este Já no com ovolume qual canta, que parece testar o limite para escuta, da ver quão baixo é possível ir e ainda ser ouvido, João Gilberto nos leva para sua terra. É muito tudo o que havia antes, na música brasileira e no lugar em que faz seu show, mas sem excluir aniquilar. ou dizer superar e conservar ao mesmo tempo, mas o faz negar sem,nada. João aparentemente,Gilberto fazprecisar esta torção do movimento dialético, pelo qual transforma É curioso como João Gilberto reproduz, no ambiente do show, o que fez com a história da música brasileira. Ele reorganiza tudo, absorve,desloca paratransforma, outro realocapatamar. Lembra e,o quecom Hegel isso, chamava de suprassumir, que quer havia mais tempo para a falta de tempo e nem espaço para focado, centrado. concentrado, a dispersão. Estava tudo ligassem até aquele homem. impunha.Sozinho, No ritmo porde suas detráscanções, era oda ritmo da aparentevida mesma quefragilidade, se refazia. eleNão se Viso · Cadernos de estética aplicada n. 5 jul-dez/2008 6 3 A Bahia tem um jeito A Que nenhuma terra tem Você já foi à Bahia, nêga? Você Não? Então vá! Melhorquedo oomúsica silêncio: show João·e de Pedro Gilberto a Duarte outro, ao invés de se excluírem. se de outro, invés ao compartilha da normalidade, nos forçando, com afeição, em outra direção. Este início do show apresentava, numa cápsula, a estrutura com a qualdiante: repetição e diferença, música e silêncio. Para João, os opostos se fazem um pelo teríamos que lidar dali em atenção, pois aqui é o reino das sutilezas nas quais eu, João, vivo –vida ese fazonde ema mim.