Briga de marido e mulher: Dalva e Herivelto cantam e o público ‘mete a colher’ – o rádio como ‘palco’ de performances sociais1

CUNHA, Adriana (mestre) 2 Universidade Federal de São João del-Rei/Minas Gerais

FONSECA, Mariane (mestre) 3 Universidade Federal de São João del-Rei/Minas Gerais

CARMO, Cláudio (professor doutor) 4 Universidade Federal de São João del-Rei/Minas Gerais

RESUMO Dalva de Oliveira e Herivelto Martins foram do céu ao inferno no final dos anos 40. Membros do Trio de Ouro, um dos mais importantes da década, os dois saboreavam, em público, o triunfo artístico; mas amargavam entre quatro paredes o insucesso amoroso. As duas esferas foram transpostas através do rádio, plataforma para a divulgação de composições que saltaram o mero pertencimento ao cancioneiro nacional (com dor, sofrimento, fossa e acusações de traição); e passaram a ser armas em um embate público de defesa de honra. O objetivo deste trabalho se sustenta exatamente nesse contexto, adotando como corpus as 14 canções que marcaram o duelo entre Dalva e Herivelto, se transformando em marco na história da mídia sonora brasileira. Nesse cenário, cada um dos envolvidos manifestou, entre desabafos cantados e ofensas, enunciados baseados em posturas sociais convertidas em sete categorias analisadas sob a ótica da Análise Crítica do Discurso, de Fairclough (2001). Todas sustentadas em fundamentação que cruza a noção de performances, de Gee (2008); e de papéis sociais, de Castells (1999); a contextualizações sobre rádio e música no século XX sob a ótica de autores que vão de Hupfer (2009) a Faour (2006).

Palavras-chave: história da mídia sonora; rádio; papéis sociais; Dalva de Oliveira; Herivelto Martins

Introdução “Em briga de marido e mulher não se mete a colher”, diz a máxima popular. “Seu mal é comentar o passado/Ninguém precisa saber/O que houve entre nós dois”, cantou Dalva de Oliveira em 1947. Ambos os discursos foram subvertidos por ela e Herivelto

1 Trabalho apresentado no GT de História da Mídia Sonora, integrante do 10º Encontro Nacional de História da Mídia, 2015. 2 Graduada em Comunicação Social, habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Mestre em Letras na linha de pesquisa de Discurso e Representação Social pela Universidade Federal de São João del-Rei. E-mail: [email protected] 3 Graduada em Comunicação Social, habilitação em Jornalismo, pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) em Arcos. Mestre em Letras na linha de pesquisa de Discurso e Representação Social pela Universidade Federal de São João del-Rei. E-mail: [email protected] 4 Professor e membro do Programa de Mestrado em Letras da Universidade Federal de São João del-Rei. Pós-doutor em Antropologia pela Universidade de São Paulo. Doutor em Estudos Linguísticos – subárea: Linguística Aplicada – pela Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: [email protected]

quando brigas deixaram de ser domésticas e passaram a ser batalhas musicadas em uma grande arena pública: o rádio. Este artigo se baseia em recortes desse contexto, adotando como corpus as 14 canções usadas como munição conjugal entre marido e mulher com ápice entre 1949 e 1951, conforme lista de Ribeiro e Duarte (2009). O foco analítico baseado na Análise Crítica do Discurso (ACD) de Fairclough (2001) incidiu sobre os papéis discursivos assumidos pelos dois protagonistas – ele enquanto compositor/emissor e ela enquanto intérprete/locutora de canções baseadas nas desventuras de um casamento fracassado entremeado, também, por escândalos pessoais. O objetivo deste trabalho, portanto, é verificar que representações foram construídas e assumidas nessa dinâmica partindo de conceitos balizados por Berger e Luckmann (1999), Schiffrin (2006), Castells (1999) e Gee (2008). A leitura das composições levou à categorização de sete papéis: Sofredor(a); Abandonado(a); Traído (a); Indecente; Oportunista; Culpado(a) e “Eu Superior”. Mas as questões do artigo não se encerraram aí. Elencadas essas funções sociais, ainda cabe perguntar quais delas foram incorporadas pelos agentes com maior contundência, com base no princípio de que escolhas discursivas não são aleatórias. Há ainda a contextualização do ambiente que publicizou essas performances sociais. Mais do que um veículo de transmissão, o rádio foi suporte da manifestação de modelos e posturas comportamentais a massas apaixonadas por entretenimento. Para isso conta-se com Horn (2003), Conde Aguiar (2007) e Hupfer (2009) além de Faour (2006) em enquadramento histórico da Música Popular Brasileira (MPB).

2. Dalva e Herivelto: do Trio de Ouro ao casamento de lama De acordo com Ribeiro e Duarte (2009), Vicentina Oliveira (Dalva desde 1934) e Herivelto Martins se encontraram pela primeira vez no em 1935, no Teatro Pátria. Conforme Conde Aguiar (2007), ela era voz promissora cujos dons foram desenvolvidos na boemia, em serestas ao lado do pai, e descobertos profissionalmente, ao acaso, em uma fábrica de chinelos. O patrão era proprietário de uma estação de rádio. E viu na “operária cantante” uma possibilidade de negócios. Já Martins encarnava o palhaço Zé Catinga desde a morte do companheiro na

Dupla Preto e Branco, Francisco Sena. O ofício havia aprendido também com o patriarca, Seu Félix. Segundo Albin (2000), ele era entusiasta cultural e chegou a fundar no interior do Rio de Janeiro uma trupe mambembe. Nesse cenário o menino Herivelto teria composto sua primeira canção, por volta dos oito anos. Foi a primeira entre as mais de 700 criações assinadas pelo sambista, que em 1936 encontrou em Nilo Chagas, um cantor negro da época, a chance de recomeçar o antigo projeto musical, desta vez incluindo Dalva5. Ali nasceu o Trio de Ouro, que só em 1942, segundo Schumaher (2000), foi convidado a integrar o quadro de artistas da Nacional, que detinha 70% da audiência de rádio e superava em mais de 12 milhões de cruzeiros o faturamento de suas quatro maiores concorrentes. Foi o auge para a consolidação pública do grupo, que começou e terminou sob a batuta de Herivelto após 50 anos de existência, quase cem discos e 200 músicas gravadas entre a década de 30 e o ano de 1992, quando o fundador do conjunto morreu. Depois de Dalva de Oliveira, os vocais femininos foram assumidos por Noemi Cavalcante, Lourdinha Bittencourt e Shirley Dom.

3. Brigas públicas Enquanto a crença popular é de que “roupa suja se lava em casa”, Dalva de Oliveira e Herivelto Martins transformaram a tensão do desquite em um duelo musical lucrativo através das canções Segredo (1947), Cabelos brancos (1949), Tudo acabado (1950), Que será? (1950), Caminho certo (1950), Errei, sim (1950), Teu exemplo (1950), Calúnia (1951), Consulta o teu travesseiro (1951), Não tem mais jeito (1951), Palhaço (1951), Fim de comédia (1951), A grande verdade (1951), Perdoar (1951), Poeira do chão (1952) e Bandeira branca (1972)6. Foram anos de ataques-revides em dinâmica alimentada pelas próprias gravadoras. Horn (et.al,.2003) assinalam que até fins dos anos 40 a comercialização de singles era feita através de discos 78 RPM, capazes de registrar apenas uma canção com quatro minutos em cada lado. À época também era comum, conforme Ribeiro e Duarte

5Com quem se casaria em 1938 e de quem se separaria em 1950 para viver com a aeromoça Lurdes Torelly, amante desde 1946. 6 Com letras integralmente disponíveis no link http://bit.ly/1JuRRsA

(2009), que cada artista lançasse um disco por semestre. Com o frenesi do “caso Dalva de Oliveira e Herivelto Martins”, as empresas fonográficas chegaram a conceder três lançamentos anuais para cada um. Nos discos de Dalva, canções incorporadas por ela, mas assinadas por nomes como J.Piedade e Oswaldo Martins. Nos do Trio de Ouro, composições de Herivelto cantadas por novas vocalistas. O estopim teria sido a música Tudo acabado, de 1950, uma narrativa pormenorizada do fim de uma relação e seus agouros, interpretada por Dalva. No entanto, Conde Aguiar (2007, p.62) assinala que composições anteriores também foram incorporadas à briga. Para muitos em Segredo, de 1947, Martins já prenunciava o fim da união. O mesmo foi considerado quanto a Cabelos Brancos, de 1949, quando o desquite dos artistas foi oficializado sob relatos de violência e traição de ambos os lados. O ápice da briga pública se deu exatamente entre esse ano e 1951 com alfinetadas musicais que começaram amenas (produzindo efeitos de sentido ainda muito atrelados ao pesar, à saudade, ao dissabor do relacionamento fracassado) e chegaram a acusações diretas de infidelidade, oportunismo artístico e até mesmo envolvimentos em orgias. A discussão musical não poupou amizades. Ataulfo Alves e Marino Pinto, que foram parceiros de Martins em anteriores ao desquite, se transformaram em autores de canções de Dalva. Em letras da época, o ex-marido da cantora insinuou envolvimentos amorosos entre ela e a dupla, presença frequente em jantares promovidos por Martins e preparados por Dalva após apresentações no tradicional Cassino da Urca. As biografias e os livros que mencionam a separação tumultuada divergem quanto à real trégua no duelo cantado. No entanto, o fim de 1950 é dado como o período em que as ofensas mútuas se tornaram espaçadas. Não significou, porém, a paz definitiva. Enquanto Dalva de Oliveira ascendia em carreira solo, Herivelto Martins via o prestígio do Trio de Ouro sumir. Embora celebrado como compositor no meio artístico, Martins não saboreava a mesma fama entre o público. Em comparação à ex-esposa, ele era homem de peso nos bastidores, nos arranjos e nos créditos nos discos. Dalva, por sua vez, não escrevia as próprias canções, mas ocupava a linha de frente dos palcos, era a encarnação e a imagem das músicas que gravava. A situação, alegam Ribeiro e Duarte (2009), Hupfer (2009) e Conde Aguiar (2007), foi estopim para nova explosão de fúria, desta vez em parceria com David Nasser,

em 22 artigos publicados no Diário da Noite em 19517 na forma de memórias e desabafos atacando a postura de ex-esposa principalmente como mulher (“a rainha do despudor”) e mãe (“que em presença da sogra, da cunhada e dos filhos, beijava na boca o ‘amante do dia’”). Nos anos 60, a carreira da cantora começou a ruir junto com a saúde dela, assumidamente viciada em álcool. Só voltou a público com Bandeira Branca pouco antes de morrer vítima de cirrose hepática em 1972. Na canção ela proclamava: “Bandeira branca, amor/Não posso mais/Pela saudade que me invade/Eu peço paz”.

4. O rádio: fenômeno comunicacional e arena pública Segundo Hupfer (2009), nas primeiras décadas do século XX o quadro de contratados pelas rádios nacionais se transformou em um catálogo de produtos simbólicos capazes de atrair a atenção da audiência e dar valor realmente comercial ao meio mais popular da época. As classes populares, aliás, já não eram tratadas pelos veículos de comunicação como às margens do mercado consumidor. Isso porque eram entusiastas dos programas de lazer – e não meramente culturais, comuns até os anos 30. Ao perceber esse fenômeno, empresas e estabelecimentos comerciais passaram a investir até 70% de verba publicitária no setor, que encontrou seu maior trunfo ao importar dos EUA a mania dos programas de calouros. Enquanto para os artistas luxo e glória estavam na profissionalização desses espetáculos e nos cachês; para o público esses valores estavam na proximidade com as estrelas e na possibilidade de sair do auditório com prêmios que iam desde carnes nobres a eletrodomésticos. Ameaçada, a ala conservadora da imprensa começou a atacar os shows. Hupfer (2009) lembra que nesse momento o termo “macacos de auditório” entrou em voga. Nada que abalasse o público ávido, também, pela dramaturgia radiodifundida. Segundo Calabre (2003), a pioneira dos dramalhões foi a Rádio Nacional, em 1941, com Em Busca da Felicidade. A história ficou no ar até 1943, sustentada por desventuras em série das personagens. Dalva de Oliveira e Herivelto Martins, portanto, pareciam sintetizar as paixões do público brasileiro. Grande atração nos shows de

7 Ano em que Dalva foi eleita Rainha do Rádio pela Associação Brasileira do setor.

calouros e no Cassino da Urca, o casal já atraía para si a devoção das plateias. Ao musicarem as alfinetadas pós-desquite, os dois se transformaram em personagens de dramas reais, em chance de escapismo no consolo voyeur de perceber que crises domésticas chegavam ao Olimpo do rádio nacional. Com a briga musical, a dupla entregou ao público uma “pseudonovela” com impasses, supostas traições e sofrimento.

5. De Amélia a Dalva: de resignação a mea culpa na música No mesmo “país tropical abençoado por Deus e bonito por natureza”, berço da Garota de Ipanema (1962), outro símbolo feminino se destaca na iconografia da MPB: Amélia (1941), musa de Mário Lago e Ataulfo Alves, modelo de resignação e subserviência que “às vezes passava fome ao meu lado/E achava bonito não ter o que comer”. Exatamente por não ter “a menor vaidade”, Amélia foi exaltada como “mulher de verdade” e se transformou em representante do idealismo doméstico. Segundo Faour (2006), tal postura foi frequente na música popular brasileira até os anos 50. Nessa época, mesmo com a ascensão das vozes femininas, 99% das composições eram assinadas por homens, tendência marcada na trajetória pública de Dalva. Dentro do Trio de Ouro e mesmo em carreira solo, todo seu repertório foi criado pela ala masculina. Segundo o mesmo autor, outra característica do cancioneiro nacional era a recorrência à fossa sentimental, à dor de cotovelo por amores mal resolvidos, não permitidos ou grandes traições protagonizadas na maioria das narrativas por mulheres, independentemente do gênero musical. Dividindo espaço com o forró nordestino, o bolero e o -canção também constituíam fábrica de composições dessa vertente. Herivelto Martins foi responsável direto pela explosão desse último ao apimentar o lirismo de suas composições com doses de sofrimento e raiva que, se não eram reais, eram vendidas como tal. Ao se separar de Dalva em 1949 e entrar em uma briga musical com ela, fez a MPB da época enveredar definitivamente pelo caminho da temática dos dissabores oscilando entre desgosto e dor de cotovelo. Do outro lado, Dalva seguia a constante de arrependimento, abandono, dependência, saudade e superação iniciada com Errei, sim, transformando-se na primeira mulher brasileira a se expor na MPB em primeira pessoa “de forma contundente, apesar

de a letra ter sido escrita por um homem, o mestre Astulfo Alves” (FAOUR, 2006, p.58). Na realidade, mesmo que porta-voz de criações masculinas, ela rompeu relações de gênero no que tange aos papéis sociais incorporados nas canções. Além de se assumir como mulher falha, a cantora encarnou o papel acusatório e debochado. Uma transformação amplificada pelo rádio. Tem-se aqui a brecha para a apresentação teórica dos conceitos que fundamentarão as análises deste artigo.

6. Do Homo sapiens ao Homo socius: as performances discursivas Berger e Luckmann (1999, p.63) defendem que “o Homo sapiens é sempre, na mesma medida, Homo socius”. Portanto, embora indivíduo biologicamente atrelado a uma espécie, ele se manifesta, se afirma e se transforma no meio social através de interações. Assim, assinala Schiffrin (2006), uma tarefa fundamental das trocas discursivas é fazer referência a algo no mundo de forma não apenas a exteriorizar sentidos pessoais em torno do objeto selecionado, mas permitir ao outro que o reconheça. Em outras palavras, as canções assinadas por Herivelto Martins e aquelas cantadas por Dalva de Oliveira são recortes textuais que abarcam tanto o repertório de argumentos condizentes a objetivos específicos quanto padrões discursivos históricos adequados a eles e traços identitários dos enunciadores em sociedade. Isso porque, de acordo com De Fina (et.al, 2006), as identidades não são meramente representadas discursivamente, mas estabelecidas e incorporadas através de meios linguísticos e não-linguísticos. Nesse sentido, segundo Castells (1999), identidades correspondem a fontes de significados e experiências que, com base em atributos culturais, constroem significados e atributos reconhecíveis. Os papéis, por sua vez, dizem respeito a normas estruturadas dentro de tecidos sociais, institucionais e organizacionais capazes de influenciar comportamentos. Em suma, “pode-se dizer que identidades organizam significados, enquanto papéis organizam funções” (Idem, p.22-23). E tudo isso ocorre no seio das trocas discursivas que são por natureza, segundo Gee (2008), performáticas, dependendo de fatores múltiplos: disposições históricas, sociais, culturais e econômicas; poderes; o papel incorporado pelo agente na enunciação. Assim, tanto Dalva quanto Herivelto lançaram mão de discursos e papéis sociais,

perspectivas e sentimentos para não só serem reconhecidos por seus públicos quanto para conquistarem a empatia de quem os ouvia em um espetáculo público de defesa de honra.

7. Metodologia de Pesquisa Para a análise do corpus proposto neste trabalho foi adotada a Análise Crítica do Discurso (ACD) sob a perspectiva de Fairclough (2001). Para ele o discurso é constituído por uma trindade em que condições sócio-históricas manifestadas em práticas sociais incidem sobre os processos de comunicação, criação, recepção e interpretação que formatam as práticas discursivas dentro de determinado cenário e, portanto, se encontram representadas dentro dos produtos comunicacionais compartilhados nesses espaços sociais. Isto é, nos textos em sua definição mais ampla. Para fins desta pesquisa a dimensão utilizada como ferramenta de análises será a prática social, que “(...) possibilita se perscrutar a existência de pontos de vista, formas de pensamento e crenças proeminentes, bem como lançar luz e trazer à tona tensões discursivas e conflitos sociais e culturais apontados no texto” (CARMO, 2012, p.64). Sustenta-se, portanto, a ideia de que:

O discurso contribui, em primeiro lugar, para a construção do que variavelmente é referido como 'identidades sociais' e 'posições de sujeito' para os ‘sujeitos’ sociais e os tipos de ‘eu’. (...) Segundo, o discurso contribui para construir as relações sociais entre as pessoas. E, terceiro, o discurso contribui para a construção de sistemas de conhecimento e crença. (FAIRCLOUGH, 2001, p.91-92)

Assim, busca-se a partir de agora elucidar que papéis ou posicionamentos de sujeito foram adotados por Dalva e Herivelto em meio ao embate radiofônico. Nas 14 canções foram verificadas sete categorias principais: Sofredor(a); Abandonado(a); Traído(a); Indecente; Oportunista; Culpado(a) – tanto como confissão pessoal quanto como julgamento do outro – e “Eu Superior” – este último considerando posicionamentos marcados por julgamentos, aconselhamentos ou provocações diretas inclusive a um terceiro interlocutor: o público. Observações descritivas com exemplos ligados a cada categoria são apresentadas abaixo. Em seguida, tem-se quadro no qual a incidência dos papéis é quantificada. A formatação deles se deu considerando o contexto completo de representação, sem recortes

técnicos limitados a orações ou versos, por exemplo.

8. Categorizações 8.1 Oportunista A delegação desse papel específico veio em canção interpretada por Dalva de Oliveira, Calúnia, escrita por Marino Pinto e Paulo Soledade. Aqui, o tom da representação do outro se dá no contexto discursivo e não em um apontamento direto de personalidade pelo locutor. Na canção, gravada no início de 1951, o posicionamento acusatório de oportunismo (“Quiseste ofuscar minha fama/E até jogar-me na lama”) também se reveste de superioridade (no caso artística) ao explicitar ironicamente as razões para tal comportamento: “Só porque eu vivo a brilhar”.

8.2 Culpado(a) O mea culpa acontece isoladamente em Segredo, gravada por Dalva ainda no Trio de Ouro. Aqui a condenação é ao matrimônio, assumindo as desventuras de uma identidade coletiva: “A felicidade para nós está morta/(...) Para o nosso mal não há remédio, coração”. O mesmo acontece em Tudo acabado, também na voz de Dalva: “Todo o egoísmo/Veio de nós dois/Destruímos hoje/O que podia ser depois”. Já a relação de condenação pessoal sucedida por um álibi – ou, em outras palavras, uma ação culpabilizadora do outro – desponta em Que será. No bolero, Dalva assume: “Eu errei”. A declaração, no entanto, vem acompanhada de uma ressalva: “Mas se ouvires me darás razão/Foi o ciúme que se debruçou/Sobre o meu coração”. O mesmo é ouvido em Errei, sim: “Errei, sim/Manchei o teu nome/Mas foste tu mesmo o culpado”. Martins adere a essa postura em Caminho Certo: “Eu deixei o meu caminho certo/E a culpada foi ela”. Curiosamente, em ambas as canções, a motivação para os deslizes seriam atos “indecentes” do parceiro.

8.3 O “Eu Superior” Essa representação surge em Cabelos Brancos, samba de 1949. Aqui, o enunciador pede a um terceiro elemento que não fale sobre a mulher que no passado o

machucou, além de evocar a própria experiência: “Os meus sorrisos francos/Refletem-se hoje em dia/Nos meus cabelos brancos”. Já em Segredo o enunciador censura a mulher: “Teu mal é comentar o passado/Ninguém precisa saber o que houve entre nós dois”. Há, ainda, o tom moralista: “Primeiro é preciso julgar/Pra depois condenar”. O mesmo recurso discursivo aparece na letra inteira de Teu exemplo. O destaque, porém, está no rebaixamento da ex-esposa perante um grupo social: “Mas a outras mulheres eu digo/Que o teu exemplo não siga”. Outra manobra discursiva recorre ao imperativo em Consulta o teu travesseiro, na qual um “eu” avaliador da situação conjugal condena o cônjuge enquanto sugere tristeza disfarçada – ao contrário da mulher que sucumbe à dor publicamente –, além de novo mea culpa: “Consulta o teu travesseiro e me diz/Se é possível haver mais uma vez conciliação/(...) Fiz tudo pra ninguém me ver sofrendo/Meus erros levei tempos escondendo”. Na voz de Dalva, ordens também são dadas em Palhaço – uma referência à antiga profissão do ex-marido: “Faça a plateia gargalhar/Um palhaço não deve chorar”. Em Errei, sim a reprimenda acusatória é direta: “Lembro-te agora/Que não é só casa e comida/Que prende por toda a vida/O coração de uma mulher”. O receptor se transforma no público, instantes depois, permitindo uma relação de intertextualidade com a passagem bíblica na qual Jesus Cristo interrompe um evento de apedrejamento, perdoa uma mulher adúltera e desafia os presentes a atacarem se forem puros. O aconselhamento, desta vez ao ex-companheiro, também é notado em Calúnia enquanto se reveste de superioridade: “Deixa a calúnia de lado/Que ela a mim não afeta”. Já em Poeira do chão ela se manifesta na humilhação do ex e na condescendência da mulher: “Hoje tu voltas chorando/Para implorar o meu perdão/O meu perdão nada custa”. Em composição de Martins partilhada com Raul Sampaio, houve o oposto – a negativa: “Perdoar/Eu não perdoo, não”.

8.4 Mentiroso(a) Uma das acusações partem de canção incorporada por Dalva, Calúnia: “Sim, mostraste ser invejoso/Viraste até mentiroso/Só para caluniar”. A postura se repete em Poeira do chão: “Vendo tanta falsidade/No fundo eu te lastimei”.

Martins, em Não tem mais jeito, também duvidou da idoneidade da mulher: “Conta uma história diferente a cada amigo”.

8.5 Traído(a) Também em Poeira do Chão, Dalva canta: “O que te dei em carinho/Tu devolveste em traição”, única referência direta e sem rodeios a infidelidade. Já em Errei, sim, ela desabafa: “Deixava-me em casa/Me trocando pela orgia”. Enquanto isso Herivelto proclama em Perdoar “(...) que aquela mulher/ai, ai, meu Deus/É um caso perdido/(...) Falta, erra e por fim/Ainda confessa: errei, sim”. Nota-se que nesses casos o efeito de sentido está na utilização de verbos como “trocar” (a esposa) e “errar” (na relação).

8.6 Sofredor(a) Nesta categoria, Herivelto canta em Cabelos Brancos: “Não falem desta mulher perto de mim/Não falem pra não lembrar minha dor/(...) Se me lembro dela, me dá saudade/Por ela, vivo aos trancos e barrancos/(...) Ninguém sofreu na vida o que eu sofri”. Dalva também canta o sofrimento causado pela ausência do ex-marido em Que será: “Que será/Da minha vida sem o teu amor/Da minha boca sem os beijos teus”. Já em Fim de comédia a fossa chega à súplica: “O meu pranto já caiu demais/Só lhe peço pelo amor de Deus/Deixa-me viver em paz”.

8.7 Abandonado (a) Dalva é a única a se reconhecer como tal e canta: “Você partiu e eu fiquei ”, na composição Tudo acabado. O mesmo acontece em Errei, sim: “Deixavas-me em casa/(...) faltando sempre com a tua companhia”. Já em Que será o tom é de lamento: “Se tu voltasses a gostar de mim/Se teu carinho se juntasse ao meu”. Todas as categorias apresentadas acima fomentam distribuição de incidências disponibilizadas do quadro abaixo.

Composições de Canções interpretadas Categorias Herivelto Martins por Dalva Tudo acabado Sofredor (a) Cabelos brancos Que será

Errei, sim Fim de comédia A grande verdade Tudo acabado Abandonado (a) Que será Errei, sim Traído (a) Poeira do chão Perdoar Indecente Errei, sim Caminho certo Oportunista Calúnia Tudo acabado Segredo Culpado (a) Que será Caminho certo Errei, sim Cabelos brancos Palhaço Segredo Errei, sim “Eu” Superior Teu exemplo Calúnia Consulta o teu travesseiro A grande verdade Perdoar Poeira do chão

5. Análise de Dados A autoafirmação no “Eu Superior” – que consequentemente leva à diminuição do outro – foi predominante no que diz respeito à distribuição dos papéis representados nas canções ligadas ao desquite público – e musicado – de Dalva e Martins, com cinco incidências para cada um. Nas demais categorias há a polarização de papéis. Dalva de Oliveira se posiciona, em linhas gerais, como figura vitimizada e sentimental. É nas canções interpretadas por ela que se concentram as performances com efeitos de sentido ligados à fossa amorosa, exprimindo sofrimento (em 5 delas) e abandono (em outras 3). Em condição oposta, Martins enuncia em apenas uma composição como sofredor e em nenhuma delas como abandonado. Os discursos do compositor investem, primordialmente, na culpabilização da ex-esposa, apontada como indecente em duas letras. Não há, porém, indicação direta de traição ou oportunismo. Postura discursiva diferente adotou Dalva de Oliveira, que impulsionou a representação de vítima conferindo a Martins o papel de traidor (ela, portanto, como enganada, traída), além de indecente – que abandonava a esposa (e, portanto, companheira oficial, parceira e mãe dos filhos) em casa para frequentar “orgias”. Ambas as categorizações apareceram em apenas uma composição cada. Há, ainda, a classificação do oportunista. Sobre a culpa em si, Dalva se confessa como agente de

erros no matrimônio em duas ocasiões. Mas vincula os deslizes a comportamentos prévios do marido. Em terceira canção interpretada por ela, é o casal quem assume a vilania dos próprios infortúnios encarnado no “nós”, também adotado por Martins em uma letra. Em uma outra composição ele também se apresenta como culpado, mas se blinda com o argumento de que foi levado ao erro por supostos desvios de Dalva. Há, portanto, uma subversão das funções sociais vigentes na época e amplamente reproduzidas pela MPB, incluindo questões de gênero. Diferente de uma Amélia sem vaidade; ou mesmo da Cabocla Tereza (de 1940), punida com a morte por trair o companheiro, Dalva surge no mesmo palco social, de dominação fálica, e assume ter errado – sem expressar exatamente que “pecado” cometeu. Ainda assim, percorreu as vias tradicionais da fossa amorosa, estabelecendo um entre-lugar de rompimento dos modelos culturais ao mesmo tempo em que encarnava papéis clicherizados. Martins, por sua vez, assume papéis enunciativos do universo masculino: de frieza e culpabilização – embora, talvez até como estratégia musical, também incorpore (em poucos momentos) a dor de cotovelo convencional da MPB.

Considerações Finais A briga musical travada entre Dalva de Oliveira e Herivelto Martins não deve ser restrita a uma transposição entre público e privado. Ela é, antes, um fenômeno de mediação promovido pelo rádio, propulsor das canções que, do contrário, seriam restritas ao público consumidor de discos – produtos de certo luxo nos anos 40 e 50. Sob essa perspectiva, o embate cantado – que assume de certa maneira a dinâmica dos repentes nordestinos, dada a velocidade de respostas – representa episódio emblemático na história da mídia sonora, impulsionado por um drama pessoal difundido em capítulos (a exemplo das novelas); veiculado pelo canal de maior alcance popular da época; capitalizado por novo formato de relações comerciais entre veículos e empresas; e acompanhado por público envolvido em um voyeurismo auditivo inédito, convidado a tomar parte nas performances discursivas e a assistir a desconstrução, sobremaneira, de papéis sociais modelos até então. Entender o funcionamento do mercado musical, do rádio e da própria história de Dalva e Herivelto nos anos de 1950 revela elementos que ajudam, portanto, a perceber a

sociedade brasileira nesse período, sinalizando a fetichização das “celebridades” e a comunicação em massa. É nesse ponto que a fundamentação utilizada no artigo vem à tona. Os autores aqui citados, de formas diferentes, reforçam a importância do discurso na afirmação ou na contestação de modelos culturais, práticas sociais e cenários históricos. Todavia, é imprescindível lançar olhares críticos, também, sobre o meio através do qual esses enunciados são transmitidos. Afinal, discursos e produtos distribuídos através deles não podem ser analisados apenas como mero entretenimento. Dalva e Herivelto provam, a seu jeito, que eles estão carregados de ideologias e fomentam até mesmo disputas hegemônicas mesmo quando transcendem clichês sociais. Em outras palavras, como bem afirmou Marshall McLuhan em 1964, “o meio é a mensagem”.

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