Briga De Marido E Mulher: Dalva E Herivelto Cantam E O Público ‘Mete a Colher’ – O Rádio Como ‘Palco’ De Performances Sociais1

Briga De Marido E Mulher: Dalva E Herivelto Cantam E O Público ‘Mete a Colher’ – O Rádio Como ‘Palco’ De Performances Sociais1

Briga de marido e mulher: Dalva e Herivelto cantam e o público ‘mete a colher’ – o rádio como ‘palco’ de performances sociais1 CUNHA, Adriana (mestre) 2 Universidade Federal de São João del-Rei/Minas Gerais FONSECA, Mariane (mestre) 3 Universidade Federal de São João del-Rei/Minas Gerais CARMO, Cláudio (professor doutor) 4 Universidade Federal de São João del-Rei/Minas Gerais RESUMO Dalva de Oliveira e Herivelto Martins foram do céu ao inferno no final dos anos 40. Membros do Trio de Ouro, um dos mais importantes da década, os dois saboreavam, em público, o triunfo artístico; mas amargavam entre quatro paredes o insucesso amoroso. As duas esferas foram transpostas através do rádio, plataforma para a divulgação de composições que saltaram o mero pertencimento ao cancioneiro nacional (com dor, sofrimento, fossa e acusações de traição); e passaram a ser armas em um embate público de defesa de honra. O objetivo deste trabalho se sustenta exatamente nesse contexto, adotando como corpus as 14 canções que marcaram o duelo entre Dalva e Herivelto, se transformando em marco na história da mídia sonora brasileira. Nesse cenário, cada um dos envolvidos manifestou, entre desabafos cantados e ofensas, enunciados baseados em posturas sociais convertidas em sete categorias analisadas sob a ótica da Análise Crítica do Discurso, de Fairclough (2001). Todas sustentadas em fundamentação que cruza a noção de performances, de Gee (2008); e de papéis sociais, de Castells (1999); a contextualizações sobre rádio e música no século XX sob a ótica de autores que vão de Hupfer (2009) a Faour (2006). Palavras-chave: história da mídia sonora; rádio; papéis sociais; Dalva de Oliveira; Herivelto Martins Introdução “Em briga de marido e mulher não se mete a colher”, diz a máxima popular. “Seu mal é comentar o passado/Ninguém precisa saber/O que houve entre nós dois”, cantou Dalva de Oliveira em 1947. Ambos os discursos foram subvertidos por ela e Herivelto 1 Trabalho apresentado no GT de História da Mídia Sonora, integrante do 10º Encontro Nacional de História da Mídia, 2015. 2 Graduada em Comunicação Social, habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Mestre em Letras na linha de pesquisa de Discurso e Representação Social pela Universidade Federal de São João del-Rei. E-mail: [email protected] 3 Graduada em Comunicação Social, habilitação em Jornalismo, pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) em Arcos. Mestre em Letras na linha de pesquisa de Discurso e Representação Social pela Universidade Federal de São João del-Rei. E-mail: [email protected] 4 Professor e membro do Programa de Mestrado em Letras da Universidade Federal de São João del-Rei. Pós-doutor em Antropologia pela Universidade de São Paulo. Doutor em Estudos Linguísticos – subárea: Linguística Aplicada – pela Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: [email protected] quando brigas deixaram de ser domésticas e passaram a ser batalhas musicadas em uma grande arena pública: o rádio. Este artigo se baseia em recortes desse contexto, adotando como corpus as 14 canções usadas como munição conjugal entre marido e mulher com ápice entre 1949 e 1951, conforme lista de Ribeiro e Duarte (2009). O foco analítico baseado na Análise Crítica do Discurso (ACD) de Fairclough (2001) incidiu sobre os papéis discursivos assumidos pelos dois protagonistas – ele enquanto compositor/emissor e ela enquanto intérprete/locutora de canções baseadas nas desventuras de um casamento fracassado entremeado, também, por escândalos pessoais. O objetivo deste trabalho, portanto, é verificar que representações foram construídas e assumidas nessa dinâmica partindo de conceitos balizados por Berger e Luckmann (1999), Schiffrin (2006), Castells (1999) e Gee (2008). A leitura das composições levou à categorização de sete papéis: Sofredor(a); Abandonado(a); Traído (a); Indecente; Oportunista; Culpado(a) e “Eu Superior”. Mas as questões do artigo não se encerraram aí. Elencadas essas funções sociais, ainda cabe perguntar quais delas foram incorporadas pelos agentes com maior contundência, com base no princípio de que escolhas discursivas não são aleatórias. Há ainda a contextualização do ambiente que publicizou essas performances sociais. Mais do que um veículo de transmissão, o rádio foi suporte da manifestação de modelos e posturas comportamentais a massas apaixonadas por entretenimento. Para isso conta-se com Horn (2003), Conde Aguiar (2007) e Hupfer (2009) além de Faour (2006) em enquadramento histórico da Música Popular Brasileira (MPB). 2. Dalva e Herivelto: do Trio de Ouro ao casamento de lama De acordo com Ribeiro e Duarte (2009), Vicentina Oliveira (Dalva desde 1934) e Herivelto Martins se encontraram pela primeira vez no Rio de Janeiro em 1935, no Teatro Pátria. Conforme Conde Aguiar (2007), ela era voz promissora cujos dons foram desenvolvidos na boemia, em serestas ao lado do pai, e descobertos profissionalmente, ao acaso, em uma fábrica de chinelos. O patrão era proprietário de uma estação de rádio. E viu na “operária cantante” uma possibilidade de negócios. Já Martins encarnava o palhaço Zé Catinga desde a morte do companheiro na Dupla Preto e Branco, Francisco Sena. O ofício havia aprendido também com o patriarca, Seu Félix. Segundo Albin (2000), ele era entusiasta cultural e chegou a fundar no interior do Rio de Janeiro uma trupe mambembe. Nesse cenário o menino Herivelto teria composto sua primeira canção, por volta dos oito anos. Foi a primeira entre as mais de 700 criações assinadas pelo sambista, que em 1936 encontrou em Nilo Chagas, um cantor negro da época, a chance de recomeçar o antigo projeto musical, desta vez incluindo Dalva5. Ali nasceu o Trio de Ouro, que só em 1942, segundo Schumaher (2000), foi convidado a integrar o quadro de artistas da Nacional, que detinha 70% da audiência de rádio e superava em mais de 12 milhões de cruzeiros o faturamento de suas quatro maiores concorrentes. Foi o auge para a consolidação pública do grupo, que começou e terminou sob a batuta de Herivelto após 50 anos de existência, quase cem discos e 200 músicas gravadas entre a década de 30 e o ano de 1992, quando o fundador do conjunto morreu. Depois de Dalva de Oliveira, os vocais femininos foram assumidos por Noemi Cavalcante, Lourdinha Bittencourt e Shirley Dom. 3. Brigas públicas Enquanto a crença popular é de que “roupa suja se lava em casa”, Dalva de Oliveira e Herivelto Martins transformaram a tensão do desquite em um duelo musical lucrativo através das canções Segredo (1947), Cabelos brancos (1949), Tudo acabado (1950), Que será? (1950), Caminho certo (1950), Errei, sim (1950), Teu exemplo (1950), Calúnia (1951), Consulta o teu travesseiro (1951), Não tem mais jeito (1951), Palhaço (1951), Fim de comédia (1951), A grande verdade (1951), Perdoar (1951), Poeira do chão (1952) e Bandeira branca (1972)6. Foram anos de ataques-revides em dinâmica alimentada pelas próprias gravadoras. Horn (et.al,.2003) assinalam que até fins dos anos 40 a comercialização de singles era feita através de discos 78 RPM, capazes de registrar apenas uma canção com quatro minutos em cada lado. À época também era comum, conforme Ribeiro e Duarte 5Com quem se casaria em 1938 e de quem se separaria em 1950 para viver com a aeromoça Lurdes Torelly, amante desde 1946. 6 Com letras integralmente disponíveis no link http://bit.ly/1JuRRsA (2009), que cada artista lançasse um disco por semestre. Com o frenesi do “caso Dalva de Oliveira e Herivelto Martins”, as empresas fonográficas chegaram a conceder três lançamentos anuais para cada um. Nos discos de Dalva, canções incorporadas por ela, mas assinadas por nomes como J.Piedade e Oswaldo Martins. Nos do Trio de Ouro, composições de Herivelto cantadas por novas vocalistas. O estopim teria sido a música Tudo acabado, de 1950, uma narrativa pormenorizada do fim de uma relação e seus agouros, interpretada por Dalva. No entanto, Conde Aguiar (2007, p.62) assinala que composições anteriores também foram incorporadas à briga. Para muitos em Segredo, de 1947, Martins já prenunciava o fim da união. O mesmo foi considerado quanto a Cabelos Brancos, de 1949, quando o desquite dos artistas foi oficializado sob relatos de violência e traição de ambos os lados. O ápice da briga pública se deu exatamente entre esse ano e 1951 com alfinetadas musicais que começaram amenas (produzindo efeitos de sentido ainda muito atrelados ao pesar, à saudade, ao dissabor do relacionamento fracassado) e chegaram a acusações diretas de infidelidade, oportunismo artístico e até mesmo envolvimentos em orgias. A discussão musical não poupou amizades. Ataulfo Alves e Marino Pinto, que foram parceiros de Martins em sambas anteriores ao desquite, se transformaram em autores de canções de Dalva. Em letras da época, o ex-marido da cantora insinuou envolvimentos amorosos entre ela e a dupla, presença frequente em jantares promovidos por Martins e preparados por Dalva após apresentações no tradicional Cassino da Urca. As biografias e os livros que mencionam a separação tumultuada divergem quanto à real trégua no duelo cantado. No entanto, o fim de 1950 é dado como o período em que as ofensas mútuas se tornaram espaçadas. Não significou, porém, a paz definitiva. Enquanto Dalva de Oliveira ascendia em carreira solo, Herivelto Martins via o prestígio do Trio de Ouro sumir. Embora celebrado como compositor no meio artístico, Martins não saboreava a mesma fama entre o público. Em comparação à ex-esposa, ele era homem de peso nos bastidores, nos arranjos e nos créditos nos discos. Dalva, por sua vez, não escrevia as próprias canções, mas ocupava a linha de frente dos palcos, era a encarnação e a imagem das músicas que gravava. A situação, alegam Ribeiro e Duarte (2009), Hupfer (2009) e Conde Aguiar (2007), foi estopim para nova explosão de fúria, desta vez em parceria com David Nasser, em 22 artigos publicados no Diário da Noite em 19517 na forma de memórias e desabafos atacando a postura de ex-esposa principalmente como mulher (“a rainha do despudor”) e mãe (“que em presença da sogra, da cunhada e dos filhos, beijava na boca o ‘amante do dia’”).

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