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PENSAMENTO DOS POVOS AFRICANOS E AFRODESCENDENTES PENSAMENTO GABINETE DO SENADOR ABDIAS NASCIMENTO NASCIMENTO ABDIAS SENADOR DO GABINETE

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Senador ABDIAS NASCIMENTO 1998 AFRO ESTANDARTE Acrílico s/ tela - 80 x 150 cm, de Abdias Nascimento, , 1993 Acrílico s/ tela - 80 x 150 cm, de Deusa Ma'at PENSAMENTO DOS POVOS AFRICANOS E AFRODESCENDENTES

Gabinete do Senador Abdias Nascimento

oth

no 6 setembro/dezembro 1998

Secretaria Especial de Editoração e Publicações

Thoth, Brasília, no 6, p. 1 – 136, set/dez 1998

Thoth

Informe de distribuição restrita do Senador Abdias Nascimento 6/1998 Thoth é prioritariamente um veículo de divulgação das atividades parlamentares do Senador Abdias Nascimento. Coerente com a proposta parlamentar do senador, a revista não poderia deixar de divulgar informações e debates sobre temas de interesse à população afro-descendente, ressaltando-se que os temas emergentes dessa população interessam ao País como um todo, constituindo uma questão nacional de alta relevância. Thoth quer o debate, a convergência de ideias, permitindo a expressão das diversas correntes de pensamento. Os textos assinados não representam necessariamente a opinião editorial da revista.

Responsável: Abdias Nascimento

Editores: Elisa Larkin Nascimento Carlos Alberto Medeiros Theresa Martha de Sá Teixeira

Redatores: Celso Luiz Ramos de Medeiros Éle Semog Paulo Roberto dos Santos Oswaldo Barbosa Silva Computação: Honorato da Silva Soares Neto Sandra Moura Lago Teresa Emília Wall de Carvalho Viana Revisão: Gilson Cintra Carlos Alberto Medeiros Impresso na Secretaria Especial de Editoração e Publicações Diretor Executivo: Claudionor Moura Nunes Capa: Theresa Martha de Sá Teixeira sobre desenho do deus Thoth do livro de Champollion – Le Panthéon Égyptien Contracapa: deusa Ma’at do livro de E.A Wallis Budge – The Gods of the .

Endereço para correspondência: Revista Thoth Gabinete do Senador Abdias Nascimento Senado Federal – Anexo II – Gabinete 11 Brasília – DF – Brasil CEP 70165-900

Thoth/ informe de distribuição restrita do senador Abdias Nascimento / Abdias Nascimento nº 6 (1998) – Brasília: Gabinete do Senador Abdias Nascimento, 1998 Quadrimestral (setembro – outubro – novembro – dezembro) V.; 25 cm

ISSN: 1415-0182

1. Negros, Brasil. I. Nascimento, Abdias. CDD 301.45196081 SUMÁRIO

Apresentação ...... 11 Thoth ...... 13

ATUAÇÃO PARLAMENTAR

Projetos de Lei

Crime do racismo ...... 21 Sanções contra o racismo ...... 25 Ação compensatória ...... 31 Ação civil pela dignidade dos grupos raciais, étnicos e religiosos ...... 41 Emenda ao Projeto de Lei da Câmara no 25, de 1997, que trata do ensino religioso nas escolas públicas de ensino fundamental ...... 51 Projeto de Resolução no 126, de 1997 – Institui o Prêmio Cruz e Sousa ...... 55 Projeto de Lei no 234 de 1997 – Inscrição dos líderes da Conjuração Baiana de 1798 no Livro dos Heróis da Pátria ...... 69 Proposta de Emenda à Constituição no 38, de 1997 – Garantia às comunidades rema- nescentes dos quilombos dos direitos assegurados às populações indígenas ...... 73

Pronunciamentos

Discurso em Homenagem a Zumbi dos Palmares ...... 77 SANKOFA: MEMÓRIA E RESGATE

Dia Nacional da Consciência Negra, aniversário de Zumbi (Câmara dos Deputados) ..... 89 A luta afro-brasileira no Senado ...... 115

O gabinete do Senador

Da esquerda para a direita: Elisa Larkin Nascimento, co-editora de oth; Oswaldo Barbosa Silva, assessor téc- nico; Éle Semog, secretário parlamentar, eresa Martha de Sá Teixeira, chefe de gabinete; senador Abdias Nas- cimento; Celso Luiz Ramos de Medeiros, assessor técnico; Paulo Roberto dos Santos, secretário parlamentar; Carlos Alberto Medeiros, assessor técnico. Esses foram os competentes e dedicados colaboradores do senador Abdias Nascimento durante o exercício do seu mandato. Eles também tornaram possível produzir esta revista. Esta foto é um registro e uma homenagem que a eles presta A. N.

APRESENTAÇÃO

Na apresentação do primeiro número de Thoth, correspondente aos meses de janei- ro a abril de 1997, situei esta revista no quadro de referência de uma imprensa negra ao mesmo tempo “frágil e valente”, cuja história “se resume a uma peripécia de acidentes e pobreza de recursos”, mas que, não obstante, “merece todo o nosso respeito e gratidão” por ter desempenhado “um papel histórico fundamental em nossa luta coletiva por liber- dade, respeito e cidadania”. Coerente com essa história e com esses princípios, Thoth chega agora ao seu sexto e último número, encerrando-se juntamente com meu mandato de Senador da República. Não é este, contudo, um momento de lamentação ou melancolia. Pelo contrário. Pelas páginas desta revista, os leitores puderam acompanhar minha trajetória nesta Casa Legislativa, que procurei transformar em mais uma trincheira de nossa luta. Nos sete pro- jetos de lei que apresentei, bem como nos quase sessenta discursos que proferi, procurei refletir os anseios e aspirações dos afro-brasileiros, tal como expressos na plataforma do movimento negro. Aperfeiçoar a legislação antidiscriminatória, ampliar os recursos jurídicos das vítimas de ofensas raciais, enriquecer os currículos escolares com a história dos africanos na África e na diáspora, estabelecer medidas compensatórias capazes de garantir a igualdade de oportunidades – esses foram os temas em que busquei concentrar minha atuação, na certeza de constituírem a espinha dorsal na solução da questão racial em nosso País. THOTH 6/ dezembro de 1998 12 Apresentação

Mas Thoth não foi apenas um registro de minha atuação parlamentar. Em suas pági- nas, procuramos, minha equipe e eu, oferecer um amplo panorama da luta negra no Brasil e na diáspora, abrindo espaço a uma gama de assuntos que abrangem desde a história das civilizações africanas até as manifestações mais atuais da rebeldia negra. Pudemos, assim, publicar uma variedade de textos de autores negros do passado, tanto quanto ma- térias mais frescas, produto de nossos jovens militantes na arena intelectual. Creio termos conseguido, desse modo, dar ao menos uma ideia da riqueza de um pensamento africano que não tem se dobrado às imposições de seus poderosos adversários, nem tampouco se deixado seduzir pelo canto da sereia de ideologias melífluas como a “democracia racial”. Sei que tudo isso pode parecer um testamento, sobretudo por provir de um ativista – um agitador, como gosto de me definir – com tanto tempo de existência e de dedicação à causa. Essa não é, porém, minha intenção. Depois de todas essas décadas, já não sei viver sem lutar. É o que continuarei fazendo, por meio de meus textos, de minha pintura, de palestras e conferências em foros nacionais e internacionais, na pregação do evangelho da libertação de nosso povo. É essa a missão que recebi dos orixás, e que pretendo continuar cumprindo enquanto eles me derem força e lucidez. Axé! Brasília, dezembro de 1998 AN Após o tricentenário de Zumbi dos Palmares, em 1995, marcado pela Marcha contra o Racismo, pela Ci- dadania e a Vida e por inúmeros acontecimentos de âm- bito nacional e internacional em todo o País, verificamos que a questão racial no Brasil atinge um novo estágio. Setores da sociedade convencional reconhecem o caráter Thoth discriminatório desta sociedade, e o debate passa a foca- lizar as formas de ação para combater o racismo, ultra- passando o patamar que marcou a elaboração da Cons- tituição de 1988: a declaração de intenção do legislador dá lugar à discussão de medidas concretas no sentido de fazer valer tal intenção. Nesse contexto é que o Senador Abdias Nasci- mento assume, em março de 1997, sua cadeira no Sena- do Federal, na qualidade de suplente do saudoso , intelectual sem par que sempre se manteve soli- dário com a luta antirracista. O mandato do Senador Ab- dias, como sua vida ao longo de uma trajetória ampla de luta e de realizações, dedica-se prioritariamente à ques- tão racial, com base numa verdade que o movimento negro vem afirmando há anos: a questão racial constitui- -se numa questão nacional de urgente prioridade para a construção da justiça social no Brasil, portanto merece- dora da atenção redobrada do Congresso Nacional. 14 THOTH 6/ dezembro de 1998

Além de representar o veículo de comunicação do mandato do Senador Abdias Nascimento com sua comunidade e seu País, a revista Thoth surge como fórum do pensamento afro-brasileiro, na sua íntima e inexorável relação com aquele que se desenvolve no restante do mundo. Seu conteúdo pretende refletir as novas dimensões que a discussão e elaboração da ques- tão racial vêm ganhando nesta nova etapa, inclusive o aprofundamento da reflexão sobre as dimensões histó- ricas e epistemológicas da nossa herança africana, para além dos tradicionais parâmetros de samba, futebol e culinária que caracterizam a fórmula simplista e pre- conceituosa elaborada pelos arautos da chamada demo- cracia racial. Nesse sentido, cabe um esclarecimento do signi- ficado do título da revista, que remete às origens dessa herança civilizatória no antigo Egito, matriz primordial da própria civilização ocidental da qual o Brasil sempre se declara filho e herdeiro. Os avanços egípcios e as conquistas africanas no campo do conhecimento huma- no formam as bases da cultura greco-romana. Entretan- to, as suas origens no Egito ficaram escamoteadas em função da própria distorção racista que nega aos povos africanos a capacidade de realização humana no campo do conhecimento. Nada mais apropriado para expressar a meta de contribuir para a recuperação dessa herança africana que a referência, no nome da revista, ao deus Tho- th. Na tradição africana, o nome constitui mais que a simples denominação: carrega dentro dele o poder de implementar as ideias que simboliza. Thoth está entre os primeiros deuses a surgir no contexto do desenvol- vimento da filosofia religiosa egípcia: autoprocriado e autoproduzido, ele é uno. Autor dos cálculos que re- gem as relações entre o céu, as estrelas e a terra, Thoth incorpora o conhecimento que faz mover o universo. O inventor e deus de todas as artes e ciências, senhor dos livros e escriba dos deuses, Thoth registra o co- nhecimento divino para benefício do ser humano. So- bretudo, é poderoso na sua fala; tem o conhecimento da Thoth 15

linguagem divina. As palavras de Thoth têm o dom da vida eterna; foi ele que ensinou a Ísis as palavras divinas capazes de fazer reviver Osíris, após sua morte. Assim, esperamos que a revista Thoth ajude a fazer reviver para os afrodescendentes a grandeza da herança civilizatória de seus antepassados, vilipendiada, distorcida e reduzida ao ridículo ao longo de dois mil anos de esmagamento discriminatório. Tendo uma cabeça do íbis, pássaro que repre- senta na grafia egípcia a figura do coração, Thoth era cantado como coração de Ra, deus do sol (vida, força e saúde). Na mitologia egípcia, o coração era o peso a ser medido na contrabalança da vida do homem, no momento de sua morte, medindo sua correspondência em vida aos princípios morais e éticos de Ma’at, filoso- fia prática de vida da civilização egípcia. Thoth assim constitui-se no mestre da lei, tanto nos seus aspectos físicos como morais. A deusa Ma’at encarna essa filosofia de vida mo- ral e ética, o caminho do direito e da verdade. Consti- tuindo uma espécie de contraparte feminina de Thoth, ela representa uma característica relevante da civiliza- ção egípcia: a partilha do poder, tanto no plano espiritual como material, entre a autoridade masculina e a femini- na. Os faraós tinham o seu poder temporal complemen- tado por um poder feminino exercido por soberanas e sacerdotisas, assim seguindo o primordial e simbólico exemplo de Osíris e Ísis. Sem ser compartilhado entre feminino e masculino, entre homem e mulher, o poder careceria de fecundidade, seria estéril. Ma’at e Thoth acompanhavam o deus-sol Ra, na sua embarcação, quando ele surgiu pela primeira vez sobre as águas do abismo primordial de Nu. Era Ma’at quem regulava o ritmo do movimento da embarcação de Ra, ou seja, o seu ciclo de nascer e se pôr sobre o hori- zonte, bem como sua trajetória diária do leste ao ociden- te. Ela corporificava a justiça, premiando cada homem com sua justa recompensa, e encarnava o mais alto con- ceito da lei e da verdade dos egípcios. 16 THOTH 6/ dezembro de 1998

Como deus da sabedoria e inventor dos ritmos cósmicos, Thoth dominava também a magia. Patrono do aprendizado e das artes, a ele se creditavam muitas invenções, inclusive a própria escrita, a geometria e a astronomia, áreas do conhecimento que fundamen- taram o florescimento da milenar civilização egípcia. Entretanto, sem ser socializado, o conhecimento não produz resultados concretos, pois ninguém sozinho consegue colocá-lo em prática. Faz-se necessário um agente de comunicação, e Thoth se responsabiliza tam- bém por exercer esse papel. Passando sua sabedoria para os seres humanos, como o passou para outros se- res divinos, a exemplo de Ísis, Thoth amplia seu papel no mundo espiritual e material, tornando-se ainda o elo de transmissão do conhecimento e do segredo divino entre um domínio e o outro. A invenção da escrita se revela, então, como decorrência do papel de Thoth, originador do conhecimento em si: formular uma nova forma de transmissão desse conhecimento. Os gregos denominavam Thoth de Hermes Tris- megistus (Thoth, Três Vezes Grande), nome também dado aos livros que registravam a sabedoria metafísica herdada do antigo Egito, centrada na ideia da comuni- dade entre todos os seres e objetos, e cuja autoria era atribuída a Thoth¹. Assim, Thoth se identificava com Hermes, mensageiro dos deuses gregos e aquele que conduzia as almas a Hades. Hermes, para os gregos, era o deus das estradas e dos viajantes, da sorte, do comércio, da música e dos ladrões e trapaceiros. Os romanos o chamaram de Mercúrio. Tais atributos de Thoth e de Hermes nos re- metem nitidamente à figura de Exu na cosmologia africano-brasileira. Conhecido popularmente como mensageiro dos deuses, Exu constitui o princípio dinâ- mico que possibilita o fluxo e intercâmbio de energia cósmica entre os domínios do mundo espiritual (orum) e o mundo material (aiyê). Conhecedor das línguas hu-

1 Esses tomos tratam de muitos assuntos, entre eles a astronomia, a magia e a alquimia, e exerceram uma enorme influência sobre neoplatônicos do século III na Grécia, bem como na França e na Inglaterra do século XVII Thoth 17

manas e divinas, Exu é a comunicação em si, além de se apresentar como o deus das estradas, da sorte, da brinca- deira e da malandragem. Os paralelos e as semelhanças entre Thoth, Her- mes e Exu não se reduzem a identidades absolutas, mas as linhas gerais de suas características apontam para uma unidade básica de significação simbólica. Por isso, nada mais adequado, tratando-se de uma revista Thoth lançada no Brasil, que uma primeira invocação a Exu, de acordo com a tradição religiosa afro-brasileira, que abre todos os trabalhos espirituais com o padê, a oferenda a Exu de uma prece digna de todo o peso milenar da arte africana da oratória. Thoth representa, junto com Ma’at, o conheci- mento, a ciência e filosofia, a religiosidade e a ética na mais antiga civilização africana. Assim, constituem re- ferência básica para o resgate de uma tradição africana escamoteada à população brasileira enquanto verdadeira matriz de nossa civilização, e também para o resgate da ética na política, questão emergente no Brasil de hoje. Assumindo o nome Thoth, dentro da postura africana em que o nome ultrapassa a denominação, esta revista tem o objetivo de contribuir, de alguma forma, para os dois resgates, afirmando ainda que o primeiro faz parte im- prescindível do segundo.

Projeto de Lei do Senado no 52, de Projetos de Lei 1997

Define os crimes de prática de racismo e discriminação.

O Congresso Nacional decreta:

Art. 1o Considera-se crime de práti- ca de racismo, para efeito desta lei, prati- car tratamento distinto, em razão de etnia, a pessoas ou grupos de pessoas. Pena – reclusão, de dois a cinco anos, e multa. § 1o Incorre na mesma pena quem fabricar, comercializar, distribuir ou vei- cular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de dis- seminação da prática do nazismo. THOTH 6/ dezembro de 1998 22 Atuação Parlamentar

§ 2o Também incorre na mesma situações discriminatórias históricas ou pena quem induzir ou estimular, por in- passadas, ou quando existe uma relação termédio da mídia, de aulas escolares, lógica necessária entre a característica de livros e de outros meios, ideias, con- na qual se baseia a distinção e o propó- ceitos ou imagens pejorativas em razão sito dessa distinção, ou ainda por previ- de etnia ou cor da pele. são legal. Art. 2o Considera-se discrimi- Art. 5o Esta lei entra em vigor na nação, para efeito desta lei, o estabe- data de sua publicação. lecimento de tratamento prejudicial a Art. 6o Revogam-se as disposi- pessoas ou grupo de pessoas em razão ções em contrário, especialmente as de sexo, orientação sexual, religião, Leis nos 7.716, de 1989, 8.081, de 1990, idade, deficiência, procedência na- e 8.882,de 1994. cional ou outra caracteristica similar. Pena – reclusão, de dois a oito JUSTIFICAÇÃO anos, e multa. Embora goste de se autoprocla- § 1o As penas aumentam-se da mar uma “democracia racial”, o Brasil metade: está longe de ser o paraíso das relações I – se o crime pretende dificultar raciais que o discurso oficial ainda tei- ou impedir o exercício de um direito ou ma em apresentar. Com efeito, pesqui- garantia fundamental; sas quantitativas realizadas nas últimas II – se o crime é praticado por décadas têm revelado uma realidade de funcionário público no desempenho de desigualdade e discriminação pelo me- sua função; nos tão grave quanto –e frequentemente III – se o crime é praticado contra pior que – a de países como os Estados menor de dezoito anos. Unidos e a África do Sul, reconhecidos Art. 3o O art. 141, parágrafo úni- por todos como exemplos negativos co, do Código Penal, passa a vigorar nesse campo das relações humanas. com a seguinte redação: Dados estatísticos do IBGE – ofi- “Art. 141...... ciais, portanto – apontam uma enorme distância entre os descendentes de afri- ...... canos (chamados “pretos” e “pardos”) Parágrafo único. Se o crime é co- e aqueles considerados “brancos” em metido mediante paga ou promessa de nosso País. A análise dos indicadores recompensa ou em razão de preconceito sociais pertinentes, como expectativa de de raça, cor, sexo, religião ou outro si- vida, mortalidade infantil, salários e es- milar, aplica-se a pena em dobro.” colaridade, não apenas comprova a exis- Art. 4o Não é crime a distinção re- tência desse fosso em nossa sociedade, alizada com o propósito de implementar mas também aponta o racismo como o uma ação compensatória em função de principal responsável por sua existência. Projetos de Lei Crime do racismo 23

No campo jurídico, por exemplo, Desse modo, a legislação brasileira recentes pesquisas desnudam o tratamen- ainda não dispõe de uma definição geral to diferenciado que policiais, delegados, para os crimes de racismo e discriminação, juízes e promotores dispensam a brancos dependendo de uma enumeração casuísti- e negros, pelo que estes últimos costumam ca de circunstâncias, em desacordo com a ser presos em maior proporção, condena- boa técnica do Direito Penal; daí a inefi- dos mais vezes e a penas mais longas, o que cácia da atual legislação nessa área. Este explica ser desproporcionalmente maior projeto pretende criar essa definição legal, sua presença nas estatísticas penitenciárias. tipificando tais crimes. As orientações bá- As primeiras tentativas de criar sicas são, necessariamente, as constitucio- uma legislação para coibir a prática da nais: primeiramente, porque esses crimes discriminação racial datam da década de constituem a forma mais insidiosa de vio- o 40. O principal resultado da I Conven- lação do princípio da liberdade (art. 5 , ca- ção Nacional do Negro, realizada em put) e, depois, pelo futo de ser específica o São Paulo, em 1945, sob o patrocínio a condenação do racismo (art. 5 , XLII). do Teatro Experimental do Negro, foi a Além de estabelecer os tipos genéricos aprovação de uma proposta dessa natu- para racismo e discriminação, este projeto reza, a qual acabaria sendo transforma- ainda determina circunstâncias agravantes da, no ano seguinte, pelo Senador Ha- – por exemplo, se o agente é funcionário milton Nogueira, da UDN, em proposta público. à Assembleia Nacional Constituinte. Convenções internacionais de Essa proposta definia o racismo e a dis- que o Brasil é signatário – como a Con- criminação como crime de lesa-humani- venção Internacional pela Eliminação dade, e foi rejeitada sob a alegação da da Discriminação Racial, das Nações inexistência de um fato concreto que de- Unidas, e a Convenção 111 da Organi- monstrasse a sua necessidade. Este aca- zação Internacional do Trabalho (OIT), bou vindo com um incidente de grande também vinculada à ONU, que trata da repercussão: a discriminação sofrida discriminação de raça e gênero no mer- em um hotel de São Paulo pela famo- cado de trabalho – preveem a adoção de sa coreógrafa afro-americana Katherine medidas destinadas a compensar a dis- Dunham. O Deputado Afonso Arinos criminação historicamente sofrida por aproveitou a oportunidade para propor determinados grupos de pessoas, como a Lei no 1.390, de 1951, que ganhou o mulheres, negros e índios. Conhecidas seu nome, distorcendo a natureza da pelo nome genérico de “ação afirmati- proposta de 1945 ao definir o racismo va”, tais medidas têm sido adotadas por como contravenção penal, e não como países tão diversos do ponto de vista crime, e ao estabelecer penalidades ir- político, social, econômico e cultural risórias para os infratores. Em que pese como Estados Unidos, Índia, Canadá, às boas intenções de seus autores, a cha- Alemanha, Nigéria, Israel e Malásia, mada Lei Caó (Lei no 7.716/89) também além das antigas Iugoslávia e União So- não avançou nesse sentido. viética. Este projeto abre a possibilidade THOTH 6/ dezembro de 1998 24 Atuação Parlamentar

de adotá-las no Brasil, colocando o país abre grandes espaços pelos quais esca- em dia com as obrigações assumidas na pam os agentes do crime. arena internacional. Sala das Sessões, 3 de abril de Finalmente, o projeto amplia o 1997. elenco de circunstâncias agravantes Senador ABDIAS NASCIMENTO. genéricas do Código Penal para nele incluir os preconceitos de raça, sexo e Publicado no Diário do Senado Federal de 9-4-97. outros. Com essa sistemática, afasta-se a necessidade de uma previsão casuísti- Situação atual do projeto: Comissão de Cons- ca que, enumerando em detalhes as cir- tituição, Justiça e Cidadania do Senado, aguar- cunstâncias de prática da discriminação, dando parecer do relator, Senador Pedro Simon, desde 17 de abril de 1997. Projeto de Lei do Senado no 73, O Congresso Nacional decreta: de 1997 Art. 1o Fica proibida a contra- Proíbe a contratação, pela tação, sob qualquer modalidade, pela União, suas autarquias, fundações, em- União, suas autarquias, fundações, presas públicas e sociedades de econo- empresas públicas e sociedades de mia mista, de pessoa física ou jurídica economia mista, de pessoas físicas que, diretamente ou por associado, ou jurídicas que tenham cometi- controlador, acionista majoritário ou do atos ou omissões favoráveis a empresa coligada, notoriamente, tenha regime ou ações de discrimina- contribuído, incentivado, participado ção racial, crimes contra a ordem por ação ou omissão ou, de qualquer econômica ou tributária, atos que forma, apoiado ou estimulado regime ou visem ou possam levar à formação ações de discriminação racial, no Brasil de monopólio ou à eliminação da ou no exterior. concorrência e dano ambiental não § lo A comprovação dos atos de reparado, e dá outras providências. que trata este artigo será feita, perante o responsável pelo contratante, por do- cumentação, fornecida por organismos nacionais ou internacionais de reconhe- cida reputação e idoneidade, e encami- nhada por: THOTH 6/ dezembro de 1998 26 Atuação Parlamentar

I – cidadão brasileiro; diretamente envolvidos, mesmo sob II- associação ou entidade legal- outra situação jurídica, razão social ou mente constituída e em funcionamento atividade, somente sendo vencível pela regular há pelo menos um ano; demonstração da adoção, no caso de ato ou omissão que não tenha sido de sua III – partido político com repre- responsabilidade direta, de medida efe- sentação no Congresso Nacional; tiva de superação ou reparação dos seus IV – Ministério Público da União; efeitos e de punição dos responsáveis. V – Mesas do Congresso Nacio- Art. 2o Fica proibida a contra- nal, do Senado Federal, da Câmara dos tação, pela União e demais entidades Deputados, de suas Comissões ou depu- definidas no artigo anterior, de pesso- tado federal ou senador em exercício de as físicas ou jurídicas que tenham, di- mandato eletivo. retamente ou por preposto, associados, § 2o A entrega de documento que controladores, acionistas majoritários se presuma comprobatório dos atos de- ou empresas coligadas, cometido atos finidos no caput deste artigo suspende, a que configurem crime contra a ordem partir da identificação e confirmação da econômica ou tributária ou que visem sua origem e da reputação e idoneidade ou possam levar à criação de monopólio do órgão emissor, todos os procedimen- ou limitação da livre concorrência, nos tos administrativos de contratação a par- termos da legislação brasileira. tir da data de recebimento, devendo ser Parágrafo único. Aplica-se, no instaurado procedimento administrativo caso deste artigo, no que couber, o pro- para processamento e julgamento da ti- cedimento previsto no artigo anterior, picidade da conduta, em face desta lei, subsistindo esta proibição pelo período assegurados o contraditório e a ampla de vinte anos a contar da data do fato. defesa. Art. 3o Fica também proibida a o § 3 Das decisões que suspen- contratação, pela União e demais enti- dam os procedimentos administrativos dades definidas no art. 1o, das pessoas de contratação e que julguem a pessoa físicas ou jurídicas e demais entidades física ou jurídica incursa nos atos defi- previstas nesta lei que tenham cometi- nidos nesta lei cabe recurso à instância do ato ou omissão de que tenha resul- administrativa superior, sem efeito sus- tado dano ambiental grave, no Brasil pensivo. ou no exterior, não completamente re- § 4o O descumprimento do pro- parado. cedimento previsto neste artigo leva à § 1o Aplica-se, para os fins deste nulidade do ato e à responsabilização artigo, o procedimento previsto no art. administrativa, civil e criminal da auto- 1o desta lei, subsistindo a proibição pelo ridade responsável. tempo necessário à completa reparação § 5o A proibição de que trata este ambiental ou, no caso da impossibilida- artigo é definitiva, e persiste, contra os de de fazê-lo, de forma definitiva. Projetos de Lei Sanções contra o racismo 27

§ 2o A determinação da extensão e prática do racismo foi firmada como cri- reparabilidade do dano ambiental ocorri- me inafiançável e imprescritível, sujeito do no Brasil será feita pelo órgão federal à pena de reclusão (art. 5o, XLII), além competente para assuntos documentação de permear outros tantos dispositivos de organismo de reconhecida reputação e constitucionais. idoneidade, sujeita, neste caso, à homo- As práticas desleais, predatórias logação pelo órgão federal competente. ou ultrapassadas de gestão empresarial Art. 4o As proibições previstas conhecem condenação expressa no ca- nesta Lei são extensíveis a todas as mo- pítulo referente aos princípios gerais da dalidades operacionais de desestatiza- atividade econômica, onde, como funda- ção, se não concluídas, previstas pela mentais do País, despontam a livre ini- Lei no 8.031, de 12 de abril de 1990, e ciativa, a justiça social, a livre concorrên- alterações posteriores, inclusive as vei- cia, a defesa do consumidor e a defesa do culadas por medida provisória. meio ambiente (art. 170). Também são Art. 5o Esta lei entra em vigor na condenados o abuso do poder econômico data de sua publicação. (art. 173, § 4o) que vise à dominação dos Art. 6o Revogam-se as disposi- mercados, à eliminação da concorrência ções em contrário. e ao aumento arbitrário dos lucros, além de sujeitar a pessoa jurídica, sem prejuízo JUSTIFICAÇÃO da responsabilidade individual dos seus dirigentes, à responsabilização por atos A Constituição Federal em vigor praticados contra a ordem econômica e trouxe, no caudal de suas expressivas con- financeira e contra a economia popular o quistas, vigorosas disposições sobre o racis- (art. 173, § 5 ). O art. 174 dá ao Estado mo, sobre o exercício pernicioso da ativida- o poder de agente normativo e regulador de empresarial e sobre o meio ambiente. da atividade econômica, fiscalizando e incentivando para todo o setor e plane- O racismo encontrou, na nos- jando para o setor público. sa Carta Política, a necessária resposta à repulsa e condenações mundiais que Ao meio ambiente foi dedicado ca- vinha e vem sofrendo. A dignidade da pítulo especial – o Capítulo VI do Título pessoa humana, de que a discriminação VIII. Além de a atividade empresarial es- racial é algoz, é preliminarmente erigida tar sujeita ao princípio da defesa do meio como fundamento da República Federa- ambiente, conforme já demonstramos, é tiva do Brasil (art. 1o, III); o combate ao assegurado a “todos” o direito ao meio preconceito de origem, raça e cor é dado ambiente ecologicamente equilibrado, como objetivo fundamental (art. 3o, IV); sendo imposto ao poder público e à coleti- o racismo é repudiado na ordem inter- vidade o dever de defendê-lo e preservá-lo nacional (art. 4o, VIII); as distinções “de para as presentes e futuras gerações. qualquer natureza” são proibidas, pelo Nesse universo, a função estatal é princípio da isonomia (art. 5o, caput); a relevante e indispensável. THOTH 6/ dezembro de 1998 28 Atuação Parlamentar

Como o aparelho estatal, que tem de desrespeito aos princípios fundamen- no topo a estrutura federal, é de certa tais que regem as relações comerciais e, forma balizador das condutas das de- sobretudo, as relações entre os homens. mais entidades políticas, como estados, Infelizmente, porém, são concretas as Distrito Federal e municípios, incum- ameaças de que isso possa ocorrer no bem à União as ações mais contunden- caso da CVRD. tes e mais significativas da decisão go- Uma das empresas concorrentes vernamental de cumprir e fazer cumprir na licitação da Companhia Vale do Rio tais princípios constitucionais. Doce, e com grandes possibilidades de Nessa linha é que estamos pro- vencê-la, dado o seu poderio, é a mul- pondo o presente projeto de lei. Com tinacional Anglo American, com sede ele, visamos a impedir a contratação, em Londres. Ocorre que essa empresa pela União, suas autarquias, fundações, tem se tomado nos últimos anos, em ra- empresas públicas e sociedades de eco- zão de sua atuação no campo político e nomia mista, de pessoas físicas ou jurí- econômico, uma espécie de pária inter- dicas, ou ligadas a elas, que tenham, em nacional. O principal motivo disso foi sua atuação nacional ou internacional, seu apoio inconteste ao regime do apar- ferido esses relevantes valores de nossa theid na África do Sul, desrespeitando Constituição, por ação ou por omissão. o boicote internacional decretado pelas Essa proibição é extensível, di-lo Nações Unidas e violando não somente o art. 4o da proposição, a todos os mode- resoluções da ONU, mas também con- los operacionais do programa de deses- venções internacionais de que o Brasil tatização. E aqui pretendemos atingir, é signatário – e que por isso têm força diretamente, determinada situação que de lei –, em especial a Convenção In- poderá ocorrer no processo de privati- ternacional pela Eliminação da Discri- zação da Companhia Vale do Rio Doce. minação Racial, das Nações Unidas, e a A importância estratégica e o Convenção 111 da Organização Interna- enorme patrimônio dessa empresa fa- cional do Trabalho, que trata da discri- zem com que, no momento em que o minação no mercado de trabalho. Além Governo se prepara para implementar disso, tal atuação também está em desa- a sua privatização, olhares mais atentos cordo com diversas cláusulas de nossa se detenham nesse processo, tendo em Constituição Federal, quais sejam os ar- vista suas consequências não apenas no tigos que citamos acima. plano político e econômico, mas tam- Longe de ser um ato meramente bém do ponto de vista social. Afinal, se simbólico, o apoio da poderosa Anglo a justificativa para a sua alienação se faz American e de outras empresas de mes- sob a égide da modernização de nossas mo porte foi o que permitiu ao governo estruturas produtivas, não faz sentido racista sul-africano uma sobrevida que, que ela favoreça empresas ou grupos de outro modo, não seria possível. Pode- internacionais com notória ficha corrida -se medir a consequência pelo número Projetos de Lei Sanções contra o racismo 29

de casos de assassinatos, torturas e ou- enfrentamento do racismo e do precon- tras atrocidades sofridas pelos negros e ceito racial, bem como a possibilidade opositores políticos naquele país duran- de estabelecer compensações para os te os últimos anos de um regime que po- grupos historicamente discriminados, é deria ter acabado muito antes, não fos- no mínimo um contrassenso permitir- se a criminosa cumplicidade de grupos mos que se aposse de nossa estatal mais que, como a Anglo American, sempre se lucrativa um grupo internacional que se posicionaram em favor da manutenção comprometeu ativamente com o mais da supremacia branca. execrado regime do mundo contempo- Mas não se resumem a isso as res- râneo. Ao mesmo tempo, a condenação trições a essa empresa. Além de apoiar o de que tal grupo foi objeto no mais alto apartheid, a Anglo American é suspeita foro do comércio internacional é motivo de ter colaborado com o governo sul- suficiente para tornar indesejável a sua -africano na desestabilização política presença em nosso País. dos países da chamada “linha de frente” Por tudo isso, permitimo-nos – dentre eles, Angola e Moçambique –, confiar na aprovação do presente proje- dando apoio financeiro à guerrilha con- to de lei neste Parlamento, uma forma trarrevolucionária para a aquisição de ar- direta de assegurarmos respeito a fun- mamentos e infraestrutura bélica. Como damentais princípios constitucionais e não bastasse, a Anglo American foi con- humanos e indireta de expurgarmos da siderada culpada, em diversos países, por atuação no Brasil uma empresa pode- infringir a legislação antitruste, pratican- rosa que carrega a mancha indelével da do o monopólio da produção e comércio atuação racista e contrária aos direitos de ouro e diamantes. Por esse motivo, humanos. seu principal dirigente, Nicholas Oppe- Sala das Sessões, 24 de abril de nheimer, há muitos anos não pode pisar 1997. em território norte-americano, sob pena Senador ABDIAS NASCIMENTO. de ser imediatamente preso. Num momento em que a socieda- Publicado no Diário do Senado Federal de 24-4-97. de brasileira começa a tomar consciên- cia crescente de seus problemas sociais Situação atual do projeto: Comissão de Assuntos e raciais, inclusive discutindo a refor- Econômicos do Senado, com minuta de relatório mulação de sua legislação, visando a favorável do relator, Senador Ney Suassuna, desde tornar mais eficientes os mecanismos de 16-6-97, aguardando inclusão em pauta.

Projeto de Lei do Senado no 75, O Congresso Nacional decreta: de 1997 Art. 1o Todos os órgãos da admi- nistração pública direta e indireta, as empresas públicas e as sociedades de economia mista são obrigados a manter, nos seus respectivos quadros de servi- Dispõe sobre medidas de ação dores, 20% (vinte por cento) de homens negros e 20% (vinte por cento) de mu- compensatória para a implementa- lheres negras, em todos os postos de tra- ção do princípio da isonomia social balho e de direção. do negro. § 1o As entidades mencionadas estão obrigadas a comprovar anualmen- te, perante o órgão que responde pela administração pública, as determina- ções constantes do caput. § 2o A cada cinco anos, o órgão citado no parágrafo anterior ou o Minis- tério do Trabalho desenvolverão pesqui- sa estatística, com vistas a comprovar os resultados das medidas de ação com- pensatória preconizadas. THOTH 6/ dezembro de 1998 32 Atuação Parlamentar

§ 3o As entidades citadas no caput candidatos negros qualificados em esca- estão obrigadas a executar programas de lões superiores profissionais. aprendizagem, treinamento e aperfeiço- Parágrafo único. O órgão do Po- amento técnico, com vistas a qualificar der Público encarregado de supervisio- empregados negros para a promoção nar ou desenvolver os programas divul- funcional. gará as atividades a serem executadas e Art. 2o Toda empresa privada ou o material técnico produzido, bem como estabelecimento de serviços são obriga- oferecerá vagas nos cursos por ele mi- dos a executar medidas de ação compen- nistrados às entidades citadas no art. 1o satória com vistas a atingir, no prazo de desta Lei e às empresas privadas. cinco anos, a participação de ao menos Art. 5o O Poder Executivo inclui- 20% (vinte por cento) de homens negros rá na lei orçamentária anual recursos e 20% (vinte por cento) de mulheres ne- necessários para o desenvolvimento de gras em todos os níveis de seu quadro de estudos a respeito do ensino e do aper- empregos e remunerações. feiçoamento técnico das medidas de § 1o As empresas e estabelecimen- ação compensatória. tos mencionados comprovarão, anual- Art. 6o Serão destinadas a estu- mente, junto ao Ministério do Trabalho, dantes negros 40% (quarenta por cento) as medidas preconizadas no caput. das bolsas de estudo concedidas em to- § 2o As empresas e estabeleci- dos os níveis de ensino. mentos que não cumprirem as medidas § 1o O Ministério das Relações referidas no caput estão sujeitas a multa Exteriores reservará, no Instituto Rio no valor de 20% da folha bruta mensal Branco, 20% (vinte por cento) das vagas de salário. para candidatos negros e 20% (vinte por § 3o A cada cinco anos, o Minis- cento) para candidatas negras. tério do Trabalho fará pesquisa estatísti- § 2o Os cursos de formação da ca para avaliar a aplicação das medidas Marinha, Exército e Aeronáutica reser- compensatórias de que trata o caput. varão 20% (vinte por cento) de suas va- Art. 3o Assegura-se a preferência gas para candidatos negros e 20% (vinte na admissão do candidato negro, sem- por cento) para candidatas negras. pre que ele demonstrar idênticas quali- Art. 7o O Ministério da Educação ficações profissionais às de candidato implementará medidas propostas por branco. grupo de trabalho constituído para es- Art. 4o O Ministério do Trabalho tudar modificações nos currículos esco- e os organismos de treinamento de mão lares de todos os níveis de ensino, com de obra estão obrigados à execução de vistas a: programas de aprendizagem, treina- I – incorporar ao conteúdo dos mento e aperfeiçoamento técnico para cursos de história brasileira o ensino das negros, a fim de aumentar o número de contribuições positivas dos africanos e Projetos de Lei Ação compensatória 33

seus descendentes à civilização brasilei- § 3o O Ministério da Educação ra, sua resistência contra a escravidão, e as secretarias estaduais e municipais sua organização e ação nos quilombos de educação farão relatórios anuais pú- e sua luta contra o racismo no período blicos, dando conta dos resultados da pós-abolição; fiscalização efetuada com o fim de ve- II – incorporar ao conteúdo dos rificar o cumprimento do disposto neste cursos sobre história geral o ensino das artigo. contribuições positivas das civilizações § 4o O Ministério da Educação africanas, particularmente seus avanços e as reitorias das universidades públi- tecnológicos e culturais antes da inva- cas incentivarão a criação e apoiarão o são europeia do continente africano; funcionamento de centros de estudos ou pesquisas africanos e afrobrasileiros, III – incorporar ao conteúdo dos como parte integrante da estrutura uni- cursos optativos de estudos religiosos versitária. ensino dos conceitos espirituais, filosó- o ficos e epistemológicos das religiões de Art. 8 As forças policiais estão origem africana; obrigadas a incluir nos currículos de seus cursos e em seus programas de IV – eliminar dos currículos e li- treinamento conteúdos de orientação vros escolares qualquer referência pre- que visem a impedir qualquer compor- conceituosa ou estereotipada ao negro; tamento de discriminação étnica. V – incorporar ao material de en- Art. 9o A Fundação Instituto Bra- sino primário e secundário a apresenta- sileiro de Geografia e Estatística está ção gráfica da família negra, de maneira obrigada a incluir o quesito “cor” em que a criança veja o negro e sua família todas as suas pesquisas, estatísticas e retratados de maneira tão positiva quan- censos. to a forma como são retratadas a criança Art. 10. Esta lei entra em vigor na branca e sua família; data de sua publicação. VI – incluir no ensino dos idio- Art. 11. Revogam-se as disposi- mas estrangeiros, em regime opcional, ções em contrário. as língua iorubá e kiswahili. § 1o O grupo de trabalho incluirá JUSTIFICAÇÃO entre seus membros representantes das organizações negras e intelectuais ne- Os africanos não vieram para o gros dedicados ao estudo da matéria. Brasil livremente, como resultado de § 2o As modificações curricula- sua própria decisão. Vieram acorrenta- res aprovadas aplicar-se-ão obrigatoria- dos, sob toda sorte de violências físicas mente às escolas públicas e particulares, e morais. a partir do ano letivo correspondente Eles e seus descendentes traba- ao segundo ano civil após a publicação lharam por mais de quatro séculos cons- desta lei. truindo este País. Não tiveram, no en- THOTH 6/ dezembro de 1998 34 Atuação Parlamentar

tanto, a mínima compensação por esse “Art. 5o Todos são iguais perante gigantesco trabalho. a lei, sem distinção de qualquer nature- O escravo, no Brasil como em za, garantindo-se aos brasileiros e aos toda a América onde a escravidão exis- estrangeiros residentes no país a invio- tiu, foi vítima de toda espécie de atro- labilidade do direito [...] à igualdade cidades, torturas e degradações, justifi- [...].” cadas pela ideologia da supremacia do ...... branco-europeu como uma necessidade. Esse princípio, no entanto, ainda Necessidade de quem, perguntamos. não se constituiu num verdadeiro direito Obviamente, não dos africanos e seus para o negro brasileiro, o qual continua descendentes escravizados, que nunca discriminado em todos os aspectos de foram indenizados pela espoliação do sua vida em nossa sociedade. Fazem-se sangue e suor que verteram, cimentando necessárias, portanto, medidas concre- a edificação do Brasil. Sem o esforço do tas para implementar o direito constitu- seu trabalho, este País não existiria. cional da igualdade, garantida aos brasi- leiros negros pela Constituição. É tempo de a Nação brasileira sal- dar essa dívida fundamental para com os O presente projeto de lei atinge edificadores deste País. O princípio da apenas três dimensões da discriminação isonomia na compensação do trabalho racial contra o negro no Brasil: as opor- torna moral e juridicamente imperativa tunidades e a remuneração do trabalho, a educação e o tratamento policial. uma ação compensatória, da sociedade e do Estado, destinada a indenizar, embo- Inúmeras pesquisas científicas, ra tardiamente, o trabalho não remune- algumas patrocinadas e realizadas por rado do negro escravizado e o trabalho órgãos internacionais, como a Organiza- sub-remunerado do negro supostamente ção das Nações Unidas para a Educação, libertado a 13 de maio de 1888. a Ciência e a Cultura – UNESCO, com- provam a discriminação contra o negro Rui Barbosa, que, na qualidade no mercado de trabalho. Em 1959, após de Ministro da Fazenda da República, pesquisa feita no mercado de trabalho ordenara a incineração dos documen- no Rio de Janeiro, a chefe de Coloca- tos relativos ao tráfico escravo e à es- ção do Ministério do Trabalho, Sra Vera cravidão, certa vez mencionou, roman- Neves, afirmou que “é o preconceito de ticamente, que os escravos deviam ser cor que se encontra em primeiro lugar indenizados. Entretanto nada fez para como fator de desemprego”. O mesmo concretizar essa exigência da justiça e foi constatado em relação a Porto Ale- da consciência cívica. gre, em pesquisa realizada pelo Sistema A Constituição brasileira garan- Nacional de Emprego –SINE, do Minis- te a inviolabilidade dos direitos enu- tério do Trabalho (O Jornal, 14-6-59). merados no seu artigo 5o, cujo caput As estatísticas existentes confir- assegura: mam o quadro inegável de desigual- Projetos de Lei Ação compensatória 35

dades raciais no mercado de trabalho, Os dados da Pesquisa Nacional resultantes da discriminação. por Amostra de Domicílios _ PNAD, re- Segundo a Pesquisa Nacional por alizada em 1976, pela Fundação Institu- Amostra de Domicílios – PNAD, de to Brasileiro de Geografia e Estatística 1987, que pesquisou a cor da popula- - IBGE, mostram que: ção, o negro (soma das categorias “pre- 1) as desigualdades de rendimen- tos” e ‘’pardos’’) representa 42,8% da to entre brancos e negros aumentam à população brasileira. Sabemos que tal proporção que o trabalbo exige mais estatística representa uma porcentagem qualificação; muito mais baixa do que a verdadeira 2) mesmo com maior nível de participação do negro na nossa popu- instrução, a força de trabalho negra re- lação, pois os entrevistados, conforme cebe menor remuneração; denunciam os próprios técnicos em de- 3) mesmo dispondo de escolari- mografia, tendem a negar sua condição dade igual à do branco, o negro tende de negros, classificando-se em outras a preencher posições ocupacionais com categorias, exatamente como resultado rendimentos inferiores; da intemalização do preconceito de cor. Todavia, mesmo com esses números su- 4) os brancos detêm proporcio- bestimados, é gritante a discriminação nalmente maior parcela de rendimento, de que é objeto o negro. independentemente das categorias ocu- pacionais em que estejam; Em contraste com a sua partici- pação acentuada na população, vejamos 5) mesmo nas categorias ocupa- a participação do negro na força de tra- cionais em que os brancos representam balho: entre aqueles que ganham mais parcela menor da força de trabalho, a de 10 salários-mínimos, encontram-se proporção do rendimento alocada aos apenas 12,4% de homens negros e, o brancos, como grupo, é superior à dos que constitui um verdadeiro escândalo, negros; somente 2,4% de mulheres negras. Isso 6) mesmo os 10% dos negros que significa que o negro, representando mais ganham não chegam a perceber 42,8% da população brasileira e 41,9% 39% do que auferem os 10% mais bem das pessoas economicamente ativas, re- pagos entre os brancos; o rendimento cebe 5,6 vezes menos que os brancos médio destes é seis vezes maior do que nos empregos mais bem remunerados. o rendimento médio dos negros que ga- Por outro lado, dos negros inclu- nham mais. Ou seja, só como retórica ídos entre as pessoas economicamente vazia pode-se falar em “classe média ativas, 44,3% percebem até um salário negra” ou numa mitológica “burguesia mínimo, enquanto os brancos situa- negra”. dos nessa faixa de rendimento somam Sem dúvida, nada indica que a 27,0%. situação se tenha modificado desde a THOTH 6/ dezembro de 1998 36 Atuação Parlamentar

publicação dos resultados da pesquisa Cremos que as medidas de ação mencionada. compensatória e as formas de seu incen- Na realidade, fica nítida a carac- tivo e obrigatoriedade estão definidas terização da desigualdade de oportuni- no texto do Projeto de forma autoexpli- dade e de remuneração do trabalho entre cativa. negros e brancos no Brasil. Esse quadro Quadro semelhante ao constata- de desigualdade não poderia existir se do no mercado de trabalho encontramos se tivesse efetivado a implementação do no que diz respeito ao acesso do negro direito à isonomia garantida pela Cons- à educação. De acordo com a Pnad de tituição. O presente projeto de lei, por 1987, 13,1 % dos brancos carecem de intermédio de seus artigos lo a 6o, visa à instrução ou possuem menos de um ano aplicação desse princípio constitucional de escolaridade; entre os negros, a pro- nas esferas da oportunidade e remune- porção é de 29,0%, ou seja, mais que o ração do trabalho em relação ao negro. dobro. De outra parte, o número de ne- gros com 12 anos ou mais de instrução Seria absurdo, após quase um sé- (1,5%) constitui 5,1 vezes menos o va- culo durante o qual o negro permaneceu lor relativo de brancos (7,7%). discriminado no mercado de trabalho, Outra vez podemos constatar que esperar que tal discriminação desapare- tais diferenças não seriam sustentáveis cesse espontaneamente. Faz-se impera- caso vigorasse a igualdade racial asse- tivo, então, o estabelecimento de metas gurada pela Constituição. A concessão legais e a obrigatoriedade de medidas de bolsas compensatórias a estudantes para implementá-las. negros visa à correção de tais distor- Baseado na porcentagem oficial ções, pela implementação do princípio (embora inferior à que refletiria a rea- do direito à isonomia relativa ao aces- lidade demográfica) da proporção de so à educação. Tal medida contribui- negros na população global brasileira rá, igualmente, para conferir melhores (42,8%, segundo a Pnad de 1987), o oportunidades de trabalho ao negro, em projeto define como meta uma partici- decorrência da importância da educação pação de 40% de negros em todos os para a qualificação do trabalhador. níveis e escalões ocupacionais. Consta- O conteúdo da educação recebida tando a elevada intensidade da discrimi- pelas crianças negras que têm oportuni- nação contra a mulher negra no mercado dade de estudar representa outro aspecto de trabalho, comprovada nas estatísticas da desigualdade racial anticonstitucional e também em outros tipos de pesquisa, na esfera da educação. A criança branca percebemos a necessidade de especi- estuda tendo por base um currículo em ficar as metas relacionadas à força de que a história e a civilização européias, trabalho negra feminina. Daí a especifi- criadas por seus antepassados, são rigo- cidade de 20% para os homens negros e rosamente abordadas. Entretanto a civi- 20% para as mulheres negras. lização e a história dos povos africanos, Projetos de Lei Ação compensatória 37

dos quais descendem as crianças negras, a mentalidade policial ainda é marcada estão ausentes do currículo escolar. A pela seguinte atitude: “Branco correndo criança negra aprende apenas que seus é atleta; preto correndo é ladrão.” Os avós foram escravos; as realizações tec- programas de orientação anti-racista nológicas e culturais africanas, sobre- para policiais visam à eliminação dessa tudo nos períodos anteriores à invasão desigualdade anticonstitucional. e colonização européias da África, são Em resumo, as medidas de ação omitidas. compensatória da escravidão e discrimi- Omite-se, igualmente, qualquer nação estabelecidas pelo projeto de lei referência à história da heróica luta dos proposto instituem maiores oportunida- afrobrasileiros contra a escravidão e o des para o negro integrar, em proporção racismo, tanto nos quilombos como por relativamente análoga à da participação intermédio de outros meios de resistên- branca, as esferas da vida nacional das cia. Comumente o negro é retratado de quais ele tem sido excluídos por tempo forma pejorativa nos textos escolares, demasiadamente longo. Dessa forma, o o que ocasiona efeitos psicológicos ne- presente projeto visa a contribuir para gativos na criança negra, amplamente estabelecer, embora com bastante atra- documentados. O mesmo quadro tende so, a justiça racial em nosso País, de a encorajar, na criança branca, um sen- acordo com o espírito do artigo 5o da timento de superioridade em relação ao Constituição. negro. Fazem-se necessárias tais medi- O artigo 7o deste projeto de lei das compensatórias em função da pró- objetiva a correção dessa anomalia e a pria história e características específi- implementação do direito à isonomia cas da sociedade brasileira, não sendo assegurado pela Constituição. Da mes- necessária a referência a experiências ma forma, tomando opcional, entre as exógenas. Desde o período imediata- matérias de estudos religiosos, o ensi- mente pós-abolição da escravatura, o no dos conceitos espirituais da religião negro livre reclama medidas antidiscri- de origem africana, evita-se que a reli- minatórias no Brasil. Por intermédio da gião da comunidade negra seja retratada imprensa negra (existente desde 1915, como “animismo” ou conforme outras em São Paulo), da Frente Negra Brasi- denominações pejorativas inferiorizan- leira (1929-1937, de âmbito nacional), tes. da Convenção Nacional do Negro (São É notória a desigualdade de tra- Paulo, 1946), do I Congresso do Negro tamento entre negros e brancos pela Brasileiro (Rio, 1950), do Teatro Ex- polícia. O negro é sempre o primeiro perimental do Negro (Rio e São Paulo, suspeito. Muitas vezes, vai preso apenas 1944-68), do Movimento Negro Unifi- por não ter documento em seu poder, o cado (desde 1978), do Ilê-Aiyê, Badauê, que não ocorre, com a mesma freqüên- Malê Debalê e Olodum da Bahia con- cia, relativamente aos brancos. Enfim, temporânea, do Instituto de Pesquisas THOTH 6/ dezembro de 1998 38 Atuação Parlamentar

das Culturas Negras (IPCN) do Rio de IBGE. Esse fato traduz arbitrariedade Janeiro, do Ipeafro de São Paulo e do no critério utilizado para se decidir se o Rio de Janeiro, e de muitos outros movi- item cor deve constar ou não, deixando- mentos, o negro vem exigindo, constan- -nos sem qualquer certeza da disponibi- temente, que seja efetivado o compro- lidade de dados para a análise da exis- misso constitucional que lhe assegura tência ou não da discriminação racial. direitos iguais. No plano da ação das autoridades Em 1946, a Declaração Final da públicas, a recente criação, pelo Gover- Convenção Nacional do Negro enfatizou no Federal, do Programa Nacional de a necessidade de medidas complemen- Direitos Humanos, do Grupo de Traba- tares nas áreas da educação e economia, lho para a Eliminação da Discriminação para que o negro pudesse realmente des- no Emprego e na Ocupação – GTEDEO frutar de oportunidades iguais no cam- e do Grupo de Trabalho lnterministerial po do trabalho e da sociedade em geral. para Valorização da População Negra Sem essas medidas complementares, traz a inovação de levar a discussão de uma legislação tratando meramente de assuntos tão caros aos negros brasileiros emprego não teria condições de efetivar, para o interior do Estado. O primeiro de fato, uma modificação significativa possui entre suas metas a formulação de no existente quadro de desigualdades no políticas para a redução das desigualda- mercado de trabalho. des no Brasil. O Gtedeo e o grupo de va- Para que se possa avaliar a imple- lorização da população negra tratariam mentação ou não do princípio do direito de propor medidas compensatórias, des- constitucional à isonomia racial, impõe- tinadas aos negros brasileiros, nas áreas -se a necessidade de dados estatísticos de saúde, educação, mercado de traba- diferenciados por categoria racial, o que lho e meios de comunicação. se tem convencionalmente chamado de “quesito cor”, Nos censos demográficos Outro acontecimento de grande brasileiros de 1872, 1890, 1940, 1950, relevância para a população negra foi 1980, no suplemento da Pnad de 1976 o seminário Multiculturalismo e Racis- e na Pnad _ Cor da População de 1987, mo: o papel da Ação Afirmativa nos Es- o quesito cor foi consignado. Trata-se, tados Democráticos Contemporâneos, portanto, de uma prática bem enraiza- promovida pelo Ministério da Justiça. da nas nossas tradições censitárias e de No discurso de abertura desse evento, o pesquisa. Presidente Fernando Henrique Cardoso Verifica-se, entretanto, a necessi- concitou seus participantes a usar a cria- dade de se estabelecer a obrigatoriedade tividade para buscar soluções contra o legal dessa prática, de forma sistemáti- preconceito e a discriminação raciais e ca, pois nos censos de 1960 e 1970 e em afirmou expressamente ser necessário algumas edições da Pnad o quesito cor “desmascarar” a forma como se pratica não constou dos dados publicados pelo a discriminação racial no Brasil. Projetos de Lei Ação compensatória 39

Como se vê, as autoridades pú- Esperamos que o Congresso Nacional blicas deste País estão conscientes do seja sensível a essa aspiração do negro preconceito e da discriminação prati- por uma verdadeira democracia racial cados contra os negros brasileiros e da no seio da Nação que ele, como nenhum necessidade de medidas concretas para outro, tem o direito de afirmar que aju- superá-los. dou a construir. O presente projeto de lei traduz Sala das Sessões, 24 de abril de os anseios de justiça e igualdade, numa 1997. sociedade efetivamente democrática, de Senador ABDIAS NASCIMENTO. milhões e milhões de brasileiros de ori- Publicado no Diário do Senado Federal, de 25-4-97 gem africana, que se têm manifestado por intermédio das várias organizações negras e afro-brasileiras. Há um farto Situação atual do projeto: Comissão de Constitui- ção, Justiça e Cidadania do Senado, com relatório arquivo de pronunciamentos, manifes- favorável do relator, Senador Roberto Requião, tos, declarações de princípios, cartas de desde 16-6-97. Lido o parecer do relator, a Comis- reivindicações, em que se consigna a são decidiu, em 18-3-98, criar uma Subcomissão composta pelos Senadores Roberto Requião, Je- impaciência que aguilhoa o povo negro fferson Peres, Lucia Alcântara e Pedro Simon, sob deste País, sequioso de justiça racial. a presidência deste último, para reexame do projeto.

Projeto de Lei do Senado no 114, O Congresso Nacional decreta: de 1997 Art. 1o O Ministério Público pro- moverá ação civil com o objetivo de im- Dispõe sobre a ação civil des- por obrigação de fazer, ou de não fazer, com as finalidades de: tinada ao cumprimento da obrigação de fazer ou de não fazer, I – evitar ou interromper atos da- para a preservação da honra e nosos à honra ou à dignidade de grupos raciais, étnicos ou religiosos; e dignidade de grupos raciais, étnicos e religiosos. II – obter a reparação dos mes- mos atos, quando não evitados. Parágrafo único. Confere-se legitimidade subsidiária, em caso de omissão do Ministério Público, à socie- dade civil que: I – esteja constituída há pelo me- nos um ano nos termos da lei civil; ou II – inclua entre as suas finalida- des institucionais a proteção ou defesa dos interesses de grupos raciais, étnicos ou religiosos; THOTH 6/ dezembro de 1998 Projetos de Lei 42 Atuação Parlamentar Ação civil pela dignidade dos grupos raciais 43

§ 1o O Ministério Público, se não § 2o O valor da multa poderá ser um valor não relativo como fim em si da população brasileira, de maioria ne- intervier no processo como parte, atuará elevado até ao triplo se, fixado pelo má- mesmo, próprio, inerente: a dignidade. gra, são negados os direitos essenciais obrigatoriamente como fiscal da lei. ximo, não se alterar o comportamento O que se caracteriza substituível na re- à pessoa humana. O Direito é universal. § 2o É facultado a outras socie- do réu. lação pressupõe sempre equivalência e Deve ser compreensível para todos os dades civis ou associações, de mesma Art. 6o O juiz, ao examinar o mé- traz em si de maneira permanente a no- homens, qual seja a raça, qual seja a cor, natureza das legitimadas, habilitarem- rito, fixará o valor da reparação, consi- ção de preço, não restritamente de valor. qual seja a condição social. -se como litisconsortes de qualquer das derada a extensão dos danos, desde que O que não permite qualquer equivalên- O Brasil é o maior país negro fora partes. requerido na inicial da ação civil. cia é a dignidade, superior a tudo, pois da África. Entretanto, com os extremos o não dispõe o homem a obediência à lei § 3o Em caso de desistência ou Art. 7 Os créditos favoráveis ao bem desiguais, minoria muito próspera que não seja instituída por ele próprio. abandono da ação por sociedade ou as- autor, decorrentes de sucumbência, ex- de um lado e a grande maioria muito po- Como forma desse princípio, dessa in- sociação legitimada, o Ministério Públi- cetuados os honorários advocatícios e bre de outro, tantos em estado de com- dependência, é a moralidade a condição co a substituirá processualmente. de peritos, reverterão a fundo de defesa pleta miséria, pondo o país na liderança e combate ao racismo, a ser criado pela da dignidade do homem. Sendo a digni- Art. 2o Convencendo-se o juiz da em concentração de rendas, é o negro a Secretaria Nacional de Direitos Huma- dade absoluta, cumpre ao homem esse procedência da ação, concederá a ante- maior vítima. Da moradia das favelas nos. valor moral, do que se conclui a relação para as ruas, aumentando dia a dia as mo- cipação total ou parcial da tutela, antes silógica dignidade do homem – dignida- de ouvir a outra parte. Parágrafo Único. O fundo de de- radas debaixo das pontes e dos viadutos. fesa e combate ao racismo será institu- de da lei – dignidade da sociedade, com O acesso às escolas é quase inevitavel- Art. 3o Qualquer pessoa poderá, ído em até doze meses a contar da data respeito a todos os homens, independen- mente impossível, são proporcionalmen- e o servidor público deverá, provocar a de publicação desta lei. te de raça, cor, religião e outros. te raras as exceções. Sempre vítimas do iniciativa do Ministério Público, minis- o Na resposta preceitual a essa nor- preconceito e da discriminação racial, trando-lhe informações sobre os fatos Art. 8 Aplicam-se subsidiaria- mente ao disposto nesta lei o Código ma, considera-se que a lei, assim insti- não se lhe permitindo a devida integra- objeto da ação civil prevista nesta lei e tuída, deverá obedecer a princípios de ção na sociedade. É a preexistência do indicando-lhe os respectivos elementos Penal, o Código de Processo Penal e a Lei no 7.347, de 24 de julho de 1985. equidade social para o cometimento de racismo o fato gerador da divisão social de convicção. justiça, na relação mais ampla entre in- Art. 9o Esta lei entra em vigor na imposta ao negro brasileiro. Contudo, a Art. 4o Para instruir a petição divíduo e sociedade, pertença ele a qual- data de sua publicação. legislação ainda peca pela precariedade iniciaI da ação civil, o autor poderá re- quer classe ou condição econômica. sobre a matéria, até mesmo carente da Art. 10. Revogam-se as disposi- querer às autoridades competentes as No Brasil, o exemplo é totalmen- tipificação criminal da “prática do ra- ções em contrário. certidões e informações que julgar ne- te diverso. O desequilíbrio na sociedade cismo”, definida na Carta Política como cessárias, que lhe serão fornecidas no JUSTIFICAÇÃO em que vivemos nos revela uma socie- inafiançável e imprescritível. prazo máximo de quinze dias. dade desigual. De um lado, a extrema A Lei no 7.347, de 24 de julho o Art. 5 Na ação civil que tenha por O preceito da dignidade huma- minoria próspera, como bem adverte de 1985, veio disciplinar a ação civil objeto a obrigação de fazer ou de não fa- na define-se na exigência expressa por Noam Chomsky em uma de suas obras pública como instrumento processual zer, o juiz determinará o cumprimento Kant como princípio de máxima impe- sobre o injusto; de outro, a vasta maio- adequado para reprimir ou impedir da- da prestação de atividade, ou da cessa- rativa: “Age de forma que trates a hu- ria de extrema pobreza. Nesta última nos ao meio ambiente, ao consumidor, a ção da atividade nociva, sob cominação manidade, tanto na tua pessoa como na incluem-se os negros, discriminados bens e direitos de valor artístico, estéti- de multa diária, independentemente de pessoa de qualquer outro, sempre tam- na raça para, posteriormente e em con- co, histórico, turístico e paisagístico. O requerimento do autor. bém como um fim e nunca unicamente seqüência, serem eles os discriminados preceito constante do art. 10 da referida § 1o A multa será devida a partir como um meio”. Esse princípio de or- sociais. lei visou, pois, proteger os interesses di- do dia em que se configurar o descum- dem moral indica a condição humana E nessa discriminação, que se- fusos da sociedade. A Constituição da primento da determinação judicial. na relação de que todo homem possui para da minoria próspera a maior parte República, no seu art. 129, inciso III, Projetos de Lei Ação civil pela dignidade dos grupos raciais 43

um valor não relativo como fim em si da população brasileira, de maioria ne- mesmo, próprio, inerente: a dignidade. gra, são negados os direitos essenciais O que se caracteriza substituível na re- à pessoa humana. O Direito é universal. lação pressupõe sempre equivalência e Deve ser compreensível para todos os traz em si de maneira permanente a no- homens, qual seja a raça, qual seja a cor, ção de preço, não restritamente de valor. qual seja a condição social. O que não permite qualquer equivalên- O Brasil é o maior país negro fora cia é a dignidade, superior a tudo, pois da África. Entretanto, com os extremos não dispõe o homem a obediência à lei bem desiguais, minoria muito próspera que não seja instituída por ele próprio. de um lado e a grande maioria muito po- Como forma desse princípio, dessa in- bre de outro, tantos em estado de com- dependência, é a moralidade a condição pleta miséria, pondo o país na liderança da dignidade do homem. Sendo a digni- em concentração de rendas, é o negro a dade absoluta, cumpre ao homem esse maior vítima. Da moradia das favelas valor moral, do que se conclui a relação para as ruas, aumentando dia a dia as mo- silógica dignidade do homem – dignida- radas debaixo das pontes e dos viadutos. de da lei – dignidade da sociedade, com O acesso às escolas é quase inevitavel- respeito a todos os homens, independen- mente impossível, são proporcionalmen- te de raça, cor, religião e outros. te raras as exceções. Sempre vítimas do Na resposta preceitual a essa nor- preconceito e da discriminação racial, ma, considera-se que a lei, assim insti- não se lhe permitindo a devida integra- tuída, deverá obedecer a princípios de ção na sociedade. É a preexistência do equidade social para o cometimento de racismo o fato gerador da divisão social justiça, na relação mais ampla entre in- imposta ao negro brasileiro. Contudo, a divíduo e sociedade, pertença ele a qual- legislação ainda peca pela precariedade quer classe ou condição econômica. sobre a matéria, até mesmo carente da No Brasil, o exemplo é totalmen- tipificação criminal da “prática do ra- te diverso. O desequilíbrio na sociedade cismo”, definida na Carta Política como em que vivemos nos revela uma socie- inafiançável e imprescritível. dade desigual. De um lado, a extrema A Lei no 7.347, de 24 de julho minoria próspera, como bem adverte de 1985, veio disciplinar a ação civil Noam Chomsky em uma de suas obras pública como instrumento processual sobre o injusto; de outro, a vasta maio- adequado para reprimir ou impedir da- ria de extrema pobreza. Nesta última nos ao meio ambiente, ao consumidor, a incluem-se os negros, discriminados bens e direitos de valor artístico, estéti- na raça para, posteriormente e em con- co, histórico, turístico e paisagístico. O seqüência, serem eles os discriminados preceito constante do art. 10 da referida sociais. lei visou, pois, proteger os interesses di- E nessa discriminação, que se- fusos da sociedade. A Constituição da para da minoria próspera a maior parte República, no seu art. 129, inciso III, THOTH 6/ dezembro de 1998 44 Atuação Parlamentar

estendeu essa proteção aos interesses tureza”. Inegável, portanto, a dispersão difusos e coletivos, incluindo aí os bens e precariedade da legislação atual sobre jurídicos a serem tutelados pelo Estado, a matéria, a qual exige imediato aperfei- quando existente o dano praticado con- çoamento para uma aplicação eficaz. tra a integridade física ou moral de al- O presente projeto destina-se à guém, em ofensa ao direito, decorrente instituição de ação civil que pode ser de preconceito e discriminação racial. instaurada pelo Ministério Público ou Três meses após promulgada a por entidades da sociedade civil orga- atual Constituição da República, surge nizada com as finalidades de evitar ou a Lei no 7.716, de 5 de janeiro de 1989, interromper atos danosos à honra ou de autoria do Deputado Carlos Alberto dignidade de grupos raciais, étnicos ou Caó, que prevê punição para “os crimes religiosos, e de obter a reparação de tais resultantes de preconceitos de raça ou de atos, quando não seja possível evitá- cor”, mas tão-somente no que se refere a -los. Objetiva, assim, dotar os grupos recusa ou impedimentos de acesso a ser- em questão de um instrumento ágil e viços, locais públicos e privados, a em- eficaz que lhes possibilite enfrentar as pregos e transportes. A Lei no 8081, de manifestações de racismo e discrimina- 21 de setembro de 1990, que teve como ção que, infelizmente, ocorrem em nos- autor o então deputado Ibsen Pinheiro, sa sociedade em vergonhosa proporção. acrescentou o art. 20 à Lei no 7.716/89, Sala das Sessões, 17 de junho de mas o ato discriminatório ou precon- 1997 ceituoso ali definido só se configura se Senador ABDIAS NASCIMENTO. cometido “pelos meios de comunicação social ou por publicação de qualquer na- Publicado no Diário do Senado Federal de 18-6-97. Projetos de Lei Ação civil pela dignidade dos grupos raciais 45

Parecer no 505, de 1998 legais existentes. Pondera, nesse senti- do, que: o Da Comissão de Constituição, “A Lei n 7.347, de 24 de julho Justiça e Cidadania sobre o Projeto de de 1985, veio disciplinar a ação civil Lei do Senado no 114, de 1997, de auto- pública como instrumento processual ria do Senador Abdias Nascimento, que adequado para reprimir ou impedir da- “dispõe sobre a ação civil destinada ao nos ao meio ambiente, ao consumidor, a cumprimento da obrigação de fazer ou de bens e direitos de valor artístico, estéti- não fazer, para a preservação da honra e co, histórico, turístico e paisagístico. O dignidade de grupos raciais, étnicos e re- preceito constante do art. 1o da referida ligiosos”. lei visou, pois, proteger os interesses Relator: Senador Josaphat Marinho difusos da sociedade. A Constituição da República, no seu art. 129, inciso m, Relatório estendeu esta proteção aos interesses di- fusos e coletivos, incluindo aí os bens 1. Submete-se a esta Comissão, jurídicos a serem tutelados pelo Estado, para decisão terminativa, o PLS no 114, quando existente o dano praticado con- de 1997, que “dispõe sobre a ação civil tra a integridade fisica ou moral de al- destinada ao cumprimento da obrigação guém, em ofensa ao direito, decorrente de fazer ou de não fazer, para a preser- de preconceito e discriminação racial. vação da honra e dignidade de grupos Três meses após promulgada a raciais, étnicos e religiosos”. atual Constituição da República, surge 2. Destina-se, portanto, à institui- a lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, ção de ação civil que pode ser instaurada de autoria do Deputado Carlos Alberto pelo Ministério Público ou por entida- Caó, e prevê punição para “os crimes re- des de sociedade civil organizada com sultantes de preconceitos de raça ou de as finalidades de evitar ou interromper cor”, mas tão-somente no que se refere atos danosos à honra ou dignidade de a recusa ou impedimentos de acesso a grupos raciais, étnicos ou religiosos, e serviços, locais públicos a privados, a de obter a reparação de tais atos, quan- empregos e transportes. A Lei no 8 .081, do não seja possível evitá-los. Objetiva, de 21 de setembro de 1990, autor o ex- assim, “dotar os grupos em questão de -Deputado Ibsen Pinheiro, acrescentou um instrumento ágil e eficaz que lhes o art. 20 à Lei no 7.716/89, mas o ato possibilite enfrentar as manifestações discriminatório ou preconceituoso ali de racismo e discriminação que, infeliz- definido só se configura se cometido mente, ocorrem em nossa sociedade em “pelos meios de comunicação social ou vergonhosa proporção”. por publicação de qualquer natureza. 3. Justifica a necessidade da pro- “Inegável, portanto, a dispersão e preca- posta para suprir lacunas dos diplomas riedade da legislação atual sobre a ma- THOTH 6/ dezembro de 1998 46 Atuação Parlamentar

téria, a qual exige imediato aperfeiçoa- para tanto, sugestões apresentadas pela mento para uma aplicação eficaz”. Associação Nacional dos Procuradores 4. Para tal fim, o art. lo do proje- da República, subscritas pela Subprocu- to confere privativamente ao Ministério radora-Geral da República, Dra Ela Cas- Público a iniciativa para a proposição da tilho, Presidente da ANPR. ação civil cabível, e defere, no seu pará- 9. Com efeito, há que se afastar a grafo único, legitimidade subsidiária, para restrição configurada no art. 1o da propo- o mesmo propósito, à sociedade civil que sição original, segundo a qual a iniciativa preencha os requisitos enumerados nos in- cabe privativamente ao Ministério Pú- cisos I e II do parágrafo único daquele ar- blico. É a regra, neste tipo de legislação, tigo. O § 2º faculta outras sociedades civis que a iniciativa seja concorrente e não ou associações e habilitarem-se como li- sucessiva. Propõe-se, para tanto, emenda o tisconsortes de qualquer das partes. O § 3 modificativa ao caput desse artigo. prevê a substituição processual, em caso 10. Há que se afastar, também, a de desistência ou abandono da ação, por restrição segundo a qual o ingresso da sociedade ou associação legitimada pelo ação subordina-se a eventual inação do Ministério Público. Ministério Público, propondo-se, para 5. Prevê, nos demais artigos, nor- tanto, emenda modificativa ao parágra- mas processuais a serem atendidas pela fo único do art. 1o, que se transforma no ação civil pública. Estipula, no art. 5o, caput do artigo seguinte (art. 2o), para a cominação de penalidade diária, inde- conformá-lo à aludida regra da iniciati- pendentemente de requerimento do autor. va concorrente. 6. O art. 7o remete à criação do 11. Também o § 3o do art. 1o, deve fundo de defesa e combate ao racismo à ser ajustado a esta regra. Modifica-se a Secretaria Nacional de Direitos Huma- expressão “substituirá processualmen- nos, no prazo de 12 meses a contar da data da publicação da presente lei. te”, pois, sendo a competência concor- rente, “o Ministério Público ou outro 7. Já o art. 8o faz aplicar, subsidia- legitimado assumirá a titularidade ati- riamente ao disposto na lei, o “Código va.” Amplia-se essa possibilidade, pois Penal, o Código de Processo Penal e a se afasta a restrição de somente o Mi- Lei no 7.347, de 24 de julho de 1985”. nistério Público poder dar seguimento à É o relatório. ação, no caso de desistência ou abando- no por parte do autor original. Discussão A norma constitucional (art. 129, 8. A proposta examinada é com- §1º) diz quanto às funções institucionais patível com os novos parâmetros cons- do Ministério Público que: titucionais em vigor. Entretanto, algu- § 1o A legitimação do Ministério mas modificações ou reparos devem para as ações civis previstas neste arti- ser feitos ao texto proposto. Acatamos, go não impede a de terceiros, nas mes- Projetos de Lei Ação civil pela dignidade dos grupos raciais 47

mas hipóteses, segundo o disposto nesta “Art. 2o A ação principal e a cau- Constituição e na lei. telar poderão ser propostas pelo Minis- 12. Propõe-se, ainda, modifica- tério Público ou sociedade civil, caben- ção do art. 7o do projeto, pois tal como do a esta quando: está redigido, o artigo remete à criação I – esteia constituída há pelo me- do fundo de defesa e combate ao racis- nos um ano nos termos da lei civil; ou mo à Secretaria Nacional de Direitos II – inclua entre as suas finalida- Humanos, quando estes podem apenas des institucionais a proteção ou defesa ser criados através de lei. dos interesses de grupos raciais, étnicos 13. Por ser tratar de ação civil, há ou religiosos. o que se ajustar o art. 8 à legislação apro- o priada, aplicável subsidiariamente. Às § 1 O Ministério Público, se não ações civis aplicam-se os dispositivos intervier no processo como parte, atuará da lei civil e processo civil e não a lei obrigatoriamente como fiscal da lei. penal e o processo penal, como consta § 2o É facultado a outras socie- da relação original. dades civis ou associações, da mesma natureza das legitimadas, habilitarem-se Voto como litisconsortes de qualquer das par- tes. 14. Nessas condições, votamos pela aprovação do PLS no 114, de 1997, Emenda no 3 _ CCJ que, em verdade complementa a Lei no .716, de 5-1-89 e a de no 8.081, de 21-9- Dê-se ao § 3o do art. I o (renume- 90, com as seguintes emendas: rado para art. 2o) a seguinte redação: o Emenda no 1 _ CCJ Art. 1 ...... § 3o Em caso de desistência ou Dê-se ao caput do art. 1o a seguin- abandono da ação por sociedade ou as- te redação: sociação legitimada, o Ministério Públi- “Art. 1o É cabível ação civil tendo co ou outro legitimado assumirá a titu- por objeto impor obrigação de fazer, ou laridade ativa. não fazer, com a finalidade de: Emenda no 4 _ CCJ ...... ”

o Emenda no 2 _ CCJ Dê-se ao art. 7 do projeto a se- guinte redação: Dê-se ao parágrafo único do art. “Art. 7o Havendo condenação em 1o a seguinte redação, transformando-o dinheiro, a indenização pelo dano rever- em caput do artigo subsequente (art. 2o), terá a um fundo de defesa e combate ao renumerando-se os demais artigos: racismo, a ser instituído no prazo de um THOTH 6/ dezembro de 1998 48 Atuação Parlamentar

ano a contar da data da publicação desta Art. 2o A ação principal e a caute- lei”. lar poderão ser propostas pelo Ministé- rio Público ou sociedade civil, cabendo Emenda no 5 _ CCJ a esta quando: I – esteja constituída há pelo o Dê-se ao art. 8 do projeto a se- menos um ano nos termos da lei ci- guinte redação: vil; ou “Art. 8o Aplicam-se, subsidiaria- II – inclua entre as suas finalida- mente ao disposto nesta lei, o Código des institucionais a proteção ou defesa Civil, o Código de Processo Civil e a dos interesses de grupos raciais, étnicos Lei no 7.347, de 24 de julho de 1985.” ou religiosos. Sala das Comissões, 20 de maio § 1o O Ministério Público, se não de 1998 – Bernado Cabral – Presiden- intervier no processo como parte, atuará te – José Fogaça – Relator – Josaphat obrigatoriamente como fiscal da lei. Marinho – Arlindo Porto – Leomar § 2o É facultado a outras socie- Quintanilha – Levy Dias – Jefferson dades civis ou associações, da mesma Péres – José E. Dutra – Antonio Car- natureza das legitimadas, habilitarem- los Valadares – Romeu Tuma – Djal- -se como litisconsortes de qualquer das ma Bessa – Lúcio Alcântara. partes. § 3o Em caso de desistência ou TEXTO FINAL APROVADO PELA abandono da ação por sociedade ou as- CCJ, AO PROJETO DE LEI DO SE- sociação legitimada, o Ministério Públi- o NADO N 114, DE 1997 co ou outro legitimado assumirá a titu- laridade ativa. Dispõe sobre a ação civil destinada ao Art. 3o Convencendo-se o juiz da cumprimento da obrigação de fazer procedência da ação, concederá a ante- ou de não fazer, para a preservação cipação total ou parcial da tutela, antes da honra e dignidade de grupos ra- de ouvir a outra parte. ciais, étnicos e religiosos. Art. 4o Qualquer pessoa poderá, O Congresso Nacional decreta: e o servidor público deverá, provocar a iniciativa do Ministério Público, minis- Art. 1o É cabível ação civil tendo trando-lhe informações sobre os fatos por objeto impor obrigação de fazer, ou objeto da ação civil prevista nesta lei e não fazer, com a finalidade de: indicando-lhe os respectivos elementos I – evitar ou interromper atos da- de convicção. nosos à honra ou à dignidade de grupos Art. 5o Para instruir a petição in raciais, étnicos ou religiosos; e icial da ação civil, o autor poderá II – obter a reparação dos mes- requerer às autoridades competentes as mos atos, quando não evitados. certidões e informações que julgar ne- Projetos de Lei Ação civil pela dignidade dos grupos raciais 49

cessárias, que lhe serão fornecidas no dente da Comissão de Constituição, Jus- prazo máximo de quinze dias. tiça e Cidadania. Art. 6o Na ação civil que tenha por objeto a obrigação de fazer ou de OF. No 291/1998/CCJ não fazer, o juiz determinará o cum- primento da prestação de atividade, Brasília, 20 de maio de 1998 ou da cessação da atividade nociva, sob cominação de multa diária, inde- pendentemente de requerimento do Senhor Presidente, autor. § 1o A multa será devida a partir Nos termos regimentais, comu- a do dia em que se configurar descumpri- nico a V. Ex que em reunião realizada mento da determinação judicial. nesta data esta Comissão deliberou pela os o aprovação, com as emendas de n I a § 2 O valor da multa poderá ser 5 CCJ, do Projeto de Lei do Senado no elevado até ao triplo se, fixado pelo má- 114, de 1997, que “Dispõe sobre a Ação ximo, não se alterar o comportamento Civil destinada ao cumprimento da obri- do réu. gação de fazer ou de não fazer, para a Art. 7o O juiz, ao examinar o mé- preservação da honra e dignidade de rito, fixará o valor da reparação, consi- grupos raciais, étnicos e religiosos”. derada a extensão dos danos, desde que Cordialmente, – Senador Bernar- requerido na inicial da ação civil. do Cabral, Presidente da Comissão de Art. 8o Havendo condenação em Constituição, Justiça e Cidadania. dinheiro, a indenização pelo dano rever- terá a um fundo de defesa e combate ao Situação atual do projeto: tendo sido considerado racismo, a ser instituído no prazo de um aprovado definitivamente pelo Senado em 13-10- 98, foi encaminhado à Câmara dos Deputados, ano a contar da data da publicação desta onde recebeu o número PLno 4.800/98. Em 10-11- lei. 98 foi apresentado à Mesa da Câmara requerimen- Parágrafo único. O fundo de de- to solicitando urgência para tramitação do projeto, assinado pelos líderes de todos os partidos. A pe- fesa e combate ao racismo será ins- dido da liderança do Governo, o requerimento foi tituído em até doze meses a contar da retirado da pauta do Plenário . O projeto depende data de publicação desta Lei. de pareceres das Comissões de: Defesa do Consu- o midor, Meio Ambiente e Minorias e Constituição e Art. 9 Aplicam-se, subsidiaria- Justiça e de Redação. mente ao disposto nesta Lei, o Código Civil, o Código de Processo Civil e a Lei no 7.347, de 24 de julho de 1985. Art. 10. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação. Sala da Comissão, 20 de maio de 1998._ Senador Bernardo Cabral, Presi-

Emenda ao Projeto de Lei da Câ- EMENDA No I _ PLEN mara no 25, de 1997 Do Senador ABDIAS NASCIMENTO

Dá nova redação ao art. 33 Altere-se a redação do art. 1o do Projeto da Lei no 9.394, de 20-12-96 que de Lei da Câmara no 25, de 1997, para estabelece as diretrizes e bases da se dar aos parágrafos 1o e 2o do art. 33 educação nacional da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, a seguinte redação:

“Parágrafo único. Os sistemas de ensino estabelecerão: I – os objetivos do ensino religio- so e seus respectivos conteúdos progra- máticos; II – as normas para a habilitação e admissão dos professores; III – a regulamentação dos proce- dimentos para a definição dos objetivos e conteúdos previstos no inciso I deste parágrafo, incluindo sempre mecanis- mos para se ouvir as diferentes denomi- nações religiosas.” THOTH 6/ dezembro de 1998 52 Atuação Parlamentar

JUSTIFICAÇÃO Tal fato nos parece um indica- dor seguro de que seria desnecessária Tanto o parágrafo 1o quanto o a constituição de uma entidade civil parágrafo 2o do artigo 33, como estão permanente, quando comissões tempo- redigidos no Projeto da Câmara, falam rárias regulamentadas e criadas pelos em “definição dos conteúdos do ensino próprios sistemas de ensino oferecem religioso”. maior flexibilidade e mais facilidade Trata-se, portanto, de um deslize para o diálogo e o trabalho conjunto das que pode passar despercebido por quem denominações religiosas, além de se en- não é especialista em Educação, mas quadrarem dentro do espírito descentra- que salta aos olhos dos pedagogos, pois, lizador da LDB. de acordo com a moderna Pedagogia e Além disso, a redação do Projeto as Ciências da Educação, em primeiro dá a entender que haveria apenas uma lugar, devem ser definidos os objetivos entidade civil para todo o território na- educacionais, ou seja, os comportamen- cional, a qual deveria ser ouvida por tos que devem ser adquiridos, mudados quaisquer sistemas de ensino, federal, ou reafirmados pelo educando. Só então estadual ou municipal, que fossem regu- é que se selecionam os conteúdos pro- lamentar a matéria, o que dificultaria as gramáticos pois estes são meios para as decisões, sobrecarregaria a citada enti- mudanças comportamentais. dade e inviabilizaria a imediata regula- Consideramos, portanto, que de- mentação da matéria pelos sistemas de vem ser definidos, primeiro os fins que ensino. se tem em vista, para, só então, tratar dos meios para se atingi-los, o que justi- Analisando-se esta matéria pelo fica a aprovação desta Emenda. lado constitucional, acreditamos que a aprovação da redação dada pelo Projeto Quando ao parágrafo segundo temos outra observação, pois ele man- poderia gerar questionamentos no Poder da os sistemas de ensino ouvirem “en- Judiciário, pois a obrigatoriedade das tidade civil, constituída pelas diferentes instituições e grupos religiosos de cria- denominações religiosas”. rem uma entidade civil para represen- tá-los pode ser interpretada como uma A prática da criação, em algumas intromissão indevida no Estado na vida unidades da Federação, de Comissões, formadas com a participação de repre- das instituições privadas. sentantes das diferentes denominações Os dois parágrafos referem-se religiosas, para opinarem em relação a a incumbências que são estabelecidas assuntos relacionados com o ensino re- como responsabilidades dos sistemas de ligioso, tem sido uma experiência posi- ensino, e, portanto, as regras da boa téc- tiva pois todas elas cumpriram bem suas nica legislativa aconselham uma agluti- funções. nação dos dois dispositivos. Projetos de Lei Ensino religioso nas escolas públicas 53

Assim sendo, justifica-se a apro- vação desta Emenda Aglutinativa e de Redação. Sala das Sessões, 8 de julho de 1997. Senador ABDIAS NASCIMENTO.

Publicado no Diário do Senado Federal, de 9-7-97

Projeto de Resolução no 126, de O Congresso Nacional resolve: 1997 Art. 1o Fica instituído o Prêmio Institui o Prêmio Cruz e Sou- Cruz e Sousa, destinado a agraciar au- sa e dá outras providências. tores de trabalhos alusivos à comemo- ração do centenário de morte do poeta brasileiro, a ser celebrado em março de O projeto foi aprovado no 1998. Senado na sessão de 10 de dezem- Art. 2o Para proceder à apreciação bro de 1997, na Câmara dos Depu- dos trabalhos concorrentes será consti- tados, na sessão de 22 de janeiro de tuído um Conselho a ser integrado por 1998 e promulgado em 29 de janei- cinco membros do Congresso Nacional ro de 1998, por meio da Resolução e por seu Presidente que, por sua vez, no 1, de 1998-CN. fará a indicação desses parlamentares, logo após a aprovação deste Projeto de Resolução. Parágrafo único. A prerrogativa da escolha do Presidente do Conselho caberá aos seus próprios membros, que o elegerão entre seus integrantes. THOTH 6/ dezembro de 1998 56 Atuação Parlamentar

Art. 3o O teor do Prêmio Cruz e O início da carreira literária desse Sousa, bem como o formato, as regras e filho de escravos negros, quando ainda os critérios que presidirão à elaboração vivia em Santa Catarina, foi pontuada dos trabalhos concorrentes, serão suge- por páginas sentimentais e textos de ridos pelo Conselho à Mesa Diretora do cunho libertário,já que toda a sua obra Congresso Nacional e publicamente di- foi profundamente marcada pela luta vulgados. contra a escravidão e o preconceito ra- Art. 4o Os trabalhos concorrentes cial. deverão ser encaminhados à Mesa Di- Eventos de sua biografia, além retora do Congresso Nacional até o dia do fato de ser negro, justificam a ado- 19 de março de 1998, dia consagrado ao ção dessa bandeira de luta. Houve, in- centenário de morte do escritor Cruz e clusive, um momento em que o precon- Sousa. ceito o impediu de assumir o cargo de promotor, em Laguna, para o qual fora Art. 5o O Prêmio será conferido nomeado. em sessão do Congresso Nacional espe- cialmente convocada para este fim, a se Foi após a sua mudança para o realizar até o mês de junho seguinte. Rio de Janeiro, em 1890, que Cruz e Sousa integrou o primeiro grupo sim- o Art. 6 A Diretoria Geral ofere- bolista brasileiro, do qual se tomou cerá apoio administrativo ao funciona- expoente maior. Foi a partir de sua mento do Conselho. obra poética, segundo juízo dos mais Art. 7o Esta resolução entra em importantes historiadores da literatura vigor na data de sua publicação. brasileira, que se renovou a expressão poética em língua portuguesa, com a JUSTIFICAÇÃO incorporação de um código verbal pra- ticamente novo. Em boa hora vem o Congresso É intenção precípua da presente Nacional, por via legislativa, prestar proposta, dirigida, principalmente, para justa homenagem àquele que constitui as novas gerações, nessa quadra em que um dos marcos da literatura e da cultura a juventude mostra-se carente de parâ- brasileiras: o poeta Cruz e Sousa. metros cívicos e culturais: o resgate da Nascido em 24 de novembro de figura e da postura exemplar de Cruz e 1861, na cidade de Desterro, atual Flo- Sousa. rianópolis, em Santa Catarina, Cruz e Permitimo-nos lembrar, ain- Sousa viveu boa parte de sua vida no da, a dívida que a sociedade brasileira Rio de Janeiro, onde produziu a parce- contraiu com aqueles que abraçaram a la mais importante de sua extensa obra. bandeira de luta em favor dos espolia- Minado pela tuberculose, morreu preco- dos e excluídos, particularmente dos cemente, aos 36 anos, em Juiz de Fora, sumariamente discriminados por moti- Minas Gerais, em 19 de março de 1898. vos raciais. Nesse panorama, destaca- Projetos de Lei Prêmio Cruz e Sousa 57

-se Cruz e Sousa. Nas palavras de Alceu É, portanto, esse grande nome, Amoroso Lima, a grandiosidade de sua merecedor de nossa reverência, que o obra chamou a atenção para “esse hu- presente projeto de resolução pretende homenagear. É para a meritória iniciati- milde filho de uma raça que, até então, va que encarecemos o acolhimento pe- não produzira nenhuma figura marcante los ilustres pares. nas nossas letras”. Sala das Sessões, 25 de setembro Nesse final de século, em que as de 1997. reivindicações dos movimentos negros têm redundado em consideráveis avan- Senador ABDIAS NASCIMENTO ços sociais, é importante trazer à baila Senador ESPERIDIÃO AMIN. a figura de Cruz e Sousa, o homem e a obra. Publicado no Diário do Senado Federal, de 26-9-97

Parecer no 778, de 1997 Da Comissão de Educação, sobre o Pro- jeto de Resolução do Senado no 126, de 1997.

1. Relatório

O Projeto de Resolução no 126, de 1997, apresentado pelos senhores Sena- dores Abdias Nascimento e Esperidião Amin, institui o Prêmio Cruz e Sousa destinado a agraciar trabalhos alusivos à comemoração do centenário da morte do poeta brasileiro, que será celebrado em março de 1998. O projeto em tela prevê a cons- tituição de um Conselho que se in- cumbirá da apreciação e seleção dos trabalhos, bem como da definição do formato, das regras e dos critérios que THOTH 6/ dezembro de 1998 60 Atuação Parlamentar

nortearão a apresentação dos concor- muita batalha, seu próprio espaço rentes, devendo contar com ampla di- na sociedade e nas letras brasileiras, vulgação pública. conforme atestam passagens de sua biografia. Essa luta foi traduzida em O art. 4o do presente projeto fixa páginas que refletem seu espírito li- a data de 19 de março de 1998, cente- bertário e sua competente combativi- nário da morte do escritor Cruz e Sou- dade. sa, como prazo para a apresentação dos trabalhos à Mesa Diretora do Congresso Por tais méritos, o poeta já se faz Nacional. merecedor da importante homenagem proposta pelo Projeto em análise. A láurea será conferida em sessão do Congresso Nacional convocada es- No entanto, a relevância dessa pecialmente para este fim até junho de iniciativa reside, de igual modo, no 1998, conforme dispõe o art. 5o. imperativo de os poderes constituídos tomarem a dianteira no processo de O projeto estipula, ainda, que a resgate das figuras importantes da nos- Diretoria-Geral do Senado Federal ofe- sa história e da nossa tradição política, recerá suporte administrativo ao traba- para que possam ocupar o seu lugar lho do Conselho. de referência da sociedade brasileira, Em exame na Comissão de Edu- particularmente para as gerações mais cação do Senado Federal, o projeto jovens. não recebeu emendas no prazo regi- Um país define sua identidade mental. quando se reconhece em suas desta- cadas figuras históricas, que, no de- 2. Análise sempenho de diferentes atividades, contribuíram para a consolidação dos É bastante oportuna a iniciativa princípios democráticos. Trazer à luz do Congresso Nacional de se adian- o exemplo das referidas figuras é uma tar às comemorações do centenário prática que merece inteiro respaldo, de morte daquele que foi o maior dos pois é por seu intermédio que pode- nossos poetas simbolistas. Além de sua mos exercer plenamente a nossa cida- importante obra literária -assim reco- dania. O presente projeto cumpre esse· nhecida por destacados historiadores propósito. da literatura brasileira-, merece desta- 3. Voto que sua trajetória de engajamento con- tra as perversas consequências do pre- Nesse sentido, por considerar- conceito racial. mos que a meritória proposta em exa- Filho de escravos, como bem me se encontra em perfeita consonân- informa a justificação do Projeto, cia com os ditames constitucionais, Cruz e Sousa teve que buscar, com além de não apresentar óbices de na- Projetos de Lei Prêmio Cruz e Sousa 61

tureza jurídica, pronunciamo-nos favo- ravelmente à aprovação do Projeto de Resolução no 126, de 1997. Senador OTONIEL MACHADO Relator.

Publicado no Diário do Senado Federal, de 28·11-97

Parecer no 779, de 1997 Da Comissão Diretora, sobre o Proje- to de Resolução do Senado no 126, de 1997.

1. Relatório

Vem ao exame desta Comissão Diretora o Projeto de Resolução do Se- nado no 126 de 1997, CN, de autoria dos nobres Senadores Abdias Nascimento e Espiridião Amin, instituindo o Prêmio Cruz e Sousa, destinado a agraciar au- tores de trabalhos alusivos à comemora- ção do centenário da morte desse gran- de poeta simbolista, que transcorrerá no mês de março de 1998. O projeto estabelece: THOTH 6/ dezembro de 1998 Projetos de Lei 64 Atuação Parlamentar Prêmio Cruz e Sousa 65

I – que o Presidente do Congres- 2. Parecer Assim sendo, não hesitamos em A obra de Cruz e Sousa so Nacional indicará cinco parlamenta- propor a aprovação do presente projeto imensamente repousa res para compor um Conselho, ao qual A proposta sob exame se inse- de resolução, que homenageia de forma em “Tropas e fantasias’. incumbirá: merecida esta figura ímpar de nossas le- re nas comemorações do centenário da Em “Missal” e “Evocações “, morte do grande poeta simbolista brasi- tras nacionais. Pois: a) eleger seu Presidente; “Broquéis “, “Faróis “, Emoções leiro João de Cruz e Sousa. O resgate da memória, de um mundo de poesias. b) apreciar os trabalhos concorren- Nascido em 24 de novembro de da vida, da trajetória tes; 1861, filho de escravos, Cruz e Sousa, Acato o requerimento do vate catarinense sofrendo toda espécie de preconceitos, c) sugerir à Mesa Diretora do Con- e lhe dou deferimento conseguiu sobrepujar as dificuldades é gesto para ser louvado gresso, para divulgação pública, o por seu aspecto legal. econômicas e sociais que marcaram sua é mérito para o Senado teor do Prêmio, bem como o forma- Será um belo concurso vida e conquistar, por meio de seu ta- to, as regras e os critérios que pre- é honra que nos pertence. lento e de sua brilhante criação literária, e vai ter muito discurso sidirão a elaboração dos trabalhos O poeta simbolista um lugar de destaque no panteão dos na sua terra natal. concorrentes; integra pequena lista grandes escritores brasileiros de todos de poetas geniais. Os autores, na verdade, II – que os trabalhos deverão os tempos. Tem uma história bonita. revelam identidade ser encaminhados à Mesa Diretora Infelizmente, homenagear os é triste, mas não evita que cada história projeta. do Congresso até o dia 19 de março grandes vultos de nosso passado históri- de 1998, data em que se comemora o co e cultural é um costume que não tem belezas sentimentais. Abdias pela raça. centenário da morte do escritor Cruz sido cultivado com a intensidade que a E Amin por ter graça e Sousa. nossa nacionalidade merece. Tanto mais Era filho de um escravo, de ser da mesma praça mas, preto e pobre, foi bravo III – que o prêmio será conferi- no caso de Cruz e Sousa, representante onde nasceu o poeta. do em sessão do Congresso Nacional de uma raça submetida a uma das mais ante tudo que sofreu. especialmente convocada para este odiosas e indignas discriminações que Casou com Gavita Rosa, O meu voto é favorável o ser humano já pôde perpetrar contra fim, a se realizar até o mês de junho que morreu tuberculosa, a essa justa medida. seguinte; seus semelhantes. como o poeta morreu. Que nosso plenário acate Por isso tudo, a iniciativa de essa homenagem ao vate IV – que a Diretoria-Geral ofere- resgatar a memória de Cruz e Sousa, cerá o apoio administrativo necessário Sua esposa enlouqueceu que vai servir de resgate na oportunidade do centenário de sua ao funcionamento do Conselho. depois que um filho morreu duma história e duma vida. morte, mediante a instituição do prê- e um outro morreu depois. O projeto foi submetido à Comis- mio proposto, só pode merecer todo o Senador RONALDO CUNHA LIMA E a morte, não satisfeita, são de Educação que, considerando-o, nosso apoio, pois irá redundar, certa- Relator além de meritório, jurídico e constitu- mente, em lições de civismo e digni- ainda ficou na espreita cional, manifestou-se favoravelmente à dade, de que sua vida e sua obra estão e em breve levou os dois. Publicado no Diário do Senado Federal, de 28-11-97 sua aprovação. repletas, erigindo-se em exemplo a ser perenizado na lembrança de nosso É o relatório. povo. Projetos de Lei Prêmio Cruz e Sousa 65

Assim sendo, não hesitamos em A obra de Cruz e Sousa propor a aprovação do presente projeto imensamente repousa de resolução, que homenageia de forma em “Tropas e fantasias’. merecida esta figura ímpar de nossas le- Em “Missal” e “Evocações “, tras nacionais. Pois: “Broquéis “, “Faróis “, Emoções O resgate da memória, de um mundo de poesias. da vida, da trajetória Acato o requerimento do vate catarinense e lhe dou deferimento é gesto para ser louvado por seu aspecto legal. é mérito para o Senado Será um belo concurso é honra que nos pertence. e vai ter muito discurso O poeta simbolista na sua terra natal. integra pequena lista de poetas geniais. Os autores, na verdade, Tem uma história bonita. revelam identidade é triste, mas não evita que cada história projeta. belezas sentimentais. Abdias pela raça. E Amin por ter graça Era filho de um escravo, de ser da mesma praça mas, preto e pobre, foi bravo onde nasceu o poeta. ante tudo que sofreu. Casou com Gavita Rosa, O meu voto é favorável que morreu tuberculosa, a essa justa medida. como o poeta morreu. Que nosso plenário acate essa homenagem ao vate Sua esposa enlouqueceu que vai servir de resgate depois que um filho morreu duma história e duma vida. e um outro morreu depois. Senador RONALDO CUNHA LIMA E a morte, não satisfeita, Relator ainda ficou na espreita e em breve levou os dois. Publicado no Diário do Senado Federal, de 28-11-97

Ato do Congresso Nacional Faço saber que o Congresso Na- cional aprovou, e eu, Antonio Carlos Magalhães, Presidente do Senado Fe- Promulga a Resolução no 1, de deral, nos termos do parágrafo único do 1998-CN, que institui o art. 52 do Regimento Comum, promul- Prêmio Cruz e Sousa go a seguinte

RESOLUÇÃO

No 1, DE 1998-CN

Institui o Prêmio Cruz e Sousa e dá outras providências,

O Congresso Nacional resolve: Art, 1o É instituído o Prêmio Cruz e Sousa, destinado a agraciar autores de trabalhos alusivos à comemoração do centenário de morte do poeta brasileiro, a ser celebrado em março de 1998, THOTH 6/ dezembro de 1998 68 Atuação Parlamentar

Art. 2o Para proceder à apreciação ço de 1998, dia consagrado ao centená- dos trabalhos concorrentes será consti- rio de morte do escritor Cruz e Sousa. tuído um Conselho a ser integrado por Art. 5o O Prêmio será conferido cinco membros do Congresso Nacional em sessão do Congresso Nacional espe- e por seu Presidente que, por sua vez, cialmente convocada para este fim, a se fará a indicação desses parlamentares, realizar até o mês de junho seguinte. logo após a aprovação desta Resolução. Art. 6o A Diretoria-Geral do Se- nado Federal oferecerá o apoio adminis- Parágrafo único. A prerrogativa trativo ao funcionamento do Conselho. da escolha do Presidente do Conselho o caberá aos seus próprios membros, que Art. 7 As despesas decorrentes da aplicação desta Resolução correrão à o elegerão entre seus integrantes. conta do orçamento do Senado Federal. Art. 3o O teor do Prêmio Cruz e Art. 8o Esta resolução entra em Sousa, bem como o formato, as regras e vigor na data de sua publicação. os critérios que presidirão a elaboração dos trabalhos concorrentes, serão suge- Senado Federal, 29 de janeiro de 1998 ridos pelo Conselho à Mesa do Congres- so Nacional e publicamente divulgados. Senador ANTONIO CARLOS MAGALHÃES Presidente do Senado Federal. Art. 4o Os trabalhos concorrentes deverão ser encaminhados à Mesa do Congresso Nacional até o dia 19 de mar- Publicado no Diário Oficial da União, de 30-1-98 Projeto de Lei do Senado no O CONGRESSO NACIONAL 234, de 1997 decreta:

o Inscreve os nomes de João de Deus Nasci- Art. 1 Em memória aos duzen- mento, Manuel Faustino dos Santos Lira, tos anos da Conjuração Baiana de 1798, Luís Gonzaga das Virgens e Lucas Dantas serão inscritos no “Livro dos Heróis da Torres, líderes da Conjuração Baiana de Pátria”, que se encontra no Panteão da 1798, no “Livro dos, Heróis da Pátria”. Liberdade e da Democracia, os nomes de seus líderes: João de Deus Nascimento, Manuel Faustino dos Santos Lira, Luís Gonzaga das Virgens e Lucas Dantas Torres.

Art. 2o Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.

JUSTIFICAÇÃO

A Conjuração Baiana, conhecida como revolta dos Alfaiates, ocorrida na Bahia, em 1798, e um dos mais impor- tantes movimentos sociais de contesta- ção do Brasil Colônia contra a Metró- pole, padece de um esquecimento que merece reparação. THOTH 6/ dezembro de 1998 70 Atuação Parlamentar

A história oficial tem dedicado rios baianos, todos mulatos e pardos, muito de seu tempo e empenho no senti- lutaram pela emancipação dos escra- do de esclarecer e difundir a relevância vos, perseguindo o ideal de instalação da Inconfidência Mineira, acontecida de um governo competente que não nove anos antes, em Minas Gerais, e fizesse distinção de raça entre os ci- perpetuada graças à justa magnitude que dadãos. tem sido conferida à figura de seu líder máximo, Joaquim José da Silva Xavier, Sentenciados com a pena de mor- o Tiradentes. te, os líderes João de Deus Nascimento, Manuel Faustino dos Santos Lira, Luís Há, no entanto, uma caracterís- tica que precisa ser resgatada e que Gonzaga das Virgens e Lucas Dantas é fundamental para a compreensão, Torres foram executados e tiveram seus tanto daquele período, quanto do pa- corpos esquartejados. Como Tiradentes, pel desempenhado pela Conjuração foram marcados para o sacrifício, como Baiana na história brasileira. Em Mi- forma de aplacar a fúria da Coroa por- nas, o movimento revolucionário foi tuguesa, e demonstraram a bravura dos eminentemente político e conduzido mártires. por intelectuais, sacerdotes e abonados A intenção da presente iniciativa, proprietários de terras. Na Bahia, ao portanto, reside, sobretudo, no resgate contrário, a insurreição assumiu um ca- desses humildes heróis brasileiros, que, ráter social e foi liderada por gente do tanto quanto Tiradentes, simbolizam o povo, como alfaiates e soldados, todos espírito republicano. Mais que isso, ma- mulatos e pobres, sem nenhuma perso- terializam a luta contra o preconceito nagem de destacada situação na escala racial e o lançamento das bases de uma social. sociedade democrática. Uma das suas Contudo, tanto a Inconfidência proclamações, divulgada em plena re- Mineira quanto a Conjuração Baiana volução, declarava: “Quer o povo que foram movimentos que contribuíram todos os membros militares de linha, de modo definitivo para a liberdade do milícia e ordenanças, homens brancos, País, abrindo caminho para o grito da Independência e os primeiros passos da pardos e pretos concorram para a liber- República. dade popular.” Revolução articulada nas ruas A inscrição dos líderes da Conju- entre escravos e libertos, soldados e ração Baiana no “Livro dos Heróis da artífices, operários e agricultores, o Pátria”, permanentemente depositado movimento baiano teve o objetivo de no Panteão da Liberdade e da Democra- propiciar aos homens do povo acesso cia, promove o justo resgate, para a cena aos postos de trabalho que lhes eram brasileira, de um importante episódio da negados por mero preconceito de cor. história nacional, no momento em que Em última instância, os revolucioná- ele completa duzentos anos. Projetos de Lei Conjuração Baiana 71

Nesse sentido, considerando sua oportunidade, esperamos a acolhida do presente Projeto de Lei pelos ilustres pares.

Sala das Sessões, 23 de outubro de 1997.

Senador ABDIAS NASCIMENTO

Publicado no Diário do Senado Federal, de 24-10-97

Situação atual do projeto: Comissão de Educação do Senado com minuta de relatório favorável do relator, Senador Lúcio Alcântara, desde 26-11-97, aguardando inclusão em pauta.

Proposta de Emenda à Constituição As Mesas da Câmara dos Deputa- no 38, de 1997 dos e do Senado Federal, nos termos do art. 60 da Constituição Federal, promul- gam a seguinte emenda ao texto consti- Altera os arts. 49, 129 e 176 e tucional: acrescenta o art. 233 ao Capítulo Art. 1o O inciso XVI do art. 49 VIII do Título VIII da Constituição da Constituição Federal passa a vigorar Federal, para garantir às comunida com a seguinte redação: des remanescentes dos quilombos os “Art.49 ...... direitos assegurados às populações XVI – autorizar, em terras indí- indígenas. genas ou ocupadas pelos remanescentes dos quilombos, a exploração e o apro- veitamento de recursos hídricos e a pes- quisa e lavra de riquezas minerais.” Art. 2o O inciso V do art. 129 da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação: “Art. 129...... V – defender judicialmente os di- reitos e interesses das populações indí- genas e das comunidades remanescentes dos quilombos.” THOTH 6/ dezembro de 1998 74 Atuação Parlamentar

Art. 3o O § 1o do art. 176 da Cons- propriedade definitiva das terras ocupa- tituição Federal passa a vigorar com a das pelos remanescentes das comunida- seguinte redação: des dos quilombos e determinou que o “Art. 176...... Estado emitisse os títulos respectivos. § Io A pesquisa e a lavra de re- Em obediência às determinações cursos minerais e o aproveitamento dos da Lei Maior, o Instituto Nacional de potenciais a que se refere o caput deste Colonização e Reforma Agrária (IN- artigo somente poderão ser efetuados CRA) outorgou, em 1995, títulos de pro- mediante autorização ou concessão da priedade a três comunidades localizadas União, no interesse nacional, por brasi- no Pará. Nesse mesmo Estado, estão em leiros ou empresa constituída sob as leis curso levantamentos para a titulação de mais cinco áreas destinadas a herdeiros brasileiras e que tenha sua sede e admi- dos quilombos. nistração no País, na forma da lei, que estabelecerá as condições específicas Em São Paulo e no Maranhão, quando essas atividades se desenvolve- realizam-se a identificação e o levan- rem em faixa de fronteira, terras indíge- tamento fundiário de comunidades re- nas ou terras ocupadas pelas comunida- manescentes, com vistas à concessão de des remanescentes dos quilombos.” títulos de propriedade. Art. 4o O Capítulo VIII do Título Além disso, organismos gover- VIII da Constituição Federal passa a de- namentais vêm desenvolvendo progra- nominar-se “Dos Índios e Das Comuni- mas voltados para essas comunidades dades Remanescentes dos Quilombos”. negras, com o fim de lhes garantir a exploração agronômica do território, de o Art. 5 Adicione-se ao Capítulo forma compatível com a preservação de VlII, Título VIII da Constituição Fede- sua identidade cultural. ral o art. 233, com a seguinte redação, Entretanto, passados quase dez renumerando-se os arts. subsequentes: anos do ordenamento constitucional, “Art. 233. Aplicam-se às comu- pouco se fez para efetivar os direitos ter- nidades remanescentes dos quilombos ritoriais reconhecidos aos mais de 600 que ocupam suas terras tradicionais as grupos remanescentes dos quilombos, disposições constantes dos arts. 231 e existentes em dezessete estados brasi- 232.” leiros. Ademais, os inúmeros conflitos Art. 6o Esta emenda entra em vi- entre comunidades quilombolas e fa- gor na data de sua publicação. zendeiros, grileiros, madeireiros e mine- radoras retratam a dimensão dos riscos que ameaçam aquelas comunidades, os JUSTIFICAÇÃO quais poderão impedir a consecução dos A Constituição Federal de 1988, direitos outorgados pela Lei Magna. no artigo 68 do Ato das Disposições Observe-se, a propósito, que às Constitucionais Transitórias, concedeu a garantias constitucionais conferidas aos Proposta de emenda à Constituição Garantia às comunidades remanescentes dos quilombos 75 dos direitos assegurados às populações indígenas

remanescentes dos quilombos não se se- direitos dos remanescentes da resistência guiu, como no caso das populações indí- heróica dos quilombos brasileiros. genas, a declaração de nulidade dos atos Sala das Sessões, 24 de outubro de que tenham por objeto a ocupação, o do- 1997. mínio ou a posse de suas terras. Assim, o decurso do tempo, em razão do não cum- Senadores ABDIAS NASCIMENTO primento imediato da Carta Magna, é alia- (1o Signatário) (PDT-RJ) – Emília Fernan- do daqueles que obstam a efetivação dos des – Joel de Hollanda – Waldeck Ornelas direitos assegurados aos quilombolas. – Romero Jucá – João França – João Ro- A presente Proposta de Emenda à cha – Esperidião Amin – Roberto Requião Constituição tem o objetivo de impedir – Benedita da Silva – Gerson Camata – que se concretizem os obstáculos apos- Nabor Júnior – Eduardo Suplicy – Júnia tos à efetivação das garantias constitu- Marise – Roberto Freire – Antonio Carlos cionais conferidas às comunidades re- Valadares – Sebastião Rocha – Jonas Pi- manescentes dos quilombos. Com essa nheiro – Ademir Andrade – Epitácio finalidade, propomos estender às cita- Cafeteira – Pedro Simon – José Alves das comunidades os direitos concedidos – Ramez Tebet – Osmar Dias – Elcio Al- aos índios, bem como assegurar-lhes as varez – Frencelino Pereira – Levy Dias – cautelas prescritas pela Lei Maior no Lauro Campos – José Eduardo Dutra. tratamento das questões que envolvem as populações indígenas, com vistas à Publicado no Diário do Senado Federal, de 25-10-97 sua preservação física e cultural. Estamos convencidos de que os Situação atual do projeto: Comissão de Constitui- membros das Casas que compõem o ção, Justiça e Cidadania do Senado, aguardando Congresso Nacional serão sensíveis à parecer do relator, Senador Lúcio Alcântara, desde necessidade de garantir efetivamente os 11-3-98.

Discurso proferido em 18 de novembro de 1998

Homenagem a Zumbi dos Palmares

Pronunciamentos Senhor Presidente, Senhoras e Senhores Senadores, Sob a proteção de Olorum, inicio este pronunciamento.

Tomado de emoção e orgulho cívi- co, assumo hoje esta tribuna para prestar minha homenagem ao maior herói da luta pela justiça e a liberdade neste País. Ao ho- mem cuja trajetória de coragem, determi- nação e sacrifício o transformou no para- digma de todos os brasileiros que, embora compondo a imensa legião dos excluídos, dos discriminados, dos destituídos, não obstante se recusam a assumir o papel de inferiores a eles destinado por uma elite parasitária e insensível. Refiro-me ao gran- THOTH 6/ dezembro de 1998 78 Atuação Parlamentar

de Zumbi dos Palmares, líder de uma mão ou graças ao relato de fascinados comunidade guerreira que se constituiu cronistas árabes, de seus reinos e im- no mais dignificante exemplo da luta périos, de cidades fabulosas em que se contra a escravidão imposta aos - vendiam livros a peso de ouro e sal, de nos nas Américas. reis poderosos comandando exércitos 20 de novembro é o Dia da Cons- irresistíveis. Gana, Mali, Songhai, Ka- ciência Negra. Minha consciência evoca nem-Bomu – nomes que despertavam minha infância e juventude – e lá se vão curiosidade, cobiça e medo. Os mesmos tantas décadas. A educorada História sentimentos experimentados, nos pri- do Brasil que se ensinava nas escolas mórdios da história, pelos hebreus e pe- los gregos, cujo imenso débito secular- nem sequer mencionava a epopeia de mente acumulado em seu contato com a Palmares, limitando-se a descrever os civilização africana do Egito jamais se quilombos como “valhacouto de negros poderá quitar, pois que nele se incluem fugidos”, na expressão até hoje registra- os próprios fundamentos científicos, fi- da em nosso mais importante dicionário. losóficos e religiosos da civilização oci- Privava-se, desse modo, as crianças bra- dental. O fato de tudo isso parecer hoje sileiras, de todas as cores e origens, de fantasioso e irreal demonstra o sucesso conhecer não apenas a figura heróica de desse infame empreendimento. Mas, Zumbi, mas toda a saga de crueldade e como já se disse, não é possível enganar revolta, suplício e redenção, sofrimento todo mundo o tempo todo. e bravura que se desenrolou nos quase A redução de africanos à con- quatro séculos de escravidão negra no dição de escravos e sua maciça trans- Brasil. Contribuiu-se, desse modo e de- ferência forçada para o Novo Mundo cisivamente, na construção do mito da constitui terreno fértil para os falsários docilidade dos negros, supostamente da história, travestidos de cientistas e conformados – e quem sabe até agra- abrigados sob pomposos títulos aca- decidos – ante a dominação europeia, dêmicos. Ainda ontem, era comum exercida em nome da civilização e do encontrar, em nossos livros didáticos, cristianismo. referências a uma suposta “docilidade” Na verdade, a falsificação da his- dos africanos, que teriam aceito quase tória do Brasil fazia parte, como conti- passivamente a escravidão. Se isso fosse nua fazendo, de um processo mais am- verdade, como seria possível explicar os plo de perversão intelectual, iniciado em cruéis instrumentos de tortura emprega- fins do século XVIII, com o propósito dos pelos escravagistas para garantir tal de justificar a escravização de africa- “docilidade”? Na verdade, a história da nos e a transformação de seu continente presença africana no Brasil é uma histó- numa colcha de retalhos a ser pilhada e ria marcada, de maneira indelével, pela saqueada pelos cúpidos interesses eu- resistência ao escravismo, manifesta de ropeus. Até então, a Europa conhecia a todas as formas possíveis: desde o suicí- história da África. Sabia, em primeira dio e o infanticídio – pessoas matavam Pronunciamentos Homenagem a Zumbi dos Palmares 79

os filhos para que estes não crescessem do provocou calafrios na elite fundiária como escravos –, passando pela pura e que governava a Colônia. Seus piores simples fuga, até a revolta organizada pesadelos se haviam concretizado. contra todo um sistema. Quase todas Para apreendermos plenamente o essas formas de resistência ocorreram que isso significava, é necessário enten- onde quer que tenha havido africanos der o que representava a escravidão na escravizados. Uma delas, porém, teve vida da Colônia. Não se tratava da es- no Brasil os seus exemplos mais bri- cravidão do mundo antigo, a que todos lhantes. Refiro-me à resistência organi- os povos um dia se viram submetidos. zada, da qual os quilombos constituem A nova escravidão, introduzida com o a mais relevante manifestação em todo mercantilismo, constituía a base, o es- o continente. teio de todo um modo de produção que Reza a história que os primeiros se estava implantando no Novo Mun- africanos chegaram ao Brasil já nas do. Desse modo, toda a economia de décadas iniciais da colonização portu- Pernambuco – como, de resto, de toda guesa, trazidos para as lavouras de cana a Colônia – dependia da exploração da de açúcar que começavam a pontilhar mão de obra africana. Isso, se por um o litoral, desde São Vicente (atual São lado produzia grande fausto e riqueza, Paulo) até o Recife. Não se está falan- ao mesmo tempo sustentava um sistema do, evidentemente, dos muitos africanos profundamente desigual e injusto, em que faziam parte das tripulações dos que essa mesma riqueza se concentrava navios exploradores europeus, tampou- nas mãos de pouquíssimos, enquanto até co daqueles que, segundo nos mostram mesmo os brancos pobres sobreviviam numerosos registros arqueológicos, esti- em meio à fome e à miséria. Afinal, a veram na futura América muito antes de região sequer produzia alimentos para Colombo. Falamos somente dos que fo- sua população, apenas cana de açúcar ram arrancados à força de sua terra natal para atender à demanda externa. Os ri- e trazidos para uma terra estranha, sob o cos não se importavam com isso, uma jugo do crudelíssimo imperialismo por- vez que consumiam alimentos importa- tuguês. É significativo, portanto, que já dos de Portugal e de outras colônias. O em princípios do século XVI um desta- camento do Exército colonial português descaso que manifestavam quanto à sor- tenha descoberto na região que chama- te de seus compatriotas – para não falar ram de Palmares, na Serra da Barriga, dos africanos, aos quais sequer reconhe- interior da Capitania de Pernambuco, ciam a humanidade – ficaria marcado na área que hoje pertence ao Estado de Ala- mentalidade das elites brasileiras, que goas, um agrupamento organizado de desde então se acostumaram a desprezar negros fugidos da escravidão. Tão orga- os excluídos de qualquer origem. nizado que conseguiu derrotar os solda- Ao primeiro contato militar com dos portugueses, obrigados a fugir para Palmares, seguiram-se dezenas de ou- salvar a pele. O relato por estes produzi- tros. Mais de 30, assinalam os registros THOTH 6/ dezembro de 1998 80 Atuação Parlamentar

históricos, em cerca de 90 anos. Na Embora forçada pelas circunstân- maioria deles, os portugueses foram re- cias a viver num clima de guerra cons- chaçados. Como explicar essa resistên- tante, a sociedade palmarina, segundo cia dos palmarinos, senão reconhecendo os parcos relatos disponíveis, era carac- a extraordinária capacidade de organi- terizada por uma convivência extraordi- zação militar de seu povo? Sua tática nariamente democrática para os padrões era a mesma dos resistentes de todos os da época – em especial, quando se con- tempos: a guerrilha. Fugir antes da che- sidera o autoritarismo exacerbado e a gada de seus perseguidores, embrenhar- violência institucional que marcavam a vida na Colônia. Prova disso é a atração -se no mato e emboscá-los, para depois que Palmares exercia não apenas sobre desaparecer na selva. Quando necessá- negros, mas também sobre índios e até rio, todos eram mobilizados, inclusive sobre brancos, estes últimos refugiados as mulheres, cuja “ferocidade” provoca- dos maus tratos e da fome a eles reser- va surpresa entre os portugueses, acos- vados pelo sistema colonial. Registra-se tumados a relegar suas mulheres às tare- que, no seu apogeu, Palmares podia ser fas domésticas. descrita como uma sociedade multirra- Foi assim, em meio a uma guer- cial em que os não negros representa- ra constante, enfrentando portugueses e vam cerca de 20 por cento da população. holandeses – que chegaram a celebrar Não consta que fossem desprezados ou uma trégua apenas para poderem ter discriminados. melhor condição de derrotá-los –, que O crescimento do que viria a ser os palmarinos conseguiram prosperar conhecido como a República de Pal- e expandir seu território, dividido entre mares e a aparente impossibilidade de os diferentes “mocambos” que o consti- derrotá-Ia militarmente acabou levan- tuíam. O pouco que se sabe sobre esse do o Governador Pedro de Almeida, povo guerreiro indica que vivia uma em 1678, a propor um pacto com os vida simples, mas digna. Muito melhor, palmarinos, então liderados por Ganga com toda a certeza, do que a maioria dos Zumba, conhecido como o “mestre dos súditos portugueses. A agricultura, pra- mestre, da guerra”. Aceitando a paz com ticada com as técnicas milenarmente co- os brancos, Ganga Zumba receberia o nhecidas na África, que incluíam a rota- posto de oficial do Exército português. Em contrapartida, ele e seus homens se ção de culturas, produzia uma fartura de comprometeriam a caçar pessoalmente legumes, verduras e frutas, muitas vezes os escravos fugidos e entregá-los aos comercializados com fazendeiros vizi- antigos donos. O “sim” de Ganga Zum- nhos – o que motivou a promulgação de ba ao governador português provocou um decreto proibindo esse comércio. uma divisão irreconciliável no quilom- Lembremo-nos de que Palmares bo. Muitos guerreiros consideraram seu não praticava a monocultura de expor- gesto uma traição, à frente deles um tação... jovem de nome Zumbi. Ganga Zumba Pronunciamentos Homenagem a Zumbi dos Palmares 81

acabaria morrendo por envenenamento, forma de dobrar Zumbi: derrotando- outra técnica milenarmente desenvolvi- -o militarmente. E só um homem seria da em solo africano e transplantada para capaz de fazê-lo. O governador enviou as Américas, onde haveria de fazer mui- seus emissários em busca do paulista tas vítimas entre os senhores de escra- Domingos Jorge Velho. vos e suas famílias. Em nossos livros de história, os Zumbi viera à luz em Palmares, bandeirantes são apresentados como no ano de 1655, logo após a expulsão figuras respeitáveis, de longas barbas, dos holandeses de Pernambuco. Cap- em trajes vistosos, botas de cano alto, a turado, ainda bebê, por uma expedição quem devemos a expansão do território enviada pelo Governador Francisco brasileiro para muito além dos limites Barreto, fora entregue ao padre Antônio definidos pelo Tratado de Tordesilhas. Melo, na vila de Porto Calvo, que servia Apenas parte disso é verdade. Com efei- de base de operações contra o quilom- to, os bandeirantes eram uma gente rude bo. Desde cedo, o menino, batizado de e sanguinária, cuja menção não evocava Francisco, revelara dotes de grande in- admiração e respeito, mas sim temor e teligência. Aprendeu a ler e a escrever, desprezo. Sujos, descalços e cobertos de e se tomou coroinha, privilégios quase andrajos, dedicavam-se à ignóbil ativi- inatingíveis para alguém de sua origem dade de “prear” – que significa caçar – – ainda mais se considerarmos que qua- índios e negros fugidos da escravidão. se todos os senhores de escravos eram Filhos de homens portugueses e mulhe- analfabetos. Tudo isso, porém, não foi res indígenas, e portanto mamelucos, suficiente para lhe comprar a alma. Po- cumpriam fielmente o papel de sabujos de-se imaginar a surpresa do benevolen- do colonialismo português. Modelos, te padre Melo quando Francisco, aos 15 portanto, do tipo de miscigenação mais anos, atendendo aos apelos mais fortes tarde apresentado como o ideal de uma de seu coração africano, fugiu de Porto suposta civilização luso-tropical. Calvo em demanda de Palmares. Morria Domingos Jorge Velho era, tal- Francisco e nascia Zumbi. vez, o mais acabado protótipo dessa es- Com a morte de Ganga Zumba, o pécie de lixo humano. O mais indicado, jovem Zumbi se viu guindado à posição portanto, para a difícil tarefa de derrotar de líder do quilombo. Foi nessa condi- Zumbi. Aceita a empreitada, não perdeu ção que, em 1670, recebeu do novo Go- tempo. Enquanto reunia o maior exérci- vernador da Capitania, Aires de Sousa to que o Brasil já conhecera, constituído e Castro, a mesma oferta antes feita a principalmente de mamelucos, tratou de Ganga Zumba: “perdão” e liberdade, montar uma infraestrutura bélica formi- para ele e para os seus. Em troca, a trai- dável para a época, graças aos recursos ção à causa. Vendo sua oferta peremp- disponibilizados por um governo que toriamente recusada, o governador foi sabia estar jogando uma cartada decisi- obrigado a reconhecer que só havia uma va. Ainda, os quilombolas, confirmando THOTH 6/ dezembro de 1998 82 Atuação Parlamentar

sua tradição guerreira, souberam vender vieram a ser conhecidas como Revoltas caro a derrota. Foram necessárias mui- dos Malês, assim como motivou a cha- tas investidas, e algumas derrotas, para mada Revolta dos Búzios, ou Conjura- que o exército de Domingos Jorge Velho ção Baiana, movimento popular, a ferro conseguisse penetrar no quilombo do e fogo reprimido, que – diferentemente Macaco, maior e mais importante mo- da Conjuração Mineira – associava as cambo, impregnando o solo da serra de bandeiras da independência e da aboli- sangue africano. Era setembro de 1694. ção da escravatura. Zumbi, contudo, não fora captu- Hoje, 303 anos transcorridos des- rado. Junto com um punhado de seus de o assassinato de Zumbi, os descen- homens, embrenhara-se no mato, em dentes de africanos no Brasil continu- refúgio seguro, buscando recobrar as am subjugados por um sistema que os forças, reorganizar-se e contra-atacar. oprime, humilha e exclui. Ainda esta E talvez conseguisse fazê-lo, não fosse semana, a Folha de São Paulo publica- um capricho da sorte. Um ano depois, va reportagem, baseada em dados do em setembro de 1695, o mulato Antônio IBGE, mostrando, entre outros índices Soares, que chefiava um destacamento de desigualdade racial, que a mortalida- de Zumbi, foi capturado e, submetido às de infantil é muito maior para negros do mais cruéis torturas, obrigado a trair seu que para brancos no Brasil. Isso, infe- chefe, escondido numa garganta próxi- lizmente, apenas reitera e quantifica as ma à cachoeira do rio Paraíbas, na Serra denúncias do Movimento Negro – en- dos Dois Irmãos. A brava resistência foi grossadas nos últimos anos pelos mais inútil diante de um inimigo muito su- renomados organismos internacionais, perior em número e armas. A 20 de no- como a ONU e a OEA – que apontam vembro de 1695, Zumbi dos Palmares este País como um dos campeões do foi decapitado e esquartejado, num ri- racismo e da discriminação em nível tual sangrento característico da civiliza- mundial. Muito longe, como se vê, da ção que os portugueses implantaram nos fantasiosa imagem, construída durante trópicos, cujas memórias se reavivam a décadas por ideólogos oficiais – todos cada chacina policial de nossos dias. brancos –, que pintavam o Brasil nas A derrota de Palmares não foi, cores triunfalistas de uma “democracia porém, o fim dos quilombos, que se racial”. multiplicaram como cogumelos por to- O trabalho de denúncia e cons- das as regiões do Brasil, onde quer que cientização realizado pelo Movimento houvesse negros em número suficiente Negro tem tido eco neste Congresso, para se organizar e lutar por sua liber- graças à atuação de uns poucos parla- dade. O mesmo espírito dos quilombos mentares negros – dentre os quais tenho esteve presente também nas várias in- a honra de me incluir – cuja atuação re- surreições ocorridas na Bahia, lidera- vela seu compromisso com a causa de das por africanos de origem nagô, que Zumbi. No meu caso, trata-se esse de Pronunciamentos Homenagem a Zumbi dos Palmares 83

um compromisso assumido ainda nas perto do fim desse mandato, considero primeiras décadas deste século, e que ter cumprido minha missão. Conquanto se transformaria na verdadeira bússola não tenha conseguido romper definiti- que tem orientado, desde então, toda a vamente as barreiras que se interpõem minha existência. Em função dele, par- ao avanço dos afro-brasileiros na mais ticipei, nos anos 30, da gloriosa Frente alta Casa Legislativa do País, pude com Negra Brasileira, maior e mais impor- certeza abrir caminhos, dobrar intran- tante organização afro-brasileira deste sigências, esclarecer incompreensões e século. Foi também ele que me orientou multiplicar alianças para a causa negra, na criação, em 1944, do Teatro Experi- facilitando a tarefa de meus companhei- mental do Negro, que buscava o resgate ros e sucessores. do legado africano no Brasil, montando Foi nessa visão que apresentei, peças de conscientização e organizando logo após assumir definitivamente a eventos históricos como a Convenção vaga deixada no Senado com o faleci- Nacional do Negro, em 1945, e o I Con- mento do saudoso Darcy Ribeiro, minha gresso Afro-Brasileiro, ern 1950. primeira iniciativa nesta Casa, o Pro- Obrigado a deixar o País, em jeto de Lei do Senado no 52, de 1997, 1968, devido à perseguição movida pelo que definia e tipificava a prática do regime militar, pude constatar, em mais racismo e da discriminação e punia os de uma década de exílio nos Estados crimes dela resultantes. O objetivo era Unidos e na África, o quanto prosse- substituir a Lei no 7.716, que havia re- guiam válidas aquelas ideias que sem- gulamentado o princípio constitucional pre me haviam norteado. Assim, se o da Carta de 1988, definindo o crime de exílio me enriqueceu no contato direto racismo como inafiançável e imprescri- com novas teorias e estratégias da luta tível. Nesse caso, não fui movido, como negra, em plano internacional, também imaginaram alguns, pelo motivo fútil de me serviu para reafirmar a certeza do ver meu nome associado a algum ins- papel preponderante a ser desempenha- trumento legal, mas sincera intenção de do, nesse contexto, pelo povo e a cultura aperfeiçoar uma legislação cujas defici- afro-brasileiros. ências podem ser dolorosamente consta- Ao assumir pela primeira vez tadas, na prática, por quem a ela recorre. uma cadeira neste Senado, substituindo O projeto está aguardando parecer do o Senador Darcy Ribeiro, então convo- relator, mas espero que, no pior dos ca- cado pelo Governador a sos, possa ser útil a futuros legisladores conduzir o pioneiro Programa de Edu- interessados no assunto. cação Especial no Rio de Janeiro, pro- O Projeto de Lei do Senado que punha-me cumprir meu mandato “com apresentei a seguir, o de no 75, de 1997 honradez e dignidade, lutando pelas – e que, oficialmente, ainda tramita nes- causas do meu povo afro-brasileiro, que ta Casa –, visa promover e valorizar a são as causas da nossa Nação”. Hoje, população afro-brasileira, por meio do THOTH 6/ dezembro de 1998 84 Atuação Parlamentar

que chamo de “ação compensatória” – pósito específico de examinar o projeto medidas destinadas a compensar a dis- e propor uma alternativa. Até o momen- criminação historicamente sofrida pelos to, contudo, essa subcomissão tem sido descendentes de africanos neste País, a atropelada, primeiro pelo calendário exemplo do que se tem feito em países eleitoral, depois pela pesada pauta das tão diversos, do ponto de vista políti- reformas e do ajuste fiscal, razões pelas co, social, econômico e cultural, como quais não concluiu seu trabalho. Estados Unidos, Índia, Israel, Canadá, Preocupado com a precariedade Nigéria, Malásia, Alemanha e África do de acesso dos afro-brasileiros aos ins- Sul, sem esquecer as antigas Iugoslávia trumentos de defesa legal, apresentei e União Soviética. Trata-se este de um o Projeto de Lei do Senado no 114, de tema que tem sido muito discutido nos 1997, que tem como propósito facilitar últimos tempos, mas, em geral, por pes- o recurso à chamada ação civil pública, soas desinformadas ou comprometidas a qual, atualmente, só pode ser inicia- – embora nunca o declarem – com os da pelo Ministério Público. Por esse interesses do status quo. Fundamental- projeto, indivíduos ou entidades da so- mente, o objetivo desse projeto de lei é ciedade civil organizada também po- implementar o princípio constitucional derão instaurar ação civil pública com da isonomia, aplicando-o nas áreas do as finalidades de evitar ou interromper mercado de trabalho e da educação. De atos danosos à honra ou dignidade de que maneira? Obrigando as empresas grupos étnicos ou religiosos, e de ob- públicas e privadas a reservarem 20 por ter a reparação de tais atos, quando não cento das vagas em seus quadros funcio- seja possível evitá-los. Dessa maneira, nais para homens negros e 20 por cento pretende-se dotar esses grupos de um para mulheres negras; reservando para instrumento ágil e eficaz que lhes pos- alunos negros 40 por cento das bolsas sibilite enfrentar as manifestações de de estudo em todos os níveis escolares; racismo e discriminação, quer sejam de e alterando os currículos escolares, em todos os graus, para que estes incorpo- caráter individual ou coletivo. Outro as- rem explicitamente as contribuições dos pecto importante desse projeto de lei é a africanos e seus descendentes em termos criação de um fundo de defesa e comba- de história, ciência, cultura e religião, te ao racismo, sustentado pelas indeni- eliminando ao mesmo tempo as refe- zações a que possam fazer jus os autores rências preconceituosas e estereotipa- das ações, a ser instituído, até 12 meses das aos negros nos livros didáticos, bem após a aprovação e publicação dessa lei. como sua invisibilização. As discussões Aprovado em caráter terminativo pela suscitadas com a apresentação desse Comissão de Constituição e Justiça do projeto de lei na Comissão de Consti- Senado, esse projeto de lei tramita agora tuição e Justiça desta Casa motivaram o na Câmara dos Deputados. ilustre Senador Pedro Simon a propor a O último dos projetos de lei que criação de uma subcomissão com o pro- apresentei no Senado foi o de no 234, Pronunciamentos Homenagem a Zumbi dos Palmares 85

de 1997, que inscreve – ao lado de Tira- Sousa de Monografia, que acabou apro- dentes e Zumbi – os nomes de João de vado. Tratava-se, aqui, de homenagear Deus do Nascimento, Manuel Faustino aquele que muitos consideram um dos dos Santos Lira, Luís Gonzaga das Vir- maiores nomes da poesia simbolista gens e Lucas Dantas Torres, líderes da universal, cuja biografia constitui um Conjuração Baiana de 1798, no “Livro exemplo do gênio e da determinação dos Heróis da Pátria”. Revolução articu- dos afro-brasileiros em sua luta contra lada nas ruas, entre escravos e libertos, o preconceito e a discriminação. Insti- soldados e artífices, o movimento baia- tuído nas categorias geral e estudante, no de 1798 teve o objetivo de propiciar o Prêmio Cruz e Sousa de Monografia aos homens do povo acesso aos postos obteve pleno êxito, atraindo uma parti- de trabalho que lhes eram negados por cipação numerosa e qualificada. mero preconceito de cor. Em última Ao apresentar essas iniciativas instância, os revolucionários baianos no Senado, não tive a pretensão de ser lutaram pela emancipação dos escravos, original, nem me travesti com as rou- perseguindo o ideal da instalação de pagens de um iluminado. Ao contrário, um governo que não fizesse distinção nelas utilizei o acúmulo de experiên- de raça entre os cidadãos. Sentencia- cias pessoais e coletivas propiciado por dos com a pena de morte, os líderes do uma militância de quase sete décadas movimento foram executados e tiveram em que tive a oportunidade de travar seus corpos esquartejados. Como Tira- contato com as pessoas e as obras de dentes, e também como Zumbi, foram grande parte dos intelectuais e ativistas marcados para o sacrifício, como forma da causa negra na África e na Diáspo- de aplacar a fúria da Coroa portuguesa, ra. Prefiro, desse modo, ser considerado e demonstraram a bravura dos mártires. O propósito dessa iniciativa é, pois, re- um veículo, um cavalo dos nossos ori- parar uma imensa injustiça histórica, xás na tarefa de manter acesa a chama e promovendo o justo resgate, para a cena com ela iluminar novos caminhos para brasileira, de um importante episódio da a redenção de nosso povo. Assim, neste história nacional, no justo momento em momento em que se aproxima o fim de que ele comemora 200 anos. Com pare- meu mandato, quero deixar registrada a cer favorável do ilustre Senador Lúcio prestação de contas deste filho de Zum- Alcântara, esse projeto de lei ainda tra- bi, na certeza de ter envidado o melhor mita nesta Casa. de meus esforços e concentrado o que me resta de energias no propósito de Além dos supracitados projetos concretizar os generosos ideais de nosso de lei, apresentei em parceria com o ilus- herói maior. tre Senador Esperidião Amin, Projeto de Resolução instituindo o Prêmio Cruz e Axé, Zumbi!

Pronunciamento feito na Câmara dos Deputados, Sessão de 13 de no- vembro de 1985. Dia Nacional da Senhor Presidente, Consciência Negra, Senhores Deputados, Estamos a uma semana do próxi- aniversário de mo Dia Nacional da Consciência Negra, Zumbi 20 de novembro, aniversário da morte do herói e mártir nacional afro-brasi- leiro Zumbi dos Palmares. E para essa data está marcado um acontecimento de suma importância para a comunida- de afro-brasileira. O Presidente Sarney assinará decreto de tombamento da Ser- ra da Barriga, Estado de Alagoas, local onde se fundou a primeira nação livre criada em todo este continente após a agressão colonizadora da Europa, a Re- pública dos Palmares. Agregando popu- lações de vários quilombos, Palmares THOTH 6/ dezembro de 1998 90 Sankofa: Memória e Resgate

contava com mais de 30 mil habitantes, retrocesso, conforme o destino que se que resistiram durante um século, de dê ao espaço histórico recuperado pelo 1595 a 1696, à guerra colonial de Por- tombamento. Pois o compromisso do tugal, Holanda e do Brasil. Zumbi, o Memorial Zumbi é o de criar um último de seus reis eleitos, tombou na polo de cultura de libertação do povo luta armada e constitui hoje um símbolo afro-brasileiro, ou seja, um local onde a vivo da luta pela emancipação do povo comunidade possa fortalecer sua cons- negro, ciência e identidade histórica, cultural e Senhores deputados, o tomba- artística de coletividade negra com suas mento da Serra da Barriga representa raízes e personalidade própria. Tal ob- uma vitória da comunidade negra, pois jetivo requer a mobilização de recursos é uma aspiração para a qual está mobi- humanos, materiais e financeiros que lizada desde o final da década passada, não podem ser desviados para a constru- quando foi idealizado o Memorial Zum- ção faraônica de atração turística inaces- bi. Essa organização, pioneira na his- sível aos verdadeiros herdeiros daquele tória brasileira, congrega entidades do patrimônio. Não podemos correr o risco Movimento Negro Nacional e órgãos de mais um aspecto da cultura negra ser oficiais como a Fundação Pró-Memória. distorcido, folclorizado ou reduzido à Quero aqui registrar minha homenagem condição de mercadoria, objeto de uma a todos os responsáveis pela criação e exploração comercial cujos beneficiá- consolidação do Memorial Zumbi e às rios não pertençam à nossa comunidade organizações e indivíduos que o inte- nem cultivem qualquer respeito a ela. gram. Especificamente, evoco o caboclo Os maliciosos oponentes da nossa guerreiro Olympio Serra, o Exu mineiro luta virão, naturalmente, nos interpelar Dr. Carlos Moura e com um slogan já tradicional: “Mas nós o historiador Joel Rufino dos somos brasileiros, não negros, e esse é Santos. A persistência e dedicação des- um patrimônio nacional.” Concluindo tes têm possibilitado o êxito do nosso esse raciocínio, nos rotularão de racistas projeto, sobretudo nesse particular do às avessas. Ora, o País está repleto de tombamento. museus, igrejas, locais históricos e mo- Devo dizer ao mesmo tempo, que numentos celebrando os feitos e heróis o tombamento da Serra da Barriga sig- portugueses, que nem por isso deixam nifica apenas o começo, e não o fim, da de constituir-se em patrimônio nacional. nossa responsabilidade para com a po- Por que então negar à história e cultu- pulação afro-brasileira no que tange ao ras negras seu conteúdo africano, para Memorial Zumbi. O que importa não é o proclamá-las apenas e exclusivamente tombamento em si, embora este consti- “brasileiras”? tua importante conquista histórica. Para Senhores deputados, foi iniciativa a comunidade negra, o resultado desse da população afro-brasileira a criação do ato poderá significar um avanço ou um Dia Nacional da Consciência Negra a 20 Dia Nacional da Consciência Negra, Aniversário de Zumbi Abdias Nascimento 91

de novembro, data que realmente é um a Zumbi, eu recordava o destemor com símbolo da luta de libertação do nosso que Vossa Excelência tem agido nesta povo. Cumprindo meu compromisso de Casa em favor da raça negra. Todos os levar adiante as lutas da comunidade ne- brasileiros hão de reconhecer que esta gra no Congresso Nacional, apresentei Nação foi embalada, criada, alimentada, um projeto, já aprovado por esta Casa, sustentada, amamentada pelos negros. declarando esse dia feriado nacional. Se- Eles empurraram esta Nação para fren- ria uma grande alegria ver assinado no te, ao lado daqueles outros integrantes mesmo dia 20 esse projeto, tornado-o lei da raça branca e também, já agora, da e configurando mais uma vitória do Mo- amarela, formando-se aqui uma civili- vimento Negro Nacional. Infelizmente, o zação esplêndida, símbolo e exemplo projeto ainda espera votação no Senado, para todas as outras. Vossa Excelência onde tenho certeza de que será aprovado, há de ficar com seu nome marcado, por- concretizando simbolicamente o com- que a obra que se há de inaugurar e ins- promisso deste Congresso com a demo- taurar dentro em breve tem o dedo forte cracia em todas as suas dimensões. e firme de Vossa Excelência. Concedo o aparte ao nobre depu- tado Celso Peçanha. O SENHOR ABDIAS NASCI- MENTO – Agradeço a Vossa Excelên- O SENHOR CELSO PEÇANHA cia o testemunho que dá neste instante – Nobre Deputado Abdias Nascimento, da luta que vimos sustentando há mais estou ouvindo com muita atenção o dis- de 60 anos pela recuperação e pelo res- curso de Vossa Excelência sobre o as- gate da dignidade e da plena indepen- sunto que tem, por várias vezes, versado dência do povo negro num Brasil real- da tribuna desta Casa. Não há como ne- mente igualitário, democrata e justo. gar, Vossa Excelência tem sido um dos Continuo, Sr. Presidente. líderes mais destemidos na campanha que visa apontar à civilização brasileira Considero a realização desse os valores do negro ao longo da sua his- sonho, que é o tombamento da Serra tória, o serviço que ele prestou ao País, e da Barriga, como também outras con- no combate – verberando com todo ardor quistas da comunidade negra, inclusi- a segregação racial que procura afastar ve a criação da Assessoria para Assun- os homens de cor da nossa comunidade. tos Afro-Brasil eiros do Ministério da Não só desta tribuna, mas também em Cultura, frutos de uma prática e teoria conferências, no Brasil ou no exterior. de luta afro-brasileira que denomi- Vossa Excelência se tem revelado um no de quilombismo e que vem sendo bravo lutador, que a história há de regis- articulada durante toda a história do trar como dos mais arrojados. Hoje, pela negro no Brasil. Nada mais oportuno, manhã, quando telegrafava ao presiden- então, do que expor para meus ilustres te da comissão responsável pela reali- colegas desta Casa as bases teóricas zação do tombamento em homenagem dessa filosofia de organização social e THOTH 6/ dezembro de 1998 92 Sankofa: Memória e Resgate

política. Como parte deste pronuncia- tronco familiar africano. A não ser em mento, lerei um texto sobre o assunto, função de recente interesse do expan- que elaborei por ocasião do Segundo sionismo industrial manipulado pela Congresso de Cultura Negra das Amé- elite econômica, o Brasil, como nor- ricas, realizado no Panamá em 1980, ma tradicional, ignorou o continente e publicado no Brasil no meu livro O africano. Voltou suas costas à África quilombismo: documentos de uma mi- logo que não conseguiu mais burlar a litância pan-africana (Petrópolis: Vo- proibição do comércio de carne afri- zes, 1980). cana imposta pela Inglaterra, por volta de 1850. A imigração massiva de eu- ropeus, subsidiada pelos cofres públi- O QUILOMBISMO: UMA cos, ocorrida daquela data em diante, ALTERNATIVA POLÍTICA AFRO- fundamentou-se não só na intenção das -BRASILEIRA classes dominantes em tornar a popu- lação do País cada vez mais branca, Memória: a antiguidade do sa- como também no propósito de erradi- ber negro-africano car da mente e do afeto dos descen- dentes de escravos a imagem da África como lembrança positiva de nação, de É urgente a necessidade de o ne- pátria, de terra nativa. Por isso, no sis- gro brasileiro recuperar sua memória, tema educativo brasileiro, nunca houve sistematicamente agredida pela estrutu- qualquer disciplina ensinando apreço, ra de dominação ocidental-europeia há interesse ou respeito às culturas, ar- quase 500 anos. Um processo análogo tes, línguas, religiões, sistemas políti- se registra com a história dos africanos cos, econômicos ou sociais de origem no continente e de seus descendentes es- africana. E o próprio contato direto palhados pelas Américas. do afro-brasileiro com seus irmãos no A memória dos afro-brasileiros, continente e na diáspora foi continua- ao contrário do que afirmam certos his- mente impedido ou dificultado entre toriadores convencionais de visão curta outros obstáculos, pela negação de e superficial entendimento, não se ini- meios econômicos que lhe permitissem cia com o tráfico negreiro nem nos pri- viajar para fora do País. Entretanto ne- mórdios da escravização dos africanos nhum empecilho teve o poder de obli- no século XV. Em nosso País, a elite terar completamente de nosso espírito e dominante sempre desenvolveu esfor- da nossa lembrança a presença viva da ços para evitar ou impedir que o negro mãe África. brasileiro, após a chamada abolição da As estratégias e os expedientes escravatura (1888), pudesse identifi- utilizados contra a memória do negro car-se e ativamente assumir suas raízes africano ultimamente vêm sofrendo étnicas, históricas e culturais, com essa profunda erosão e irreparável descré- operação tentando seccioná-Io do seu dito. Esse fato se deve à dedicação e Dia Nacional da Consciência Negra, Aniversário de Zumbi Abdias Nascimento 93

competência de alguns africanos preo- Considero oportuno fazer algu- cupados com a destituição que a nação mas considerações, ainda que breves, a negro africana tem sofrido de parte da respeito de certos trechos da obra funda- civilização capitalista euro norte ame- mental de , principal- ricana. Esse grupo de africanos, a um mente a seu livro The African origin of tempo estudiosos, cientistas, filósofos civilization (J 974), versão em inglês de e criadores de arte e literatura, engloba seleções de Nations negres et culture e personalidades do continente e da diás- Anteriorité des civilisations negres, ori- pora africana. Quero mencionar alguns ginalmente publicados em francês. Seja desses nomes: Cheikh Anta Diop, do dito de início que o volume apresenta ; Chancellor Williams, Molefi uma confrontação radical e um desa- K. Asante, Shawna Maglangbayan Mo- fio irrespondível ao mundo acadêmico ore, Haki Madhubuti e Maulana Ron ocidental e à sua arrogância intelectual, Karenga, dos Estados Unidos; George desonestidade científica e carência ética no tratamento dispensado aos povos, ci- M. James, da Guiana; Yosef BenJochan- vilizações e culturas da África. Diop é nan, da Etiópia; Théophi le Obenga, do químico, diretor do laboratório de radio- Congo-Brazzaville; Wole Soyinka, OJa carbono do IFAN (Instituto Fundamen- Balogun e Wande Abimbola, da Nigéria tal da África Negra), em Dacar, além – todos estão produzindo obras funda- de egiptólogo, historiador, linguista e mentais para a África contemporânea e antropólogo. Utilizando-se dos recursos futura. Atuando em campos diferentes e científicos ocidentais, esse sábio está sob perspectivas diversas, o esforço des- resgatando a significação e os valores ses eminentes irmãos africanos se funde das antigas civilizações erigidas pelos e se canaliza rumo à exorcização das negros africanos, há longo tempo obnu- falsidades, distorções e negações que biladas pelas manipulações, falsidades, há tanto tempo se vêm tecendo em tor- distorções e roubos dos chamados cien- no da África com o intuito de velar e/ou tistas ocidentais. São os bens de cultura apagar a memória do saber, do conheci- criados pelos nossos antepassados no mento científico e filosófico, enfim, das Egito antigo. Esses egípcios eram ne- realizações dos povos de origem negro gros, e não um povo de origem branca africana. A memória do negro brasilei- ou vermelho escura, conforme estudio- ro é parte e partícipe nesse gigantesco sos europeus do século XIX proclama- esforço de reconstrução de um passado vam com ênfase tão mentirosa quanto ao qual todos os afro-brasileiros estão interessada. Eis como a esse respeito se ligados. Ter um passado é ter uma con- manifesta Diop: sequente responsabilidade nos destinos Os egípcios antigos foram e no futuro da nação negro africana, negros. O fruto moral da sua civili- mesmo enquanto preservando a nossa zação está para ser contado entre os condição de edificadores deste País e de bens do mundo negro. Em vez de se cidadãos genuínos do Brasil. apresentar à história como um de- THOTH 6/ dezembro de 1998 94 Sankofa: Memória e Resgate

vedor insolvente, esse mundo negro logos ocidentais. Ele demonstra que, é o próprio iniciador da civilização após a campanha militar de Bonaparte “ocidental” ostentada hoje dian- no Egito, em 1799, e a decifração dos te dos nossos olhos. A matemática hieróglifos da Pedra Rosetta por Cham- pitagórica, a teoria dos quatro ele- pollion, o jovem, em 1822, os egiptó- mentos de Tales de Mileto, o ma- logos se desarticularam atônitos diante terialismo epicureano, o idealismo da grandiosidade das descobertas reve- platônico, o judaísmo, o islamismo ladas. e a ciência moderna estão enraiza- dos na cosmogonia e nas ciências Eles geralmente a reconhece- egípcias. Só temos de meditar sobre ram como a mais antiga civilização, Osíris, o deus redentor, que se sa- a que tinha engendrado todas as outras. Mas o imperialismo sendo crifica, morre e é ressuscitado, uma o que é, se tornou crescentemente figura essencialmente identificável “inadmissível” continuar aceitando a Cristo. a teoria evidente até então: de um (1974:XIV) Egito negro. O nascimento da egip- As afirmações de Diop se ba- tologia foi assim marcado pela ne- seiam em rigorosa pesquisa, derruindo cessidade de destruir a memória de as estruturas supostamente definitivas um Egito negro, a qualquer custo, do conhecimento “universal” a respeito em todas as mentes. Daí em diante, da antiguidade egípcia e grega. Gostem o denominador comum de todas as ou não gostem, os ocidentais têm de tra- teses dos egiptólogos, sua relação gar verdades como esta: íntima e profunda afinidade, pode ser caracterizado como uma ten- (...) quatro séculos antes da tativa desesperada de refutar essa publicação de A mentalidade pri- opinião [de um Egito negro]. Quase mitiva, de Levy-Bruhl, a África ne- todos os egiptólogos enfatizaram gra muçulmana comentava a lógica sua falsidade como uma questão formal de Aristóteles (a qual ele fechada. plagiou do Egito negro) e era espe- (1974: 45) cialista em dialética. ( Diop 1963:212) A pretensão eurocentrista nesse episódio se expõe de corpo inteiro: os E, não esqueçamos, isso aconte- egiptólogos prosseguiram obstinada- cia quase 500 anos antes do nascimento mente no vão esforço de provar “cien- de Hegel ou Marx... tificamente” uma origem branca para a Diop revolve toda a mistificação antiga civilização do Egito negro. Por que transformou um Egito fundamen- mais precária que fosse a base dessas talmente negro em país branco, por teorias nos fatos históricos, elas eram artes da magia europeia dos egiptó- aceitas pelo mundo “civilizado” como Dia Nacional da Consciência Negra, Aniversário de Zumbi Abdias Nascimento 95

uma pedra fundamental do supremacis- dos no esforço de atender uma carên- mo branco. cia requerida pela edificação de uma Quanto a Diop, compassivo e sociedade viável. humano diante do feroz dogmatismo Há um pormenor que interessa desses egiptólogos ocidentais, de- particularmente à memória do negro monstrou paciência e gentileza expli- brasileiro: aquele ern que Diop men- cando-Ihes que ele, Diop, não alegava ciona as relações do antigo Egito com nenhuma superioridade racial ou qual- a África negra, especificamente com quer gênio especificamente negro na- o povo iorubá. Parece que tais rela- quela constatação científica de que a ções foram tão íntimas a ponto de se civilização do Egito antigo fora erigi- poder “considerar como um fato his- da e governada por um povo negro. O tórico a possessão conjunta do mes- sucesso devia-se a fatores históricos, mo habitat primitivo pelos iorubás e explicou-lhes Diop, devia-se a con- dições mesológicas (clima, recursos egípcios”. Diop levanta a hipótese de naturais etc.), somadas a outros ele- que a latinização de Hórus, filho de mentos não raciais. Mesmo tendo-se Osíris e Ísis, tenha resultado no ape- expandido, por toda a África negra, lativo Orixá. Seguindo essa pista de do centro e do oeste do continente, estudo comparativo em linguística e a civilização egípcia, ao embate de outras disciplinas, Diop cita J. Olumi- outras influências e diversa situação de Lucas, The religion of lhe Yorubas, histórica, entrou num processo de de- o qual traça os laços egípcios do seu sintegração francamente retrocessivo. povo iorubá, concluindo que tudo leva O importante é conhecermos alguns à verificação do seguinte: a) uma simi- daqueles fatores que contribuíram laridade ou identidade de linguagem; para a edificação da civilização egíp- b) uma similaridade ou identidade de cia, dentre os quais Diop enumera es- crenças religiosas; c) uma similarida- tes: resultados de acidente geográfico de ou identidade de ideias e práticas que condicionou o desenvolvimento religiosas; d) uma sobrevivência de político-social dos povos que viviam costumes, lugares, nomes de pessoas, às margens do vale do Nilo; as inun- objetos etc. (Diop, 1974: 184; Lucas, dações que forçavam providências 1978: 18). coletivas de defesa e sobrevivência, situação que favorecia a unidade e ex- Meu objetivo aqui é apenas cha- cluía o egoísmo individual ou pessoal. mar a atenção para essa significativa Nesse contexto, surgiu a necessidade dimensão da antiguidade da memória de uma autoridade central coordena- afro-brasileira. Será tarefa para os pes- dora da vida e das atividades em co- quisadores africanos e afro-brasileiros mum. A invenção da geometria nasceu do futuro complementar os detalhes da necessidade da divisão geográfica, desse ponto fundamental de nossa his- e todos os demais avanços foram obti- tória. THOTH 6/ dezembro de 1998 96 Sankofa: Memória e Resgate

Memória: A Afro-América pré- de uma rebelião negra (1981), Elisa -colombiana Larkin Nascimento também assinala o desenvolvimento dessas investigações. Entretanto não é só no Egito an- Ela sugere a relação entre as esculturas tigo ou na África Ocidental que encon- de San Agustín e Tierradentro, na Co- tramos os antecedentes históricos do lômbia, assim como outros símbolos, afro-brasileiro. Existe outra dimensão traços, técnicas artísticas e funerárias, de nossa memória na presença de afri- caracteres somáticos africanos em obras canos em várias partes das Américas plásticas de cerca de 600 anos antes de muito antes da chegada de Colombo. Cristo com a sua contraparte egípcia e E não se deve considerar esse um fenô- africano-ocidental. Tais comparações meno passageiro e superficial; trata-se podem ser observadas a respeito da cul- de uma presença profunda que deixou tura taína, da Colômbia, e das civiliza- raízes e marcas indeléveis no rosto de ções inca, do Peru, Bolívia e Equador, várias culturas pré-colombianas. Diver- e tolteca, olmeca, asteca e maia do Mé- sos historiadores e pesquisadores têm-se xico. referido a esse fenômeno. Entre outros, Além do extraordinário processo citemos para ilustrar o historiador me- de retratar faces e figuras em cerâmica xicano Orozco y Berra, que em 1862 já e esculturas, essas civilizações compar- mencionava a relação íntima, no mundo tilham também técnicas de mumifica- antigo, que os mexicanos cultivavam ção, tradições funerárias, engenharia e com os africanos, visitantes e imigran- construção de pirâmides, temas míticos tes. (1880: 109). e artísticos, símbolos como exemplifi- Atualmente, a contribuição mais ca a serpente emplumada, identidades importante nesse sentido é a de Ivan linguísticas incontáveis. Todos esses Van Sertima, cujo livro They came be- elementos compõem um eloquente e vi- fore Columbus (1976) registra a defi- sível testemunho do ativo intercâmbio nitiva contribuição africana às culturas que existiu entre a América e as civiliza- pré-colombianas das Américas, princi- ções africanas da época. Mas, conforme palmente no México. Outros autores, nos adverte Elisa Nascimento, assinalar tais como Leo Wainer (1922), Nicolas a presença pré-colombiana dos africa- Leon, J. A. Jairazbboy (1974), Lopes nos nas Américas de nenhuma forma de Gomara (1954), Alexander Von Wu- subestima as enormes capacidades de thenau (1975), Dr. Andrezej Wiercinski desenho e engenharia dos povos origi- (in Sertima 1976), cada qual em sua nais americanos, que foram os autores especialidade e época respectivas, têm e construtores das formidáveis cidades contribuído para a recomposição da pre- pré-colombianas (1981: 139). sença dos africanos nas Américas antes Esse intercâmbio afro-americano de Colombo. Em seu livro Pan-aifrica- estabeleceu uma relação ampla e legí- nismo na América do Sul: emergência tima entre povos africanos e povos in- Dia Nacional da Consciência Negra, Aniversário de Zumbi Abdias Nascimento 97

dígenas americanos que pré-data, com deste País. A despeito dessa realidade uma anterioridade de vários séculos, o histórica, entretanto, os africanos e seus tráfico negreiro estabelecido pelos euro- descendentes nunca foram e não são tra- peus. A base histórica para a solidarie- tados como iguais pelos segmentos mi- dade entre os povos originais de ambos noritários brancos que complementam o os continentes foi muito mais profunda quadro demográfico nacional e que têm e autêntica do que tem sido geralmente mantido a exclusividade do poder, do reconhecido. Assim sendo, se o quilom- bem estar e da renda nacional. bismo busca no presente o futuro, e atua Porções significativas da popu- por um mundo melhor para os africanos lação brasileira de origem europeia co- nas Américas, ele reconhece e proclama meçaram a chegar ao Brasil nos fins do que sua luta não pode separar-se da li- século passado como imigrantes pobres bertação dos povos indígenas destas ter- e necessitados. Imediatamente, passa- ras, que foram e são igualmente vítimas ram a desfrutar de privilégios que a so- do racismo e da destruição desumana ciedade dominante, essencialmente ra- introduzida pelos europeus. cista, lhes concedeu como parceiros de raça e do supremacismo eurocentrista. Consciência negra e sentimento Tais imigrantes não demostraram nem quilombista escrúpulo nem dificuldades em assumir os preconceitos raciais vigentes aqui e Numa perspectiva mais restrita, a na Europa contra o negro africano, se memória do negro brasileiro atinge uma beneficiando deles e preenchendo as etapa histórica decisiva no período es- vagas no mercado de trabalho que se cravocrata iniciado de forma sistemática negavam aos ex-escravos e seus descen- por volta de 1500, logo após a chamada dentes. Estes foram literalmente expul- “descoberta” do território e o início da colonização do País. Excetuando os ín- sos do sistema de trabalho “livre” e da dios, progressivamente exterminados, o estrutura de produção à medida que se africano escravizado foi o primeiro e o aproximava a data “abolicionista” de 13 único trabalhador, durante três séculos de maio de 1888. e meio, a erguer as estruturas econômi- Levando-se em conta a condição cas deste gigante chamado Brasil. Creio atual do negro à margem do sistema em- ser dispensável evocar neste instante o pregatício ou degradado no semi-empre- chão regado pelo suor do africano, os go e no subemprego; tendo-se em vista canaviais, os algodoais, a mineração a segregação residencial urbana que lhe de ouro, diamante e prata, os cafezais é imposta pelo duplo motivo de raça e e todos os demais elementos formado- pobreza, destinando-lhe como áreas de res da economia nacional, nutridos do moradia os guetos de várias denomina- sangue martirizado do escravo. Longe ções: favelas, mocambos, porões, ala- de ser um arrivista ou um corpo estra- gados, invasões, vilas e/ou conjuntos nho, o negro é o próprio corpo e alma populares ou “residenciais”; conside- THOTH 6/ dezembro de 1998 98 Sankofa: Memória e Resgate

rando-se a permanente brutalidade po- estruturava-se em formas associativas licial e as prisões arbitrárias motivadas que tanto podiam estar localizadas no pelo fato de ser negro, compreende-se seio de florestas de difícil acesso, o que por que todo afro-brasileiro consciente facilitava sua defesa e organização eco- não tem a menor esperança de que uma nômico-social própria, como também mudança progressista possa ocorrer es- assumiam modelos de organização per- pontaneamente em benefício da comu- mitidos ou tolerados pela classe domi- nidade afro-brasileira. De modo geral, nante, frequentemente com ostensivas ao redor de 95% da população favelada finalidades religiosas (católicas), recre- do País é de origem africana. Detalhe ativas, beneficentes, esportivas, cultu- que caracteriza uma irrefutável segrega- rais ou de auxílio mútuo. Não importam ção racial de fato. Isso no que concerne as aparências e os objetivos declarados: à população negra urbana. No entanto fundamentalmente, todas elas preenche- cumpre ressaltar que é nas zonas ru- ram uma importante função social para rais que a maioria dos descendentes de a comunidade negra, desempenhando escravos ainda vegeta uma existência um papel relevante na sustentação da parasitária e trágica no seu total desam- continuidade africana. Genuínos focos paro. Pode-se dizer que não vivem uma de resistência física e cultural. Objeti- vida de seres humanos. vamente, essa rede de associações, ir- Esse é o esboço imperfeito de mandades, confrarias, clubes, grêmios, uma situação mais grave, a qual tem terreiros, centros, tendas, afoxés, esco- sido realidade em todo o decorrer de las de samba, gafieiras foram e são os nossa história. Dessa realidade é que quilombos “legalizados” pela sociedade nasce a necessidade urgente de assegu- dominante. Do outro lado da lei se er- rar a própria existência do negro como gueram e se erguem os quilombos radi- ser humano. Os quilombos resultaram calmente confrontadores e desafiadores dessa exigência vital dos africanos es- da opressão sistemática praticada pelas cravizados, de resgatar sua liberdade e elites no poder. Mas os quilombos “le- dignidade, fugindo ao cativeiro e orga- galizados” e os fora da Iei formam uma nizando sociedades livres no território unidade, uma única afirmação humana, brasileiro. A multiplicação dos quilom- étnica, cultural, a um tempo integrando bos no espaço e no tempo fez deles um uma prática de libertação e assumindo autêntico movimento sociopolítico e o comando da própria história. A esse econômico amplo e permanente. Apa- complexo de situações e significações, a rentemente acidental e esporádico no essa práxis afro-brasileira de resistência começo, rapidamente transformou-se à opressão e de autoafirmação política, de improvisação de emergência em me- eu denomino de quilombismo. tódica e constante vivência das massas Importante é destacar que essa africanas que se recusavam à submissão, tradição de luta quilombista existiu e à exploração, à humilhação e à violência existe através de todas as Américas. do sistema escravista. O quilombismo Desde as primeiras décadas de 1500, Dia Nacional da Consciência Negra, Aniversário de Zumbi Abdias Nascimento 99

africanos livres recusaram-se a se sub- Discriminação Racial assim registra seu meter aos horrores da escravização conceito quilombola ao definir o Dia da européia, e formaram compactas co- Consciência Negra, em manifesto públi- munidades que desataram contínuas e co de 1978: vitoriosas lutas armadas contra os co- lonizadores, isso durante séculos. No Nós, negros brasileiros, or- México, por exemplo, essas sociedades gulhosos por descendermos de africanas livres se chamaram cimarro- Zumbi, líder da República Negra nes; em Cuba e Colômbia seu nome foi dos Palmares, que existiu no Es- palenques; na Venezuela denominavam- tado de Alagoas, de 1595 a 1695, -se cumbes; na Jamaica e Estados Uni- desafiando o domínio português e dos, sociedades maroons (Moura 1977; até holandês, nos reunimos hoje, Price 1973). Pesquisando a história des- após 283 anos, para declarar a todo sas comunidades africanas livres nas o povo brasileiro nossa verdadeira Américas, bem como suas bases cultu- e efetiva data: 20 de novembro, Dia rais, econômicas, políticas e sociais, os Nacional da Consciência Negra! afro-americanos de todo o hemisfério Dia da morte do grande líder negro consolidarão sua herança de solidarie- nacional, Zumbi, responsável pela dade e luta comum. O quilombismo e primeira e única tentativa brasilei- seus vários equivalentes em todas as ra de estabelecer uma sociedade Américas -cimarronismo, palenquismo, democrática, ou seja, livre, e em cumbismo, maroonismo significam hoje que todos -negros, índios e brancos uma alternativa internacional para a or- -realizaram um grande avanço polí- ganização política popular das massas tico, econômico e social. Tentativa negras. esta que sempre esteve presente em A constatação fácil do enorme todos os quilombos. número de organizações afro-brasileiras que se intitularam no passado e se in- A continuidade dessa consciência titulam no presente de quilombo e/ou de luta político-social estende-se por Palmares testemunha quanto o exem- todos os Estados onde existe significa- plo quilombista significa como valor tiva população de origem ~,liicana. O dinãmico na estratégia e na tática de modelo qt,ilombista vem atuando como sobrevivência e progresso das coletivi- idéiaforça, energia que inspira mode- dades de origem africana. Com efeito, o los de organização dinâmica desde o quilombismo tem-se revelado um fator século XV. Nessa dinâmica repleta de capaz de mobilizar disciplinadamente heroísmo, o quilombismo se mantém as massas negras devido ao seu profun- em constante atualização, atendendo do apelo psicossocial, cujas raízes estão às exigências do tempo histórico e às entranhadas na história, na cultura, no situações do meio geográfico. A essas sangue e na vivência dos afrobrasileiros. circunstâncias se devem as diferenças O Movimento Negro Unificado contra a nas formas superficiais das organiza- THOTH 6/ dezembro de 1998 100 Sankofa: Memória e Resgate

ções quilombistas. No essencial todos la que fundou e presidiu, no rumo dos os quilombos se igualaram. Foram, e interesses mais legítimos do povo afro- são, nas palavras da historiadora Beatriz -brasileiro. No livro que ele e Isnard es- Nascimento, “um local onde a liberdade creveram, há trechos como este: era praticada, onde os laços étnicos e an- cestrais eram revigorados”. Essa mulher Quilombo - Grêmio Recreativo negra estudiosa do nosso passado afmna Arte Negra ( ... ) nasceu da ne- ter o quilombo exercido “um papel fun- cessidade de se preservar toda damental na consciência histórica dos a influência do afro na cultura negros” (1979: 17-17). brasileira. Pretendemos chamar Percebe-se o ideal quilombista a atenção do povo brasileiro para difuso, porém consistente e perseve- as raízes da arte negra brasileira. rante, permeando todos os níveis da ( ...) A posição do Quilombo é vida negra, infiltrando-se até os mais principalmente contrária à impor- íntimos refolhos da personalidade afro- tação de produtos culturais pron- -brasileira. Um ideal forte e denso que tos e acabados produzidos no ex- normalmente perman~cereprimido pe- terior. (1978:87-8) las estruturas dominantes; outras vezes Nesse último trecho, os autores ele é sublimado por meio dos vários tocam num ponto básico do quilom- mecanismos de defesa fornecidos pelo bismo: o caráter nacionalista do movi- inconsciente individual ou coletivo. mento. Nacionalismo aqui não deve ser Mas também acontece que o negro se confundido com xenofobismo. Sendo o apropria às vezes d(‘o mecanismos que a sociedade dominante maliciosamente quilombismo uma luta anti-imperialis- lhe concedeu com o propósito oculto de ta, ele se articula ao pan-africanismo e assim melhor controlá-lo. Nessa rever- sustenta uma radicaI solidariedade com são do alvo, o negro utiliza habilmente todos os povos em luta contra a explora- esses propósitos não confessados de do- ção, a opressão, o racismo e as desigual- mesticação, transformando-os numa es- dades moti vadas em função de raça, pécie de bumerangue étnico. Nesse tipo cor, religião, sexo ou ideologia. O na- de estratégia, Candeia, o compositor de cionalismo negro é universalista e inter- sambas e negro inteligente dedicado à nacionalista, conseqüentemente ele vê redenção do seu povo, nos deixou um a luta de libertação de todos os povos, exemplo ilustre. Ele organizou a Escola respeitando suas respectivas culturas de Samba Quilombo, nos subúrbios do nacionais e integridade política, Como Rio de Janeiro, obedecendo a um pro- um imperativo da libertação mundial. fundo senso do valor político-social do Uniformidade sem rosto em nome da samba. Esse importante membro da fa- “unidade” ou da “solidariedade”, condi- mília quilombista faleceu recentemente, cionada ao ditado de qualquer modelo mas, até o instante derradeiro, manteve político-social do Ocidente, não está na uma lúcida visão dos objetivos da esco- linha de interesse das lutas de libertação Dia Nacional da Consciência Negra, Aniversário de Zumbi Abdias Nascimento 101

dos povos oprimidos. O quilombismo, Ainda podemos encontrar centenas, como filosofia nacionalista, nos ensina milhares desses negros que vivem uma que a luta de qualquer e todos os povos existência ambígua. Não pelo fato de deve enraizar-se na sua própria identida- possuírem o sangue do branco opressor, de cultural e experiência histórica. mas porque, internalizando como positi- Num folheto intitulado 90 anos va a ideologia do embranquecimento (o de abolição, publicado pela Escola de branco é superior e o negro inferior), se Samba Quilombo, Candeia registra: distanciam das realidades do seu povo e se prestam ao papel de auxiliares das “Foi através do Quilombo, forças repressivas do supremacismo e não do movimento abolicio- branco. E tanto ontem quanto hoje os nista, que se desenvolveu a luta serviços que se prestam à repressão se dos negros contra a escravatura. traduzem em lucro social e lucro pe- (1978:7)” cuniário. Em nossos dias não devemos permitir que nos dividam em categorias A luta contra os escravocratas pigmentocráticas adversas de negros, ainda não terminou e o movimento mulatos, morenos, trigueiros, crioulos quilombista está longe de haver esgo- etc., divisão concebida para enfraquecer tado seu papel histórico. O sentido do nossa identidade fundamentaI de afro- quilombismo está tão vivo hoje quanto -brasileiros, isto é, de negros africanos no passado, pois a situação de penúria e na diáspora. destituição das camadas negras continua Neste Brasil tão vasto, existem inalterada, ou com mínimas alterações inúmeras comunidades negras vivendo de superfície. Mais uma transcrição de isoladas, que denominamos de quilom- Candeia: bos contemporâneos. Desligadas do flu- xo da vida do País, muitas delas mantêm “Os quilombos eram vio- estilos e hábitos de existência africana, lentamente reprimidos, não só ou quase. Em alguns casos, ainda se pela força do governo, mas tam- utilizando do idioma original trazido da bém por indivíduos interessados África, estropiado, porém assim mes- no lucro que teriam devolvendo mo uma linguagem africana mantida e os fugitivos a seus donos. Esses conservada na espécie de quilombismo especialistas em caçar escravos em que vivem. Ocasionalmente, essas fugidos ganharam o nome de comunidades ganham notícias externas triste memória: capitão do mato. na grande imprensa, como aconteceu à (1978:5)“ com unidade do Cafundó, situada nas imediações do salto de Pirapora, no Es- A citação do capitão do mato é tado de São Paulo. Os membros dessa pertinente e oportuna: em geral, foram comunidade herdaram uma fazenda de eles mulatos, isto é, negros de pele cla- grande extensão deixada pelo antigo se- ra, assimilados pela classe dominante. nhor. Nas últimas décadas, as terras do THOTH 6/ dezembro de 1998 102 Sankofa: Memória e Resgate

Cafundó começaram a ser invadidas por Registre-se que, depois que o latifundiários das vizinhanças. Obvia- Ipeafro iniciou sua pesquisa, em 1981, mente brancos, esses latifundiários de tomamos conhecimento de outras pes- mentalidade escravocrata não podem quisas documentando a mesma realida- aceitar que um grupo de descendentes de. Entre os exemplos estão os trabalhos de africanos possua uma propriedade incentivados pelo Departamento de Ci- imobiliária e estão determinados a des- ências Sociais da USP, por meio do pro- truir o Cafundó, avançando criminosa- fessor João Baptista Borges Pereira, pu- mente em suas terras. blicados nos livros Negros de cedro, de Mari de Nasaré Baiocchi (Ática, 1983), O caso do Cafundó é ilustrativo e Caipiras negros no vale do ribeira, de da situação genérica dessas comunida- Renato S. Queiroz (USP, 1983). des, constantemente ameaçadas pela violência dos poderosos que cobiçam O avanço de latifundiários e de suas terras. O Instituto de Pesquisas e especuladores de imóveis nas terras da Estudos Afro-Brasileiros (IPEAFRO) gente negra está pedindo uma inves- está engajado numa pesquisa investi- tigação mais ampla e profunda. É um gando essa realidade. Na qualidade de fenômeno frequente tanto nas zonas diretor do Ipeafro e professor respon- rurais quanto nas zonas urbanas. Vale a sável pela execução da pesquisa, tive pena transcrever a esse respeito trechos de uma nota estampada em Veja, seção oportunidade de visitar várias dessas “Cidades”, 10 de dezembro de 1975, comunidades negras, e de constatar a pág. 52: existência de muitas outras espalhadas pelo País afora. Citando apenas alguns Desde sua remota aparição exemplos, evocamos nossas visitas a Ja- em Salvador, há quase dois sécu- caraí dos Pretos, Cajueiros e Bom Jesus los, os terreiros do candomblé fo- no Maranhão; o quilombo do Marmelo ram sempre fustigados por severas em Goiás; Droga e São Mateus no Es- restrições policiais. E, pelo menos pírito Santo; Campinho, Município de nos últimos vinte anos, o cerco Parati, Rio de Janeiro. À medida que movido pela polícia foi sensivel- desenvolvíamos a pesquisa, foram sur- mente fortalecido por um podero- gindo notícias de outros quilombos, em so aliado _ a expansão imobiliária, quase todos os Estados e Territórios do que se estendeu às áreas distantes Brasil. O número enorme de exemplos do centro da cidade onde resso- aumentou tanto o universo de pesquisa avam os atabaques. Mais ainda, que o Ipeafro se encontrou sem os meios em nenhum momento a Prefeitu- adequados para cobri-lo suficientemen- ra esboçou barricadas legais para te. Entretanto a revista Afrodiáspora, proteger esse reduto da cultura editada pelo Instituto, vai dedicar um afro-brasileira _ embora a capital número aos resultados desse começo de baiana arrecadasse gordas divisas pesquisa. com a exploração do turismo fo- Dia Nacional da Consciência Negra, Aniversário de Zumbi Abdias Nascimento 103

mentado pela magia dos orixás. se pensa, porque houve época em (...) E nunca se soube da aplicação que o negro tinha representativi- de sanções para os inescrupulosos dade e uma força econômica. proprietários de terrenos vizinhos às casas de culto, que se apossam Temos aqui uma pequena amostra impunemente de áreas dos ter- do cerco de destituições levantado pela reiros. Foi assim que, em poucos sociedade dominante em torno do des- anos, a Sociedade Beneficente cendente de africanos. À destituição das São José do Engenho Velho, ou terras do negro, seguem-se o desempre- terreiro da Casa Branca, acabou go, a fome, o genocídio. Não escapam perdendo metade de sua antiga à destruição implacável nem mesmo área de 7.500 metros quadrados. as instituições religiosas seculares, as Mais infeliz ainda, a Sociedade quais de uma hora para outra veem seu São Bartolomeu do Engenho Ve- espaço sagrado invadido e usurpado por lho da Federação, ou Candomblé representantes das elites dominantes. de Bogum, assiste impotente à veloz redução do terreno sagrado Quilombismo: um conceito onde se ergue a mítica ‘árvore de científico-histórico-social Azaudonou’ _ trazida da África há 150 anos e periodicamente agre- Conscientes da extensão e pro- dida por um vizinho que insiste fundidade dos problemas que têm de em podar seus galhos mais fron- enfrentar diariamente, os negros sabem dosos. que a sua oposição ao que aí está vigente não se esgota com pequenas reivindica- Com todo fundamento nesses an- ções de caráter empregatício ou de direi- tecedentes, o cineasta Rubem Confete tos civis, no âmbito da dominante socie- denunciou numa mesa-redonda patroci- dade capitalista-burguesa e sua classe nada pelo Pasquim (14-9-79, p.4): média organizada. Terão de derrocar todas as componentes do sistema social Quanto foi roubado dos ne- existente, inclusive a sua intelligentsia, gros! Conheço cinco famílias que responsável pela cobertura ideológica perderam todas suas terras para o da opressão do afro-brasileiro por meio Governo e para a Igreja Católica. da teorização, seja de sua inferioridade Jurandir Santos Melo era pro- biossocial, da miscigenação sutilmente prietário das terras desde o atual compulsória ou do mito da “democra- aeroporto de Salvador até a cida- cia racial”. Essa “inteligência”, aliada a de. Hoje é um simples motorista, mentores europeus e norte-americanos, vivendo de pequenos cachês. A fabricou uma “ciência” histórica ou hu- família de Ofélia Pttman possuía mana que ajudou a massacrar e explorar toda a parte que hoje é o Macken- os africanos e seus descendentes, justi- zie. A coisa foi mais séria do que ficando esse crime por meio de sua de- THOTH 6/ dezembro de 1998 104 Sankofa: Memória e Resgate

sumanização. Prova-se dessa forma que as suas mentiras, a sua ideologia de su- a ciência europeia e/ou euro-brasileira premacismo europeu, a lavagem cere- não é apropriada para o povo negro. bral com que pretendia roubar a nossa Uma ciência histórica que não serve às humanidade, a nossa identidade, a nos- necessidades históricas do povo ao qual sa dignidade, liberdade e autoestima. se refere nega-se a si mesma. Proclamando a falência da colonização Como poderiam as chamadas mental eurocentrista, celebramos o ad- ciências humanas (etnologia, econo- vento da libertação quilombista. mia, história, antropologia, sociologia, Nós, os negros brasileiros, te- psicologia etc) nascidas, cultivadas e mos como projeto coletivo a ereção de definidas por e para povos e contextos uma sociedade fundada na justiça, na socioeconômicos diferentes, prestar útil igualdade e no respeito a todos os seres colaboração ao povo negro-africano, em sua realização existencial, em seus humanos; uma sociedade fundada na li- problemas, aspirações e projetos? Se- berdade, cuja natureza intrínseca torne ria a ciência social elaborada na Euro- impossível a exploração e o racismo. pa ou nos Estados Unidos tão universal Uma democracia autêntica, erigida pe- em sua aplicação? A raça negra conhe- los destituídos e deserdados deste País. ce na própria carne a falaciosidade do Não nos interessa a restauração de for- “universalismo” e da “isenção” dessa mas caducas de instituições políticas, “ciência” eurocentrista. Aliás, a ideia de sociais e econômicas; isso serviria uni- uma ciência histórica pura e universal camente para procrastinar o advento está ultrapassada, até mesmo nos círcu- de nossa emancipação total, que exige los científicos responsáveis europeus ou a transformação radical das estruturas norte-americanos. O conhecimento de vigentes. Não nos interessa a proposta que os negros necessitam é aquele capaz de uma adaptação aos moldes da socie- _ de ajudá-los a formular teoricamente dade capitalista e de classes. Confiamos _ de forma sistemática e consistente sua na idoneidade mental do povo negro e experiência de cinco séculos de opres- acreditamos na reinvenção de nós mes- são, resistência e luta criativa. Haverá mos e de nossa história. Reinvenção erros e equívocos inevitáveis em nossa de um caminho afro-brasileiro de vida busca de sistematização dos nossos va- fundado em sua experiência histórica, lores, em nosso esforço de autodefini- ção e autogoverno rumo aos caminhos na utilização do conhecimento crítico e do futuro. Não importa. Durante séculos inventivo de nossas próprias instituições temos carregado o peso dos crimes e dos socioeconômicas, golpeadas pelo colo- erros do eurocentrismo “científico”, os nialismo e o racismo. Enfim, reconstruir seus dogmas impostos sobre nós como no presente uma sociedade dirigida ao marcas ígneas da verdade definitiva. futuro, mas levando em conta aquilo Agora devolvemos ao obstinado seg- que ainda for útil e positivo no acervo mento “branco” da sociedade brasileira do nosso passado. Dia Nacional da Consciência Negra, Aniversário de Zumbi Abdias Nascimento 105

Um instrumento conceitual ope- interação social propõe e assegura a rea- rativo se coloca, pois, na pauta das ne- lização completa do ser humano. Nessa cessidades imediatas da gente negra dinâmica, todos os fatores e elementos brasileira. Ele não deve e não pode ser básicos da economia são de proprieda- o fruto de uma maquinação cerebral ar- de e uso coletivos. Disso resulta que o bitrária, falsa e abstrata. Nem tampouco trabalho não se define como uma forma pode ser um elenco de princípios impor- de castigo, opressão ou exploração; ele tados, elaborados a partir de contextos é primariamente uma forma de liberta- e de realidades diferentes. A cristaliza- ção humana da qual todo cidadão des- ção dos nossos conceitos, definições e fruta como um direito e uma obrigação princípios deve exprimir a vivência de social. cultura da coletividade negra. Só assim Os quilombolas dos séculos XVI, estaremos incorporando nossa integri- XVII, XVIII e XIX nos legaram um pa- dade de ser total, em nosso tempo histó- trimônio de prática quilombista. Cum- rico, enriquecendo e aumentando nossa pre aos negros contemporâneos manter capacidade de luta. e ampliar essa cultura afro-brasileira Onde poderemos encontrar essa de resistência e de afirmação da nossa vivência de cultura coletiva? Nos qui- verdade. Um método de análise social, lombos. Quilombo não significa escravo compreensão e definição de uma experi- fugido, conforme nos ensinam as defini- ência concreta, o quilombismo expressa ções convencionais. Significa reunião uma teoria científica inextricavelmente fraterna e livre; encontro em solidarie- fundida à nossa prática histórica. dade, convivência, comunhão existen- cial. A sociedade quilomba ou quilom- Condenada a sobreviver cercada bista representa uma etapa avançada no e permeada pela hostilidade oculta ou progresso humano e sociopolítico em mascarada das classes dominantes, a so- termos de igualitarismo econômico. Os ciedade afro-brasileira é o fundamento precedentes históricos conhecidos con- ético do quilombismo. O quilombismo firmam essa afirmação. Como sistema tem seu ponto focal e seu pivô no ser econômico, o quilombismo tem sido a humano, como ator e sujeito, dentro de adequação, ao meio brasileiro, do comu- uma visão de mundo em que a ciência nitarismo e/ ou ujamaaísmo da tradição constitui apenas uma entre outras vias africana. Em tal sistema, as relações de de conhecimento. produção diferem basicamente daquelas prevalecentes na economia espoliativa ABC do quilombismo de degradação social do trabalho, fun- dada na razão do lucro a qualquer custo, Na trajetória histórica que esque- principalmente no lucro obtido com o matizamos nestas páginas, o quilom- suor e o sangue do africano escraviza- bismo tem-nos fornecido várias lições. do. O quilombismo articula os diversos Tentaremos resumi-las num ABC fun- níveis da vida comunitária e na dialética damental que nos ensina que: THOTH 6/ dezembro de 1998 106 Sankofa: Memória e Resgate

a) Afro-brasileiro é o termo que c) Comunalismo africano, a devemos adotar para evitar a exploração exemplo do exposto pelo gran- das diferenças de cor, feita com o intuito de líder , da Tanzânia, é de dividir a população negra em cate- um elemento inspirador do quilombis- gorias como “mulato”, “cafuso”, “mo- mo. Não devemos aceitar certas defini- reno”, “escurinho” e assim por diante. ções “científicas” sobre o comunalismo Esses eufemismos, sempre valorizando africano e o ujamaaísmo como formas o que está mais próximo do ideal racista arcaicas e obsoletas de organização so- da beleza, isto é, o modelo louro euro- cioeconômica. Refletindo a arrogância eurocentrista, essa posição implicita- peu, só servem para confundir nossa co- mente nega às instituições nascidas da munidade, que precisa de unidade para realidade histórica africana sua capa- enfrentar o racismo que discrimina tanto cidade intrínseca de desenvolvimento o mulato quanto o mais retinto. autônomo relativo de progresso e atu- Autoritarismo de quase 500 anos alização. Assim, essa teoria endossa o já basta. Não podemos, não devemos e pressuposto de que a ocupação colonial não queremos tolerá-lo por mais tempo. da África determinasse o desapareci- Uma das práticas básicas desse autori- mento dos valores e instituições africa- tarismo é o desrespeito brutal da polí- nas, marcando o ponto de partida do seu cia às famílias negras. Toda sorte de “desenvolvimento”, isto é, de sua oci- arbitrariedade policial aciona as batidas dentalização. Na perspectiva da arro- que a polícia faz rotineiramente para gância mencionada, as formas de vida manter aterrorizada e desmoralizada a africanas são vistas como não dinâmi- comunidade afro-brasileira. Assim, fica cas, quietistas e imobilizadas diante da confirmada para os próprios negros sua história. Tal visão petrificada da África condição de impotência: são incapazes e suas culturas não passa de uma ficção. até mesmo de defender suas famílias e O quilombismo se propõe resgatar o sentido de organização socioeconômi- os membros de sua comunidade. Trata- ca concebida para servir e enriquecer -se de manter os afro-brasileiros num a existência humana, organização que estado de permanente frustração e hu- existiu na Áfríca e veio para o Brasil milhação. com os africanos escravizados. A socie- b) Banto denomina-se um povo dade brasileira contemporânea pode be- ao qual pertenceram os primeiros afri- neficiar-se com o modelo quilombista, canos escravizados que vieram para o uma alternativa nacional que se oferece Brasil, procedentes de países que hoje em substituição ao desumano sistema se chamam Angola, Congo, Zaire, Mo- do capitalismo selvagem. çambique e outros. Foram os bantos Cuidar de organizar nossa luta os primeiros quilombolas a confrontar por nós mesmos é um imperativo de em terras brasileiras o poder militar do nossa sobrevivência como povo. Deve- branco escravizador. mos, por isso, ser muito criteriosos ao Dia Nacional da Consciência Negra, Aniversário de Zumbi Abdias Nascimento 107

fazer alianças com outras forças políti- g) Garantir à nossa gente o seu cas. Toda aliança deve obedecer a um lugar na hierarquia de poder e decisão, propósito tático ou estratégico, e o ne- mantendo sua integridade etnocultural, gro precisa ter poder de decisão, a fim é a motivação básica do quilombismo. de não permitir que nosso povo seja ma- h) Humilhados que fomos e so- nipulado por interesses estranhos à sua mos todos nós, negro-africanos, com causa própria. todos eles devemos manter íntimo con- d) Devemos ampliar sempre nossa tato e relação. Assim também com as frente de luta, tendo em vista: 1. o obje- organizações africanas independentes, tivo de longo alcance da transformação tanto da diáspora quanto do continente, radicaI das estruturas socioeconômicas desenvolvendo instrumentos de aliança e culturais da sociedade brasileira; 2. os e solidariedade. Ao mesmo tempo, de- alvos táticos imediatos. Nessa categoria senvolver relações estreitas com a ONU se incluem ampla campanha de registro e seus órgãos engajados no combate ao do analfabeto para votar e a anistia aos racismo. prisioneiros políticos negros. Desde a i) Infalível como um fenômeno proclamação da República, em 1889, da natureza será a perseguição do poder tem-se negado o direito de voto ao anal- branco ao quilombismo. Está na lógica fabeto como meio de excluir o negro inflexível do racismo brasileiro jamais do processo político do País. Agora que permitir a existência de qualquer movi- finalmente se estabeleceu esse direito, mento político-libertário dos negros, a precisamos organizar nossa gente para força popular majoritária. votar. Os prisioneiros políticos negros j) Jamais as organizações polí- são maliciosamente fichados pela polí- ticas afro-brasileiras devem permitir o cia como desocupados, vadios, malan- acesso a brancos ou negros não quilom- dros, marginais, e seus lares frequente- bistas a posição de poder e com autori- mente invadidos. Uma vez fichados na dade para obstruir a ação ou influenciar polícia, esses cidadãos afro-brasileiros os posicionamentos teóricos e práticos ficam à mercê de toda e qualquer arbi- em face da luta. trariedade policial. k) Kimbundo, língua do povo ban- e) Ewe ou Gêge, povo africano to, chegou ao Brasil com os escravos de de Gana, Togo e Daomé (Benim), de Angola, Congo e Zaire, principalmente. onde vieram milhões de africanos es- Essa língua exerceu notável influência cravizados para o Brasil. Os Ewes são sobre o português falado no País. parte do nosso povo e de nossa herança l) Livrar o Brasil dessa industria- afro-brasileira. lização artificial, tipo “milagre econô- f) Formar os quadros do quilom- mico”, está nas metas do quilombismo. bismo é fundamental, isso significando Nesse esquema o negro é explorado ao a mobilização e a organização do povo mesmo tempo pelo capitalista e pela negro. classe trabalhadora “qualificada”. O ne- THOTH 6/ dezembro de 1998 108 Sankofa: Memória e Resgate

gro como trabalhador “desqualificado” gantes, aos maliciosos, aos apressados é duplamente vítima: da raça (branca) de julgamento: o vocábulo raça, no sen- e da classe (trabalhadora “qualifica- tido aqui empregado, define-se em ter- da” e burguesia de qualquer raça). O mos de história e cultura, e não de pure- quilombismo propõe para o Brasil um za biológica, que nunca existiu.) conhecimento científico e técnico que n) Nada de mais confusões: se no possibilite uma genuína industrializa- Brasil efetivamente houvesse igualdade ção, dinamizando um novo avanço da de tratamento, de oportunidades concre- autonomia nacional. O quilombismo tas, de respeito, de poder político e eco- condena a entrega da nossa reserva nômico; se o encontro entre pessoas de mineral e da nossa economia às cor- raças diferentes ocorresse espontanea- porações monopolistas internacionais; mente e livre da pressão do status socio- porém tampouco defende os interesses econômico do branco; se não houvesse de uma elite nacional. O negro-africano outros condicionamentos repressivos, foi o primeiro e o principal artífice da embora sutis, de caráter moral, estético, formação econômica do País: a riqueza religioso etc., então, sim, a miscigena- nacional pertence a ele e a todo o povo ção seria um acontecimento positivo, brasileiro que a produz. capaz de enriquecer a sociedade brasi- m) Miscigenação é uma balela leira, a cultura e a humanidade. da “democracia racial”, a maior mentira o) Obstar o ensinamento e a prá- nacional do Brasil. A miscigenação e a tica genocidas do supremacismo branco política imigratória proibindo a radica- é o fator substantivo do quilombismo. ção de africanos no Brasil foram pro- movidas como meio de embranquecer p) Poder quilombista quer dizer: o povo brasileiro, eliminando dele o a raça negra no poder. Os descendentes elemento negro (inferior) para atender de africanos somam a maioria de nossa ao critério racista de “preservar” a as- população. Portanto, o poder negro será cendência europeia, tida como superior. um poder essencialmente democráti- A miscigenação nunca se deu massiva- co. (Reitero mais uma vez a advertên- mente à base do intercasamento, e sim cia aos intrigantes, aos maliciosos, aos da exploração sexual da mulher negra. ignorantes, aos racistas: neste texto a O intercasamento foi promovido na me- palavra raça tem uma acepção histórico- dida em que existe socialmente como -cultural. Raça biologicamente pura não fruto de uma compulsão social racista existe e nunca existiu.) de “melhorar a raça”, isto é, torná-Ia q) Quebrar a eficácia de certos mais branca, numa nítida expressão de slogans que atravessam a história de cultura racista. A miscigenação, ou mis- nossa luta contra o racismo é um dever tura de raças, quando ocorre espontane- do quilombista. Entre esses slogans está amente, e não como imposição social de aquele dizendo que a única luta legíti- valores racistas, é dos mais louváveis ma é a de todo o proletariado, de todo fenômenos humanos. (Aviso aos intri- o povo ou de todos os oprimidos. Os Dia Nacional da Consciência Negra, Aniversário de Zumbi Abdias Nascimento 109

privilégios raciais vêm sendo conferi- nhecido na história dos seres humanos. dos ao branco em detrimento do negro O racismo é a primeira contradição que desde o mundo antigo. A luta “única” o negro enfrenta na moderna sociedade ou “unida” que pregam não consegue industrial multiétnica. A essa contradi- ocultar o desprezo que nos votam, não ção se juntam outras, como a de classe respeitando nossa identidade nem a es- e de sexo. pecificidade da nossa luta e da opressão s) Swahili é uma língua de origem que nos atinge. banto, influenciada por outros idiomas, r) Raça: acreditamos que todos especialmente o árabe. Atualmente é fa- os seres humanos pertencem à mesma lada por mais de 20 milhões de africa- espécie. Para o quilombismo, raça sig- nos da Tanzânia, do Quênia, de Uganda, nifica um grupo humano que possui em do Burundi, do Zaire etc. O swahili tem comum não somente algumas caracte- sido escolhido em várias reuniões in- rísticas somáticas, mas sobretudo um ternacionais de professores e escritores complexo de fatores históricos, cultu- como a língua franca internacional afri- rais e ambientais. cana, meio de transcender as barreiras Tanto a aparência física como os coloniais criadas pelo uso do francês, do traços psicológicos, de personalidade, inglês, do português, do espanhol, entre de caráter e emotividade sofrem a influ- os povos africanos. Os afro-brasileiros ência da cultura, da sociedade, da gené- necessitam aprender o swahili com ur- tica, do meio geográfico e da história, gência. que se somam e se complementam. O t) Todo negro ou mulato (afro- cruzamento de grupos raciais diferentes -brasileiro) que aceita a “democracia e/ou de pessoas de identidades raciais diversas está na linha dos mais legítimos racial” como uma realidade e consi- e nobres interesses de sobrevivência da dera positiva a miscigenação na forma espécie humana. vigente, isto é, uma compulsão social branqueadora ditada pela sociedade do- Racismo: é a crença na inerente minante, está traindo a si mesmo e se superioridade de uma raça sobre outra. considerando inferior. Tal superioridade é concebida em ter- mos biológicos e na dimensão psico- u) Unanimidade é algo impos- -sócio-cultural. Esse é um aspecto nor- sível na dinâmica social e política. Por malmente negligenciado ou omitido nas isso não devemos perder tempo e ener- definições tradicionais do racismo, que gia com as críticas vindas de fora do focalizam a cor epidérmica. A elabora- movimento quilombista. A dialética do ção teórico-científica produzida pela nosso progresso aconselha que desen- cultura europeia justificando a escravi- volvamos uma construtiva autocrítica zação, desumanização e inferiorização para ampliar nossa consciência quilom- dos povos africanos constitui um nível bista rumo ao objetivo final: a ascensão de racismo depravado e cruel jamais co- do povo afro-brasileiro ao poder THOTH 6/ dezembro de 1998 110 Sankofa: Memória e Resgate

v) Vadiagem, contravenção se- Alguns princípios e propósitos do qui- gundo nosso Código Penal. Desde o sé- lombismo culo passado, essa configuração visa a 1. O quilombismo é um movi- impor um estado de terror permanente mento político dos negros brasileiros, sobre as famílias negras. Sem emprego visando à implantação de um Estado e muitas vezes sem moradia, o negro Nacional Quilombista, inspirado no está automaticamente sujeito a ser en- modelo da República dos Palmares, no quadrado, mesmo sem cometer nenhum século XVI, e em outros quilombos que ato criminoso. A polícia invade os lares existiram e existem. Dessa forma, o qui- e violenta as comunidades negras im- lombismo representa uma proposta de punemente, amparada nesse dispositivo organização política e social inspirada legal. É uma prioridade do quilombismo na experiência histórica afro-brasileira. revogá-lo imediatamente. Não se trata, conforme o entendimento w) Voto ao analfabeto, nega- equívoco de algumas pessoas, de um do durante toda a nossa história, agora separatismo do negro brasileiro. Apenas constitui uma conquista do povo brasi- advoga-se o poder político realmente leiro. Organizar nossa gente para exer- democrático, que implica a presença da cer esse direito e votar constitui uma maioria afro-brasileira em todos os ní- tarefa urgente do quilombismo. veis desse poder. x) Xingar não basta. Precisamos 2. O Estado Nacional Quilombis- é mobilizar a gente negra, mantendo a ta tem sua base numa sociedade livre, luta antiga energicamente, sem descan- justa e soberana. O igualitário democrá- so e sem pausa, contra as destituições, a tico quilombista é compreendido no to- humilhação e a pobreza. Até que ponto cante a raça, economia, sexo, sociedade, vamos continuar assistindo impotentes à religião, política, justiça, educação, cul- nossa própria exterminação pela fome, tura, enfim, em todas as expressões da moléstia, assassínio policial e miséria vida em sociedade. O mesmo igualita- dos nossos irmãos e irmãs afro-brasilei- rismo se aplica a todos os níveis de po- ros, principalmente das crianças negras der e de instituições públicas e privadas. deste País? 3. A finalidade básica do Esta- y) Yornba (nagô) somos também do Nacional Quilombista é promover em nossa africanidade brasileira. Os a felicidade do ser humano. O quilom- yornbas são parte fundamental do nos- bismo acredita numa economia de base so povo, da nossa cultura, da religião comunitário-cooperativista nos setores afro-brasileira, de nossa luta e de nosso de produção, distribuição e divisão da futuro. riqueza nacional. z) Zumbi: o fundador do quilom- 4. O quilombismo considera a bismo, o zênite desta hora histórica, zê- terra uma propriedade nacional de uso nite deste povo afro-brasileiro. coletivo. As fábricas e outras instala- Dia Nacional da Consciência Negra, Aniversário de Zumbi Abdias Nascimento 111

ções industriais, os bens e instrumentos procurará estimular todas as potencia- de produção, da mesma forma que a ter- lidades do ser humano à sua plena rea- ra, são de propriedade e uso coletivo da lização. Combater o embrutecimento e sociedade. Os trabalhadores rurais ou a apatia forçada, impostos pela miséria, camponeses trabalham a terra e são di- pela mecanização da existência e pela rigentes das instituições agropecuárias. burocratização das relações humanas Os operários de modo geral são os úni- e sociais, é um ponto fundamental da cos responsáveis pela orientação e ge- política quilombista. As artes em geral rência de suas respectivas unidades de ocuparão um espaço básico no sistema produção. educativo e no contexto de atividades 5. No quilombismo, o trabalho sociais da coletividade quilombola. é um direito e uma obrigação social; 9. No quilombismo, não haverá os trabalhadores, que criam a riqueza religiões cultas e religiões populares, agrícola e industrial da sociedade, são isto é, as religiões das elites endossadas os únicos donos do produto do seu tra- como verdadeiras, e as religiões do povo balho. desprezadas e ridicularizadas. Da mes- 6. A criança negra tem sido a ma forma, não existirá “cultura erudita” vítima predileta e indefesa da miséria e “cultura popular”, uma elevada e outra material e moral imposta à comunidade folc1orizada e menosprezada. Todas as afro-brasileira. Por isso, ela constitui a religiões merecem as mesmas garantias preocupação urgente e prioritária do de culto, e toda manifestação cultural quilombismo. Cuidado pré-natal, ampa- merece igual respeito e tratamento pelas ro à maternidade, creches, alimentação autoridades públicas. adequada, moradia higiênica e huma- 10. O Estado Quilombista proí- na são alguns dos itens relacionados à be a existência de um aparato burocrá- criança negra dentro do programa de tico estatal que perturbe ou interfira na ação do movimento quilombista. mobilidade vertical das massas em sua 7. A educação e o ensino em to- relação e comunicação direta com os dos os graus _ elementar, médio e su- dirigentes. Nessa relação dialética dos perior _ serão completamente gratuitos membros da sociedade com as suas ins- e abertos, sem distinção, a todos os tituições repousa o sentido progressista membros da sociedade quilombista. A e dinâmico do quilombismo. história da África, suas culturas, civili- 11. A proposta quilom- zações, sistemas político-econômicos e bista é fundamentalmente anti- artes terão um lugar eminente nos currí- -racista,anticapitalista, antilatifundiária culos escolares. Criar uma universidade e antineocolonialista. afro-brasileira é uma necessidade para a 12. Em todos os órgãos de poder realização do programa quilombista. do Estado Quilombista _ legislativo, 8. Visando o quilombismo à fun- executivo e judiciário _, a metade dos dação de uma sociedade criativa, ele cargos eletivos, de confiança ou nome- THOTH 6/ dezembro de 1998 112 Sankofa: Memória e Resgate

ados deverá ser ocupada por mulheres, o trabalho do Comitê para a Eliminação como norma constitucional. O mesmo da Discriminação Racial, órgão das Na- se aplica a todo e qualquer setor ou ins- ções Unidas. tituição privada ou de serviço público. 13. O quilombismo considera a Semana da Memória Afro-Brasileira transformação das relações de produção e da sociedade de modo geral, por meios Em 1980, ao formular a proposta não violentos e democráticos, uma via política do quilombismo, e no intuito de possível. atender à urgente necessidade do negro de recuperar sua memória histórica, su- 14. É matéria urgente para o qui- geri à comunidade negra a instituição de lombismo a organização de uma insti- uma Semana da Memória Afro-Brasilei- tuição econômico-financeira em moldes ra. Nela seriam focalizados os fatos his- cooperativos, capaz de assegurar a ma- tóricos que tiveram como protagonistas nutenção e a expansão da luta quilom- os 300 milhões de africanos retirados, bista a salvo das interferências contro- sob violência hedionda, de suas terras e ladoras do paternalismo ou das pressões trazidos acorrentados para o continente do poder econômico. das Américas. Por intermédio dessas ce- 15. Basicamente, o quilombismo lebrações anuais, a comunidade negra é um defensor da existência humana e não só honraria os seus antepassados como tal ele se coloca contra a poluição como reforçaria a sua própria coesão e ambiental e favorece todas as formas de identidade, transmitindo às novas gera- melhoramento do meio ambiente que ções um exemplo de amor à nossa histó- possam assegurar uma vida saudável ria e uma percepção mais clara do papel para as crianças, os adultos, os animais, fundamental desempenhado pelos es- as criaturas do mar, as plantas, as selvas, cravos africanos na construção do nosso as pedras e todas as manifestações da País. A Semana da Memória Afro-Brasi- natureza. leira infundiria aos jovens um merecido 16. O Brasil é signatário da Con- autorrespeito coletivo, substituindo o venção Internacional para a Eliminação sentimento de vergonha e frustração que de Todas as Formas de Discriminação a sociedade dominante instila na cons- Racial, adotada pela Assembleia Geral ciência dos negros como única herança das Nações Unidas em 1965. No sentido deixada por seus ancestrais. de cooperar para a concretização de ob- Segundo a proposta feita em jetivos tão elevados e generosos, e ten- 1980, a Semana deve aliar aos aspectos do em vista o art. 9o, parágrafos 1o e 2o celebrativos o exercício de uma cons- da referida Convenção, o quilombismo tante pesquisa, crítica e reflexão sobre con1ribuirá para a pesquisa e a elabora- o passado e o presente da população de ção de um relatório bianual, abrangendo origem africana no Brasil. Isso contri- todos os fatos relativos à discriminação buirá para ampliar e fortalecer o quilom- racial ocorridos no País, afim de auxiliar bismo em sua filosofia teórica e prática. Dia Nacional da Consciência Negra, Aniversário de Zumbi Abdias Nascimento 113

A Semana implica também um estímulo existir organização afro-brasileira ou tanto às organizações negras recreativas escola interessada na Semana, as famí- ou beneficentes quanto às de caráter lias negras deverão preencher a função cultural, social ou político, igualadas no de seus realizadores. interesse básico de melhorar o destino A proposta original, publicada no da família afro-brasileira. Todas elas se livro O quilombismo (1980), especifica inserem na perspectiva quilombista que para a realização da Semana um calen- estamos sistematizando. dário começando no dia 14 de novem- Essa Semana deve ser um exer- bro e culminando no dia 20, Dia Nacio- cício de emancipação, nunca uma co- nal da Consciência Negra. Hoje tenho a memoração convencional, estática e grande satisfação de constatar que, em retórica, propondo unicamente a evoca- quase todo o País, existem programa- ção de fatos, datas, nomes e coisas do ções da mesma natureza dessa Semana, passado. Estudar os feitos dos antepas- em torno exatamente do dia 20 de no- sados deverá estimular a imaginação e vembro, Dia Nacional da Consciência a ação transformadora do presente, ao Negra. Considero esse fato uma vitória contrário da contemplação saudosista da luta quilombista desenvolvida pela do pretérito, insinuando ou cultivando a coletividade afro-brasileira durante as autoflagelação coletiva. últimas décadas. A sociedade dominan- Resgatar a nossa memória sig- te não pode mais ignorar a importância nifica resgatarmos a nós mesmos das desse dia, ao redor do qual a comunida- armadilhas da negação e do esqueci- de negra se está esforçando para pôr em mento: significa estarmos reafirmando prática uma celebração de sua experiên- a nossa presença ativa na história pan- cia no passado e de sua movimentação -africana e na realidade universal dos no presente. Essas comemorações em seres humanos. muitos casos são realizadas com o apoio A Semana deve ser promovida, de secretarias estaduais ou municipais ainda segundo a proposta original, por de cultura e/ou de educação, dentro do organização negra. Entretanto ela po- contexto democrático da chamada Nova derá também ser realizada por escolas República, fato que ilustra o êxito que públicas ou privadas com interesse no o movimento negro alcançou na impo- progresso cívico da comunidade afro- sição do Dia Nacional da Consciência -brasileira. Nesse caso, levando-se em Negra como fato cultural nacional. Um conta que de modo geral as escolas não exemplo é o Projeto Zumbi dos Palma- são dirigidas por negros, os afro-brasi- res, da Secretaria de Educação e Cultura leiros presentes devem estar bem alertas do Município do Rio de Janeiro, engaja- para impedir que os fatos históricos e os do no desenvolvimento de um trabalho sucessos da vida negra sejam manipu- pioneiro dentro dos propósitos dessa Se- lados ou distorcidos, seja por malícia, mana de Memória. Na serra da Barriga, ignorância ou negligência. Onde não no dia 20 de novembro deste ano, cele- THOTH 6/ dezembro de 1998 114 Sankofa: Memória e Resgate

braremos mais uma vez o Dia Nacional Brasil. Axé, Brasil. Axé, Zumbi! (Pal- da Consciência Negra, no próprio local mas.) de sua origem histórica, com a feliz di- mensão adicional de seu histórico tom- Sala das Sessões, 13 de novembro de bamento como Patrimônio Nacional do 1985. Pronunciamento feito no Senado Fe- deral, Sessão de 14 de novembro de A luta afro- 1991.

-brasileira no Senhor Presidente, Senado Senhores Senadores, Senhores Embaixadores, Senhores Representantes Diplomá- ticos, Meus companheiros e companhei- ras do Movimento Negro,

Senhores e Senhoras:

Sob a proteção de Olorum e de nossos orixás, a esta tribuna não ascen- de, neste momento, apenas um senador do Partido Democrático Trabalhista, re- presentante do Estado do Rio de Janeiro, nem tampouco o economista ou o teatró- logo, antes entregador de doces que sua mãe fazia, ou o faxineiro que estudava à noite, nem o professor universitário e ar- tista plástico, autor de obras sociológicas THOTH 6/ dezembro de 1998 116 Sankofa: Memória e Resgate

e políticas, que lecionou e trabalhou nos saudosa mãe Georgina Ferreira do Nas- Estados Unidos e na África, ainda que cimento, digna de todo o alto rigor da exilado e perseguido. Ocupa esta tribu- tradição africana relativa à figura mater- na um afro-brasileiro, um homem co- na. Foi ela quem me iniciou no trabalho mum, consciente de sua origem africana como entregador de doces e me mostrou e que jamais abdicou dos seus direitos o caminho do estudo como instrumento de cidadão brasileiro. de defesa intransigente da justiça para Fala aqui, Senhor Presidente, todos. Meu pai, José Ferreira Nasci- um sobrevivente do maior holocausto mento, sapateiro de Franca, cujos filhos já vivido por um povo na História da andavam descalços, ensinou-nos a ho- Humanidade: mais de 200 milhões de nestidade e a humildade como virtudes assassinatos entre os portos de embar- de autoestima, ao mesmo tempo em que que na África, os porões dos navios ne- cultivava na música a doçura de uma greiros e as Américas. São quinhentos vida simples, difícil e dura, mas trans- anos de escravidão no Brasil, escravi- bordante de carinho e calor humano. dão que ainda perdura nas formas ver- Tributo a Doutel de Andrade gonhosas da opressão, da humilhação e da discriminação racial. Estão ouvin- No contexto desta tradicional do, senhores senadores, um filho desse evocação dos ancestrais, presto ainda povo heróico construtor de civilizações uma homenagem muito especial à figu- milenares, que veio acorrentado para as ra singular, inteiriça e honrada do depu- terras “recém-descobertas” das Améri- tado e líder do PDT na Câmara Federal, cas. E é em nome dele que estou aqui Doutel de Andrade, que há pouco nos neste momento. Evoco aqueles que me deixou. Cofundador e líder do antigo antecederam nesta luta que me traz hoje PTB, foi o infatigável e precioso colabo- a esta tribuna: na pessoa de Zumbi dos rador do Governador Leonel Brizola na Palmares, rendo minhas homenagens a construção do nosso PDT, desde os tem- todos os africanos e afro-brasileiros que pos do exílio. Na presidência nacional batalham e batalharam por amor a seu do Partido, foi Doutel um dos grandes povo e ao Brasil, seguindo a longa tra- responsáveis no fazer do PDT o legíti- dição africana que remonta à linha das mo representante do socialismo demo- rainhas-mães e guerreiras Kentake da crático do Brasil, integrante também do antiga Núbia, Yaa Asaantewa de Gana mais avançado fórum político do mundo e Nzinga de Angola, chegando ao Bra- contemporâneo, a Internacional Socia- sil nas pessoas de Dandara, Aqualtune e lista. Quando faleceu, na condição de Luísa Mahin. Axé Babá! primeiro suplente de senador, nos dei- Em segundo lugar, mais que um xou um vazio impreenchível com a per- tributo, uma incontida palavra de sauda- da de sua personalidade magnética e do de e de respeito aos meus pais, ambos fi- brilho de sua aguda inteligência. Hoje, lhos de africanos escravizados. À minha aqui, deveria estar esse político e figura Dia Nacional da Consciência Negra, Aniversário de Zumbi Abdias Nascimento 117

humana cuja grandeza e generosidade inteligências privilegiadas do mundo de se completavam. Sem dúvida, a voz de hoje. Afastou-se do Senado para auxiliar Doutel, mais do que a minha, merecia a o Governador Leonel Brizola no prosse- honra de ser ouvida desta tribuna. guimento da implantação da nova esco- Permita-me agora, Sr. Presidente, la pública, o Centro Integrado de Educa- registrar meus agradecimentos tanto a ção Pública, programa interrompido, na V. Exa, Senador Mauro Benevides, dig- incúria e na incompetência, pelo último no presidente desta Casa, assim como governo do Rio de Janeiro. Se é gran- aos ilustres senadores que me saudaram de a minha responsabilidade ao assumir por ocasião da minha investidura como esta cadeira, maior é o meu entusiasmo Senador da República: Mauricio Cor- ao enfrentar este desafio. rêa, eminente líder do meu partido nesta Casa; o combativo Eduardo Mattara- “Democracia racial”: uma impostura zzo Suplicy, cuja companhia me honra cívico-sociológica desde minha passagem pela Câmara dos Deputados; Divaldo Suruagy, que, Chego, Senhor Presidente, a esta ainda Governador do seu Estado, já me mais alta instância do Parlamento do recebia no Palácio dos Martírios junto meu País sem execrar uma só palavra, com meus companheiros quilombo las sem extirpar um só gesto, sem aban- do Memorial Zumbi; João Calmon, cuja donar por um instante a luta a que me luta em prol da educação foi inesquecí- entreguei desde a infância que não tive. vel quando, também, me acompanhava Para chegar até aqui, tive de superar no desempenho do mandato de depu- muitas barreiras, algumas até crimino- tado federal, e Chagas Rodrigues, que samente urdidas e praticadas. Parece demonstrou compreender o significado um fato inédito: muitos já me saudaram profundamente democrático do nosso como o primeiro senador negro na his- engajamento na luta pelos direitos hu- tória da política brasileira. Será essa a manos dos afro-brasileiros _ compre- verdade? ensão esta ainda bastante escassa no meio da elite política nacional. Aos que Talvez seja o primeiro, sim, a tão generosamente me recepcionaram, assumir orgulhosamente sua etnia, sua quero corresponder com um desempe- cultura e religião, suas origens africa- nho eficaz, honesto e desassombrado, nas e, sobretudo, a luta coletiva do povo na linha dos libertadores africanos que africano em nosso País. E nela prosse- me têm inspirado, através desses setenta guir, repetindo nesta Casa a vanguar- anos em que tenho empunhado a espada da que desempenhou no seu mandato, justiceira, O agadá de Ogum. também inédito, de deputado afro-bra- Senhor Presidente e Senhores sileiro, comprometido com as causas do Senadores, chego ao Senado para subs- povo negro, destacando-as como causas tituir Darcy Ribeiro, uma das poucas que são do povo e da Nação brasileira. THOTH 6/ dezembro de 1998 118 Sankofa: Memória e Resgate

Por ser inédito, Senhor Presi- eficaz instrumento de poder, dissimular dente, o fato também é surpreenden- o racismo sob o emblema da pobreza, te e assustador, pois, num país onde a marginalizando milhões de patrícios e grande maioria da população descende tentando encobrir mais um complicador de africanos, não constitui um escânda- nas contradições de um país rico e endi- lo que somente agora, 165 anos após a vidado, grande e faminto, belo e doente, organização das instituições legislativas que quer ser europeu a todo custo. nacionais, um homem de ascendência africana, consciente e orgulhoso dessa A “mancha negra” no Senado condição, representando os anseios des- sa imensa população, chegue ao Senado Esta compulsão patológica de ser Federal? branca e europeia está plenamente retra- tada na elite política do nosso País. A resposta a essa pergunta destrói o mito da mentirosa e demagógica “de- Após uma viagem pela história mocracia racial brasileira”, filão que as desta Casa, um olhar perquiridor sobre elites usaram e continuam usando para as origens raciais dos milhares de bra- negar a existência do racismo entre nós, sileiros que ocuparam estas cadeiras no alegando como fator determinante da Império e na República, consegui con- baixa condição social e econômica dos cluir que, antes de mim, mais de duas dezenas de filhos de africanos – aí inclu- afro-brasileiros apenas o relativo subde- ídos pretos, mulatos, pardos, filhos de senvolvimento da nossa economia eoo o primeira e segunda geração – cumpri- fato de eles serem maioria entre os po- ram mandatos no Senado. Tive de usar bres e miseráveis. Negam essas elites o de uma sagacidade de pesquisador à fato de nossa origem africana constituir beira da astúcia, indo a dezenas de fon- invisível e resistente barreira à nossa tes, cruzando vários dados, cotejando mobilidade social, econômica e política. muitas informações, para chegar a esse Neste país majoritariamente africano, número. Isso porque aqueles 22 sena- quantos negros estão nas universidades, dores não assumiram etnicamente a sua nos altos cargos públicos dos Três Pode- condição de afro-brasileiros, muito me- res, no Itamaraty, nas altas patentes das nos as causas da negritude. Por um pro- Forças Armadas? Qual a percentagem cesso de autorrejeição da própria iden- de afro-brasileiros que recebem salá- tidade, omitiram-na em seus currículos rio digno para sustentar suas famílias? e assentamentos no Senado. Biógrafos Quantos estão nos cargos de decisão po- e historiadores, seguindo a tradição de lítica ou econômica, nos Tribunais Su- se manter uma “conveniência social” periores da Justiça brasileira? – na verdade, expressão de um racis- Tem sido uma perversidade útil mo envergonhado – tentaram mascarar às elites dirigentes deste País ignorar a identidades, driblar genealogias, omitir questão racial, a discriminação não co- ascendências, dissimular traços e carac- dificada. Trata-se de uma estratégia, um terísticas étnicas de muitos parlamenta- Dia Nacional da Consciência Negra, Aniversário de Zumbi Abdias Nascimento 119

res que passaram por esta Casa. Retra- bens semoventes, considerando-a uma tistas, pintores e fotógrafos, por ordem “doutrina absurda e execrável”. dos senadores ou de seus familiares, ou O carioca Francisco Otaviano de mesmo por moto-próprio, falsificaram, Almeida Rosa, escritor, poeta e diplo- europeizaram fisionomias, criaram ca- mata, foram abolicionista militante, in- beleiras, procurando esconder o “estig- fluindo decisivamente na aprovação dos ma” africano dos retratados, da mesma projetos de Lei do Ventre Livre, dos Se- forma que outros fizeram aos papas afri- xagenários e da Lei Áurea. Foi cogno- canos São Vitor I, Miltíades e Gelásio I, minado “A Pena de Ouro” da imprensa e aos inúmeros faraós do Egito antigo. brasileira. Para fazer jus aos senadores Outros senadores afro-brasileiros afro-brasileiros que me antecederam, daquela época mostraram-se ambíguos é preciso destacar aqueles que, mesmo ou francamente contrários à abolição. É escondendo a sua identidade de origem, o caso do baiano Zacarias de Góis e Vas- lutaram pelo fim do abominável regi- concelos, por exemplo. Foi presidente me de escravidão no Brasil. O primei- de várias províncias, diversas vezes mi- ro dos senadores de sangue africano, nistro de Estado, presidente do Gabine- por exemplo, foi o baiano Francisco Gê te do Império, deputado e senador pelo Acaiaba de Montezuma, Visconde de Partido Liberal por 13 anos. Embora Jequitinhonha, constituinte de 1823 e negro e abolicionista, por questão mera- senador por 19 anos. Um dos primeiros mente partidária, ele combateu o projeto parlamentares a condenar a importação da Lei do Ventre Livre. de africanos escravizados, ele propôs o Francisco Glicério Cerqueira fim do tráfico negreiro, independente Leite, grande tribuno e propagandista das convenções diplomáticas em vigor, da República, foi o único paulista pre- sendo um precursor da propaganda abo- sente na conspiração da manhã de 15 de licionista. novembro. Senador durante 13 anos, foi capaz, num ato de vergonhosa indigni- Por sua vez, o carioca Francisco dade cívica durante a Convenção de Itu, Sales Torres Homem, médico, diploma- de declarar, referindo-se à crescente, ta e advogado, conselheiro e ministro da campanha abolicionista: “Nosso objeti- Coroa, presidente do Banco do Brasil, vo é fundar a República, fato político, deputado e senador por seis anos, era não libertar os escravos, fato social”. filho de uma quitandeira negra. Desta tribuna, Torres Homem condenou a es- Os evadidos da “Bodorrada” cravidão como sistema desumano, inju- rídico e anticristão. Durante a discussão O baiano João Maurício Wander- da Lei do Ventre Livre, demoliu a argu- ley, Barão de Cotegipe, além de pre- mentação dos escravagistas sobre a pro- sidir o Banco do Brasil e o Conselho priedade dos africanos na condição de de Ministros, foi senador por 33 anos, THOTH 6/ dezembro de 1998 120 Sankofa: Memória e Resgate

presidindo o Senado durante três deles. Deputados, senadores Mesmo sendo negro, foi o maior escra- Gentis-homens, viadores, vocrata que o Parlamento conheceu, Belas damas emproadas, lutando tenazmente contra a abolição e procurando retardá-la ao máximo. In- De nobreza empantufadas, sistiu até a sanção da Lei Áurea na in- Repimpados principotes, denização aos senhores escravocratas, Orgulhosos fidalgotes, defendendo projeto de sua autoria para Frades, bispos, cardeais, essa finalidade. Ficou nos Anais da His- Fanfarrões imperiais. tória o episódio em que a princesa lhe comunicou que iria realizar a abolição e (...... ) quis saber a sua opinião. Cotegipe indi- cou a porta dizendo: “A mim só me resta Entre brava “militância” isto”; continuou, apontando para a barra Fulge e brilha alta “bodança”! da baía de Guanabara: “E a Vossa Alteza Guardas, cabos, forriéis, aquilo”. No dia 14 de maio de 1888, a Brigadeiros, coronéis, princesa provocou-o: “Então, ganhei ou Destemidos generais, não ganhei a partida?” Cotegipe retru- cou: “Ganhou, mas perdeu a Coroa”. Rui Capitães de mar e guerra, Barbosa o chamou de “mulato envergo- - tudo marra, tudo berra – nhado”. Quando chefiou o gabinete, os (...... ) abolicionistas o identificavam como “o circassiano de lusco-fusco”, “o desertor Haja paz, haja alegria da Rainha Pomaré, que supõe filiar-se à Folgue e brinque a bodaria; Teutônia, azular o sangue e jaspear a tez Cesse, pois, a matinada, alugando-se aos senhores de seus pais como algoz de seus parentes”. Porque tudo é ‘bodorrada’!” Para figuras tipo Barão de Co- Outros afro-brasileiros chegaram tegipe, o satírico poeta e tribuno aboli- ao Senado no tempo do Império, como cionista Luís Gama escreveu sua imor- o goiano Manuel de Assis Mascarenhas, tal “Bodorrada”, da qual não resisto a magistrado e diplomata, que foi sena- transcrever estes versos: dor por 17 anos no Segundo Reinado. “Se negro sou ou sou bode Já a República teve vários que, além de senadores, exerceram o cargo de chefe Pouco importa. O que isto pode? da Nação, caso de Manoel Victorino Aqui nesta boa terra, Pereira, médico e professor baiano que Marram todos, tudo berra; governou seu Estado e, Vice-Presidente, Nobres condes e duquesas substituiu Prudente de Morais no seu impedimento de 1894. O próprio Pro- Ricas damas e marquesas, clamador da República, o Marechal ala- Dia Nacional da Consciência Negra, Aniversário de Zumbi Abdias Nascimento 121

goano Deodoro da Fonseca, era filho de ve com “um homem simples, de tez pig- uma afro-brasileira, Rosa da Fonseca. mentada”. Um terceiro fala do “menino O paulista Francisco de Paula pobre do Morro do Coco”. Certa vez, Rodrigues Alves, promotor público, três Senhor Presidente, planejei escrever vezes governador de São Paulo, ministro um livro sobre os grandes africanos que da República e conselheiro do Império, ajudaram a construir este País e procurei duas vezes eleito presidente da Repú- um descendente de Nilo Peçanha. Re- blica, não cumpriu o segundo mandato sultado: fui repreendido por esse mem- por motivo de doença. Foi eleito três ve- bro da família, que não admitia sequer a mestiçagem do “menino do Morro do zes senador da República e esteve nes- Coco”, considerando tal versão uma in- ta Casa por seis anos. Os biógrafos de fâmia. Rodrigues Alves se penduram na nacio- nalidade portuguesa, “minhota”, do seu A atitude desse familiar de Nilo pai, para ignorar sua negritude, à qual se não é de estranhar, quando considera- referem eufemisticamente como “more- mos que ele viveu uma época, não tão nice”, legado de sua mãe afro-brasileira, remota, em que a intelectualidade e a Isabel Perpétua, conhecida como “Nhá liderança política do País cultivavam Bela”. uma preocupação constante, beirando a histeria, com a suposta inferioridade da Severino dos Santos Vieira, pro- nossa população “mestiça”, tingida pela motor público, deputado, ministro de “mancha negra” do sangue africano “in- Estado, foi outro senador de ascendên- fectado”. Após a abolição, horrorizados cia africana no início da República. Re- com o espectro da maioria africana que presentou a Bahia nesta Casa por nove naquele momento ganhava, juridica- anos. mente, a cidadania, trataram de cassar o voto desse segmento por meio da restri- O embranquecimento “científico” ção do analfabetismo e de embranquecer o País, “limpar o sangue”. A população O fluminense Nilo Procópio Pe- brasileira precisava “fortalecer-se com a çanha, Deputado Constituinte em 1890 ajuda dos valores mais altos das raças e Deputado Federal, governou o Estado europeias”, segundo Arthur de Gobi- do Rio de Janeiro por dois períodos e neau. Desde Sylvio Romero e Oliveira recebeu três mandatos de senador. Foi Vianna até Joaquim Nabuco, todos con- vice-presidente da República e, com o cordavam em que a massiva imigração falecimento de Afonso Pena, assumiu europeia e a política da mestiçagem so- a presidência, sendo o quarto cidadão a cialmente compulsória iriam, na expres- fazê-lo sem se assumir afro-brasileiro. são deste último, “contribuir para elevar Brígido Tinoco, numa literária e afetu- o teor ariano do nosso sangue”. José Ve- osa biografia, saúda o seu nascimento ríssimo exultou: “A mistura de raças é com a constatação: “moreninho como o facilitada pela prevalência do elemento pai”. Outro perfilador de Nilo o descre- superior. Por isso mesmo, mais cedo ou THOTH 6/ dezembro de 1998 122 Sankofa: Memória e Resgate

mais tarde, ela vai eliminar a raça negra Outro baiano de sangue africano daqui”. João Pandiá Calógeras declara- foi senador na década de sessenta: An- va por volta de 1930: “A mancha negra tonio Balbino de Carvalho Filho, gover- tende a desaparecer num tempo relati- nador da Bahia, ministro de Estado. O vamente curto em virtude do influxo da cearense Valdon Varjão assumiu uma imigração branca em que a herança de vaga no Senado por Mato Grosso na le- Cam se dissolve”. A maior preocupação gislatura de 1975 a 1983, devendo ainda era o tempo que levaria para eliminar de ser mencionados outros dois cearenses nosso meio o elemento africano: cem afro-brasileiros no Senado: Manuel do anos, duzentos, trezentos? O delegado Nascimento Fernandes Távora e seu brasileiro ao Congresso Universal de filho Virgílio Távora. A médica baiana Raças declarou em Londres, em 1911, Laélia Angra Contreiras de Alcântara que até o final deste século lograríamos representou o Estado do Acre nesta Casa acabar de uma vez com o sangue infec- por mais de três anos a partir de 1982. tado. Felizmente, o 21o senador afro- A teoria da inferioridade africana -brasileiro desta leitura étnico-política “cientificamente comprovada” perme- que faço da história desta Câmara ainda ava as bases da formação política das está entre nós: trata-se do meu compa- nossas elites a tal ponto que, em 1934, nheiro de bancada, o baiano Nelson de lideradas por Miguel Couto, entre ou- Sousa Carneiro, dono de uma profícua tros, inseriram no artigo 138, alínea b da atuação parlamentar na vida política e Constituição, aTeoria Europeia da Euge- jurídica brasileira, com lugar nesta Casa nia: a engenharia biológica objetivando há cerca de vinte anos. eliminar os tipos genéticos indesejáveis, que foi levada às últimas consequências Seria leviano, Senhor Presidente, na Alemanha daquela época. afirmar que nas veias do mineiro Tan- Nesse contexto, não chega a sur- credo de Almeida Neves corria também preender a atitude dos políticos que o nobre sangue africano? Creio que não, escondiam sua ascendência africana, levando em consideração seus traços fi- a exemplo do mineiro Fernando Melo sionômicos, assim como de muitos de Viana, governador do seu Estado e seus familiares, conforme testemunha vice-presidente da República, senador seu primo Dom Lucas Moreira Neves, e presidente da Assembleia Nacional cardeal primaz do Brasil, arcebispo da Constituinte de 1946. Os irmãos João Bahia, amigo íntimo de Sua Santidade e Otávio Mangabeira, ambos senadores o Papa João Paulo lI. O idealizador da nessa época, bem como o fluminense Nova República, sonho tragicamente Mozart Brasileiro Pereira do Lago, re- frustrado com a sua morte, esteve por presentante do Distrito Federal nesta três anos no Senado, antes de ser eleito Casa de 1951 a 1955, também não fo- Governador de Minas Gerais e depois gem à regra. Presidente da República. Dia Nacional da Consciência Negra, Aniversário de Zumbi Abdias Nascimento 123

O “apartheid” à moda brasileira em média, 35 por cento do que ganha o branco por trabalho equivalente, e que Outro pesquisador mais arguto e 23 por cento das mulheres afro-brasilei- competente do que eu mergulharia na ras chefes de família ganham menos da História e concluiria com maior segu- metade de um salário mínimo. Primei- rança por descobrir outros afro-brasilei- ro a ser despedido e último a ser pro- ros na vida do Senado brasileiro. Outros movido no emprego, o afro-brasileiro e senadores, meus pares, poderão se pro- sua família passam a habitar as ruas dos clamar descendentes da África, contra- nossos grandes centros urbanos, trans- riando a indicação de que eu seja o pri- formados em mendigos ou párias. meiro ou o 23o afro-brasileiro a chegar a O Brasil condena o apartheid e se esta Casa. A indagação apenas provoca solidariza com Nelson Mandela na sua a consciência de cada um de nós sobre incomparável luta contra o racismo. Que o trabalho que o Poder Legislativo bra- dizer, então, da Baixada Fluminense, sileiro tem desenvolvido em favor da que ultrapassa qualquer township sul- maioria da população brasileira, que é -africana como império da miséria, das pobre e africana de raiz. altas taxas de mortalidade infantil, das Não quero julgar ninguém, mas é epidemias de doenças evitáveis, inclusi- meu dever como homem público denun- ve a lepra; império sobretudo da violên- ciar a hipocrisia desse genocídio enrai- cia cotidiana e da fome? A esmagadora zado no racismo encoberto, que faz da maioria de sua população é negra, como população afro-brasileira a maior vítima é o caso de qualquer favela, palafita ou da miséria que assola o País. A comuni- “cabeça-de-porco” neste País. dade negra assiste diariamente ao assas- Se a Baixada e seus pares nos cen- sinato de seus filhos diante de uma estru- tros urbanos se comparam às townships, tura de poder público omissa, corrupta e o campo pode ser chamado o grande criminosa. A Anistia Internacional afir- “bantustão” do Brasil. Concentrada nas ma serem de ascendência africana oi- regiões mais pobres, a população afro- tenta por cento das vítimas desse quadro -brasileira sofre desproporcionalmente de massacre da infância que escandaliza a miséria, a fome, a violência, o corone- o mundo. A esterilização das mulheres lismo e o regime de trabalho escravo e brasileiras, consequência de uma políti- semiescravo que ainda vigoram no meio ca racista, comprovadamente concebida rural do nosso País. no Conselho de Segurança Nacional dos A concentração da população ne- Estados Unidos, atinge principalmente gra nesses bolsões de miséria caracteriza as mulheres negras, as mais indefesas. O uma segregação racial no Brasil que só arrocho salarial que submete e avilta os difere do apartheid pela falta de defini- trabalhadores torna-se outro instrumen- ção jurídica. Ultimamente, as estruturas to de genocídio quando consideramos do poder sul-africano vêm descobrindo, que o trabalhador afro-brasileiro ganha, como já o fizeram os norte-americanos, THOTH 6/ dezembro de 1998 124 Sankofa: Memória e Resgate

a não necessidade de leis para esse fim, Na campanha abolicionista, afora quando a sociedade racista se incumbe os milhões de vidas que anonimamen- de segregar informalmente. Entretanto, te se imoloram pela liberdade, dezenas os negros sul-africanos têm uma vanta- foram os líderes, além de José do Patro- gem enorme sobre nós afro-brasileiros: cínio: o genial André Rebouças; Fran- o mundo lhes reconhece o direito de lu- cisco Nascimento, o “Dragão do Mar” tar. No Brasil, pelo contrário, até esse de Fortaleza, Ceará; o talento e a cora- direito nos negam, postulando a hipócri- gem do supremo tribuno da Liberdade, ta tese da democracia racial. Luís Gama, precursor da negritude entre nós. “O escravo que mata o seu senhor Uma luta que vem de longe pratica um legítimo ato de autodefe- sa”, anunciou Luís Gama num tribunal Apesar disso, senhores senado- de São Paulo. Tendo nascido livre, foi res, o afro-brasileiro nunca deixou de vendido como escravo pelo próprio pai; lutar pelos seus direitos. Desde a fun- pela sua indomável vocação, Luís Gama dação do Brasil, a história testemunha libertou mais de quinhentos irmãos de a proliferação dos quilombos, universos sua raça. da luta anticolonialista para onde acor- Já neste século, na Revolta da riam não apenas africanos escravizados, Chibata, a figura ímpar do gaúcho João como também brancos e índios que so- Cândido, o “Almirante Negro”, liderou friam das injustiças e dos crimes perpe- a revolta dos marinheiros e peregrinou, trados pela barbárie ibérico-europeia e brasileira. Além da famosa República pelo resto de sua vida, injustiçado e dis- dos Palmares, liderada por Zumbi, hou- criminado pela História oficial. ve inúmeros outros quilombos. Lembre- A consciência de luta afro-brasi- mos apenas alguns: o de Ambrósio na leira se afirmou durante a primeira me- Comarca do Rio das Mortes, em Minas tade do nosso século, por meio de uma Gerais; o de Alcobaça, no Pará, chefia- ativa imprensa negra, sobretudo em São do por Felipa Maria Aranha, líder femi- Paulo. Arauto de uma luta por justiça, nista do século XIX; Quariterê em Mato essa imprensa testemunhou entre outros Grosso, liderado por Teresa do Quarite- feitos a Frente Negra Brasileira da dé- rê; Jabaquara em Santos, São Paulo, um cada de trinta, liderada por José Correia dos maiores e mais duradouros. Leite, diretor do periódico Clarim da Os afro-brasileiros também foram Alvorada. mártires e heróis de outros movimentos Em 1938, eu e outros compa- de libertação, na Revolta do Equador, nheiros organizamos o Congresso Afro- na Cabanagem do Pará, no levante dos -Campineiro, em Campinas, São Paulo, Malês e na Revolta dos Farrapos no Rio evento em que, ao contrário de outros re- Grande do Sul, na Sabinada na Bahia, alizados por estudiosos sinceros, porém na Revolta do Quebra-Quilos da Paraí- equivocados, fomos os afro-brasileiros ba, em Canudos, na Guerra do Paraguai. sujeitos e não temários, protagonistas Dia Nacional da Consciência Negra, Aniversário de Zumbi Abdias Nascimento 125

e não objetos de estudo, discutindo os Algumas conquistas do Movi- nossos próprios problemas e destinos. mento Negro se refletem no texto da Em 1944, nasceu o Teatro Experi- atual Constituição, com a criminaliza- mental do Negro, que, além de lutar por ção do racismo e a proteção das terras nossos direitos cívicos e humanos, bus- remanescentes de quilombos. Quero as- cava o resgate do legado cultural afri- sinalar aqui, Senhor Presidente, a minha cano no Brasil. Organizamos, além de profunda preocupação com o cumpri- uma intensa atuação artística protago- mento desse dispositivo constitucional, nizada por afro-brasileiros, vários con- pois tenho notícias de que os quilombos gressos e convenções, inclusive o I Con- contemporâneos continuam tendo suas gresso do Negro Brasileiro em 1950. A terras ameaçadas. Convenção Nacional do Negro, realiza- Hoje, no Estado do Pará, a multi- da em São Paulo em 1945, propôs, pela nacional Alcoa e outras empresas estão primeira vez, a tipificação do racismo talvez obtendo o aval do governo local como crime na Constituinte de 1946, para ocupar as terras das comunidades por meio de emenda do senador Hamil- africanas do Município de Oriximiná, ton Nogueira. Em 1955, realizamos um minando ou mesmo destruindo as bases concurso de artes plásticas imaginado de sua vida comunitária. Pretendo fazer por Guerreiro Ramos sobre o tema do o possível, Senhor Presidente, para que Cristo Negro e um dos jurados foi o meu o dispositivo constitucional seja respei- amigo e ilustre arcebispo emérito de tado e cumprido. O1inda e Recife, Dom Hélder Câmara. Brizola e o PDT: cumplicidade com Em 1968, fundamos, no Rio, o Museu nossa luta de Arte Negra, inaugurado com uma ex- posição no Museu da Imagem e do Som. Nesse contexto, não posso deixar Na década dos setenta, surge um de mencionar a liderança política de- movimento afro-brasileiro que cresce e sempenhada pelo Governador Leonel conquista cada vez mais o seu espaço. Brizola no engajamento a esta causa. Foi ele o responsável pela instauração Primeiro líder político de destaque na- do Dia Nacional da Consciência Negra a cional a encampá-la como prioridade de 20 de novembro, aniversário do martírio sua atuação, o governador se demons- de Zumbi dos Palmares. E dele surgiu, trou verdadeiramente afro-brasileiro, com a nossa participação, o Memorial pois não é somente a cor da pele que de- Zumbi, organização que reúne entidades fine um militante da nossa causa, e sim a de todo o País, visando o resgate da ser- sua consciência e a sua ação. Seu cons- ra da Barriga. Conseguimos em 1988 o tante e firme empenho nesta luta cul- tombamento do sítio histórico da Repú- minou na recente criação da Secretaria blica de Palmares, centro de peregrina- Extraordinária de Defesa e Promoção ção não apenas para os brasileiros, mas das Populações Afro-Brasileiras do Go- para os africanos do mundo inteiro. verno do Rio de Janeiro, hoje encabe- THOTH 6/ dezembro de 1998 126 Sankofa: Memória e Resgate

çada por uma competente mulher afro- Logo após a minha investi- -brasileira, a professora Vanda Maria de dura como senador, tive a honra de Souza Ferreira. participar da comitiva presidencial O PDT também foi a primei- que visitou quatro países africanos. ra agremiação política a inserir como O empenho do Presidente Fernando prioridade programática a causa afro- Collor no sentido de integrar à comi- -brasileira e a inaugurar um órgão es- tiva um representante da comunidade tatutário dedicado especificamente a afro-brasileira, embora parlamentar essa questão, liderado e organizado da oposição, demonstrou uma sensi- pelos próprios afro-brasileiros filiados bilidade inédita nas classes dirigen- ao partido. E nas últimas eleições o tes deste país para com os africanos PDT elegeu, para orgulho da Nação, dentro e fora do Brasil. Nesta condi- dois governadores de Estado assumi- ção de oposicionista, estou muito à damente afro-brasileiros e engajados vontade para testemunhar o acerto do à nossa causa: Alceu Collares, no Rio Governo brasileiro no decorrer dessa Grande do Sul, e Albuíno Azeredo, no viagem.O Presidente Collor demons- Espírito Santo. trou sincero propósito de cooperar com Angola, Zimbábue, Moçambique Brasil e África e Namíbia, num clima de efetiva ami- zade, boa vontade e respeito mútuos. Na qualidade de deputado fede- Durante o diálogo com os estadistas ral e membro da Comissão de Relações africanos, houve momentos em que Exteriores, dediquei grande parte do a rigidez do protocolo se quebrou, a meu mandato ao esforço de inserir na exemplo do instante quando o Presi- política externa do Brasil um posicio- dente de Angola, o excelentíssimo se- namento mais adequado nas relações nhor José Eduardo dos Santos, expôs, com a África. Lutei pelo rompimento num longo e franco relato, a situação de relações com regime de apartheid e histórico-social do país. A tônica das pelo reconhecimento da SWAPO e do palavras trocadas foi surpreendente, Congresso Nacional Africano como le- pois contrariava a tradição de sober- gítimos representantes do sofrido povo bia e superioridade diplomática que o da Namíbia e da África do Sul. Hoje Itamaraty, com sua postura europei- me dá enorme satisfação constatar que zada, mantinha como praxe no trato a Namíbia conquistou, afinal, a sua in- com as naçôes africanas, cujas lutas dependência do jugo colonial, elegendo de independência mereceram apenas a SWAPO para o primeiro governo do um simbólico e muito tardio apoio mais novo país africano. A imposição de brasileiro de solidariedade nos fóruns algumas sanções à África do Sul, embo- internacionais. Eu mesmo, Senhor ra não atingisse o âmbito essencial das Presidente, na condição de exilado relações econômicas com o apartheid, político, perseguido pela nefanda dita- também representou uma vitória parcial. dura militar, em minhas participações Dia Nacional da Consciência Negra, Aniversário de Zumbi Abdias Nascimento 127

em congressos e colóquios do mundo África: raiz do Brasil africano, sofri infames agressões des- sa diplomacia racista e intolerante. Sr. Presidente, Srs. Senadores, a Daí minha satisfação em poder lou- referência à África é fundamental para var desta tribuna o chefe do Governo o Brasil não apenas no âmbito das re- e o ministro das Relações Exteriores, lações exteriores. Muito mais profundo Francisco Rezek, bem como os minis- é o nosso vínculo interno com a África, tros das Casas Civil e Militar e todos pois o Brasil tem a segunda maior po- os membros da comitiva, pela manei- pulação negra do mundo. E para deixar ra como se conduziram nos encontros claro reafirmo, como já o fiz em outras de trabalho com os governos daqueles ocasiões: ser negro não é uma questão países africanos. epidérmica. A cor da pele, em todos os Constatei um clima de autentici- seus variados matizes, funciona apenas dade, honestidade e igualdade no tra- como distintivo da nossa origem afri- tamento dispensado aos chefes de Es- cana. Mulato, cafuso, negro, escurinho, tado daqueles países, todos líderes das fusco, moreno: todos os eufemismos lutas da independência de suas nações. convergem para essa identidade que as Homens da envergadura de um Robert elites dominantes no Brasil sempre qui- Mugabe, o combativo e gracioso Pre- seram renegar. Quando somos barrados sidente do Zimbábue; o inteligente e no emprego ou encaminhados para o enérgico Joaquim Chissano, de Moçam- elevador de serviço, não apenas a cor da bique; o jovial Sam Nujoma, Presidente pele provoca a discriminação, mas so- da Namíbia; e o já mencionado e sereno bretudo a identidade africana anunciada Presidente José Eduardo dos Santos, de pela cor. Angola. Seria impossível relatar todos os fatos e passos dessa viagem de seis A afirmação da nossa origem dias à África, mas vale destacar alguns. africana não implica nenhuma rejeição Em Angola, houve o acerto para a rea- à nossa identidade racional brasileira, lização da Quinta Sessão da Comissão pela simples razão de que a identidade Angolano-Brasileira em 1992, o bom nacional brasileira também é africana. andamento do projeto de construção da Apenas ocorre que, lembrando o caso hidrelétrica de Capanda por empresas de muitos afro-brasileiros pálidos que brasileira, angolana e soviética; e a assi- internalizam os preconceitos antiafrica- natura de um protocolo de intenções na nos, o segmento dominante se recusa a área do desenvolvimento educacional e assumir sua própria face. As elites mi- assistência à infância, prevendo asses- noritárias, ao definir a participação do soria técnica para a construção de CIAC africano no contexto da Nação brasilei- em Angola. Nos outros países, também ra, costumam falar da “contribuição” ou foram gestionados acordos nas áreas da “infiltração” do negro a um todo que, de transportes e de cooperação técnica, implicitamente, lhe é estranho. Falam científica, cultural e econômica. de “reminiscência” ou da “sobrevivên- THOTH 6/ dezembro de 1998 128 Sankofa: Memória e Resgate

cia de traços” de uma cultura africana somos os herdeiros de uma civilização supostamente alheia à brasileira... Tais africana que deu à luz o chamado mun- eufemismos não conseguem tapar o Sol do ocidental. Poucos sabem, porque o com a peneira. A verdade é que profun- fato foi escamoteado, distorcido e falsi- das e amplas dimensões africanas per- ficado durante séculos, que a tão decan- meiam a nossa cultura e a nossa história tada civilização greco-romana tem suas e constituem a base integral definidora origens no Egito antigo, um país negro da identidade nacional brasileira. africano, e que a civilização egípcia, por A Abolição da Escravatura pouco sua vez, nasceu do coração da África, na ou nada fez para nos devolver a cidada- região onde hoje se localizam Uganda, nia que nos foi usurpada, junto com a Etiópia, Sudão e Quênia. E não esta- nossa própria condição humana, quando mos falando aqui de cantigas e danças nos arrancaram das nossas terras e nos folclóricas. Estamos evocando a origem submeteram ao mais hediondo regime africana da ciência matemática, da geo- escravocrata conhecido pelo ser huma- metria, da engenharia e da arquitetura; no. Pelo contrário: as condições de vida do sistema filosófico, dos mistérios, dos dos afro-brasileiros após a Lei Áurea, mitos e dos deuses; das teorias da maté- na prática, representaram uma segunda ria de Aristóteles, Anaxágoras e Anaxi- cassação de nossa cidadania. mandro; dos pensamentos creditados a Platão, Demócrito e Xenófanes. Todos O Movimento Negro vem afir- beberam nas fontes do conhecimento mando, há anos, a questão racial como egípcio africano. Estamos nos refe- uma questão nacional, um “problema” rindo aos conhecimentos e práticas da não só nosso, mas sobretudo das elites medicina existentes dois milênios antes dominantes deste País. Enquanto não se de Hipócrates, tido como pai da medi- tratar de recompor a plenitude da cida- cina. Verdadeiro pai da medicina seria dania dessa grande parcela de sua popu- Athothis, filho do primeiro faraó egíp- lação, o Brasil permanecerá fragmen- cio, ou Irnhotep, que desenvolviam os tado, como uma família que perdeu ou conceitos e a prática de anatomia, far- afastou para sempre mais da metade de macología, diagnose, oftalmologia, as- seus integrantes. sepsia, hemostasia, cirurgia, vacinação, O cerne da questão está na iden- ginecologia e assim por diante, desde tidade nacional. Mencionei no início 3000 a.C. deste pronunciamento os senadores Não é esta a hora de enumerar afro-brasileiros apenas para ilustrar esse todas as grandezas das civilizações afri- fato. Enquanto o Brasil não assumir a canas, os avançados estados políticos rica beleza de sua identidade africana, a como Mali, Zimbábue, Gana e Songhay, maioria de sua população ficará alijada com suas grandes concentrações urba- do conjunto nacional. nas, centros de conhecimento tecno- Poucos brasileiros sabem que lógico e filosófico da África na época pelo lado africano, o lado da senzala, medieval. Basta assinalar que, não fosse Dia Nacional da Consciência Negra, Aniversário de Zumbi Abdias Nascimento 129

o holocausto da invasão europeia, esse O SR. ABDIAS DO NASCI- desenvolvimento africano autóctone te- MENTO – Com muito prazer. ria seguido o seu curso natural. O SR. MAURÍCIO CORRÊA – É essa herança africana que o Sou muito ligado à poesia do Senador Brasil precisa conhecer e assumir: a dig- Aureo Mello, porque S. Exa é um clássi- nidade e o protagonismo do ser humano co, é um romântico na poesia. E o gran- africano. Essa verdade nos foi negada de poeta brasileiro Castro Alves, que durante cinco séculos de mentiras, frau- retratou com absoluta precisão a causa des e falsificações do eurocentrismo que negra no Brasil, escreveu aquele belo se arrogava como arauto de uma suposta poema, “A Cruz da estrada”. E ele inicia ciência. Para recuperar sua própria iden- dizendo – citarei apenas duas estrofes, tidade nacional e resgatar a dívida que tentarei lembrar-me delas: tem para com seus cidadãos de origem africana, urge à Nação brasileira mer- “Caminheiro que passa pela estrada, gulhar nas dimensões mais profundas Seguindo pelo rumo do sertão, dessa herança civilizatória. Essas ver- Quando vires a cruz abandonada, dades têm que ser ensinadas nas nossas Deixa-a dormir em paz na solidão. escolas, nos CIACs e nos CIEPs, para Que vale o ramo de alecrim cheiroso restituir ao contingente majoritário da Que lhe atiras nos braços ao passar? nossa gente o seu autorrespeito, a sua autoestima e a sua dignidade, fontes do Vai espantar o bando buliçoso protagonismo e da realização humana. Das borboletas que lá vão pousar.” Sr. Presidente, Srs. Senadores, o É o retrato mais evidente, mais meu trabalho parlamentar nesta Casa puro do tratamento desumano com que dará sequência àquele iniciado em 1983 o negro teve a sua sorte traçada no Bra- na Câmara dos Deputados. Se sou ou sil. E eu me recordo aqui, Senador Ab- não o primeiro senador afro-brasileiro, dias Nascimento, das lições que hauri pouco importa. Importa, sim, que eu nesse extraordinário livro, nesse clássi- possa cumprir este mandato com hon- co da literatura, da sociologia brasileira, radez e dignidade, lutando pelas causas que é Casa grande e senzala, do ines- do meu povo afro-brasileiro, que são as quecível e saudoso Gilberto Freyre, em causas da nossa Nação. que ele menciona as origens da civiliza- Axé! ção brasileira, da cultura brasileira, da nossa etnia, e diz que pelos sete séculos Apartes de domínio mouro, em Portugal, na ver- dade quase todos nós que temos origens O SR. MAURÍCIO CORRÊA – na península Ibérica trazemos o sangue Senador , V. Exa africano nas veias. E eu, como um filho me concede um aparte? de português, seguramente sou descen- THOTH 6/ dezembro de 1998 130 Sankofa: Memória e Resgate

dente da raça brava dos africanos. E as- que, na verdade, supera – e V. Exa sa- sim um grande contingente do povo bra- lientou isso muito bem – até a existente sileiro, quer pela miscigenação causada na África do Sul, porque lá eles podem aqui pelos elementos de interligação, falar – hoje bem mais -, graças aos sacri- como também pela própria natureza da fícios de muitos mártires, que morreram, chegada, da origem dos portugueses no graças, inclusive, à bravura, à altivez, ao Brasil. Quero dizer que V. Exa constrói denodado espírito de Nelson Mandela. um extraordinário monumento com o V. Exa traça, repito, um excelente dis- seu pronunciamento, traçando um qua- curso, inaugura a sua participação nesta dro realíssimo de como o negro é trata- Casa de uma forma brilhante. Assim, é do no Brasil. Se buscarmos as origens com grande orgulho, como integrante da Abolição da Escravatura, nós temos do PDT, que ouço o discurso de V. Exa que tecer um quadro de vergonha para neste instante. Há pouco tempo, estan- todos nós, porque, na verdade, e V. Exa do com o nosso líder, Leonel Brizola, combate, a Lei Áurea foi um aviltamen- aqui em Brasília, conversávamos sobre to até da questão com que se tratou, com a diplomacia africana junto ao Governo que se versou a causa negra no Brasil. brasileiro. É uma das mais excelentes, E o primeiro ato de reconhecimento de- pelo primor da sua inteligência, pela correu do sangue do negro que correu, cultura que esses embaixadores têm no que jorrou na batalha do Paraguai. Os Brasil. E cito aqui, não querendo ser in- negros que vieram do Paraguai tiveram justo com os outros, a presença do nosso o direito de ser libertos, o que foi um querido embaixador Romão, expressão absurdo, não só porque se o reconheceu de cultura e de sapiência que representa apenas pelo seu sacrifício, como não se Angola em nosso País. V. Exa portanto, lhe deu a devida atenção. Na verdade, o Senador Abdias do Nascimento, faz, Império foi extremamente injusto com no Senado, um extraordinário discurso a causa negra. Joaquim Nabuco, que foi que faz com que todos nós, do PDT, nos o grande construtor, o grande paladino, orgulhemos da sua presença em nosso um homem da aristocracia pernambuca- partido. V. Exa é um intelectual e um ho- na, foi, na verdade, um baluarte da causa mem que já sofreu na carne a experiên- negra. É dele aquele velho pensamento cia do exílio, V. Exa é um bravo. É com que V. Exa conhece: “Não basta libertar muita alegria que, neste instante, digo a os escravos, é necessário acabar com a V. Exa que todos nós do PDT nos orgu- causa da escravatura”. O que V. Exa tra- lhamos da presença desse negro, desse ça no seu discurso é exatamente a repro- negro paulista, que fez nome no Brasil dução desse ditado, desse aforisma ver- inteiro e no mundo, que é Abdias do dadeiro que trouxe à cultura brasileira a Nascimento. Meus cumprimentos. sapiência, a altivez de Joaquim Nabuco. Vossa Excelência falou nos bolsões de O SR. ABDIAS DO NASCI- miséria, onde a presença negra é domi- MENTO – Muito obrigado, Senador nadora. Portanto, há uma segregação Maurício Corrêa. Dia Nacional da Consciência Negra, Aniversário de Zumbi Abdias Nascimento 131

Agradeço sobretudo a menção ao Anais, e como marco da sua luta, não nosso querido embaixador de Angola, apenas a assertividade do combate pela Francisco Romão, que também esteve libertação do povo negro e de todos os nessa viagem à África conosco, com o descendentes de escravos neste País, Presidente Collor. Além de embaixador, mas, em especial, para o nosso conheci- S. Exa é um participante assíduo de to- mento, a história desse povo, mostrando dos os eventos da comunidade negra no a importância dos quilombos e da luta Brasil. E ele não é embaixador apenas de pessoas como Zumbi dos Palmares. em Brasília, ele corre o Brasil inteiro V. Exa mostra a condição dos negros e para dialogar e conhecer a realidade do dos descendentes de escravos que, pou- nosso povo. co mais de 100 anos após a Abolição, Somente queria lembrar ao Se- continuam a sofrer as consequências nador Mauricio Corrêa que tenho uma daquele regime, em função de não ter grande admiração por Joaquim Nabuco, a sociedade brasileira, desde então, to- mas também uma restrição, porque, no mado as providências necessárias para final do seu pensamento, ele desejava o reverter as consequências de mais de três séculos de escravidão. V. Exa teve desaparecimento da raça negra no Bra- a oportunidade não apenas de fazer um sil. Combatia a abolição, mas também histórico de todos aqueles que, em es- queria que o Brasil se tornasse branco. pecial no Senado, tiveram ascendência Ele também renegava a participação do negra, um trabalho importante para o sangue negro na composição da nacio- nosso conhecimento, mas também de nalidade brasileira. É com grande dor relatar a viagem que o Presidente Fer- que digo isso, porque admiro muito a nando Collor de Mello fez a Angola, à sua ação parlamentar e, sobretudo, a sua Namíbia, enfim, a alguns países afri- ação jornalística. Mas, a bem da verda- canos, recentemente. Quero registrar de, é preciso que se registre esse lado que, embora crítico do Governo Collor, negativo da enorme figura do Sr. Joa- avaliei como importante a iniciativa do quim Nabuco. Muito obrigado. presidente brasileiro em ir à África, por- O SR. EDUARDO SUPLICY – que a tendência de viagens de chefes Permite-me V. Exa um aparte? de Estado, inclusive do Presidente Fer- nando Collor, vinha sendo mais para os O SR. ABDIAS DO NASCI- países do Primeiro Mundo. Considero MENTO – Com muita honra, nobre se- necessário que tenhamos uma interação nador Eduardo Suplicy. com povos da América Latina, da Áfri- O SR. EDUARDO SUPLICY – ca e da Ásia no mínimo tão importante Nobre Senador Abdias do Nascimento, quanto aquela que desenvolvemos com cumprimento-o por mais este pronun- os povos do Primeiro Mundo. Seria tão ciamento que V. Exa traz à sua história, importante dialogar com chefes de Es- primeiro na Câmara dos Deputados e tado dos Estados Unidos, da França e depois no Senado Federal, inserindo nos da Inglaterra quanto com os Presidentes THOTH 6/ dezembro de 1998 132 Sankofa: Memória e Resgate

de Angola, de Moçambique, da Namí- -Presidente da Tanzânia Mwalimu Ju- bia e de outros países, bem como com lius Nyerere, que falou insistentemente os nossos países-irmãos da América da qualificação do nosso País para lide- Latina. Na medida em que V. Exa teve rar o movimento que S. Exa preside nas a oportunidade – bem fez o Presidente Nações Unidas, o movimento Sul-Sul. em convidá-lo, como representante do Mas parece-me que o Brasil ainda esta- povo afro-brasileiro no Senado, a parti- va reticente, sonhando com o Primeiro cipar de sua comitiva – de ir à África, Mundo. No entanto, no discurso que certamente está V. Exa em condições de preferiu nesses países africanos, o Pre- externar ao Presidente medidas que se sidente Fernando Collor demonstrava fazem necessárias, hoje, para libertar de estar mudando de direção. As palavras fato os negros pobres nas favelas, nas de S. Exa foram realmente as de quem prisões, nas Febem, nas Funabem, nas desejava assumir esse papel, essa lide- palafitas, nos mocambos, nas áreas ru- rança que está vazia. rais, onde muitos negros trabalham em O SR. CID SABÓIA DE CAR- condições não muito distantes daquelas VALHO – V. Exa me permite um aparte? que existiam ao tempo da escravidão. Infelizmente, prezado Senador Abdias O SR. ABDIAS DO NASCI- do Nascimento, o tipo de política econô- MENTO – Pois não, nobre Senador. mica que caracterizou o Governo Collor O SR. CID SABÓIA DE CAR- nos últimos 20 meses não foi consisten- VALHO – Vou apartear antes do Se- te com o objetivo de libertar o povo ne- nador Divaldo Suruagy, que já havia gro, bem como toda a população pobre, solicitado um aparte a V. Exa, e ambos da sua condição de miséria. Acredito falaremos pelo PMDB. a que V. Ex está em condições de apre- O SR. PRESIDENTE (Meira Fi- sentar, com muita força, proposições no lho) – Queria em nome da Mesa chamar sentido da libertação dos trabalhadores a atenção dos Senhores Senadores que o em condição de extrema pobreza, hoje, tempo reservado para o Senador Abdias a no Brasil. E eu estarei apoiando V. Ex do Nascimento já foi esgotado. A Mesa nessa luta. Muito obrigado. o ouve com imenso prazer e até recebe O SR. ABDIAS DO NASCI- de S. Exa uma aula preciosa. Insisto, MENTO – Muito obrigado, Senador porém,junto aos Senadores para que se- Eduardo Suplicy. Não disse no meu jam breves nos seus apartes. discurso, mas gostaria que ficasse regis- O SR. CID SABÓIA DE CAR- trado que realmente assisti a intenções. VALHO – Senhor Presidente, tentarei Estamos aguardando os atos concretos, seguir ao mérito do apelo de V. Exa, a implementação dos resultados dessas muito embora a motivação seja con- primeiras conversações. trária ao que nos pede. Quero dizer ao Também gostaria de sublinhar Senador Abdias do Nascimento que o que há poucos meses passou aqui o ex- programa do nosso partido, o PMDB, Dia Nacional da Consciência Negra, Aniversário de Zumbi Abdias Nascimento 133

é tipicamente antirracista. Quero dizer prio legislador claudicou. Na verdade, o mais ainda, que o nosso partido, nos tra- racismo sempre foi um fato, sempre foi balhos da Assembleia Nacional Cons- um acontecimento moral, sempre foi um tituinte, lutou muito pelos dispositivos acontecimento ético, esteve sempre so- constitucionais que tornam crime o ra- cialmente embutido no comportamento cismo no Brasil. Até esperei de V. Exa brasileiro, e isso V. Exa tem toda razão um louvor à Assembleia Nacional Cons- em condenar. O que eu quero dizer a V. tituinte e uma nota magna para a atual Exa, em nome do PMDB, é que essas Carta vigente no Brasil. Na verdade, teses antirracistas triunfaram no Bra- nós do PMDB não costumamos olhar sil. Resta agora uma outra vitória, mais a cor da pele, não costumamos distin- ampla e mais difícil: tirar o racismo dos guir ninguém pelo tipo físico, pelo tipo costumes, tirar o racismo do dia a dia, racial, e sim pelas posições de honesti- não permitir que as pessoas distingam dade, de honradez, pela ideologia, pela as outras pelas condições físicas, pelas defesa democrática e por esses princí- condições raciais. Isso é que é realmente pios que tanto marcaram a trajétória do deplorável. Acompanhei com entusias- PMDB na defesa de todas essas teses mo o discurso de V. Exa. Apenas quero que se fizeram vitoriosas ao longo dos dizer que eu não o distinguiria jamais últimos anos, principalmente depois da como um senador negro, o primeiro se- eleição do falecido Presidente Tancre- nador afro. Isso não é importante. Eu só do de Almeida Neves. Quero dizer a V. me apercebi, hoje, de alguma coisa nova Exa que ouvi a sua palavra com muito sobre o Senador Nelson Carneiro por- carinho e muito respeito. Sou um dos que V. Exa falou. Eu nunca notei a cor da que acompanham a história do Brasil. pele do Senador Nelson Carneiro, nunca Acostumado à luta abolicionista, somos observei isso. O que observei foi o seu daqueles que admiram muito o poeta talento, a sua conduta, a sua honestida- Castro Alves, aqui citado de modo tão de, o seu trabalho profícuo em defesa da notório e tão sentimental pelo Senador mulher brasileira. O que sei é que S. Exa Maurício Corrêa. Não sei se V. Exa ci- teve um grande irmão, Edson Carneiro, tou Tobias Barreto, mas conhecemos mestre da cultura de que fala Exa. Es- a nobreza desse grande brasileiro, que perava, também do nobre Senador uma poderia perfeitamente constar do elenco referência a um ex-colega nosso: Afon- organizado por V. Exa. Acompanhamos so Arinos de Mello Franco; esperava a trajetória de Nabuco, conhecemos a de V. Exa uma consideração sobre a Lei sua correspondência, a sua biografia, Afonso Arinos. Até critico V. Exa nesse notadamente um livro escrito por sua mister, porque, talvez, tenha abordado o própria filha. Sabemos de como, no en- lado acre da questão. Mas a Lei Afonso tanto, o racismo triunfou o Brasil, mais Arinos foi algo notável na história da le- como fato do que praticamente como gislação brasileira, lei essa que teve uma um ideário, não como a lei somente, aplicação extraordinária. Aqui, convive- porque houve momento em que o pró- mos com aquele grande cidadão, que nos THOTH 6/ dezembro de 1998 134 Sankofa: Memória e Resgate

deixa uma notável saudade. Sabíamos 1945, foi quem, pela primeira vez, pro- do seu ideário que o levou à propositura pôs uma lei desse tipo. Na Constituinte daquele projeto que se transformou em de 1946, a matéria não foi aprovada e lei. Por isso, nos associamos aos cuida- continuamos lutando, até que Afonso dos de V. Exa, à sua luta e, inclusive, a Arinos apresentou um outro projeto de essa valorização sociológica da cultura lei. afro-brasileira. Como ela é bela; como Quero reiterar a boa vontade do ela é interessante; como é importante Projeto de Lei Afonso Arinos, embora estudar, não apenas outros aspectos cul- tenha sido equivocado, porque em nada turais, mas até aquele aspecto meio so- ajudou o negro a se defender contra o cial, meio religioso, que é o candomblé. racismo. Foi uma lei que virou até uma a E tantos assuntos que levaram V. Ex à arma contra os próprios negros, pela for- utilização de determinadas palavras que ma como foi feita, exigindo que o agres- me entusiasmaram, porque pensei que sor declarasse explicitamente que estava a V. Ex teria outras mais para nos dizer discriminando por uma questão racial; a nesse longo e interessante discurso que lei tomou-se inócua, pois sabemos que nos trouxe hoje ao Senado Federal. O no Brasil ninguém tem coragem de dizer a PMDB abraça V. Ex ; considera suas que é racista, que realmente discrimina palavras da maior importância e só faz por questão racial. A lei não funcionou; esse reparo, para que ele se some ao mé- e algumas vezes, até, fez com que de ví- rito da sua palavra. Salve o velho Afon- tima o negro passasse a ser agressor; de a so Arinos, que tanto lutou, como V. Ex , vítima passava a ser o réu da própria lei. e salve a Constituição brasileira, que foi Quer dizer, houve uma lei de aparente a grande vitória da consciência nacional controle social da questão, mas real- a contra o racismo. Obrigado a V. Ex . mente não a resolveu. O SR. ABDIAS DO NASCI- Naturalmente, a lei é fruto daquela MENTO – Ilustre Senador aparteante, época. Compreendo perfeitamente. Era sinto-me muito honrado com o aparte muito difícil fazer uma lei bem explícita de V. Exa. Mas, ao mesmo tempo, gos- como é agora essa emenda à Constitui- taria também de fazer certos reparos. V. ção que V. Exa, com muito acerto, diz Exa, por exemplo, se refere à Lei Afonso que o PMDB apoiou. E foi isso mes- Arinos, que, na verdade, é outra usurpa- mo. Essa emenda – sim – tem eficácia ção das coisas do negro. Aqui no Brasil, porque não tem esse escape. Mas a Lei quando algo dá certo e é bom, não foi Afonso Arinos não tinha como ser apli- mais o negro quem fez, foram os bran- cada, porque era muito ambígua. cos que fizeram. A Lei Afonso Arinos é De qualquer maneira, agradeço uma delas. a sua declaração de que o PMDB apoia Não sei se V. Exa prestou atenção esse tipo de proposição, porque vamos ao meu discurso. A Convenção Nacio- ter muitas aqui, inclusive, essa de ação nal do Negro em São Paulo, reunida em compensatória. Dia Nacional da Consciência Negra, Aniversário de Zumbi Abdias Nascimento 135

Vemos que o negro tem uma des- O Sr. Divaldo Suruagy _ Senador vantagem de 500 anos. Como se pode Abdias do Nascimento, V. Exa, em seu falar aqui em igualdade de oportunidade discurso traçou a saga da raça negra no se as classes dominantes têm todas as Brasil, saga da qual V. Exa é mn dos lí- vantagens e o negro tem todas as des- deres mais expressivos. V. Exa fez razão vantagens? Como é que ele pode com- maior da sua vida a luta pela correção petir em nível de igualdade? desses desníveis sociais tão injustos Tem que haver uma lei que resta- dentro da nossa sociedade. Daí a minha alegria em verificar que o discurso de beleça de forma indireta, sobretudo por a meio da educação, esse handicap, essa estréia de V. Ex da tribuna da Câmara Alta do Brasil é coerente com todo o seu desvantagem que o negro sofre em rela- passado, com todos os seus princípios, ção aos outros segmentos da sociedade. coerente com todos os seus conceitos. V. O SR. CID SABÓIA DE CARVA- Exa dignifica não apenas a raça negra no LHO – O que V. Exa acaba de citar, além Senado da República; V. Exa dignifica a de ter a parte do sentimento, do ressen- inteligência brasileira nesta Casa. timento, da mágoa, muito naturais, tem O SR. ABDIAS DO NASCI- uma grande razão sócio-política. V. Exa MENTO – Muito obrigado. Para encer- coloca muito bem essa questão, porque rar, Senhor Presidente, agradeço a pre- essa diferença social não foi natural da sença... sociedade, foi uma diferença imposta ra- cialmente pelo poder econômico. V. Exa O SR. ANTÔNIO MARIZ – Per- a tem razão nessa observação. Parabéns. mite-me V. Ex um aparte? O SR. ABDIAS DO NASCI- O SR. ABDIAS DO NASCI- MENTO – Senador Cid Sabóia de Car- MENTO – Com muita honra. valho, digo mais a V. Exa: um povo que O SR. ANTÔNIO MARIZ – não sinta essa mágoa, que não sinta essa Quero também solidarizar-me com V. indignação, já perdeu a sua humanida- Exa pelo discurso que pronuncia nesta de, porque é exatamente a nossa huma- tarde e que se reveste de grande impor- nidade, que nos faz indignados contra as tância na luta da população afro-brasi- injustiças. E queremos corrigir apenas leira por seus direitos. Na verdade, na as injustiças! Não queremos privilégios, sua busca pela afirmação da cidadania, queremos igualdade de fato. É o que no embate constante para dar substância pretendemos. aos formalismos das leis, à proclamação de direitos constitucionais, a luta dos O SR. DIVALDO SURUAGY – afro-brasileiros confunde-se com a luta Permite-me V. Exa um aparte? do próprio povo deste País, do qual se O SR. ABDIAS DO NASCI- constitui na maioria. Num país estigma- MENTO – Com muito prazer, concedo tizado pela desigualdade que condena à o aparte a V. Exa. maioria de sua população à pobreza, aos THOTH 6/ dezembro de 1998 136 Sankofa: Memória e Resgate

salários subumanos, ao desemprego, o Martin Mbarga e ministro conselheiro discurso de V. Exa é um brado de pro- Ambroise Mvogo; ao conselheiro Abdel testo. É uma afirmação de compromisso Aziz Dawoud, do Egito; ao embaixador a com a raça que V. Ex assume com justo do Senegal, El Hadji Diouf; à professo- orgulho e é também um instrumento de ra Glória Moura, representando o adido luta do próprio povo: a luta pela justiça, cultural brasileiro em Cabo Yerde, Dr. pela igualdade, pelo exercício efetivo Carlos Moura; à professora Benedita dos direitos consagrados na Constitui- ção. Por isso, congratulo-me com V. Exa Damasceno, representando a Fundação e trago-lhe essa solidariedade. Cultural Palmares. Muito obrigado a todos os ami- O SR. ABDIAS DO NASCI- gos que aqui compareceram e agradeço MENTO – Muito obrigado, Senador Antônio Mariz. Senhor Presidente, que- muito àqueles que me apartearam, pois ro agradecer pela presença aos repre- muito me honraram com a colaboração sentantes diplomáticos da África, aos que deram ao meu discurso. Muito obri- senhores embaixadores da China, Shen gado! YunAo; de Angola, Francisco Romão de (Muito bem! Palmas.) Oliveira e Silva; dos Camarões, Nguele

PENSAMENTO DOS POVOS AFRICANOS E AFRODESCENDENTES PENSAMENTO GABINETE DO SENADOR ABDIAS NASCIMENTO NASCIMENTO ABDIAS SENADOR DO GABINETE

Senador ABDIAS NASCIMENTO 6 1998 AFRO ESTANDARTE Acrílico s/ tela - 80 x 150 cm, de Abdias Nascimento, Rio de Janeiro, 1993 Acrílico s/ tela - 80 x 150 cm, de