FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA – CPDOC PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS CURSO DE MESTRADO PROFISSIONALIZANTE EM BENS CULTURAIS E PROJETOS SOCIAIS
DE OLHO NA ETERNIDADE: a construção do arquivo privado de Antonio Carlos Jobim
Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil – CPDOC – para obtenção do grau de Mestre em Bens Culturais e Projetos Sociais
GLEISE ANDRADE CRUZ
Rio de Janeiro Julho de 2008
CRUZ, Gleise Andrade. De olho na eternidade: a construção do arquivo privado de Antonio Carlos Jobim. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2008. 133 p. : il
Dissertação (Mestrado Profissionalizante), Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 2008. Orientadora: Profª Drª Angela de Castro Gomes
1. Arquivos pessoais 2. Tom Jobim 3. Antonio Carlos Jobim – Biografia 4. Brasil – História. CDD 927 FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA – CPDOC CURSO DE MESTRADO PROFISSIONALIZANTE EM BENS CULTURAIS E PROJETOS SOCIAIS
DE OLHO NA ETERNIDADE: a construção do arquivo privado de Antonio Carlos Jobim
Trabalho de conclusão de curso apresentado por
GLEISE ANDRADE CRUZ
E APROVADO EM ______PELA BANCA EXAMINADORA
______Profª Drª ANGELA DE CASTRO GOMES (Orientadora)
______Profª Drª MARIETA FERREIRA
______Profª Drª REBECA GONTIJO
______Profª Drª LETÍCIA NEDEL (Suplente)
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Resumo: O arquivo de Antonio Carlos Jobim, assim como todo arquivo pessoal, foi colecionado e mantido para satisfazer o desejo de um homem que sempre se preocupou com sua imagem. Este trabalho demonstra a história da construção e organização desse acervo, além de fortalecer a hipótese de que o arquivo, em sua integridade, configura-se como uma escrita autobiográfica. Abordo a organização arquivística do fundo Antonio Carlos Jobim, dentro do Instituto que leva seu nome, e dou ênfase na subsérie Cadernos de anotações, da série Produção Intelectual do Titular. Esses cadernos são um tipo de documento singular, quer pelo uso que deles fazia o maestro, quer pela sua prática memorial. O estudo destas fontes primárias nos permite inferir a imagem construída pelo próprio titular, e também evidencia o plano dos guardiões dessa memória em perpetuá-la: Jobim decidiu manter um arquivo pessoal com o claro propósito de preservar sua obra e projetá-la para o futuro. Esse cuidado foi transmitido para seus herdeiros, que além das obras musicais, cuidam, hoje, de seu legado arquivístico dentro do Instituto Antonio Carlos Jobim.
Abstract: Antonio Carlos Jobim archive as well as his personal archive was collected and arranged to fulfill the desire of a man concerned with his image. This work reveals the history underneath the organization of his private documents. Also, it presents proofs of an autobiographical intent. I approach the construction of Jobim archives at Instituto Antonio Carlos Jobim and I emphasize the sub series Caderno de Anotações —Notebooks— in the serie Produção Intelectual do Titular; those notebooks can be considered unique documents and they are an important evidence of his daily use and memorial practice. The study of primary sources of this nature allows us to infer the image constructed by Jobim as well as the plans of the guardians of his legacy. The maintenance of his personal and musical archive highlights the composer's purpose of preserving his works to future generations. Jobim´s musical and personal archives are under his family responsibility at Instituto Antonio Carlos Jobim in Rio
de Janeiro.
3 AGRADECIMENTOS
À força que me move em direção ao aprimoramento: seja Deus, seja Ele em mim, seja apenas eu. Por ela, me dispus contra toda a adversidade por que passei no processo de confecção dessa dissertação. Mas, por conta disso também, acredito que estou melhor hoje do que antes, melhor preparada para o mercado de trabalho, mais determinada — e mais cansada!
À minha orientadora, Professora Doutora Angela de Castro Gomes, que num primeiro momento pensei austera e rígida, para logo depois descobrir uma pesquisadora tão preocupada quanto eu e extremamente inteligente e coerente. Confesso que, em muitos momentos de fraqueza, pensei nela como modelo e percebi minha admiração crescente.
Aos amigos da turma do Mestrado do Cpdoc de 2006. Sempre seremos a melhor turma do programa: muito unidos, embora muito ocupados, muito amigos, embora agora afastados. Vocês deram a ajuda e o apoio que meu trabalho precisava.
Ao meu filho, João Pedro Cruz Serpa, para quem tento ser exemplo, mãe, amiga e professora. Ele não entendeu ou mesmo percebeu minhas aflições, mas sempre chegava com uma palavra de carinho enquanto eu estudava e escrevia: “Ah, mãe, deixa eu jogar?”
Ao meu marido, Pedro da Costa Pereira, que nunca me deixou desanimar e nunca esmoreceu seu amor por mim, até quando nem eu mesma me aturava.
Aos queridos amigos do Instituto Antonio Carlos e da Jobim Music, sem os quais não teria chegado ao fim: Paulinho Jobim, Eliane Vasconcellos, Gabriel Caymmi, Clay Protasio, Clarice e Isabel Nicioli, Bernardo Krivochein, Patricia Helena Fuentes, Patricia Lima, Jacqueline Barbosa, Avelina Oliveira, Christina Costa, Dona Luiza e Suria Braga Alves.
Especialmente, aos entrevistados Vera de Alencar, Ana Jobim e Thereza Hermanny. Muito obrigada também a toda a família Jobim.
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Toda vez que uma árvore é cortada aqui na Terra, eu acredito que ela cresça outra vez em outro lugar — em algum outro mundo. Então, quando eu morrer, este é o lugar para onde quero ir: onde as florestas vivam em paz.
TOM JOBIM
(JOBIM, A CASA DE TOM, 2007)
“Não sou imortal, sou altamente mortal.” Tom Jobim (Acervo ACJ, E14)
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ÍNDICE
Introdução, p. 9
Capítulo 1: Tom Jobim, compositor de si mesmo, p. 18
1.1 Biografias e autobiografias: um preâmbulo, p. 19
1.2 Um Brasil Bossa Nova, p. 22
1.3 Conceituação de Cultura popular, p. 25
1.3.1 O popular massificado, p. 27
1.4 Uma História Biográfica de Tom Jobim, p. 30
1.4.1 Os primeiros anos de uma vida, p. 30
1.4.2 Ainda os primeiros: casamento, emprego..., p. 31
1.4.3 Compositor de si mesmo, p. 33
1.4.4 Alguns encontros importantes, p. 38
1.5 A criação da Bossa Nova, p. 45
1.5.1 Tom e a Bossa Nova, p. 49
1.6 Últimos tempos, p. 51
Capítulo 2: O arquivo Tom Jobim, sua maior composição, p. 54
2.1 Os guardiões da memória, p. 54
2.2 A criação de uma instituição: o Instituto Antonio Carlos Jobim, p. 58
2.3 Considerações sobre Arquivos e Arquivos pessoais, p. 61
2.3.1 Acumulação e Avaliação, p. 67
6 2.3.2 Classificação e Descrição, p. 69 2.4 O acervo de Tom Jobim, p. 70 2.4.1 Higienização, p. 72 2.4.2 Digitalização, p. 73 2.4.3 Divulgação e acesso, p. 74 2.4.4 Descrição e indexação, p. 76 2.5 Entendendo o arquivo, p. 81
Capítulo 3: Cadernos para lembrar Tom – lembranças dele, com ele e para ele, p. 87
3.1 Conhecendo os cadernos, p. 91
3.2 Observando com mais atenção, p. 99
3.3 Refúgios do eu, p. 103
3.4 As casas de Tom, p. 108
Conclusão, p. 115
Anexo A – Plano de arranjo do arquivo, p. 117
Anexo B – Planilha dos Documentos Textuais do Instituto Antonio Carlos Jobim, p. 118
Anexo C – Poema “Chapadão”, p. 119
Anexo D – Artigo de Tom Jobim sobre a expansão do mercado fonográfico, Pi1093, p. 124
Bibliografia, p. 125
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LISTA DE ILUSTRAÇÕES E TABELAS
Figura1 – Primeira correspondência de Frank Sinatra a Tom Jobim, Cp489 Figura 2 – Primeiro esboço para “Garota de Ipanema”. Pi 1216 p. 54 Figura 3 – Foto da bagunça sobre o piano de Tom Jobim, p64f05 Figura 4 – Percentual das tipologias encontradas nos 32 cadernos Figura 5 – Vários tipos documentais numa mesma página. Caderno 4, Pi 1423 p. 3 Figura 6 – Lista de temas para o filme Crônica da casa assassinada. Caderno 25, Pi 1180 p. 4 Figura 7 – Lista de lembretes para o próprio titular. Pi1160 p.29 Figura 8 – Lista de consertos necessários no carro. Caderno 25, Pi 1180 p. 14 Figura 9 – Lista de acessórios para levar em caçada. Caderno 28, Pi 1158 p. 12 Figura 10 – Esboço para a construção da casa na rua Sara Vilela. Pi 1095 p. 20 Figura 11 – Esboço para a construção da casa na rua Sara Vilela. Pi 1247 p. 49
Tabela 1: Descrição dos 32 cadernos
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INTRODUÇÃO
Durante a faculdade de Arquivologia, tive oportunidade de conhecer as idades dos arquivos e me aproximar do estudo e prática em arquivos permanentes1. Além da predisposição pessoal para lidar com esse tipo de acervo, os programas de estágios (extremamente necessários, em todos os sentidos) me foram conduzindo para esse campo. Após trabalhar em várias instituições de guarda de acervos, como Fundação Casa de Rui Barbosa, Biblioteca Nacional e Academia Brasileira de Letras, iniciei o trabalho de organização do acervo pessoal de Tom Jobim, junto à equipe do Instituto Antonio Carlos Jobim, em 2002. Tive outras experiências em arquivos; como Carlos Drummond de Andrade, Pedro Nava, Vinicius de Moraes, Helio Pelegrino, Antonio Salles ou Miguel Paiva. Contudo, nenhuma foi tão agradável no conjunto, com a do arquivo de Tom Jobim. Até porque, a produção artística de Tom arrebatou a admiração de uma multidão de fãs em todo o mundo, colaborando para colocar a música brasileira no hall of fame dos Estados Unidos e, de lá, para ser reconhecida em outros circuitos internacionais. A trajetória de Tom sempre vai passar pela sua grandiosidade como letrista e sua genialidade como compositor. Mas seu arquivo pessoal chama a atenção justamente por permitir acesso ao lado mais íntimo do maestro. Seus documentos revelam o perfil de um homem simples, que conversava com os passarinhos e “visitava” árvores do Jardim Botânico do Rio de Janeiro; que andava de chinelos na rua; que foi pai-avô completamente apaixonado pela família, e que defendia ferrenhamente os amigos, mesmo em público. A possibilidade de conhecer essa outra face do maestro, que sem se despir de sua importância pública, cultivou as identidades de marido, pai e amigo com bastante carinho, é muito proveitosa. Eis, portanto, porque desenvolvi esse encantamento com o músico (sua face pública), depois que me apaixonei por seu acervo (sua face privada). Na verdade, não conhecia muito mais sobre Tom antes disso. Um percurso que deve ser a contramão do que acontece com a maioria dos fãs.
1 Concordo apenas parcialmente com o cânone arquivístico de separar os acervos em correntes, intermediários e permanentes — penso que a freqüência de uso é apenas um dos componentes para a classificação de arquivos. Discordo mais vigorosamente de que não se justificariam ferramentas de avaliação num arquivo permanente. Entretanto, não cabe aqui essa discussão, pretendia apenas mencionar minha posição. 9
O trabalho técnico em um arquivo privado é normalmente mais complexo do que parece aos leitores desavisados ou aos administradores que o julgam como um conjunto de gavetas. Muitas vezes o titular do arquivo registra um fato, outras não; muitas vezes, o registro pode ter sido perdido e outras, simplesmente apagado, pois quando existe o documento, existem, também, lacunas e incertezas. Um arquivo privado é, na verdade, ele mesmo, um documento biográfico. Nele está reunido um conjunto de registros sobre a própria vida: cartas, agendas, cadernos de anotações, depoimentos ou diários. Mas, mesmo em arquivos pessoais, nem sempre é comum a existência de documentos autobiográficos, isto é, vestígios da vida de uma pessoa, que ela mesma tenha produzido: uma escrita autobiográfica. Tom Jobim nunca se preocupou em escrever sua autobiografia2, e também não chegou a ver as publicações que Helena Jobim e Sérgio Cabral fizeram sobre ele. Mesmo sendo bastante interessado em guardar relatos e fotos de sua família e de ter, inclusive, pesquisado a origem do nome da família Jobim, Tom não conseguiu, pelo menos sozinho, reunir essas informações3. Pedro Nava, por exemplo, teve sua vida literária alicerçada em sua memória (sete livros ao todo, o último interrompido por seu suicídio). Ele guardava todo tipo de papel (rótulos, mapas, fotos) e anotava em pequenas tiras, tudo o que se lembrava e que poderia servir de “ganchos” nos seus capítulos, montando uma espécie de quebra-cabeças literário ou um hypomnemata4 picotado. Tom não foi um literato, mas um músico, e, como ele mesmo disse, em várias oportunidades, era a música que o movia para a vida. Ele cuidou de guardar em seu arquivo, registros de sua vida profissional/musical, sem perder os vínculos que o mantinham, assim como qualquer ser humano, com suas raízes em vários outros campos: familiar, pessoal, carreira pública. Tom foi, portanto, um mediador entre mundos.
Esses mediadores […] desenvolvem a capacidade de lidar com dois ou mais códigos. Seu sucesso profissional e pessoal depende de seu desempenho
2 Vale lembrar que Ana Jobim, no filme A casa de Tom; mundo, monde, mondo, considera o poema “Chapadão” como uma autobiografia, pois Tom lança, em versos, cenas de sua vida cotidiana. Esse poema está transcrito no Anexo C desse trabalho. 3 Tom teve ajuda de suas esposas Thereza Hermanny (1949-1977) e Ana Lontra Jobim (1978-1994) para reunir seu arquivo. Além delas, colaboraram Vera Alencar, museóloga contratada para organizar seu arquivo e Helena Jobim, irmã de Tom, que herdou os documentos da mãe. 4 Caderno de anotações pesquisado e definido por Foucault como guia de bolso a ser portado por uma pessoa para que pudesse anotar tudo o que de importante se passava durante o dia, contribuindo para um engrandecimento pessoal. O capítulo 3 oferecerá maiores detalhes sobre esse tipo de caderno. 10
como intermediários. Em uma sociedade complexa e heterogênea, papéis como esses, nem sempre explícitos e conscientes, fazem parte da própria lógica do processo interativo. (VELHO, 2003, p. 82)
Eis, portanto, a justificativa de Tom como mediador: ele teve o privilégio de circular pelos campos da harmonia clássica e popular, transcrevendo seu potencial criador em notas musicais, legíveis para outros; pelo campo lírico também, onde passeia todo escritor/compositor, entre o mundo da poesia e o da inspiração; e o mundo dos homens, pois escreveu em (duas) línguas os sentimentos que tinha, via e imaginava. Ele usava seu potencial de metamorfose, mediador que era, como nos termos de Gilberto Velho:
O potencial de metamorfose permite, em geral, aos indivíduos transitarem entre diferentes domínios e situações, sem maiores danos ou custos psicológico-sociais, ao contrário do que se poderia esperar, a partir de uma visão mais estática da identidade. (VELHO, 2003, p. 82)
Assim, através do acervo acumulado pelo titular do arquivo, pode-se descobrir a versão dos acontecimentos que ele sustenta: sua visão do mundo, seus anseios em se fazer perpetuar como parte de uma sociedade que lhe permite assumir várias faces identitárias. A identidade preenche o espaço entre o "interior" e o "exterior" — entre o mundo pessoal e o mundo público. O fato de que projetamos a "nós próprios" nessas identidades culturais, ao mesmo tempo em que internalizamos seus significados e valores, tornando-os "parte de nós" contribui para alinhar nossos sentimentos subjetivos com os lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural. A identidade, então, costura o sujeito à estrutura. Estabiliza tanto os sujeitos quanto os mundos culturais que eles habitam, tornando ambos reciprocamente mais unificados e predizíveis. (HALL, 2005, p.7) A identidade está estritamente ligada à memória consciente que se pretende sustentar. Memória é a capacidade de elaborar informações, fatos e experiências do passado e reconstruí-los no presente, retransmitindo-os a outros ou não. Há a possibilidade de rememorar fatos que dizem respeito apenas a um indivíduo (memória individual), a um grupo, como uma comunidade ou organização (memória coletiva) ou mesmo ao Estado e todas as instituições da esfera pública (memória nacional) (HALBWACHS, 1990, p. 35). Talvez não seja possível, nem desejável, hierarquizar 11
esses conceitos, mas é possível observar como eles se interpõem e se completam. Embora existam vários estímulos para a memória em uma pessoa, ela sempre precisará se coligar a outros estímulos, coletivos, para efetivamente se lembrar do fato. Ou seja, a memória é sempre individual e coletiva, a um só tempo. É necessário entender o limite que a memória individual pode trazer; uma memória que possa nos tornar únicos. Sempre que selecionamos o que lembrar e, por extensão, o que esquecer, fazemos escolhas que nos diferenciam dos outros, inclusive dos que viveram os mesmos fatos conosco (HALBWACHS, 1990, p. 37). Essas escolhas compõem nosso discurso, que exibe o que pensamos, o que queremos enfatizar ou o que queremos esconder (CHAGAS, 2002, p.35). A construção da identidade de um povo, grupo ou indivíduo passa necessariamente pelo que ele selecionou de seu passado e como ele quer se mostrar no presente. Segundo Jacques Le Goff, “a memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje” (LE GOFF apud MAGALHÃES, 2006, p.4). E a memória é base essencial da escrita, que remonta lugares, combina textos e ordena as idéias no papel. Nessa hora, quanto maior a bagagem, maior o embaralho na produção do texto e, ao contrário, se há falta de memória, o texto ganha lacunas. (GONTIJO, 2004, p.187) Desde o século XVIII5, os homens comuns ganharam espaço na vida pública e foram “descobertos” pelos pesquisadores abrindo caminhos para novas coleções em museus, novos cursos nas faculdades, estudos e práticas mercadológicas na sociedade em geral. Eis, então, o início da luz sobre os registros do cotidiano. Embora não seja imparcial, como nenhuma fonte é, os documentos pessoais se destacam por uma certa informalidade com o que se registra, pela intimidade dos conteúdos dos registros e pelo caráter, muitas vezes, inusitado do que se registra. Por esse motivo, histórias como a do marinheiro bordador, João Cândido, durante a Revolta da Chibata6, e de Anne Frank no Holocausto, não passaram despercebidas. O que passa a importar é a versão do fato, como o autor percebeu o que aconteceu.
5 Segundo Angela de Castro Gomes, datação difícil, mas segura. 6 Contada por José Murilo de Carvalho: o comandante João Cândido bordou, em toalhas de mão, seu sofrimento pelos maus-tratos e pela partida de amigos — ato pouco pensado para homens, e ainda mais nessas circunstâncias! (CARVALHO, 2006, p.26) 12
Embora seja uma tarefa proveitosa, pesquisar e falar de arquivos de famosos, de mitos7 como Tom Jobim, é preciso sempre ter em mente dois fatores: o primeiro diz respeito à privacidade do titular e familiares e o segundo à veracidade dos fatos. A pesquisadora Eliane Vasconcellos nos lembra da disposição que tem o autor de um documento de caráter pessoal de se mostrar despido frente ao destinatário. As cartas, e por extensão, os documentos de arquivos pessoais servem ao propósito de fazer-se presentes quando não é possível a presença e de contar confidências, lembranças e detalhes em quem se confia, um amigo próximo.
A correspondência permaneceu durante muito tempo sepultada nos arquivos públicos ou privados, só recentemente passou a ter valor como documento de maior importância. Os pesquisadores têm-se conscientizado de que podem encontrar nela dados relevantes: a missiva funciona como testemunho vivo de uma época, pode documentar uma história pessoal, registrar situações, ações e reflexões. [...] Por se tratar de um discurso informal, na carta se expõem idéias e sentimentos que são reduzidos e interpretados por um terceiro — o leitor. Por este motivo, nós, que trabalhamos com correspondências encontradas em arquivos privados, devemos ter em mente alguns problemas de ordem ética e jurídica, que de certa forma encontram suas raízes nas observações feitas por Bandeira ao publicar as cartas de Mário. (VASCONCELLOS, 1998, p.8)
Carlos Drummond de Andrade também se mostrou preocupado com a guarda e o uso dos seus arquivos (e de seus amigos próximos). Em vários momentos de seus textos lembra do cuidado necessário com as “coisas domésticas”, como mencionado na crônica "O quarto violado do poeta", publicada no Jornal do Brasil, de 2 fevereiro de 1978, onde se compadece de Manuel Bandeira que recebeu uma “homenagem”, sob forma de documentário, onde seu quarto de hotel foi filmado, sem autorização. Mas, em nenhum outro texto Drummond se empolga tanto como no “Museu- fantasia”, em que sugere a criação de um lugar que possa abrigar, organizar, tratar e divulgar corretamente os arquivos dos escritores brasileiros como ele. Outro ponto importante é o cuidado em não podermos admitir como verdadeiro tudo o que está escrito em um documento privado. Nem mesmo
7 Segundo Edgard Morin, são astros de cinema, ídolos da música, ícones da realeza convertidos pela cultura de massa em “olimpianos” da atualidade, com cada momento das suas vidas rasgados nos cotidianos da imprensa. 13
documentos oficiais, criados por governos, com formato e suporte padronizados, nos eximem de tais considerações. Entretanto, é sempre interessante observar a seleção realizada e a versão que o arquivo produz da vida de seu titular. O titular de um arquivo não precisa pensar da mesma maneira durante sua vida; ou mesmo se manter “coerente” na guarda de seus documentos ou ainda conseguir distinguir entre o que é real e o que é ficção em sua memória. Tom Jobim manteve fotos suas durante uma de suas caçadas a aves na mata (cerca de 1950), junto a artigos sobre ecologia e apreciação de pássaros (desde 1986). O titular se constrói e a seu texto/ seu arquivo, como parte de um discurso que se quer perpetuar, enquanto esse mesmo discurso o empurra para a confirmação do personagem construído. Essas forças não se combatem, mas buscam certo equilíbrio na “produção de si”, que se configura como lugar de experimentação e ajuste. (GOMES, 2004, p.17) Durante sua vida, Tom fez várias escolhas e não as lamentou, embora tivesse lamentado suas conseqüências. Constantemente, por exemplo, reclamava da imprensa, na própria imprensa:
[…] a imprensa do Rio, que sempre fala mal dos artistas — fala mal do Chico, fala mal do Caetano — vem e malha. O Brasil é de cabeça para baixo, persegue a quem trabalha. Se você trabalhar, aparece fiscal, vem a polícia. Os bandidos, não […] as moças bonitas se apaixonam por eles. Parece coisa de Mário de Andrade, Macunaíma… Sempre que o Brasil vai mal, eles dizem que eu estou me mudando para os Estados Unidos. Quando o país melhora, dizem que eu estou voltando. Mas não é nada disso. […] Sempre essa besteirada. Dizem que eu saí daqui para fugir do Imposto de Renda, como se lá não fosse pior. […] Aqui é que tem esse negócio, negócio de procedência maligna. Depois que eu fiz meia dúzia de modinhas, ficaram falando mal de mim, porque eles não têm mais o que falar. (in LOYOLA, 1988, p. 39)
Pensava que seu trabalho nem sempre era reconhecido como o era em outros países por onde passou. A campanha de 1988 que fez para a The Coca-Cola Company, por exemplo, repercutiu efeitos indesejados aqui no Brasil:
São multinacionais que estão aqui. E se você vai negar espaço para elas, dará o direito de, lá fora, negarem para a Varig, Vale do Rio Doce […] A Coca- Cola dá emprego a milhares de brasileiros — o xarope é brasileiro, a água é brasileira. Então, na hora em que aparece o anúncio, essas pessoas que tomam 14
Coca-Cola querem destruir o anúncio. Acusam-me de ter vendido um patrimônio nacional, “Águas de março”. Você não pode vender música. Na época de Noel Rosa, vendia-se música, mas escondido, por baixo do pano, e quem pagava aparecia como autor, como dono da música. Quando um compositor vendia uma música, todo mundo ficava do seu lado. Sinal de que ele não estava conseguindo viver de direito autoral. (LOYOLA, 1988, p. 39)
Os homens, seres plurais por natureza, passam por momentos que determinam seu caráter, sua personalidade e constroem seu futuro. Nenhuma pessoa que vive em sociedade, que também é um organismo plural e dinâmico, consegue volver sua atenção a um assunto apenas. Regina Marques, ao catalogar os livros da biblioteca de Oscar Niemeyer, constatou que 59% são sobre Artes, 19% sobre Ciências Humanas, 2% sobre Ciência e Tecnologia e apenas 12% tratam de sua área mais estreita, Arquitetura e Urbanismo. O mesmo se pode aplicar ao arquivo de Tom Jobim, pois nos seus documentos há vários macro-assuntos como política, história, teatro, ecologia e natureza, literatura além, claro, de música. Isto pode evidenciar seu interesse não só em aperfeiçoar sua arte, mas em manter-se informado com o que ocorria no mundo ao seu redor. O catalogador trabalha procurando determinar os principais assuntos, ressaltar o diferencial e perceber os detalhes que estão no documento. Freqüentemente, há documentos de difícil leitura, uma vez que a maioria é manuscrita e quem escreve para si, costuma entender a própria letra — o que muitas vezes não acontece quando da intervenção técnica. Outros documentos apresentam contextos culturais, socioeconômicos e políticos de difícil investigação e fazem referências a pessoas e obras pouco conhecidas. Em quaisquer desses casos, sempre se faz necessária extensa pesquisa e em fontes diversas. O trabalho do catalogador caracteriza-se, assim, como o de um pesquisador especialista. O capítulo a seguir deverá descrever o arquivo como um todo, desde a acumulação feita por Tom Jobim, passando pela ordem e colaboração de sua primeira esposa até a completa estrutura e organização dentro do Instituto Antonio Carlos Jobim, feita por seus filhos e viúva. Logo depois, devemos nos debruçar sobre a Bossa Nova, época mais frutífera da carreira de Tom, dando voz ao próprio titular, através dos vários fragmentos “autobiográficos” encontrados em seu acervo. O último capítulo deverá apresentar os 32 cadernos de anotações de que Tom escreveu durante
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sua vida adulta, ressaltando os documentos que melhor traduziram seu cotidiano em casa.
DIFICULDADES ENCONTRADAS
A seguir, descrevemos algumas dificuldades encontradas durante a pesquisa e o trabalho, ou melhor dizendo, no trabalho de pesquisa do acervo de Tom Jobim. Identificar as assinaturas das correspondências. Houve casos de letra ilegível, nomes em outras línguas e apelidos. Na Correspondência Pessoal, por exemplo, o autor de uma carta se assina como Cabinha; somente após a pesquisa descobriu-se que se tratava de Isnaldo Khrockatt de Sá, grande amigo de Tom; o mesmo aconteceu com Bituca, que é Milton Nascimento, entre outros tantos exemplos. Além, claro, dos apelidos familiares presentes na Correspondência Familiar. Identificar os pseudônimos que Antonio Carlos Jobim utilizava. Por exemplo: Tom Joba, Tony Brazil, Tão, Antonio Carlos Brasil etc. Determinar datas e períodos nos Cadernos, já que muitos documentos raramente apresentavam data precisa. Entretanto, a pesquisa possibilitou determinar uma data aproximada – seja pela composição da música, seja pelos temas descritos. Reconhecer as diferentes caligrafias presentes nos Cadernos. Através de entrevista com Thereza Hermanny8, descobriu-se que estes costumavam ficar sobre o piano ou sobre alguma mesa de fácil acesso, na sala de estar. A cada sarau com os amigos ou mesmo trabalhando só, Antonio Carlos Jobim pedia ajuda a quem estivesse por perto para anotar o que ele dizia, pois não queria perder o momento da inspiração. Como ninguém assinava o documento, o reconhecimento da caligrafia tornou-se uma tarefa intrincada e minuciosa. Para conseguir identificar algumas, recorreu-se à Série Correspondência e a familiares de Tom Jobim.
8 D. Thereza foi a primeira esposa de Tom Jobim e presenciou muitos momentos registrados nos primeiros caderninhos de anotações. 16