FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA – CPDOC PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS CURSO DE MESTRADO PROFISSIONALIZANTE EM BENS CULTURAIS E PROJETOS SOCIAIS

DE OLHO NA ETERNIDADE: a construção do arquivo privado de Antonio Carlos Jobim

Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil – CPDOC – para obtenção do grau de Mestre em Bens Culturais e Projetos Sociais

GLEISE ANDRADE CRUZ

Rio de Janeiro Julho de 2008

CRUZ, Gleise Andrade. De olho na eternidade: a construção do arquivo privado de Antonio Carlos Jobim. : Fundação Getúlio Vargas, 2008. 133 p. : il

Dissertação (Mestrado Profissionalizante), Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 2008. Orientadora: Profª Drª Angela de Castro Gomes

1. Arquivos pessoais 2. Tom Jobim 3. Antonio Carlos Jobim – Biografia 4. Brasil – História. CDD 927 FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA – CPDOC CURSO DE MESTRADO PROFISSIONALIZANTE EM BENS CULTURAIS E PROJETOS SOCIAIS

DE OLHO NA ETERNIDADE: a construção do arquivo privado de Antonio Carlos Jobim

Trabalho de conclusão de curso apresentado por

GLEISE ANDRADE CRUZ

E APROVADO EM ______PELA BANCA EXAMINADORA

______Profª Drª ANGELA DE CASTRO GOMES (Orientadora)

______Profª Drª MARIETA FERREIRA

______Profª Drª REBECA GONTIJO

______Profª Drª LETÍCIA NEDEL (Suplente)

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Resumo: O arquivo de Antonio Carlos Jobim, assim como todo arquivo pessoal, foi colecionado e mantido para satisfazer o desejo de um homem que sempre se preocupou com sua imagem. Este trabalho demonstra a história da construção e organização desse acervo, além de fortalecer a hipótese de que o arquivo, em sua integridade, configura-se como uma escrita autobiográfica. Abordo a organização arquivística do fundo Antonio Carlos Jobim, dentro do Instituto que leva seu nome, e dou ênfase na subsérie Cadernos de anotações, da série Produção Intelectual do Titular. Esses cadernos são um tipo de documento singular, quer pelo uso que deles fazia o maestro, quer pela sua prática memorial. O estudo destas fontes primárias nos permite inferir a imagem construída pelo próprio titular, e também evidencia o plano dos guardiões dessa memória em perpetuá-la: Jobim decidiu manter um arquivo pessoal com o claro propósito de preservar sua obra e projetá-la para o futuro. Esse cuidado foi transmitido para seus herdeiros, que além das obras musicais, cuidam, hoje, de seu legado arquivístico dentro do Instituto Antonio Carlos Jobim.

Abstract: Antonio Carlos Jobim archive as well as his personal archive was collected and arranged to fulfill the desire of a man concerned with his image. This work reveals the history underneath the organization of his private documents. Also, it presents proofs of an autobiographical intent. I approach the construction of Jobim archives at Instituto Antonio Carlos Jobim and I emphasize the sub series Caderno de Anotações —Notebooks— in the serie Produção Intelectual do Titular; those notebooks can be considered unique documents and they are an important evidence of his daily use and memorial practice. The study of primary sources of this nature allows us to infer the image constructed by Jobim as well as the plans of the guardians of his legacy. The maintenance of his personal and musical archive highlights the composer's purpose of preserving his works to future generations. Jobim´s musical and personal archives are under his family responsibility at Instituto Antonio Carlos Jobim in Rio

de Janeiro.

3 AGRADECIMENTOS

À força que me move em direção ao aprimoramento: seja Deus, seja Ele em mim, seja apenas eu. Por ela, me dispus contra toda a adversidade por que passei no processo de confecção dessa dissertação. Mas, por conta disso também, acredito que estou melhor hoje do que antes, melhor preparada para o mercado de trabalho, mais determinada — e mais cansada!

À minha orientadora, Professora Doutora Angela de Castro Gomes, que num primeiro momento pensei austera e rígida, para logo depois descobrir uma pesquisadora tão preocupada quanto eu e extremamente inteligente e coerente. Confesso que, em muitos momentos de fraqueza, pensei nela como modelo e percebi minha admiração crescente.

Aos amigos da turma do Mestrado do Cpdoc de 2006. Sempre seremos a melhor turma do programa: muito unidos, embora muito ocupados, muito amigos, embora agora afastados. Vocês deram a ajuda e o apoio que meu trabalho precisava.

Ao meu filho, João Pedro Cruz Serpa, para quem tento ser exemplo, mãe, amiga e professora. Ele não entendeu ou mesmo percebeu minhas aflições, mas sempre chegava com uma palavra de carinho enquanto eu estudava e escrevia: “Ah, mãe, deixa eu jogar?”

Ao meu marido, Pedro da Costa Pereira, que nunca me deixou desanimar e nunca esmoreceu seu amor por mim, até quando nem eu mesma me aturava.

Aos queridos amigos do Instituto Antonio Carlos e da Jobim Music, sem os quais não teria chegado ao fim: Paulinho Jobim, Eliane Vasconcellos, Gabriel Caymmi, Clay Protasio, Clarice e Isabel Nicioli, Bernardo Krivochein, Patricia Helena Fuentes, Patricia Lima, Jacqueline Barbosa, Avelina Oliveira, Christina Costa, Dona Luiza e Suria Braga Alves.

Especialmente, aos entrevistados Vera de Alencar, Ana Jobim e Thereza Hermanny. Muito obrigada também a toda a família Jobim.

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Toda vez que uma árvore é cortada aqui na Terra, eu acredito que ela cresça outra vez em outro lugar — em algum outro mundo. Então, quando eu morrer, este é o lugar para onde quero ir: onde as florestas vivam em paz.

TOM JOBIM

(JOBIM, A CASA DE TOM, 2007)

“Não sou imortal, sou altamente mortal.” Tom Jobim (Acervo ACJ, E14)

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ÍNDICE

Introdução, p. 9

Capítulo 1: Tom Jobim, compositor de si mesmo, p. 18

1.1 Biografias e autobiografias: um preâmbulo, p. 19

1.2 Um Brasil , p. 22

1.3 Conceituação de Cultura popular, p. 25

1.3.1 O popular massificado, p. 27

1.4 Uma História Biográfica de Tom Jobim, p. 30

1.4.1 Os primeiros anos de uma vida, p. 30

1.4.2 Ainda os primeiros: casamento, emprego..., p. 31

1.4.3 Compositor de si mesmo, p. 33

1.4.4 Alguns encontros importantes, p. 38

1.5 A criação da Bossa Nova, p. 45

1.5.1 Tom e a Bossa Nova, p. 49

1.6 Últimos tempos, p. 51

Capítulo 2: O arquivo Tom Jobim, sua maior composição, p. 54

2.1 Os guardiões da memória, p. 54

2.2 A criação de uma instituição: o Instituto Antonio Carlos Jobim, p. 58

2.3 Considerações sobre Arquivos e Arquivos pessoais, p. 61

2.3.1 Acumulação e Avaliação, p. 67

6 2.3.2 Classificação e Descrição, p. 69 2.4 O acervo de Tom Jobim, p. 70 2.4.1 Higienização, p. 72 2.4.2 Digitalização, p. 73 2.4.3 Divulgação e acesso, p. 74 2.4.4 Descrição e indexação, p. 76 2.5 Entendendo o arquivo, p. 81

Capítulo 3: Cadernos para lembrar Tom – lembranças dele, com ele e para ele, p. 87

3.1 Conhecendo os cadernos, p. 91

3.2 Observando com mais atenção, p. 99

3.3 Refúgios do eu, p. 103

3.4 As casas de Tom, p. 108

Conclusão, p. 115

Anexo A – Plano de arranjo do arquivo, p. 117

Anexo B – Planilha dos Documentos Textuais do Instituto Antonio Carlos Jobim, p. 118

Anexo C – Poema “Chapadão”, p. 119

Anexo D – Artigo de Tom Jobim sobre a expansão do mercado fonográfico, Pi1093, p. 124

Bibliografia, p. 125

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES E TABELAS

Figura1 – Primeira correspondência de a Tom Jobim, Cp489 Figura 2 – Primeiro esboço para “Garota de Ipanema”. Pi 1216 p. 54 Figura 3 – Foto da bagunça sobre o piano de Tom Jobim, p64f05 Figura 4 – Percentual das tipologias encontradas nos 32 cadernos Figura 5 – Vários tipos documentais numa mesma página. Caderno 4, Pi 1423 p. 3 Figura 6 – Lista de temas para o filme Crônica da casa assassinada. Caderno 25, Pi 1180 p. 4 Figura 7 – Lista de lembretes para o próprio titular. Pi1160 p.29 Figura 8 – Lista de consertos necessários no carro. Caderno 25, Pi 1180 p. 14 Figura 9 – Lista de acessórios para levar em caçada. Caderno 28, Pi 1158 p. 12 Figura 10 – Esboço para a construção da casa na rua Sara Vilela. Pi 1095 p. 20 Figura 11 – Esboço para a construção da casa na rua Sara Vilela. Pi 1247 p. 49

Tabela 1: Descrição dos 32 cadernos

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INTRODUÇÃO

Durante a faculdade de Arquivologia, tive oportunidade de conhecer as idades dos arquivos e me aproximar do estudo e prática em arquivos permanentes1. Além da predisposição pessoal para lidar com esse tipo de acervo, os programas de estágios (extremamente necessários, em todos os sentidos) me foram conduzindo para esse campo. Após trabalhar em várias instituições de guarda de acervos, como Fundação Casa de Rui Barbosa, Biblioteca Nacional e Academia Brasileira de Letras, iniciei o trabalho de organização do acervo pessoal de Tom Jobim, junto à equipe do Instituto Antonio Carlos Jobim, em 2002. Tive outras experiências em arquivos; como Carlos Drummond de Andrade, Pedro Nava, Vinicius de Moraes, Helio Pelegrino, Antonio Salles ou Miguel Paiva. Contudo, nenhuma foi tão agradável no conjunto, com a do arquivo de Tom Jobim. Até porque, a produção artística de Tom arrebatou a admiração de uma multidão de fãs em todo o mundo, colaborando para colocar a música brasileira no hall of fame dos Estados Unidos e, de lá, para ser reconhecida em outros circuitos internacionais. A trajetória de Tom sempre vai passar pela sua grandiosidade como letrista e sua genialidade como compositor. Mas seu arquivo pessoal chama a atenção justamente por permitir acesso ao lado mais íntimo do maestro. Seus documentos revelam o perfil de um homem simples, que conversava com os passarinhos e “visitava” árvores do Jardim Botânico do Rio de Janeiro; que andava de chinelos na rua; que foi pai-avô completamente apaixonado pela família, e que defendia ferrenhamente os amigos, mesmo em público. A possibilidade de conhecer essa outra face do maestro, que sem se despir de sua importância pública, cultivou as identidades de marido, pai e amigo com bastante carinho, é muito proveitosa. Eis, portanto, porque desenvolvi esse encantamento com o músico (sua face pública), depois que me apaixonei por seu acervo (sua face privada). Na verdade, não conhecia muito mais sobre Tom antes disso. Um percurso que deve ser a contramão do que acontece com a maioria dos fãs.

1 Concordo apenas parcialmente com o cânone arquivístico de separar os acervos em correntes, intermediários e permanentes — penso que a freqüência de uso é apenas um dos componentes para a classificação de arquivos. Discordo mais vigorosamente de que não se justificariam ferramentas de avaliação num arquivo permanente. Entretanto, não cabe aqui essa discussão, pretendia apenas mencionar minha posição. 9

O trabalho técnico em um arquivo privado é normalmente mais complexo do que parece aos leitores desavisados ou aos administradores que o julgam como um conjunto de gavetas. Muitas vezes o titular do arquivo registra um fato, outras não; muitas vezes, o registro pode ter sido perdido e outras, simplesmente apagado, pois quando existe o documento, existem, também, lacunas e incertezas. Um arquivo privado é, na verdade, ele mesmo, um documento biográfico. Nele está reunido um conjunto de registros sobre a própria vida: cartas, agendas, cadernos de anotações, depoimentos ou diários. Mas, mesmo em arquivos pessoais, nem sempre é comum a existência de documentos autobiográficos, isto é, vestígios da vida de uma pessoa, que ela mesma tenha produzido: uma escrita autobiográfica. Tom Jobim nunca se preocupou em escrever sua autobiografia2, e também não chegou a ver as publicações que Helena Jobim e Sérgio Cabral fizeram sobre ele. Mesmo sendo bastante interessado em guardar relatos e fotos de sua família e de ter, inclusive, pesquisado a origem do nome da família Jobim, Tom não conseguiu, pelo menos sozinho, reunir essas informações3. Pedro Nava, por exemplo, teve sua vida literária alicerçada em sua memória (sete livros ao todo, o último interrompido por seu suicídio). Ele guardava todo tipo de papel (rótulos, mapas, fotos) e anotava em pequenas tiras, tudo o que se lembrava e que poderia servir de “ganchos” nos seus capítulos, montando uma espécie de quebra-cabeças literário ou um hypomnemata4 picotado. Tom não foi um literato, mas um músico, e, como ele mesmo disse, em várias oportunidades, era a música que o movia para a vida. Ele cuidou de guardar em seu arquivo, registros de sua vida profissional/musical, sem perder os vínculos que o mantinham, assim como qualquer ser humano, com suas raízes em vários outros campos: familiar, pessoal, carreira pública. Tom foi, portanto, um mediador entre mundos.

Esses mediadores […] desenvolvem a capacidade de lidar com dois ou mais códigos. Seu sucesso profissional e pessoal depende de seu desempenho

2 Vale lembrar que Ana Jobim, no filme A casa de Tom; mundo, monde, mondo, considera o poema “Chapadão” como uma autobiografia, pois Tom lança, em versos, cenas de sua vida cotidiana. Esse poema está transcrito no Anexo C desse trabalho. 3 Tom teve ajuda de suas esposas Thereza Hermanny (1949-1977) e Ana Lontra Jobim (1978-1994) para reunir seu arquivo. Além delas, colaboraram Vera Alencar, museóloga contratada para organizar seu arquivo e Helena Jobim, irmã de Tom, que herdou os documentos da mãe. 4 Caderno de anotações pesquisado e definido por Foucault como guia de bolso a ser portado por uma pessoa para que pudesse anotar tudo o que de importante se passava durante o dia, contribuindo para um engrandecimento pessoal. O capítulo 3 oferecerá maiores detalhes sobre esse tipo de caderno. 10

como intermediários. Em uma sociedade complexa e heterogênea, papéis como esses, nem sempre explícitos e conscientes, fazem parte da própria lógica do processo interativo. (VELHO, 2003, p. 82)

Eis, portanto, a justificativa de Tom como mediador: ele teve o privilégio de circular pelos campos da harmonia clássica e popular, transcrevendo seu potencial criador em notas musicais, legíveis para outros; pelo campo lírico também, onde passeia todo escritor/compositor, entre o mundo da poesia e o da inspiração; e o mundo dos homens, pois escreveu em (duas) línguas os sentimentos que tinha, via e imaginava. Ele usava seu potencial de metamorfose, mediador que era, como nos termos de Gilberto Velho:

O potencial de metamorfose permite, em geral, aos indivíduos transitarem entre diferentes domínios e situações, sem maiores danos ou custos psicológico-sociais, ao contrário do que se poderia esperar, a partir de uma visão mais estática da identidade. (VELHO, 2003, p. 82)

Assim, através do acervo acumulado pelo titular do arquivo, pode-se descobrir a versão dos acontecimentos que ele sustenta: sua visão do mundo, seus anseios em se fazer perpetuar como parte de uma sociedade que lhe permite assumir várias faces identitárias. A identidade preenche o espaço entre o "interior" e o "exterior" — entre o mundo pessoal e o mundo público. O fato de que projetamos a "nós próprios" nessas identidades culturais, ao mesmo tempo em que internalizamos seus significados e valores, tornando-os "parte de nós" contribui para alinhar nossos sentimentos subjetivos com os lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural. A identidade, então, costura o sujeito à estrutura. Estabiliza tanto os sujeitos quanto os mundos culturais que eles habitam, tornando ambos reciprocamente mais unificados e predizíveis. (HALL, 2005, p.7) A identidade está estritamente ligada à memória consciente que se pretende sustentar. Memória é a capacidade de elaborar informações, fatos e experiências do passado e reconstruí-los no presente, retransmitindo-os a outros ou não. Há a possibilidade de rememorar fatos que dizem respeito apenas a um indivíduo (memória individual), a um grupo, como uma comunidade ou organização (memória coletiva) ou mesmo ao Estado e todas as instituições da esfera pública (memória nacional) (HALBWACHS, 1990, p. 35). Talvez não seja possível, nem desejável, hierarquizar 11

esses conceitos, mas é possível observar como eles se interpõem e se completam. Embora existam vários estímulos para a memória em uma pessoa, ela sempre precisará se coligar a outros estímulos, coletivos, para efetivamente se lembrar do fato. Ou seja, a memória é sempre individual e coletiva, a um só tempo. É necessário entender o limite que a memória individual pode trazer; uma memória que possa nos tornar únicos. Sempre que selecionamos o que lembrar e, por extensão, o que esquecer, fazemos escolhas que nos diferenciam dos outros, inclusive dos que viveram os mesmos fatos conosco (HALBWACHS, 1990, p. 37). Essas escolhas compõem nosso discurso, que exibe o que pensamos, o que queremos enfatizar ou o que queremos esconder (CHAGAS, 2002, p.35). A construção da identidade de um povo, grupo ou indivíduo passa necessariamente pelo que ele selecionou de seu passado e como ele quer se mostrar no presente. Segundo Jacques Le Goff, “a memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje” (LE GOFF apud MAGALHÃES, 2006, p.4). E a memória é base essencial da escrita, que remonta lugares, combina textos e ordena as idéias no papel. Nessa hora, quanto maior a bagagem, maior o embaralho na produção do texto e, ao contrário, se há falta de memória, o texto ganha lacunas. (GONTIJO, 2004, p.187) Desde o século XVIII5, os homens comuns ganharam espaço na vida pública e foram “descobertos” pelos pesquisadores abrindo caminhos para novas coleções em museus, novos cursos nas faculdades, estudos e práticas mercadológicas na sociedade em geral. Eis, então, o início da luz sobre os registros do cotidiano. Embora não seja imparcial, como nenhuma fonte é, os documentos pessoais se destacam por uma certa informalidade com o que se registra, pela intimidade dos conteúdos dos registros e pelo caráter, muitas vezes, inusitado do que se registra. Por esse motivo, histórias como a do marinheiro bordador, João Cândido, durante a Revolta da Chibata6, e de Anne Frank no Holocausto, não passaram despercebidas. O que passa a importar é a versão do fato, como o autor percebeu o que aconteceu.

5 Segundo Angela de Castro Gomes, datação difícil, mas segura. 6 Contada por José Murilo de Carvalho: o comandante João Cândido bordou, em toalhas de mão, seu sofrimento pelos maus-tratos e pela partida de amigos — ato pouco pensado para homens, e ainda mais nessas circunstâncias! (CARVALHO, 2006, p.26) 12

Embora seja uma tarefa proveitosa, pesquisar e falar de arquivos de famosos, de mitos7 como Tom Jobim, é preciso sempre ter em mente dois fatores: o primeiro diz respeito à privacidade do titular e familiares e o segundo à veracidade dos fatos. A pesquisadora Eliane Vasconcellos nos lembra da disposição que tem o autor de um documento de caráter pessoal de se mostrar despido frente ao destinatário. As cartas, e por extensão, os documentos de arquivos pessoais servem ao propósito de fazer-se presentes quando não é possível a presença e de contar confidências, lembranças e detalhes em quem se confia, um amigo próximo.

A correspondência permaneceu durante muito tempo sepultada nos arquivos públicos ou privados, só recentemente passou a ter valor como documento de maior importância. Os pesquisadores têm-se conscientizado de que podem encontrar nela dados relevantes: a missiva funciona como testemunho vivo de uma época, pode documentar uma história pessoal, registrar situações, ações e reflexões. [...] Por se tratar de um discurso informal, na carta se expõem idéias e sentimentos que são reduzidos e interpretados por um terceiro — o leitor. Por este motivo, nós, que trabalhamos com correspondências encontradas em arquivos privados, devemos ter em mente alguns problemas de ordem ética e jurídica, que de certa forma encontram suas raízes nas observações feitas por Bandeira ao publicar as cartas de Mário. (VASCONCELLOS, 1998, p.8)

Carlos Drummond de Andrade também se mostrou preocupado com a guarda e o uso dos seus arquivos (e de seus amigos próximos). Em vários momentos de seus textos lembra do cuidado necessário com as “coisas domésticas”, como mencionado na crônica "O quarto violado do poeta", publicada no Jornal do Brasil, de 2 fevereiro de 1978, onde se compadece de Manuel Bandeira que recebeu uma “homenagem”, sob forma de documentário, onde seu quarto de hotel foi filmado, sem autorização. Mas, em nenhum outro texto Drummond se empolga tanto como no “Museu- fantasia”, em que sugere a criação de um lugar que possa abrigar, organizar, tratar e divulgar corretamente os arquivos dos escritores brasileiros como ele. Outro ponto importante é o cuidado em não podermos admitir como verdadeiro tudo o que está escrito em um documento privado. Nem mesmo

7 Segundo Edgard Morin, são astros de cinema, ídolos da música, ícones da realeza convertidos pela cultura de massa em “olimpianos” da atualidade, com cada momento das suas vidas rasgados nos cotidianos da imprensa. 13

documentos oficiais, criados por governos, com formato e suporte padronizados, nos eximem de tais considerações. Entretanto, é sempre interessante observar a seleção realizada e a versão que o arquivo produz da vida de seu titular. O titular de um arquivo não precisa pensar da mesma maneira durante sua vida; ou mesmo se manter “coerente” na guarda de seus documentos ou ainda conseguir distinguir entre o que é real e o que é ficção em sua memória. Tom Jobim manteve fotos suas durante uma de suas caçadas a aves na mata (cerca de 1950), junto a artigos sobre ecologia e apreciação de pássaros (desde 1986). O titular se constrói e a seu texto/ seu arquivo, como parte de um discurso que se quer perpetuar, enquanto esse mesmo discurso o empurra para a confirmação do personagem construído. Essas forças não se combatem, mas buscam certo equilíbrio na “produção de si”, que se configura como lugar de experimentação e ajuste. (GOMES, 2004, p.17) Durante sua vida, Tom fez várias escolhas e não as lamentou, embora tivesse lamentado suas conseqüências. Constantemente, por exemplo, reclamava da imprensa, na própria imprensa:

[…] a imprensa do Rio, que sempre fala mal dos artistas — fala mal do Chico, fala mal do Caetano — vem e malha. O Brasil é de cabeça para baixo, persegue a quem trabalha. Se você trabalhar, aparece fiscal, vem a polícia. Os bandidos, não […] as moças bonitas se apaixonam por eles. Parece coisa de Mário de Andrade, Macunaíma… Sempre que o Brasil vai mal, eles dizem que eu estou me mudando para os Estados Unidos. Quando o país melhora, dizem que eu estou voltando. Mas não é nada disso. […] Sempre essa besteirada. Dizem que eu saí daqui para fugir do Imposto de Renda, como se lá não fosse pior. […] Aqui é que tem esse negócio, negócio de procedência maligna. Depois que eu fiz meia dúzia de modinhas, ficaram falando mal de mim, porque eles não têm mais o que falar. (in LOYOLA, 1988, p. 39)

Pensava que seu trabalho nem sempre era reconhecido como o era em outros países por onde passou. A campanha de 1988 que fez para a The Coca-Cola Company, por exemplo, repercutiu efeitos indesejados aqui no Brasil:

São multinacionais que estão aqui. E se você vai negar espaço para elas, dará o direito de, lá fora, negarem para a , Vale do Rio Doce […] A Coca- Cola dá emprego a milhares de brasileiros — o xarope é brasileiro, a água é brasileira. Então, na hora em que aparece o anúncio, essas pessoas que tomam 14

Coca-Cola querem destruir o anúncio. Acusam-me de ter vendido um patrimônio nacional, “Águas de março”. Você não pode vender música. Na época de Noel Rosa, vendia-se música, mas escondido, por baixo do pano, e quem pagava aparecia como autor, como dono da música. Quando um compositor vendia uma música, todo mundo ficava do seu lado. Sinal de que ele não estava conseguindo viver de direito autoral. (LOYOLA, 1988, p. 39)

Os homens, seres plurais por natureza, passam por momentos que determinam seu caráter, sua personalidade e constroem seu futuro. Nenhuma pessoa que vive em sociedade, que também é um organismo plural e dinâmico, consegue volver sua atenção a um assunto apenas. Regina Marques, ao catalogar os livros da biblioteca de Oscar Niemeyer, constatou que 59% são sobre Artes, 19% sobre Ciências Humanas, 2% sobre Ciência e Tecnologia e apenas 12% tratam de sua área mais estreita, Arquitetura e Urbanismo. O mesmo se pode aplicar ao arquivo de Tom Jobim, pois nos seus documentos há vários macro-assuntos como política, história, teatro, ecologia e natureza, literatura além, claro, de música. Isto pode evidenciar seu interesse não só em aperfeiçoar sua arte, mas em manter-se informado com o que ocorria no mundo ao seu redor. O catalogador trabalha procurando determinar os principais assuntos, ressaltar o diferencial e perceber os detalhes que estão no documento. Freqüentemente, há documentos de difícil leitura, uma vez que a maioria é manuscrita e quem escreve para si, costuma entender a própria letra — o que muitas vezes não acontece quando da intervenção técnica. Outros documentos apresentam contextos culturais, socioeconômicos e políticos de difícil investigação e fazem referências a pessoas e obras pouco conhecidas. Em quaisquer desses casos, sempre se faz necessária extensa pesquisa e em fontes diversas. O trabalho do catalogador caracteriza-se, assim, como o de um pesquisador especialista. O capítulo a seguir deverá descrever o arquivo como um todo, desde a acumulação feita por Tom Jobim, passando pela ordem e colaboração de sua primeira esposa até a completa estrutura e organização dentro do Instituto Antonio Carlos Jobim, feita por seus filhos e viúva. Logo depois, devemos nos debruçar sobre a Bossa Nova, época mais frutífera da carreira de Tom, dando voz ao próprio titular, através dos vários fragmentos “autobiográficos” encontrados em seu acervo. O último capítulo deverá apresentar os 32 cadernos de anotações de que Tom escreveu durante

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sua vida adulta, ressaltando os documentos que melhor traduziram seu cotidiano em casa.

DIFICULDADES ENCONTRADAS

A seguir, descrevemos algumas dificuldades encontradas durante a pesquisa e o trabalho, ou melhor dizendo, no trabalho de pesquisa do acervo de Tom Jobim. Identificar as assinaturas das correspondências. Houve casos de letra ilegível, nomes em outras línguas e apelidos. Na Correspondência Pessoal, por exemplo, o autor de uma carta se assina como Cabinha; somente após a pesquisa descobriu-se que se tratava de Isnaldo Khrockatt de Sá, grande amigo de Tom; o mesmo aconteceu com Bituca, que é Milton Nascimento, entre outros tantos exemplos. Além, claro, dos apelidos familiares presentes na Correspondência Familiar. Identificar os pseudônimos que Antonio Carlos Jobim utilizava. Por exemplo: Tom Joba, Tony , Tão, Antonio Carlos Brasil etc. Determinar datas e períodos nos Cadernos, já que muitos documentos raramente apresentavam data precisa. Entretanto, a pesquisa possibilitou determinar uma data aproximada – seja pela composição da música, seja pelos temas descritos. Reconhecer as diferentes caligrafias presentes nos Cadernos. Através de entrevista com Thereza Hermanny8, descobriu-se que estes costumavam ficar sobre o piano ou sobre alguma mesa de fácil acesso, na sala de estar. A cada sarau com os amigos ou mesmo trabalhando só, Antonio Carlos Jobim pedia ajuda a quem estivesse por perto para anotar o que ele dizia, pois não queria perder o momento da inspiração. Como ninguém assinava o documento, o reconhecimento da caligrafia tornou-se uma tarefa intrincada e minuciosa. Para conseguir identificar algumas, recorreu-se à Série Correspondência e a familiares de Tom Jobim.

8 D. Thereza foi a primeira esposa de Tom Jobim e presenciou muitos momentos registrados nos primeiros caderninhos de anotações. 16

Determinar o ineditismo das letras. O trabalho de composição de Antonio Carlos Jobim era descrito por ele mesmo como “95% de transpiração e 5% de inspiração”. Por isso, os versos encontrados nos Cadernos ora apareciam em uma, ora em outra letra. Ele realocava versos e estrofes, mudava o sentido da letra, da rima, da métrica. Algumas letras encontradas nos Cadernos pareciam, num primeiro momento, inéditas. Entretanto, com maior conhecimento das músicas do compositor, verificou-se tratarem-se apenas de primeiras versões. É o caso de “Garota de Ipanema”. Inicialmente, a rima e os versos eram totalmente diferentes, assim como o título: “A menina que passa”. Todas essas diferenças poderiam configurar uma outra composição, mas nem a letra abandonada é uma música inédita, nem a letra gravada é outra totalmente nova. Pesquisar os termos técnicos em inglês, presentes na correspondência com advogados e músicos estrangeiros. As dificuldades foram sanadas com consultas a dicionários, biografia especializada e consultas à família Jobim e a outras famílias, como a do maestro Radamés Gnattali.

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CAPÍTULO 1: TOM JOBIM, COMPOSITOR DE SI MESMO

O mundo é grande e bello [sic.], vamos fazer música, para viver! Esqueça o baixo Astral. Bilhete de Tom Jobim, ao próprio, s.d.1

Tom Jobim nasceu a 27 de janeiro de 1927, no bairro da Tijuca, Rio de Janeiro, e faleceu a 8 de dezembro de 1994, em Nova York. Seu pai, Jorge Jobim, morreu quando ele ainda era criança, em 1935, tendo sido diplomata, poeta, escritor e professor. Sua mãe, Nilza Brasileiro de Almeida Jobim, falecida em 1989, fundou o Colégio Brasileiro de Almeida, em Ipanema, e se casou, pela segunda vez, com Celso Frota Pessoa, em 1936. Sua única irmã, Helena Jobim, é escritora premiada, e foi quem lhe deu o apelido de Tom Tom. Como sabemos que uma brilhante carreira não se conquista sem investimentos, selecionamos alguns fatos de sua trajetória pessoal e profissional, que se fundem com a própria história mais recente da música popular brasileira2. Pretende-se, neste capítulo, lembrar fatos da vida privada do maestro, que foram a público ou não, mas que apresentam como característica comum o fato de terem registros em seu arquivo pessoal. Isto porque, como já assinalamos, os arquivos privados pessoais são repositórios de informação sobre o titular e a época em que viveu, e mais ainda, são indicações de seus anseios e escolhas, do caminho trilhado. Dessa forma, estamos propondo, através desse trabalho, não apenas contribuir para a afirmação de que os arquivos pessoais são, também, arquivos (como os administrativos) e não coleções inorgânicas, como também evidenciar que o arquivo de Tom Jobim permite redescobertas sobre sua vida e obra. É claro que estamos conscientes da amplitude dessa possibilidade e de que o que fazemos é apenas um pequeno exemplo. De toda forma, o que se buscará fazer é um exercício biográfico, a partir de fragmentos existentes no arquivo construído por Tom.

1 Esse bilhetinho encontra-se na série Correspondência Pessoal do acervo ACJ, Cp003. 2 Os dados apresentados se basearam principalmente na biografia Um homem iluminado, de Helena Jobim. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996 e na gravação do MIS, Depoimento para a posteridade, de 1967, ambos constantes de seu acervo. 18

1.1 BIOGRAFIAS E AUTOBIOGRAFIAS: UM PREÂMBULO

Os historiadores da Antiguidade, desde 500 d.C., começaram a usar o termo biografia para identificar os relatos sobre a vida de alguém, normalmente famoso. A prática de escrever biografias percorreu os séculos, voltando-se para os “grandes homens”. Eram sempre elogiosas, visando mais ao legado político ou religioso do biografado, como os panegíricos gregos ou os exempla europeus da Idade Média, sem qualquer preocupação de se fundamentarem no uso de documentos. Apenas no século XIII, Boccaccio escreveu a vida de Dante, apoiando-se em um certo tipo de pesquisa documental e introduzindo uma concepção mais moderna de biografia (BORGES, 2005, p. 226). Entretanto, o marco da biografia moderna é a publicação, em 1791, de James Boswell, Life of Samuel Johnson LL.D., ainda sem edição brasileira. Pelo método empregado, que além da pesquisa documental, produziu entrevistas com personagens variados, inaugurou uma nova fase para a escrita biográfica3. Baseando-se em uma extensa pesquisa de vinte anos, que demandou mais seis para escrever a biografia, seu objetivo era contar a “verdade” sobre os fatos da vida de Samuel Johnson — jornalista, crítico e romancista. A partir do livro de Boswell, as obras desse tipo procuravam alcançar a completude da vida do biografado, mas é possível considerar a biografia também uma rápida incursão pela trajetória de alguém, passando apenas por datas e fatos mais relevantes. Vavy Borges (2005, p. 213), seguindo a literatura especializada, enumera três tipos de escrita biográfica, segundo a finalidade e o grau de elaboração: artigo de dicionário biográfico: um breve resumo da vida de uma pessoa pública, por vezes famosa; monografia de circunstância: como elogios fúnebres ou ligados a uma circunstância particular (breves, muitas vezes presentes na imprensa escrita); e biografia científica ou literária: obras maiores, com finalidade histórica, que trabalham com documentação numerosa e variada.

3 Um exemplo da importância desta obra é demonstrado pelas dez edições que teve em trinta anos. (BORGES, 2005, p. 205). 19

O estudo e sobretudo a escrita de biografias passou por altos e baixos através do tempo. Eis, grosso modo, as três fases delineadas por Daniel Madelénat4: 1) clássica, da Antiguidade até o século XVIII, praticada, principalmente, pelos gregos; 2) romântica, do século XIX ao início do século XX; e 3) moderna, a partir principalmente da década de 1970, relacionada à Psicanálise, Ética e História. O movimento ocorrido a partir do Renascimento, transformou as formas medievais de relacionamento interpessoal, econômico e político. Mais ainda, a partir do século XVIII, com o progressivo avanço das chamadas sociedades individualistas, tornou-se possível a constituição de “arquivos”, também pela acumulação dos “homens comuns”. O indivíduo passou a se perceber como célula de uma sociedade complexa, mas como célula única, podendo sua memória ser interessante para si e para os outros. Devido à necessidade de, no século XIX, estabelecerem-se e/ou firmarem-se conceitos que justificassem a nação e o governo, e grandes feitos de homens públicos, as “idiossincrasias pessoais”5 desapareceram e acabaram produzindo uma derrocada pelo interesse na biografia. Como irá ressaltar Sabina Loriga, não parecia óbvio que o “destino individual dos homens ilustres permitia compreender as escolhas de uma nação” (LORIGA, 1998, p.229). Mas essa situação se altera e, com o passar do tempo, as mudanças da historiografia, sobretudo a partir do fim dos anos 1970, produzem uma “nova História”, com destaques para o olhar individualizado e todos os olhares possíveis dentro de um mesmo fato. Em 1985, o assunto biografia mereceu um congresso na Sorbonne, mas, mesmo assim, foi admitida apenas como “uma modesta ferramenta, que ajuda a melhor observar ou a ilustrar as tendências longas, as estruturas, as forças de peso; em hipótese alguma ela poderia pretender tornar-se uma alavanca intelectual”6. Entretanto, a atenção que faltou aos historiadores sempre foi dada pela Literatura, que manteve o interesse na “história de vida”7, mesmo sendo ainda dos “grandes homens”. Talvez, vindo por esse caminho, seja plausível entender a

4 Informação transcrita por Vavy Borges encontrada em MADELENÁT, Daniel. La biographie. Paris: PUF, 1984. 5 BUCKLE, Henry T. History of civilization in England. (London, 1857-61) apud LORIGA, 1998, p.231). 6 BONIN, Hubert. “La biographie peut-elle jouer un rôle en histoire économique contemporaine?” apud LORIGA, 1998, p. 227. 7 Termo adquirido da Sociologia. 20

proliferação das biografias escritas por jornalistas desde a década de 1980, impulsionando um retorno que enche as prateleiras das livrarias, deixando claro que muitos historiadores ainda têm ressalvas com este tipo de trabalho. Um exemplo dessa relação de amor e ódio dos historiadores para com a biografia é o exemplo do grande medievalista Jacques Le Goff. Vavy Borges, em seu texto sobre biografia, seleciona quatro situações: 1) na década de 1970 teve duas chances de mencionar o termo biografia e não o fez: na coletânea Faire l’histoire, em parceria com Pierre Nora, e na enciclopédia La nouvelle histoire, em parceria com Roger Chartier e Jacques Revel 2) já em 1989, comentou “[a biografia é] um complemento indispensável da análise das estruturas sociais e dos comportamentos coletivos”8 3) dez anos depois, elogia veementemente: “a biografia é o ápice do trabalho do historiador”9, 4) tendo ele mesmo se dedicado por anos a escrever São Luís, evita a ligação com a biografia afirmando: “nem meu São Luís, nem meu São Francisco de Assis são, na verdade, biografias. São Luís é a tentativa de contar, mostrar e explicar tudo que podemos saber sobre um personagem enquanto indivíduo”10. A biografia encontrou ainda favorecimento no advento da História Oral, que desde 194811 vem oferecendo voz e vez aos homens comuns, que sem terem sido grandes governantes ou religiosos, participaram dos acontecimentos históricos. Uma metodologia que está ligada a toda uma renovação historiográfica, pela qual vimos passando nas últimas décadas, e que procura retomar o papel do sujeito na história seja o “grande homem” ou não. O interesse da História pelos arquivos privados/pessoais está ligada a essa transformação maior. Os arquivos pessoais seriam, portanto, a principal fonte para o estudo da vida privada de um indivíduo — as “‘vozes’ que nos chegam do passado, [os] fragmentos de sua existência que ficaram registrados, ou seja, [as] chamadas fontes documentais” (BORGES, 2005, p. 212). Sejam cartas, cadernos de anotações, diários ou entrevistas, memórias ou relatos de amigos e parentes, enfim, o importante é que registrem uma parcela do que o titular do arquivo quis perpetuar.

8 LE GOFF, Jacques. Revue Le Débat, n. 54, 1989 apud BORGES, 2005, p.209. 9 _____. Libération (jornal), 7 out. 1999. apud BORGES, 2005, p.209. 10 _____. Jornal do Brasil, 19 maio 2001. apud BORGES, 2005, p.229. 11 Em 1918, a publicação de William Thomas e Florian Znaniecki, sobre os imigrantes poloneses nos Estados Unidos, causou efervescêcia no campo da pesquisa biográfica. Entretanto, o marco oficial é 1948, com a invenção do gravador a fita. (ALBERTI, 2005, p. 156) 21

Cabe ainda ressaltar que cada um desses documentos são vestígios do que aconteceu na vida do biografado. E, claro, nunca irão registrar a totalidade dos acontecimentos, que por sua vez geraram decisões que vão impactar outras pessoas e seus outros arquivos. Escrever sobre a vida de alguém significa fazer resumos, seleções de tudo o que viveu, partilhou, pensou… Não se devem buscar nunca a totalidade e a homogeneidade de uma vida, pois elas não existem: todas as vidas são fragmentadas e permeadas de conflitos. Admitir essa característica (não é uma limitação) torna a pesquisa e o texto mais eficiente. Todo esse debate sobre a biografia e o papel do indivíduo nas Ciências Sociais, Filosofia, História e Psicanálise ensina como trabalhar nessa perspectiva é algo arriscado: trata-se de iluminar uma vida, inserida em um contexto enorme e complexo. A biografia seria para Philippe Levillain, em resumo:

(...) o melhor meio, (...) de mostrar as ligações entre passado e presente, memória e projeto, indivíduo e sociedade, e de experimentar o tempo como prova da vida. Seu método, como seu sucesso, devem-se à insinuação da singularidade nas ciências humanas, que durante muito tempo não souberam o que fazer dela. A biografia é o lugar por excelência da pintura da condição humana em sua diversidade, se não isolar o homem ou não exaltá-lo às custas de seus dessemelhantes. (LEVILLAIN, 1996, p. 176)

E os arquivos, nessa concepção, são os melhores exemplos da consciência e intenção do autor em “arquivar a própria vida”, segundo expressão de Phillipe Artiéres.

1.2 UM BRASIL BOSSA NOVA

[A “Sinfonia da Alvorada” é contemporânea da Bossa Nova]. Ela foi feita e gravada em 1959, mas o disco saiu com data de 1960. A Bossa Nova começou por volta de 1956 e foi até o começo dos anos 60. (JOBIM in LOYOLA, 1988, p. 38)

A esta altura percebe-se a necessidade de discorrer um pouco sobre o panorama da sociedade cultural brasileira nos anos 1950, para contextualizar esse momento na

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vida de Tom. Não nos propomos abranger todos os aspectos, fatos e momentos (a bibliografia sobre o tema é vastíssima, sob todos os pontos de vista), mas somente fornecer alguns elementos para entender em que contexto Tom chegou a ser um grande músico. Os anos 1950 são considerados “anos dourados” e datam dessa década: as primeiras televisões que foram fabricadas no Brasil, da marca Invictus; o Maracanã, inaugurado em 16 de junho de 1950; o Brasil conquistando três Copas do Mundo (1950, 1954 e 1958); e a I Bienal de São Paulo, inaugurada a 20 de outubro de 1951. Nessa época também houve importante modernização na imprensa, podendo-se citar o lançamento da revista Manchete e da Editora Abril. Além disso, novas cores e matérias-primas foram introduzidas na propaganda, vindas do plástico, o Museu de Arte Moderna, aberto em 1958, tinha linhas modernas e jardins projetados por Burle Marx; e ainda havia os glamourosos concursos de miss e desfiles da Casa Canadá. Após a crise política que o suicídio de Getúlio Vagas provocou no país, Juscelino Kubitschek foi eleito e assumiu a presidência do Brasil, no ano de 1956. Seu governo foi marcado por importantes realizações para alavancar ainda mais o movimento de modernização que começara nos anos 1930. Bastante diferente do último governo de Vargas, os anos JK começaram com euforia. Uma das suas primeiras ações foi criar o Conselho Nacional de Desenvolvimento (CND) para colaborar na montagem do Plano de Metas. Logo, emcampou a idéia visionária de construir a capital do país no Centro-oeste, e prometeu avançar “50 anos de progresso em 5 anos de governo”. A construção de Brasília foi mesmo o maior feito da vida política dos anos 1950. A primeira Constituição Republicana, de 1891, já previa a construção da capital para promover a ocupação do interior do país, mas esta foi sendo posta de lado a cada governo. Mesmo descrente, o Congresso aprovou a Lei n° 2874, sancionada por JK em 19 de setembro de 1956, determinando a mudança da Capital Federal e criando a Companhia Urbanizadora da Nova Capital — Novacap. Projetada por Lucio Costa e Oscar Niemeyer, suas obras começaram em fevereiro de 1957, com turnos ininterruptos de 300 mil operários, por 41 meses. O Plano Piloto e a urbanização, estruturados por Lucio Costa, e os prédios, desenhados por Oscar Niemeyer, foram considerados, à época, grandes inovações urbanísticas e arquitetônicas. Em entrevista à revista Manchete, em [dez. 1981], Oscar Nyemeyer lembrou dos pedidos de JK:

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Disse-me JK, no primeiro encontro que tivemos: ‘você vai projetar o bairro mais bonito do mundo: uma igreja, um cassino, um clube e um restaurante, diante de uma grande represa. Mas eu preciso do projeto do cassino para amanhã’. […] E Brasília surgiu, praticamente uma continuação da obra da Pampulha. E lá fomos nós, convocados por JK, para aquele fim de mundo onde, com a colaboração eficiente de Israel Pinheiro, construiu a nova capital do nosso país. Foram três anos e meio de angústias e esperanças, de trabalho sol a sol, naquela solidão do cerrado onde um pouco de nós mesmos ficou, com certeza. Depois… depois vieram a ditadura, os imprevistos da vida, esse rir e chorar que o destino nos impõe. (MAYRINK, 2002, p.53)

A inauguração, bastante pomposa, aconteceu a 21 de abril de 1960, data escolhida por JK, em homenagem à Inconfidência Mineira. Para dar mais glamour a esse feito, principalmente na inauguração, Juscelino convidou os dois mais famosos compositores da época para conceberem uma sinfonia para Brasília, contando a heróica marcha rumo ao oeste e ao futuro promissor do país: Vinicius de Moraes e Tom Jobim. Há quem diga que foram os anos dourados – imagem que busca traduzir a agitação política e a efervescência cultural dos anos 1950. Logo no início da década, o povo brasileiro se entretinha com o rádio e o cinema nacional. Com os investimentos financeiros nas indústrias de base, durante os governos Vargas e JK (1951-1961), foi possível ampliar o consumo dos bens duráveis, como carros e os eletrodomésticos, como geladeira, radiovitrolas e secadores de cabelos, além de se poder viajar no primeiro avião comercial do Brasil, o Caravelle (LUCCHESI, 2002, p.13). Em meio a esse otimismo, o cenário da cultura estava a franco vapor. Os jornais anunciavam o êxito da música popular brasileira. Num recorte de 1956, com título “As cem melhores músicas brasileiras de 1955”, da seção Disco-tocando12, está escrito:

Aqui está a prova definitiva de que o ano de 1955 foi um dos melhores para a música popular brasileira. Reparem que apesar do número incrível de versões que apareceu, nossa música se distinguiu e vendeu muito bem. Isto

12 Não foi possível identificar a revista que publicou o recorte.

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demonstra que não é a versão que atrapalha. Existe até a necessidade de fazer versões. Das boas músicas, é claro. O que precisávamos era reagir de maneira inteligente, ou seja, gravando coisas realmente boas. Dando oportunidade aos bons compositores (Acervo ACJ, Pim 031).

E seis músicas de Tom foram contempladas na lista. “Se é por falta de adeus”, em parceria com Dolores Duran, ocupou o 79° lugar. Outras canções, em parceria com Billy Blanco, ocuparam do 95° ao 99° lugar: “Matei-me no trabalho” (95°), “O Morro” (96°), “Hino ao Sol” (97°), “Arpoador” (98°) e “Descendo o Morro” (99°). Além de mencionar o Sinfonia do Rio de Janeiro como um dos três melhores discos da Continental lançados no ano de 1955.

13 1.3 CONCEITUAÇÃO DE CULTURA POPULAR

O conceito de cultura popular é, como tantos outros, abstrato e dicotômico. Embora esteja se formando há muito tempo, ainda pode significar opostos extremos: dependendo da conotação que se quer dar, se mostra positivo (Tom Jobim é um ícone da cultura popular!) ou pejorativo (O funk também o é) (ABREU, 2003, p.83). No seu texto Cultura popular na idade moderna, Peter Burke começa a ampliar o conceito de cultura, usado por Herder como o fluxo da comunidade14 para referir-se à arte, literatura e música [...] hoje, contudo, seguindo o exemplo dos antropólogos, os historiadores e outros usam o termo "cultura" muito mais amplamente, para referir-se a quase tudo que pode ser apreendido em uma dada sociedade, como comer, beber, andar, falar, silenciar e assim por diante (BURKE apud MELO, 2007) De uma maneira ou de outra, a cultura popular reflete a produção artística (e por que não tecnológica) do povo (sendo povo todos os participantes de uma nação) sobre a percepção de seu meio, com as diferentes técnicas de que dispõe para fazê-lo.

13 Cabe ressaltar que não devemos comentar a discussão entre erudito e popular, nem situar Tom numa das duas áreas, mas apenas situar o leitor sobre alguns questionamentos da autora sobre o assunto.

14 O conceito de cultura saltou, completamente aramado, da cabeça de Johann Gottfried Herder, nos meados do século XVIII, e tem andado envolvido em batalhas desde então. Para Herder, Kultur é o próprio sangue vital das pessoas, o fluxo da energia moral que mantém intacta a sociedade. Em contraste, a Zivilisation é o verniz das maneiras, a lei e técnica. As nações podem partilhar a civilização; mas serão sempre distintas na sua cultura, uma vez que a cultura define o que elas são (SCRUTON, R, 1989). 25

Para uns, a cultura popular equivale ao folclore […] para outros, inversamente, o popular desapareceu na irresistível pressão da cultura de massa […] e não é mais possível saber o que é original ou essencialmente do povo e dos setores populares. Para muitos, […] o conceito ainda consegue expressar um certo sentido de diferença, alteridade e estranhamento cultural em relação a outras práticas culturais (ditas eruditas, oficiais ou mais refinadas) em uma mesma sociedade, embora estas diferenças possam ser vistas como um sistema simbólico coerente e autônomo, ou inversamente, como dependente e carente em relação à cultura dos grupos ditos dominantes. (ABREU, 2003, p. 83)

Só a tentativa de fechar toda a diversidade e a imaterialidade dos modos de fazer um tipo de cultura popular, já traz consigo o limite de outros conceitos também feitos pelo povo e para o povo. A produção popular sempre houve; os intelectuais é que ainda não tinham desenvolvido o interesse por elas. A partir do século XVIII, por causa do movimento de formação das nações européias, o resgate da cultura popular nacional foi a opção natural para agregar o povo e dar-lhes uma identidade comum. Esse resgate trouxe também a oportunidade de o povo se mostrar no espaço público, político e econômico. Não podemos restringir as opções, e por isso, talvez, não devêssemos sequer nomear, rotular, de uma maneira ou de outra. Talvez fosse mais coerente apenas aceitar as misturas ocorridas em tantos séculos de convívio social do que precisar onde começaram, quem as juntou ou por que mudaram. Pois os interesses de momentos diferentes, ou de grupos diferentes, carregam os rótulos para uma corrente (popular) ou para outra (erudita) ao sabor do vento. Não vou resistir ao exemplo do concerto Jobim Sinfônico. Sempre considerado popular, pelos músicos eruditos, e elitista, pelas camadas populares, Tom Jobim circula livremente nos dois mundos. O trabalho de seleção das suas obras e resgate dos arranjos sinfônicos, para apresentação do concerto, agradaram aos dois grupos que pôde ouvir, por exemplo, “Se todos fossem iguais a você”, música popular escrita para a peça Orfeu da Conceição, tocada pelas melhores orquestras do Brasil e dos Estados Unidos. Para este trabalho, vamos considerar principalmente a cultura popular massivamente representada: rádio, jornais, cinema e televisão.

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1.3.1 O POPULAR MASSIFICADO

as pessoas, as culturas, a música comunicam-se umas com as outras. Há influências sempre novas, como disse Radamés Gnattali, pois de outro modo a única música brasileira mesmo seria a dos tupis e guaranis, que por sua vez, dizem os antropólogos, tem sua origem na Oceania. O uso de instrumentos como o violino, a harpa, o oboé, a trompa, etc., na nossa música é tão lícito quanto o do violão, do cavaquinho e da flauta que, por sua vez, não são instrumentos inventados no Brasil. (Acervo ACJ, Pim 047)

No campo do cinema, Nelson Pereira dos Santos deslanchou problemas sociais no seu engajado Rio 40º (1955), inaugurando o Cinema Novo. Segundo Cacá Diegues: “no caso do Cinema Novo, o projeto era muito simples — tinha só três pontos: mudar o cinema, mudar a história do Brasil e mudar a história do planeta” (DIRECTV, 2006). Outros grandes autores formaram o grupo: Glauber Rocha, Paulo Cesar Saraceni, Joaquim Pedro de Andrade e Ruy Guerra tendo

todo o ideário […] baseado na discussão do nacional, na controvérsia e na negação da versão oficial. Produto de jovens cinéfilos, intelectuais, leitores da Cahiers du Cinema, que queriam e conseguiram marcar a época com o diálogo entre a agenda política e a inserção dos oprimidos em um sistema onde a exclusão era negada e escondida. (CINEMANDO (II), 2007)

Eram oposição ferrenha a tudo o que vinha da Companhia Vera Cruz paulista, tida como interessada apenas no mercado externo, tentando rodar filmes em estúdio, como o padrão norte-americano, com técnicos e equipamentos importados. A idéia era abolir a produção inviável — caríssima — da Vera Cruz e com “uma idéia na cabeça e uma câmera na mão”, procurar aproveitar a luz e o belo cenário natural do Rio de Janeiro, trazendo formas e conteúdos novos. Outro “inimigo” a combater era a chanchada da Atlântida. Atuando basicamente com paródias, ridicularizando filmes estrangeiros (leia-se hollywoodianos), a chanchada foi acusada de alienante por não se preocupar com as questões sociais apresentadas no Brasil.

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Os anos do crescimento da chanchada, entre 1930 e 1940, foram marcados por golpes, contra-golpes, censura e uma Guerra Mundial. Getúlio Vargas, populismo, Estado Novo, Revolução de 32, UNE, ditadura, Filinto Muller e DIP são alguns dos personagens destes anos tão movimentados e que traçaram o futuro do país de forma dura e permanente. Isto sem contar a 2ª Grande Guerra e a participação brasileira nas forças aliadas. (CINEMANDO (II), 2007).

O Cinema Novo se propôs então a criar um outro cinema: diferente do anterior, mas condizente com as produções estrangeiras, embora engajado com as questões sociais15. A maioria desses filmes tinha trilha sonora composta por integrantes do movimento chamado Bossa Nova. Tom compôs trilha para, entre outros filmes, Orfeu negro (1959), do diretor Marcel Camus, Arquitetura de morar, de Antonio Carlos Fontoura, Porto das Caixas, de Paulo Cesar Saraceni e Gabriela, de Bruno Barreto. No teatro, e com grande aceitação do público da época, a peça de Vinicius de Moraes, Orfeu da Conceição, escrita entre 1955-1956, também queria dar vez ao morro. O Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) e A Escola de Arte Dramática (EAD)16 tentavam ter maior alcance do público. O TBC modernizou o prédio do teatro, contratou equipe fixa, com técnicos estrangeiros e importou equipamentos. Depois, expandiu para a Companhia Vera Cruz de cinema e fechou as portas dos dois por conta dos altos investimentos à Vera Cruz sem retorno. Grandes atores surgiram destas companhias como Tonia Carrero, Cacilda Becker, Paulo Autran, Fernanda Montenegro e Walmor Chagas. O rádio foi introduzido no Brasil em 1922, na Exposição do Centenário da Independência, montado no Corcovado. Uma estação transmitiu o discurso do presidente Epitácio Pessoa e a ópera “O guarani”, de Carlos Gomes. A primeira emissora surgiu em 1923, a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, organizada por Edgar Roquette Pinto e Henrique Morize. Até 1930, o país contava com dezesseis emissoras que funcionavam como associações recolhendo contribuição de seus associados para oferecer o acesso ao som. A legislação de 1931-32 consolidou o rádio permitindo a

15 Os filmes e criadores mais importantes do Cinema Novo são: Quand le soleil dort, 1954, de Ruy Guerra; O grande momento, 1957, de Roberto Santos; Couro de Gato, 1960, de Joaquim Pedro de Andrade; Porto das Caixas, 1962, de Paulo Cesar Saraceni; Ganga Zumba, 1963, de Cacá Diegues; Deus e o Diabo na terra do sol, 1964, de Glauber Rocha. 16 O TBC foi criado em 1948 e a Cia. Vera Cruz em 1949, ambos por Franco Zampari. A EAD foi criada por Alfredo Mesquita, também em 1948. 28

veiculação de publicidade sem autorização prévia do governo, o que garantiu a geração de recursos, dispensando a contribuição dos associados. A partir daí o rádio vai se tornando popular, se convertendo na melhor opção de informação do trabalhador que podia aprender como escovar os dentes, ouvir a narração das partidas de futebol e o valor do salário mínimo! A Rádio Nacional foi inaugurada por Vargas em 1940 e realizava um trabalho fundamental de propaganda do governo e de informação que abrangia todo o território nacional. Tom Jobim teve seu primeiro emprego nessa instituição e teve o apoio de profissionais como Radamés Gnattalli, maestro Guaraná, Lindolfo Gaya, Léo Perachi e Lírio Panicalli, “que era muito ciumento dos segredos da orquestra. Ele tinha medo de que alguém roubasse alguma idéia. ‘Tom, a gente leva tanto tempo para aprender essas coisas...’, dizia. Flauta, clarinete ou oboé. Se mudasse essa ordem já não funcionava mais. Não tem esse som. Lírio, paulista de Guaratinguetá, era amigo de Villa-Lobos. [...] Aquilo era uma espécie de família da Rádio Nacional, que era uma espécie de TV Globo da época”17. Com o legado positivo dos programas de notícias dos anos 1940, como o Repórter Esso, a Rádio Bandeirantes montou a grade ainda mais intensa de informações a cada quinze minutos. O radiojornalismo era o principal formato, mas os programas musicais também tiveram sua vez – programas de auditório e as radionovelas eram a sensação do momento. Com as primeiras transmissões da TV Tupi, de São Paulo, em 1950, o rádio perdeu espaço, mas se transformou, modernizou e completou a TV, que ainda tinha aparelhos enormes e precários e imagens de baixa qualidade. Os sucessos do rock norte-americano e o começo da Bossa Nova foram transmitidos pelas ondas do rádio. Celly Campello, Dolores Duran, Ataulfo Alves, Aracy de Almeida foram apenas alguns intérpretes consagrados nessa época.

17 Essa citação foi colhida num dos painéis biográficos da exposição Nas trilhas do Tom, realizada no Rio Design Barra, em 2002, para comemorar a inauguração do Instituto Antonio Carlos Jobim. Não foi possível localizar a fonte inicial. 29

1.4 UMA HISTÓRIA BIOGRÁFICA DE TOM JOBIM

1.4.1 OS PRIMEIROS ANOS DE UMA VIDA

Tom gostava de falar sobre seu nascimento. Em várias oportunidades, pôde nos dizer que nasceu em casa, num 25 de janeiro, em que faltava água no bairro da Tijuca. Seu tio e padrinho, “Marcello Brasileiro de Almeida, corria ao vizinho trazendo bacias d’água que o Doutor [Graça Mello]18 mandava ferver. O Doutor pedia café incessantemente até que acabou o pó. Minha tia Yolanda recolheu os restos dos cafezinhos, botou-os numa panela, requentou-os e conseguiu servir ao médico o derradeiro cafezinho” (Acervo ACJ, pi979). Sua mãe, D. Nilza, era muito jovem na época (apenas dezesseis anos) e “brincava de boneca” com ele. (Acervo ACJ, E14). A Tijuca era um bairro de classe média alta e, por causa das dificuldades em manter financeiramente a família, ela acabou se mudando para Copacabana e depois para Ipanema, no decorrer do ano de 1929. Embora tivesse orgulho de nascer na Tijuca, perto da floresta que tanto amava, gostou muito de passar a infância numa “Ipanema selvagem, dunas de areia branca, vegetação típica de restinga, lagoa cheia de peixe, camarão, siri, muita gaivota branca, atobá (mergulhão), tesourão (joão grande, carapira, urubu do mar, fragata magnífica), marreca irerê, muito socó” (Acervo ACJ, Pi979). O céu ainda era um viveiro de estrelas, e a cidade silenciava à noite. O contato com a natureza durante esses anos iniciais talvez o tenha impelido a ser um “ecólogo, antes mesmo de falarem nessas coisas” (Acervo ACJ, K7-147). A natureza foi, sem dúvida, um dos assuntos recorrentes de Tom em várias músicas e entrevistas: “eu devo ser a pessoa, sem máscara, que mais conhece passarinhos no Brasil. Não sou ornitólogo, mas sou amador. Sou amador porque eu amo” (Acervo ACJ, E14). Entretanto, pouca gente o ouviu dizer que, quando jovem, costumava caçar os passarinhos. Inclusive, para aliviar todas essas preocupações, aceitou o convite do amigo Tico Soledade e ficou quinze dias numa caçada pelas matas de Petrópolis19.

18 Médico obstetra também responsável pelo nascimento de Noel Rosa. http://www.clickfulano.com/camaleao.php?id=0400 19 Há dois documentos, no arquivo ACJ, que provavelmente se completam: no texto “Onça no pau é passarinho”, Pi979, Tom conta como foi uma de suas caçadas com o amigo Tico Soledade e a foto p11f14 é o registro de uma delas. 30

Nada contraditório, pois para ser bem-sucedido na caça, teve de aprender sobre os passarinhos, o que acabou despertando sua paixão: “Passarinho em gaiola é loucura, os pássaros foram feitos para voar. Detesto bicho preso. Somente um homem poderia pensar em botar um passarinho na cadeia” (Acervo ACJ, Pi979).

1.4.2 AINDA OS PRIMEIROS: CASAMENTO, EMPREGO…

Após um namoro com muitas idas e vindas, Tom se casa em 1949, com Thereza Hermanny, amiga de Helena, sua irmã e companheira de praia. Ele tinha 22 anos, ela apenas dezenove. Esse casamento lhe deu dois filhos: Paulo (nascido em 1950) e Elizabeth Hermanny Jobim (nascida em 1956). Como ganhava muito pouco, aceitou as condições impostas pela família da noiva, e assinou um contrato pré-nupcial, abrindo mão de qualquer participação nos bens da esposa. Embora não fossem abastados, o Sr. Arthur Hermanny (o Alemãozão) não quis arriscar suas economias com um menos estudante de Arquitetura20 e mais aspirante a músico. Foi por isso que seu padrasto, Celso Frota Pessoa, preferiu ele mesmo garantir o sustento da nova família, e estimulou-o a dedicar-se à música, ainda que isso significasse que, por algum tempo, tivesse de sustentar o enteado e sua mulher. No entanto, exatos nove meses depois do casamento, nasceu Paulo; e Tom se aflige com sua situação financeira. Através de um pedido do seu padrinho Marcello Brasileiro de Almeida, emprega-se como pianista na Rádio Clube e depois em casas noturnas. Essa situação era desconfortante, pois desconsiderava sua formação clássica. Poucas pessoas, evidentemente, prestavam atenção às músicas que ele tocava, e muito menos ainda ele tinha chance de apresentar suas composições. Como gostava do que fazia e queria aprender cada vez mais, passou a se dedicar aos estudos de orquestração e harmonia. Logo percebeu que sua sobrevivência econômica dependia do seu desenvolvimento como músico, e que não poderia permanecer por muito tempo na rotina de notívago. Além de pôr em risco sua saúde, já afetada pelas noites mal dormidas, pela bebida e pelo cigarro, essa rotina o irritava profundamente: era sempre obrigado a cantar o que

20 Tom Jobim cursou apenas um ano de Arquitetura, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, e abandonou a faculdade e o emprego no escritório do famoso Lucio Costa pela música. 31

o público e o dono do bar queriam ouvir. Já nessa época, Tom costumava andar com uma pastinha debaixo do braço, cheia de suas composições, e de vez em quando mostrava para um ou outro amigo. Sempre recebia comentários elogiosos, mas não tinha coragem nem chance de gravá-las. “Ia todo dia à avenida Rio Branco, com aquela pastinha. Ia ao Veloso com aquela pastinha. O pessoal me gozava: ‘o que é que você tem aí dentro da pastinha?’ Tinha arranjos... Lembro que uma vez eu fiquei ali no Veloso com a pastinha. Tomei uns vinte chopes. Quando fui para casa, senti a maleta pesada. Os caras tinham enchido de pedra e de terra, a pasta com os arranjos! Eu pensei: ‘Esse pessoal não presta mesmo...’”21. Ciente de que precisava de um emprego regular, e cada vez mais amargurado por depender excessivamente da boa vontade do padrasto, em 1954 emprega-se na gravadora Discos Continental. Uma casa que seria fundamental para sua trajetória, pois tinha entre seus contratados, músicos do naipe de , Pixinguinha, Ary Barroso e Jacob do Bandolim — todos nomes consagrados nacionalmente. Este seria um período de intenso aprendizado. Encanta- se com o fato de grandes peças musicais serem compostas por artistas que não sabiam ler uma partitura, mas que eram capazes de produzir pequenas jóias musicais. Na Continental, inclusive, torna-se o responsável por colocar nos pentagramas as músicas dos autores que não conheciam teoria musical. De certa forma, Tom tem a experiência de escrever a melodia/vida dos “outros”, de ser um mediador para esse tipo de registro e arquivamento. Não casualmente, torna-se um músico preocupado em “escrever e guardar”. É desse tempo sua parceria com Billy Blanco22, com quem dividiu seus primeiros grandes sucessos “Thereza da praia” e a “Sinfonia do Rio de Janeiro”. Em 1956, aceita um convite para ser diretor artístico da gravadora Odeon, mas permanece por pouco tempo no cargo. Reclama que as atribuições diárias lhe roubam o tempo para compor. Aposta que pode obter reconhecimento e sucesso com sua música23, e decide não ter mais nenhum emprego formal. Quando desiste do

21 Essa citação foi colhida num dos painéis biográficos da exposição Nas trilhas do Tom, realizada no Rio Design Barra, em 2002, para comemorar a inauguração do Instituto Antonio Carlos Jobim. Não foi possível localizar a fonte inicial. 22 William Blanco Abrunhosa Trindade nasceu em Belém do Pará, a 8 de maio de 1924 e reside no Rio de Janeiro. É arquiteto, músico, compositor e escritor. Foi parceiro de Tom e lançou com ele o primeiro disco de suas carreiras em 1956, Sinfonia do Rio de Janeiro. 23 Seu primeiro sucesso foi em 1953, com “Incerteza”, na voz de Mauricy Moura. 32

cargo da Odeon, anuncia o fato ao seu superior, Harold Morris, que tenta demovê-lo da idéia.

Eu disse: “Mr. Morris, não dá para ficar aqui, quero escrever arranjos”. Mr. Morris disse assim: “Quando você quiser um arranjo, você pega o telefone. Tem aqui quatro telefones na sua mesa”. Naquele tempo, o cara que tinha quatro telefones era um assombro. Eu me lembro que meu ordenado era um absurdo de 15 mil cruzeiros. Era tanto dinheiro que me mudei logo para um apartamento maior. Quando saí do cargo de diretor artístico da Odeon, Mr. Morris disse que não se podiam mudar as pintas do leopardo. Eu me senti maravilhoso – me senti “O Leopardo”24.

Produzir sua obra — compô-la, pensá-la, executá-la — torna-se então seu único trabalho. Embora com um início difícil e conflituoso, Tom conseguiu gravar algumas músicas no início dos anos 1950:

Algumas das minhas primeiras músicas foram gravadas pelo Ernani Filho, que era o cantor do Ary Barroso. Eu não tinha coragem de escrever uma música e entregar para um cantor. Certamente, ele jogaria fora, não valeria a pena... Mas a primeira música gravada foi “Incerteza”, pelo Mauricy Moura, um santista que morou em São Paulo. Ele gostou e gravou. Sempre me convidaram para gravar. Paulo Serrano, lá da Sinter, queria que eu fizesse um disco meu. Eu fugia do Paulo, apavorado: “Esse cara quer que eu seja cantor!”. Ernani gravou duas músicas minhas: “Pensando em você” e “Faz uma semana”, num mesmo 78 rotações, com arranjos muito bonitos do Lírio Panicalli. Eu fiz um foxtrote que está perdido por aí, chamado “Manhattan” em parceria com o Aloísio de Oliveira, num disco que ele mandou para os Estados Unidos. (Acervo ACJ, E14)

1.4.3 COMPOSITOR DE SI MESMO

Tom disse, em entrevista a Roberto D’Ávila para a Tv Manchete, em 1981, que sua aptidão musical não foi obra do destino, mas de “sucessivos acasos” (Acervo ACJ, E14). Talvez ele não percebesse, na época, mas todos os acasos aos quais se

24Essa citação foi colhida num dos painéis biográficos da exposição Nas trilhas do Tom, realizada no Rio Design Barra, em 2002, para comemorar a inauguração do Instituto Antonio Carlos Jobim. Não foi possível localizar a fonte inicial. 33

referia, mais parecem escolhas realizadas para compor sua trajetória rumo ao sucesso que pretendia. Um desses primeiros acasos de que Tom se lembrava foi como começou a se interessar pelo piano, e por extensão, pela música. Por volta de 1942, tinha ido parar um piano de armário Eisenholder preto e velho (faltavam algumas teclas e o revestimento de outras) na garagem de sua casa. Era para as aulas de Helena, sua irmã, e para seu desagrado. Para sorte de Tom, as atividades de menino eram bastante diferentes das de menina e ele se permitia ser íntimo do mar, das pescarias, e das brincadeiras de então: nadar na praia, correr na areia, soltar pipa. Quando começou a ter obrigações da vida adulta, e para impressionar os pais de Thereza Hermanny, começou a trabalhar, foi acometido de uma “doença inexplicável” que o prostrou na cama durante duas semanas — fez exames de “todos os caldos do corpo”, mas ficou sem prognóstico e solução (Acervo ACJ, K7-147). Segundo sua teoria “inconseqüente”, todos os pianistas são aleijados: “ninguém troca uma praia azul, uma moça bonita, uma peteca, uma bola, por um quarto escuro, um cubo de trevas, e vai tocar piano. Nenhum garoto sadio faz isso, a não ser que tenha algo muito forte” (Acervo ACJ, E14). Portanto, Tom passou a ouvir as aulas da irmã deitado no chão; já que sua mãe o proibia de ficar em seu quarto durante o dia todo, convalescendo-se da “doença inexplicável”. De repente, percebia que um som combinava com outro, e que gostaria de misturar isso. Mas só quando seu padrasto, Celso Frota Pessoa, convenceu-o de que o “piano não era negócio de menininha” (Acervo ACJ, E14), passou a ter as aulas destinadas inicialmente à irmã. “Eu teria ferido meu padrasto se fosse me dedicar à Literatura, para ser igual ao meu pai. Ele fazia gosto que eu fosse músico. Então, quando manifestei essa tendência para a música, ele apoiou: me deu um piano, com grande sacrifício, porque era um pobre funcionário público. [...] Fui músico porque achei que ele ficaria mais contente. Mas, não sou aquele músico que só fala em música. Isso é chato”.25 Tinha apenas quinze anos quando começou a compor:

fazia aquelas musiquinhas e chegavam pra mim e diziam: ‘Você não pode fazer isso. Você está privando o Brasil de escutar isso’. Mas eu botava na

25 Essa citação foi colhida num dos painéis biográficos da exposição Nas trilhas do Tom, realizada no Rio Design Barra, em 2002, para comemorar a inauguração do Instituto Antonio Carlos Jobim. Não foi possível localizar a fonte inicial. 34

gaveta. Aí, aparecia aquele editor de charuto grande e aí você assinava aquele contrato que transferia seus direitos até para o sistema solar. Agora, estou tentando inclusive recuperar algumas dessas músicas. Mas isso existiu no tempo de Noel Rosa, Dorival Caymmi, Silvio Caldas, Ary Barroso; existiu no meu tempo, continua existindo. O tem um bocado de músicas que deu para o editor. Caetano também, Gil também, Francis Hime… É uma coisa que vem de longe. (JOBIM in LOYOLA, 1988, p. 39)

Seu primeiro professor foi Hans Joachim Köellreuter, um alemão que veio ao Brasil fugindo da Segunda Guerra. Tom era um aluno aplicado, mesmo que sempre dissesse à sua mãe que tomava as aulas apenas como uma distração. Com sua segunda professora, Lúcia Bravo, recebeu estímulos para compor. Sua vontade de se tornar concertista fez com que tivesse aulas de harmonia com outro professor, Paulo Silva26. Tom cursou pouco mais de um ano da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Rio de Janeiro e abandonou todos os empregos nessa área. Algumas pessoas lhe sugeriam ser “cantor, fazer cinema e eu só queria fazer música” (Acervo ACJ, E14). “Estava desesperado com aquela vida. Fui para Arquitetura, gostava muito de desenhar. Fiz o primeiro ano, mas depois aquilo tudo deixou de me interessar e eu me enfiei na música. Eu queria escrever para orquestra, achava muito bonito”27. No entanto, não pretendia ser maestro — pois não queria se mostrar no palco — e era assumidamente tímido, e como ele mesmo dizia, “era mais background”. Essa timidez também o impediu de dirigir, mesmo com a insistência de Vinicius de Moraes, a orquestra na peça Orfeu da Conceição. Convite que só foi aceito em três raras oportunidades, todas em estúdio: a primeira, em 1956, com sua “Sinfonia do Rio de Janeiro”, em parceria com Billy Blanco, para o LP homônimo, sendo este considerado seu primeiro LP na carreira; outra vez, em 1961, na gravação de “Brasília: sinfonia da Alvorada”, e a terceira, para o programa da Rádio Nacional, Quando os maestros se encontram, por força de Radamés Gnattalli, quando incluiu uma homenagem a seu pai, com a única execução de “Lenda”: “quem me deu o nome

26 Existe em seu arquivo um recorte para o concurso de pianista do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, datado de 1952. (Acervo ACJ, Pim001) 27 Essa citação foi colhida num dos painéis biográficos da exposição Nas trilhas do Tom, realizada no Rio Design Barra, em 2002, para comemorar a inauguração do Instituto Antonio Carlos Jobim. Não foi possível localizar a fonte inicial. 35

foi o Rudolf Hermanny, irmão da Thereza. Essa música se perdeu, virou mesmo uma lenda”28. Devido a essa insistência de Radamés, “pra escrever o primeiro arranjo eu quase morri! Fiz um arranjo, depois fiz outro. O Radamés ajudou muito” (Acervo ACJ, K7-147). Embora domada mais tarde, a timidez ainda estava presente quando, num show intimista, em Belo Horizonte, em 1984, ele fala que

eu tava muito nervoso porque eu não sou muito de fazer show. Quem me levou pra fazer essa coisa de show foi o Vinicius mais o Toquinho e a Miúcha. E foi aquele show escorado em amigos, parceiros, orquestra grande… Mas nós preferimos fazer algo mais íntimo mesmo. A gente não pode continuar sendo aquele garoto tímido a vida toda, né? A gente tem que se dar um pouco mais, chegar mais perto do público, sem aquela armadura toda. (JOBIM, Tom em Minas, 2004)

Provavelmente, nenhum autor conseguiria explicar, em palavras, como se dá seu processo de criação. Tom também não se julgava capaz dessa descrição: “vem de um jeito, depois fica de outro [...] e, de repente, tá lá um troço que faz sentido”. (Acervo ACJ, E14). Tom sempre lembrava a frase de Stravinsky “a composição é feita de 5% de inspiração e 95% de transpiração”. Mas constatar a dificuldade no processo de transpor para algum registro material uma idéia não é prerrogativa dos músicos. Todas as tentativas de concretizar um pensamento são sofridas e solitárias, pois, quase sempre intermináveis, são freqüentemente vãs — mesmo após todo o esforço mental, a frase não combina com o pensamento original. Tom reclamou, na mesma entrevista a Roberto D´Ávila, que tudo tolhia seu pensamento — também o teclado o prendia e o fato de ser canhoto. E que por ter essa “estranheza”, julgava sua habilidade musical prejudicada, não conseguindo muitas vezes expressar exatamente o que ouvia dentro de si. Ou melhor, o que via, pois como ele tentou descrever, num grande esforço, seu processo de criação tentava transformar “em passado uma imagem da minha cabeça. Aquilo fica estático. Você morre, eu morro, e aquilo fica”. Como era “um perfeccionista, e sempre me choquei

28 Depois dessa, a partitura “Lenda” só foi executada em 8 e 9 de dezembro de 2001, no show Jobim Sinfônico. Esse show foi o resultado do resgate de vários arranjos originais no acervo de Tom por seu filho Paulo Jobim e o músico Mario Adnet. Esse show resultou em CD e DVD gravados ao vivo. 36

contra as impossibilidades […] na necessidade de voar” (Acervo ACJ, E14), não se deu por satisfeito em várias músicas suas. Tanto que, quando morreu, tinha sobre o piano cerca de treze músicas em processo de composição e deixou em seu arquivo outras 181 partituras inéditas. Alguns pesquisadores que tiveram contato com esses documentos relataram que as músicas pareciam prontas, mas como disse Paulo Jobim em diversas oportunidades: “se ele não gravou era porque não achou que estava terminada”. Esse conjunto de documentos sempre aguça a atenção dos pesquisadores e jornalistas, que preferem começar a pesquisa pelas “inéditas de sucesso”29. Tom Jobim encarava a composição como um trabalho regular. Gostava de ter rotina: acordar, tomar café com a família e sentar ao piano. Ficava aborrecido quando outras ocupações tomavam o tempo do piano. Era importante que ele procurasse produzir sempre para fazer jus às demandas, quase sempre inatingíveis, enquanto figura pública. O público das músicas de Tom é composto por pessoas de todos os tipos30, classes sociais, idades e religiões, portanto, difícil de satisfazer. Entre outras reclamações que fez, em várias entrevistas, Tom se incomodava em ser, mas também em ver seus amigos serem alvos de críticas, muitas vezes infundadas ou perniciosas, feitas pelos jornalistas.

O Brasil é de cabeça para baixo. A América do Sul é muito estranha: aqui a água, a Lua, nascem ao contrário… ausência de mamíferos… tudo é importado. Quer dizer: quanto mais eu me dedico à coisa brasileira, à lontra, à ariranha, a fazer a ‘Matita perê’, a fazer ‘Águas de março’, mais eles te acusam de ser estrangeiro, mais eles dançam o rock, mais eles se dedicam aos deboches. […] Incomoda ter que fazer música pra rádio, fazer por encomenda. “Música é um negócio que serve para você fazer ginástica, pra você fazer amor, fazer a guerra, como os hinos patrióticos, serve pra você se intoxicar, pra você dançar, pra você correr, pra se aproximar de Deus… música é um assunto muito vasto (Acervo ACJ, E14).

Embora tenha louvado as belezas do nosso país, lembra que, na composição, a língua portuguesa pode ser um entrave para quem pretende se lançar no mercado

29 Comentário de Paulo Jobim em conversas informais no ambiente de trabalho do IACJ.

30 Esse dado está sedimentado sobre os pesquisadores atendidos pela autora durante o período de trabalho no IACJ.

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internacional: “quando um homem escreve em português ele já está em desvantagem. Se você escrever em russo, nos EUA, vai ser melhor traduzido. As versões são uma tragédia: tem os problemas comerciais, editoriais e no fim, você nem chega a encontrar o versionista” (Acervo ACJ, K7-147). Mesmo assim, acompanhar as mudanças da língua natal, até em outro país, era premissa do seu trabalho. Mas não se furtava a um saudosismo, vez por outra:

Saudades do w, do k, do y. Saudade do kg do kilo, do km, do whisky, dos cigarros Yolanda e dos Jockey Club, saudades da kitchenette, e a falta que faz o sh, oh!, o sheik, o shampoo, o short, o shopping center, o shantung, Sanghai, show, Shakespeare, saudades do Villa e do valle, do Pae, e do Vae, do Christo Redemptor para nos redimir, da rua Redemptor, saudades intensas de Pery e Cecy, saudades do matão, do alto sertão, do Grande Sertão Veredas [sic.], saudades do yawara (tupi-guaranipara jaguar) do yawaretê (onça verdadeira), yawaretê oixuma (onça preta), da yawatirika, jaguatirica, Saudades do Brasil (Arquivo ACJ, pi979, p.6)

E, mesmo sobre um assunto tão sério, brincava, justificando: “Se antes eu era uma pessoa revolucionária, hoje estou me transformando num clássico, num obsoleto. Mas, isso acontece nas melhores famílias…” (Acervo ACJ, E14).

1.4.4 ALGUNS ENCONTROS IMPORTANTES

Não houve um encontro. Pelo menos não apenas um. Aquele encontro tão conhecido no bar Veloso, em início de 1956, foi apenas o principal. Mas antes dele, Tom e Vinicius já tinham se encontrado algumas vezes no Clube da Chave31, por volta de 1953. Ali, Tom podia tocar sem os insistentes pedidos do público dos bares. Sentia-se à vontade para mostrar suas composições, e conhecia grandes compositores e músicos de seu tempo: Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Braguinha, Antonio Maria, Lúcio Alves, Luiz Bonfá, entre outros. Vinicius lembra a Tom, na gravação do

31 Associação idealizada por Humberto Teixeira. Humberto Cavalcanti Teixeira foi advogado e deputado federal. Nasceu em Iguatu (CE), filho de João Euclides Teixeira e Lucíola Cavalcante Teixeira, a 5 jan. 1915 e faleceu no Rio de Janeiro a 3 out. 1979. No entanto, é nacionalmente conhecido como parceiro de Luiz Gonzaga, o Rei do Baião. Um grande sucesso da dupla é a composição “Asa Branca”, lançada em 1947. 38

Depoimento para a posteridade, que quando o ouviu tocar numa dessas reuniões, se impressionou: “Nunca ouvi ninguém tocar assim. Um som que parecia um som diferente que estava se fazendo com ‘Foi a noite’ e ‘Outra vez’. Fiquei impressionado”. (Acervo ACJ, K7-147). A parceria de Tom e Vinicius começou exatamente num aperto de mão no bar Villarino, em 1956, quando Lucio Rangel os apresentou. Vinicius contava ao Lucio que pretendia encontrar um compositor calouro para compor sua peça Orfeu da Conceição. Vinicius disse que “não queria nenhum ‘monstro sagrado’. Achava que precisava de sangue jovem” (Acervo ACJ, K7-147). Vinicius explicou seu projeto e entregou o roteiro a Tom. Tom precisava manter sua casa, chefe de família que era, com esposa e filho pequeno, e por esse motivo, cometeu uma pequena gafe perguntando “Tem um dinheirinho nisso aí? Como todo mundo, eu já tinha entrado pelo cano. Já tinha feito música para aqueles filmes de chanchada. O sujeito leva um ano para fazer o filme e quando vai gravar a música o orçamento está estourado e dizem ‘vamos gravar amanhã’” (Acervo ACJ, K7-147). Estranhamentos à parte, a conversa fluiu e a parceria mais ainda. Não foi só Lucio Rangel e a necessidade financeira que os uniram, mas a empatia de ambos, a competência de Tom e a inventividade de Vinicius. A possibilidade criativa desse encontro foi noticiada em uma coluna de jornal32 com os simples dizeres: “Vai ser formada em breve uma dupla sensacional: Tom e Vinicius de Morais [sic.]. Sabem lá o que é isso?” (Acervo ACJ, Pim 038). Mesmo que não tenha sido o primeiro, o encontro informal no bar Veloso foi realmente marcante e iniciou sua mais produtiva e intensa parceria musical. Se todos fossem iguais a você foi a primeira música que compuseram juntos. Embora não tenha sido de pronto, pois Tom comentou, em diversas entrevistas, que no início, eles fizeram uma meia dúzia de “musiquinhas sem graça”. No Depoimento para a posteridade, ao Museu da Imagem e do Som, ele declara: “no princípio fizemos uns três ou quatro ruins. Eu disse ‘vamos fazer mais desses ruins que depois solta’, [Vinicius] ‘tava meio preso.’ ‘Ou seja, faltavam uns dois ou três uísques’”. (Acervo ACJ, K7-147).

32 Notícia de autor e jornal não-identificados. 39

Esse é um exemplo da ansiedade de ambos, pois Tom já tinha emplacado algumas boas canções no rádio e gravado em disco a “Sinfonia do Rio de Janeiro”, em parceria com Billy Blanco. De outro lado, Vinicius já era o poetinha que em 1933, lançou seu primeiro livro, O caminho para a distância33. Tinha na bagagem oito livros com boa aceitação, duas peças, As feras e Cordélia e o peregrino e era o diplomata mais excêntrico de seu tempo.

A convivência com Vinicius foi maravilhosa. Aquela amizade, a gente ria, a gente saía, comia umas coisinhas, “comidinha de bêbado”, como dizia ele. Uns camarõezinhos e aquele uísque todo. Antes de me conhecer, ele bebia chope no Alcazar. Depois, com a ida para o Itamaraty, foi levando a vida no uísque. Vinicius me levou para aquelas casas bonitas do Cosme Velho, aquelas mulheres bonitas, cheirosas. Ele conhecia a alta sociedade do Rio, esse pessoal tradicional34.

Foi com essa bagagem que começou a produção de Orfeu da Conceição, primeira peça com o elenco inteiramente de negros. A peça trazia como Orfeu o famoso cantor Haroldo Costa, e a iniciante Daisy Paiva no papel de Eurídice. Como a Morte, ou melhor, a Dama negra, o campeão olímpico do salto triplo Adhemar Ferreira da Silva. A direção era de Leo Jusi, figurinos de Lila de Moraes, coreografia de Lina de Luca e cenários de ninguém menos que Oscar Niemeyer. A peça estreou a 25 de setembro de 1956 no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Críticas a favor e contra, o certo é que a peça conseguiu muita repercussão e que, mais tarde, foi adaptada para o cinema. O filme ganhou a Palma de Ouro, em Cannes. Durante a entrevista de Tom no Depoimento para a posteridade, Vinicius de Moraes denuncia a implicância de alguns por esse pioneirismo da peça e lembra que ouviu:

Por que vocês não filmam coisas bonitinhas? Copacabana Palace? [pausa] Inclusive essas coisas devem ser ditas porque as pessoas precisam saber

33 Livro de estréia de Vinicius de Moraes, onde reuniu seus primeiros poemas. Substituindo o prefácio, ele escreve: “São quarenta poemas intimamente ligados num só movimento, vivendo e pulsando juntos, isolando-se no ritmo e prolongando-se na continuidade, sem que nada possa contar em separado. Há um todo comum indivisível.” (MORAES, 2004, p. 165) 34 Essa citação foi colhida num dos painéis biográficos da exposição Nas trilhas do Tom, realizada no Rio Design Barra, em 2002, para comemorar a inauguração do Instituto Antonio Carlos Jobim. Não foi possível localizar a fonte inicial. 40

delas mais tarde: o Embaixador Alves de Souza lutou fortemente pro filme não ser mandado pro Festival de Cannes porque é de negros. (Acervo ACJ, K7-147).

Foi a partir desse grande sucesso que Tom pôde escolher os lugares onde queria tocar, e se tornou a atração principal da noite, começando a mostrar em público suas próprias composições. Teve reconhecimento de todos os músicos da época, até mesmo de Villa-Lobos, por quem Tom mantinha especial admiração. Tom teve a oportunidade de, em 1957, visitar a casa do maestro junto de Leo Perachi, seu amigo e professor de piano. Esse encontro o marcou tanto que, cerca de trinta anos mais tarde, escreveu um artigo elogioso ao Villa-Lobos e publicou no seu livro Ensaio poético. Tom declara:

Villa era moleque, fazia sempre molecagem. Quando estreou o Orfeu da Conceição, ele estava vendo aquilo tudo, morava ao lado do Municipal. Eu perguntei se conhecia o Orfeu da Conceição. Villa disse que sim e começou: “Conceição, eu me lembro muito bem...”, citando o sucesso do . Villa sabia de tudo, inclusive ele falou com o Claudio Santoro: “Olha, eu estou partindo, mas os dois que podem me seguir: um é você, o outro é o Tom Jobim. Cuidado com o Tom na canção de câmara, ele sabe escrever, é um perigo35.

Anos depois, em 1963, já desfrutando de grande fama nacional, Tom viaja para os Estados Unidos, com alguns músicos jovens, lá permanecendo por oito meses. Essa viagem foi um pedido do Itamaraty, ao qual Tom não pôde evitar. Aos 36 anos fez sua primeira viagem internacional, mas disse que

A Bossa Nova, realmente, deu grandes frutos: o encontro com Vinicius, com João Gilberto, com Newton Mendonça, Dolores Duran... a gente acabou fazendo uma porção de músicas. E acabamos sendo mandados para os Estados Unidos pelo Itamaraty. Eu não queria ir. Queria ficar aqui no Brasil e coisa... mas tive de ir. Eu nunca tinha saído do Brasil. Quando me vi lá, disse “peraí, não adianta querer correr pra casa”, o que era muito tentador, por causa daquela neve toda. (JOBIM, 2007).

35 Idem. 41

Mais do que ninguém, ele sabia da necessidade de estar presente, principalmente para que as versões em inglês de suas músicas não as desfigurassem, mas também para lançar sua carreira. No final de 1964, parte para Los Angeles, desta vez com a família, e prepara seu primeiro disco solo, The wonderful world of Antonio Carlos Jobim. Trabalhos e parcerias não lhe faltavam e sua casa tornou-se ponto de encontro de vários músicos brasileiros de passagem pelos Estados Unidos. Por conta do reconhecimento que Tom obteve durante sua estada nos EUA, recebeu, no bar Villarino, um breve telefonema de Frank Sinatra. Ele tinha enviado um telegrama, assinando como Francis Albert, pouco tempo antes, solicitando o telefone de Tom e fornecendo seu endereço.

Figura1 – Primeira correspondência de Frank Sinatra com Tom Jobim, Cp489

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Tom ainda tinha dificuldades de se comunicar em inglês, mas ouviu atentamente o convite para ir aos Estados Unidos tocar no programa A man and his music, com o próprio Frank Sinatra, e aceitou. O programa foi ao ar a 1 de outubro de 1967 e contou com outra brilhante participação: a da cantora de , Ella Fitzgerald. Sinatra interpretou com ACJ "Quiet nights", "Change partners", "I concentrate on you" e "", numa divertida versão, onde Tom faz brincadeiras com a letra e com a maneira de cantar (Acervo ACJ, E02). A versão da letra para o inglês e o contato com o Sinatra realmente despertaram a atenção do mundo para esse movimento do homem que olha uma moça bonita a caminho do mar. A praia e o nome Ipanema eram desconhecidos e o versionista americano, Normam Gimble, não queria colocar esta palavra porque se aproximava de uma marca de pasta de dentes. Tom insistiu e o convenceu: afinal, “o local é importante. É onde passa a garota! E tem aquele sentimento universal, que é de você estar sentado e aquela garota linda que passa. Talvez por isso a canção tenha furado o tempo, tenha continuado. Porque as moças continuam indo à praia e estão cada vez mais lindas” (JOBIM, 2007 ou Acervo ACJ, D12)

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Figura 2 – Primeiro esboço para “Garota de Ipanema”, Pi 1216 p. 54

Diz Paulo Jobim, em entrevista a Alex Solnik, ainda inédita:

O sucesso de “Garota” foi surpresa para qualquer pessoa. Até pro meu pai. Até o ponto de, um pouco, ele cansar de tocar. [...] Não me lembro do meu

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pai contando como ela foi feita. Mas tem a história de que ela foi feita para uma peça de teatro que o Vinicius queria fazer. Provavelmente, uma letra completamente diferente, que não tinha nada a ver com isso. [...] Tem um rascunho36 dele ainda falando de gaivota, de pássaro... tem uns rascunhos do meu pai e uns rascunhos do Vinicius, que vão e voltam até virar a letra final. Ela deu um bocado de voltas. (SOLNIK, 2007)

Após esse frutífero contato inicial, Tom e Sinatra ficaram bastante amigos e projetaram o disco Albert Francis Sinatra e Antonio Carlos Jobim. A boa acolhida nos Estados Unidos gera em Tom um sentimento especial de gratidão com relação a esse país. Nunca escondeu de ninguém a sua grande admiração pelos Estados Unidos, ainda que nunca tenha se tornado um americanista ou, como muitos fizeram, americanizado sua música. Como Tom passou a morar nos EUA, para trabalhar sua carreira internacional, é bastante bissexta a correspondência entre ambos. Apenas dois documentos37 a registram brevemente: o telegrama-convite, de 19 de julho de 1968, apresentado anteriormente; e dois rascunhos de carta de Tom Jobim, de janeiro de 1977, referindo-se a Frank Sinatra como “Dear (brother) Francis” (Acervo ACJ, Pi1423 23 e 24).

1.5 A CRIAÇÃO DA BOSSA NOVA

Na apreciação do que foi a Bossa Nova, toda reflexão nunca pode se restringir apenas ao seu elemento musical, ainda que a sua face mais visível tenha sido de fato as mudanças ocorridas na música popular. Isso porque, paralelamente à atividade musical, o tempo de surgimento da Bossa Nova foi também um tempo de transformação histórico-cultural, cujos desdobramentos chegam-nos até hoje. Todos aqueles acontecimentos dos anos 1950 permitiram que se sonhasse com uma nova era para o Brasil. O ímpeto desenvolvimentista parecia ser a base sobre a qual todos os equívocos do passado poderiam ser de uma vez suplantados em prol de uma era de prosperidade e valorização do brasileiro. O estrangeiro exalta a

36 Há vários rascunhos da música na série Produção Intelectual do Titular, incluindo alguns registros na subsérie Cadernos de anotações. 37 Há também uma correspondência oficial da Sinatra Enterprises, assinada por Serge Weiss, de 16 de fevereiro de 1973. 45

criatividade brasileira: a criatividade musical, futebolística, arquitetônica. O Brasil é agora o Brasil de um Pelé e de um Garrincha, de um Tom Jobim e de um João Gilberto, variações de um mesmo matiz: a potencialidade do homem brasileiro. Para Nelson Motta, essa foi “uma época de liberdade, de democracia, de entusiasmo. O governo JK, a construção de Brasília, indústria automobilística… era um clima maravilhoso. Além de todas as coisas naturais do Rio, as praias… A Bossa Nova foi a trilha sonora perfeita para aquele momento.” (DIRECTV, 2006) O termo “Bossa Nova” sempre ultrapassou o cenário musical, possuindo utilizações das mais variadas, retratando, em cada uma delas, especialmente um estado de espírito. Assim é que um presidente da República podia ser, ao seu modo, o “presidente Bossa Nova”. A bossa, gíria jovial há muito usada na linguagem coloquial, significava uma moda, uma onda. Se é verdade que foi a cena musical que elevou o termo Bossa Nova até o ponto dele se tornar uma referência de toda uma época, cumpre um breve registro da origem desse termo. Quando se dizia, “fulano tem bossa para isso ou aquilo”, ainda que hoje este emprego tenha sido diminuído, se queria dizer: ele tem uma inclinação especial para isso que se propõe a fazer; possui uma maneira ou uma qualidade especiais para tal. Assim, Bossa Nova, do ponto de vista musical, surge como o cotejamento entre jeitos diversos de fazer música, sendo ela, um jeito novo. O novo aí não quer dizer ruptura absoluta, mas sim incorporação do antigo da cena musical anterior à Bossa Nova. Segundo Zuza Homem de Mello, havia dois gêneros musicais que conviviam nessa época: “um mais ligado aos rádios, que imperava, era o baião. E o outro, era o -canção, principalmente no Rio” (DIRECTV, 2006). Os grandes cantores do rádio (Emilinha, Silvio Caldas, Marlene, Orlando Silva) não se importavam com aqueles garotos, que se sentiam “modernos”, que queriam modificar tudo e procurar novidades. A música norte-americana também estava cheia de novidades: Gerry Mulligan, Gizzy Gillespie, Duke Ellington… O jazz atraía essa rapaziada. Os primeiros foram: Johnny Alf, Dick Farney e Lúcio Alves, que serviram de inspiração para começar uma grande revolução na história da música brasileira. Segundo o próprio Johnny Alf, todo o movimento foi despretensioso, seguindo apenas a inspiração de cada um: “a inspiração que eu tive, talvez, foi por um modo de ver diferente. Eu não sabia que era um negócio que ia marcar, porque a inspiração […] vem de repente. Não posso dizer: vou fazer isso, fazer aquilo. E, de repente, você faz um negócio que vai marcar…” (DIRECTV, 2006).

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Desde o fechamento dos cassinos, no Rio de Janeiro, em 1946, as boates (Hotel Plaza, Beco das Garrafas) se tornaram opção para a classe média. As músicas feitas dessa época até 1956 foram específicas para esse público e estabelecimento: era a música romântica tocada por grupos recentes: Namorados da Lua, Os Cariocas e Os Anjos do Inferno. Há contradições no que diz respeito ao marco inicial da Bossa Nova no âmbito musical: alguns apontam o disco de Sylvia Telles, A revelação de 1955 canta “Foi a noite” e “Menino”; outros, o LP Canção do amor demais (1958), de Elizeth Cardoso, com músicas de Tom Jobim e Vinicius de Moraes; ou ainda o disco , de 1959, o primeiro de João Gilberto. Entretanto, importa dizer que eles criaram, definitivamente, a ponte pela qual o samba tradicional é incorporado por uma nova marcação rítmica, um novo tom para dizê-lo. Elizeth também participou do Chega de saudade, mas João Gilberto lhe pediu que ajustasse o ritmo que ela usava à batida do violão que ia dar. E gravaram perto de vinte vezes a mesma música! O impacto do LP foi enorme — ficaram registrados pequenos depoimentos no conjunto que a TV Directv reuniu para homenagear o movimento, em 2002: Zuza Homem de Mello disse que “nunca tinha ouvido aquilo. Parecia um som extraterrestre”; já para Nelson Motta, o LP do João Gilberto

está para minha geração de músicos e poetas brasileiros como para os americanos estava ‘onde você estava no dia em que mataram Kennedy?’. Para nós, é ‘onde você ouviu Chega de saudade pela primeira vez?’. Ele combinou a sua voz ao violão perfeitamente. E ficou constituído o tripé da Bossa Nova, a santíssima trindade. E o João Gilberto é o espírito santo! (DIRECTV, 2006).

As críticas, como sempre, também vieram: para o acompanhamento especial da bateria, que necessitava da caixeta, um instrumento criado pelo músico Guarany; para a voz desafinada de João Gilberto, e para a necessidade de regravação. Além disso, André Midani relata que na hora de apresentar o disco para os dirigentes da Odeon, eles ouviram e disseram: “mas isso é música para homossexual, rapaz”! Os críticos Antonio Maria e José Ramos Tinhorão também fizeram campanhas sistemáticas contra o movimento. A diversificação da economia, promovida pelo governo de Juscelino Kubitschek, com o implemento de novos meios de produção, alcança a ainda

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incipiente indústria de bens culturais. A produção musical e a veiculação das músicas, cada vez mais, pertencem agora ao mundo da técnica. É nesse cenário que a Bossa Nova surge e encontra terreno fértil para sua propagação. Em 1962, a Bossa Nova já era um fenômeno internacional. O show do Carnegie Hall, em Nova York, se destaca como o momento em que a bandeira brasileira da Bossa Nova é hasteada na América. Tom Jobim, João Gilberto, Luís Bonfá, Carlos Lyra, entre outros, participam do evento, que lota a prestigiosa casa de espetáculos nova-iorquina e é transmitido, ao vivo, pelo rádio. O sucesso internacional, a fama de seus principais representantes, o vigor extraordinário da música, tudo isso já colocava a Bossa Nova à frente de quaisquer modismos. As propagandas disseminaram slogans para óculos e sapatos, além de “Bossa Nova em máquina de lavar e refrigeradores”, etc. Essas utilizações buscavam chamar atenção para a originalidade e inovação dos produtos que eram então apresentados. Mesmo que antes da década de 1950 outros compositores fossem jovens bem formados culturalmente e fizessem sambas38, seu jeito de agir não configurou um movimento. A Bossa Nova foi uma revolução dos jovens que queriam fazer música para jovens como eles. Segundo Tárik de Sousa:

Eu acho que a Bossa Nova trouxe um questionamento. Quer dizer, ela pensa a música brasileira ao mesmo tempo em que ela faz a música brasileira — ela pratica e teoriza sobre ela e instala o pensamento reflexivo sobre a arte de fazer música. Eram músicos e pessoas bem-humoradas. Por exemplo, “” é uma música perfeitamente harmônica, que torna impossível a desafinação. É uma música divertida, sutil, traz bem-estar, leveza, suavidade… Não é pra pensar em nada, só aproveitar. (DIRECTV, 2006).

Os convites de gravadoras rivais começaram a separar os grupos e parceiros. Além disso, o Brasil passou por outras grandes transformações políticas em apenas três anos: renúncia de Jânio Quadros, posse de João Goulart, referendo parlamentarista, agitação política, criação dos CPCs, e finalmente, instalação da ditadura. A maioria dos artistas debandou do país e aos que ficaram, restava mascarar sua insatisfação.

38 Noel Rosa era médico; Ary Barroso e Mario Reis, advogados. 48

1.5.1 TOM E A BOSSA NOVA A Bossa Nova começou por volta de 1956 e foi até o começo dos anos 60. Tom Jobim (LOYOLA, 1988, p. 38)

O termo “bossa” sempre foi usado no sentido de onda, moda. Embora o termo possa ser requisitado por muitos outros pais, desde que Tom escreve na contracapa do LP Chega de saudade o elogio a João Gilberto, “esse baiano Bossa Nova”, e a expressão cai no gosto da imprensa, que a populariza como sinônimo de todo um movimento musical: “muita gente se intitula pai do termo Bossa Nova, mas isso era comum, estava no ar. E isso você deve a Pixinguinha, Dorival Caymmi, Ary Barroso, Noel Rosa, claro” (Acervo ACJ, K7-147). Vale lembrar que o termo “bossa nova” ampliou-se para todos os segmentos da sociedade que puderam ser aproveitados pela propaganda e que nas palavras de Tom: “muitas vezes dar nome às coisas provoca uma imensa confusão. Tinha advogado bossa nova, geladeira bossa nova… perdeu o sentido, se tornou uma palavra praticamente imprestável” (Acervo ACJ, K7-147). Em 1958, Tom conhece João Gilberto e logo propõe que façam um disco juntos. Convite aceito, durante meses trabalham naquele que seria o disco inaugural da Bossa Nova: Chega de saudade. O importante aqui não é exatamente marcar o início desse movimento, mas as mudanças que o movimento trouxe para o cenário da música e, mais amplamente, para a sociedade. As músicas de então falavam de uma musa inatingível ou eram paródias sobre mulheres ingratas, “amores bandidos”, cantados em sambas-canções ou boleros e valsas. A Bossa Nova implicou uma nova visão sobre o amor, novos acordes dentro de uma batida mais leve e diferente, e uma voz mais suave, propostos por João Gilberto naquele seu primeiro LP, visto que

a modificação não foi só na batida. Você encontra aquela batida em outros lugares anteriores a João Gilberto. Mas quem fez o negócio funcionar foi o João. Ele trouxe também a maneira de cantar, a maneira de emitir uma outra concepção pro negócio todo. E aquilo se desenvolveu. […] A música brasileira sofria de excessos de acompanhamentos: na regional tem três violões… funciona ao

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vivo, num bloco, mas a Bossa Nova viu que não podia gravar assim. […] Hoje estamos tendendo para uma música mais barulhenta (Acervo ACJ, K7-147).

Percebeu-se a necessidade de menos instrumentos e menos banda, pois os músicos queriam viabilizar suas gravações e tinham que “limpar um pouco” a melodia, diminuir os grupos: “um banquinho, um violão”, como na letra de “Corcovado”. Tom dizia que a Bossa Nova tinha “raízes seríssimas” no samba (e não no jazz), e que influenciou muito mais o jazz que o contrário, por conta da nossa maior “variedade de temas. Mas, nós temos a cultura do ‘deixa pra lá’ e os EUA, a cultura do ‘venha a nós’”. (Acervo ACJ, K7-147). Segundo Tom, a Bossa Nova nunca foi classista, como alguns críticos determinaram: aqueles jovens queriam mostrar sua leitura dos sambas do morro, falando sobre os temas que viviam: “não sabíamos que estávamos fazendo música para Zona Sul ou Zona Norte. Só queríamos fazer música!” (Acervo ACJ, K7-147).

Essas músicas que eu fiz eram músicas locais. Nunca pensei que fossem tocar lá fora. Eu vivia aquela vida na fila do lotação. A fila dava a volta no quarteirão ali na Graça Aranha e a gente para voltar para casa era aquele cheiro no ônibus, aquele ar poluído. Depois do ônibus vieram os lotações. Não havia entre nós, eu e Vinicius, uma preocupação de elite. Nada disso. Pelo contrário. A preocupação era buscar o samba do preto, da Bahia, de Dorival Caymmi, de tudo o que fosse uma coisa ligada à terra. Se você faz direito a coisa local, ela vai embora. Agora, se você ficar tentando copiar o foxtrote americano, você será sempre um copista39.

Em 1960, foi escolhido pelo presidente Bossa Nova, Juscelino Kubitschek, junto com Vinícius de Moraes, para compor Brasília: sinfonia da Alvorada, por conta da inauguração da cidade. Pouco tempo depois, participou do III FIC, com a música “Sabiá”, em parceria com Chico Buarque. O Festival Internacional da Canção (FIC) foi concebido por Augusto Marzagão e exibido pela TV Rio, no ano de 1966, e pela TV Globo durante os anos de 1967 a 1972, totalizando sete edições. As gravações eram feitas no

39 Essa citação foi colhida num dos painéis biográficos da exposição Nas trilhas do Tom, realizada no Rio Design Barra, em 2002, para comemorar a inauguração do Instituto Antonio Carlos Jobim. Não foi possível localizar a fonte inicial. 50

Maracanãzinho e reuniam multidões. A canção classificada na fase nacional representaria o Brasil na fase internacional merecendo o prêmio Galo de Ouro (ALBIN, 2008) 40. O público de 25 mil pessoas do III FIC passava pela segunda ditadura militar e conseguia ver nas músicas concorrentes, um meio de se manifestar contra o regime vigente. Por causa disso, a 29 de setembro de 1968, a música “Sabiá” foi vaiada durante 23 minutos. Era sua segunda parceria com Chico Buarque, e foi interpretada por Cinara e Cibele. Embora Tom estivesse sozinho no dia da vaia, pediu ajuda ao amigo, por telegrama, que partiu de Veneza na mesma hora. O dia seguinte era de concorrência internacional: “Sabiá” venceu e foi finalmente aplaudida, tendo sido a primeira das duas únicas vezes41 que uma canção brasileira venceu a parte internacional. Tom e Chico estavam, juntos, assistindo. Anos mais tarde ele comenta “Eu não acredito muito na multidão. […] O que foi mais duro naquele festival foi ganhar a parte nacional — duro é você ser Garrincha, duro é você ser Pelé porque lá fora você ganha fácil. Aqui, as vaias se repetem.” (Acervo ACJ, E14). O que Tom Jobim só compreendeu anos depois foi que as vaias nada tinham a ver com a letra ou melodias perfeitas da música. O problema foi a concorrente, “Pra não dizer que não falei de flores”, de Geraldo Vandré, que tinha cunho político, muito mais próximo do que os jovens da época queriam dizer. Inclusive, logo após, a música teve sua execução proibida, acusada de ofender a instituição pública, principalmente nos versos: “Há soldados armados, amados ou não / Quase todos perdidos de armas na mão / Nos quartéis lhes ensinam antigas lições / de morrer pela pátria e viver sem razão”.

1.6 ÚLTIMOS TEMPOS

Poucos anos mais tarde, Tom, como fez com todo o seu arquivo, criou uma empresa que pudesse reunir e controlar seus direitos autorais. Através da Corcovado Music, em funcionamento desde 1970, pôde desfrutar de um período de calmaria financeira. Aproveitando a vida econômica organizada e a fama internacional,

40 O prêmio foi desenhado por Ziraldo e confeccionado pela joalheria H. Stern. 41 A outra vez foi no ano seguinte, 1969, com “Cantiga por Luciana”, de Paulo Tapajós e Edmundo Souto. 51

começa a engendrar a construção do seu tão esperado sítio. Localizado em uma espécie de vale, na serra fluminense, no município de São José do Vale do Rio Preto, o sítio ganhou o nome de Poço Fundo. Várias composições suas foram inspiradas na natureza desse lugar, como por exemplo “Águas de Março”, composta durante os paus e pedras da construção; “”, riacho dentro de sua propriedade e “Chovendo na roseira”, trazida pela chuva caída no seu jardim de sua primeira esposa, Thereza Hermanny. Em 1977, vive dias atribulados, por causa do fim de seu casamento com D. Thereza. Bebe demais, fuma demais — passa tempo demais nos bares, chega a dormir em alguns — e sua saúde dá os primeiros sinais de debilidade. Apega-se com fervor a um curandeiro chamado Lourival, que recomenda, de pronto, parar de beber e de fumar para recuperar a saúde e o viço perdidos. Neste mesmo ano, foi apresentado pelo pintor Ângelo de Aquino a Ana Beatriz Lontra, estudante de fotografia da PUC-Rio. Tendo se encantado com Ana, fez várias investidas românticas para que ela, então com dezenove anos, o aceitasse, já com cinqüenta anos. A companhia de Ana lhe dá novo ânimo, ajudando-o a superar a tristeza pela distância dos filhos. Teve com a segunda esposa mais dois filhos: João Francisco Lontra Jobim (falecido em 1998) e Maria Luiza Helena Lontra Jobim. A década de 1980 foi a mais produtiva da carreira de Tom. Embora tenha começado de maneira muito triste, quando morreu seu grande amigo e parceiro, Vinícius de Moraes, a 9 de julho de 1981. Por meses a fio, Tom lamenta essa dolorosa perda: “Não pensava na morte até Vinícius morrer” (JOBIM, 1995, p. 218). As solicitações de shows eram intermitentes e para colaborar com ele, Tom monta a Banda Nova. A banda foi formada em 1982 para um show em Viena (Acervo ACJ, S12). O convite foi feito, inicialmente, para Tom tocar com a Orquestra ORF- Sinfonietta, regida por Peter Guth, entretanto, ele decidiu levar toda a banda. No início de sua formação, a Banda Nova foi composta por seus filhos Paulo, no violão e Beth, no coro; sua esposa Ana Jobim, também no coro; seu amigo Danilo Caymmi na flauta; a esposa deste, Simone Caymmi, como a terceira cantora; no baixo, Tião Neto; e na bateria, Paulo Braga. Apenas as coristas Paula Morelenbaum e Maucha Adnet (“as profissionais”, como Tom costumava dizer) entraram a partir do segundo show de gala, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, para convidados estrangeiros (Acervo ACJ, K7-134). E, por último, entrou o contrabaixista Jacques Morelenbaum,

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formando assim o terceiro casal da banda composta por onze pessoas. Após o sucesso destes shows de estréia, outros convites apareceram e a Banda Nova se apresentou por mais de dez anos, até a morte de seu idealizador. Sempre assumia o nepotismo, inclusive para sua platéia, ao que era coroado com gargalhadas. Embora seu prestígio aumentasse a cada dia42, sentia-se cada vez mais exausto pelas viagens e pelos inúmeros compromissos em sua agenda. Em 1994, recebe a notícia de que está gravemente doente, com câncer na bexiga. No mesmo ano, foi para Los Angeles, ser operado no Mount Sinai Hospital. Demonstrando a terna preocupação de pai, pouco antes da viagem, disse à sua irmã, Helena Jobim: “Preciso criar Luiza e orientar Joãozinho. Ele já vai fazer quinze anos” (JOBIM, 1995). Mesmo sentindo a obrigação de criar seus quatro filhos jovens, não resiste às complicações da cirurgia e, na presença de seu filho Paulo, morre no quarto, após três paradas respiratórias. Tomando-se a citação atribuída a Jorge Luiz Borges — “um homem não está totalmente morto até que o último homem que o conheceu também esteja” — e conhecendo o poder transformador de sua música, do carinho de uma legião de fãs, do amor que permanece de sua família e amigos, pode-se afirmar que a morte de Tom Jobim ainda não o alcançou.

42 “Garota de Ipanema” era a segunda música mais executada de todos os tempos, perdendo apenas para “Yesterday”, dos Beatles. Sobre esse fato, Tom sempre dizia: “Mas eles eram quatro” (JOBIM, 1995). Em 2004 “The girl from Ipanema”, com voz de Astrud Gilberto, entrou para a coleção 50 Recordings to the National Recording Registry, canções escolhidas pela Library of Congress, com a intenção de registrar os sucessos musicais mais importantes da história da humanidade. 53

CAPÍTULO 2: O ARQUIVO TOM JOBIM, sua maior composição

O que gostaria de fazer mesmo é escrever minha obra. É preciso escrever essas quinhentas obras, porque senão posso morrer e ninguém mais vai saber o que era aquilo tudo, com as alterações impostas pelos meios de divulgação. […] Na verdade, já escrevi todas minhas músicas, mas aos poucos elas foram emprestadas ou perdidas. Antigamente não havia xerox e, perdido o original, perdia-se tudo.

TOM JOBIM

Ainda que muitas pessoas sejam fãs inveteradas da obra de um músico, ainda que existam muitos estudiosos dessa mesma obra, que conheçam detalhes de sua vida profissional, nuances de suas melodias, e saibam de cor e salteado as letras, ainda há muito a ser pesquisado sobre ele. Um exemplo disso é o estudo que um acervo pessoal nos permite: se por um lado nos aproxima dos motivos que levaram o titular a acumular toda sua documentação, ou seja, o tipo de imagem construída por ele mesmo através dos seus papéis privados por outro lado, evidencia o plano dos guardiões dessa memória em perpetuar o projeto de construção daquela imagem. Este capítulo procura mostrar a maneira como Tom Jobim acumulou e tratou cuidadosamente de seu arquivo privado durante 52 anos de sua vida profissional. Tom decidiu manter um arquivo pessoal com o claro propósito de preservar sua obra e projetá-la para o futuro. Esse cuidado foi transmitido para seus herdeiros, que além das obras musicais, cuidam, hoje, de seu legado arquivístico.

2.1 OS GUARDIÕES DA MEMÓRIA

Tom Jobim foi colecionador de sua própria obra/vida, pois registrou de várias maneiras, e em vários suportes, as passagens que melhor a ilustravam, segundo ele mesmo. Nem sempre é fácil depreender seus critérios, mas o que queremos enfatizar é que eles existiram no arquivo de Tom e existem em todos os arquivos pessoais. Desde o início de sua carreira como músico, por volta de 1942 (apenas com quinze anos), Tom Jobim acumulava documentos no intuito de manter o registro das

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letras e melodias que acreditava poder um dia gravar, com o afinco de quem tinha a esperança de se tornar famoso. Durante muitos anos teve de se contentar em andar com uma pasta cheia de composições próprias e mostrá-las apenas aos amigos. Isto porque os responsáveis pelos bares onde se apresentava exigiam que ele tocasse apenas os hits americanos ou os clássicos franceses. Na preciosa gravação da série Depoimentos para a posteridade1, Tom diz: “Comecei a guardar as músicas na gaveta. Não mostrava pra ninguém; tinha medo” (MIS, 1967, K7-127). Mas, quando, em 1956, conseguiu gravar e orquestrar seu primeiro disco, Sinfonia do Rio de Janeiro, junto com Billy Blanco, e constituiu parceria com Vinicius de Moraes para a peça Orfeu da Conceição, Tom resolveu guardar suas composições (e versões) com um cuidado que já indicava o projeto de ser e de se manter famoso. Como fica claro pela epígrafe deste capítulo, Tom pretendia reescrever os arranjos que se haviam perdido com o tempo2. Embora esse trabalho só fosse levado a cabo por seu filho Paulo Jobim, em 2001, com a publicação Cancioneiro Jobim, era esse o seu desejo, desde 1967, quando menciona: “Outro dia encontrei com a Elizeth [Cardoso] que tem um Saci pra me dar há quatro anos! Eu quero todos os prêmios pra colocar lá em casa. Senão, a coleção fica desfalcada” (MIS, 1967, K7-127). Desde o início de sua carreira, portanto, ele procurava manter os documentos e objetos que comprovassem o resultado do seu trabalho ou que informassem sobre seu processo de criação musical. Longe de parecer um capricho, tal fato mostra que Tom tentava, com cuidado, preencher lacunas abertas, reescrever sua obra e reuni-la num corpo único – sempre no seu arquivo pessoal. A preocupação de Tom em acumular seus documentos foi herdada pelos filhos e viúva. Algum tempo depois de sua morte (8 de dezembro de 1994), a família tinha a obrigação de cumprir o principal projeto de Tom, antes de morrer: publicar seu cancioneiro, que ele havia começado com Paulinho tempos antes. Ao longo desse “primeiro mergulho no acervo” (JOBIM, 2008), outros projetos inacabados deveriam seguir em frente, como por exemplo: a edição de toda a sua obra musical, corrigida por ele mesmo;

1 Museu da Imagem e do Som. Depoimentos para a posteridade: Tom Jobim. Rio de Janeiro, 1967. Documento acessado no arquivo pessoal de Tom, no Instituto Antonio Carlos Jobim, K7-127. 2 Várias razões contribuíram para esse desaparecimento: além de condições ambientais, perdas e mudanças impostas pelas gravadoras, algumas partituras foram entregues a intérpretes e músicos e não foram devolvidas. 55

a confecção do material que idealizou para sensibilizar crianças para a preservação da natureza e a introdução à música; a compilação e repaginação de suas obras sinfônicas; a revisão de alguns álbuns e a edição de novos; a gravação de músicas inéditas, que preparava e que inclusive, deixou sobre o piano, antes de seguir para o hospital onde faleceu.

Muitos dos documentos necessários para a concretização desses projetos estavam guardados no seu arquivo pessoal, que até então, só ele conhecia. Isso, mesmo que, vez por outra, sua segunda esposa, Ana Jobim, o ajudasse a organizar alguns documentos e que durante um bom período, a amiga Vera de Alencar tivesse sido contratada também para esse fim.

O arquivo começou sem intenção. A Thereza começou a guardar em envelopes pardos todos os recortes de jornais e documentos que tinha. Quando me mudei com Tom para a casa da rRua Peri, aquilo tudo veio e não sabíamos muito bem o que tinha lá e o que fazer com eles. Quem sugeriu a Verinha foi a Thereza, porque era amiga dela. Ela começou a catalogar tudo aquilo e criou um sistema de cópias para evitarmos o manuseio. Esse foi o início. Depois a Verinha sugeriu a Piedade Grinberg para trabalhar os jornais fisicamente e a parte do conteúdo também. (JOBIM, 2008)

Como Vera Alencar tinha várias outras ocupações, e tendo dado por findo o trabalho no arquivo de Tom, ele voltou a ser acumulador e organizador de seu próprio acervo, organizando seu passado através desses documentos, e tendo como projeto3 deixar, por meio desse conjunto documental, seu principal legado. A solução encontrada pela família para levar a cabo tal projeto foi a reunião desse arquivo, que estava dividido entre as três casas de Tom4, e, também, nas casas de seus dois filhos mais velhos, Paulinho e Beth. Esse foi o primeiro passo para tomar

3 Definição de projeto, segundo Alfred Schultz e Helmut Wagner citados por Gilberto Velho em Projeto e metamorfose: ação deliberada para atingir um objetivo. “A ação deliberada resulta de planejamento, do estabelecimento de um objeto e de imaginá-lo sendo realizado, e ainda da intenção de realizá-lo, independente do plano ser vago” (VELHO, 2003, p. 103). 4 As casas de Tom onde estavam seus documentos eram: na rua Sara Vilela, no bairro do Jardim Botânico (Rio de Janeiro), no seu apartamento, onde morava parte do ano em Nova York, e o sítio Poço Fundo, em São José do Vale do Rio Preto, cidade próxima de Petrópolis (Rio de Janeiro). 56

conhecimento de seu volume documental, localizar quais documentos poderiam auxiliar a concluir aquele projeto e juntar informações e idéias para o lançamento de outros. Aos poucos, a família reuniu, na casa do filho mais velho, os baús e armários para então perceber, pelo volume e diversidade – próprio a todo arquivo pessoal –, que essa era a maior obra que Tom lhes tinha deixado. Portanto, faziam-se imperativas a institucionalização do arquivo e a profissionalização de seu trabalho de organização. A partir dessa iniciativa, os principais projetos de vida de Tom puderam ser concluídos. De forma esquemática, os resultados foram:

os cinco volumes do Cancioneiro Jobim, livro póstumo que reúne sua obra musical, com as correções nos arranjos, que Tom tanto queria. As correções foram feitas, em parte pelo próprio Tom e terminadas por Paulo Jobim. Esses livros motivaram, inclusive, a criação do selo Jobim Music Editora. a primeira edição do Tom da Mata5, em 1998, desenvolvido, mantido e distribuído pela parceria entre Furnas Centrais Elétricas, Eletrobrás, Eletronorte, Instituto Antonio Carlos Jobim e Fundação Roberto Marinho. Consiste em um projeto de educação ambiental e musical que capacita professores da rede pública a usarem, de forma criativa, os itens distribuídos, gratuitamente no kit: cinco fitas VHS, uma fita cassete, dois livros didáticos, um mapa, várias sementes de árvores nativas e um jogo de estratégia. Esse projeto deu bons frutos e estimulou, até agora, outras duas versões: Tom do Pantanal, em 2002, e Tom da Amazônia, em 2006, além da reedição do Tom da Mata, em 2007. o projeto Jobim Sinfônico, realizado por Paulo Jobim e Mario Adnet, que pesquisaram, reuniram e adaptaram os arranjos sinfônicos escritos do maestro (“Brasília: sinfonia da Alvorada”, “Orfeu da Conceição”, “Se todos fossem iguais a você”, “Lenda” e “Prelúdio”, inéditos) e escreveram outros, que ele não teve oportunidade de aprontar (“Saudade do Brasil”, “Imagina”, “Modinha”, “A casa assassinada”, “A felicidade”, “Matita Perê”, “Gabriela”, “Canta, canta mais”, “Meu amigo Radamés”, “Garota de Ipanema” e “Bangzália”). O show do projeto foi realizado na Sala São Paulo, nos dias 9 e

5 Indicamos a visita ao site http://www.tomdaamazonia.org.br 57

11 de dezembro de 2002, sob a regência de Roberto Minczuk. Posteriormente, foi lançado em CD duplo e DVD. a remasterização dos álbuns “Tom Jobim ao vivo em Montreal”, “Tom na Mangueira”. a edição de Tom Jobim em Minas. Ao vivo, piano e voz, e de dois volumes de Tom Jobim: Perfil. e mais recentemente, em 2007, a edição do DVD A casa do Tom; mundo, monde mondo, um filme de Ana Jobim sobre fragmentos, memórias e registros de Tom. Segundo a autora, “uma biografia de quinze anos”.

2.2 A CRIAÇÃO DE UMA INSTITUIÇÃO: O INSTITUTO ANTONIO CARLOS JOBIM

Dando continuidade a essa preocupação evidenciada por Tom — a de zelar por seu próprio acervo — e deparando-se com demandas de pesquisadores com a falta de condições de trabalho e com um volume de documentos que não permitia o acesso manual, a família decidiu criar uma instituição que pudesse inventariar, preservar, proteger e divulgar os documentos de Tom. Desde 1999, uma tentativa embrionária nesse sentido já ocupava cômodos da casa do filho Paulo Jobim. Foi quando Vanda Maria Mangia Klabin, amiga da família e diretora do Centro de Arte Hélio Oiticica, no Rio de Janeiro, foi convidada a organizar o acervo. Consciente do que tinha em mãos, estruturou a sede e providenciou a legalização do órgão. Como precisava de uma equipe para ajudá-la na empreitada, contactou sua amiga pessoal e então diretora do Museu-Casa da Fundação Casa de Rui Barbosa, Magaly Cabral. Ela explicou que as necessidades do acervo de Tom eram mais próximas ao trabalho que a equipe do Arquivo-Museu de Literatura Brasileira (AMLB) desenvolvia. Foi então que a chefe do setor, Eliane Vasconcellos, começou a trabalhar para levantar fundos e manter a equipe de organização, higienização e digitalização do acervo de Tom Jobim. O Instituto Antonio Carlos Jobim (IACJ), criado oficialmente em 8 de agosto de 2001, e comandado por seus herdeiros e pela diretora Vanda Klabin, é o principal detentor do acervo pessoal do maestro. Seus objetivos são, de acordo com seu estatuto: 58

a) preservar e divulgar no Brasil e no exterior, a obra de Antonio Carlos Jobim, assim como os valores culturais manifestados em vida pelo compositor; b) promover o acesso público à obra e aos materiais biográficos do compositor; c) desenvolver e/ou promover projetos, exposições, festivais e espetáculos nas áreas de arte, música, cultura , comunicação ecologia, educação e outras afins; d) editar, produzir, publicar, distribuir e comercializar obras literárias, artísticas ou científicas e outras relativas às ciências humanas, às letras e às artes, inclusive na forma de livros, fonogramas, compact disc, vídeos, CD- Rom’s, DVDs e audiovisuais, bem como outras formas de mídia eletrônica ou digital; e) editar e produzir home pages e sites na Internet; f) editar, produzir, publicar, distribuir e comercializar obras fotográficas e as produzidas por qualquer processo análogo ao da fotografia; g) editar, produzir, publicar, distribuir e comercializar as coletâneas ou compilações, antologias, enciclopédias, dicionários, bases de dados e outras obras, que por sua seleção, organização ou disposição de seu conteúdo constituam criação intelectual.

Além destes, é importante frisar que o IACJ deve também tornar disponível, especialmente para pesquisadores, toda a produção do artista, assim como desenvolver e/ou promover projetos e pesquisas nas áreas de educação, música, arte e ecologia. Inicialmente, o Instituto funcionou dentro da sede de uma empresa da família, fundada por Tom e Ana Jobim, a Jobim Music6, em um prédio comercial no bairro carioca do Jardim Botânico. Depois de ocupar por cinco anos essa sala comercial, o Instituto adaptou um dos prédios do Jardim Botânico do Rio de Janeiro (JBRJ), dentro

6 Fundada em 1990, a Jobim Music é também uma iniciativa do maestro de reunir sua obra musical, e comercial, garantindo a arrecadação de seus direitos autorais. 59

do Espaço Tom Jobim (ETJ)7, para criar as condições ideais de controle do ambiente e acesso ao acervo. Nesse sentido, foi adotado um sistema de climatização, de acordo com as normas do Conarq (Conselho Nacional de Arquivos) e com alguns casos reconhecidamente de sucesso, como o da Fundação Casa de Rui Barbosa e da Fundação Getúlio Vargas. O sistema está estruturado sobre o programa Sistrad8, para plataforma Windows que mede, em tempo real, a umidade e a temperatura da ante- câmara e da sala do arquivo, ligando e desligando automaticamente os condicionadores de ar, os dutos de ventilação e os desumidificadores sendo monitorado 24 horas por dia, via web. Como o ambiente informacional, também inovador, requeria termos muito específicos, foi necessária a ajuda dos especialistas que trabalharam para adaptá-lo9. Um pouco da sofisticada configuração da rede de computadores será descrita mais à frente, mas é baseada em três fundamentos essenciais àquilo que o trabalho exigia: todos os programas são gratuitos, seguros e atualizados, o que levou o Instituto a ser considerado case em desenvolvimento de banco de dados voltados para arquivos pessoais10. A instituição foi custeada pela própria família nos primeiros seis anos de existência, tamanha era a dedicação e o interesse pelo projeto. Até o início de nossa pesquisa, em 2007, o IACJ era mantido pela construtora Camargo Correa Desenvolvimento Imobiliário, de São Paulo, através de doação para custear seus principais gastos. A equipe de pesquisadores só é reunida quando há possibilidade de trabalho temporário. Atualmente, está em desenvolvimento o projeto de organização do acervo Dorival Caymmi, amigo querido de Tom, pois sua família solicitou esse apoio. O Instituto Antonio Carlos Jobim tornou-se um “lugar de memória”, que guarda o legado de seu patrono. Dessa forma, um confere legitimidade ao outro, como observou Luciana Heymann em relação ao arquivo e Fundação Darcy Ribeiro:

7 O ETJ está situado no Centro de Visitantes do JBRJ, criado pelo Termo de Cessão de Uso Processo N. 02011000123/22123599 para a Associação de Cultura e Meio Ambiente (ACMA) dar melhor uso a quatro prédios e uma praça, realizar manifestações culturais e atrair público para aquela área antes pouco usada. 8 Este sistema foi desenvolvido pela empresa Full Gauge, que também forneceu os sensores de temperatura e umidade. 9 Marcelo Carius e Tiago Ferreira, ambos da Carius Informática, a quem agradeço efusivamente. 10 E era o primeiro caso no mundo a usar o Dspace, voltado para acervos pessoais; pelo menos até o início de nossa pesquisa. 60

a legitimidade dentro do campo de instituições de memória depende, em grande parte, da capacidade de abrigar acervos, de reunir peças e documentos inéditos — que funcionam como manifestação material do legado — ou, ao menos, de produzir um discurso convincente e documentado na apresentação do personagem e de sua trajetória. (HEYMANN, 2005, p. 53)

A instituição depende do arquivo, pois certamente, as pessoas que estão à sua frente têm consciência do “forte capital simbólico” (HEYMANN, 2005, p. 52) que ele representa dentro de uma cada vez mais crescente vertente de pesquisadores, que mantêm interesse nos documentos pessoais como fonte primária e no arquivo como objeto de pesquisa.

2.3 CONSIDERAÇÕES SOBRE ARQUIVOS E ARQUIVOS PESSOAIS

Finalmente, antes de prosseguir no exame do arquivo de Tom, faz-se necessário relatar alguns termos e discussões no interior da Arquivística, pois nos darão alguma medida para compreendermos como foi tratado o acervo de Tom Jobim. Segundo Shellemberg, o termo “arquivo” foi conferido aos acervos pessoais somente a partir do século XX, mais precisamente em 1928, quando o arquivista Eugênio Casanova escreveu seu Archivistica. (CASANOVA apud SCHELLEMBERG, 1973, p.15). Esses acervos eram, até então, considerados pelos profissionais mais destacados da área, apenas como “coleções de manuscritos” e, no máximo, como “arquivos de família”, como a citação abaixo tão bem ilustra:

Constituem estes, por via de regra, um aglomerado de papéis e escritos, que os vários membros de determinada família, ou os habitantes de uma casa ou castelo, na qualidade de pessoas privadas ou a títulos diversos, algumas vezes mesmo como colecionadores de curiosidades, reuniram e conservaram. Os documentos de um arquivo de família não formam “um todo”; foram, não raro, agrupados segundo os mais estranhos critérios e falta-lhes a conexão orgânica de um arquivo no sentido em que o define o presente Manual. As regras para o arquivo em sua acepção própria não se aplicam, pois, aos arquivos de família. (MULLER; FEITH; FRUIN. 1960, p. 13)

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Mas, é preciso lembrar que há arquivo mesmo sem arquivistas, pois, como vimos, o acervo de Tom começou e se estruturou sem receber tratamento técnico- arquivístico adequado por quase 57 anos: desde 1944, aproximadamente o ano em que Tom começou a escrever suas letras e músicas, até 2001, ano do início do trabalho no IACJ. Embora, a pesquisa histórica usasse as fontes arquivísticas, ao menos desde o século XVIII, só haverá maior interesse pela documentação de arquivos pessoais no fim do século XX11. Comparada com outras ciências, a Arquivologia12 é relativamente recente. Depois do século XVIII, quando a “modernidade no Ocidente [foi] associada ao desenvolvimento de ideologias individualistas” (VELHO, 2003, p.39), a Arquivologia ganhou terreno para florescer. Ainda hoje, no entanto, o arquivista muitas vezes é confundido com um “detetive”, alguém que “caça” um documento em meio ao caos, ou com aquele funcionário que “tem o arquivo na cabeça” (e, provavelmente, apenas lá). Desconhece-se que o arquivista é também um pesquisador, um estudioso de fontes de primeira mão, alguém que vai criar planos para nortear a organização do arquivo, ferramentas para dialogar com os usuários, atender ao pesquisador, criando uma metodologia para atender a seu trabalho de pesquisa no acervo. No entanto, isso não significa que o arquivista se conduza por um prisma “utilitarista”. A respeito, cabe o alerta feito por Thiollent, sobre o risco de, sob o argumento da eficiência, do utilitarismo nas decisões, confundir-se prática científica com prática administrativa. Se é correto afirmar que os dias de hoje solicitam do arquivista uma visão utilitária em sua atuação junto ao arquivo, o predomínio dessa visão pode torná-lo um mero administrador do arquivo, quando não um seu “agenciador” no pleito de patrocínios junto a órgãos públicos e privados, e na busca de “visibilidade” (maior exposição do arquivo) com o fim de torná-lo viável comercialmente, esquecendo-se talvez de pensar a obra arquivada. Pensar-se a obra arquivada é também tarefa do arquivista; a prevalência da lógica da eficiência e do utilitarismo significa, cada vez mais, a morte desse pensamento científico. Se o objetivo teórico do arquivista — aquele que lida mais própria e essencialmente com

11 Lembro também que no fim de 1997, quando terminei a faculdade de Arquivologia, fui a única a apresentar monografia sobre arquivos pessoais. 12 Alguns autores, mais ligados à corrente canadense, disseminaram o termo Arquivística, como sinônimo. 62

os arquivos, por também pensar a obra arquivada — for deixado de lado, põe-se em risco aquilo em que se funda a própria Arquivologia: o seu método.

Muitos planejadores de pesquisa confundem ciência com eficiência. Em nome desta última, as pesquisas são conduzidas em função da maior acessibilidade dos dados. Assim, independentemente de qualquer objetivo teórico, recai-se em vãos cruzamentos de opiniões com categorias de idade, sexo ou profissão. [...] Ora, o argumento da eficiência não permite nenhuma demarcação entre prática científica e simples prática administrativa. (THIOLLENT, 1982, p. 128)

Assim é que o arquivista deve afastar-se de uma simples “lógica da eficiência” se quiser compreender e trabalhar com a lógica de acumulação que orientou a construção do arquivo sobre o qual está debruçado. Entender os objetivos da coleção produzida pelo titular, a função dos documentos e o mecanismo da acumulação é ponto primordial para a organização de todo arquivo privado por um profissional da área. Mais que organizar e administrar um arquivo, o arquivista preserva a memória, articulando, em sua atuação, passado, presente e futuro. No texto de José Maria Jardim, “A invenção da memória nos arquivos públicos”, o autor cita vários estudiosos que chamam a atenção para o tema. No discurso do XII Congresso Internacional de Arquivos, em 1992, disse Jean Favier: “somos arquivistas, não somos homens do passado. Nós temos a responsabilidade da memória comum dos homens e uma responsabilidade na construção do futuro”. Para Carol Couture: “o arquivista tem o mandato de definir o que constituirá a memória de uma instituição” e, para Maria João Pires de Lima: “um país sem arquivistas é um país sem arquivos; e um país sem arquivos é um país sem memória, sem cultura, sem direitos” (JARDIM, 1995, p. 4-5). Arquivista e titular do arquivo são, assim, em momentos distintos, responsáveis pela seleção dos documentos do acervo, pois se o titular seleciona o conjunto inteiro de seu arquivo, o arquivista, munido de método, aparatos técnicos e também intimistas, seleciona o conjunto-parte do arquivo que poderá ser exibido e acessado. Mas, a liberdade permitida e buscada na sociedade atual, também chega às práticas arquivísticas, ensejando mudanças até em documentos controlados pela

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Diplomática13 (ofício, cartas, atas e outros tipos, ditos oficiais). Não é exclusividade da Arquivologia, entre outras ciências, ter alguns de seus primeiros pilares desconstruídos, enquanto outros adquirem novos sentidos. Pode-se imaginar quão pesada era a idéia de manter a custódia dos documentos na instituição que os gerou, trazendo importantes conflitos quando de sua extinção ou da impossibilidade de manutenção. Também valiosa foi a desconstrução do conceito de fixar o formato de cada documento, indiferente ao suporte ou meio sobre o qual estivesse registrado. Os ajustes nesses e em outros ideais são bem-vindos e, mais ainda, imperiosos, para melhor seguir os anos que correm. É evidente que o pensamento até hoje hegemônico torna-se de difícil aceitação, que a classificação pelo suporte do documento (mapas, partituras, fotos) não mais determina a classificação arquivística, e os fundos podem ser transferidos e/ou absorvidos por outras instituições, quando há casos de extinções ou expansões. O mais apropriado seria o uso das tipologias documentais, formadas pelo tipo do documento e sua função (exemplo: correspondência pessoal, produção intelectual do titular) abrigados pelos gêneros ou categorias (audiovisuais, cartográficos, iconográficos, textuais etc.). Quando o termo “público” foi usado em relação ao arquivo de Tom Jobim, o que se tinha em vista não era o sentido de arquivos subordinados à administração pública, mas o de se tratar de um conjunto documental de acesso público. Assim, aqueles arquivos, que mesmo acumulados por particulares, permitem o acesso do público, acabam também por receber o status de “arquivo público”. Os arquivos empresariais e administrativos têm sua organização fundamentada nas atividades, funções, estrutura e descrição do órgão estudado. Ainda que de outra maneira, os arquivos privados pessoais são a eles aproximados, baseando sua organização no acompanhamento da vida do seu titular. Os arquivos pessoais, em certo sentido, nascem como permanentes, pois têm por finalidade a preservação dos documentos de valor cultural, jurídico ou íntimo de uma pessoa. São repositórios de fontes, atualmente e cada vez mais, valorizadas pelos pesquisadores de História, Ciências Sociais, Antropologia etc. Tais fontes são documentos produzidos para

13 Ciência que estuda e normatiza os tipos de documentos, incluindo o texto que ele carrega. Teve seu uso consideravelmente diminuído, mas ainda encontra importância nos dias de hoje, principalmente em situações oficiais. 64

comprovar alguma ação do titular do acervo e podem, posteriormente, ser usadas para pesquisas históricas, desde que resguardadas sua fidedignidade e autenticidade (DURANTI, 1994, p. 49). Outros dois pontos que devem ser levados em consideração são os princípios da Arquivologia de respeito à ordem original e o da proveniência. O primeiro foi estabelecido pelos franceses durante o século passado, e determina a manutenção da ordem dos documentos como foram organizados pelo titular ou pela família. Essa prática, não totalmente abolida atualmente, deve ser relativizada. Ela não deve impedir que os fundos arquivísticos14 tenham uma organização mais “racional” ou científica (LOPES, 1996, p. 68). É que, levado ao extremo, o princípio poria em risco o trabalho técnico-científico de descrição e organização do arquivo, principal função dos arquivistas; além do risco de cristalizar uma ordenação às vezes reconhecida como incipiente pelos próprios usuários/titulares15. O segundo princípio básico da Arquivologia, o da proveniência (respects des fonds), determina que os documentos gerados por uma instituição ou pessoa não devem ser misturados aos de outros geradores. Esse é um conceito extremamente útil para o objetivo desse capítulo, ficando claro, contudo, que o arquivo de Tom Jobim é o único depositado no Instituto que leva seu nome. O princípio da proveniência, desenvolvido também na França, aplica-se no sentido de ordenar os acervos de instituições que possuem vários arquivos, na acepção de fundo. Aliás, este é o início do significado de fundo arquivístico, pois permite, que num mesmo arquivo/instituição, vários arquivos/fundos coexistam, sem que se misturem ou que se perca o modo de acumulação do titular. Além disso, tornar possível, mesmo após o emprego relativo do princípio anterior, apreender como o titular do fundo formulou a consciente “política de acumulação” de seu acervo, pois mantém todos os documentos guardados por ele, ao longo do tempo, no mesmo grupo.

14 Fundo é a coleção de documentos que tem a mesma origem, organicidade ou composição. Equivale ao termo “arquivo”. 15 Em várias oportunidades, durante minha experiência profissional, ouvi dos titulares ou doadores que a organização dada era “provisória” ou a que melhor conseguiram naquele momento e que depois se “acostumaram” com a forma que tomou. 65

Os momentos de criação do arquivo podem ter sujeitos diversos. O processo de acumulação é dinâmico comportando revisões de articulação e remanejamento de peças, o que dificulta, ainda que não impeça, surpreender seu movimento, sua trajetória: sua vontade de guardar. (LISSOVSKY et al., 1986, p. 68)

Ou seja, o que o colecionador pretende com seus registros, com sua produção documental, levando-se em conta o que deseja que chegue ao conhecimento do público no futuro, isto é, a lógica de acumulação de todo arquivo. Dito de outra forma, essa lógica perdura durante toda a trajetória do titular e incide diretamente sobre o modus como ele acumula, quais documentos ele irá guardar e o uso que lhes dará. A lógica de acumulação deve ser observada no fundo e não apenas sobre as informações que um documento fornece, num primeiro olhar. É o sentido do conjunto que traz de volta o movimento ou a intenção diária de acumulação. A intenção do colecionador ao construir seu arquivo aparece, por exemplo, pela quantidade e por quais documentos acumulou, pelas ligações entre documentos diferentes: uma carta que acompanha uma fita cassete enviada a alguém e que resulta numa partitura. Às vezes, como no caso dos arquivos de Gustavo Capanema e Luiz Camillo de Oliveira Netto, a descrição que o próprio titular faz de sua maneira de ordenar está presente, de forma mais ou menos incisiva. Agindo dessa forma, o titular é, por assim dizer, o centro de gravidade do arquivo: os documentos são colecionados e se organizam segundo as visões de mundo do titular ao longo do tempo — visões sobre os “outros” e principalmente sobre si mesmo. Se, numa perspectiva mais ampla, se justifica dizer que o conjunto de arquivos (privados e da administração pública) compõe o patrimônio cultural de um país, juntamente com bibliotecas e museus, a forma pela qual esse patrimônio será apresentado ao público — variável ao longo do tempo —, também sofrerá a intervenção direta dos “guardiões da memória”, pessoas físicas ou instituições, que se responsabilizam pela formação, guarda e distribuição das informações neles contidas. Essa interferência fica evidente em duas fases bastante distintas: na seleção e na avaliação dos documentos. Mas, as considerações que se seguem, sobre seleção e avaliação, estarão sempre referenciadas aos arquivos pessoais permanentes. De acordo com a teoria das

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três idades, bastante controversa em Arquivologia, os arquivos podem ser divididos de acordo com seu uso, grosso modo, em: correntes (de uso freqüente, diário), intermediários (menos usual) e permanentes (praticamente em desuso)16. Entretanto, essa divisão não se aplica aos arquivos pessoais — que “nascem” permanentes e têm freqüência de uso equivalente ou não, durante ou depois da morte do titular. O valor do documento é que pode mudar de administrativo ou comprobatório para informativo e histórico. Assim, pode-se, por exemplo, conceber os diferentes usos de notas fiscais, recibos, cartas e testamentos antes e depois da morte do titular.

2.3.1 ACUMULAÇÃO E AVALIAÇÃO

O que chamamos de acumulação é a seleção feita enquanto o proprietário dos documentos decide como construir seu acervo, enquanto o fundo ainda é aberto17. Ele guarda seus documentos para registrar, comprovar, informar, lembrar e ser lembrado. Como dito anteriormente, Tom Jobim atuou diretamente na organização de seu acervo, sobretudo quando ficou claro, para ele mesmo, que poderia ter uma carreira e uma importância no cenário musical. A partir daí, Tom preocupou-se em guardar todos os tipos de documentos comprobatórios referentes a seus direitos autorais, às várias versões das letras que compunha, e às partituras de quase todas as suas músicas. Preencheu, ao lado dessa produção, 32 cadernos com anotações freqüentes sobre seu cotidiano. Essa preocupação, em maior ou menor grau, persegue a humanidade, mas está há pouco tempo voltada para os arquivos pessoais. Assim ocorreu com o poeta Carlos Drummond de Andrade, que, contemporâneo à criação de grandes instituições e fundador de tantas outras, manifestou o desejo de criar uma que pudesse abrigar o seu arquivo e o de outros literatos: “um órgão especializado, o museu vivo que preserve a tradição escrita brasileira, constante não só de papéis como de objetos relacionados com a criação e a vida dos escritores” (ANDRADE, 1972). Esse desejo foi realizado

16 Apenas para registrar, e de acordo com Marilena Leite Paes, os equivalentes nas empresas e órgãos públicos seria: correntes são aqueles que ficam próximo à mesa de trabalho; arquivos intermediários estariam em um depósito na mesma empresa, e os permanentes ficam armazenados em galpões externos próprios ou alugados. 17 Fundo aberto é a designação para acervos em processo de acumulação. 67

por seus amigos Plínio Doyle e Américo Jacobina Lacombe, resultando no mesmo ano dessa crônica, 1972, na criação do Arquivo-Museu de Literatura Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa. O contrário ocorreu com Vinicius de Moraes, que mesmo antes de se tornar diplomata, estabelecer moradias de curto prazo e ter nove esposas, resignou-se com o interesse da irmã, Laetitia da Cruz Moraes, de acumular seus papéis. Conforme ela lembra, no artigo “Vinicius, meu irmão”, ele mesmo reconhecia que seu acervo era “cuidadosamente guardado, até hoje, por minha irmã, que mantém – ai de nós! – os ‘arquivos implacáveis’ da família” (MORAES, 1987, p. 21). Certamente, um exemplo paradigmático do guardião da memória. Mesmo na “era da informação” e com a crescente popularização da internet, onde diários de anotações e agendas são públicos, a maioria dos arquivos pessoais ainda é constituída sobre alicerces íntimos, nunca impessoais. O fato de se querer manter privado, íntimo, conferindo importância ao fato de selecionar, em casa, o que vai constituir um arquivo pessoal, possivelmente no futuro, com acesso público. E é necessário que assim seja, porque o arquivo guarda todas as identidades que o homem público tem na vida privada (pai, avô, amigo, filho, esposo). No fundo ACJ, por exemplo, além das partituras e letras de músicas, há desenhos dos netos, plantas de suas casas, correspondência com amigos, fotos dos filhos etc. Se o reconhecimento que um artista obtém está ligado à sua intervenção sobre sua obra, dentre outras intervenções possíveis, a formação de um arquivo pessoal é, cada vez mais, decisiva para a obtenção daquele reconhecimento, por produzir uma visão de conjunto da obra, feita pelo próprio autor. Isto é, o titular de um arquivo percebe que sua construção é fator importante para o reconhecimento futuro de sua obra, numa “via de mão dupla”: primeiro, o estimula a manter, no seu arquivo, um discurso coerente com o personagem que pretende ser ou é; e em segundo lugar, afirma esse personagem público, determinado dentro de seu arquivo. Essas forças buscam um equilíbrio justamente na autobiografia e no arquivo (GOMES, 2004, p. 16). Tom Jobim enxergava isso com clareza, e sua preocupação em reunir, num arquivo, sua obra, revela o quanto considerava fundamental “guardar”. Ou seja, produzir uma memória de seu trabalho como forma de preservá-lo, permitindo o acesso a essa documentação a todos os interessados, fossem músicos ou não. Assim, toda a obra estaria reunida num grande arquivo inédito, como muitos registros pessoais e profissionais.

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Sendo um arquivo pessoal, o arquivo de Tom Jobim tem como objetivo principal a perpetuação de sua memória e legado, através de um olhar que se volta do presente para o passado, orientado por um projeto para o futuro. Um projeto pessoal que associa “memórias fragmentadas” (passados) com vontades e anseios (futuros) (VELHO, 2003, p. 101). Daí que os documentos que não puderem se relacionar com eventos acontecidos na vida do titular do arquivo correm risco de perder sentido e função. Correm esse risco, em grande parte, porque a seqüência que um documento empresta a outro, no arquivo, encontra razão, muitas vezes, apenas na memória do colecionador. Foi ele, e só ele, quem diferenciou e selecionou determinado documento para sua coleção, em meio a tantos outros. É a memória que ele quer construir e projetar de si, no tempo, através de seu arquivo, que deverá permanecer como aquilo que lhe foi mais caro, amigável e prioritário. A seleção é talvez a mais importante das ações do indivíduo sobre os arquivos. E Tom a exerceu como poucos, tomando pessoalmente a condução do seu acervo, levando em conta suas necessidades e não deixando que a passagem do tempo o desanimasse. Ainda que imprescindível, a seleção deve ser considerada com parcimônia, pois não se pode exigir que um titular, por exemplo, doe seu arquivo completamente organizado, assim como tampouco censurar o fato de uma hemeroteca não estar completa, lamentar a falta de provas sobre alguns fatos etc.

2.3.2 CLASSIFICAÇÃO E DESCRIÇÃO

O procedimento de classificação nos arquivos privados é baseado em um plano de arranjo do acervo (ver Anexo A). Normalmente, a divisão é feita em séries, que têm por base a vida do proprietário do acervo. Assim o arquivo privado consegue manter a organicidade fundamental em todo o arquivo e mais facilmente encontrada nas divisões de uma empresa. Toda intervenção no fundo tem como objetivo controlá- lo, primeiramente — seja para evitar um crescimento “selvagem” (BELLOTTO, 2007, p.47), ou para reduzir perdas de vários tipos. Concomitantemente, a classificação ainda deve suprir os objetivos de ordenar esse acervo de modo que se possa acessá-lo, através da descrição dos documentos em ferramentas técnicas, e de

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modo padronizado18. Por isso, a classificação precisa estar sempre integrada à descrição arquivística, a qual, hoje em dia, está muito relacionada às tecnologias da informação, como banco de dados. Porém, vale lembrar que esse é apenas um dos caminhos possíveis para indexar e dar acesso ao acervo. O diagnóstico, a indexação e as outras operações da fase de classificação servem para fundamentar a ordenação intelectual das informações contidas nos documentos. Obviamente, o conhecimento da teoria arquivística e de suas relações com as ciências administrativas, o Direito e a História, possibilita que os arquivistas/avaliadores tenham condições de tomar decisões mais acertadas sobre o assunto. Entretanto, os diálogos com aquelas ciências não devem ser considerados sem uma investigação profunda sobre o produtor/acumulador, os interesses dos pesquisadores aos quais se destinam o trabalho, e a política da instituição que o abriga. Essas são, portanto, variáveis anteriores à classificação e à descrição, mas não se esgotam nessa fase. Na verdade, essas relações interdisciplinares permeiam todas as etapas do ofício de arquivista. Vale ressaltar ainda que, mesmo que a etapa de classificação de documentos tenha aparatos técnicos precisos19 para limitar a subjetividade do profissional, sempre haverá em outras etapas20 a possibilidade de enfatizar um ou outro detalhe, exibir o discurso necessário para perpetuar os ideais de quem detém o “poder” de descrevê- los, e conferir maior ou menor grau de importância a dado documento (CHAGAS, 2002, p.44). Assim é que, se podemos admitir a parcialidade do titular na constituição de seu arquivo, poderemos admitir a parcialidade do arquivista no seu arranjo. Esta parcialidade nada mais é do que pensar o arquivo como obra.

2.4 O ACERVO DE TOM JOBIM

Eu gosto muito do clima seco de Brasília. Vivo num clima molhado, que é o do Rio de Janeiro. Não se pode ter um arquivo, não se pode conservar nada, nem um piano. Tom Jobim (LOYOLA, 1988, p. 38)

18 Em acervos correntes e intermediários, a classificação, conjugada com a tabela de temporalidade, ajuda também a manter o controle sobre o volume de documentos produzidos. 19 Sejam eles: tabela de temporalidade, thesaurus, modelo de arranjo ou outras ferramentas. 20 Triagem, descrição ou definição das ferramentas de arquivo. 70

Retomando o ponto anterior, desde a criação do Instituto Antonio Carlos Jobim, ficou evidente para a família e para todos, o importante legado que Tom tinha deixado. O acervo pessoal de Tom Jobim foi doado ao IACJ, aos poucos, em grandes e pequenas levas. Durante seu processo de constituição, foi mantido pelo próprio titular em suas residências. Depois de sua morte, começaram as doações esparsas de quase todos os membros da família, que completaram e aumentaram consideravelmente aquele acervo. Há que se fazer uma ressalva de fundo prático: todos os documentos produzidos por Tom ou a ele dirigidos, mesmo que não acumulados por ele, foram incorporados a seu arquivo pessoal. Afinal, os documentos se conectam e completam no banco de dados, embora fossem sempre devidamente anotadas as condições da doação em cada planilha individual. Por exemplo: algumas fitas VHS estavam em mau estado e não foi possível recuperar o programa de TV feito para a extinta Rede Manchete, A música segundo Tom Jobim, pois se havia perdido uma das camadas de cor da fita magnética e a imagem estava esverdeada. Uma doação do mesmo material foi recebida, com melhor qualidade, e substituiu o documento prejudicado. Dessa forma, a planilha carrega o nome do doador e a data da doação. Exemplos assim aconteceram outras vezes, o que não é comum em acervos pessoais, pois, como disse Tom, “perdendo-se o original, perdia-se tudo”. Mas é importante lembrar que a separação física não deve sobrepujar a coesão da informação, nem prejudicar a organização desenhada no plano de arranjo. A doação foi um processo sistemático e ao mesmo tempo esparso, fragmentado em várias etapas: normalmente, quando o titular do arquivo morre, entende-se que esse seu arquivo não poderá mais crescer em quantidade. É o que chamamos, na Arquivologia, de fundo fechado. Entretanto, o fundo ACJ21, mesmo depois de treze anos de sua morte, ainda não pode ser assim considerado. Creio que o ambiente familiar mantido ao redor do Instituto Antonio Carlos Jobim e de seu

21 De acordo com o Dicionário brasileiro de terminologia arquivística, os dois termos se equivalem, na acepção de arquivo como conjunto de documentos produzidos e acumulados por uma entidade coletiva, pública ou privada, pessoa ou família, no desempenho de suas atividades, independentemente da natureza do suporte; e entendendo fundo unicamente como conjunto de documentos de uma mesma proveniência. Entretanto, o termo “arquivo” significa também instituição, serviço, prédio e móvel. Portanto, emprega-se fundo para diferenciar arquivos dentro de uma instituição arquivística. (ARQUIVO NACIONAL, 2005, p. 26 e 97). 71

arquivo aumentou a confiança de outros familiares que, vez por outra, doavam as respostas às cartas que tínhamos no acervo, folhas de músicas esparsas, recortes, documentos inéditos ou ainda, coleções inteiras. Assim procedeu a irmã de Tom, Helena Jobim, que em fins de 2004, entregou todos os papéis que D. Nilza Brasileiro de Almeida22, mãe de ambos, guardou sobre seu filho, desde sua infância. Lá estão desenhos de criança, cartas para a avó materna Emilia Brasileiro de Almeida, e um “Livro do bebê”, com medidas e o desenvolvimento de Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim. O acervo possui mais de 30.000 documentos inventariados23, ou o equivalente a 112 caixas-arquivo, ou ainda 1,7 km lineares24. A maioria já está descrita no site http://www.antoniocarlosjobim.org. O arquivo é muito rico, havendo partituras manuscritas e impressas; letras de músicas; correspondência; cadernos de anotações com detalhes de sua rotina profissional e pessoal; blocos de estudos; fitas magnéticas, contendo seu processo de criação musical; desenhos, discos, fotos e objetos. De acordo com a determinação da “Lei dos arquivos”, a Lei 8.159/91, toda instituição que se responsabilizar pela guarda de arquivos deve reparar a documentação que estiver danificada e ainda, obrigatoriamente, fornecer acesso de modo a preservar a integridade documental, por meio da microfilmagem e/ou da digitalização. Sintetizaremos a seguir as etapas do trabalho técnico por que passou o arquivo de Tom Jobim até 2007 para o cumprimento da lei mencionada: conservação, digitalização, indexação e divulgação deste acervo.

2.4.1 HIGIENIZAÇÃO

O maior volume de documentos do acervo estava, sem dúvida, registrado em papel. A higienização começou por esse suporte e está dividida em etapas assim resumidas: higienização de todos os documentos, folha a folha, e tratamento de conservação preventiva. Na primeira etapa, são retirados dos documentos clipes ou

22 A coleção de D. Nilza, por ter sido mais recentemente doada ao IACJ, ainda não foi organizada. 23 A última leva ainda não foi trabalhada ou contada; mas estima-se que lá estejam mais ou menos 10.000 documentos. 24 Medida arquivística que equivale aos documentos dispostos lado a lado. 72

grampos metálicos e fitas adesivas, estas, com uso de produtos químicos. Logo após, cada verso da folha era limpo, com trincha de crina de cavalo, e, naqueles em boas condições físicas, esfrega-se uma boneca de pó de borracha confeccionada no próprio IACJ. Após essas tarefas, passa-se à conservação preventiva, que desfaz dobras, planifica o papel em prensas, e reconstitui todas as áreas perdidas, rasgadas e perfuradas por insetos (ou não) com polpa fibrosa. Nesse ponto, procede-se à limpeza de todo o mobiliário e à confecção de invólucros de papel de ph neutro, de acordo com os documentos previamente mensurados. O acondicionamento final foi feito em local apropriado, segundo os padrões internacionais de construção e conservação de acervos25 (CARVALHO, 1998). Na última etapa, houve o treinamento do pessoal de limpeza, que deve manter o ambiente livre de poeira e gases poluentes, usando apenas produtos neutros e pano limpo pouco úmido. A maioria das pequenas instituições conta com equipe terceirizada nessa área, por conferir mais facilidade e por julgarem ser mais econômico. Entretanto, por política do Instituto, nenhum documento podia sair do arquivo e a melhor opção foi o treinamento de uma técnica para cuidar de todas essas tarefas dentro do IACJ. A experiência se justificou pela meticulosidade da higienizadora, Suria Braga Alves, que freqüentemente ultrapassava os limites do seu trabalho, colaborando na pesquisa diária, através dos documentos que passavam pelas suas mãos e olhos.

2.4.2 DIGITALIZAÇÃO

A digitalização é uma importante ferramenta para garantir o acesso aos pesquisadores que não conseguem estar fisicamente no IACJ, além de conferir rapidez no atendimento das demandas de jornalistas e outros interessados, e garantir a preservação do arquivo físico, uma vez que restringe o manuseio dos originais. A organização e descrição deste acervo numa frente de trabalho, e a duplicação, através da digitalização, em outra, mantêm duas equipes em tarefas distintas mas num fim indissociável: o livre acesso às informações através da exibição

25 Para maiores informações a respeito das recomendações para construção de arquivos indicadas pelo Conarq, verificar http://www.conarq.arquivonacional.gov.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm 73

das imagens virtuais dos documentos. O inventário resultante dessas etapas pode ser consultado na internet, através do site http://www.antoniocarlosjobim.org/.

2.4.3 DIVULGAÇÃO E ACESSO

É reconhecida a importância de descrever os documentos, de maneira técnica, estruturada e concisa numa ferramenta de indexação, como o banco de dados. Porém, não basta descrevê-lo. É preciso escolher o que e como descrever, através do uso de metalinguagens (termos escolhidos para nortear a indexação), para que o usuário possa verter sua linguagem em outra (própria à instituição, ao banco de dados ou mesmo a quem a criou), com um mínimo de interferência. Maria Nélida González de Gómez lembra que todas as etapas de trabalho no arquivo estão completamente relacionadas, e mais ainda, se interdependem:

A escolha de uma estrutura para uma base de dados e a seleção dos conteúdos informacionais digitalizados serão fatores decisivos para a recuperação e a busca da informação, inseparáveis ao mesmo tempo das fases específicas do tratamento da informação, como o uso de metadados ou linguagem de indexação. (GÓMEZ, 2004, p.61)

Segundo a autora, é como se houvesse três estratos de linguagem de indexação: o estrato semântico-pragmático (camada da linguagem, que cabe às pessoas envolvidas: pesquisador e arquivista), o estrato regulatório (camada dos metadados, que cabe somente ao arquivista) e o estrato infra-estrutural (camada tecnológica, que cabe aos técnicos de Informática). No que diz respeito ao estrato infra-estrutural do acervo do IACJ, toda a rede de computadores é construída sobre modelos MAC, atualmente usando o sistema MAC OSX 10.4. O software de acervos, Dspace, está na versão 1.4, criado, alterado e visualizado pela web26, e foi desenvolvido pelo MIT (Massachussets Institute of

26 É possível verificar algumas discussões sobre o uso da Internet nos arquivos. Se por um lado, prescinde de tradução e ferramentas para verter linguagem técnica em usual, por outro, facilita o acesso, reúne bases de instituições antes impossíveis e democratiza a pesquisa aos documentos de interesse público. Não acredito, portanto, que a Internet seja incômoda em nenhuma parte do ofício de arquivista. 74

Technology) e HP (Hewlett Packard), em Java27, usando o banco de dados PostgreSQL 8.12. O software é de código aberto, como se diz no jargão informacional, o que significa dizer que sustenta a possibilidade de ser aperfeiçoado por todos os programadores do mundo, já que seu código-fonte é distribuído gratuitamente, assim como o programa, pela Internet28. O software que possibilita a publicação do Dspace na web é o Apache Tomcat 5, servidor que implementa Java Servlet e JavaServer Pages (JSP). Uma outra ferramenta utilizada é o Manakin 1.1, desenvolvida pela Universidade do Texas, que faz uso das linguagens de transformação XSL e XSLT, flexibilizando a apresentação dos recursos do repositório digital. Os vídeos e áudios podem ser conferidos no site do IACJ através de um servidor de Streaming (Darwin Streaming Server, versão de código aberto da tecnologia QuickTime Streaming Server, da Apple) que possibilita a transmissão de mídia pela Internet através dos protocolos RTP e RTSP. Longe de ser uma solução perfeita, o Dspace, sigla para Digital Space, é um sistema digital de armazenamento de dados, e desde sua gênese, tem sido adotado por instituições de vários países. Ele foi escolhido pelo fato de suprir, com maior abrangência, as necessidades que se apresentavam no IACJ no momento, além do fato de ser amigável à plataforma Linux, sendo ambos gratuitos. Apesar dos campos básicos da planilha do DSpace serem compatíveis com o sistema Marc21, o sistema de descrição dos campos é o Dublin Core29. Dentre as muitas facilidades que o Dspace apresenta, destacam-se: campos ilimitados em quantidade e com tamanho satisfatório; possibilidade de múltiplos usuários simultâneos; divisão em coleções e subcoleções; permissão para fazer upload da imagem ou áudio correspondente à planilha descrita; atualização diretamente no site. Apesar de ser recente, o Dspace já vem sendo utilizado em diversas instituições do mundo, tendo sido traduzido para o português pela Universidade do Minho, em Portugal, e conta com uma boa comunidade de usuários para suporte técnico através de listas de discussão, inclusive no Brasil. Originalmente criado para catalogar livros e material bibliográfico, ele é

27 Linguagem de programação orientada a objetos. 28 Para mais informações, consultar http://www.dspace.org. 29 Para mais informações, consultar http://dublincore.org/ . 75

perfeitamente adaptável para arquivos e o Instituto Antonio Carlos Jobim foi a primeira instituição brasileira a utilizá-lo para esse fim. A divisão do banco de dados é feita por comunidades e coleções, o que permitiu abrigar a divisão do modelo de arranjo arquivístico, feito em séries e subséries30. Embora o modelo de arranjo seja um pouco mais elaborado, a organização das comunidades no site ficou bastante satisfatória, mesmo que simplificada. Esse fator, inclusive, facilitou o atendimento aos pesquisadores da obra de Tom Jobim. Procura-se ajustar a linguagem para que atenda ao público misto do web space, que se constitui desde crianças em idade escolar, passando por jornalistas e escritores, até pesquisadores de pós-doutorado em línguas estrangeiras.

2.4.4 DESCRIÇÃO E INDEXAÇÃO

Não há como determinar uma única maneira de trabalhar um documento de arquivo. Entretanto, podem-se demonstrar os fundamentos que orientaram a maneira correta para cada arquivo em particular, de modo que a mesma metodologia possa ser empregada em outros arquivos, desde que se levem em conta as especificidades do acervo em questão, de seu uso, das “respostas” que buscamos nos documentos. Essa quantidade de opções não é muito comum em outras carreiras, mas é o que confere dificuldade, desafio e maior satisfação na organização desse tipo de documento: “o curador de arquivos pessoais tem total liberdade para organizá-los de forma a atender às demandas da pesquisa (CAMARGO, 2007, p.10). Embora ainda esteja em processo de organização, o plano de arranjo arquivístico para o acervo do IACJ foi definido e está dividido em três grandes categorias: Documentos Iconográficos, Audiovisuais e Textuais. Essas categorias subdividem-se em séries e subséries. Essa subdivisão, considerando os diferentes gêneros musicais e literários produzidos pelo titular do arquivo, vem sendo feita nas seguintes séries, por categoria:

30 Conferir o Anexo A: gráfico do modelo de arranjo utilizado no IACJ. 76

Documentos Textuais: Correspondência Pessoal, Correspondência Familiar, Correspondência de Terceiros, Produção Intelectual de Terceiros, Produção Intelectual do Titular, Documentação Pessoal, Diversos, Publicação na Imprensa e Documentação Complementar. Documentos Iconográficos: Desenhos, Fotos e Cartazes. Documentos Audiovisuais: Fitas magnéticas, Álbuns (CDs e LPs) e Vídeos.

Na categoria Documentos Textuais, a série Correspondência (pessoal, familiar e de terceiros) é constituída de 890 documentos, num total de 1.371 folhas, totalizando 2.752 páginas. São cartas, cartões, bilhetes e telegramas enviados para e por Tom Jobim. Todos os documentos foram arquivados em ordem alfabética por remetente, formando a menor unidade no arquivo (dossiê) e, dentro deste, os documentos foram ordenados cronologicamente, ficando os sem data no final. Toda essa série já se encontra ordenada, medida, classificada e revisada, mas ainda não foram consideradas as cartas de e para os advogados de Tom31. Algumas cartas foram escritas rapidamente, à saída do correio, com rasuras e breves informações; e outras escritas detalhadamente, por dois ou três dias, merecendo até revisão da datilografia. A respeito, concordamos que a correspondência não é mais apenas “um texto de onde se podiam simplesmente extrair informações, mas as cartas analisadas a partir de seu suporte material, dos códigos sociais utilizados e das formas lingüísticas empregadas” podem nos revelar pontos pouco contemplados em pesquisa. (VENANCIO, 2004, p. 113). Isso quer dizer que o suporte, articulado com o conteúdo e a forma como foi escrita, torna a correspondência uma fonte rica para a investigação histórica. Angela de Castro Gomes, no seu prólogo do livro Escrita de si; escrita da história, lembra-nos que o uso das fontes primárias (como objetos de estudo) está em franco pós-descobrimento. Elas estão situadas em “um novo espaço de investigação histórica — aquele do privado, de onde deriva a presença das mulheres e dos chamados homens ‘comuns’ — e os novos objetos, metodologias e fontes que se descortinam diante dele” (GOMES, 2004, p.9) A série Produção Intelectual do Titular reúne 2.431 documentos com 9.586 folhas, totalizando 22.502 páginas, cobrindo o período que vai de 1948 a 1994. Os

31 E que, após análise do conteúdo, talvez sejam completamente reservadas. 77

documentos foram agrupados em subséries, levando-se em consideração os diferentes gêneros produzidos por Antonio Carlos Jobim: Artigo, Contracapa de disco, Letra de música, Memórias, Orelha de livro, Partitura, Poema32. Dentro de cada subsérie os documentos estão ordenados em ordem alfabética de título, destacando-se seus 33 cadernos de anotações. Esse material será trabalhado, mais à frente, no capítulo 3. A série Produção Intelectual de Terceiros agrupa 161 trabalhos de outras pessoas, que foram reunidos por Antonio Carlos Jobim, contendo 1.093 folhas, totalizando 2.186 páginas. Os documentos estão arquivados em ordem alfabética pelo último sobrenome do autor, seguido do prenome e do nome. Nessa coleção não estão apenas os documentos que mencionam o maestro, mas também os documentos que foram dados, como presentes, por amigos poetas e músicos. Tom anotava tudo o que achava interessante, principalmente sobre o que produzia, mas, com a mesma atenção, acumulava tudo o que conseguia reunir das obras de outros compositores. Como exemplo: há o roteiro para Orfeu da Conceição, de Vinicius de Moraes, e outros 92 documentos que estão no fundo ACJ, só desse autor. Há onze letras de música de Chico Buarque, artigos de Lucio Costa e Sérgio Cabral, esboços de Johnny Alf, a inesquecível “Teresa da praia”, do parceiro Billy Blanco, além de documentos de Luis Bonfá, Cacaso, Lucio Cardoso, Eumir Deodato, Cacá Diegues, entre outros. Aqui estão: o poema “Time present and time past”, de T. S. Elliot, título propício para figurar no seu arquivo pessoal; Hamlet, de Shakespeare; “Clea”, letra de música de Alberto de Oliveira e outros. A série Produção Intelectual Não-identificada possui 22 documentos com 92 folhas, totalizando 184 páginas. São poemas e extratos de textos que não puderam ter sua autoria identificada seguramente, e que só poderiam ter, e assim ganhar significado maior, na presença do autor. Várias elocubrações podem ser feitas, comparando caligrafias, datas, sentidos etc., mas não há meios seguros de identificação de alguns documentos. A série Diversos possui 122 documentos contendo 613 folhas, totalizando 1.226 páginas. São outros tipos documentais, diferentes dos mencionados

32 Definimos a subsérie como “Poema” e não Poesia, pois, de acordo com Gilberto Mendonça Telles, esta é um estado de emoção, real, espiritual, imaginária ou onírica; e poema é o resultado físico dessa emoção, é essa emoção posta em linguagem. (Essa informação foi aprendida com o próprio, em conversas pessoais, mas esse discurso pode ser aprendido em seus livros.) 78

anteriormente, sem que sejam destituídos de importância. Ou seja, mesmo que os fôlderes de peças, convites a eventos, listas dos prêmios recebidos pelo titular, crachás de seus shows e abaixo-assinados configurem uma documentação um pouco mais esparsa, são considerados fundamentais para uma pesquisa histórica. A série Documentação Complementar constitui-se de 280 documentos recebidos pelos familiares imediatamente após a morte do titular até um ano posterior, contendo 499 folhas, perfazendo um total de 998 páginas. Aqui encontram-se, por exemplo, os numerosos telegramas de pêsames à família Jobim, os livros de presença do velório e o registro das homenagens póstumas. A série Documentação Pessoal é integrada por trinta documentos relacionados à vida civil de Antonio Carlos Jobim, contendo 597 folhas, num total de 1.194 páginas. Entre outros, encontram-se: carteiras de identificação, passaporte e contratos de edição de várias músicas e discos seus. A série Publicação na Imprensa abriga a seleção de jornais e revistas que Tom e suas esposas tiveram o cuidado de manter. Essa hemeroteca é composta por 6.432 recortes de jornal, com tamanhos diferenciados, abrangendo um período que vai de 1952 a 1994, e possuem, em maior quantidade, recortes do Jornal do Brasil, O Globo, O Cruzeiro e da revista Manchete. O primeiro recorte de jornal é um anúncio para o concurso de pianista do Coro do Teatro Municipal (provavelmente, uma sugestão de sua professora, Lucia Branco), e os últimos noticiam seu falecimento. O conjunto Documentos Iconográficos possui cerca de 10.000 fotografias e cromos, desenhos e esboços e cartazes de seus principais shows. Esta categoria abrange o período que vai de 191633, com fotografias dos pais de Antonio Carlos Jobim ainda solteiros, passando por toda sua infância, até 1995, homenagens póstumas. Os desenhos são, na maioria, do próprio Tom e seus temas prediletos são os pássaros e as mulheres. Aparecem também esboços, desenhos e cálculos arquitetônicos feitos junto com seu filho Paulo Jobim, exercitando a outra carreira que ambos tinham em comum, a Arquitetura34. Entre os cartazes destaco, não pelo ineditismo, mas pelo carinho, o do show Antonio Carlos Jobim em Viena, de 1986 —

33 Data estimada. 34 Esses desenhos, cálculos e esboços são das duas casas de Tom, projetadas por pai e filho e serão melhores descritas no capítulo 3. 79

que foi o primeiro grande show de gala da Banda Nova com a formação que perdurou até a morte de seu idealizador35. Os Documentos Audiovisuais abrangem várias de suas músicas, os filmes e os documentários para os quais o maestro compôs trilha sonora, e que foram guardados em VHS, K7, Beta, fitas de rolo e LPs. Além desses, o principal material guardado nas 126 fitas cassetes é o que diz respeito às composições feitas pelo próprio Tom, em sua casa. Diz Paulo Jobim à Camila Pires sobre o processo de criação de Tom:

Meu pai ficava ao piano praticamente o dia todo. Ele ficava várias horas tocando e mudando de tom. Experimentando melodias, modulações, ligações de uma parte com a outra... Para mim, isso fazia parte do dia. Eu saía de casa, voltava e estavam aquelas músicas acontecendo, entrando pelo ouvido. No princípio, as músicas eram um rascunho meio aberto. Mas, ele escrevia a partitura na hora, ainda que só a melodia, para não esquecer. De vez em quando, a gente acha [no acervo guardado no IACJ] umas fitas de ele ainda fazendo a música e partituras incompletas, só com a melodia. Era um lembrete para ele, mas não conseguimos saber qual era a harmonia. (PIRES, 2007)

E, nesta categoria também está previsto espaço de armazenamento e trabalho de descrição de toda sua musicografia atualizada, incluindo as versões e reedições de sua obra em CDs e DVDs e as milhares de gravações de outros músicos — ou seja, um trabalho hercúleo. Para que se tenha uma idéia, foram digitalizadas do acervo de Jobim cerca de trezentas horas de gravação (entre elas, 120 fitas cassetes com exercícios de composição), e ainda restam outras trezentas horas divididas em LPs, VHS e incontáveis regravações e versões de suas músicas, além dos produtos que foram fabricados através de pesquisa no acervo, sem terem sido exatamente feitos por Tom, mas que partiram de sua “outra obra”: seu arquivo. É o caso dos CD e DVD Jobim Sinfônico, de 2003; do CD Antonio Carlos Jobim em Minas, ao vivo, piano e voz, de 2005; e, mais recentemente, do DVD A casa do Tom, isso para citar apenas os que têm sua autoria direta.

35 Devo mencionar também que durante muito tempo esse cartaz esteve na minha sala, sobre minha mesa, como que fazendo parte do meu trabalho. 80

Fonte de grande discussão, incluindo as fronteiras da carreira de arquivista, o acervo de Tom possui ainda cerca de 120 Documentos Museológicos doados até o início desta pesquisa, em 2007, e aceitos por se constituírem também em documentos da vida do titular. Entre os mais curiosos estão 37 óculos, duas caixas de charutos, que serviam para guardar, por exemplo, as notas fiscais da Churrascaria Plataforma assinadas (com a conta de toda a mesa) e uma maleta de luxo encomendada para acondicionar a coleção de apitos de passarinhos, além das 55 estátuas, medalhas de prêmios e homenagens. Mesmo se sentindo a ausência de alguns prêmios, quase todos estão lá. Algumas planilhas eletrônicas36 foram confeccionadas para o trabalho de descrição, por conta da especificidade dos documentos, divididas pelas categorias do plano de arranjo: Documentos Textuais, Documentos Iconográficos e Documentos Audiovisuais. Vale ainda observar o rigor com a descrição dos documentos em cada planilha eletrônica do banco de dados: 1) técnico: verificar se há campos previamente determinados para a inclusão dos dados que serão ressaltados. E verificar se a entrada dos dados nos campos é regida pela norma de descrição da AACR2. 2) valorativo: verificar a relevância da informação em relação com o documento e com toda a coleção. 3) corretivo: verificar se a digitação e os termos empregados estão de acordo com a nossa língua. 4) imagens anexas: verificar o tamanho e qualidade de cada imagem postada junto com a planilha.

2.5 ENTENDENDO O ARQUIVO

“o que realmente persiste, e fica, é a música-papel.” (Tom Jobim apud MARTINS, 1981, p.44)

Como podemos notar, pela descrição do seu acervo, Tom era um homem plural. Os estudos, textos e documentos que guardou, apontam para variadas áreas de

36 A planilha referente à categoria Documentos Textuais pode ser conferida no Anexo B. 81

interesses: ecologia, poesia, urbanismo, arquitetura, amor e, claro, música. Ele guardou o que produziu, o que conseguiu reunir dos amigos e autores que admirava. Acumulava com fins diversos: para registrar o que estava pronto; para voltar a trabalhar o que ainda não era do seu gosto (verifica-se que o esboço é um tipo de documento facilmente encontrado); para comprovar seus direitos; e também pelo orgulho daquilo que ganhou, fossem prêmios, produção de terceiros ou cartas de fãs. Entretanto, tal era o cuidado que lhe despertava seu próprio arquivo, que, em 1981, contratou a amiga Vera de Alencar para planejarem juntos uma ordenação de acordo com o uso que então fazia dos documentos, como informado no artigo “Um arquivo muito especial para a obra de Tom Jobim”, da revista Amiga. O interesse pelo próprio arquivo é comum a outros ilustres colecionadores de sua própria obra. Priscila Fraiz pesquisou o arquivo de Gustavo Capanema, depositado na Fundação Getúlio Vargas, e verificou que, além do volume expressivo (duzentos mil documentos), que revela sua disposição em guardar, o titular deixou uma informação muito específica, que os pesquisadores do Centro de Pesquisa e Documentação em História Contemporânea (CPDOC) chamaram de meta-arquivo37.

Trata-se de documentos de autoria do titular, referentes ao planejamento e à organização do próprio arquivo e, secundariamente, à classificação adotada para sua biblioteca particular. É raro que um arquivo pessoal chegue a uma instituição de memória com algum arranjo ou ordenamento prévios, determinado pelo próprio titular, por colaboradores ou mesmo por familiares; mais incomum ainda é encontrar um tipo de material que reflita e revele alguma ordem original ou primitiva, que possa nos dizer do arquivo e sobre o arquivo. (FRAIZ, 2002, p.16)

Gustavo Capanema tinha, sem dúvida, um arquivo privilegiado, pois além de ser Ministro da Educação e Saúde, teve amigos igualmente importantes, com quem manteve uma correspondência intensa. Mas, mesmo sendo minoria, há outros exemplos desse tipo de documentação, deixado por quem cuidou do arquivo ainda em vida. Assim, encontram-se alguns planos de como organizar ou como gostariam que fossem organizados seus acervos. Podem ser citados como exemplos dessa prática: Darcy Ribeiro e Luiz Camillo de Oliveira Netto. O arquivo de Darcy Ribeiro, tratado

37 Termo cunhado pelos pesquisadores Mauricio Lissovsky e Paulo Sergio Moares de Sá. 82

na fundação que leva seu nome (Fundar, no bairro de Santa Teresa), possui 80.000 documentos, incluindo aqueles também nomeados de meta-arquivo. A preocupação com a organização do próprio arquivo aparece também no fundo Luiz Camillo de Oliveira Neto, depositado no Arquivo-Museu de Literatura Brasileira38, e minunciosamente estudado por sua filha, Maria Luiza Penna. Embora seja o único caso de “arquivo público de arquivista” que eu conheça, ela ainda teve dificuldade com as lacunas e o vaivém das informações, peças de um quebra-cabeças:

Retiro do arquivo de Luiz Camillo de Oliveira Netto muitas cartas, é verdade, mas, ao fazer isso, excluo outras. Revejo fotos. Ouço de novo as entrevistas, leio as transcrições. Trabalho não só com a memória dos outros, decerto já retalhada pelo tempo e pelas vivências, mas também com a minha própria memória. Tamanha inflação de lembranças pode se confundir com um máximo de esquecimento. A amnésia: um paradoxo e um perigo. (PENNA, 2006, p.71)

O trabalho dos arquivistas é, assim, antes de tudo, manter-se atento e respeitar a ordem original do arquivo, impressa pelo titular, ou pela família. Enfim, estar atento ao que subsistiu e também à descrição e à transmutação de um documento, com dada linguagem, em outro (aquele meta-arquivo) com linguagem padronizada e inventariada. Faz-se necessário um estranhamento, que, não obstante saudável, não pode dar espaço a (pré)conceitos e maneirismos, quando do estudo do objeto escolhido. E escolhido o objeto, poder agora remontá-lo de diversas maneiras, se apropriando, em cada momento, de um olhar diferente. Gostaria de salientar que as características de um arquivo pessoal qualquer, embora não estanques, são a originalidade, a unicidade, mas também, as lacunas.

Não se pode esquecer que o trabalho de pesquisa em arquivo é, antes de mais nada, um encontro com a morte, e o arquivo, não apenas um rico estoque, mas também uma coleção marcada pela falta. Essa condição dupla do registro arquival presentifica o ausente e recupera o vivido com o perigo de cristalizá-lo. (PENNA, 2006, p. 70)

38 AMLB, da Fundação Casa de Rui Barbosa, em Botafogo. 83

Isso em parte se explica, porque uma pessoa não registra ou acumula como outra. Também há maior ou menor tempo passado entre a morte do titular e a abertura de seu acervo. Mas depende também de quantas pessoas, com toda parcimônia, julgaram as informações naquele arquivo. Pode parecer estranho o pequeno volume da correspondência entre Tom e Vinicius, amizade de quase trinta anos que gerou apenas treze cartas, sendo oito do Vinicius e cinco do Tom, trocadas no período de sete anos, de 1963 a 1970. Embora sejam bissextas, podem nos contar o diálogo entre os amigos e a necessidade de se fazer perto. Elas pontuam o diferente: marcam as datas em que eles estavam longe e não podiam se falar de outra maneira. Durante o ano de 1963, quando Tom partiu com a “rapaziada” da Bossa Nova para os Estados Unidos e Vinicius estava em Petrópolis e depois Roma, trocam quatro cartas. Em 1965, são outras quatro cartas, já que Tom ainda morava em Nova York e Vinicius partia do Rio de Janeiro para a França. Outras três ocorrem em 1966 e a última, isolada, em 1970. O trabalho de pesquisa com fontes primárias pode ser consideravelmente ampliado se considerarmos as faltas. E manter, nos documentos presentes, as devidas precauções relativas à autenticidade do documento e à veracidade dos fatos — mesmo que tenham sido contados pelos próprios autores desses fatos. É bastante comum, em se tratando de arquivos, que não haja uma ordem muito facilmente rastreável. No caso do arquivo de Tom Jobim, a organização dada em 1981, por ele e por Vera de Alencar, já tinha se perdido em 2001, quando do início do tratamento técnico. Isso porque, durante vinte anos de uso, novas produções e inclusões, feitas por Tom, podem ter alterado a organização feita em conjunto. Entretanto, o trabalho feito por Tom e Vera de Alencar, há 25 anos, ajudou muito na organização dos documentos, pois era dela a função de guardar todo o papel que ele produzisse, para que não se perdessem: “Eu preciso tomar cuidado com a Verinha, porque todas as vezes que eu faço algo novo ela pega e, quando procuro, já está no arquivo. Quer dizer, ela transforma o presente em passado num piscar de olhos!”, dizia Jobim (JOBIM apud MARTINS, 1981, p.44). Não seria, na verdade, ambos transformando, um através do outro, passado em futuro? Embora não tenha sido encontrado, no arquivo de Tom, um plano desse arranjo original, descritivo e padronizado, encontrou-se, ao menos, um único registro

84

da interferência do titular. Vê-se, então, que a documentação foi assim dividida, segundo Vera de Alencar:

[…] um arquivo inteiro de quatro gavetas só com música. Partituras, arranjos, edições. Tudo sobre música, melodia. Outro arquivo, também de quatro gavetas, está assim dividido: duas gavetas só com as letras. As letras em português e inglês (caso haja), esboços, estudos, textos de músicas que foram trocados, manuscritos dele ou de parceiros. A parte dos autores eruditos está numa terceira gaveta juntamente com uns álbuns que foram editados com músicas dele sozinho ou com outros autores. A quarta gaveta do arquivo está reservada para a parte de correspondência, que estou classificando em: família, amigos, fãs e outros. (ALENCAR apud MARTINS, 1981, p.44)

A passagem nos comunica a maneira como o titular, primeiro usuário de seu arquivo pessoal, precisava da ordenação das gavetas e dos macro-assuntos, cabendo, nessa descrição, apenas uma consideração sobre o uso dos documentos que ele mais requisitava. Em seu arquivo pessoal, suas músicas, principal fonte de trabalho, de renda e de inspiração mereciam lugar de destaque. E, diga-se de passagem, mesmo aquelas sete gavetas não comportavam, confortavelmente, as 1700 grossas partituras e oitocentas letras de seu acervo musical. Neste ponto fica evidenciada a relação que Tom tinha com seus autores referenciais, quando ele mesmo copiava ou escrevia os arranjos de uma música importante de um outro autor39. Havia, pelo menos, dois móveis para acomodar o arquivo e acessar uma memória mais imediata, usada no cotidiano, fazendo consultas durante o trabalho e provando autorias. Existia concomitantemente, em relação ao conjunto, uma memória menos imediata, menos perceptível ao usuário, mas que completava seu acervo, agregando outras informações, constituindo seu legado artístico. O seu método de trabalho envolvia guardar seus escritos para voltar a trabalhar mais tarde em alguns, pois sempre repetia que, “segundo Stravinsky, o trabalho de composição é feito de 5% inspiração e 95% transpiração”. Ao mesmo tempo, arquivava o que já estava “pronto”, fosse para evitar erros de execução, fosse para garantir seu legado. O que fica claro é o desejo de Tom de “compor seu acervo”: ele acumulou, com ou sem ajuda, um conjunto de documentos porque sabia que apenas

39 Na série Partituras, subsérie Produção Intelectual de Terceiros, estão os arranjos aos quais me refiro. 85

assim — fazendo obra dentro da obra — teria um acervo capaz de garantir uma memória sobre seu trabalho musical. Assim, Tom selecionava o que lhe era mais caro, acentuando esse ou aquele aspecto, dando ênfase mais a um do que a outro assunto. Tom também lastimava haverem-se perdido tantos documentos de outros autores, inclusive pela ausência de arquivamento dos mesmos. Isso ocorria, em boa parte, conforme atesta Paulo Jobim, porque era praxe, na década de 1950, os autores entregarem seus originais às gravadoras, intérpretes e orquestras. Faziam isso quando da execução de suas músicas e depois, em grande maioria, não conseguiam reavê-los. Eis uma boa explicação de por que os registros do início da carreira musical de Tom são raros. Mas, quando ele começou a ter a certeza de sua vocação e firmou sua intenção de ser um compositor, passou a guardar sua documentação, com cuidado e sistematicidade. Na gravação Documento para a posteridade, entrevista concedida a, entre outros, Vinicius de Moraes, Chico Buarque e Dori Caymmi, Tom ressaltou a importância de se mostrar publicamente:

O brasileiro não assume o mundo. Ele dá uma fugida lá, pega o avião e volta. E isso é grave. Você tem que toda semana estar na televisão, pelo menos uma vez num grande show, seja o Andy Williams, seja o Dany Case… você não pode fazer como Alpert [Herb Alpert, vocalista do grupo Tijuana Brass]: aparece uma vez no ano e fica num quarto de hotel. Você não pode fazer um grande sucesso — “Garota”, “Desafinado” — desaparecer e [ir] pra Barra da Tjuca pegar anchova. (MIS, 1967, K7-127)

Eis, portanto, como o rapaz tímido40 sabia da necessidade de uma pessoa famosa se manter em evidência para a posteridade. Por isso, enfatizamos quão interessante é perceber a lógica da acumulação do arquivo de Tom Jobim, como uma forma de aproximação da identidade que ele queria construir para si, através da guarda de seus papéis e suas músicas. Os números expressivos do volume de documentos dizem muito do homem trabalhador, e convencido da importância de guardar, mas não são suficientes para revelar os seus textos curiosos, a irreverência de seus comentários e, principalmente, a beleza de suas composições — acessíveis através da consulta de seus documentos.

40 Em várias passagens de sua vida, Tom se declarou tímido, perdendo, inclusive, oportunidades de reger orquestras, fazer shows e viajar antes dos 36 anos para o exterior. 86

CAPÍTULO 3: CADERNOS PARA LEMBRAR TOM — lembranças dele, com ele e para ele

A manutenção de um acervo pessoal é uma feliz tarefa para seu titular. Tom Jobim pôde contar com essa satisfação e pôde também dividi-la com outras tantas pessoas que passaram pela suas casas. Suas duas esposas o ajudaram, assim como seus filhos, e a museóloga Vera Alencar, contratada especialmente para dar ordem a seu arquivo. Além desses, houve outros colaboradores, como sua irmã, Helena Jobim, e alguns fãs e pesquisadores, que, após sua morte, doaram alguns registros de Tom mais bem conservados. Conforme disse Ana Jobim1, não era uma premissa do casal a idéia de guardar documentos para constituir um arquivo, mas eram, ambos, sensíveis a esse movimento. Ao que lhe parece, narrando muitos anos depois, não estavam muito conscientes, nem da acumulação diária, nem das investidas técnicas que fizeram. Apenas sentiram a necessidade de profissionalizar o acervo, mesmo em dúvida do que realizavam:

O arquivo começou sem intenção. A Thereza começou a guardar em envelopes pardos todos os recortes de jornais e documentos que tinha. Quando me mudei com Tom para a casa da rua Peri, aquilo tudo veio e não sabíamos muito bem o que tinha lá e o que fazer com eles [os envelopes]. Quem sugeriu a Verinha, foi a Thereza, porque era amiga dela. Ela começou a catalogar tudo aquilo e criou um sistema de cópias das letras para evitarmos o manuseio quando tinha show. Esse foi o início. Depois a Verinha sugeriu a Piedade Grinberg para trabalhar os jornais, fisicamente, e na parte do conteúdo também. Não sei se guardávamos para a História. Mas tudo tinha um valor. Não dava pra pegar um documento e jogar no lixo... Tinha lá nos cadernos, anotações importantes e outras nem tanto: lista de compras, número de passos que ele dava em volta da piscina, desenhos da Luiza... Não tinha a intenção, mas era uma necessidade! (JOBIM, 2008).

1 JOBIM, Ana Beatriz Lontra. Entrevista concedida à autora, 11 de junho de 2008, em sua residência. 87

Apesar desse “acaso” (como os descritos no capítulo anterior), o arquivo foi reunido, estruturado e organizado. A colaboração de Vera Alencar durou, aproximadamente, sete anos, de 1978 a 1985. Esse momento foi chamado por Ana Jobim de “primeiro mergulho” no acervo. Logo após a Verinha dar por finda a organização, Ana e Tom começaram a idealizar o projeto de um livro que mostrasse seu cotidiano e algumas histórias da vida deles. Ana Jobim, fotógrafa por formação, iniciou o meticuloso trabalho de registrar novas cenas da vida de Tom, em casa, além de reunir e selecionar outras fotos tiradas anteriormente. Em sua entrevista, ela comenta que “tirar fotos dele e da família, sempre tirou”, mas com o intuito de fotografar para usar e guardar, só mesmo com o projeto desse livro. Cerca de um ano e meio depois, o livro — Ensaio poético — foi publicado, iniciando-se uma época muito produtiva na carreira do casal. Entre 1986 e 1987, nasceu sua filha mais nova, Maria Luisa; Tom fez sessenta anos; uma série de reportagens e programas comemorativos aconteceu; e terminou uma impressionante reforma na sua casa da rua Sara Vilela: o levantamento de todo o telhado da casa, de uma só vez, com macacos mecânicos. Provavelmente, por conta dessa euforia, houve um grande fluxo de composições, como “Bebel”, “Looks like December”, “Anos dourados” e os LPs Tom na Mangueira e Passarim, além de várias trilhas para filmes estrangeiros como Moments at play, do dinamarquês Jorgen Leth. Nesta época, aconteceu também a polêmica campanha “Águas de março”, para a The Coca-Cola Company: Tom compôs uma versão dessa música e terminava bebendo um gole do refrigerante2. Houve alguns comentários, na imprensa, alegando que a música de Tom deveria ser melhor usada e que, assim, ele estaria vendendo um bem nacional — o que o chateou bastante. Em 1987, ocorreu a turnê mais bem sucedida da Banda Nova, a do disco Passarim, com shows no Festival Internacional de Jazz de Montreal, vários meses no Canecão, no Palace, em São Paulo, e no Japão. Começaram também os preparativos para o documentário, inicialmente intitulado Ensaio poético, que permaneceu inédito até o ano passado, quando Ana Jobim voltou a se debruçar sobre as imagens feitas naquela época e editou-as no documentário A casa do Tom: mundo, monde, mondo.

2 Para maiores informações sobre esse assunto, conferir os documentos da série Publicação na Imprensa do Acervo ACJ. 88

O Ensaio poético também fez Tom produzir vários textos, inclusive escrever algumas de suas memórias, e todas estão no seu acervo: “Ipanema”, “Onça no pau é passarinho”, “Jereba é um urubu importante...”, “Bossa Nova”, “Manhattan”, “No tardio oligoceno” e o “Aqui tenho essa extrema liberdade...” (Acervo ACJ, Pi982) do qual segue um trecho: “Aqui tenho essa última extrema liberdade de andar pela rua, como um total ilustre desconhecido, um vago senhor numa velha camisa [...] A camisa fininha, de manga curta, quasi [sic.] meio rota, modelo antiquado, moderno obsoleto, de cores superadas”. Na tentativa de organizar seus pensamentos, Tom manteve cadernos de anotações, desde que começou a compor, para evitar perder algo importante. Talvez só para quem teve a oportunidade de observar a quantidade de papéis que sempre esteve sobre seu piano, seja possível imaginar quão necessária e útil foi essa decisão. Mas como a maioria das pessoas não teve tal experiência, há nessa foto de Ana Jobim, uma amostra da mistura de documentos sobre seu piano, sendo todos trabalhados ao mesmo tempo. Esses cadernos são, portanto, um tipo de documento muito especial, quer pelo uso que deles fazia o maestro, quer pelo que nos dizem sobre sua prática memorial.

Figura 3: Foto da bagunça sobre o piano de Tom Jobim p64f05

89

Circulando nessa época por três casas ininterruptamente (Jardim Botânico, Poço Fundo e Nova York), os caderninhos de anotações de Tom andavam junto com ele, gerando documentos similares, seja em cadernos diferentes ou vários registros no mesmo caderno. Durante uma entrevista de Vera Alencar à autora, ela revela que a numeração inicial aplicada aos cadernos era tão aleatória quanto a maneira como iam aparecendo e se reunindo junto dela (ALENCAR, 2008). Tal numeração era, inicialmente, uma medida provisória, para que ela pudesse identificar quantos e quais já tinham passado sob seus olhos. Vera Alencar lembra-se que esses cadernos transitavam muito pela casa da Sara Vilela, saindo facilmente do mezanino, onde ela trabalhava, para o piano de Tom: “Se eu passasse por lá [pelo piano] e visse um documento que já tinha estado na gaveta, perguntava ‘Já usou? Vou guardar!’”. Segundo Vera de Alencar, o brinde de fim de ano (1987) da Companhia Brasileira de Projetos e Obras – CBPO, realizado pela Sabiá Produções Artísticas, transformou-se num dos melhores discos da Banda Nova e foi a coroação de seu trabalho. “O Tom pôde decidir tudo a respeito do projeto e isso também deu muita satisfação a ele e aos músicos da Banda [Nova]”. A embalagem de luxo continha um livro com textos biográficos e musicográficos inéditos de Sergio Cabral, da própria Vera de Alencar e de Jairo Severiano. E dois LPs com gravações históricas, e até mesmo raras, algumas feitas inclusive na casa do maestro. Entre as canções estão "Canta, canta mais", "Por causa de você", "Sucedeu assim", "Retrato em branco e preto", "Garota de Ipanema", "Chega de saudade", "Estrada do Sol", "Sabiá", "Modinha" e outras, além da única música em que Ana e Tom Jobim cantaram em dueto: "Eu não existo sem você". Estes discos foram lançados em CD, em 1995, sob o título de Tom inédito, quando deixaram de ser privilégio dos 3000 clientes da CBPO, para chegar ao grande público. Vera lembra também, envaidecida, que:

Eu tinha uma pasta de pendências, que nunca se resolvia. Um dia, sentei- me com Tom e o “obriguei” a resolver algumas. Eu tinha juntado um monte de fragmentos que pareciam rimar. Ele olhou, folheou, e disse: “Deixa isso aqui comigo”. Tempos depois, a letra de “Bebel” estava pronta! (ALENCAR, 2008) 3

3 Além dos exemplos dados, ela também pôde dar palpites na letra de “Luiza”. 90

Esse é um dos muitos exemplos do potencial dos cadernos de anotações, sempre tão diversos quanto o próprio autor.

3.1 CONHECENDO OS CADERNOS

Esse conjunto documental é composto por 37 cadernos, escritos de 1948 a 1994, com cerca de 1200 páginas válidas4. Desse total, cinco foram usados especificamente para esboços de melodias, considerados no tratamento técnico como Partituras, e, por isso, não serão aqui tratados. A maioria dos cadernos possui formato ¼, ou seja, mede 14 x 20,5 cm, tem capa dura e folhas pautadas. Todas as espirais metálicas foram retiradas durante o processo de higienização e substituídas por costura com linha alcalina encerada. As folhas estão amarelecidas e, muitas vezes, manchadas e com marcas de copos, além de outras vezes, rasgadas. Há outros tipos nesta subsérie, como os blocos de tamanho A4, sem capa. Esses “caderninhos” de Tom guardam uma proximidade com os hypomnemata, mencionados por Foucault, mas apenas em acepção genérica já que estes “podiam ser livros de contabilidade, registros notariais, cadernos pessoais que serviam de agenda” (FOUCAULT, 1992, p. 134-35). A importância da prática desse tipo de escrita, defendida em vários momentos por Foucault, no livro O que é um autor?, é justificada pelo fato de ela tomar o papel do próximo, do ouvinte. Como, por exemplo, se ao registrar nossas faltas, evitássemos cometê-las, dispostos a não pecar e a combater o “poder demoníaco” que poderia nos enganar. Para Foucault, “a escrita constitui uma prova e como que uma pedra de toque: ao trazer à luz os movimentos do pensamento, dissipa a sombra interior onde se tecem as tramas do inimigo” (FOUCAULT, 1992, p. 131). Ou seria possível ainda, ao ler os pensamentos escritos, ter a oportunidade de revê-los e melhorar as práticas deles decorrentes. A escrita de si e para si mesmo é uma prática da askesis (significando adestramento de si), um exercício que se deve fazer para conhecermo-nos a nós mesmos e tornar rotineiro o nosso aperfeiçoamento. Esse exercício pode ser linear ou circular:

4 Esse número refere-se apenas às páginas em que há informação escrita ou desenhada. Excetuando-se, portanto, as páginas em branco, ainda que pudessem ser considerados em algum outro estudo. 91

meditar escrever treinar trabalho do pensamento

re meditar escrever

ler

O objeto caderno começou a ser usado na Europa da Idade Média, feito, prioritariamente, para os usos contábeis e mercantis. Consistiam em um amarrado de folhas soltas ou em uma grande folha de papel ou pergaminho dobrada em quatro e costurada com tiras na lombada. Daí se derivou o termo quaternio, para os primeiros comerciantes italianos. Essa costura, essa encadernação, poderia ser comprada pronta ou feita posteriormente à escrita, para melhor organização do que tinha sido registrado. Essa acepção foi a primeira, assumida por Antoine Furetière, no seu Dictionaire universel, impresso em Haia, Hotterdam, em 1690, e citado por Jean Hébrard. Mas havia outras significações, segundo o autor:

O segundo sentido assinalado por Furetière remete à linguagem dos impressores (“Diz-se também das folhas mais ou menos amarradas que constituem o livro encadernado. Esse volume tem tantos cayers...”). O terceiro nos leva ao mundo das escrituras administrativas ou jurídicas, onde o termo designa uma unidade textual manuscrita que especifica seu conteúdo e lhe dá mais força: “Cayer significa ainda memoriais apresentados separadamente. Estes artigos estão em cayer à parte”. O último uso da palavra nos introduz às práticas do colégio e da universidade: “Cayers são também os escritos que os estudantes escrevem sob a orientação de seu mestre de filosofia, teologia ou qualquer outra ciência que se ensine nas escolas. Um estudante precisa reapresentar seus cayers a seu mestre para dele obter um atestado de seu tempo de estudo”. (HEBRARD, 2000, p. 36)

Embora estejam registrados esses vários sentidos desde 1690, é muito provável que o termo “caderno” tenha começado a circular muitos séculos antes, por conta da premente necessidade (inclusive jurídica) de se escrever toda negociação feita dia a dia, detalhe por detalhe. Primeiro para que existissem maneiras de ser visitado e controlado pelas autoridades, e depois, porque ninguém poderia se furtar a

92 escrever o que se passou no dia. Dessa forma, mantinha-se um “livro diário” com informações que extrapolavam o sentido comercial e financeiro, posto que “não se pode negligenciar que ‘o que se faz’ e ‘o que se passa’ num dia excede obrigatoriamente a esfera estrita das trocas monetárias” (HEBRARD, 2000, p. 38). Este uso permitiu que os cadernos fossem adotados por homens públicos e comerciantes para também escrever o que tinha ocorrido, aquilo de que se lembravam ao fim de um dia. Sobretudo, o que tinha acontecido, excedendo o valor mercantil do ocorrido e abarcando uma escrita de si e de seu negócio que se tornavam, cada vez mais, inseparáveis. Essa é a derivação que melhor se ampliou e a que mais nos interessa, pois os “cadernos” de Tom não são diários, pelo menos não como o modelo mais usual, descrevendo impressões e pensamentos, ora desordenados, ora cuidadosamente numerados. Seus cadernos, contudo, pontuam sua história de vida, e mesmo sem descrevê-la passo a passo, deixam vestígios e pistas importantes sobre seu fazer e suas inquietações. Portanto, são exemplos diferentes da principal acepção destacada por Foucault, mas podem ser pensados a partir dessas reflexões. Esse autor ressalta os cadernos como livros de vida ou guias de conduta:

Neles eram consignadas citações, fragmentos de obras, exemplos e ações5 de que se tinha sido testemunha ou cujo relato se tinha lido, reflexões ou debates que se tinham ouvido ou que tivessem vindo à memória. Constituíam uma memória material das coisas lidas, ouvidas ou pensadas (FOUCAULT, 1992, p. 135).

Ou seja, baseado em textos gregos antigos, sugere o uso intermitente de um caderno, que pudesse estar o tempo todo com seu dono, embaixo do braço. Nele se anotava o que de bom se conseguiu ouvir, presenciar e peneirar do que foi presenciado. Afinal, não se devem anotar pensamentos sem que sejam trabalhados e fixados. Este exercício foi, na verdade, o início de vários produtos, como correspondências e tratados. Mas serviu também para o fortalecimento próprio, contra defeitos, ou para superar traumas e situações difíceis. Percebe-se então que, num primeiro momento da história dos cadernos, eles serviam para anotações diárias filosóficas, políticas ou comerciais, que auxiliassem o

5 A edição consultada é lisboense, mas em todas as citações foi preferida a grafia brasileira, quando diferente da portuguesa. 93 trabalho de seu autor. Mais tarde, tornaram-se relatos espirituais, como os indicados por São Atanásio para evitar tentações e corrigir imperfeições da alma. Num terceiro momento, sobreviveram como diários íntimos (FOUCAULT, 1992), bastante comuns no século XVIII. Atualmente, é possível manter cadernos de anotações com todas as características anteriores e inventar outras tantas, como Tom Jobim fez livremente nos seus cadernos. Se lá não estão suas memórias, ao menos é abundante a vontade de se fazer presente durante a produção dos documentos.

Le paradoxe autobiographique devient ici douloureux: si l´autobiographie sincère est ce qui doit offrir spontanément au lecteur la vérité intérieure du moi, l´écriture, instrument de méditation, fait écran au projet dans le même temps qu´elle le réalise. Tout ne peut se dire que dans l´écart scripturaire, dans ce double statut de l´écriture qui est instrument de la transparence et obstacle à la transparence (MIRAUX, 1996, p.83) 6.

Nesses cadernos, a maioria das datas não são precisas e uma parte da caligrafia também não pode ser identificada. Conforme descrito anteriormente e segundo Thereza Hermanny, os cadernos ficavam sobre o piano, a “mesa de trabalho” de Tom. Durante encontros e saraus realizados em sua casa, vários amigos eram convidados e vários apareciam como amigos dos amigos. A quem estivesse mais perto do caderno era dada a tarefa de escrever algum momento de inspiração ou um lembrete. Portanto, a tarefa hercúlea de identificação da autoria de todos os textos escritos nos cadernos foi executada, mas não a contento, tendo ficado alguns registros sem identificação de autoria. A numeração escrita numa etiqueta e colada na capa de cada caderno, pela museóloga Vera Alencar, não é linear, como podemos perceber na Tabela 1 abaixo, pois não obedeceram a um critério anterior ou estruturado. Esse código perdurou pelos anos, mas de forma não muito confiável, pois quando de sua indexação na base de dados do Instituto Antonio Carlos Jobim, algumas etiquetas tinham caído e outras estavam duplicadas. A revisão da numeração ia ser feita após o conhecimento de todo o conteúdo, mas até hoje essa tarefa ainda não foi levada a cabo. Entretanto, isso não

6 Tradução livre da autora: O paradoxo da autobiografia se torna aqui doloroso: se a autobiografia sincera é a que oferece espontaneamente ao leitor a verdade interior do eu, a escrita, instrumento de meditação, impede o projeto ao mesmo tempo em que o realiza. Tudo o que se pode dizer da diferença de escritura, deste duplo estatuto da escrita, que é instrumento da transparência e obstáculo à transparência. 94

impede a recuperação da informação e a pesquisa nos documentos, mesmo que digitais. Essas etiquetas eram apenas uma medida de emergência para separar e diferenciar alguns cadernos de outros. Mas, a escrita dos cadernos mostra-nos um encadeamento muito interessante — uma ordem em que foram agrupados. São 37 “caderninhos” que chegaram aos dias de hoje, e certamente contêm lacunas de tempo e espaço; percorrem toda a vida adulta de Tom (dos 25 aos 67 anos); tornam possível mostrar parte do cotidiano do maestro, suas relações com a família (mãe, filhos e esposas) e com os amigos; e até as angústias das obras nas casas em que exercitou seus conhecimentos como arquiteto. A seguir, há uma breve descrição dos 32 cadernos que foram considerados para esse trabalho, excetuando-se os cinco só de Partituras:

Tabela 1: Descrição dos 32 cadernos

CADERNO CÓDIGO PERÍODO7 QTD DESTAQUES OBSERVAÇÕES Caderno Pi1090 Sem 102 letras e esboços de "Vou te contar", Capa manchada e 1 data fls. "Soneto da separação" e "Tempo rasurada. vadio", além da lista das suas 235 Algumas músicas músicas, com cada parceiro. são inéditas. Caderno Pi1093 1959- 72 fls. texto sobre sua iniciação musical; A capa está 2 60 letras de músicas com Newton boleada por Mendonça, Aloysio de Oliveira, umidade. Vinicius de Moraes; esboços de As páginas 145 e "Samba de uma nota só" e "Olha 146 estão pro céu"; roteiros e informações reservadas. sobre o programa Bom Tom; artigo Algumas músicas sobre o mercado fonográfico. são inéditas. Caderno Pi1078 1958- 53 fls. letra de "Frevo de Orfeu", letra Nunca foi gravada 3 61 inédita de Di Cavalcanti e Newton nenhuma música Mendonça, contracapa do disco Por em parceria com

7 Algumas datas foram atribuídas pela arquivista para facilitar a compreensão. 95

toda minha vida, várias cópias de Di Cavalcanti. letras de músicas. Algumas músicas são inéditas. Caderno Pi1422 10 fev. 58 fls. Poemas, desenhos, notas e letras de Algumas músicas 4 1957 a músicas passadas a limpo por são inéditas. 12 jan. Vinicius de Moraes, incluindo 1959 títulos trocados. Ex.: “O amor demais” x “Canção do amor demais” e a inédita: “Alguém em algum lugar”. Poema bestialógio “Vulvêmora”, assinado por Iktinius de Moraes. Caderno Pi1216 1958 40 fls. Texto de ACJ sobre sua família e a 5 primeira versão de "A felicidade" e "Desafinado". Caderno Pi1221 1976 61 fls. Contracapa do disco Urubu e vários Essa construção, 6 desenhos para a construção da casa cheia de paus e em Poço Fundo. pedras, gerou a música “Águas de março”. Caderno Pi1229 Sem 12 fls. Letra de "Two Kites", letra inédita 7 data "A chestnut tree in blossom…" Caderno Pi1233 1970- 40 fls. Repertórios de shows, listas dos A versão de 8 79 discos Urubu e Elis & Tom, “Matita perê” tentativa de versão para o inglês da nunca foi letra de "Matita perê". terminada.

Caderno Pi1234 1973 48 fls. Esboço da letra de "Lígia" escrito 9 por Chico Buarque. Caderno Pi1247 1973 52 fls. Letras de "Ana Luiza", "Ângela", A capa está solta. 10 preparação para a construção da casa no sítio em Poço Fundo. Caderno Pi1252 Sem 55 fls. Letra de "Pois é", com caligrafia de O título do

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11 data Chico Buarque. caderno, escrito na capa, está riscado. Caderno Pi1255 1974 67 fls. Letras de música de ACJ e Chico 12 Buarque, esboços para a construção da casa em Poço Fundo. Caderno Pi1256 Sem 48 fls. Contracapa do disco Miúcha e Há alguns 13 data Antonio Carlos Jobim e esboço das documentos com versões de "Ligia", "Matita perê" e caligrafia de "Ana Luiza". Esboço de "Double Vinicius de rainbow" no verso da capa. Moraes e Chico Buarque. Caderno Pi1095 1973- 65 fls. Plantas e croquis do sítio em Poço Esses desenhos 14 76 Fundo, trabalho de arquitetura de datam do início Paulo Jobim e desenho de Elizabeth da carreira de Jobim. Beth Jobim como pintora. Caderno Pi1423 1973- 60 fls. Esboços de "Matita perê", tanto 15 77 para a letra quanto para o disco, de "Bebel", além de carta a Frank Sinatra. Caderno Pi1105 1975- 57 fls. Descrição de orixás, estudos para o 16 77 disco Urubu. Caderno Pi146 1962 48 fls. Repertório para The Composer of Algumas letras da 17 Desafinado plays; estudos de letras parceria com para “The Girl from Ipanema”, Norman Gimble “Dreamer” e “The Jazz and samba”. não foram usadas. Caderno Pi1149 Sem 38 fls. Esboço do poema "Chapadão", das Algumas músicas 18 data músicas "Bebel", "Maria é dia" e "É são inéditas. eterno". “Chapadão” é o maior poema de ACJ. Caderno Pi1151 1980- 58 fls. Letra de "Bebel", artigo de ACJ

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19 89 elogioso sobre Villa-Lobos e desenho do Horácio, de Maurício de Souza. Caderno Pi1156 1983 52 fls. Esboço da letra da música 20 "Gabriela". Caderno Pi1160 1987 110 Esboço de "Chansong" e Esse show saiu 21 fls. "Gabriela"; roteiro para o show no em CD em 2004, Palácio das Artes, letras de várias com o título de músicas e versão em francês de Tom Jobim em "Luiza". Minas, piano e voz. Caderno Pi1161 1970- 50 fls. Roteiros de ACJ para os filmes A Tom fez trilha 22 79 casa assassinada e Tempo do mar, para os dois listas de afazeres pessoais, filmes lembretes, telefones e crônica sobre mencionados. José Carlos Oliveira. Caderno Pi1114 1950- 32 fls. Letras de músicas transcritas por Quase todas estão 23 59 Thereza Hermanny. copiadas com papel carbono e serviam uma para ser registrada como estava e a outra para ser modificada. Caderno Pi1056 1950 a 27 fls. Relação das despesas domésticas da 24 52 casa durante dois anos. Caderno Pi1180 Sem 100 Experiências com palavras em 25 data fls. inglês, lista de problemas com seu

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carro e repertórios de shows. Caderno Pi1260 1950- 46 fls. Relação de despesas domésticas e 268 52 esboços de letras de música em parceria com Newton Mendonça. Caderno Pi1132 77 fls. Roteiros de shows; letras de 27 músicas para a minissérie O Tempo e o vento; esboço de poema para Luma de Oliveira. Caderno Pi1158 1954 11 fls Esboços e letras de músicas 28 contidas na Sinfonia do Rio de Janeiro. Caderno Pi1166 Sem 7 fls. Transcrição das letras de músicas “Não devo 29 data "Não devo sonhar" e "A chuva sonhar” caiu". permaneceu inédita. Caderno Pi1136 1980- 13 fls. Esboços de músicas, repertório do Algumas folhas 30 89 show no Carnegie Hall e com Gal estão rasgadas. Costa. Caderno Pi1146 1990- 14 fls. Esboços de músicas, roteiros de 31 94 shows e de figurinos para show. Caderno Pi1264 1950 18 fls. Esboços de letras de músicas Um dos poucos 32 inéditas e o poema "Triste poemas de ACJ. romance".

3.2 OBSERVANDO COM MAIS ATENÇÃO

Não há, nesses cadernos, muitas reflexões de foro íntimo, nem mesmo “retratos” minuciosos de sua vida diária ou de grandes acontecimentos — do que também sentiu falta Celso Castro quando pesquisou os diários de Bernardina Constant de Magalhães Serejo (CASTRO, 2004, p. 231). Mas ainda assim, são documentos

8 Eis um exemplo de como os números se misturaram. 99 biográficos fundamentais da vida pessoal do homem público que era o maestro Jobim. E vale lembrar também que toda escrita representada nesses cadernos foi feita por Tom para ele mesmo. Normalmente, nesse tipo de escrita, equivalente ao journal dos franceses, o texto não é destinado a outros leitores. (MIRAUX, 1996, p. 13). Muitos documentos não puderam ser mais detalhadamente relacionados, porque não era tarefa para a equipe de indexação, mas para os pesquisadores da vida do titular, com conhecimentos específicos e mais profundos. Ou seja, é o caso de uma seqüência de listas de instrumentos, no caderno 4, que não se pode afirmar terem sido feitas para a gravação da “Sinfonia da Alvorada”, embora seja um dos poucos momentos em que Tom esteve à frente de uma orquestra. As tipologias mais comuns nos cadernos são: letras de música, inclusive algumas inéditas, e versões (43,37%), listas de, entre outras, compras de supermercados, de músicas gravadas e a gravar, de partituras emprestadas, de tarefas domésticas ou de consertos nas casas e carros (19,46%), artigos (2,71%), contas matemáticas (3,04%), poemas (2,93%), desenhos (12,5%) das casas que construiu (Poço Fundo e Sara Vilela), ou de seus filhos e arquitetos, sendo muitas vezes precedidos das contas matemáticas. Além desses, encontram-se ainda: contracapas (1,08%), como a que fez para o famoso disco Chega de saudade, bilhetes e rascunhos de cartas (1,84%), algumas assinaturas e frases onde Tom treinava a escrita com a mão esquerda, com duas canetas e ao contrário (1,56%), algumas recomendações médicas (0,54%), roteiros para seu breve programa de TV O bom Tom (0,54%), relatos de sonhos de Paulo Jobim (1,31%), melodias com a grade desenhada à mão livre (0,98%), recibos de pagamentos de funcionários, feitos por Tom ou por quem recebia (0,2%), notas (6,75%) de contatos e direções e lembretes esparsos (1,19%). Não entrou na porcentagem o único testamento encontrado nos cadernos, mas pelo tom jocoso, merece a citação. Tom afirma seu desejo de que tudo o que a ele pertencia deveria ficar para sua esposa (na época, Thereza Hermanny).

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Figura 4 – Percentual dos tipos de documentos encontrados nos 32 cadernos

É interessante observar que essa tipologia também é uma tarefa complicada pois, numa mesma folha, facilmente havia mais de um tipo de documento. Nesses casos, houve necessidade de priorizar o que estivesse mais completo ou que mais se destacava. Por exemplo, Tom podia começar com uma letra, inserir um lembrete, fazer contas e voltar à letra. Ou, escrever numa direção um texto, tombar a página e escrever outro assunto em outra direção. Também era comum que essas anotações, registradas numa mesma folha, fossem escritas em datas diferentes. Mesmo que a grande maioria esteja sem data, é possível perceber como os assuntos foram separados através tempo. Outras vezes, o registro iniciado numa página, continuava em outras vinte páginas à frente. Uma observação cabe aqui: as páginas do intervalo são invariavelmente preenchidas antes e/ou depois desse registro saltado, forçando a memória do indexador. O que importa ressaltar é que Tom tinha total liberdade de “bagunçar” seus rascunhos; afinal, ele os compreendia e sempre os encontrava quando precisava. A seguir, uma das tantas páginas semelhantes, que contém um exemplo dessa licença que todo autor tem sobre seus escritos:

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Figura 5 – Vários tipos documentais numa mesma página. Caderno 4, Pi 1423, p. 3 Figura 6 – Lista de temas para o filme Crônica da casa assassinada. Caderno 25, Pi 1180 p. 4

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3.3 REFÚGIOS DO EU

Nome: Antonio Carlos Jobim Naturalidade: Carioca Data de nascimento: Tenho 31 anos de Ipanema porém nasci na Tijuca (rua Conde de Bonfim) a 25 de janeiro de 1927 Filiação: Pai gaúcho, falecido (o poeta Jorge Jobim) e mãe carioca (nascida Brasileiro de Almeida) Profissão: Músico Há músicos na família? Meu lado materno está cheio de gente musical e q praticava música mas, até onde sei, nenhum se profissionalizou. Minha avó tocando piano, tios tocando violão, mamãe cantando e tudo mais... Desde que me lembro de mim gosto de música. Minhas primeiras lembranças me levam às cantigas de ninar q. minha mãe cantava. Depois à calçada e às cantigas de roda. A família era grande e morávamos num casarão de 2 andares ligados por aquela escada de madeira que range. Lembro-me dos meus tios tocando violão e de minha tia cantando. Vinham os choros, as valsas, os espanhóis, Bach e tudo mais até que me mandavam para (a) cama. Subia a escada, com medo do escuro, e ia me deitar. Na cama eu me consolava ouvindo os sons meio distantes do violão, doces, lá embaixo na sala e tudo se apagava. Dia de sábado chegavam outras pessoas que tocavam e cantavam em contracanto. Eu ficava bobo achando todo mundo craque. Depois veio a juventude, o estudo e, o pavor do estudo (acho que isto diz tudo). O professor queria as escalas mas eu achava a praia muito mais bonita – ia vivendo. Soprava numa gaita as musiquinhas que ia ouvindo, arranhava o violão e batucava misticamente (ergue os olhos para cima) o piano até o desespero da vizinhança. Nunca pensei em música como profissão. A música, se bem que objeto de minha paixão, era um prêmio que as horas de folga oferecem. Depois do futebol na praia, depois dos estudos, que eram as obrigações, só de música eu me ocupava. Me lembro da minha falta de gosto, da minha saúde, da minha violência, aos 16 anos, quando tocava aquele piano ininterrupto que era o desespero do quarteirão, numa obsessão inconsciente, obsessão na qual quem tocava não sabia que estava tocando. (Acervo ACJ, Pi1093)

Percorri esse texto por entre 18 folhas, lançadas no caderno 2, espremido entre letras de músicas, bilhetes e várias anotações como se fosse um prêmio que as horas de trabalho ofereciam. Ao que parece, foi uma tentativa de currículo profissional,

103 quando sua carreira começou a despontar, pois ele pedia que fosse colocada uma foto acima, antes do seu nome. Essas anotações ajudam Tom, em início de carreira, a se mostrar para a imprensa. Tudo indica que foram suportes para formar os roteiros para seu programa de televisão – que ficou menos de um ano no ar – chamado Bom Tom, mostrado na TV Tupi, no final dos anos 1950. Para lidar com essa rotina, ele criou textos igualmente rotineiros. No mesmo caderno 2, páginas à frente (p.52), ele começa a pensar sobre o mercado fonográfico, em plena expansão após o boom da Bossa Nova: “Com a melhoria do padrão do disco brasileiro (música, letra, orquestração, técnica de gravação) muita gente que só comprava música americana passou a comprar também música brasileira” (Acervo ACJ, Pi1093)9. Depois, ocupou várias páginas com letras de músicas inéditas que então preparava com Aloysio de Oliveira (“Dindi”, “Samba de uma nota só” e “Olha pro céu”). Há ainda várias notas sobre o que deveria ser mencionado em seu show na TV, croquis do palco e, na página 74, a descrição de um dia de gravação:

Prefixo Comercial Prefixo – sem ritmo – vem Aluisio que é amigo e parceiro e q. se apresenta aqui, atrás desta barba. Aluizio pede e apresenta 1) Esquecendo você. 2) Demais Aluizio [sic.] e eu cantamos entra a Orq. e vem Sylvia com copos e cigarros e terminamos juntos. Sylvia pede para cantar: 3) De você eu gosto Comercial Nós pedimos a Sylvia 4) Dindi 5) Fotografia 6) Prefixo (AcervoACJ, Pi1193)

Não há registros conhecidos desse programa ou show, além dos que estão nos caderninhos de Tom.

9 A íntegra desse artigo pode ser conferida no Anexo D. 104

Curioso é perceber, ao folhear tais cadernos, que um registro poderia reafirmar outro ou modificá-lo, estivesse no mesmo caderno ou não. Na página 3 do caderno 3, Tom anota que precisa evitar demoras na viagem Montevidéu - Rio de Janeiro, e tirar visto de turista. Nas páginas seguintes encontram-se rascunhos de versos para “Eu preciso de você”. E, na página 8 do mesmo caderno, ele misturou os dois assuntos, num dos versos da música: “O turista tem seu passaporte / E eu preciso de v. / nossa produção pede transporte / E eu pr. de v.” (Acervo ACJ, Pi1078). Além de lembretes, existem nos caderninhos de Tom bilhetes ou pequenas cartas para ele mesmo – como nos lembra Foucault: uma memória material das coisas pensadas, vividas, por viver etc. Mas, essa prática não era nada comum. Ela aparece apenas em dois lugares em todo o acervo do maestro: uma delas no caderno 21, na página 165 (Pi1160) e outra, na série Correspondência Pessoal (Cp003).

Figura 7 – Lista de lembretes para o próprio titular. Pi1160, p.29

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É muito gostoso e surpreendente, para um pesquisador, folhear os cadernos. Por isso, para facilitar sua leitura e pesquisa, foi decidido pela equipe do Instituto Antonio Carlos Jobim que haveria planilhas eletrônicas no banco de dados DSpace para cada um deles, como um todo. Em algumas páginas, de seus cadernos pessoais, ele tinha extrema liberdade para brincar com suas assinaturas e com alguns pseudônimos, talvez exercendo heterônimos que gostaria de ter. Na página 98 do caderno 17, Tom assina como David Zingg; na página 240 do mesmo caderno, assina como Anatão y João. Em uma carta a Paulo Jobim, na série Correspondência Familiar (Cf851), Tom assina como João. Em outras séries também aparecem outros pseudônimos curiosos, como Tom Joba, Tony Brazil, Walter Glauber e Tom-Tom. As páginas dos cadernos vão se estendendo para o dia-a-dia, revelando algumas brincadeiras que fazia com seus filhos: “O Papai é bom / O Papaizinho é muito bonzinho / O Papai gosta muito da Mamãe / A Mamãe gosta muito do Papai / O Papai gosta muito dos filhinhos / Gosta do Paulinho e da Betinha”. (Acervo ACJ, Pi1216, p.10). E ainda, recentemente, mostrando a atualidade do arquivo, a página 47 do caderno 17, assim como quase todo o caderno 29, ajudou a família Jobim a provar, judicialmente, a co-autoria das versões que Tom fez com Norman Gimble (Acervo ACJ, Pi1146). Principalmente usados para seu ofício de compositor, os caderninhos de anotações de Tom Jobim estão entre os mais preciosos documentos de seu acervo. Não apenas por constituírem uma explícita escrita de si dentro do arquivo, mas porque eram companheiros diários, sendo instrumentos de trabalho para o maestro. Por isso mesmo, estão ali vários pensamentos, fragmentos de músicas ou esboços de desenhos. Porém, tais inscrições são múltiplas e concisas. Os textos dos cadernos contêm quase todos os tipos documentais do arquivo, abrigando, portanto, imensa diversidade, toda ela num mesmo lugar e com uma mesma capa.

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Figura 8 – Lista de consertos necessários no carro. Caderno 25, Pi 1180, p. 14

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Figura 9 – Lista de acessórios para levar em caçada. Caderno 28, Pi 1158, p. 12

3.4 AS CASAS DE TOM O endereço de uma pessoa não é importante. Sobretudo depois de uma certa idade. Tom Jobim in A casa do Tom

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Tom sempre se mudou muito. Na infância, morou na Tijuca, em Copacabana e Ipanema. Desde que pôde sair da casa dos pais (na verdade, mãe e padrasto), morou com Thereza Hermanny e os filhos Elizabeth e Paulo, na rua Nascimento Silva (Ipanema), na rua Codajás (Leblon) e na rua Peri (Jardim Botânico). Depois, com a família de Ana Beatriz e os filhos João Francisco e Maria Luiza, permaneceu na rua Peri até a casa da rua Sara Vilela (Jardim Botânico) ficar pronta. Claro, acrescentem- se nessas contas, o apartamento próprio em Nova York, o sítio Poço Fundo e o apartamento alugado em Los Angeles, no início dos anos 1970. Embora tenha cursado apenas por um ano a Faculdade de Arquitetura, Tom participou ativamente do planejamento e reformas das duas casas que construiu: a casa no sítio chamado Poço Fundo, no município de São José do Vale do Rio Preto, e a casa na rua Sara Vilela, no Jardim Botânico. Os cadernos abrigam muitos rascunhos, desenhos e cálculos para as obras nas quais Tom participou. Embora em grande quantidade, são itens pouco precisos e sobre a maioria dos desenhos não se pode afirmar à qual casa se refere.

Figura 10 – Esboço para a construção da casa em Sara Vilela. Pi 1095, p. 20 Figura 11 – Esboço para a construção da casa em Sara Vilela. Pi 1247, p. 49

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A primeira casa construída foi o sítio em Poço Fundo, por volta de 1972. Na verdade, é uma reserva particular da Mata Atlântica, localizada em São José do Vale do Rio Preto, que fica entre Petrópolis e Teresópolis, no estado do Rio de Janeiro. Tom pôde comprar um grande terreno, bastante irregular, quando retornou ao Brasil, em fins da década de 1960. Tinha conseguido juntar dinheiro suficiente por conta de seus trabalhos nos Estados Unidos e queria aplicá-lo. Contou com a ajuda da sua mãe, Nilza Brasileiro de Almeida, e destinou uma parte do terreno para a casa de Helena, sua irmã, e outra para Elizabeth, sua filha. Quando começaram as obras de terraplanagem do terreno e as da casa, Tom fez vários rabiscos nos cadernos e muitos pedidos ao arquiteto Wilfred Cordeiro, seu amigo de infância, pois gostava de exercitar suas idéias. Ana Jobim comenta em seu filme, A casa do Tom:

O sol da manhã deveria bater nas janelas dos quartos; a parede sul devia ser cega, por causa dos ventos e das chuvas de verão; os quartos isolados do chão, para evitar umidade; telhas coloniais grandes em teto sem forro; pé-direito de sete metros de altura; degraus nas portas de entrada, para evitar cobras. Tom era obcecado pela arquitetura de morar, cuidava de cada detalhe, não dos detalhes do interior, mas da luz, da posição do sol, de dormir com a cabeça voltada para o Norte absoluto, da vista, da paisagem que gostava de contemplar. (JOBIM, 2007, folheto, p. 12).

Foi nessa época, e em pleno canteiro de obras, que teve inspiração para a música “Águas de março”, durante uma caminhada/inspeção matinal. Além dessa, tantos outros sucessos de sua carreira foram inspirados pela natureza do lugar, como “Dindi” (nome derivado do “Caminho do Dirindi”, que passa pela propriedade de Tom) e “Chovendo na roseira” (devido aos roseirais à beira da janela do seu quarto). Esse era o refúgio da família Jobim e eram comuns almoços festivos, comemorações e cantoria. Tom gostava da mata ao redor, e apelidou de “vento redondo”, o que circulava pela propriedade. Passeava por lá, piando passarinhos, observando os urubus (muito importantes na sua obra), conversando com os mateiros e as pessoas simples da região. Recentemente, foi publicada no DVD A casa de Tom, uma cena gravada por Ana Jobim e Luiz Eduardo Lerina, na qual Tom conversa com Narciso Silva, caseiro de Poço Fundo. Nela, Narciso contava, eriçado, seu encontro com o lobisomem. E Tom balançava a cabeça concordando com tudo.

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O apartamento em Manhattan foi comprado por causa da vista. Ana tinha escolhido um apartamento, no sexto andar, com o dobro do tamanho e a metade do preço do que acabaram adquirindo, no 22º andar. Todos tentaram demovê-lo da idéia de comprar esse apartamento, incluindo seu contador, mas Tom disse à Ana: “Eu quero esse. Eu vou comprar esse apartamento”. Ele era completamente indevassável, com vista de boa parte da cidade: “a view with the room”. Depois, o contador, disse “Ah, ele tinha razão, vai ver eu gosto mais de dinheiro do que ele” (JOBIM, 2007). A outra casa ficava na rua Sara Vilela, no alto Jardim Botânico, no “sovaco do Cristo”, apelido que ele consolidou10. Esse projeto começou em 1979 e durou quatro anos: até 1982. Ana Jobim lembra que o poema “Chapadão” (transcrito integralmente no Anexo C) começou junto com a obra, mas levou oito anos para ser terminado, tendo sido publicado no livro Ensaio poético¸ dela e de Tom Jobim, em 1986. Os arquitetos foram Paulo Jobim e Maria Elisa Costa11, mas não sem os vários retoques de Tom – cliente exigente e “criativo”. Paulo narra à jornalista Camila Pires, como começou a obra:

Eu fiz o projeto da casa junto com a Maria Elisa Costa. Eu trabalhei por muitos anos com ela e alguns projetos tinham consultoria do Lucio Costa, uma figura maravilhosa. A casa era separada do chão para não entrar umidade e para poder passar vento embaixo. Havia toda uma preocupação com o sol e as telhas eram de vidro para a luz entrar. A posição da casa acabou ficando totalmente norte, sul, leste, oeste. Meu pai gostou do negócio de pegar a bússola e calcular a posição do sol. Então, a gente descobriu como fazer a conta de que horas era realmente meio-dia (porque o meio-dia do relógio não é a hora exata em que o sol passa verticalmente em cima de nossas cabeças). Parece que é quando o sol passa meio-dia em Ubatuba. E a gente fez essa conta para saber a hora em que o sol estaria passando reto no terreno. O sujeito lá da obra colocou um fio de prumo pendurado numa madeirinha (aquele chumbinho pendurado com uma corda) e, quando chegou meio-dia e dezesseis ou dezesseis para o meio-dia, a gente riscou a sombra do sol, que fica exatamente ao norte. A gente riscou no chão e a casa toda ficou marcada. Isso era uma curtição maluca. (PIRES, 2007)

10 “Suvaco [sic.] do Cristo” é o nome de um dos mais famosos blocos de Carnaval da Zona Sul carioca. Um de seus fundadores, o médico João Carlos Avelleira, contou à autora que ele batizou o bloco quando leu uma entrevista em que Tom falava que morava no “sovaco do Cristo”. Também no poema “Chapadão” (Anexo C), Tom menciona o “sovaco cristão”. 11 Filha de Lucio Costa e Julieta Guimarães Costa. Dirigiu o IPHAN de 2004 a 2006 e, atualmente, mantém a Casa Lucio Costa, no Jardim Botânico, em parceria com sua única filha, Julieta Sobral. 111

Como já mencionado, os caderninhos de anotações serviram para várias reuniões, contendo desenhos de todos os lados e cálculos de vigas, paredes e telhado. Mesmo com tantos ajustes, depois de terminada a casa, os novos moradores tiveram uma infeliz surpresa: o segundo andar ficou com o pé-direito muito curto, provocando em Tom, uma enorme angústia. Por isso, com bom-humor, ele escreveu uma carta ao seu filho-arquiteto datada de 2 de setembro de 1983, em que comenta cada defeito (Cf 807). Essa longa carta virou um artigo em tom irônico e engraçado: “O baixo rebaixado”, Pi921:

Todos os aposentos são baixos. O pior é que além das lajes serem baixas, elas sofrem incríveis rebaixamentos. [...] Pular, num dia frio, embaixo do chuveiro, nem pensar! Quebraria a cabeça. [...] Felizmente já botei o banheiro abaixo. Para q. servem as lajes próximas e rebaixadas? Não sei. Acho q. morrerei sem saber. [...] Serve para q. tudo fique escuro. Quanto mais se aproxima o chão do teto, mais escuro fica o aposento, mesmo q. todas as paredes sejam de vidro! [...] Na minha casa nova toda a vez q. eu tento tirar o rebaixo para tentar me adaptar à baixa laje encontro mil coisas ocultas pelo rebaixo, os esgotos passam sempre sobre nossas cabeças. [...] O quarto tem 2,50m de pé-direito e no lugar do ex-corredor tem menos, aprox. 2,42; e isto depois q. arrancamos o rebaixo e botamos os canos por cima da laje e as vigas também passamos porque antes o ex-banheiro tinha a altura de +- 2,10m. (Me lembra o Hotel Marina, opresso, opressor, oprimente). [...] O telhado também não tem pé direito nem espaço entre o telhado e a laje q. permitisse arejamento do sótão. [...] O Sergio Dourado tem suas razões para diminuir a altura, the height of the room, sus intenciones son bien conocidas $ mas nós, tínhamos sobre nossas cabeças o céu e as estrelas! Podíamos ter feito a igreja, a gaiola do jereba, mas não, fizemos os buracos das gavetas. [...] La Cave. Perguntei ao Jopper12 pelas máquinas, para suspender, erguer, separar as lajes, ele disse q é impossível. Sugeri quebrar, ele me diz q é melhor fazer outra casa, despesa etc... Mas entre essas lajes vou ter q. viver eu! Talvez o q. tenha levado o Paulim a tais baixezas tenham sido motivos estéticos. Mas ele se esquece q. a fachada, q. ele viu na prancheta, ninguém vê. Só de helicóptero, sobre a lagoa, de binóculos, assim mesmo só com aquela suspensão q. os americanos usam para filmar sem trepidação. [...]

12 Dr. Jorge Jopper, engenheiro e mestre-de-obras da construção da casa na rua Sara Vilela. 112

Esta casa era pra ser uma casa de verão carioca. [...] ou vendê-la para o Nelson Ned13. Ele poderia, montado num poney, empunhando o espadim, ou o espeto do churrasco, ou a faca da cozinha dar vivas à República. E tirar o suéter. Tentarei o q. puder para melhorar, minorar as condições. Telhas de respiração, cobrir a laje de isopor etc... mas na minha experiência o q. resolve é pé direito, muito melhor do q. ar condicionado versus laje. Tenho dito Tom Joba Rio, 28.set.83 [...] P.S14. O parapeito é um parapinto. P.P.S. Em música, quando a gente erra, a gente apaga e escreve certo; se está gravado, a gente regrava, grava de novo mas, no caso, o meu problema é muito concreto, armado.

O telhado foi corrigido, numa operação arriscada e ímpar: todo o telhado foi levantado, de uma só vez, com a ajuda de macacos hidráulicos. Essa tarefa foi tão impressionante que mereceu ficar registrada em vídeo15 pelo primo de Ana Jobim, Luiz Eduardo Lerina. Foi nessa casa que o casal Jobim criou seus dois filhos, fez festa para seus animados aniversários em volta do piano, e onde Tom escreveu os poemas “Chapadão” (sobre a própria casa) e “Meu querido Jardim Botânico” (sobre seu querido “quintal”).

Tom era um homem absolutamente normal na vida doméstica. Nos últimos anos acordava muito cedo. Comprava pão, depois sentava ao piano e Luiza ficava desenhando. Ou passeavam juntos no Jardim Botânico. Ele ia diariamente à churrascaria Plataforma [...], freqüentava a Padaria Século XX, a banca Piauí, a farmácia, o florista. Lá pelas 3 ou 4 horas da tarde voltava pra casa e à noite sentava para compor. Muitas vezes, acordava de madrugada e ficava ao piano. [...] Sempre atendia ao telefone. As pessoas do outro lado da linha não acreditavam que era o Tom Jobim que estava atendendo. (JOBIM, 2007, folheto, p. 20-21)

13 Nelson Ned é cantor. Aqui, no contexto, Tom brinca com o fato de ele ser anão. 14 Esse artigo não foi publicado, mas foi distribuído aos arquitetos e amigos da família. Várias partes foram suprimidas, mas há duas outras assinaturas no documento: Tony Brazil e Antonio Brasileiro. 15 Esse vídeo encontra-se no acervo ACJ, D01. 113

Esta foi sua última morada aqui no Brasil, de onde partiu, para ser operado nos Estados Unidos, em meados de 1994, falecendo a 8 de dezembro do mesmo ano.

*** O exercício extremamente benéfico de escrever para si, levou Tom à produção de seus “caderninhos de anotações”. Essa era uma maneira de se fazer a si mesmo, de se (re-)descobrir, podendo alterar, consertar e impulsionar sua carreira, sua personalidade. E esses benefícios não são exatamente privilégios de quem está “destinado” ao sucesso. Só há um requisito para alcançá-los: o exercício do pensamento. Escrever e reler, como se fôssemos um novo continente em uma nova época – é esta a magia da literatura. (LECARME, 1999, p. 12)

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CONCLUSÃO

O patrimônio cultural de um país está representado nos seus costumes, leis e na sua produção artística. Essas manifestações se materializam nos arquivos, bibliotecas, museus, donde se justifica dizer que esses centros de informação são repositórios da cultura de um povo, lugares de sua memória1. Donde se justifica dizer que a forma final do conjunto dos acervos será determinada diretamente pelo profissional que se responsabiliza pela formação, guarda e distribuição das informações neles contidas. Além do arquivista, outros dois agentes podem alterar o volume de dados que entram ou saem do acervo: o pesquisador e o titular/acumulador. O filtro, que se torna o olhar e o foco de cada pesquisador, desvenda vertentes novas em um mesmo arquivo. E da mesma maneira que somos plurais nos gostos e nos gestos, nossa produção também terá vários caminhos possíveis. O motivo — ou sua ausência — que levou o titular de um fundo a guardar determinado documento reconstitui as inquietações por que passou. O eixo dessa hipótese gira em torno da idéia de que os arquivos são, sempre, uma construção consciente sobre a realidade vivida, seja ela institucional ou particular; e sendo particular, seja privada ou pública. Os entraves e limitações do ser humano estarão sempre presentes – o que pode se tornar um problema ou um desafio. A História até o século XIX só dava conta do espaço público e contou as histórias dos homens, e especialmente os da classe dominante — excetuando-se mulheres. Ora, se podemos perceber que essa História (e a sociedade que a cercava) era uma construção, o que nos impediria de ver a mesma construção, agora mais explícita, na sociedade atual? Os registros históricos são formados e escolhidos pelo indivíduo com poder para tal, mas que responde a diversos estímulos externos. O partido político, as regras da economia, guerras, enfim, a situação de quem é dominante interfere na escolha do que se quer perpetuar. Num mundo plural como este em que vivemos, não há espaço para conceitos herméticos, completos ou estagnados. Não se pode estabelecer um padrão, um conceito que consiga abarcar todas as intenções de cada indivíduo que pretende usá- lo. Pode-se revisitar os conceitos de outras épocas, agregar valores atuais, tentando

1 Referência ao conceito de Pierre Nora, no Les lieux de mémoire. 115 caminhar para algo moderno, sempre maleável, ou para usar o termo de Bauman2, fluido. Essa possibilidade de misturar e adaptar os conceitos para um determinado uso momentâneo com certeza traz maiores opções e liberdade; entretanto, a insegurança também aumenta na mesma proporção, pois essa maneira atual de pensar o mundo cria frágeis conceitos. Talvez por esse motivo, percebemos a necessidade premente de afirmação da identidade, de determinar as pequenas diferenças entre os grupos tangentes, mas de estruturar a cultura do país como a mais ampla possível. Porque mesmo com toda a liberdade benfazeja, todos querem se sentir fazendo parte de algo coeso, estruturado, por mais “modular” que seja essa estrutura. Com todas as potencialidades que nos cercam, esse trabalho não é estanque, pretende-se um eterno gerúndio para ir atualizando os conceitos e definindo que os arquivos pessoais estão ganhando terreno neste momento que está acontecendo (flexões verbais intencionais). A minha experiência em mais de dez anos de trabalho em arquivos privados pessoais me faz perceber que eles são objeto de pesquisas atuais, livros os mais diversos, temas de números de revistas e congressos internacionais, disciplinas em faculdades e que por tudo isso podem se ver finalmente reconhecidos pela comunidade acadêmica. Outro fato interessante é que nunca vi tantas instituições sendo criadas para manter um acervo. Para citar poucos, o Instituto Moreira Salles nasceu em 1990, o Instituto Antonio Carlos Jobim foi criado há cinco anos, o Tempo Glauber teve sede há seis anos e vejo ainda a criação de outros centros parecidos assim como preocupação crescente de artistas em garantir, sim, seus direitos autorais, mas, mais que isso, divulgar suas obras ao maior número de pessoas possível que se interessarem. A importância de acervos pessoais demonstra uma necessidade que urge solução: fontes de pesquisa tão delicadas e raras não podem continuar à mercê do descaso público (tanto institucional quanto acadêmico). Essa “matéria-prima” precisa ser lapidada. Para isso, é necessário que as instituições agilizem o processo de identificação e organização de seus acervos, e que os pesquisadores, ávidos por fatos inéditos e abordagens novas, “garimpem” os acervos privados pessoais. A riqueza das fontes primárias pode e deve ser melhor aproveitada.

2 Defendido em alguns de seus livros, mas principalmente, no Modernidade líquida. 116

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Anexos

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Anexo A - Plano de arranjo do arquivo pessoal de Antonio Carlos Jobim

DOCS TEXTUAIS DOCS AUDIOVISUAIS DOCS ICONOGRÁFICOS DOCS MUSEOLÓGICOS Correspondência Pessoal (Cp) Áudio caseiro (K7) Cartazes Bandeiras Correspondência Familiar (Cf) Álbum Desenhos Medalhas Correspondência de Terceiros (Ct) Vídeo Fotos Prêmios Documentação pessoal (Dp) Documentos diversos (Dv) Produção Intelectual do Titular (Pi) Produção Intelectual de Terceiros (Pit) Produção Não Identificada (Pini) Publicação na Imprensa (Pim)

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Anexo B – Planilha dos Documentos Textuais do Instituto Antonio Carlos Jobim

Modelo de planilha dos cadernos(Pi) 040 Código da Instituição: IACJ 610 Assunto (P. jurídica):ˆa 091 Tipo de peça: Documentos textuais Gênero e tipo de doc.: 611 Assunto Evento: 092 Coleção ou fundo: Antonio Carlos Jobim Código: 651 Assunto Geográfico: 093 Série: 653 Termo candidato: 100 Autor (Pessoa Física): 700 Assunto (P. física): 740 Títulos das partes: 240 Título uniforme: 773 Documento fonte:ˆt título 245 Título principal do documento: ˆh descrição física 246 Título variante: ˆd imprenta 260 Local: Data: 787 Doc. Relacionado: ˆi descrição 300 Nº doc.: 1 doc. Técnica gráfica: ˆa entrada principal Dimensão: Nº folhas: ˆt título 500 Observações: ˆd emprenta ˆh descrição física 610 Assunto (pessoa jurídica): Â 580 Nota de ligação:ˆa entrada principal 611 Assunto Evento: 520 Resumo: 651 Assunto Geográfico: 653 Termo candidato: 546 Idioma do texto: 700 Assunto (P. física): 562 Ident. cópias e versões:ˆa 740 Títulos das partes: 590 Notas de pesquisa: 773 Documento fonte:ˆt título ˆh descrição física 592 Estado de conservação: ˆd imprenta 600 Assunto (P. física): 787 Doc. Relacionado: ˆi descrição ˆa autor ˆt título da obra ˆa entrada principal ˆt título ˆd emprenta ˆh descrição física

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Anexo C – Poema “Chapadão”

VOU FAZER A MINHA CASA NO ALTO DO CHAPADÃO VOU LEVAR O MEU PIANO QUE FICOU NO CANECÃO.

VOU FAZER A MINHA CASA NO ALTO DO CHAPADÃO VOU LEVAR A DON'ANINHA PRA ME DAR INSPIRAÇÃO.

VOU FAZER A MINHA CASA NO ALTO DE UMA QUIMERA VOU CRIAR UM MUNDO NOVO, INVENTAR NOVA MEGERA.

VOU FAZER A MINHA CASA COM LARGURA E COMPRIMENTO E PEÇO AO PAULO UMA SALA PRA BOTAR ANINHA DENTRO

VOU BOTAR MINHA BIRUTA NO TAQUARUÇU DE ESPINHO VOU FAZER CAMA MACIA PRA TE AMAR DEVAGARINHO

SEREMOS DOIS BELEZUDOS NESTE MUNDO DE FEIOSOS AS NOITES SERÃO TRANQÜILAS E OS DIAS TÃO RADIOSOS

QUERO MINHA CASA FEITA COM RÉGUA PRUMO E ESMERO QUERO TUDO BEM TRAÇADO QUERO TUDO COMO EU QUERO

QUERO TUDO BEM MEDIDO DE LARGURA E COMPRIMENTO NÃO QUERO QUE MINHA CASA ME TRAGA ABORRECIMENTO

VOU FAZER A MINHA CASA DO ALTO DE UMA CANÇÃO E AGRADECER A DEUS PAI A SOBRANTE INSPIRAÇÃO

SOB A AXILA DO CRISTO NESTE SOVACO CRISTÃO

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VOU FAZER A MINHA CASA NO ALTO DO CHAPADÃO

E VOU DAR FESTA BONITA COM BEBIDA E COM GARÇON E AO LUFA QUE FOI AMIGO DOU CHAMPAGNE COM BOMBOM

VOU FAZER A MINHA CASA NO CENTRO DO RIBEIRÃO QUERO MUITA ÁGUA LIMPA PRA LAVAR MEU CORAÇÃO

MINHA CASA NÃO TERÁ NEM SÁBADO, NEM DOMINGO TODO DIA É DIA SANTO TODO DIA É DIA LINDO

TODO DIA É SEXTA-FEIRA SEXTA-FEIRA DA PAIXÃO VOU CONVIDAR ALBERICO PARA O PEIXE COM PIRÃO

E DENTRO DA MINHA CASA NUNCA VAI JUNTAR POEIRA PELO MEIO DELA PASSA UMA ENORME CACHOEIRA

QUERO ÁGUA COM FARTURA QUERO TODO O RIACHÃO QUERO QUE NO MEU BANHEIRO PASSE INTEIRO O RIBEIRÃO

QUERO A CASA EM LUGAR ALTO VENTILADO E SOALHEIRO QUERO DA MINHA VARANDA CONTEMPLAR O MUNDO INTEIRO

VOU FAZER O MEU RETIRO NA GROTA DO CHORORÃO A MINHA CASA SERÁ UMA CASA DE ORAÇÃO

VOU ME ESQUECER DO PECADO ENTRAR EM MEDITAÇÃO E NÃO SAIO MAIS DE CASA SÓ SAIO DE RABECÃO

VOU ENTRAR PRA ACADEMIA VOU COMER MUITO FEIJÃO

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E ACORDAR À MEIA-NOITE PRA VESTIR O MEU FARDÃO

MAS NA MINHA ACADEMIA SEM CHAZINHO E SEM GARÇON SÓ ENTRA MARIO QUINTANA SÓ ENTRA CARLOS DRUMMOND

QUE JÁ CHEGA DE BESTEIRA JÁ BASTA DE DECOREBA QUE A CULTURA VERDADEIRA TÁ NA ASA DO JEREBA

PORQUE TEM URUBU-REI E TEM URUBU MINISTRO DOIS DE CABEÇA AMARELA E UM PRETO QUE REGISTRO

REGISTRO NESTE DEBUXO OS DOIS CONDORES TAMBÉM EMBORA URUBUS DE LUXO TÊM DIREITOS NO ALÉM

SOB A AXILA CRISTÃ NESTE SOVACO CRISTÃO VOU FAZER DE TELHA-VÃ A CASA DO CHAPADÃO

VOU DORMIR MEU SONO VELHO NESTE SOVACO DO CRISTO VOU COMPRAR MUITO SOSSEGO VOU REGAR O MEU HIBISCO

VOU VIVER NA MINHA CASA VOU VIVER COM A MINHA GENTE VOU VIVER VIDA COMPRIDA PRA NÃO MORRER DE REPENTE

VOU CONTEMPLAR GRANDES PEDRAS VAZIO DE COMPREENSÃO VOU ESQUECER O MEU NOME NO ALTO DO CHAPADÃO

VOU PLANTAR UM ROSEIRAL VOU CHEIRAR MANJERICÃO VOU SER DE NOVO MENINO VOU COMPRAR O MEU CAIXÃO

E VOU DORMIR DENTRO DELE BEM RELAX, TRANQÜILÃO

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DORMIR DE BANHO TOMADO JÁ PRONTO PRA EXTREMA-UNÇÃO

VOU FAZER A MINHA CASA NO ALTO DO CEMITÉRIO VOU VESTIR A BECA NEGRA E EXERCER O MAGISTÉRIO

VOU VESTIR A ROUPA LENTA QUE LEVA AO DESCONHECIDO E EIS QUE CHEGO AOS SESSENTA COMO UM HOMEM SEM PARTIDO

NESTA PASSAGEM DE VENTO NESTA ETERNA VIRAÇÃO VOU FAZER A MINHA CASA COM AS PEDRAS DO RIBEIRÃO

VOU FAZER A MINHA TOCA NO BICO D'URUBUTINGA NO PICO DA MARAMBAIA LÁ NA PONTA DA RESTINGA

SERÁ NO RASTRO DAS ANTA NA TRILHA DA SAPATEIRA QUE É PRAS ONÇA DO TELHADO CAIR DENTRO DA FOGUEIRA

QUE EU GOSTO DE ONÇA ASSADA MAS NA BRASA DA LAREIRA CONVERSANDO AO PÉ DO FOGO A CONVERSA ROTINEIRA

DAS QUEIXADAS, DOS MACUCOS CONVERSA PRA NOITE INTEIRA DA MEMÓRIA DAS CAÇADAS NA FLORESTA BRASILEIRA.

DESTE PLANALTO CENTRAL ESTE PROJETO CRISTÃO A NINGUÉM FALTARÁ TETO A NINGUÉM FALTARÁ PÃO

DESTA PRANCHETA IDEAL NA LUMINOSA MANHÃ DR. LUCIO FAZ O RISCO DO PROJETO TELHA-VÃ

NESTA OFICINA SERENA CARPINTARIA CRISTÃ

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DR. LUCIO MAIS OSCAR NO PROJETO TELHA-VÃ

NESTE CANTEIRO DE OBRAS ONDE MANDA MESTRE ADÃO OS MILHARES DE OPERÁRIOS COLOCAR AS TELHAS VÃO

NESTE DESVÃO PRINCIPAL NESTA BRANCA E AZUL MANHÃ VOU ERGUER A MINHA CASA DE VERMELHA TELHA-VÃ

VOU FAZER A MINHA CASA NO MEIO DA CONFUSÃO QUE O JEREBA SE ALEVANTA NO OLHO DO FURACÃO

VOU FAZER A MINHA CASA NA ASA D'URUBU PEBA QUE CASA SÓ É SEGURA FEITA EM ASA DE JEREBA

VAI SER NA VERTENTE SECA NA VIRADA DA CHAPADA ONDE O PEBA SE SUSPENDE NA FUMAÇA DA QUEIMADA

NÃO QUERO MAIS TER GALINHA VENDO TODA A CAPOEIRA VOU MANDAR CORTAR O MATO E VENDER TODA A MADEIRA

MAS QUEM PÔS FOGO NO MATO? É ESPONTÂNEA A COMBUSTÃO? ESSE FOGO VEM DE LONGE ESSE FOGO É DE BALÃO

INDA QUE MAL LHE PERGUNTE ESSE FÓSFORO AÍ GRANDÃO O COMPADRE ME DESCULPE É SÓ DE ACENDER BALÃO?

VOU BOTAR FOGO NO MATO COMANDAR REBELIÃO INCENDIAR A FLORESTA TACAR FOGO NO SERTÃO

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Anexo D – Artigo de Tom Jobim sobre a expansão do mercado fonográfico, Pi1093 p.52 a 55

1959 - 1960

O mercado de discos de 59 se mostrou bastante concorrido. Apesar da inflação, da carne e do feijão muita gente deu Cr$570,00 por um L.P. O rock e a música brasileira chamada de bossa-nova tiveram grande vendagem; o que vem provar que os teen agers têm alto poder aquisitivo. (Pedem dinheiro aos pais e compram discos modernos. Conclusão: “velho”, percentualmente, não compra disco. Resulta disto que a música chamada anticomercial está se tornando altamente comercial. Com a melhoria do padrão do disco brasileiro (música, letra, orquestração, técnica de gravação) muita gente que só comprava música americana passou a comprar também música brasileira. Em 1960 deverão as gravações melhorar mais ainda. Em 59, no terreno da música erudita, o Brasil perde Villa-Lobos. Os poucos que procuram seus discos não encontraram.

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