edelamare melo (organizadora)

negro/a, quilombola, religioso/a de matriz africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

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ISBN: Belo Horizonte - 2019

Editoração Eletrônica e Projeto Gráfi co: conselho editorial: Amauri César Alves Amanda Caroline Adriano Jannuzzi Moreira capa: Alvaro Andréa de Campos Vasconcellos Foto: Jason Lowe Antônio Álvares da Silva Antônio Fabrício de Matos Gonçalves editor responsável: Mário Gomes da Silva Bruno Ferraz Hazan revisão: Edelamare Melo Carlos Henrique Bezerra Leite Cláudio Jannotti da Rocha Cleber Lucio de Almeida Daniela Muradas Reis Editora RTM - Instituto RTM de Direito do Ellen Mara Ferraz Hazan Trabalho e Gestão Sindical Gabriela Neves Delgado Jorge Luiz Souto Maior Rua João Eufl ásio, 80 - Bairro Dom Bosco BH Jose Reginaldo Inacio - MG - Brasil - Cep 30850-050 Lívia Mendes Moreira Miraglia Tel: 31-3417-1628 Lorena Vasconcelos Porto Lutiana Nacur Lorentz WhatsApp: (31) 99647-1501 (vivo) Marcella Pagani e-mail : [email protected] Marcelo Fernando Borsio Site: www.editorartm.com.br Marcio Tulio Viana Maria Cecília Máximo Teodoro loja Virtual : www.rtmeducacional.com.br Ney Maranhão Raimundo Cezar Britto Raimundo Simão de Mello Renato Cesar Cardoso Rômulo Soares Valentini Rosemary de Oliveira Pires Rúbia Zanotelli de Alvarenga Valdete Souto Severo Vitor Salino de Moura Eça Apresentação

Sumário

O Silêncio que grita por liberdade...... 11 Bàbá Robinho de Otyn

Entender e Orixalidade...... 13 Ságàn

Padê de Exu libertador ...... 15 Abdias Nascimento

Agô, Abdias do Nascimento! ...... 19 Milsoul Santos

Apresentação do 1º SIMPÓSIO “ NEGRO/A, AFRO RELIGIOSO/A, QUILOMBOLA: DISCRIMINAÇÃO RACIAL E RELIGIOSA NO BRASIL E SEUS REFLEXOS NO MUNDO TRABALHO”, realizado em Brasília no período de 28 a 30.8.2019...... 23 Roseli Oliveira

NOVA LUZ NOS OLHOS NEGROS DO BRASIL. PALESTRA DE ENCERRAMENTO DO SIMPÓSIO NEGRO [A], AFRO-RELIGIOSO [A], QUILOMBOLA. RACISMO E INTOLERÂNCIA RELIGIOSA NO BRASIL E SEUS REFLEXOS NO MUNDO DO TRABALHO...... 27 Ordep Serra

SIMPÓSIO INTERNACIONAL “Da ancestralidade ao futuro. Riscos de destruição das matrizes culturais para futuras gerações. Alternativas de superação”...... 39 Miguel de Barros

Subjetividades e marcas urbanas em PB: valorizando a diversidade e empoderando identidades não hegemônicas. TECNODEPENDÊNCIA, REDES SOCIAIS, ARTE E SEXISMO...... 45 Ana Cristina de Sá Mello OUTRAS ÁGUAS DE MARÇO...... 63 Milsoul Santos

O FUNDO PATRIMONIAL DA REPARAÇÃO DA ESCRAVIDÃO....65 Antonio Gomes da Costa Neto

ORIXALIDADE...... 71 Milsoul Santos

EPISTEMOLOGIA DO NTU: UBUNTU, BISOIDADE, MACUMBA, BATUQUE E “X” AFRICANA...... 73 Bas´Ilele Malomalo

MULTICULTURALISMO E EDUCAÇÃO: A CONTRIBUIÇÃO DO CIENTISTA DA RELIGIÃO NO DEBATE SOBRE A INCLUSÃO DAS AFRICANIDADES NO ENSINO BRASILEIRO...... 87 Bas´Ilele Malomalo

TEOLOGIA E ESPIRITUALIDADE AFRO-ANCESTRAL EM DEFESA DE PESSOAS HOMOAFETIVAS E DESAMPARADAS...... 107 Bas´Ilele Malomalo

La discriminación por razones étnicas y culturales.....117 Cayetano Núñez González

AS BARREIRAS DE ACESSO AO UNIVERSO DO TRABALHO PARA A MULHER NEGRA E AFRO-RELIGIOSA. De que mulher negra falamos? Qual a sua história?...... 129 Edelamare Melo

MANIFESTO POÉTICO DA LUTA ANTIRRACISTA ...... 157 Milsoul Santos

70 ANOS DE DECLARAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS: SOBRE O PRECONCEITO, O RACISMO, A INTOLERÂNCIA E OUTRAS DROGAS AFINS...... 159 Edelamare Melo Empoderamento e Contribuição da Mulher do Terreiro de Candomblé...... 193 Egbom Sandra Maria Bispo de Yemanjá

A ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL NA PROTEÇÃO À IGUALDADE ÉTNICO-RACIAL E À LIBERDADE RELIGIOSA...... 197 Ela Wiecko V. de Castilho

QUILOMBISMO E REPARAÇÃO DA ESCRAVIDÃO...... 213 Elisa Larkin Nascimento

História da sexualidade, corporeidade e gênero.....225 Elisia Santos

Relação da violência de gênero com o aumento da criminalização feminina e baixa empregabilidade de mulheres egressas do sistema penitenciário da Região Metropolitana do ...... 241 Flavia da Silva Pinto

O catolicismo e a diversidade étnico-racial e religiosa na pós-modernidade...... 251 Frei David Santos OFM

Religiões Afrodiaspóricas: negros batistas e pentecostais em Salvador (1882-1930)...... 265 Gicélia Cruz

EDUCAÇÃO PARA AS RELAÇÕES étnico-raciais: UM DIREITO DO BRASIL...... 275 Iêda Leal de Souza

O CORPO RACIALIZADO FEMININO DE SEXUALIDADE DISSIDENTE: As percepções de um corpo avesso...... 281 Lara Jennyfer Batista Ferreira

Breve análise da Reforma Trabalhista sob a ótica da discriminação racial indireta...... 291 Luana Angelo Leal PEDAGOgIAS CIVILIZATÓRIAS DE TERREIROS: A AFROCENTRALIDADE COMO PROJETO POLÍTICO CONTRA O RACISMO RELIGIOSO ...... 303 Luís Cláudio de Oliveira

DEPOIMENTO...... 315 Adna dos Santos (Mãe Bahiana)

UNIVERSALIZAÇÃO DA NORMA MORAL ATRAVÉS DA REGRA JURÍDICA: a disciplina do racismo e intolerância religiosa pelo direito...... 319 Maria Auxiliadora Minahim

O DIREITO PENAL DA IGUALDADE RACIAL, DA LIBERDADE RELIGIOSA E DO PATRIMÔNIO IMATERIAL DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS DE TERREIRO E DE QUILOMBO. A LEI 7716, E SUAS ALTERAÇÕES. PRECEDENTES E JURISPRUDÊNCIA DO STJ E DO STF...... 331 Maria Auxiliadora Minahim

O RESGATE DOS QUILOMBOS NO CONSTITUCIONALISMO DEMOCRÁTICO LATINO-AMERICANO...... 343 Maria Cristina Vidotte Blanco Tarrega

Comunidade LGBTI+: mapeando intervenções em serviços públicos do Distrito Federal ...... 351 Matheus da Silva Neves

Do navio negreiro ao século XXI - provocações democráticas à política brasileira ...... 373 Melillo Dinis do Nascimento

Boca Preta...... 391 Milsoul Santos

Das trevas à luz: entre a proibição e a crítica...... 395 Michel Gherman Rosiane Rodrigues de Almeida Marcos Fábio Rezende Correia tempo da delicadeza...... 407 Geovana Pires

RACISMO DIGITAL...... 411 Paola Cantarini Willis S. Guerra Filho

History, Mixture, Modernity: Religious Pluralism in Guinea-Bissau Today...... 423 Ramon Sarró and Miguel de Barros

ÓDIO > PERDÃO > AMOR = Cidadania ...... 445 Ruth Grinberg Natalia Gedanken

As infiéis: Criminalização das mulheres na primeira metade do século XX no Brasil...... 453 ​Thaís Dumêt Faria*

Relações e Conflitos Etno-raciais. Africanidade, Religiosidade. Direitos Fundamentais e Cultura. Igualdade Racial e Liberdade Religiosa. Ponto e Contraponto...... 473 Willis Santiago Guerra Filho* apêndice...... 493

PROJETO UBUNTU NO QUILOMBO do GROTÃO: ARTICULAÇÃO INSTITUCIONAL PARA A PROMOÇÃO DO TRABALHO DECENTE E PRODUÇÃO DE ALIMENTOS LIVRES DE AGROTÓXICOS...... 493 Vinicius Gomes de Aguiar Dernival Venâncio Ramos Junior Cecília Amália Cunha Santos Kênia Gonçalves Costa

MANIFESTO: POR UM BRASIL AFRICANO MAIS JUSTO! II COLÓQUIO GEOPOLÍTICA & CARTOGRAFIA DA DIÁSPORA- ÁFRICA -AMÉRICA -BRASIL...... 505

Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

“O Silêncio que grita por liberdade”

O livro “Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo” é ilustrado com fotos do ensaio fotográfico “O silêncio que grita por liberda- de” de autoria da jovem Ságán, Yaô de Oyá, do Terreiro Ylè Alábásé, situa- do no Recôncavo Bahiano. A história do Terreiro Ylè Álábásé, como de todos os terreiros de candom- blé, é marcada pela resistência e pela luta pela preservação e difusão da cultura afro-brasileira, guardada por estas comunidades tradicionais. Neste contexto nasce o Projeto “O Silêncio que grita por liberdade”, de iniciativa e autoria da Yaô de Oyá, Ságàn, que, por meio de ensaios fotográficos, se propõe a contribuir para a valorização do povo de axé, o empoderamento feminino, o resgate e a divulgação de identidades ofuscadas por um sistema marcado pelo preconceito, estigma, racismo, discriminação e opressão. Para lograr os objetivos do projeto, onde o silêncio grita pela liberdade de ser, jo- vens são retratados pela jovem Ságàn e seus amigos e amigas que, com seus celulares, captam imagens e sentimentos contidos e expressos nos rostos e corpos negros da juventude de terreiro. As fotos que ilustram o livro foram selecionados da primeira edição do ensaio na qual são retratados rostos jovens, fundamentalmente de mulheres, cujos ventres sagrados guardam os segredos da continuidade da vida, que remete às história, tradição, cultura e religiosidade afro-brasileira de culto aos Orixás. Nas fotos os rostos e corpos negros não são objetificados, são a representação de sentimentos que saltam dos olhares, das expressões corporais que remontam à força e determinação de nossos ancestrais negros escravizados. Acolhamos a iniciativa da jovem Ságàn e dos seus amigos com entusiasmo para estimular a juventude de terreiro a lutar pelos direitos de serem e estarem livres das amarras do pre- conceito, do racismo, da intolerância e da discriminação, e de viverem em uma sociedade justa e solidária na qual impere a cultura da paz e do respeito à diferença . Bàbá Robinho de Otyn

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Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Entender e Orixalidade

Ságàn

Entender que é preciso cair para aprender a levantar. Que é preciso chorar para saber o valor de um sorriso Que é preciso perder para saber a delícia de se ter. Entender que coisas boas acontecem. Todo dia. O tempo todo E que você também pode ser uma delas Entender que seu sonho não é inútil Entender que o silêncio tem sempre razão Entender que o processo de crescimento é demorado. E, tudo bem. Enten- der...é preciso que você comece a entender quem você é. Porque você é? Porque você está? Porque é você por você e será sempre assim. Saber agra- decer e reconhecer quem tirou você do fundo e quem te pôs lá. Entender. Aprender. Reconhecer. Silenciar. Seguir. Agarrar... agarrar as oportunidades que a vida dá. Oyá soprou novos e bons ventos e me ensinou que também é possível dançar na tempestade. Porque ela é. Porque eu sou. Porque nos somos. Obrigado . Obrigado, Deus! Obrigado! Obrigado, ancestrais. Obrigado Vida.

13 Edelamare Melo (Organizadora)

14 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Padê de Exu libertador1

Abdias Nascimento

Ó Exu, ao bruxuleio das velas, vejo-te comer a própria mãe, vertendo o sangue negro que a teu sangue branco enegrece, ao sangue vermelho aquece, nas veias humanas, no corrimento menstrual. À encruzilhada dos teus três sangues deposito este ebó preparado para ti. Tu me ofereces? Não recuso provar do teu mel cheirando meia-noite de marafo forte. Sangue branco espumante das delgadas palmeiras. Bebo em teu alguidar de prata, onde, ainda frescos, boiam o sêmen, a sali- va, a seiva, o negro sangue que circula no âmago do ferro e explode em ilu azul Ó, Exu-Yangui, príncipe do universo e último a nascer, receba estas aves e os bichos de patas que trouxe para satisfazer tua voracidade ritual. Fume destes charutos vindos da africana Bahia. Esta flauta de Pixinguinha é para que possas chorar chorinhos aos nossos ancestrais. Espero que estas oferendas agradem teu coração e alegrem teu paladar. Um coração alegre é um estômago satisfeito e, no contentamento de ambos, está a melhor predisposição para o cumprimento das leis da retribuição, asseguradoras da harmonia cósmica. Invocando estas leis, imploro-te Exu; plantares na minha boca o teu axé verbal, restituindo-me a língua que era minha e ma roubaram. Sopre, Exu, teu hálito no fundo da minha garganta, lá onde brota o bo- tão da voz, para que o botão desabroche se abrindo na flor do meu falar antigo por tua força devolvido. Monta-me no axé das palavras prenhas do teu fundamento dinâmico, e cavalgarei o infinito sobrenatural do orum, percorrerei as distâncias do nosso aiyê feito de terra incerta e perigosa. Fecha o meu corpo aos perigos, transporta-me nas asas da tua mobilidade ex- pansiva, cresça-me à tua linhagem de ironia preventiva, à minha indomável paixão. Amadureça-me à tua desabusada linguagem. Escandalizemos os puri- tanos, desmascaremos os hipócritas, filhos da puta; assim, à catarse das im- purezas culturais, exorcizaremos a domesticação do gesto e outras impostas a nosso povo negro.

1 Reprodução autorizada pela IPEAFRO, detentora dos direitos autorais da obra de Abdias Nascimento. 15 Edelamare Melo (Organizadora)

Teu punho sou, Exu-Pelintra, quando, desdenhando a polícia, defendes os indefesos, vítimas dos crimes do esquadrão da morte, punhal traiçoeiro da mão branca. Somos assassinados porque nos julgam órfãos, desrespeitam nossa humanidade, ignorando que somos os homens negros, as mulheres ne- gras, orgulhosos filhos e filhas do Senhor do Orum, Olorum, Pai nosso e teu, Exu, de quem és o fruto alado da comunicação e da mensagem. Ó, Exu, uno e onipresente em todos nós, na tua carne retalhada, espalhada por este mundo e o outro, faça chegar ao Pai a notícia da nossa devoção, o retrato de nossas mãos calosas, vazias da justa retribuição, transbordantes de lágrimas. Diga ao Pai que nunca, no trabalho, descansamos. Esse contínuo fazer de proibido lazer encheu o cofre dos exploradores. À mais valia do nosso suor, recebemos nossa menos valia humana, na sociedade deles. Nossos estômagos roncam de fome e revolta nas cozinhas alheias, nas favelas, nas prisões, nos prostíbulos. Exiba ao Pai nossos corações feridos de angústia, nossas costas chicoteadas ontem, no pelourinho da escravidão, hoje, no pelourinho da discriminação. Exu, tu que és o senhor dos caminhos da libertação do teu povo, sabes daqueles que empunharam teus ferros em brasa contra a injustiça e a opressão, Zumbi, Luiza Mahin, Luiz Gama, Cosme Isidoro, João Cândido; sabes que em cada coração de negro há um quilombo pulsando, em cada barraco, outro palmares crepita os fogos de Xangô, iluminando nossa luta atual e passada. Ofereço-te Exu, o ebó das minhas palavras neste padê que te consagra, não eu, porém os meus e teus irmãos e irmãs em Olorum, nosso Pai, que está no Orum. Laroiê!

16 Foto cedida pela IPEAFRO Edelamare Melo (Organizadora)

18 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Agô, Abdias do Nascimento!

Milsoul Santos

Falar de Abdias é coisa que requer muito estudo e consequentemente, muito conhecimento e quando ele já estava no meio do seu longo caminho, eu não tinha nem nascido. Vinte minutos, certamente, não dá pra acessar com êxito merecido este que participou da Frente Negra Brasileira na década de 30, que criou o Teatro do Sentenciado na antiga Penitenciária do Carandiru no ano de 1942 onde cumpria pena como resultado de sua resistência contra o racismo. Os próprios presos faziam os textos e a produção musical e cênica das peças apresentadas. Ele fundou no Rio de Janeiro, em 1944, o Teatro Experimental do Negro - TEN- entidade que rompeu a barreira racial no teatro brasileiro. Além de levar o negro ao palco como protagonista, o TEN propiciou a criação de textos dramáticos que incorporaram ao cânone teatral a vida e as peripécias da população negra. Abdias, à frente do TEN com Aguinaldo Camargo, Iro- nides Rodrigues, Arinda Serafim, Marina Gonçalves, Ruth de Souza e outros, organizou a Convenção Nacional do Negro em 1945-46, que propôs à Assem- bleia Nacional Constituinte de 1946 um elenco de medidas de políticas pú- blicas voltadas às necessidades dos afrodescendentes. Jornalista de profissão, Abdias dirigiu o jornal Quilombo: Vida, Problemas e Aspirações do Negro, órgão de comunicação do TEN. Fundado em 1948, esse jornal foi publicado até 1950, dando notícias de atividades de alcance nacional e internacional como concursos de beleza para mulheres negras, aulas magnas da coreógrafa Kathe- rine Dunham, plataformas de candidatos negros de todos os partidos, casos e exemplos de discriminação racial e notícias de artistas e intelectuais negros em vários cantos do mundo. Mais tarde, com Guerreiro Ramos, Marietta Damas e Guiomar Ferreira de Mattos, Abdias, Aguinaldo e Ironides à frente do TEN organizaram eventos seminais como o 1º Congresso do Negro Brasileiro em 1950, cuja resolução demandava a criação de um Museu de Arte Negra. Esse projeto, sob a curadoria de Abdias e Guerreiro, promoveu o concurso de arte sobre o tema do Cristo Negro em 1955, por ocasião do 36º Congresso Euca- rístico Mundial (reunião da igreja católica do mundo todo no Rio de Janeiro). É, minha gente, como vimos, estamos diante de um gigante que, após a primeira exposição da coleção Museu de Arte Negra em 1968, com obras de artistas negros como o pintor Sebastião Januário e os escultores Agnaldo e José Heitor da Silva, lecionou nas Universidades Yale, Wesleyan, Temple e do

19 Edelamare Melo (Organizadora)

Estado de Nova York, nos EUA, e na Universidade de Ifé na Nigéria. E foi na Nigéria que, no ano de 1977, no ápice da ditadura militar, desconstruindo a fal- sa visão de que os descendentes de africanos que viviam no Brasil se encontra- vam numa condição favorável se comparados aos afrodescendentes que viviam no Sul dos Estados Unidos ou na África do Sul do Apartheid, desmentindo a teoria da dita democracia racial que vinha, ao longo do século, afirmando que o grande problema do negro estava relacionado à pobreza e não à cor da pele, que Abdias, no Segundo Festival de Artes e Culturas Negras, em Lagos, colocou as coisas no lugar. Abdias que nada fez sem um grande quilombo ambulante lhe acompanhando, Abdias, linha de frente de grandes sonhos, ponta de lança de grandes parcerias. Abdias em vários países e eventos internacionais, inserindo a denúncia do racismo brasileiro no contexto da luta pan-africana. Nessa mes- ma frente de luta, desenvolvendo uma nova linguagem: a pintura. No ano de 1978, foi lançada a primeira edição brasileira do livro O Ge- nocídio do Negro Brasileiro, que completa agora 40 anos. Infelizmente, é de uma pertinência, ainda muito potente e precisamos pensar num modo efetivo de tomar o controle das mãos do racismo antes que o racismo nos destrua. Para isso o IPEAFRO providenciou a nova edição que estamos lançando hoje em Brasília. Também disponibilizamos a biografia de Abdias Nascimento pu- blicada pelo Senado Federal, que testemunha o trabalho dele como primeiro parlamentar negro comprometido com o combate ao racismo.

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Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Apresentação do 1º SIMPÓSIO “ NEGRO/A, AFRO RELIGIOSO/A, QUILOMBOLA: DISCRIMINAÇÃO RACIAL E RELIGIOSA NO BRASIL E SEUS REFLEXOS NO MUNDO TRABALHO”, realizado em Brasília no período de 28 a 30.8.2019

Roseli Oliveira

Estão todos e todas convocadas para nestes três dias conjugar o verbo esperançar!! É hora de consolidar pontes infindáveis de humanidade. Trata-se de uma iniciativa do Ministério Público do Trabalho, com apoio irrestrito da Escola Superior do Ministério Público da União, Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento da Magistratura Trabalhista, e conta ainda com o Ministério Público Federal, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, o Ministério Público do Distrito Federal do Trabalho, a Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial – SEPPIR do Ministério dos Direitos Humanos – MDH, a Fundação Cultural Palmares do Ministério da Cultura, a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversi- dade e Inclusão – SECADI do Ministério da Educação - MEC, a Comissão da Verdade sobre a Escravidão Brasileira do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, a Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, Organização Internacional do Trabalho - OIT, todos se aliaram para conjugar o verbo esperançar!!! Como filhos dos sobreviventes, dos sobrantes e também construtores da resiliência, entendemos que é preciso convergir e conjugar o verbo esperançar e o verbo superar! Os tempos tem revelado que a pacificação proposta pelo Estado democrático direito vem sendo ameaçada, o homem cordial, sim, o homem cordial de Sergio Buarque de Holanda, vem demonstrando o seu lado sombrio e o discurso e atitudes de ódio, de racismo, de sexismo, de intolerância, de eliminação das garantias e das singularidades humanas ganham voz e coragem de se revelaram. Estão saindo dos porões da ignorância, do desrespeito, da miséria humana, restolhos de um tempo das dualidades, do certo e do errado, do falso e do verdadeiro, da vergonha!!! É preciso urgentemente conjugar o verbo esperançar!!! Estamos todas e todos ameaçados – as pessoas negras e seu patrimônio cultu- ral, imaterial que dão sentido a história do Brasil e, aqueles que chegaram depois... As mulheres e suas competências, em seus diferentes espectros da vida, sentidos, que alargam a humanidade individual e coletiva;

23 Edelamare Melo (Organizadora)

As crianças ainda em formação subjugadas, ameaçadas; A juventude negra morta, assassinada... São mulheres, crianças, jovens, haitianos, venezuelanos, todos compul- soriamente, impedidos de exercitar a sua humanidade... Então, é hora da reação, e estamos convidando a todos e todas para recuperar a nossa memória social, a coragem dos nossos ancestrais e encarar os desafios e superar!!! E, em falando de desafios, em superação, em altivez, em determinação é bom fortalecer a alma, e aqui estamos – respondendo ao chamado do - é possível, sim! Invocaremos Zumbi, Mestre Valentim, Aleijadinho, José do Patrocínio e Abdias do Nascimento.. Dandara dos Palmares, Aqualtune, Tereza de Bengela, Maria Firmina dos Reis e Dandara dos Santos.... Luiz Gama, Juliano Moreira, Carolina de Jesus, Lélia Gonzalez e Ma- rielle Franco. Todos e todas Presentes!!!! E nós, sim, nós, anônimos e anônimas também estamos presentes, vestidos de Procuradores, advogados, Magistrados, gestoras, estudantes, economistas, policiais, sociólogos, professores, todos aprendizes e os Griots... estamos todos presentes! Griots ? aí temos que fazer uma breve ressalva. Quem são os Guardiões, Guardiãs da nossa história? São popularmente chamadas de “Mães de Santo” – Yalorisás, Mametus, Makotas, Ebomys, Ekédis, Benzedeiras, todas guardiãs da memória ancestral. Mulheres Negras, filhas da luta, sobreviventes, senhoras que afirmam que é possível conjugar o verbo esperançar. Sapientes dos tempos, conhecedora das almas humanas, alquimistas da vida, das formas de sobrevidas, e que ainda sobrevivem às violências contínuas – senhoras que lidam com os medos, as incertezas, as inseguranças, alicerçam os passos dos homens, geradoras de sustentabilidade, da sustentabilidade humana. Escolhidas pela natureza e amalgamadas ao ar, água, terra, fogo, vento, folhas, ra- ízes, sais, se juntam, e despertam, clarificam, multiplicam conhecimento, fé e esperança. Por meio de seu conhecimento, narrativas, dedicação à humanidade, seus saberes ofertam ao conjunto social que nada mais são que recursos ao equilíbrio moral, social e histórico. Ah, estamos falando de guardiões e guardiãs, de donibekas – fazedores do conhecimento, então estamos também falando de pessoas que asseguram por meio da lei, das regras, dos regimentos, dos regulamentos - a ação. Intermediam as relações institucionais e sociais, então estamos falamos de nós, senhores e senhoras, que aqui estão em nome do direito, porque é preciso agir, garantir, reparar, proteger e promover. 24 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Estamos falando dos guardiões institucionais do mundo do trabalho, do trabalho que já foi escravo, do trabalho que, infelizmente, pode ser traficado, do trabalho não remunerado, protetor do sem trabalho.... e que em missão especial continuadamente, se colocam ao lado daqueles que historicamente, emprestaram valores a sociedade brasileira - solidariedade, liberdade, espiri- tualidade, todos princípios africanos, doados a esta terra. É preciso guardar os que guardam, é preciso curar as feridas, amenizar as dores, as cicatrizes, é preciso organizar a vida, o direito e garantir o amanhã livre, altivo, que nós chamamos de democracia. A política pública tem sentido se submeter aos princípios da transversalidade, in- terssecionalidade, equidade, do direito, substantivo masculino, singular - direito - que orienta, reconhece as especificidades da humanidade brasileira, que deve contar com a educação plural, com a justiça social, com as diferentes áreas do saber, como elementos fundamentais para a superação das desigualdades étnico-raciais, de gênero..... É sabido que o corpo negro sofreu diuturnamente processos de desumaniza- ção, foram ciclos de violência, de invisibilização, violações, aspectos se entrelaça- ram em nome dos interesses de uma determinada configuração histórica, gerador de um atrofiamento estrutural para o conjunto social e ainda, no presente, a tentativa de redução de um determinado grupo aos processos de uma tal “sub-cidadania”. Então é preciso reagir!!! É preciso humanizar a humanidade. Estão todas e todos presentes, convidadas e convidados, a refletir sobre as portas de saída à superação da violência no Brasil. É necessário avançar na consolidação de um novo olhar, novas concepções e recursos, para fincar nas Américas à bandeira contra toda e qualquer forma de discri- minação, racismo, intolerância xenofobia, consubstanciar o desafio histórico de in- cluir nas proposições do Estado, das instituições, da sociedade, as singularidades da população negra, como nuances de direito, de justiça e de igualdade. Estamos firmando compromisso público com a população negra ao resgatar a presença, o significado, a participação e a contribuição destes sequestrados de seus territórios e que formam a Nação brasileira. Iniciamos este Simpósio com os compromissos aqui nomeados e perse- guiremos estas máximas até a completa transformação social, para um Estado soberano, plural e de direitos. É inegável os resquícios da discriminação étnico-racial, do racismo e sexismo no território brasileiro, mas também é inegável a nossa busca por meios para enfrentar e superar as desigualdades raciais e sociais na história recente do Brasil. Que Olodumare nos cubra Sejam todas e todos bem-vindas nesta empreitada. Obrigada!!! Roseli Oliveira 25

Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

NOVA LUZ NOS OLHOS NEGROS DO BRASIL. PALESTRA DE ENCERRAMENTO DO SIMPÓSIO NEGRO [A], AFRO-RELIGIOSO [A], QUILOMBOLA. RACISMO E INTOLERÂNCIA RELIGIOSA NO BRASIL E SEUS REFLEXOS NO MUNDO DO TRABALHO.

Ordep Serra1

Começo por agradecer aos organizadores a oportunidade de participar deste magnífico simpósio e a grande honra de nele pronunciar a palestra de encerramento. Sou especialmente grato a minha querida amiga Edelamare Melo e a Oxumarê que nos aproximou. Parabenizo a Escola Superior do Mi- nistério Público da União e o Ministério Público do Trabalho pela brilhante iniciativa, mais do que nunca oportuna, de acolher a nossa gente negra, os quilombolas, o povo de santo, um grupo notável de lídimos representantes da imensa comunidade afro-brasileira, a fim de discutir temas de indiscutível relevância que envolvem direitos, dignidade, valores sem os quais nosso país ficaria às cegas. Louvo estas instituições que decidiram enfrentar com lucidez e coragem os sérios problemas criados no Brasil pela tenacidade do racismo e pelo furor da intolerância religiosa, mazelas cujo impacto negativo se faz sen- tir em todos os níveis da vida nacional, marcadamente no mundo do trabalho. Assim deram prova cabal de sua disposição de combate à iniquidade. Destaco mais uma vez o generoso empenho de minha cara amiga Edelamare, guerrei- ra da justiça iluminada pelo fogo de Xangô na realização deste evento, com certeza um dos mais importantes ocorridos no Brasil no presente ano de 2018. O simpósio já começou de forma brilhante. Nada mais justo, nada mais oportuno e acertado que celebrar a memória das heroínas Dandara e Marielle Franco. Toca-me profundamente, também, a homenagem a meu saudoso amigo Abdias Nascimento, com quem tive a honra de participar do Memorial Zumbi

1 Mestre em Antropologia Social pela UNB e Doutor em Antropologia pela Universidade de São Paulo, com Pós-Doutora- do em Literatura e Cultura pela Universidade Federal da Bahia. Professor Aposentado do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia. Membro da Associação Brasileira de Antropologia, da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos. Mem- bro fundador de Koinonia, Presença Ecumênica e Serviços. Membro fundador da Associação Observabaía. Fundador, primeiro Coordenador e conselheiro do Grupo Hermes de Cultura e Promoção Social. Coordenador do Movimento Vozes de Salvador e membro do Fórum “A Cidade Também é Nossa”. Produção principal em Antropologia da Religião, Antro- pologia das Sociedades Clássicas, Teoria Antropológica. Tradutor de textos científicos e literários. Escritor premiado em três concursos nacionais de literatura (ficção). Membro da Academia de Letras da Bahia. 27 Edelamare Melo (Organizadora) e da campanha pelo tombamento da Serra da Barriga. Com igual saudade cele- bro os demais companheiros desta luta, evocando de modo especial os que já se foram, como os inesquecíveis Joel Rufino, e Lélia Gonzalez, a quem Abdias foi juntar-se. Estendo minha saudação a todos os que se empenham ainda hoje no combate ao racismo, à injustiça, à iniquidade. Mas peço vênia para evocar primeiro o saudoso amigo e os militantes a ele associados numa campanha que tem muito a ver com o tema deste Simpósio. Não posso esquecer o entusiasmo com que vivenciamos a primeira romaria à sagrada Serra da Barriga, que subi por sete anos seguidos homenageando os heróis do histórico quilombo. Permi- tam-me que rememore essa magnífica aventura. Quando foi convidado por Aloysio Magalhães para assumir uma coor- denação de projetos na Fundação Pró-Memória, o antropólogo Olympio Serra teve um gesto de estranhamento que se revelou muito frutífero. A relação dos bens tombados como patrimônio histórico da União já tinha sido vista mi- lhares de pessoas, já tinha passado por inúmeras mãos, sem quem ninguém a estranhasse. Ele a achou muito esquisita e tratou logo de manifestar a Aloysio Magalhães sua estranheza. Como podia ser que neste país de maioria negra nenhum traço da memória do povo negro tivesse sido, até então, considerado digno de figurar como patrimônio nacional? Era já a penúltima década do século XX. A omissão que ele apontou mostrava-se mesmo escandalosa, se- gundo logo admitiu o Presidente da Fundação Pró Memória, também titular da Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - SPHAN. Com seu aval, Olympio Serra tomou uma iniciativa pioneira. Contactou imediatamente Abdias Nascimento e numerosas outras lideranças do Movimento Negro de todo o país, convidando-os para um seminário na Serra da Barriga, onde nas- ceria o Memorial Zumbi, entidade cujo propósito primeiro era a preservação daquele sítio histórico, mas que também ensejava a criação de uma instância onde dialogassem gestores da política cultural do país e militantes da luta an- ti-racista. Integrando o Conselho do Memorial Zumbi, participei, ao lado do amigo Zezito Araújo, da elaboração do dossiê que fundamentou o pedido de tombamento da antiga capital da república negra de Palmares, tombamento este consumado em 20 de novembro de 1985. O êxito do Memorial Zumbi não se cingiu a essa iniciativa. Ao extinguir-se ele deixou uma semente poderosa: foi a verdadeira matriz da Fundação Palmares. Basta lembrar que três dos presidentes desta Fundação foram antes Conselheiros do Memorial Zumbi. Retorno com a lembrança ao dia da nossa primeira peregrinação à sede histórica do quilombo glorioso. Revejo Abdias a discursar emocionado, e diviso a sua volta uma pequena multidão em que distingo a querida Elisa,

28 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. sua mulher, minha esposa Regina, a amiga Bete Capinan, os moços do Olo- dum conduzidos por João Jorge, a turma do Ilê Ayê com Vovô e Mãe Hilda à frente, Zezito Araújo, nosso bom companheiro de Maceió, e um time fan- tástico de lideranças do movimento negro do país inteiro. Revejo o povo de União dos Palmares espantado com a nossa chegada e torno a ouvir o comen- tário quase temeroso de um cavalheiro do lugar: “Eu sabia que um dia eles iam voltar”. Eles: os negros, a gente de Zumbi. Nós. Ainda sinto a emoção deste momento inesquecível. Voltei por sete vezes seguidas ao sítio sagrado onde reinou o maior herói brasileiro. Tenho a lembrança de uma ocasião especial. Vou fazer in- veja, agora, a muitos amigos, a ilustres membros do povo de santo que aqui vejo: assisti na Serra da Barriga a linda cerimônia em honra de Zumbi, um pequeno axexé do herói, celebrado por Mãe Hilda, com assistência do Elema- xó Antônio Agnelo Pereira. Abdias estava presente. A Serra da Barriga não foi o primeiro monumento negro a ser reco- nhecido como patrimônio histórico nacional, nem a primeira campanha em que juntei forças com o amigo homenageado neste Simpósio. Teve a pre- cedência o Terreiro da Casa Branca do Engelho Velho, Ilê Axé Iyá Nassô Oká. E foi também Olympio Serra quem nos recrutou. Recebi de Olympio a incumbência de elaborar um projeto voltado para a preservação de bens cul- turais do povo de santo, sítios sagrados que desde muito já mereciam registro nos livros de tombo da União. Tendo como colaborador o arquiteto Orlando Ribeiro, escrevi, então, o Projeto de Mapeamento de Sítios e Monumentos Religiosos Negros da Bahia - MAMNBA, executado com base em convênio entre a Pró-Memória, a Prefeitura Municipal do Salvador e a Fundação Cultu- ral do Estado da Bahia. A primeira definição deste projeto foi a escolha de um grande Terreiro para figurar como monumento histórico do Brasil. O velho santuário da Casa Branca foi escolhido por sua antiguidade, sua importância nacional e pela ameaça que sobre ele pairava. Começou assim uma grande luta em que ainda hoje me acho envolvido. Chamo atenção para um dado por vezes esquecido: na altura em que o Projeto MAMNBA foi implementado, não se falava em patrimônio negro, não se usava esta expressão. Ainda me lembro das críticas que sofri por falar em “monumento negro”; ainda tenho na memória a insistente sugestão que ouvi de muitas bocas, propondo-me a troca da palavra “negro” pelo adjetivo “popular” no nome do projeto. Lembro-me sempre da reação escandalizada de técnicos do IPHAN que consideravam absurdo tombar um Terreiro, que negavam valor histórico a um templo cente- nário onde se perpetuam legados da civilização iorubana, heranças do grande

29 Edelamare Melo (Organizadora) império de Oyó. Para eles nada significava a matriz de centenas de Casas de culto aos Orixás em todo o Brasil. A custo essa resistência foi vencida. Mas era apenas o começo de longos embates em que me orgulho de ter tido sempre o apoio de Abdias Nascimento, o primeiro a celebrar no Congresso Nacional a vitória do candomblé do Engenho Velho. Foi com muita emo- ção que participei da homenagem feita neste Simpósio a meu caro amigo, à gloriosa Dandara e à inesquecível Marielle Franco, que nós aqui veneramos ainda com lágrimas nos olhos. Impossível conter a indignação que nos toma com a lembrança não só do assassinato desta grande mulher e de seu amigo Anderson Gomes, mas também com a delonga espantosa das autoridades na investigação deste crime, cuja origem tudo indica achar-se na brutalidade das milícias e dos brutamontes policiais que ela combatia. Aproveito a ocasão para fazer aqui duas propostas que pretendo encaminhar também ao IV Con- gresso Internacional do Direito dos Povos e Comunidades Tradicionais, a ce- lebrar-se em Salvador entre 7 e 9 de novembro deste ano de 2018. Proponho, primeiro que solicitemos, ou melhor, exijamos o reconhecimento de Mariel- le Franco como Heroína do Brasil, a incorporação de seu nome ao panteon dos heróis nacionais. A segunda proposta eu fundamento em lições ouvidas neste Simpósio. Ouvimos aqui de jurista abalizados, de honrados militantes da causa da Justiça, repetidas denúncias da incrível morosidade do aparelho judicial do Estado quando se trata de punir crimes evidentes, gritantes, mais que comprovados, brutais, escandalosos, cometidos com frequência contra a nossa gente negra, contra os quilombolas, os favelados, os povos e comuni- dades tradicionais; ouvimos honrados representantes do Ministério Público a queixar-se da espantosa dificuldade de fazer com que seja punida a intolerân- cia, ou melhor dizendo, a violência religiosa desencadeada contra os adeptos das religiões de matriz africana, vítimas constantes de injúrias, agressões, desrespeito, ameaças, expulsão, assassinatos; escutamos denúncias graves de esbulhos tolerados, de atos hediondos, de gestos abomináveis de discrimina- ção e medidas de segregação mantidas impunes; ouvimos falar de brutalidade sistemática jamais coibida, ou sequer levada a julgamento; ouvimos queixas de desrespeito, de ataques diversos sequer registrados pelas autoridades poli- ciais e de abusos que elas mesmas cometem impunemente. Estamos cansados de denunciar em vão o morticíno da juventude negra. Continuaremos, é claro, a denunciar, a reclamar, a exigir do Estado as providências indispensáveis, quase sempre negligenciadas quando se trata de fazer justiça a nosso povo. Mas acredito que também devemos, nós mesmos, assumir o julgamento des- ses crimes, para dar conhecimento deles à opinião pública nacional e interna-

30 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. cional, tornando patente a omissão do Estado brasileiro e impedindo que se esqueçam as vítimas. Por isso proponho a instalação de um tribunal popular que se reuna periodicamente em locais simbólicos como a Serra da Barriga para julgar os grandes criminosos que perseguem os quilombolas, o povo de santo, a gente negra, as comunidades tradicionais: o Tribunal Marielle Fran- co. Peço aos meus queridos amigos que estudem esta sugestão. O magnífico Simpósio que agora se encerra tem um significado especial por realizar-se em um momento tenebroso em que se multiplicam retrocessos e agressões à democracia; em que um candidato à presidência da república, ao mesmo tempo em que ataca de forma sórdida o Ministério Público do Trabalho, a Justiça do trabalho, prometendo constanger, coibir e essas instituições como se já fosse um ditador, ao tempo em que insulta descaradamente os quilom- bolas e conta com a leniência de ministros da mais alta corte. Estamos em um momento em que a justiça social se vê atacada de maneira sistemática. Impos- sível deixar em silêncio este fato. Temos de considerá-lo. Inegavelmente, é a iniquidade que ora prevalece em nossa terra. Um país rico em recursos, uma das maiores economias do planeta, continua a ser um dos mais desiguais do mundo, mantido assim de forma sistemática pela fração dominante que se aproveita do descalabro. As vítimas maiores desse estado de coisas terrivelmente injusto são fáceis de identificar. Não dá para esconder que gênero e raça têm peso considerável na perversa distribuição de riqueza num país onde, como vários palestrantes lembraram neste Simpósio, mulheres ganham menos que os homens pelas mesmas tarefas e o ganho de 67% dos negros situa-se na faixa de 1,5 salários mínimos. É também notório que na sociedade brasileira as mulheres e os negros são os mais atingidos pelo crescente desemprego: conforme atesta o IBGE, mais de 67% dos desem- pregados no Brasil são pretos ou pardos; onde os negros, quando ocupados, recebem em média quase a metade do que ganham os brancos. A rigor, a desigualdade se acha aqui institucionalizada. Segundo a Oxfam Brasil, em nosso país a riqueza de seis bilionários corresponde ao ganho dos cem milhões de brasileiros mais pobres e os 170 mais ricos abocanham o correspon- dente a quase 15% do PIB. Mecanismos institucionais garantem a reprodução deste status quo desigual. Basta ver que 56% dos tributos aqui consistem em im- postos indiretos, embutidos nos produtos, e se resiste ferozmente à progressivida- de da tributação. Assim é desde muito. Mas nos últimos tempos neoliberais se tem incrementado de forma deliberada e sistemática tal disparidade. Vale recordar: em meados da década de 1990 verificou-se em nosso país uma perversa alteração do regime tributário, que agravou sua injustiça: diminui-se a tributação sobre a

31 Edelamare Melo (Organizadora) renda enquanto se acrescia a incidente sobre o consumo. Naquela altura, deu-se generosa redução (de 25% para 15%) não só da alíquota do Imposto de Renda de Pessoas Jurídicas das instituições financeiras como da chamada Contribuição So- cial sobre o Lucro Líquido (neste caso, de 30% para 9%). Reduziu-se ainda mais a base de cálculo do IRPJ e da CSLL graças ao artifício de permitir a dedução dos juros sobre capital próprio. Além disso, concedeu-se isenção do imposto de renda sobre remessa de lucros e dividendos ao exterior. Ao mesmo tempo, a liberaliza- ção financeira franqueou às elites econômicas novas oportunidades de evasão e elisão fiscal, facilitando a fuga de capitais. Já os impostos que oneram a classe de renda mais baixa foram majorados. Como tem mostrado o Sinprofaz, chega a ser incrível a facilidade com que, no Brasil, as grandes empresas e os detentores de altos rendimentos escapam do fisco, tão rigoroso com quem trabalha. Cerca de quatro mil pessoas físicas e jurídicas têm dívidas de impostos cuja soma chega a quase um trilhão de reais. Calcula-se que o combate à evasão fiscal poderia resultar na arrecadação de soma equivalente a mais de 160 bilhões de dólares. Mas sucede o contrário: em 2018, o Brasil está a conceder aos nababos 283 bilhões de reais em benefícios fiscais, mais que os gastos com saúde e educação. As isenções de impostos de grandes empresas chegaram a 280 bilhões no ano passado. A um grande banco foi perdo- ada uma dívida de 25 bilhões em impostos. Segundo análises recentes, as renúncias fiscais respondem por 25% das receitas federais e a sonegação por 14%. De acordo com estudo realizado em conjunto pela Procuradoria da Fazenda Nacional e pelo INCRA, entre os maio- res sonegadores do Brasil se encontram grandes latifundiários. E o governo que mostra tamanha generosidade para com essa gente podre de rica, cumulando de benesses o latifúndio, se empenha em ignorar, cercear e restringir os direitos dos quilombolas, dos indígenas, de povos e comunidades tradicionais em geral. Cabe dizer que vivemos uma crise seletiva: no Brasil, o sistema financeiro teve o lucro de 44 bilhões no primeiro semestre de 2017. Nos anos de 2015 e 2016, já desfrutara lucro igual ou superior, no mesmo período. E apenas no primeiro tri- mestre de 2018, os três maiores bancos privados do país registraram lucros de 14,3 bilhões. Ao mesmo tempo, a produção industrial caiu e o desemprego subiu. Em 2017 foram pagos cerca de 400 bilhões de juros da Dívida Públi- ca, beneficiando grandes instituições financeiras e um punhado de rentistas. Claro que esse débito não foi reduzido. Pelo contrário, cresceu: calcula-se que deve alcançar cerca de 4 trilhões neste ano de 2018. Os juros e amortizações da misteriosa dívida - cujo montante não se conhece por que ela nunca foi au- ditada - consomem a maior fatia do Orçamento da União, quase 50%. Note-se

32 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. que não há no mundo governo tão generoso quanto o brasileiro quando se tra- ta de remunerar os títulos da DP, que aqui desfrutam de abusivos incrementos financeiros além de juros escandalosos, sem paralelo no mundo. Ao mesmo tempo, as despesas com Educação e Saúde ficam entre 3 e 4 % do Orçamento. Os dados da Receita Federal pertinentes ao Imposto de Renda da Pes- soa Física indicam com clareza o aumento da concentração de renda. Entre 2014 e 2016 (ou seja, no início da recessão econômica no país), a renda per capita do conjunto geral de contribuintes caiu 3,3% em termos reais, enquan- to a renda per capita do segmento mais rico da população cresceu 7,5%. Com base nesses dados, cabe dizer que hoje o governo brasileiro faz uma políti- ca de acentuação da desigualdade: promove a hiperconcentração de renda e gera pobreza em escala crescente. Pesquisa feita pelo SPC Brasil em parceria com Confederação Nacional dos Lojistas mostra que 95% dos trabalhadores e trabalhadoras desempregados há mais de um ano pertencem às classes C, D e E, sendo que 54% deles têm escolaridade somente até o ensino médio. A maioria desse contingente é do sexo feminino (59%). Nas classes C, D e E se concentra a massa dos afrobrasileiros, o maior contingente de pretos e pardos. Os cortes sistemáticos de verbas em áreas críticas para o bem-estar dos cidadãos são justificados em nome da falta de recursos. Ao mesmo tempo, pro- jeta-se a entrega do pré-sal a empresas estrangeiras com um brinde significa- tivo: a dispensa de impostos durante vinte anos, com renúncia a um trilhão de reais. Quer-se consertar a economia com medidas de arrocho que atingem a renda da maioria da população, poupando os mais favorecidos e aumentando seus privilégios. Assim se condena à miséria uma ampla fatia da população. Contrariando recomendação da OCDE no sentido de aumentar os recursos des- tinados ao programa bolsa família, o que se verificou foi sua drástica redução. Os gastos com saúde, educação e segurança foram congelados. Em suma, ado- tou-se a iniquidade como política. As consequências só podem ser severas para a economia nacional: com uma população de 204 milhões de habitantes e um PIB de 6 trilhões de reais, somos uma economia vinculada ao mercado interno. Os 600 bilhões de reais logrados com as exportações mal chegam a 10% do PIB. No entanto a EC 95 impõe por vinte anos um teto para o crescimento das despesas não financeiras do governo, limitando perversamente o gasto social, ao tempo em que amplia de 20% para 30% a Desvinculação de Receitas da União. Não ha dúvida de que isso configura um ataque violento e irracional contra o mercado interno, ou seja, contra a economia de nosso país. Cogitou-se uma Reforma da Previdência voltada para suprimir direi- tos adquiridos dos trabalhadores, mas sem qualquer medida destinada a sanar

33 Edelamare Melo (Organizadora) desvios notórios, distorções e fraudes mantidas impunes. Ainda em 2016 o descalabro dessa reforma tão desejada pelo atual governo foi demonstrado de forma cabal em documento assinado por 50 especialistas no assunto: ve- ja-se o estudo produzido pela Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal e pelo Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos, com o título de Previdência: reformar para excluir? E em 2017 uma Comissão Parlamentar de Inquérito revelou que empresas privadas devem à Previdência cerca de R$ 500 bilhões. Nisso não se toca. Outro retrocesso brutal veio com a chamada Reforma Trabalhista que se apresentou também como remédio contra a crise, e trouxe em seu bojo, en- tre outras novidades do mesmo jaez, o trabalho intermitente, a jornada parcial, a terceirização irrestrita, a contratação na modalidade de pessoa jurídica mais a contratação de autônomos com “exclusividade e continuidade”, sem todavia configurar relação de emprego. A essa medidas se somaram dispositivos que inibem o recurso à Justiça do Trabalho por parte de quem mais carece, ou seja, os trabalhadores. As consequências óbvias dessa estranha reforma vêm a ser re- baixamento de salários, aumento da insegurança laboral, queda de receita previ- denciária, enfraquecimento do mercado interno, aumento do precariado. Responsabilizou-se a legislação trabalhista anterior pela crise. Mas como tem assinaldo o Dr. Eduardo Fagnani, no período entre 2003 e 2014, em plena vigência da CLT, o estoque de empregos com carteira assinada subiu de 28 milhões para 50 milhões, a taxa de desemprego caiu de 13% para 4,8%, o salário mínimo cresceu mais de 70% acima da inflação e a informalidade declinou de 60% para 46%. Compare-se este quadro com a situação atual e com as projeções para o futuro próximo. A diferença é um abismo. Convém ponderar ainda os efeitos que já se fazem sentir da Emenda Constitucional 95, a do Teto de Gastos, a mais violenta das medidas de suposta “austeridade” (melhor dizendo, de “austericídio”), política desastrosa hoje con- denada até pelo FMI. Facilmente se vê que a suposta austeridade é unilateral, pura hipocrisia: não há corte de despesas financeiras. Um estudo em cuja reali- zação se associaram o Instituto de Estudos Socioeconômicos- INESC, a Oxfam Brasil e o Center for Economic and Social Rights mostrou que a EC 95 coloca em risco direitos sociais e econômicos de milhões de brasileiros. Em vista dis- so, cabe afirmar que ela tem o mesmo sentido de um Ato Institucional como os editados pela Ditadura, pois é um ato que anula direitos, cerceia a cidadania. Não é difícil ver os resultados: aumento da taxa de desemprego, queda real do salário mínimo, ampliação das desigualdades. O Brasil está a ponto de voltar a galope para o mapa da fome, com um aumento significativo do contingente em

34 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. situação de extrema pobreza: 11, 2 % nos dois últimos anos. O corte de 69% nas verbas do Programa de Aquisição de Alimentos sem dúvida tem a ver com isso. Infelizmente não é surpresa verificar que a mortalidade infantil para crianças entre um mês e quatro anos de idade também cresceu nos dois últimos anos. Tem a ver com a configuração desse quadro escabroso uma rude e des- pudorada reafirmação do espírito escravista de nossas elites, seu racismo visce- ral. Cabe dizer que a nostalgia do escravismo teve recentemente um surto espan- toso no país. Todos se recordam da frustrada Portaria MTB 1129/ 2017, com que o governo atual quis alterar de modo perverso a definição do trabalho escravo (ou análogo ao escravo) dificultando a fiscalização dessa prática hedionda e criando para seus obstinados impositores facilidades, atenuantes, subterfúgios. Apenas a reação indignada da opinião pública no Brasil e no exterior, o empe- nho do MPT e a pressão de organismos internacionais, cujos apelos provocaram uma intervenção do STF, impediram que a vergonhosa portaria passasse a ter vigência. Mas não se conseguiu debelar a sanha escravista que a alimentava: o Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho tem insistentemente denunciado o contínuo, tenaz e sistemático desmantelamento das políticas de combate ao trabalho escravo no Brasil contemporâneo. Não se pode dar mais clara demonstração do ânimo escravocrata que inspira o atual regime antirepu- blicano imposto ao país pela minoria encastelada no governo. Casa-se muito bem com esta sanha o obscurantismo hoje reinante nes- sa esfera e cada vez mais difuso na sociedade. São muitas as suas expressões. Ele se manifesta em nível governamental por uma série de políticas castra- doras: ganham proporções de calamidade pública a redução escandalosa das verbas para a educação e a cultura, assim como a asfixia financeira imposta à ciência e à tecnologia, com sinistras consequências para o desenvolvimento econômico do país. Como se não bastasse, no campo educacional retrocessos são imple- mentados com furor. Retira-se a garantia da universalidade do ensino básico e da sua gratuidade; suprime-se a obrigação do Estado de garantir a educação infantil para todos. Suspende-se de maneira perversa a obrigatoriedade do ensino da cultura afrobrasileira. Manifesta-se, assim, o claro propósito de restringir o acesso e inviabilizar a permanência de negros e indígenas nas instituições de ensino superior, sintoma do inconformismo de segmentos do- minantes com as políticas de inclusão. Busca-se com rude empenho limitar a escola pública à preparação de mão de obra servil, desinformada, sem capital cultural que habilite o alunado pobre para o exercício da cidadania: pretende- se tornar privilégio de poucos o ensino das Humanidades (Filosofia, História,

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Sociologia, Artes etc.). O óbvio propósito dessa medida iníqua é tornar inal- cançável para a maioria dos brasileiros tanto o conhecimento como o exercí- cio do direito, a compreensão da ordem republicana. Quer-se, enfim, separar a senzala da casa grande no campo da educação. Ao mesmo tempo busca-se reintroduzir no ensino a censura, vetando abordagem de temas como gênero e sexualidade, em nome de uma ordem patriarcal perversa e de fundamentalismos incompatíveis com o estado laico que a Constituição preconiza. Em suma, tenta-se mais uma vez agrilhoar as consciências. Os novos censores que nisto se empenham desejam ainda pros- crever o estudo e o debate de teorias em desacordo com a estreiteza de suas convicções, pois a liberdade de expressão e de pensamento os ofende. Que- rem que a educação de qualidade se torne cada vez mais restrita ao círculo dos privilegiados e sequer se dão conta da contradição inerente a sua proposta, pois sonham com um saber acrítico. É fácil ver que tipo de trabalhadores desejam formar os proponentes desse tipo bisonho de reforma educacional: sua triste utopia se resume à for- mação de servos, em paralelo com a manutenção de escolas de elite isoladas em torres de marfim. Nada mais estúpido. Mas o obscurantismo não se limita a este domínio, tem outras manifes- tações. A intolerância religiosa hoje se tornou um novo cavalo de batalha do racismo. Os grupos que a protagonizam unem-se com frequência ao crime orga- nizado e ao que há de mais corrupto no inframundo político para promover sór- didos ataques contra as religiões de matriz africana, que suas igrejas parasitam e injuriam de todas as formas, não hesitando em valer-se de violência. Templos de candomblé e umbanda são invadidos, sacerdotes dos terreiros são agredidos, humilhados, injuriados, assassinados, não raro sob o olhar complacente de auto- ridades que mal escondem sua conivência com tais abusos. Uma campanha de deseducação conduzida pelo que prefiro chamar de empresas eclesiais dedicadas ao esbulho e à exploração dos mais pobres busca de modo sistemático desvalo- rizar os costumes, as artes, o saberes, a cultura do povo negro, que demoniza e calunia, disseminando preconceitos, pregando ignorância. Diante desse quadro, é impossível negar a continuidade de um éthos escravocrata e mesmo de uma práxis escravista de que o Brasil tarda a livrar- se. A herança dos séculos de cativeiro é perceptível em muitas instituições. Marca a brutalidade de um Estado policial que oprime a população em cam- panhas desvairadas contra o fruto de seus cárceres. É a juventude negra a grande vítima tanto das organizações criminosas quanto dos repressores, for-

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ças que não raro se aliam. Em defesa dos direitos da gente oprimida tombam lutadores do porte de Marielle Franco. Mas eles renascem. Não me reporto ao feio quadro acima descrito para nele me deter. Bem ao contrário, o que tenho em vista é sua superação. Eu a enxergo com clareza nos olhos dos companheiros aqui reunidos. Este Simpósio que reúne tantos representantes ilustres da inteligência negra, tantas pessoas dignas, sérias e realmente interessada em liberdade, em justiça, em igualdade, mostra bem que é possível fazer outro Brasil. Vejo aqui mulheres e homens inspirados por Marielle Franco, por Dandara, por Acotirene, por Zumbi, por Abdias Nasci- mento, pelo que temos de melhor. Confio em sua força e no ânimo de muitos outros que em nosso país se associam na luta contra o racismo, o sexismo, a brutalidade escravista. Tenho afirmado e volto a afirmar a riqueza espiritual do nosso povo negro, o esplendor das suas criações culturais. Nem mesmo com a mais furiosa má fé se poderia negar que os negros, com seu trabalho, suor e sangue, fizeram a riqueza material do nosso país; mas impõe-se tam- bém reconhecer que sua contribuição vai além. Negras e negros do Brasil, na esteira de seus ancestrais africanos, muito têm feito para formar o patrimônio cultural desta nação: criam riqueza com seu trabalho e também com seus va- lores morais, sua inteligência, suas artes e saberes. Os herdeiros de Zumbi representam uma vanguarda criativa e genero- sa, que pode, sim, vencer a barbárie hoje dominante. Seu compromisso com a verdadeira civilização se demonstra neste simpósio brilhante onde se combate a estupidez do racismo, da segregação, do sexismo. Aqui vozes poderosas se levantam contra os pregadores do ódio, denunciam o obscurantismo, acusam as armadilha da exploração e da ganância. Juntos cultivamos cidadania, exaltando o valor do trabalho, a dignidade das mulheres e dos homens, a solidariedade, a ética do ubuntu. O momento difícil que vivemos será superado. Como bem sabemos, é a sanha escravista que ameaça o Brasil, é a pul- são escravocrata que o vem arruinando e degradando. Mas ela será vencida. Os brasileiros merecem o país justo sonhado por Dandara e Marielle Franco, por Abdias Nascimento e Zumbi. É com o Brasil decente, equânime e livre entrevis- to neste Simpósio que estamos comprometidos. Por ele nos unimos. Axé. Ordep Serra

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SIMPÓSIO INTERNACIONAL “Da ancestralidade ao futuro. Riscos de destruição das matrizes culturais para futuras gerações. Alternativas de superação”

Miguel de Barros1

Palavras – chave: Religiosidades, Ancestralidades, Sítios Sagrados, Pedagogia da Convivência, Governação Participativa A sacralização de espaços e recursos naturais constitui uma das princi- pais formas de conservação do ambiente, da manutenção das relações sociocul- turais, mas também de soberania territorial, econômica, produtiva e identitária. Essas práticas, são formas de organização e gestão autóctones baseadas na comunidade, na qual se cruzam uma visão de durabilidade de processos de integração e responsabilidade coletiva geracional através do binómio nature- za e bem-estar alicerçados na cultura e na tradição, concretizada em pactos da fé que se transitam em formas de rituais, de representação e da convivência harmoniosa entre a natureza, o território e os espíritos. O elemento estrutural é o significado espiritual especial para povos e comunidades (Wild e McLeod, 2008), ganhando consistência as suas funções de defesa e proteção (locais de contato com o mundo espiritual) e curativas (plantas medicinais), bem como sepultura dos antepassados, locais de peregrinação, com instituições de governança, são diversificadas e pluriformes (Verschuuren, 2010), mas com valor econômico incomensuráveis. Deste modo, as religiosidades da matriz africana oferecem possibilidades de socialização humana baseadas nas técnicas, saberes e modos de estar que permitem o uso racional, sustentado dos recursos naturais em função de uma máxima que salvaguarda a possibilidade das gerações vindouras puderem bene- ficiar desses saberes enquanto patrimônios coletivos partilhados através de ritu- ais, nas quais cada espaço e recurso tem uma função crucial para a construção e consolidação identitária de uma comunidade e de um povo. Nesta base, a cultura é o centro da construção de um contrato e seguran- ça social edificado a partir de um universo cognitivo em que a visão religiosa do mundo está diretamente ligada à coneção do que é a natureza e do seu

1 Guiné-Bissau Centro de Estudos Sociais Amílcar Cabral – CESAC ([email protected]) 39 Edelamare Melo (Organizadora) papel na vida dos indivíduos e da sociedade em geral (Saraiva 2015). Ilhas, areais e praias, colinas, florestas, árvores, nascentes, rios, mar... são pensados como espaços onde habitam os espíritos que são devotados e apropriados para um vasto número de ações rituais onde em alguns casos são construídos santuários e deste modo regulando as formas do seu uso. Um dos ativos principais deste processo é a construção de Comunida- des Sustentáveis alicerçadas na utilização de uma ecologia de saberes tradi- cionais na gestão do ecossistema através de sistema de conhecimentos autó- nomo do mercado. No entanto a exclusão do saber tradicional e das culturas autóctones fruto do colonialismo, impactou de forma decisiva na desfragmen- tação dessas comunidades e da base dos modos de vida e dos conhecimentos que a humanidade precisa para enfrentar as crises de múltiplas dimensões (Lockhart, 2010). Ainda, apesar do papel fulcral que os sítios sagrados de- sempenham na conservação da biodiversidade, a contribuição das religiões de matriz africana para esse efeito foi e continua a ser negligenciada e subes- timada pelas agências públicas e mundiais. Em áfrica, a imposição de visões e modelos coloniais fundamentadas em matriz religiosa e mercadológica destruiu ecossistemas, comunidades hu- manas, alienou patrimônios culturais, classificou e hierarquizou as identida- des, fomentou divisões e conflitos violentos, afetou de forma radical a capa- cidade das populações desenvolvendo suas línguas, tecnologias, economias, sistema de governança e seu bem-estar. Gerou individualismo, mercantilismo e a privatização dos direitos de propriedade, impondo uma cultura reducionis- ta, extractivista e mecanicista dos modos de vida, com impactos devastadores no ambiente gerando destruição, pobreza, alienação e migrações forçadas. Povos foram traficados, territórios anexados e vendidos, modos de pro- dução foram descaracterizados, culturas essencializadas e identidades defi- nhadas, quer pelo processo de escravatura, colonização, conversões religio- sas forçadas (islamismo, catolicismo, evangelismos) em nome da pretensa “salvação” e economias desestruturadas pelo liberalismo ocidental. Porém, nenhuma das práticas gerou a dita “civilidade” e nem a ideia do “desenvol- vimentismo”. Pelo contrário fomentou mais pobreza, calamidades naturais, fragmentação das nações, conflitos interétnicos e religiosos, crises econômi- cos, políticos e decadência de estados. Ora, nos inícios da década de 90 do século passado, o mundo fazia sinal de alerta devido a galopante crise ecológica, alimentar e tensões entre estados, na qual se impunha uma nova racionalidade e na gestão dos recursos naturais, na forma de consumos e produção energética, mas sobretudo num maior com-

40 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. promisso com as gerações presentes e futuras. A Cimeira do Rio (1992) inau- gurou uma nova agenda conservacionista e desencadeou uma nova abordagem a proteção ambiental, consensualizando que o mundo deveria mobilizar-se para uma promoção de modos de vida que poderiam garantir sentido de fortaleza na conservação capazes de conservar a diversidade biológica, fornecer serviços de ecossistemas e combater a pobreza, tornando-se uma necessidade prática e ética. Em países como a Guiné-Bissau que conta com 26% do seu territó- rio designado áreas protegidas (dos quais 14% são costeiros e marinhos), a grande novidade é que a identificação de todos esses espaços - os mais belos e produtivos com maior densidade da concentração da biodiversidade -coin- cidiu exatamente com territórios onde povos autóctones vivem e que eram da culturalmente sagradas! Alvo de grande cobiça, violações e expropriações através da industria extractivista (pesca, madeira, minas, turismo, imobiliária) com a cumplicida- de de estado através da prática de concessão de licenças de exploração, em al- guns países usando o monopólio da violência contra os indígenas e atacando esses Serviços culturais - valores religiosos, saber ancestral e herança cultural – acompanhadas de contingentes de atores externos com cariz de uma nova colonização, como por exemplo, as novas seitas europeias, sul americanas (brasileira sobretudo) e os seus desdobramentos africanos. Contudo, para além das funções produtiva, social e religiosa, os espa- ços sagrados são constantemente sujeitos à lógicas de alienação que repre- sentam fortes ameaças à continuidade da dinâmica e síntese da cultura de povos autóctones e indígenas, sobre pretexto da “modernidade” e do “desen- volvimento”. É o caso do povo e território Bijagó na Guiné-Bissau, espaço de disputa entre modelos de econômicos, culturais e políticos resultantes da globalização e requer um espírito de compromisso que esteja subjacente à uma Pedagogia da Convivência: respeito mútuo pela religião do outro. Contudo há questões fundamentais sobre as quais o mundo é hoje de- safiado a debater e construir quadros de referência:

- em que medida a refundação de um modelo econômico permitiria sal- vaguardar o direito coletivo de propriedades e uma racionalidade não extractivista capaz de salvaguardar a integridade territorial e dos povos indígenas com vantagens para o estado e para as comunidades locais, sem que isso resulte na ameace o respeito pela diversidade religiosa? - de que forma as aspirações sociais de mobilidade cultural e religiosa em particular, podem oferecer conforto espiritual capaz de suportar as socie-

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dades nas suas funções sociais através da aquisição de maiores níveis de escolaridade e consequentemente a ampliação do reino divino na terra sem a alienação e coerção de povos e as suas cosmovisões ancestrais? - em que medida são aceitáveis “missões evangelizadoras” baseada na privação de direitos e reconhecimento da fé e que tipo de enfrentamen- tos devem-se mobilizar para produzir convivências entre povos, civili- zações e qual o papel que deve caber ao Estado? - De que modo a transição para modelos de gestão comunitária das áreas protegidas em regime de cogestão contribuem para a consolidação da so- berania cultural e religiosa com impacto na conservação comunitária e o reconhecimento da capacidade das comunidades com as suas estruturas es- tarem integradas na governação partilhada dos espaços e recursos naturais? - De que forma o reconhecimento dos sítios sagrados enquanto espaços importantes para a vitalidade e sobrevivência das culturas dos povos indígenas e tradicionais, devem ser integrados nas políticas públicas de conservação e valorização de infraestruturas naturais para mitigação dos efeitos climáticos a nível mundial e o saber holístico associado à ancestralidade sem que sejam sujeitas a apropriação para fins comer- ciais através de certificação de patentes para fins comerciais? - Qual o papel das religiões no futuro no que respeita a conservação dos patrimônios naturais, dos direitos jurídicos, sociais e culturais dos povos in- dígenas, na emergência de uma economia social e solidária que valorize os serviços de ecossistemas, que reconheça e proteja o lugar crucial das mu- lheres “guardiãs e sacerdotisas dos saberes” e modos de vida sustentáveis?

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Subjetividades e marcas urbanas em PB: valorizando a diversidade e empoderando identidades não hegemônicas. TECNODEPENDÊNCIA, REDES SOCIAIS, ARTE E SEXISMO

Ana Cristina de Sá Melo

A mulher nasce livre e tem os mesmos direitos do homem. As distinções sociais só podem ser baseadas no interesse comum.1

Resumo A aparente deficiência de representação das mulheres na ciência e tec- nologia não se deve a fatores biológicos. Uma cultura de dominação mascu- lina, centrada no homem branco ocidental, excluiu as mulheres, apesar das suas importantes contribuições sem o devido reconhecimento histórico. O maior acesso à educação e a liberdade das mulheres trabalharem ainda não eliminou a desigualdade em relação aos homens, tanto na ciência como na tecnologia. A cultura patriarcal, que se reproduz culturalmente, continua a afastar as mulheres de campos considerados masculinos. A divisão social do trabalho tem favorecido os homens. Existem inúmeras formas de se excluir as mulheres, não só da criação da ciência e da tecnologia, mas também para im- pedi-las de fazer uso da tecnologia a seu favor. A violência off-line e on-line tem origens, objetivos e padrões semelhantes. Artistas e ativistas dos direitos das mulheres sofrem, no Brasil e no mundo, violência on-line, com o objetivo de silenciá-las e manter a exclusão. Palavras-Chave: SEXISMO; CIÊNCIA; TECNOLOGIA; DESI- GUALDADE; GÊNERO. Ada Augusta King, atualmente conhecida como Ada Lovelace, nascida em 1815, foi uma matemática e escritora inglesa. Era filha do Poeta Lorde Byron. Sua mãe, temendo que a filha seguisse o caminho artístico do pai, o que via como insanidade, encaminhou a filha para uma formação em matemática

1 Olympe de Gouges, nascida Marie Gouze, propôs a Declaração dos direitos da mulher e da cidadã à Assembleia Nacional da França, em 1791, durante a revolução francesa. Foi guilhotinada em 1793. Condenada como contrarre- volucionária e denunciada como uma mulher “desnaturada”. 45 Edelamare Melo (Organizadora) e lógica. Antes mesmo da invenção do computador, trabalhando junto com o matemático Charles Babbage, que tentava construir um protótipo de um com- putador analógico e mecânico, redigiu o que se considera hoje como o primeiro programa de computador. Ao contrário de Babbage, que via sua invenção como uma máquina de calcular sofisticada, Ada Lovelace especulou que o compu- tador poderia, por exemplo, lidar com peças musicais com qualquer grau de complexidade e extensão, algo muito comum hoje, mas totalmente inconce- bível naquela época. Ada Lovelace só começou a ter um mínimo de reconhe- cimento mais de cem anos depois de sua morte. Jamais publicou algo em seu próprio nome. O artigo em que fez inserir o algoritmo considerado o primeiro programa de computador faz parte de um conjunto de notas de rodapé de uma tradução feita por ela de um artigo sobre uma palestra de Babbage. As notas eram mais extensas do que o próprio artigo (Essinger, 2013a). Numa troca pública de correspondências, Virginia Woolf (1920) rebate ar- gumentos de que “as mulheres são inferiores aos homens em capacidade intelec- tual, sobretudo naquele tipo de capacidade que se chama criativa”. A escritora começa argumentando que é impossível exagerar os efeitos da educação e da liberdade em prejuízo das mulheres. Prossegue perguntando como se explica o fato de que as mulheres começam a se destacar mais e mais conforme vai haven- do mais educação e mais liberdade. Seu interlocutor insiste na inexistência de “mulheres brilhantes”. Virgínia Woolf contesta argumentando que o investimento em educação, mesmo em famílias ricas, sempre favoreceu os homens, além do fato de que as tarefas domésticas, criação dos filhos e cuidar do lar, exigiam suas presenças em casa. Virgínia Woolf traz um outro argumento poderoso. Não são só as mulheres que tem suas potencialidades intelectuais reprimidas por um sistema desigual. Ela lembra que não surgiram grandes gênios entre os povos privados de educação e mantidos na submissão, como por exemplo os irlandeses ou os judeus. Isso mudou apenas no Século XX quando um judeu, Albert Einstein, foi alçado ao título de um dos maiores gênios da humanidade, o que afasta qualquer argumentação que se pudesse fazer de alguma deficiência intelectu- al biológica dos judeus. Da mesma forma, a genialidade de Marie Curie, que recebeu o prêmio Nobel de física em 1903, pelas suas descobertas no campo da radiação das partículas, afasta o reprovável argumento de uma até então alegada inferioridade intelectual biológica das mulheres. Marie Curie teve que deixar sua terra natal, a Polônia, onde não havia a permissão de mulheres frequentarem o ensino superior, para estudar na França, onde conheceu e se casou com seu marido, Pierre Curie. É importante destacar que seu marido lhe deu pleno apoio para seu desenvolvimento intelectual e, mais que isso,

46 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. permitiu que ela publicasse seus trabalhos dividindo o crédito. Um trabalho escrito apenas por uma mulher não teria nenhuma repercussão naquela época. Infelizmente, embora o prêmio Nobel e o destaque que merece Marie Curie mostrem que a capacidade intelectual das mulheres não é inferior à dos homens, na história deste prêmio houve apenas 49 mulheres vencedoras2, contra 911 prêmios concedidos aos homens3. A maioria dos prêmios são prê- mios “da paz” e de literatura. Prêmios referentes à área de ciências são exce- ção absoluta. Apenas dois prêmios Nobel da física foram destinados a mulhe- res, sendo que o segundo foi concedido em 1963, há mais de cinquenta anos. Por que passados mais de cem anos da concessão do prêmio Nobel da Física a Marie Curie isto é ainda uma exceção? Cem anos depois da afirmação de Virginia Woolf de que se devia buscar a explicação no menor acesso das mulheres à educação e à liberdade, as mulheres têm, teoricamente, ao menos no ocidente, as mesmas possibilidades de educação e liberdade. Mas os des- taques ainda são masculinos. Ela estava errada? Descarta-se qualquer justificativa de ordem biológica ou genética para o aparente menor destaque das mulheres na ciência e tecnologia. Qualquer explicação só pode ser encontrada na forma em que nossa sociedade está organizada e, nesta organização, em quais os papeis são destinados para as mulheres. É o que veremos a seguir. A dicotomia homem e mulher, masculino e feminino, do ponto de vista da biologia, é espantosamente um conceito recente, surgido em torno dos sé- culos XVIII e XIX. Até então predominava um modelo, herdado dos gregos, que apenas reconhecia um único sexo biológico, ramificado em dois gêneros. O que diferenciava o gênero masculino do feminino era o “grau de perfeição”, tendo o corpo masculino servido de referência desta perfeição. Considerava- se que homens e mulheres tinham, por exemplo, pênis e testículos, sendo que nas mulheres estes não se exteriorizavam (Rohden, 2001a). Com o aperfeiçoamento de ferramentas como o microscópio e a evo- lução da fisiologia e da anatomia patológica, mostravam-se as muitas seme- lhanças entre os organismos feminino e masculino. Entretanto, estes mesmos médicos esforçavam-se em encontrar justificativas biológicas para evidenciar os motivos da suposta inferioridade feminina. Procuravam as causas de pato- logias no “predomínio do seu sistema genital”. Nessa época, começava a se firmar a teoria da evolução de Darwin. O raciocínio era o de que os machos adquiriam características sexuais no processo de luta pela posse das fêmeas.

2 https://www.nobelprize.org/nobel_prizes/lists/women.html, acessado em 08.10.2017 3 https://www.nobelprize.org/nobel_prizes/, acessado em 08.10.2017 47 Edelamare Melo (Organizadora)

Assim, teriam se diferenciado delas, tornando-se superiores física e mental- mente. Os médicos ginecologistas encontravam diferenças no tamanho do crânio e cérebro masculino e feminino e nesta diferença encontravam preten- sas razões para que a mulher fosse dominada pelas funções sexuais, sendo mais instintivas e emotivas, ao passo que os homens seriam menos emocio- nais, dominados pelo cérebro (Rohden, 2001b). Os cientistas, homens brancos ocidentais, viam nas mulheres educadas uma ameaça a sua própria situação profissional, aos homens (brancos) em ge- ral, à família e à sociedade. Assim, agiram com as suas armas, possuidores do monopólio do conhecimento, para impedir que mulheres dividissem o poder e autoridade científicos (Rohden, 2001c). Essa ideia de uma dicotomia essencial entre o masculino e o feminino, no contexto de uma ciência criada e desenvolvida por homens ocidentais brancos, estava inserida, contraditoriamente, numa ideia de que as ciências eram neutras, objetivas, racionais e universais. Nos anos após 1970 começou-se a discutir como o gênero seria uma variável no saber científico. Como afirmado acima, as ciências da biologia e da medicina foram fortemente influenciadas por uma vi- são masculina da natureza dos corpos masculino e feminino. A ciência, portan- to, é produto de seu tempo e da sua localização espacial. No caso, a ciência que prevaleceu é a ciência criada por homens brancos ocidentais (Hirata et al, 2009). Desde o início dos anos 1970 passou-se a tentar resgatar a história de mulheres que fizeram contribuições importantes para o empreendimento científico, sem que lhes fossem dados os créditos. Há um esforço contínuo de se fazer este reconhecimento tardio. Na medida em que se foram encontrando estes indícios de exclusão, modificou-se o enfoque destas mulheres excepcio- nais para o exame dos padrões gerais de participação das mulheres na ciência. Muitos estudos demonstram as diversas formas que se erguem barreiras estru- turais à participação das mulheres, entre as quais a discriminação sexual no emprego e o tipo de socialização e educação que as meninas recebem. Acreditava-se bastarem políticas de promoção da igualdade que per- mitissem o acesso à educação e ao emprego para diminuir a desigualdade. Essa abordagem localiza o problema nas mulheres (deficientes na formação, desinteresse pela ciência). Surge daí uma tentativa de enquadrar as mulheres num modelo masculino de ciência, de forma a que, para que elas se adaptem, tenham que se masculinizar. Não há diferença biológica entre homens e mulheres a justificar uma alegada superioridade intelectual masculina em alguns campos do conheci- mento. Há, contudo, diferenças reais na forma em que a sociedade se organi-

48 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. za, com papeis diferenciados por gênero. As mulheres, desde muito cedo, são impelidas a assumir estes papeis (tal como os homens). Assim, não é justo nem produtivo ter papeis pertinentes a gênero muito bem definidos e preten- der que tudo o mais se arranje a partir do oferecimento de vagas nas univer- sidades e, eventualmente, algum sistema de cotas nas empresas. O fracasso dessas políticas que tratam apenas da parte final do processo desigual será ainda maior a se considerar o conteúdo e o ambiente masculino da ciência. O conhecimento científico é afetado pela sociedade em que é condu- zida. Considerações sociais e políticas entram nas avaliações científicas da verdade ou falsidade de diferentes teorias. Mesmo o que se considera “fato”, que seria estabelecido por experiência e observação, tem um conteúdo social. Mas foi apenas no fim do século XX que se começou a admitir que a ciência desenvolvida no ocidente era inerentemente patriarcal (Wajcman, 2000a). Bordieu (2002b) faz um alerta sobre a armadilha de se tentar compreen- der a dominação estando o próprio observador inserido num contexto sexista:

“Como estamos incluídos, como homem ou mulher, no próprio objeto que nos esforçamos por apreender, incorporamos, sob a forma de esquemas inconscientes de percepção e de apreciação, as estruturas históricas da ordem masculina; arriscamo-nos, pois, a recorrer, para pensar a dominação masculina, a modos de pensamento que são eles próprios produto da dominação”.

Por outro lado, a tentativa de se criar uma ciência “feminina” pode levar a enganos semelhantes, como uma proposta de se criar uma ciência neutra, que agregasse valores femininos e masculinos, ignorando que estes valores não são naturalmente femininos e masculinos, decorrem da divisão do tra- balho. Por outro lado, a própria ideia do que seja natural é construída cul- turalmente. O que é considerado como masculino em algumas sociedades é considerado feminino ou neutro em outras (Wajcman, 2000c). Wajcman (2000d) afirma que a racionalidade e a intuição devem ser vistas como produtos sociais historicamente específicos, e que devemos nos envolver nas práticas sociais para redefini-las. A base de poder dos homens não é simplesmente um produto das ideias que defendem ou da linguagem que usam, mas de todas as práticas sociais que dão aos homens autoridade sobre as mulheres. Bordieu (2002c), também tratando da divisão social do trabalho, mas acrescentando a influência de mecanismos simbólicos para a perpetuação da dominação masculina, afirma que:

49 Edelamare Melo (Organizadora)

“a força da ordem masculina se evidencia no fato de que ela dis- pensa justificação: a visão androcêntrica impõe-se como neutra e não tem necessidade de enunciar em discursos que visem a legitima-la. A ordem social funciona como uma imensa máquina simbólica que tende a ratificar a dominação masculina sobre a qual se alicerça: é a divisão social do trabalho, distribuição bas- tante estrita das atividades atribuídas a cada um dos dois sexos, de seu local, seu momento, seus instrumentos (...)”.

Até aqui falou-se da participação das mulheres nas descobertas cientí- ficas. Entretanto, tudo que foi dito também se aplica ao que se entende por tecnologia, embora os conceitos de ciência e tecnologia muitas vezes se con- fundam. Porém, para este artigo é importante um aspecto da tecnologia, que se conhece como tecnologia da informação, com sua irmã no campo científi- co, a ciência da computação. Embora a tecnologia não possa existir sem uma ciência que lhe dê su- porte, ela se apresenta como uma faceta prática do conhecimento. Em grande parte, a tecnologia envolve a criação, o desenvolvimento e a produção de arte- fatos úteis para a humanidade. A ideia de um inventor é a de um homem, mas as mulheres vêm inventando artefatos úteis e que definem a própria civilização, como a máquina de fiar algodão, sem a qual não teria sido possível tecer, e, indo ainda mais longe, foram as mulheres africanas que há milênios inventaram boa parte das ferramentas e técnicas que permitiram a agricultura de escala, como a enxada, o arado, a polinização manual e a irrigação (Wajcman 2000e). Mas se desde os primórdios da história da humanidade as mulheres criam, porque não há este reconhecimento? Wajcman (2000f) volta a Marx para tratar da divisão do trabalho. As máquinas, na revolução industrial, foram desenvolvidas deliberadamente para excluir da forma mais ampla possível o trabalho humano. A tecnologia esteve, desde os primórdios da revolução industrial, a serviço do lucro. As relações de produção se baseiam tanto na divisão de classes como na divisão de gênero. O monopólio da criação, desenvolvimento e produção de máqui- nas estava então, mais uma vez, nas mãos dos homens ricos e brancos. “A primazia universalmente concedida aos homens se afirma na objetividade de estruturas sociais e de atividades produtivas e reprodutivas, baseadas em uma divisão sexual do trabalho de produção e de reprodução biológica e social, que confere aos homens a melhor parte” (Bordieu, 2002d). Enquanto na sua origem a tecnologia têxtil contava com hábeis artesãs mulheres, com a industrialização desta atividade o número de trabalhadores necessários diminui. Assim, diante da escassez de vagas, os próprios trabalha- 50 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. dores homens começaram a excluir as mulheres dos sindicatos, a fim de dimi- nuir a concorrência por vagas. Embora por milênios a tecelagem tenha sido uma atividade eminentemente feminina, realizada dentro de casa, a divisão do trabalho por gênero mudou várias vezes durante o processo de industriali- zação da produção têxtil, antes de resultar na exclusão das mulheres. Quanto mais se recua na história, mais a atividade era controlada por mulheres. Ape- nas no século XVII os homens tornaram-se tecelões profissionais, e muitas vezes afirmava-se que os homens tinham força ou habilidade superior - o que era necessário para certos tipos de tecidos. Assim, o aumento da demanda por máquinas de tecelagem manuais, no final de 1700, trouxe mais empregos para homens, em prejuízo das mulheres. O controle da “tecnologia-chave” da indústria têxtil, com toda a sofistica- da maquinaria, passou a estar na posse dos homens. As mulheres, excluídas das “tecnologias-chave” ficam relegadas ao acessório, ao periférico. O que aconte- ceu na indústria têxtil tem paralelo com o que acontece atualmente na ciência da computação. Apesar das mulheres terem sido tecelãs por milênios, a industriali- zação, que tornou a fabricação de tecido muito mais lucrativa, retirou-as do seu processo de fabricação. Da mesma forma, a programação de computadores, ao se revelar lucrativa, retira de cena as mulheres, como veremos mais adiante. Hoje é senso comum que a criação de tecnologia de celulares e com- putadores, bem como a programação destes computadores, pelo menos no ocidente, é uma atividade masculina. Mas nem sempre foi assim. Além da pioneira da programação, Ada Lovelace ter sido uma mulher, há uma extensa lista de mulheres que se destacaram nesta área, especialmente até os anos oi- tenta4. Pode-se mesmo afirmar que talvez o ser humano não tivesse chegado à lua se não fossem pelo menos duas mulheres. A primeira mulher que podemos destacar na área de tecnologia é a atriz austríaca Hedy Lamarr. Junto com seu então marido, compositor, patenteou, na década de quarenta, uma tecnologia que, décadas mais tarde, serviria de base para a tecnologia de wi-fi e telefones celulares. Hoje ela é considerada a mãe do telefone celular. Em 1945, na criação do primeiro computador totalmente eletrônico, o Eniac, seis mulheres tiveram importância crucial na programação desta máquina: Marlyn Meltzer, Ruth Teitelbaum, Frances Spence, Kathleen Antonelli, Jean Bar- tik e Betty Holberton. Embora a construção do ENIAC não tivesse terminado sem suas contribuições, nenhuma delas foi convidada para o jantar de inauguração.

4 https://courses.cs.washington.edu/courses/csep590/06au/readings/p175-gurer.pdf, acessado em 09.09.2017 51 Edelamare Melo (Organizadora)

Em 1952, a Contra-Almirante Grace Hopper criou um dos primeiros compiladores do mundo (em seu tempo livre). Compilador é uma linguagem de programação que facilita a programação, pois a torna mais próxima da lin- guagem humana, diferente do que se fazia até então, que era programar usan- do números. Ela teve a ideia de um código para usar instruções baseadas na língua Inglesa, e seu trabalho de design de linguagem de programação levou à criação do COBOL, usado até hoje, principalmente por bancos. Talvez a mais surpreendente história seja a de Dorothy Vaughan5, uma matemática negra, que se tornou programadora de computadores na NASA. Ela chegou ao Laboratório Aeronáutico Memorial de Langley em 1943, du- rante o auge da Segunda Guerra Mundial, deixando sua posição como pro- fessora de matemática. Dois anos depois, o presidente Roosevelt assinou a Lei Executiva 8802, proibindo a discriminação racial, religiosa e étnica na in- dústria de defesa do país. Assim o Laboratório começou a contratar mulheres negras para atender a crescente demanda por processamento de dados de pes- quisa aeronáutica. Dorothy Vaughan foi designada para a segregada unidade “West Area Computing” um grupo totalmente negro de mulheres matemáti- cas, que originalmente precisavam usar instalações para banheiros separados. Ao longo do tempo, tanto individual como em grupo, a West Computers se distinguiu com contribuições para praticamente todas as áreas de pesquisa em Langley. As profissionais desta área eram conhecidas por “computadores”. Dorothy Vaughan dirigiu a West Computing por quase uma década. Em 1958, quando o NACA realizou a transição para a NASA, as instalações segregadas, in- cluindo o escritório West Computing, foram abolidas. Dorothy Vaughan e muitos dos antigos Computadores do Oeste juntaram-se à nova Divisão de Análise e Com- putação (ACD), um grupo de integração racial e de gênero na fronteira da computa- ção eletrônica. Dorothy Vaughan tornou-se uma programadora especialista em FOR- TRAN. Mas é impossível mencionar Dorothy Vaughan sem falar de outra mulher negra excepcional, Katherine Johnson, embora ela não tenha sido programadora de computadores, mas matemática. Entre os anos de 1953 e 1958, Johnson trabalhou como “computador humano” para o Comitê Consultivo Nacional de Aeronáutica (Naca), órgão que viria a ser a Nasa. Em 1962, a Nasa começou a usar computa- dores eletrônicos pela primeira vez, um modelo da IBM. No entanto, o astronauta Glenn se recusou a entrar no foguete antes que Johnson verificasse a rota criada pelo computador. Outra contribuição importante de Johnson foi o cálculo da trajetória do voo do Apolo 11, o foguete que levou os homens à Lua pela primeira vez, em 1969. Essas duas mulheres, juntamente com Margaret Hamilton, de quem tra- taremos a seguir, foram essenciais para a ida do ser humano à lua, como muito

5 https://www.nasa.gov/content/dorothy-vaughan-biography, acessado em 09.09.2017 52 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. bem descrito no livro Estrelas Além do Tempo, de Margot Lee Shtterly, cujo nome original é o adequado “Hiden Figures” (Figuras Escondidas), que foi transformado em filme em 2016. Margaret Hamilton criou o programa de computador que auxiliou as ma- nobras espaciais que levaram o ser humano à Lua. O programa era tão robusto e bem pensado que, quando a quantidade de informações se tornou excessi- va para a capacidade limitada dos processadores da época, graças a um erro de operação do astronauta, ao invés de simplesmente travar, como acontece com qualquer computador moderno, o programa continuou rodando, apenas interrompeu os dados menos relevantes. O código de programação escrito por Margaret e sua equipe formava uma pilha de papel mais alta que ela mesma. 6 Elsie Shutt (nascido em 1928) foi uma programadora e empresária america- na que fundou a Computation Incorporated (CompInc) em 1957. Ela foi a primei- ra mulher a estabelecer uma empresa de software nos Estados Unidos. Mas a lei de Massachusetts exigiu que ela abandonasse sua empresa depois de engravidar. No gráfico abaixo vemos que a porcentagem de mulheres que mani- festam interesse em estudar ciência da computação caiu de 4,2% em 1982, o auge do interesse tanto para homens como para mulheres, para apenas 0,3% em 2007, ao passo que os homens tiveram um outro pico de interesse em 1999, chegando a 6,5% em 1999, proporção que em 2007 caiu para 2,1%.7

Faruk Ates (2017a) conta em artigo on-line que James Damore, um enge- nheiro do Google, escreveu um memorando de 10 páginas argumentando que os esforços da empresa para melhorar a diversidade teriam sido equivocados. Damore baseou sua tese nas ideias da Psicologia Evolutiva e na teoria dos “cinco grandes traços de personalidade”, argumentando, em essência, que entre homens

6 http://revistagalileu.globo.com/Ciencia/Espaco/noticia/2015/07/conheca-programadora-que-tornou-ida-da-huma- nidade-lua-possivel.html Acessado em 30.08.2017 7 http://femalecomputerscientist.blogspot.com.br/2010/08/women-in-cs-its-not-nature-its-culture.html acessado em 25.08.2017 53 Edelamare Melo (Organizadora) e mulheres existem diferenças psicológicas (verdadeiras). Estas seriam, portan- to, determinadas pela biologia, o que explicaria as diferenças entre homens e mulheres em seus interesses e representatividade subsequente no campo da ci- ência da computação e programação (embora não se tenha fornecido nenhuma evidência histórica). Não há problema, comenta Ates, em se acreditar na corrente de pensamento que se quiser. O problema é usar um texto pretensamente cientí- fico para justificar um comportamento discriminatório, quando há toneladas de outros estudos científicos em sentido contrário. E simplesmente ignorá-los. Nos anos 60, o trabalho de programação era considerado um “trabalho de mulher”, aos homens caberia a parte “difícil”, o hardware. Era como se a orga- nização de mulheres no lar servisse bem para a tarefa de programar. Vimos algo parecido com a tecelagem. As mulheres poderiam fazer o trabalho repetitivo de tecer, em suas próprias casas, enquanto vigiavam as crianças. A tecelagem nun- ca foi considerada arte, mas uma versão pobre desta, o artesanato, ainda que peças esteticamente belíssimas tenham sido tecidas por mulheres. Da mesma forma, a parte “nobre” do trabalho na ciência da computação era a criação das máquinas e dos microchips que as compunham. O software era uma tarefa me- nor que poderia ser deixada para as mulheres. Entretanto, nos anos seguintes, a cultura pop, filmes e videogames, ajudaram a definir a tecnologia como um “brinquedo masculino”. Quando tiveram que decidir em que sessão da loja os jogos eletrônicos ficariam, decidiram coloca-los com os brinquedos dos me- ninos. A mensagem foi clara: “A tecnologia é para meninos, e não meninas”. Essa mensagem foi reforçada com os dois “garotos propaganda” da tecnologia: Steve Jobs e Bill Gates. Aos poucos, o recrutamento de mulheres neste setor foi sendo evitado, através de testes de aptidão que tendiam a favorecer os homens. Piadas sexistas eram comuns no setor de tecnologia (Ates, 2017b). Mais uma prova de que a aparente “inaptidão” das mulheres para a matemá- tica e o raciocínio lógico é uma questão cultural e não está na natureza delas é que estas relações de gênero dependem do país. No ano de 2011, nos EUA, apenas 18% dos graduandos em Ciência da Computação e Engenharia eram mulheres, enquan- to na Índia esse número foi de 42%. Em 2005, na Índia, olhando para Ciência da Computação sozinha, as mulheres formaram 55% do total de bacharéis nesta área. A diferença cultural é fundamental: nos EUA, a ciência da computação é cultural- mente definida como um campo de “macho”, mas na Índia tanto os homens como as mulheres veem o campo da tecnologia como algo para todos os sexos, e as pes- soas aspiram a trabalhar com o mesmo interesse (Ates, 2017c). É fácil perceber que aconteceu no ocidente um fenômeno parecido com o experimentado por mulheres tecelãs. Quando o desenvolvimento de softwa-

54 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. re parecia uma atividade menor e pouco lucrativa, que envolvia um processo maçante e praticamente artesanal, permeado de pequenos detalhes, a divisão social do trabalho por gênero atribuiu às mulheres esta tarefa. Contudo, quan- do em meados da década de 1980, com a criação do multimilionário mercado do sistema operacional MS-DOS desenvolvido pela Microsoft tornou-se uma realidade, as mulheres começaram a ser excluídas e desestimuladas a partici- par desta área, que começou a ser rotulada de “masculina”. Em pesquisa realizada especialmente para ilustrar este artigo, setenta e cinco estudantes mulheres e professoras da área de ciência da computação e correlatas responderam a um questionário eletrônico. Elas descreveram a reação das pessoas ao tomarem conhecimento de sua área de formação. No campo aberto recebeu-se muitas frases indicativas da ideia de ser masculina a área de tecnologia: “percebo um certo espanto, como se as áreas de tecnologia fossem mais voltadas aos homens”; “Quando eu disse que iria fazer ciências de computação, professores e amigos tentaram me dissuadir, porque aquela área era muito masculina e não era para mim”; “sou lésbica cisgenero, mas não sou afeminada. As pessoas infelizmente ligam a computação como uma área para homens, e acabam por julgar minha sexualidade por isso também. Dizem que é bem a minha cara, que combina comigo, mas sem dúvida nenhu- ma não afirmariam isso pra uma mulher mais afeminada”. Reportou-se, anteriormente, à política de admissão nas grandes empresas de tecnologia que desfavoreciam a contratação de mulheres. Também se mencio- nou o ambiente sexista, que desestimula a permanência daquelas que conseguem furar o bloqueio. Assim, tratou-se do acesso à formação universitária e profis- sional. Mas existem outros mecanismos de exclusão das mulheres do mundo da tecnologia, que desestimulam até mesmo o uso da tecnologia a seu favor. A revolução tecnológica da informação trouxe para a cultura um novo elemento: as redes sociais, como facebook e twitter. Estas tecnologias - em- bora como toda ferramenta podem ser bem ou mal utilizadas - têm-se mostra- do uma alarmante via para a prática da violência de gênero. A violência contra as mulheres on-line é semelhante à violência off-line, conquanto tenha as suas particularidades, podendo, em alguns aspectos, ser ainda mais nociva. O espaço virtual, também conhecido por ciberespaço, da mesma for- ma que no espaço “real”, é impregnado de práticas que tem o objetivo de criar, reforçar e naturalizar o domínio masculino. Este domínio é assumido por homens brancos, cisgeneros. Embora o assédio seja um fenômeno global, a internet continua reproduzindo um modelo de abuso herdado dos primeiros anos da internet. É cada vez mais difícil separar as fronteiras da violência on

55 Edelamare Melo (Organizadora)

-line da off-line. Na pesquisa já mencionada, à pergunta se a pessoa já sofrera alguma forma de violência direta ou indireta, presencial ou virtual, em razão da sua área de formação, 31% respondeu que raramente (uma ou duas vezes) e 13% respondeu que frequentemente (três vezes ou mais). Por outro lado, 38% das mulheres responderam que foram alvo de assédio moral ou sexual no ambiente acadêmico ou profissional e 25% responderam que sim, pelo me- nos uma vez. No campo aberto da pesquisa, entre outros relatos de violência real e simbólica, encontra-se o de uma das mulheres que reportou ter sofrido ameaças de um estudante que tentou difamá-la em rede social, chegando a afirmar que ela merecia levar um tiro. Além da violência direta, com ofensas, xingamentos, campanhas de ódio, existem formas mais sutis de violência contra as mulheres. Uma destas formas é o controle masculino da conversação. Policiar as maneiras pelas quais as mulheres interagem verbalmente com os homens é uma forma de violência que mantém sistemas de controle que favorecem os homens e a masculinidade, resultando em silenciamento e apagamento deliberado (Poland, 2016a). Mais uma vez a pes- quisa parece corroborar esta afirmação, pois 74% das mulheres pesquisadas res- ponderam afirmativamente à pergunta se ela tem a impressão de que tem que se esforçar mais do que os homens para ser ouvida e ter a sua opinião considerada numa discussão profissional ou acadêmica envolvendo computação. O estereótipo de que as mulheres falam demais é, de fato, uma ramifica- ção do fato de que os homens tendem a dominar todas as discussões casuais e profissionais. A proeminência das vozes masculinas na conversa se estende até o quanto eles interrompem as mulheres. Os homens tendem a ser sociali- zados para se afirmar em conversa, inclusive interrompendo outros oradores - especialmente as mulheres - para se posicionarem como o indivíduo com mais autoridade na discussão. A maioria dos estudos sobre padrões linguísti- cos e gênero constata que os homens usam a interrupção para assumir o con- trole de uma conversa. On-line, como off-line, os homens tendem a dominar conversas de grupos mistos. Os homens escrevem a maioria dos artigos para os boletins de notícias (mais de 60% dos créditos e aparecimento na câmera para as organizações de notícias são de homens), e é mais provável que eles tenham precedência em conversas ocasionais em fóruns e mídias sociais. Em geral, as mulheres não só falam ou escrevem menos do que os homens quan- do se comunicam on-line, mas também recebem menos respostas positivas aos tópicos que eles criam (Poland, 2016b). Mais uma vez a pesquisa parece confirmar estas assertivas, pois, res- pondendo à pergunta “você já sentiu ser ignorada numa discussão com ami-

56 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. gos sobre assuntos relacionados à tecnologia da informação e seus desdo- bramentos (redes sociais, aplicativos, videogames etc”, 50% das mulheres responderam que sim, frequentemente e 30% também sim, mas raramente. No campo aberto, assinalaram frases como “E é aí que eu tenho que aumentar a voz, ser incisiva, a verdade que cansa e muito”; “Só tenho a dizer que eles ignoram o que digo totalmente”; “Geralmente minha opinião é a última a ser levada em consideração em minha área”; “Isso acontece principalmente no trabalho, aconteceu de eu sugerir algo e ser ignorado e na sequencia um ho- mem sugerir a mesma coisa e acharem a ideia muito boa”. Embora as mídias sociais e os fóruns ocasionais possam parecer o maior espaço de assédio devido à facilidade de interação imediata, as táticas abusivas são comuns em todos os espaços on-line, inclusive os acadêmicos. Nos sites de notícias, durante as conversas pessoais, nas redes sociais, nas salas de aula on-line, as mulheres estão constantemente sujeitas a estratégias conversacionais e retóricas que tentam posicionar os homens como atores poderosos e mulheres como participantes subordinadas, se não observadores silenciosos ou invisíveis. O uso de memes como uma estratégia de mensagens on-line geralmente incor- pora aspectos sexistas e feministas da comunicação. Os cibersexistas frequen- temente criam e compartilham arquivos de imagem com estereótipos, piadas sexistas ou outros comentários sobre uma imagem escolhida (Poland, 2016c). Os cibersexistas também dependem fortemente do anonimato - ou do anonimato percebido - para conduzir suas atividades on-line. O abuso de gê- nero e as ameaças são um pouco mais fáceis de combater quando as pessoas envolvidas nessas atividades o fazem sob seus nomes reais. Os assediadores costumam usar o anonimato para dizer que o que eles publicam não significam o assédio, pois não retratariam suas opiniões verdadeiras (Poland, 2016d). Os abusadores sexistas cibernéticos muitas vezes usam o conceito de trolling como uma maneira de não assumir as responsabilidades para suas próprias ações, enquadrando a misoginia violenta e outros comportamentos como meras brincadeiras irreverentes. Além da percepção de falta de penali- dades para o ciberespaço, a capacidade de recrutar outros rapidamente criou condições para mais e mais exemplos extremos de abuso on-line, tais como atividades de mobbing e campanhas coordenadas de assédio dirigidas a indi- víduos ou grupos pequenos de mulheres alvo (Poland, 2016e). A trollagem, se definida como distrações e perturbações irritantes, mas inofensivas, não descreve a cultura generalizada de abuso e assédio on-line experimentados por mulheres. Apesar disso, o abuso e o assédio do ciber- sexista são frequentemente definidos como trollagem, como se fossem uma

57 Edelamare Melo (Organizadora) brincadeira inocente. Essa definição errada leva a uma desconexão profunda da maneira como discutimos o abuso on-line. Muitas vezes, somos propensos a rotular qualquer comportamento agressivo como trolling - não importa quão prejudicial é - e simplesmente encorajar as mulheres a não alimentar os trolls, como se ignorar um problema o fizesse desaparecer. (Poland, 2016f). A origem do termo “Troll” vem da rede de fóruns Usenet, dos anos 1990, uma referência à expressão trolling for suckers (“lançar iscas para otários”, em português). Seu significado original é fisgar pessoas em fóruns e sites por meio de ofensas ou palavras sem sentido com o único objetivo de deixá-las nervosas. Por exemplo, entrar num grupo religioso no Facebook só para dizer que Deus não existe e assistir às reações das pessoas por diversão. Mas embora mesmo como brincadeira a trollagem possa ser uma perversa forma de perpetuação da cultura sexista, a prática foi se tornando tão agressiva que passou a configurar crime.8 Um caso de trollagem criminosa que explodiu recentemente foi o cha- mado Gamergate. Tudo começou com uma história da vida privada que se tornou pública e virou alvo de escrutínio e uma revolta contra corrupção na imprensa. Em agosto, o ex-namorado da programadora de jogos Zoe Quinn publicou um texto em vários fóruns acusando-a de o ter traído com um jor- nalista de videogames. Vários gamers tomaram as dores do ex e descontaram na programadora sua insatisfação com a indústria. Zoe então publicou uma carta contando que sofreu uma série de ameaças de estupro e morte e que teve dados pessoais seus e de amigos próximos divulgados na internet. Ainda em agosto, o ator Adam Baldwin cunhou a hashtag #Gamergate – em referência ao escândalo Watergate, que derrubou o presidente americano Richard Nixon nos anos 1970 – ao pedir maior transparência no jornalismo de videogames. No mesmo dia, Anita Sarkeesian, uma jornalista conhecida por fazer vídeos criticando a forma como mulheres são representadas nos jogos, contou que deixou de sair de casa após ser alvo de uma enxurrada de mensagens de ódio. Ela sofre ameaças desde 2012, quando criou um canal no YouTube. O movimento cresceu, o FBI foi acionado para investigar as ameaças virtuais. Até que, em outubro de 2016, o assunto virou manchete do The New York Times depois que Anita cancelou uma palestra na Universidade de Utah por causa de um e-mail com uma ameaça do “mais mortal massacre escolar da história do país”. O caso, extremamente complexo, continua a ser debatido nos Estados Unidos. Muitas vezes as ameaças não são reais, mas outras vezes são. Como se proteger senão levando à sério todas as ameaças?

8 http://revistagalileu.globo.com/Revista/noticia/2015/02/quem-sao-os-trolls-e-por-que-ninguem-esta-livre-deles. html, acessado em 10.09.2017 58 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

O antídoto comumente vendido está concentrado na fórmula “não alimen- te os trolls”. Mas mesmo que as mulheres fiquem off-line (ou nunca aproveitem as atividades on-line), as ameaças de violação, os comentários sexualmente degradantes e as declarações prejudiciais permanecem on-line, acessíveis a qualquer pessoa que esteja procurando um alvo com nomes de mulheres. O assédio permanece visível para os empregadores, amigos, familiares e estra- nhos, alguns dos quais podem optar por continuar o abuso ou, sem resposta ou refutação, acreditar que o que já foi postado sobre uma mulher é verdadeiro. Desse modo, a própria empregabilidade também pode ser afetada pela vio- lência on-line, reduzindo ainda mais as chances de as mulheres conseguirem um emprego. Numa sociedade tecnodependente como a que se está formando ao longo dos últimos cinquenta anos, é praticamente impossível viver sem estar conectado. Excluir-se do mundo on-line significa excluir-se de boa parte do mundo atual. Campanhas de ódio, cyberbulling, assédio on-line, trolling são reali- dades enfrentadas por escritoras, artistas e blogueiras no Brasil e no mundo. Mas não quaisquer escritoras, artistas, e sim, por exemplo, as que tratam de temática feminista. Enquanto as mulheres assumem o papel que a sociedade sexista espera delas não há confronto. Basta que o discurso ameace minima- mente a dominação masculina para que todas as armas virtuais sejam aciona- das na tentativa de amedrontar e silenciar. Temos alguns exemplos recentes. Em 2015 a professora universitária e blogueira Lula Anorovich descreveu em seu blog “Escreva Lola Escreva” a campanha de ódio que vem sofrendo, desde que começou seu blog feminista há vários anos, e as ameaças e perseguições que resultaram em um boletim de ocorrência policial9. Lola narra detalhadamente toda a sequência de xin- gamentos, ameaças e todo tipo de violência virtual que sofreu, bem como as providências que tomou, algumas com resultado parcial, outras com frustran- te desfecho. Infelizmente o pesadelo de Lola não terminou (mas, felizmente, nem a disposição dela de continuar lutando). Basta uma pesquisa na internet para encontrar dezenas de vídeos, textos e imagens com ataques violentos à professora, inclusive ameaças veladas e explícitas. Outro exemplo brasileiro de violência virtual pode ser encontrado no episódio envolvendo a escritora brasileira Clara Averbuck em 2017. Ela con- tou publicamente ter sido vítima de violência sexual por um motorista de Uber, que se aproveitou do seu estado de embriaguez alcoólica. Após este relato, começou a ser agredida on-line, conforme ela mesmo contou em seu

9 http://escrevalolaescreva.blogspot.com.br/search?q=boletim, acessado em 11.09.2017 59 Edelamare Melo (Organizadora) blog. Vários internautas, inclusive mulheres, a acusaram de apenas buscar fama. Na sua página do facebook, ao postar o texto acima, publicado na re- vista virtual “Donna”, Clara Averbuck recebeu inúmeros ataques de conteúdo violentamente sexista. Um exemplo ainda mais recente envolve uma artista plástica consagra- da mundialmente, Adriana Varejão. Um quadro de 1994, que compunha uma exposição organizada por uma entidade privada, foi envolvido numa falsa polêmica criada por um grupo organizado que tenta fazer prevalecer sua ide- ologia aproveitando-se de valores pretensamente moralistas. A autora foi acu- sada de fazer apologia à zoofilia, como se pintar um quadro seja corroborar seu conteúdo, como se a obra se confundisse com o artista. As mesmas armas virtuais utilizadas em dezenas de situações, principalmente contra mulheres que defendem direitos humanos e, em especial, os direitos das mulheres, foi acionada para atingir a artista brasileira, com xingamentos direcionados espe- cificamente às mulheres, bem como memes e gravuras. A submissão das mulheres ao poder e dominação masculinos provavel- mente teve início por meio de um acaso aleatório da natureza. O organismo masculino produz vinte vezes mais testosterona que o organismo feminino. Este hormônio torna os músculos mais fortes. Os homens primitivos compe- tiam entre si pelas fêmeas. A força física era um critério de seleção natural. Esta maior força física levou a um efeito colateral da seleção: as mulheres, fisica- mente mais fracas, foram subjugadas pelos homens e, em consequência, tive- ram também a sua inteligência desprezada por estes, através de mecanismos de violência real e simbólica, que vem sendo reproduzidos há milhares de anos. Evidente que a força física não é mais um fator relevante na competição pelas mulheres. Contudo, pela perpetuação da cultura de dominação e por meios simbólicos arraigados, a subjugação continuou ocorrendo. Assim, as mulheres continuaram ocupando um espaço residual na sociedade, assumin- do tarefas recusadas pelos homens na divisão social do trabalho. A tecnologia pós revolução industrial, contudo, encerra de vez a im- portância da força masculina como mecanismo de submissão. As máquinas substituem a força animal e a força humana. A tecnologia tem o potencial de criar ferramentas que tornam possível a igualdade física. Embora a força física já não seja tão determinante para a dominação, o simbolismo contido na eliminação desta diferença como vantagem masculina é suficiente para criar uma resistência. Talvez por isso exista um inconsciente (e muitas vezes consciente) movimento para excluir das mulheres o domínio da tecnologia, e, assim, dar prosseguimento à submissão feminina.

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Para superar a desigualdade em geral e em especial na tecnologia não bastam políticas inclusivas tradicionais, como cotas para mulheres em cursos universitários e nas empresas. É necessária uma transformação cultural pro- funda que elimine a naturalização da dominação masculina. Referências Bibliográficas: Ates, Faruk. https://hackernoon.com/a-brief-history-of-women-in-computing-e- 7253ac24306, visitado em 12.08.2017

Bordieu, Pierre. A Dominação Masculina. Tradução maria Helena Kühner – 2ª Ed. Rio de janeiro: Bertrand Brasil, 2002.

Essinger, James. Ada’s Algorithm: How Lord Byron’s Daughter Ada Lovelace Launched the Digital the Computer Age. Bluewave Publishing, 2013

Hirata, Helena (et al) (orgs). Dicionário Crítico do Feminismo. São Paulo: Editora UNESP, 2009.

Isaacson, Walter. Einstein, sua vida, seu Universo. Tradução de Celso Nogueira et al. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

Marglin, Stephen. “O que os chefões fazem?” As origens e funções da hierarquia na produção capitalista. Review of Radical Political Economics 6, no. 2 (Verão de 1974)

Poland, Bailey. Assediadores: assédio, abuso e violência on-line. Lincoln: Potomac Books, 2016.

Rohden, Fabíola. Uma ciência da diferença: sexo e gênero na medicina da mulher [online]. 2ª ed. rev. e ext. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2001.

Saraf, nandini. Marie curie. Parabhat books: 2008

Wajcman, judy. Feminism confronts techonology. Polity press, 1991.

Woolf, Virgínia. Profissões para mulheres e outros artigos feministas. Tradução de Denise Bottmann. Porto Alegre, RS: L&PM, 2013.

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OUTRAS ÁGUAS DE MARÇO

Milsoul Santos

Outro dia eu fiquei matutando e me perguntando... Se Tom Jobim fosse uma cria do Complexo do Alemão ou da Maré, como ele escreveria as suas águas de março? Penso que, por certo, seriam outras águas de março e Tom Jobim escreveria assim: É pó, é pedra / é o fim do irmãozinho é um resto de corpo / é um pobre neguinho é um bocado de vício que o deixa pior é a noite sinistra / é o caos sol a sol é a barriga roncando / é a velha peleja é a polícia chegando / é a bala certeira é minha gente gritando / é a maior choradeira é a ira aquecendo / é a alma sedenta é Keto, Jeje e Nagô / é a fé curandeira é a batalha sem fim / da negona guerreira é meu povo estudando / e tirando de letra invadindo a facul com a mira certeira é daquele jeitão / na função sem bobeira é o livro na mão pra fazer bagaceira é a inversão de papel / é a reparação é a frieza pulsante / é a disposição é o quilombo moderno / é o novo caminho é o Griot ensinando tudo pro novinho é estreito, é reto, é Dandara chegando é Zumbi com o exército estrategiando é o morro acordado / é o asfalto roncando é a luz do amanhã / é o Gueto mandando é Bicudo, é Bicuda / é a cara amarrada é a Favela formal e informal dando as cartas é o Terreiro cuidado / revitalizado é o intolerante calado, enjaulado é o Preto Velho em paz no divã é Amor sem miséria / manhã pós manhã. São OUTRAS ÁGUAS DE MARÇO fechando o verão,é promessa de vida no meu coração 63

Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

O FUNDO PATRIMONIAL DA REPARAÇÃO DA ESCRAVIDÃO

Antonio Gomes da Costa Neto1

O presente trabalho visa complementar a pesquisa de Santos (2018) sobre a reparação da Escravidão Negra no Brasil, cujo embate teórico, fi- nanceiro, social vem sendo desenvolvido no plano internacional e nacional, constitui-se um dos maiores embates e desafios enfrentados pelos Estados. Segundo Santos (2018) a Convenção de Durban (2001) prevê o reco- nhecimento expresso das medidas de reparação, apresenta às diversas normas legais que recepcionaram as medidas para a consecução desse direito, posto isso fundamenta seu posicionamento nos conceitos do direito a verdade, me- mória, o não esquecimento, alteração das instituições e justiça. Hodiernamente, elenca alguns processos de reparação, entre esses as ações afirmativas (laboral e educacional), reconhecimento das terras quilom- bolas (material e simbólica), Comissão Nacional da Verdade da Escravidão Negra do Brasil do Conselho Federal da OAB (direito subjetivo ao reconhe- cimento), além dos processos educacionais (desconstrução do racismo). As questões epistemológicas relevam como causa fundante o colo- nialismo, inicia-se pela escravidão moderna ou colonial, cujo objetivo prin- cipal daquela empreitada foi à busca incessante do enriquecimento material e da expansão religiosa (COSTA NETO, 2019; RIBEIRO, 1983; TODOROV, 1999 [1982]). Logo, a relação causal para se estabelecer o direito à reparação. O processo da escravidão moderna ou colonial para se constituir como verdade utilizou-se de paradigmas como o racismo pelo viés religioso (GROS- FOGUEL 2012, 2016), do mito da pureza de sangue (BONFIM, 2014; CAR- NEIRO, 2005; SICROFF, 1982) e foi largamente utilizado nas Américas. Sustentado em uma ordem legal, institucional, econômica e evangelizado- ra, de forma perene esteve presente durante séculos na América, e os processos de escravidão os quais foram extintos por meios legais, todavia, o racismo perma- nece na sociedade (BARNADAS, 1990; GERENDER, 2000; RIBEIRO, 1983). Entretanto, dilemas como civilização e progresso, as teorias biológicas, sociais e o racismo científico, cultural e da ordem estatal buscaram demons- trar que os conceitos de raça justificariam as discriminações sociais, jurídicas e políticas por meio de discursos para estabelecer as diferenças raciais.

1 Mestre em Educação e doutorando em Ciências Sociais (UnB) 65 Edelamare Melo (Organizadora)

O racismo reverberou em leis e costumes, na ordem social e econômica, em que a prática de exclusão da população negra tem sido a regra mantenedora, dessa forma a reparação é um dos procedimentos e mecanismos os quais devem ser recepcionados pelos Estados, razão pela qual a escravidão deve ter o processo de reparação. A reparação Estabelecido o nexo causal entre o direito subjetivo a reparação da escravidão, enfrentamos os problemas de se constituir o direito, porém, as práticas racistas ao permaneceram na sociedade buscam de todas as formas possíveis impedirem a correção dessas injustiças. Os mecanismos de reparação apontados por Santos (2018) têm o objeti- vo de contribuir para as políticas antirracistas, bem como podem ser inseridos no tema da reparação, porém, para esse fito o racismo de igual sorte deve ser compreendido como um problema não solucionado. A reparação leva o Estado a reconhecer certas práticas – racismo institu- cional – significa combater as medidas de exclusão, por meio de pesquisas e da imposição de um direito subjetivo em favor da população negra, também incide em reconhecer a existência de normas desfavoráveis aos povos originários. Significa ter o Estado à obrigação de estabelecer o antirracismo como Política de Estado, por meio de mecanismos capazes de refletir nas Políticas Públicas de forma inequívoca e com critérios de avaliação com condições de demonstrar a eficácia social (COSTA NETO, 2019). Como bem acentuou Santos (2018) a Convenção de Durban reconhece o direito a reparação, porém, a medida adotada para esse fim é o multicultura- lismo como mecanismo reparatório, ou seja, políticas focais, por certo, não são medidas de Estado e sim mecanismos de manutenção de uso recorrente para procrastinar as práticas antirracistas (COSTA NETO, 2019; JONES, 1973). Por sua vez, no aspecto da defesa do patrimônio – racismo cultural – os processos de propostas antirracistas ao recepcionam o multiculturalismo, conse- quentemente, políticas de transversalidade de inclusão da agenda deveriam ser capazes de suplantar práticas racistas e promover a desconstrução do racismo. Como bem acentua Grosfoguel (2007) o multiculturalismo ocidental não questiona as hierarquias étnico-raciais, deixa quase intacta as situações sociais, consolidam o modelo de diversidade como forma simples de admi- nistrar os problemas gerados pelas sociedades multiculturais (HALL, 2003). Logo, são medidas que precisam ser superadas (COSTA NETO, 2019). E por derradeiro a Reparação em relação aos indivíduos - racismo individu- al - quando a sociedade deve reconhecer que as práticas e os crimes da escravidão

66 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. são frutos de ideologias e práticas racistas voluntárias, conscientes e intencional- mente ofertadas em relação aos povos de origem africana (COSTA NETO, 2019). Por certo, ao se reconhecer essas práticas leva-nos a discutir os critérios de reparação, tanto econômicas e sociais, e de mecanismos efetivos de consecução de políticas antirracistas, de modo e evidenciar o direito subjetivo, em que a busca de se evitar o reconhecimento a favor dos negros e povos originários é uma marca constante, razão pela qual Estado utilizam-se de políticas multiculturais. Modelos de Reparação Seguindo os critérios de Santos (2018) sobre as formas de reparação, nosso interesse é o de estabelecer os processos econômicos, pois os mecanis- mos de combate ao racismo por meio do multiculturalismo tendem a mini- mizar seus efeitos de modo a não modificar as condições dos prejudicados ao utilizar-se tão somente de políticas focais. Partimos da premissa do direito a verdade, ou seja, o discurso legitimador do racismo e das práticas colonialistas baseadas na legislação, religião e ciência, todas as formas de aferir o lucro em favor dos conquistados, a exploração e prá- ticas de racismo, razão pela qual a omissão do não reconhecimento do racismo. As normas internacionais de reconhecimento hodiernas discorrem sobre as práticas imprescritíveis e dos crimes contra a humanidade, com direito a repara- ção que devem ser realizados pelos Estados, bem como sustenta que não devem ser repetidas, ou seja, no modelo capitalista qualquer situação que repercuta em valores monetários reflete na vida da sociedade, pois interfere no lucro. Portanto, a base da reparação deve ser sobre o lucro obtido com a escravidão, pelo colonialismo e os efeitos decorrentes desses processos, todavia, qualquer situ- ação que Estados partes não se resolveria com discussões teóricas em processos em tribunais internacionais em curto prazo, como decorre do pleito da Comunidade do Caribe (CARICOM) no plano de 10 pontos (Ten Point Action Plan2). A reparação por meio de fundos patrimoniais Sugere nesse ensaio que o processo econômico-pecuniário da repara- ção pode ser obtido por meio de fundos constituídos com essa finalidade, os denominados fundos patrimoniais de financiamento e manutenção com fins institucionais da preservação da memória. Os fundos patrimoniais de memória são aqueles destinados a preservação, financiamento e manutenção em favor daqueles prejudicados pelo processo da escravidão moderna ou colonial, ou seja, são recursos para promover além da reparação garantir a longevidade dessa informação (COSTA NETO, 2019).

2 http://caricomreparations.org/ 67 Edelamare Melo (Organizadora)

Não se trata apenas de geração de recursos sem uma contrapartida, há ne- cessária intervenção em favor da sociedade, pois tem como fito expor os horrores da escravidão, divulgar a memória, promover a defesa do patrimônio cultural, e um dos principais mecanismos são a inserção de recursos porventura recuperados. Os fundos patrimoniais, além de recursos da reparação da escravidão, tam- bém são oriundos de doações, por essa razão são fiscalizados pelo controle gover- namental, pelo conselho de doadores, pela sociedade civil e tem a função de se manterem com fins institucionais, divergente das políticas focais multiculturalistas. Notadamente, os recursos recebidos são aplicados para a longevidade da instituição, sejam esses públicos ou privados, em que as práticas antirra- cistas devem ser empregadas no modelo institucional, porém, esses recursos seriam geridos e administrados em favor do direito a reparação, não se trata de operações pontuais, evitando-se os mecanismos de patrimonialismo. A origem dos recursos Estabelecidos os fundamentos da reparação, necessário se faz identificar os recursos disponíveis para a consecução da reparação, ou seja, tanto a discussão jurídica de longo prazo e a de curto prazo, afinal, atribuir tão somente os efeitos de futuras decisões pecuniárias seria contribuir para a não concretização. Porém, no tocante ao Estado brasileiro há recursos disponíveis em fun- dos constitucionais, além daqueles por meio de doações, e de mecanismos de repatriação de valores obtidos por meio dos órgãos de Estado em favor da so- ciedade, nas palavras do intelectual Luiz Carlos Gá “Brasil sem recorte racial não nos interessa”, ou seja, precisamos identificar os recursos e solicitá-los. Podemos remeter ao caso envolvendo o Supremo Tribunal Federal3 (BRA- SIL, 2016) e os autos da ADPF n. 568, em que se versava sobre a destinação de US$ 682.560.000,00 (seiscentos e oitenta e dois milhões e quinhentos mil dóla- res) destinados a cumprir um acordo de repatriação de valores, cujas discussões sequer levantaram a hipótese de políticas de combate ao racismo. Por certo a indicação dos valores em favor de um fundo patrimonial de re- paração da escravidão representaria uma política antirracista, eis que esses haveres devem ser fiscalizados pelo órgão ministerial, corte de Contas, organismos doado- res, sociedade civil, pelo Poder Judiciário e tem o objetivo de promover a reparação. O tema assume relevância quando Gá aponta como recorte étnico-racial, ou seja, qualquer discussão sobre valores em favor da população deve reconhecer o direi- to à reparação, tanto simbólica e patrimonial, tem por objetivo demonstrar que a es- cravidão foi uma atrocidade e o racismo ainda permeia a sociedade, afinal a discussão desses valores sequer foi ventilada a hipótese em favor da reparação da escravidão.

3 Houve uma proposta pioneira no Supremo Tribunal Federal, nos autos do Mandado de Segurança n. 33826, o qual versava sobre a reparação da escravidão, cujo pleito era o de garantir a Capoeira como Esporte de Exibição nas Olímpiadas do Brasil, todavia, não se concretizado. 68 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Considerações A proposta do ensaio foi ampliar o trabalho de Santos que discorreu so- bre a reparação da Escravidão, essa apresenta os mecanismos que estão sendo desenvolvidos em favor da população negra, ou seja, como reparar! Acrescentamos a proposta de criação do fundo patrimonial da repa- ração da escravidão, cujo objetivo é o de gerir recursos para manutenção e custeio dessas atividades de modo a implementar políticas antirracistas. Trata-se da divergência das políticas multiculturalistas utilizadas pelos organismos internacionais e recepcionadas pelos diversos governos, pois de pouco impacto ou mudan- ça, eis que evitam tratar dos efeitos econômicos, pois alteraria a destinação de recursos. O fundo patrimonial da reparação deve ser inserido nos locais de recursos oriundos de valores difusos, tem como fito promover a sustentabilidade dos pro- cessos de desconstrução do racismo, cujos fins institucionais devem ser geridos e administrados em favor da reparação, evitando políticas focais e o patrimonialismo. Referências Bibliográficas Brasil. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 568. Procuradoria Geral da República e Juíza Federal da 13ª Vara Federal de Curitiba, Relator Ministro Alexandre de Moraes. Brasil. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança 33826. Instituto de Advocacia Racial e Ambiental (IARA), Antonio Gomes da Costa Neto, Humberto Adami Santos Júnior, Luiz Carlos Gonçalves de Almeida e Presidenta da República, Governador do Estado do Rio de Janeiro, Prefeito da Cidade do Rio de Janeiro, Relator Ministro Celso de Mello. Costa Neto, Antonio Gomes da. A Educação das Relações Étnico-Raciais no Brasil e Uru- guai: a política institucional de combate ao racismo no sistema de avaliação da educação superior. Tese (Doutorado). Departamento de Estudos Latino Americanos, UnB, 2019. _____. Os Fundos Patrimoniais em Museus Federais. 2019. No prelo. Grosfoguel, Ramón. Dilemas dos estudos étnicos norte-americanos: multiculturalismo identitário, co- lonização disciplinar e epistemologias descoloniais. Cienc. Cult. [online]. 2007, vol. 59, n.2 [citado 2017-03-30], pp. 32-35. Disponível em: . ISSN 2317-6660. Acesso em ago 2019. Jones, James. Racismo e preconceito. Tradução de Dante Moreira Leite. São Paulo, Edgard Blüclher, Ed. Universidade de São Paulo, 1973. Hall, Stuart. A questão Multicultural. In: SOVIK, Liv (Org.). Da Diáspora: Identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. Ribeiro, Darcy. As Américas e a Civilização: Formação Histórica e Causas do Desenvolvi- mento Desigual dos Povos Americanos. 4ª edição. Petrópolis: Vozes, 1983. Todorov, Tzvetan. A conquista da América: A questão do outro. 2ª edição. Tradução Beatriz Perrone Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 1999 [1982]. Santos, Vanilda Honório dos. A Reparação da Escravidão Negra no Brasil: Fundamentos e Propostas. Revista Eletrônica OAB/RJ, Rio de Janeiro, V.29, N. 2, Jan./Jun. 2018.

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Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

ORIXALIDADE

Milsoul Santos

Sou morte, nascimento, comunicação, alquimia, tecnologia, criatividade, intuição, intenção, dom, genialidade. Sou ação, precisão passado, presente, futuro e por isso sou atemporalidade. Sou raio furioso lascando em banda uma árvore. Sou trovão acariciando tempestade. Sou mar calmo e mar bravo em constante equilíbrio nas profundidades. Sou rio aparentemente inofensivo, mas tome muito cuidado com onde me pisa e acautele a sua vaidade. Sou palavra enfeitada de mandinga e treinada na vadiagem. Sou o velho no menino novo, sou a maioridade da novidade. Sou água, fogo, fumaça, sêmen, suor, sexo, sangue, amor, cores, sabores e sou cacha- ça. Sou a folha que adoece e sou a folha que cura. Sou as tranças que guardam as sementes e mapeiam a fuga. Sou chegada e no mesmo sou saudade. Sou a bomba que mora na parte interna do seu peito esquerdo e que bombeia vida por toda a sua humanidade. Eu sou o que você não sabe, o que você finge não saber e sou o que você pensa que sabe, sim, sou tudo mais que é ancestralidade. Eu, eu sou Orixalidade.

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Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

EPISTEMOLOGIA DO NTU: UBUNTU, BISOIDADE, MACUMBA, BATUQUE E “X” AFRICANA

Bas´Ilele Malomalo1

Introdução Foi-me pedido, no âmbito do Simpósio “Negro (a), Afro-religioso (a), Qui- lomboloba: Racismo e Intolerância Religiosa no Brasil e seus Reflexos no Mundo de Trabalho”, desenvolver uma reflexão sobre “Ubuntu e religiosidade africana”. Acabei optando pelo título de “Epistemologia do Ntu: Ubuntu, Bisoidade, Ma- cumba, Batuque e “X” Africana” por acreditar expressar de perto alguns de meus últimos trabalhos que se realizam no terreno das epistemologias do sul global subalterno cujas epistemologias africanas continentais e diaspóricas são partes. A tese que tenho defendido é que a filosofia africana (que deve ser sempre compre- endida no plural e para além da disciplina da Filosofia), na qualidade de campo de pro- dução de conhecimento e política de mudança social, coloca-se como um caminho de su- peração da crise ecológica-planetária, vista como uma crise ontológica. Por ser uma crise local-global-complexa, as respostas têm que ser igualmente locais-globais-complexas. Nesse sentido é que se deve trabalhar com teorias e políticas assentes nos pressupostos de intersecionalidades e complexidade. No caso de meus estudos, ca- tegorias como raça, classe, gênero, migração, geração, espiritualidade e meio am- biente são cruciais e devem ser tratadas numa perspectiva da complementaridade. O significado do Ntu na epistemologia do Ntu O que é Ntu? A resposta a essa pergunta tem que partir das bibliotecas africanas que nos informam que é um termo usado entre alguns povos da África central e austral que traduz a sua cosmovisão. Kagame (1956) e Ramose (2011) são dois filósofos africanos que se debruçaram sobre os significados do Ntu do ponto de vista da filosofia da

1 Doutor em Sociologia, Docente no curso de Bacharelado em Humanidades e no Programa de Mestrado Interdisci- plinar em Humanidades, Instituto de Humanidades e Letras/Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, São Francisco do Conde, Bahia, Brasil; líder do Grupo de pesquisa África-Brasil: Produção de conhecimento, Sociedade civil, Desenvolvimento e Cidadania Global; pesquisador do Centro dos Estudos das Cul- turas e Línguas Africanas e da Diáspora Negra (CLADIN-Unesp), da Rede para o Constitucionalismo Democrático Latino-Americano/Brasil, Member of United Nations - Harmony with Nature e integrante e fundador do Instituto da Diáspora Africana no Brasil (IDDAB). Contato: [email protected]. 73 Edelamare Melo (Organizadora) linguagem. Para Kagame (1956), o Ntu é o sufixo que é utilizado pelos povos africanos, no caso ele estudava os banyaruanda, nomear o Ser. Este, para ele, se traduz nessas quatro categorias Ki-Ntu (Coisa), Ha-Ntu (Espaço-Tempo), Ku-Ntu (Modalidade do Ser) e Mu-Ntu (Ser Humano). Ramose (2011) vai corrigir Kagame afirmando que esqueceu de uma outra categoria primordial que é Ubu-Ntu. Ubu é o prefixo que traduz o mo- vimento-força ou energia presente nas quatro categorias mencionadas. Essas em si são as “entidades” que traduz a manifestação do “Ser”. Nesse senti- do, Ubu-Ntu é o Ser-sendo, o Ser-Força-em-movimento. A física moderna comprovou essa verdade metafisica defendendo que toda Matéria é feita de energia. Essa é composta de átomos e partículas. Como se sabe a teoria de big bang continua a sustentar a ideia de que o que deu início ao Universo se- ria a explosão da energia primordial (HAWKING, 2015). E cada vez mais a ciência moderna vem mostrando quanto à Energia está na base de tudo o que existe (NTUMBA, 2014). Essa concepção da Realidade é chamada da Filosofia da Força-Vital (JANH, 1970; DIAGNE, 2014; TEMPLS, 2007). Em outras palavras, para a filosofia africana tradicional e moderna, o que está na base de tudo o que existe é o Ntu. Quando está em movimento é o Ubuntu. Todo mundo concorda que cada povo ou zonas culturais africanas nomeia essa ideia de Força-Vital a partir de suas línguas. Bilolo (1986) e Obenga (2005) afirmam que os egípcios anti- gos traduziram a filosofia da Força-Vital em “Ntw”, “Onto”, Ser-Preexistente. Todavia, não é um Ser imóvel; é o Ser-Devir a partir do qual tudo o que existe procede, sem se confundir com Ele: o Noun, visto como Água primordial. Ntumba (2014), na sua filosofia de bisoidade (Biso vem de Lingala e sig- nifica Nós) alega o que existe deve ser interpretada como o Real-Total,- Pro cessual, Multiforme e Plural. Como tudo procede desse Ser-preexistente, que é Energia, primordial, o que que mantém cada entidade em suas manifestações é a Solidariedade Cósmica, a Comunhão Participativa, que identifico em Ntumba como Biso-Cósmico. Os povos yorubas perceberam o Ubuntu em termos de Axé presente em todas as entidades e cujos orixás são guardiões e manifestações plenas (SODRÉ, 2017, 2005). Porém, o Exu é visto como o orixá do movimento que anima a Vida. O que existe de fato, me referenciando em Ntumba (1997), é a complementaridade radical entre todas as entidades que existem e venho cha- mando, em termos pedagógicos, de Comunidade-do-Sagrado-Ancestral, Comu- nidade Universo-Natureza e Comunidade-dos-Bantu (Seres-Pessoas). Interpreto Ubuntu como o Ser-em-movimento, aberto para o Outro e que se concretiza nessas categorias ontológicas: Ki-ntu (ser-força-coisa), Ha-ntu

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(ser-força-lugar-espaço), Ka-Ntu (ser-força-modalidade) e Mu-ntu (ser-força -pessoa). Ubu é que faz a ligação entre todos os seres. Essa ligação acontece através da Solidariedade Cósmica, Movimento-Comunhão ou Participação pro- cessual. O Exu, na filosofia nagô, é a entidade do movimento que nos conecta com o Biso-Nós-cósmico. Ntumba chama isso de Biso de Nós. Ubuntu seria en- tão a Realidade-Total, processual, multiforme e global Para Ramose, Ubu-Ntu, Ser-Sendo que se manifesta em todos seres particulares que formam o mundo. Ubuntu, como defende Ramose (2011), é a categoria ontológica e epistemo- lógica da filosofia africana. Considero o Ntu como a categoria com maior extensão para interpretar as realidades particulares africanas que existem. Macumba e Batu- que fazem parte dessas realidades. O ponto comum entre todas as realidades par- ticulares que expressam a Realidade-Total é que para ser compreendidas precisam da linguagem. São nomeadas pelos bantu para ter sentidos ou passar a pertencer a cultura. Por isso, intitulei esse ensaio de “Epistemologia do Ntu: Ubuntu, Bi- soidade, Macumba, Batuque e “X” Africana”. O “X Africana” remete ao adjetivo plural em latim que significa tudo que tem relação com a África e as africanidades continentais e diaspóricas. O “X” nos informa que há outros elementos culturais africanos que correspondem à lógica do Ntu-Axé. Sem a compreensão da noção de complementaridade radical que liga cada elemento da cultura africana ao Ntu-Axé não há condições para a sua interpretação objetiva e justa. O ponto comum entre a macumba e o batuque, em primeiro lugar é que com- portam significados plurivalentes que fogem a lógica racista da razão indolente. São ambos instrumentos músicas, danças, expressões da ontologia biocêntrico-cós- mica africana. Expressam e são parte do Ubuntu na sua qualidade do movimento pleno. Por isso, qualquer nomeação não lhe cabe. São traduções artísticas, políticas, sociais, culturais e religiosos dos povos africanos que os inventaram. Percebi isso exatamente quando investiguei um poema de Solano Trin- dade (2007) chamado “Macumba” (MALOMALO, 2014, 2016, 2018). Como bem cultural negro que pertencem as bibliotecas populares negras, aquele poema me levou a considera-la como uma obra epistemológica de alta qua- lidade. Possibilitou-me cunhar o que chamo de epistemologia ou filosofia de macumba. Essa é uma ferramenta teórico-metodológico de produção de co- nhecimento e saberes, como uma ferramenta político-pedagógica de enfrenta- mento do racismo. Para tanto considero esses três de seus passos: (1) macumba é um bem cultural negro; (2) seu conhecimento passa pelo que chamo de ´desmacumbização´, entendida aqui como todo esforço de desconstrução da cultura do preconcei- to. do o racismo, da braquitude acrítica, racista;

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(3) o terceiro passo é da macumbização. Isto é, o movimento, o proces- so que nos leva a saborear e conhecer a cultura do Outro. Solano Trindade (2007), na minha leitura, com o seu poema citado quer deixar esse recado: macumba é um canto, uma estética de amor. Macumba é amorização consigo mesmo e para com Outro. Mveng (1974), estudioso da arte negra, afirma que essa é uma liturgia cósmica da celebração da Vida sobre a Morte – Mveng. Ou seja, o encontro com Outro: o Sagrado, o Ancestral, a Natureza, o Universo, o/a Muntu é um encontro com o Nós-Cósmico libertador. Natureza e origem da crise ecológica A crise atual, como dito, é uma crise ontológica, global e planetária, por isso é uma crise ecológica no sentido de mexer negativamente com todos os sistemas vitais (BOFF, 1999; MORIN, 2011). Visto do ponto de vista das populações africanas (entendida sempre como do continente e das diásporas, no nosso caso a diáspora negra no Brasil), a crise é epistemológica (epis- temicídio), social, cultural, estética, política, ética, psicológica, espiritual e ambiental. Afeta de modo particular: pessoas não brancas, negras, indígenas, mulheres, LGBTI, crianças, suas culturas, seus territórios e meios ambientes. Ntumba (2014), o teórico da filosofia de bisoidade (biso, significa nós em Lingala, uma língua falada na RDCongo e Congo Brazza Ville), dizia sempre que a crise atual existe porque a humanidade rompeu com o biso-ecológico, ou parafraseando Ramose, fez ruptura com o Ubuntu, isto é, rompeu com os ciclos da vida do sagrado-ancestral (mundo da cultura), da vida dos bantos (comunidade dos humanos) e da vida universo-natureza (meio ambiente). O que causou ou causa a crise do ponto de vista de africanos/as (entenda- se sempre: continentais e diaspórico/as)? A resposta a essa pergunta igualmente depende do paradigma escolhido. Depende da forma como as teorias escolhidas concebe seus agentes. Nesse sentido, as principais teorias que vêm alimentando minhas leituras e reflexões a são essas com suas categorias fundamentais:

• Teoria marxista: classe dominante vs classe dominada • Teoria das relações raciais: raça branca vs raça negra • Teoria da branquitude: branco vs negro • Teoria de gênero: homem vs mulher • Teoria de geração: velhos vs mais novos • Teoria ambiental: homem contra meio ambiente

Do ponto de vista do paradigma que construo e que leva em conta as in- tercionalidades e complexidades das relações de poder entre esses agentes para 76 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. se interpretar a crise atual. Trata-se de um paradigma que busca que evitar as generalidades para olhar a realidade na sua concretude e particularidades. O que se percebe nesse contexto é que homens brancos, pertencentes a classes e cul- turas dominantes (capitalista, cristã, islâmica, patriarcal), em cumplicidade com homens brancos e mulheres brancas da elite e não elite, criaram mecanismo de dominação de homens e mulheres (e LGBTI) não brancos e do meio ambiente. Dentro da sociologia (MALOMALO, 2017), os agentes significam in- divíduos e instituições sociais. Desse ponto de vista, para se compreender a crise global que afeta as populações negras e o meio ambiente, é preciso olhar pelas instituições dominantes, como organizações religiosas (hinduísmo, cris- tianismo, islamismo), o Estado burguês, as empresas capitalistas, as famílias tradicionais e seu modo de reprodução no contexto capitalista ou socialista (o socialismo realmente existente) (MÉSZÁROS, 2006). Esses agentes, enquanto pessoas e instituições colonizadoras e opresso- ras, são vistos como fabricadores e fábricas de Kindoki, feitiço-do-mal. Para se salvar da crise ecológica, é preciso, do ponto de vista da epistemologia do ntu, acionar o Nkisi, fazer o axexé, o feitiço-do-bem. Em outras palavras, exe- cutar ritos de encantamentos para que as energias que constituem a força da vida voltem a fluir, isto é, a “ubuntuizar-se”, seguir seu fluxo como ser-sendo. Numa perspectiva sóciogenética ou sociohistórica, a crise que afeta a popu- lação negra pode ser interpretada considerando essa divisão: a dominação estran- geira árabo-muçulmana (início séc. VII) e dominação ocidental-europeia (desde séc. XV e desde XIX e Séc. XXI) (MOORE, 2007; KI-ZERBO, 2006). Como se implementou e se tem manifestado a dominação contra africanos/as e seus descendentes? É preciso levar-se em com os sistemas de dominação e seus modos de operar. Destacam-se o escravismo: tráfico transariano, mediterrâneo, índico, atlân- tico e escravidão de corpos negros (VII-XIX, salve os contextos históricos); o papel do islamismo e cristianismo e suas estratégias de diabolização do outro; o mercantilismo/ capitalismo, colonialismo europeus (XV-XIX), o neocolonialismo (XX-XXI). Com isso, quero afirmar que a dominação contra os corpos negros tende a ser omplexa,c multidimensional, intergeracional, colateral e por isso douradora. Em outras palavras, a manifestações da dominação negra ao longo da história pode ser capturada a partir do seu elemento principal que é o racismo civilizacional (MOORE, 2007; THESÉE, 2008), estrutural, epistemológico, auto, cordial, interpessoal, institucional, cultural, religioso, ambiental. É pre- ciso acrescentar ao racismo, visto do ponto de vista da interssecionalidades, o peso do patriarcado, do achismo, sexismo sobres as mulheres negras e de situação de imigração sobre os/as imigrantes africanos/as contemporâneos/as.

77 Edelamare Melo (Organizadora)

O conceito do genocídio imposto a população negra pode ser compre- endida a partir de categorias de “vida nua”, de “homo saccer” de Agamben (20015) e de “necropolítica” de Mbembe (2011, 2014). Ou seja, conforme essa última a modernidade ocidental através de suas instituições (estado, em- presa, escolas, igrejas) criou mecanismo de controle de vidas negras. A pri- meira categoria de Agamben nos interpela a pensar no sentido de que como as vidas negras são condenadas à morte por uma única razão de ter nascido e nascido em corpos negros. Flauzina (2017) sinaliza isso muito bem no seu es- tudo revelando como isso se passa no Brasil dentro da cumplicidade entre as instituições estatais, judiciário e a polícia para controlar os corpos de negros. O encarceramento em massa de corpos da juventude negra se coloca como a melhor opção feita pela elite dominante brasileira. Quem causa as formas de dominação citadas e quem beneficia delas? Os estudos críticos da braquitude nos revelam como a branquitude acrítica, isto é, racista e machista trabalham no sentido a manter os privilégios dos/ as brancos/as mediante o controle das estruturas subjetivas e objetivas-insti- tucionais negras. A branquitude acrítica se diferencia da branquitude crítica. Sendo essa última antirracista e progressista. Mas as teorias de conflito, do feminismo ou das relações raciais mostram que as classes, raças grupos domi- nantes são de homens, heterossexuais, conservadores brancos que comandam as instituições para manter a sua hegemonia e seus privilégios históricos. A sociologia crítica observa igualmente que a dominação só se man- tem pelo fato de encontrar meios de se reproduzir entre os dominados/as. Dessa forma é que se encontra pessoa negras que praticam o autoracismo ou heterorracismo contra pessoas do grupo seu pertencimento racial. Tudo isso não tem nada a ver com algo de natural; trata-se de um processo de naturali- zação construído social e culturalmente com a participação intensa do grupo dominante. Esse comportamento tem a ver com as consequências ou efeitos negativos da dominação racial. Entre outros resultados do racismo contra pessoas negras, pode-se citar as desigualdades sóciorraciais em todos setores da vida; invisibilidade, falta de representatividade no campo da política, de educação, de economia, do mercado de trabalho. Tratam-se de política da negação do ser negro, da iden- tidade-reconhecimento negro. Políticas liberais e neoliberais que rejeitam a política de reconhecimento e redistribuição. Interessa a classe dominante a prática de genocídio contra a população negra, especialmente conta a juven- tude negra. É a mesma necropolítica brasileira que se fundamenta na explora- ção da mulher negra; ataque aos lugares sagrados negros; pratica a invasão de

78 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. seus territórios. Seus resultados perversos são a falta de autoestima; disputas internas; pobreza política; morte de africanos/as no país; a injustiça social, racial, ambiental, cognitiva e de gênero. Do ponto de vista da teoria africana de Ubuntu-macumba-bisoidade, a dominação contra pessoas negras é vista como o nkindoki, ou melhor do- minação-kindoki racial, isto é, forças negativas contra o/a ntu (palavra bantu sem gênero), isto é, negação de qualquer manifestação da vida (ntu-vida). Nkindoki, entre os bakongo é o contrário do nkisi (inquice). Trato o primeiro como feitiço-do-mal e o segundo como feitiço-do-bem. O kindoki-doracismo nega a vida-ntu e o nkisi promove a vida-ntu na sua plenitude. Epistemologia do Ntu como saída da crise ecológica Como sair da crise ecológica do ponto de vista dos povos oprimidos? Acio- nar as epistemologias libertárias e, particularmente, a epistemologia do Ntu que é parte das epistemologias negras do Sul global subalterno. Olhar pela história ne- gra de resistência e pelas bibliotecas negras para ter respostas. Fazer uso da razão cosmopolita/intercultural contra a razão indolente, que é reducionista, simplista, racista, sexista e instrumentalista (MORIN, 2011; SANTOS, 2003; SODRÉ, 2017) Defendo que as epistemologias africanas se colocam como caminho de superação da crise atual. Muniz Sodré nos alerta que trabalham no sentido a buscar a “verdade seduzida”, isto é, seus métodos e linguagens não se pautam nas epistemologias racionalistas, positivistas e instrumental. Nelas o Ubuntu, o Axé opera como o locus interpretativo. Tenho denominado o meu trabalho de epistemologia do Ntu (Axé), por entender que o que chamei de epistemologia de macumba ou batuque é par- te desse grande movimento. O termo ntu tem uma extensão maior em termos analíticos. Ubu-Ntu, como afirma Ramose, é o Ser-sendo, ou seja, o devir, a manifestação do Ntu, a Vida, a Força vital, o Real-Total (MALOMALO, 2018) Desse ponto de vista, compreendo que fazer a ciência é como se fosse fazer um axexé, ebó, nkisi. Da mesma forma que os nganga nkisi (médico, zelador do nkisi), babalorixá, ialorixá zelam pelo Nkisi, pelo Axé, o cientista ubuntuista faz a ciência com razão, consciência e ética. O fim da ciência para ele/ela é a emancipação cósmica. Como ele/ela parte do princípio da biocen- tricidade ou ontologia biocenótica, realidades que ele/ela estuda devem ser abordadas com cuidado. A ética do cuidado para com o Outro é fundamental. Por isso, é um/a zelador/a da verdade seduzida e não instrumental. Dentro das discussões epistemológicas, uma disciplina para se firmar como ciência tem que anunciar o seu objeto ou campo de investigação, o seu

79 Edelamare Melo (Organizadora) método e a/as teoria/as que a sustentam. Tem mais uma outra dimensão que tem a ver com os princípios que devem guiar as atividades cientificas. A epistemologia do Ntu tem por objeto ou sujeitos de investigação a cultura negras e pessoas negras. Isso não quer dizer que não possa e deva estudar outras realidades não negras. A sua abordagem metodológica é interdisciplinar e intercultural. A in- terdisciplinaridade não significa nem a negação de disciplinaridade, nem da transdisciplinaridade. Respeita-se o método disciplinar quando não é sim- plista e reducionista. Dependendo de contexto de estudos recomenda-se a pratica da transdisciplinaridade nas pesquisas individuais e coletivas. A in- terculturalidade sinaliza a necessidade de compreender não somente que toda prática científica é um processo cultural, mas especialmente que os grandes resultados são alcançados quando trabalhamos numa perspectiva do Exu, das encruzilhadas, da interseccionalidades. Os princípios de investigação são de ordem técnicas e éticas. Na pers- pectiva da epistemologia do Ntu, esse é o seu princípio fundante: toda ciência ubuntuista ou bisoista ou macumbista deve se movimentar, isto é, (1) partir da vida; (2) passar pela vida; (3) desenvolver-se para a vida. Em outras palavras, a construção de campo de investigação, os méto- dos, as teorias e princípios a ser usados na epistemologia do ntu, partem da cultura negra e em diálogo com outras culturas. Como toda teoria ou todo paradigma só se explica pela linguagem, fazendo uso de conceitos, a episte- mologia do ntu se fundamenta na linguagem negra. O/apesquisador/a da ciência do ntu está na encruzilhada do mundo acadêmico, vista por nós como escola da crítica e autocrítica radicais, e do mundo não acadêmico, cultural, artístico, religioso. O ponto comum entre os agentes que trabalham no mundo da academia e do mundo não acadêmico seus esses três princípios: os saberes e conhecimentos partem da vida das pessoas negras, da cultura negra, estruturam-se mediantes elas e têm por fina- lidade a expansão de vidas negras e do cosmos. Porque o nome de epistemologia do ntu? É porque Ntu é o conceito com grande extensão analítica que engloba todos os elementos epistêmicos da cultura africana: filosofias ancestrais ou contemporâneas como Ubuntu, Bisoidade, Macumba, Batuque, Exu. A ética, a política e a estética que ditam a linguagem da ciência ubun- tuista correspondem a lógica da cultura negra. Nessa a ciência, a arte, a cultu-

80 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. ra, a religião, o social e o político cruzam-se com os fins de celebrar a vitória da vida sobre a morte. Recomendações a partir da exposição Que lição tirar de toda essa minha exposição? 1. Nós já temos os diagnósticos sobre o que causa a crise que nos afeta: conhecemos seus agentes, a sua maneira de processar e a quem beneficia. 2. Africanos/as e seus/suas descendentes têm um remédio para o mun- do e para a sua comunidade: a sua filosofia ancestral preservada em espaços negros e acadêmicos não negros, como os terreiros. 3. O que se precisa é implementar essa filosofia em todas as esferas da sociedade brasileira, africana e mundial. 4. Filosofia do Ntu-Axé é o caminho, e a filosofia de Ubuntu, Bisoidade, Macumba, Batuque, Jongo, Samba, e “africana ´X´” são parte desse caminho. 5. Em termos concretos o que isso quer dizer? Ubuntu-Bisoidade-Macum- ba é um convite de transformação ontológica, epistemológica, estética, espiritual, jurídica, política, ética para a emancipação biocósmica ou ubuntuista-bisoista. De forma especial, a transformação deve partir da parte de quem causa a crise: a branquitude racista-machista e anti-ecológica. Deveria haver a reconciliação e transformação da parte da parcela da população negra ainda alienada pelos efeitos da dominação do racismo-nkin- doki que acabamos de descrever. Cabe aos/as intelectuais, ativistas e lideranças negros/as e brancos/as antirracistas continuar a trabalhar pela emancipação, cobrar do Estado e da sociedade (setor privado e sociedade civil) racistas os cumprimentos das leis que regem um Estado democrático e multirracial, especialmente leis que pro- movem o patrimônio civilizacional negro, o patrimônio biocêntrico que se manifesta pela ubuntuidade ou bisoidade, isto é, a complementaridade radical entre o sagrado-ancestral, o muntu-pessoa e o universo-natureza. Referências Bibliográficas Adesina, Jimi. Prática da sociologia africana: Lições de endogeneidade e género na acade- mia. In: CRUZ e SILVA, Teresa, COELHO, João Borges; SOUTO, Amélia Neves. Como Fazer Ciências Sociais e Humanas em África: Questões Epistemológicas, Metodológicas, Teóricas e Políticas. Dakar, CODESRIA, 2012. pp. 195-210.

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MULTICULTURALISMO E EDUCAÇÃO: A CONTRIBUIÇÃO DO CIENTISTA DA RELIGIÃO NO DEBATE SOBRE A INCLUSÃO DAS AFRICANIDADES NO ENSINO BRASILEIRO1.

Bas´Ilele Malomalo2

Resumo A Lei 10.369/2003 e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana inauguram uma nova página na história da democracia e da construção de uma educação multicultural no Brasil. Esse trabalho pretende refletir sobre a contribuição do cientista da religião no debate da inclusão das africanidades religiosas no currículo nacional. Palavras-chaves: Ciência da Religião, Multiculturalismo, Educação Title Multiculturalism and Education: The contribution of the religion scientist to the debate over the inclusion of africanities at the Brazilian educational system. Abstract The law 10.369/2003 and the curricular national standards for the education of the ethnical and racial relations and for the teaching of the African and Afro-Brazilian History and Culture, inaugurate a new page at the history of democracy and the construction of a mul- ticultural education in Brazil. This work aims to reflect over the contribution of the religion scientist to the debate over the inclusion of africanities at the Brazilian educational system. Keywords: Religion Science, Multiculturalism, Education

1 Exto publicado em: MALOMALO, Bas´Ilele. Multiculturalismo e educação: a contribuição do cientista da religião no debate sobre a inclusão das africanidades no ensino brasileiro. In: Religião & Cultura: Ensino religioso no Brasil: Balanço, desafios, perspectivas, vol VI, n. 11, p. 107-122, jan/jun. 2007. 2 Bas´Ilele Malomalo, nascido na República Democrática do Congo, é Filosofo, Teólogo, Mestre em Ciências da religião – Área concentração Ciência sociais, e Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Sociologia pela Unesp; pesquisador do Centro de Estudos das Culturas e Línguas Africanas e da Diáspora Negra da UNESP (CLA- DIN) e Secretário Diretor Geral do IDDAB – Instituto do Desenvolvimento da Diáspora Negra no Brasil. 87 Edelamare Melo (Organizadora)

Introdução A Lei 10.639/20033, que estabeleceu o ensino obrigatório da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, abriu uma nova página na história da edu- cação e da construção da democracia no Brasil4. As “Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana”5 que acompanharam essa lei explicitam melhor essa nossa observação.

A obrigatoriedade de inclusão da História e Cultura Afro-Bra- sileira e Africana nos currículos da Educação Básica trata-se de decisão política, com fortes repercussões pedagógicas, inclusi- ve na formação de professores. Com esta medida, reconhece-se que, além de garantir vagas para negros nos bancos escolares, é preciso valorizar devidamente a história e cultura de seu povo, buscando reparar danos, que se repetem há cinco séculos, à sua identidade e a seus direitos. A relevância do estudo de temas decorrentes da história e cultura afro-brasileira e africana não se restringe à população negra, ao contrário, diz respeito a todos os brasileiros, uma vez que devem educar-se enquanto cidadãos atuantes no selo de uma sociedade multicultural e pluriétnica, capazes de construir uma nação democrática6.

Uma dessas novas páginas é o início da construção de uma educação multi- cultural que há de levar em conta a contribuição do negro na formação da identida- de nacional. Consciente de que uma lei só se efetiva através de ações, o movimento negro se tem mobilizado para a publicação de material didático e para a formação de professores sobre a temática étnico-racial conforme a referida lei e diretrizes. Temos participado intensamente nesse processo da construção da edu- cação multicultural tanto como cientista da religião, isto é, como filósofo, teólogo e sociólogo de formação, e como educador popular ligado a essas organizações sociais do movimento negro de São Paulo: o Centro Atabaque Cultura Negra e Teologia e o Nupe, Núcleo Negro da Unesp para Pesquisa e Extensão. Ambas são grupos de pesquisas e formações com forte ligação com a população afro-brasileira. São elos acadêmicos do movimento negro

3 BRASIL, Lei No 10.639/2003. In: Diretrizes curriculares nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, p. 35. Daqui para adiante será identificado como Lei 10.639/2003. 4 BRASIL, Pluralidade Cultural. In: Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos: apresentação dos temas transversais/Secretaria da educação Fundamental, p. 117-160. 5 BRASIL, Diretrizes curriculares nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, pp. 5-33. Daqui para adiante será identificado como Diretrizes. 6 Diretrizes, p. 17. 88 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. contemporâneo. Através da primeira organização, em 2005, participamos da publicação do livro “Nossas Raízes Africanas”7 e do Programa de Formação de Agentes Multiplicadores da Pastoral Afro (PROFAMPA), que foi um pro- grama de formação sobre a temática étnico-racial para os educadores popula- res ligados às Igrejas cristãs8. Pelo segundo grupo, participamos, no mesmo ano, do “Programa São Paulo Educando pela Diferença para Igualdade” que visava a formação de professores da rede do ensino estadual realizado pelos pesquisadores das temáticas negras da UNESP e da UFScar em parceria com a Secretaria de Estado da Educação de São Paulo9. Observamos duas coisas importantes nessas duas experiências de formação de educadores. Primeiro: há uma grande receptividade da proposta de formação pelo multiculturalismo a partir das africanidades negras. A diferença entre os dois programas é que, a proposta pedagógica do Centro Atabaque além de incorporar conteúdos “profanos”, tem discutido também os temas religiosos, as religiosidades negras africanas e afro-brasileiras. Essa realidade já no segundo programa quase foi inexistente. O ponto comum entre os dois programas é que, entre seus organizado- res e os monitores ou pesquisadores-professores, reconheceu-se a importância de se introduzir a temática religiosa no debate sobre a educação das relações raciais. Podemos falar, então, do segundo ponto. Como cientista da religião, temos aproveitado desses espaços formativos para introduzir um debate so- bre as religiões negras com intuito de levar os formandos-professores a uma reflexão no que diz respeito a uma educação multicultural. As práticas, os saberes africanos e afro-brasileiros ligados ao campo religioso, os mitos de criação, as espiritualidades, as teologias, as formas de organizações religiosas dos africanos e de seus descendentes que temos trabalhado, sempre em reli- gação com a sua cultura religiosa predominantemente cristã ocidental, têm trazido resultados surpreendentes: a participação e a grande vontade de se mudar a situação de discriminação no qual a maioria de negros se encontra. A religião se tem apresentado, nessas circunstâncias, como um instrumento de desconstrução das práticas discriminatórias e de construção de um novo agir social fundamentado no princípio do reconhecimento das diferenças e de promoção da igualdade entre as pessoas, de sexo, raças, condições sociais e religiões diferentes que buscam construir o Brasil como nação10.

7 V. C. de SOUSA JUNIOR, Nossas raízes africanas, 2004. 8 O Grupo de pesquisa Identidade do Instituto Superior da Igreja Luterana no Brasil e os Agentes Pastoral Negros (APNs) do Rio Grande do Sul foram parceiros. 9 SECRETARIA DE ESTADO DE EDUCAÇÂO – SÂO PAULO. Programa São Paulo Educando pela diferença para a igualdade. São Paulo, 2005 (Apostila Modulo II). 10 O. IANNI, A idéia de Brasil moderno, pp. 177-180. 89 Edelamare Melo (Organizadora)

Essa também é a nossa convicção: a religião é um campo fértil para se discu- tir a questão da cidadania multicultural. A nossa modesta hipótese, portanto, é essa: o cientista da religião é um dos profissionais habilitados para contribuir de maneira competente no debate que diz respeito à construção de uma nação brasileira de- mocrática. O debate sobre o multiculturalismo e a educação iniciado, no Brasil, pelo movimento negro, e que vem sendo consolidando com a publicação da Lei 10.639/2003, é um terreno fértil onde esse cientista do sagrado poderia desempe- nhar dignamente o seu papel político educador. A elasticidade do seu objeto de estu- do, a religião, e o pluralismo teórico-metodológico do seu campo de conhecimento se apresentam para ele como armas simbólicas plausíveis para uma intervenção efi- caz e eficiente nesse debate republicano. Em todo caso, o profissional da religião há de contribuir de duas formas nesse debate: lutando, de um lado, pela introdução das africanidades religiosas ou religiosidades africanas no curricular nacional, e de ou- tro lado, pela inclusão de uma pedagogia de caráter multicultural e transdisciplinar. O argumento que explicita essa nossa hipótese se articula em torno de três pontos. O primeiro define o profissional da religião tratado nesse artigo a partir da realidade do seu oficio de cientista. O segundo analisa a questões do ensino das africanidades, dos saberes africanos e afro-brasileiros tomando a discussão da educação das relações raciais, tal como apresentada pelas Dire- trizes, como pano de fundo. O terceiro apresenta os elementos sugerido pelas diretrizes para o ensino das africanidades e busca tecer um breve comentário sobre a intervenção política pedagógica do cientista da religião nesse debate sobre o multiculturalismo e educação no Brasil. 1. Ofício do cientista da religião Cientista da religião, que cientista é esse? Bourdieu, Chamboredon e Passeron, ao escrever sobre le métier de sociologue¸ queriam não somente refletir sobre as bases epistemológicas da disciplina da sociologia, mas de todo campo das ciências sociais11. O nosso objetivo, nessa parte, é de com- preender o oficio do cientista da religião a partir de dentro, isto é, a partir da problemática da construção e conquista do seu objeto e da empregabilidade de seus métodos de estudo. Portanto, entre tantas outras disciplinas que com- poem o campo das ciências da religião, como a teologia, a história, a filosofia, a psicologia, nos interessa as ciências sociais, especificamente a sociologia da religião. Por isso falaremos do cientista social da religião ou do cientista da religião em geral, e do sociólogo da religião de modo específico, para nos referir ao profissional que se ocupa do fato social.

11 P. BOURDIEU; J-C. CHAMBOREDON; J-C. PASSARON, Le métier de sociologue, 1983. 90 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Como qualquer cientista, a vocação do cientista social da religião é, como falam os filósofos, atingir a verdade. Interpretar o social, os fatos so- ciais com objetividade cientifica. Assim, Bourdieu e seus companheiros12 acham que o oficio do cientista social, especialmente do sociólogo, consiste em transformar os fatos banais da realidade cotidiana em realidades socioló- gicas. Para isso, conforme os mesmo autores, é preciso classificar o objeto ou os objetos de estudos em termos de campos. A aplicação dos conceitos cien- tíficos a essas realidades sociais banais faz com que as disciplinas adquirem o sentido científico conforme seus “pontos de vista”, o olhar científico da re- alidade social. Sendo cada disciplina portadora de teorias construídas pelos seus agentes científicos para a interpretação da realidade social. Portanto, são as teorias, os conceitos, os métodos que constituem o ponto de vista específico das disciplinas de ciências sociais ou humanas na abordagem de seus objetos de análise. O cientista da religião é um cientista social, um profis- sional, que tem a ciência como ofício. Quer dizer é uma pessoa comum treinada para usar dos instrumentos e das técnicas científicas para interpretar o mundo. Com Edgar Morin, diríamos que o seu campo de investigação é a “cultura das hu- manidades” que busca explicar a “condição humana”13, o significado da vida. De modo especial, o seu objeto de estudo é o “fenômeno religioso”. Para Filorama e Prandi, o específico do fato religioso é a sua autonomia relativa14. Quer dizer, a sua capacidade de se relacionar com outros campos que formam a “condição humana”: a mente, a sociedade, a cultura, a economia, a política etc. Essa elasti- cidade da religião é que confere ao seu campo do conhecimento, as ciências da religião, o estatuto multidisciplinar. Dessa forma, cabe falar do cientista da religião no “plural”. Quer di- zer, este representa, portanto, todos os profissionais formados no campo das ciências da religião, nos cursos de graduação ou pós-graduação com especia- lizações em suas áreas de concentração e área afins, tais como a teologia, a história, a literatura, a geografia, a economia, a linguística, a psicologia, a so- ciologia, a antropologia, a sociologia, a ciência política, a linguística. De outro lado, falarmos dele no singular, no sentido específico de cada disciplina, por exemplo, do sociólogo, do filósofo da religião ou do teólogo. O cientista da religião de quem se trata aqui, diríamos como Edgar Morin, é por vocação um profissional “transdisciplinar”: um estudioso da religião que trabalha com os princípios de “religação” de saberes, da cultura científica e da cultura das hu-

12 Ibidem.. 13 E. MORIN, Complexidade e transdisciplinaridade: A reforma da universidade e do ensino fundamental, 1999. 14 G. FILORAMA; C. PRANDI, As ciencias das religiões, 1999. 91 Edelamare Melo (Organizadora) manidades15; que incorpora o princípio da “complexidade” na interpretação do fato religioso. Esse princípio não está longe daqueles que regem a filosofia da educação multicultural chamada por Boaventura Sousa de Santos de “herme- nêutica diatópica”16: a interpretação da vida por uma cultura determinada em diálogo com outras culturas. No caso desse nosso trabalho, entendemos que o cientista da religião “diatópico”, é aquele cientista social, que apesar de ser formado numa disciplina determinada das ciências sociais ou humanas, busca incessantemente interpretar o fato sócio-religioso para além de sua cultura so- cial e acadêmica, da sua tradição mundana e teórica. Apesar das limitações de suas condições antropológicas que lhe condicionam como ser humano e pes- quisador, esse cientista se distingue pela sua determinação de construir pon- tes, estabelecer religações interculturais e transdisciplinares na interpretação do fato religioso. Citaremos os estudiosos, como Cheik Anta Diop, Bimweni Kweshi, Jean Marc Ela, Lenardo Boff, Ivone Gebara, Rubem Alves, Roger Bastide, Boaventura de Sousa Santos, Edgar Morin, Pierre Bourdieu, Marx Weber, Karl Marx, Émile Durkheim, como aqueles cientistas que fizeram e fazem parte dessa tradição da hermenêutica diatópica. Na perspectiva dos es- tudos das relações raciais, aplicar esse princípio dialógico significa analisar os bens culturais religiosos africanos e afro-brasileiros em diálogo com outras culturas que formam a identidade nacional brasileira com intuito de educar pela democracia cidadã e multicultural17. É nesse contexto que emerge e se pode entender o papel político educativo do cientista da religião. 2. Africanidades negras como campo de construção da educação multicultural O desenvolvimento do papel político do cientista da religião no campo da educação multicultural passa pelo entendimento mínimo dos estudos das relações raciais por este profissional, sobretudo quando nunca tinha entrado em contato com esses estudos. O que estes revelam na realidade brasileira é a existência de um tratamento diferenciado entre os agentes negros e brancos. No espaço de sala de aula, os alunos negros são vítimas de uma violência simbólica do racismo, preconceito e discriminação, o que, em grande parte, compromete não somente o seu rendimento escolar, mas todo processo da construção da sua identidade e à realização de sua cidadania plena. Para os cientistas das relações raciais e do multiculturalismo, as desigualdades exis-

15 Ibidem. 16 B. de S. SANTOS, Introdução: as tensões da modernidade ocidental. In: _____ (Org.), Reconhecer para libertar, pp. 443-458. 17 P. GOERGEN, Pós-modernidade, ética e educação, 2001. 92 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. tentes entre negros e brancos na escola não encontram a sua justificativa so- mente nas diferenças econômicas desses alunos, mas também e de maneira incisiva, no racismo que se manifestas nos conteúdos dos livros didáticos e na postura discriminatória dos professores e alunos não negros18. Para superar essa situação da negação da cidadania dos negros nas esco- las, os ativistas do movimento negro e os estudiosos das relações raciais têm sugerido debates públicos em torno do multiculturalismo e da educação19. A Lei 10.639, as “Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Ét- nico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana” e os programas de formações de professores citados acima são exemplos concre- tos de uma das conquistas desses agentes negros na sua luta pelo reconhecimen- to dos direitos da população negra no campo da educação. Como reivindicações fazem parte da luta pelo multiculturalismo no campo da educação20. Mas o que entendemos por multiculturalismo? Boaventura de Sousa San- tos e João Arriscado Nunes reconhecem que o “multiculturalismo” é um con- ceito contestado, assim é preciso exorcizá-lo antes de qualquer uso. Para se sair do malentendimento, esse autor adota a definição do “multiculturalismo eman- cipatório”21. Stuart Hall compartilha essa concepção e faz essas distinções:

Multicultural é um termo qualificativo. Descreve as característi- cas sociais e os problemas de governabilidade apresentados por qualquer sociedade na qual diferentes comunidades culturais convivem e tentam construir uma vida em comum, ao mesmo tempo em que retêm algo de sua identidade “original”. Em con- trapartida, o termo “multiculturalismo” é substantivo. Refere-se às estratégias e políticas adotadas para governar ou administrar problemas de diversidade e multiplicidade gerados pelas socie- dades multiculturais22.

Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva reconhecem que o multiculturalis- mo na educação brasileira é um jogo de negociação das diferenças23. Portan- to, negociações e construções da cidadania plena dos negros. É nessa mesma

18 SECRETARIA DE ESTADO DE EDUCAÇÃO – SÂO PAULO. Programa São Paulo Educando pela diferença para a igualdade. São Paulo, 2005 (Apostila Modulo II). 19 TERCEIRO SEMINÁRIO RELAÇÕES RACIAIS E EDUCAÇÃO : Saberes, Políticas e Perspectivas, 03 a 07 de novembro de 2003; SECRETARIA DE EDUCAÇÃO CONTINUADA, ALFABETIZAÇÃO E DIVERSIDADE, pp. 205-229. 20 L. A . GONÇALVES; P. B. G. e SILVA, O Jogo das diferenças: o multiculturalismo e seus contextos, 2001. 21 B. de S. SANTOS; J. A . NUNES, Introdução: para ampliar o cânone do reconhecimento, da diferença e da igual- dade. In: SANTOS, Boaventura de Sousa. (Org.), Reconhecer para libertar, pp. 25-66 22 S. HALL, Da diáspora : Identidade e Mediações culturais, p. 52. 23 L. A . GONÇALVES; P. G. e SILVA, Op.cit. 93 Edelamare Melo (Organizadora) perspectiva que, na sua luta pela educação multicultural, os intelectuais ne- gros têm adotado duas formas de estratégias nesses últimos tempos: a trans- formação do currículo nacional que é hegemonicamente branco e a luta pela inserção de uma nova pedagogia de inclusão ou uma pedagogia multicultural. O que está em jogo em todo isso é o que Morin tem chamado de “reforma do ensino educacional”24, isto é, a reforma da escola que passa pela reforma do pensamento e da pedagogia. Para tanto Morin cogita uma nova missão para a educação cidadã: “A missão desse ensino é transmitir não mero saber, mas uma cultura que permita compreender nossa condição e nos ajude a viver, e que favoreça, ao mesmo tempo, um modo de pensar aberto e livre”25. A liber- dade é o longo sonho que tem caracterizado as lutas dos movimentos negros, na África e nas diásporas negras americanas, pelo estabelecimento de uma nação multicultural e democrática26. A teologia da libertação tem muito a nos ensinar nesse sentido, e a teologia da libertação negra muito mais. A esses ingredientes teológicos sobre a liberdade e libertação, o cientista da religião, sobretudo o sociólogo, tem que acrescentar outros elementos. Assim, com o economista Amartya Sen há de interpretar a liberdade como um caminho para o desenvolvimento social, político, econômico e cultural27. A educação desempenha um papel fundamental no processo da libertação do negro. Tendo em conta o contexto brasileiro, Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva pensa que a realização de uma educação multicultural no país começaria pela “aprendizagem e ensino das africanidades brasileiras” na formação dos professores e dos alunos. Mas o que significa africanidades brasileiras?

Ao dizer africanidades brasileiras estamos nos referindo às raí- zes da cultura brasileira que têm origens africanas. Dizendo de outra forma, estamos, de um lado, nos referindo aos modos de ser, de viver, de organizar suas lutas, próprios dos negros brasi- leiros, e de outro lado, às marcas de cultura africana que, inde- pendentemente da origem étnica de cada brasileiro, fazem parte do seu dia-a-dia28.

Nas “Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africa- na” cuja professora Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva foi relatora, pode-se

24 E. MORIN, A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento, 2001. 25 E. MORIN, Complexidade e transdisciplinaridade: A reforma da universidade e do ensino fundamental, 1999. 26 M. PAIXÂO, Manifesto anti-racista: idéias em prol de uma utopia chamada Brasil, pp. 11-12. 27 Cf. A. SEN, Desenvolvimento como liberdade, 2000. 28 P. B. G e SILVA, Aprendizagem e ensino das africanidades. In: MUNANGA, Kabengele (Org.). Superando o racismo na escola, p. 155. 94 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. dizer que as “africanidades” se relacionam aos saberes, às produções culturais e sociais que os africanos e seus descendentes vêm produzindo desde o surgi- mento do homem nos territórios dos seus ancestrais e a formação das diásporas negras. Sendo assim, nós entendemos que o desenvolvimento do papel educa- dor político do cientista da religião não se limita somente na análise das “afri- canidades brasileiras”, mas também as manifestações culturais e históricas dos povos africanos ligados ao campo da religião, as “as africanidades” tout court. Desse modo, cabe-nos de introduzir o outro conceito, o das “africanidades ne- gras” para falar dessas duas manifestações culturais; dos “saberes afro-brasi- leiros” para designar as culturas afro-brasileiras e dos “saberes africanos” para designar especificamente as produções culturais dos povos africanos. Nesse sentido, o lugar reservado por Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva para o ensino das africanidades afro-brasileiras vale também para os saberes africanos:

No âmbito escolar e acadêmico, as Africanidades Brasileiras cons- tituem-se no campo de estudos, logo, tanto podem ser organizados enquanto disciplina curricular, programa de estudo abrangendo dife- rentes disciplinas, como a de investigações. Em qualquer caso, carac- terizam-se pela interrelação entre diferentes áreas de conhecimentos, que toma como perspectiva a cultura e a história dos povos africanos e dos descendentes seus nas Américas, como em outros continentes29.

Nesse sentido, os conteúdos e as metodologias que devem ser empregados para o estudo e ensino das africanidades negras estão relacionados às suas respecti- vas disciplinas. Numa palavra, o seu estudo requer uma abordagem multidiscipli- nar e seu ensino uma modalidade transdisciplinar. Nesse sentido acreditamos que o cientista da religião por ser um profissional treinado numa pedagogia, nos con- teúdos e métodos multidisciplinares, poderia se sair melhor no ensino das africa- nidades negras. O exercício do seu papel político na educação nacional passa por essa tomada de consciência das vantagens que lhe oferece o seu campo de estudo. 3. Intervenção do cientista da religião no ensino brasileiro O cientista da religião tem um papel fundamental a desempenhar na cons- trução de uma educação multicultural no país. O seu diálogo com o campo dos estudos das relações raciais e do multiculturalismo é o primeiro passo nessa di- reção. O outro passo é estabelecer o que ele deve fazer no âmbito de ensino das africanidades religiosas. A sua tarefa seria analisar os fenômenos religiosos negros presentes nas disciplinas que estudam as culturas negras, os saberes afri-

29 P. B. G. e SILVA, art. citado, p. 161. 95 Edelamare Melo (Organizadora) canos e afro-brasileiros. Tomando em conta os contextos de produção desses conhecimentos, o que ele há de investigar são as idéias, as visões do mundo, as linguagens que os Estudos Africanos e os Estudos Afro-Brasileiros vêm pro- duzindo em relação à cultura e história africanas e afro-brasileiras. Os Estudos Afro-Brasileiros tendem sempre a iniciar suas investigações tomando como pon- to de partida o contexto africano por causa da sua relação histórica sem, todavia, perder de vista sobre suas peculiaridades históricas, suas “situações históricas”30; as invenções e criações da cultura africana na diáspora31. Portanto, querer pensar as “africanidades religiosas” requer do investiga- dor da religião uma visão heurística diatópica que busca religar a pré-história africana à história dos últimos descendentes do “homo sapiens” nos territórios africanos32 e de seus descendentes dispersos nas diásporas americanas. O proce- dimento metodológico da complexidade de Morin se impõe nesse sentido como instrumento científico indispensável para esse cientista do sagrado, que além do uso plausível do recorte histórico que deve fazer, é convidado a bem tratar dos acontecimentos sociais segundo a sua relevância histórica. O que Weber dizia referente ao sociólogo, diz respeito também a qualquer cientista dos bens religio- sos independentemente de sua especialidade: “A conceituação da sociologia en- contra seu material [...] nas realidades da ação consideradas também relevantes do ponto de visto da história [...] com isso, pode prestar um serviço à imputação causal histórica dos fenômenos culturalmente importantes”33. A caça do material, para a identificação e a construção das africanidades religiosas como objeto de pesquisa e de ensino da parte do cientista da religião, de modo especial do sociólogo, não se limita ao diálogo que há de estabelecer entre a sociologia e a história, mas implica também uma aproximação com ou- tras disciplinas do campo das ciências humanas e das ciências da natureza. Até porque, no entendimento da Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, que é tam- bém o no nosso, os conteúdos a serem discutidos embarcam todas as disciplinas que compõem o currículo nacional: História, Antropologia, Geografia, Sociolo- gia, Matemática, Ciências, Psicologia, Educação física, Educação Musical, Arte Plástica34, acrescentaremos o Ensino religioso, a Filosofia e a Teologia. Como se pode observar a complexidade temática do Ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana requer ao mesmo tempo uma abordagem multidisciplinar e um ensino transdisciplinar. As Diretrizes retratam em linhas

A. GRAMSCI, Cadernos do cárcere : Maquiavel. Notas sobre o Estado e a política, 2000. 31 C. MOURA, Dialética radical do negro no Brasil, 1994 ; S. Hall, A identidade cultural na pós-modernidade, 2004. 32 J. KI-ZERBO, História geral da África: metodologia e pré-história da África, p. 157-218. 33 M. WEBER, Economia e sociedade: Fundamento da sociologia compreensiva, 2004. 34 P. B. G. e SILVA, art. citado, pp. 161-169. 96 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. gerais os conteúdos que deveriam fazer parte do currículo nacional. Essas Di- retrizes dividem esses conteúdos em quatro partes. A primeira reúne os temas relacionados à História Afro-Brasileira, a segunda à História Africana, a tercei- ra à Cultura Afro-Brasileira e a quarta à Cultura Africana. Caberá ao cientista da religião ressaltar os elementos relevantes ligados ao seu campo de estudo, mostrando sobretudo aqueles que detêm o poder simbólico eficiente e -sufi ciente35 no processo da construção democrática de uma educação multicultural brasileira; a educação que valoriza as diferenças e luta pela igualdade racial. Por uma questão metodológica, a seguir, procederemos na apresentação das orientações dos conteúdos do ensino das africanidades negras sugeridos pelas referidas diretrizes. Em seguida, faremos alguns comentários relativos à intervenção do cientista da religião. Gostaríamos de dizer que se trata somen- te de breves comentários e não de estudos detalhados. Estes dizem respeito, de modo particular, às ciências sociais, a sociologia, disciplina que é o nosso oficio na atualidade. O que não impede que outros cientistas da religião, te- ólogos, historiadores, filósofos possam se servir também deles. Começamos pela primeira parte das diretrizes, a História Afro-Brasileira.

O ensino de História Afro-Brasileira abrangerá, entre outros con- teúdos, iniciativas e organizações negras, incluindo a história dos quilombos, a começar pelo Palmares, e de remanescentes de qui- lombos, que têm contribuído para o desenvolvimento de comunida- des, bairros, localidades, municípios, regiões (exemplos: associa- ções negras recreativas, culturais, educativas, culturais, educativas, artísticas, de assistência, de pesquisa, irmandades religiosas, gru- pos do Movimento Negro). Será dado o destaque a acontecimentos e realizações próprios de cada região e localidade36. Datas significativas para cada região e localidade serão devi- damente assinaladas. O 13 de maio, Dia Nacional de Denún- cia contra o Racismo, será tratado como o dia de denúncia das repercussões das políticas de eliminação física e simbólica da população afro-brasileira na pós-abolição, e de divulgação dos significados da Lei Áurea para os negros. No 20 de novembro será celebrado o Dia nacional da Consciência Negra, entenden- do-se consciência negra nos termos explicitados anteriormente nesse parecer. Entre outras datas de significado histórico e polí- tico deverá ser assinalado o 21 de março, Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial37.

35 Cf. P. BOURDIEU, O poder simbólico., 2002; P. BOURDIEU; J-C PASSERON, A Reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino, 1975. 36 Diretrizes, p. 20. 37 Diretrizes, p. 21. 97 Edelamare Melo (Organizadora)

Em relação à História Afro-Brasileira, o cientista da religião pode inter- vir de maneira relevante analisando as organizações religiosas negras no tempo colonial, após-abolição e em nossos tempos. Um dos pressupostos teórico-me- todológico é de evitar o “dualismo filosófico ocidental” que separa o profano do sagrado38, assumindo a “complexidade” como instrumento de análise das or- ganizações religiosas e de seus ritos profanos39 como elementos indispensáveis para apreender a História dos afro-brasileiros como uma história de resistência40 que constrói o multiculturalismo emancipatório e a educação cidadã brasileiros a partir de “protestos de rua”41. Dessa forma, há a possibilidade de se estudar o ativismo religioso das organizações religiosas negras na transformação da socie- dade brasileira e construção do poder simbólico negro, da sua identidade étnica42. A segunda parte das diretrizes fala sobre a História da África:

Em História da África, tratada em perspectiva positiva, não só de de- núncia da miséria e discriminações que atingem o continente, nos tó- picos pertinentes se fará articuladamente com a história dos afrodes- cendentes no Brasil e serão abordados temas relativos – ao papel dos anciãos e dos griots como guardiões da memória histórica; - à história da ancestralidade e religiosidade africana; - aos núbios e aos egípcios, como civilizações que contribuíram decisivamente para o desenvolvi- mento da humanidade; - às civilizações e organizações políticas pré-co- loniais, como os reinos do Mali, do Congo e do Zimbabwe; - ao trafico e à escravidão do ponto de vista dos escravizados; - ao papel de europeus, de asiáticos e também de africanos no trafico; - à ocupação colonial na perspectiva dos africanos; - às lutas pela indepen- dência política dos paises africanos; - ás ações prol da união africana em nossos diais, bem como o papel da União Africana, para tanto; - às relações entre as culturas e as histórias dos povos do continente afri- cano e os da diáspora; - à formação compulsória da diáspora, vida e existência cultural e histórica dos africanos e seus descendentes fora da África; - à diversidade da diáspora, hoje, nas Américas, Caribe, Europa e Ásia; - aos acordos políticos, econômicos, educacionais e culturais entre África, Brasil e outros países da diáspora43.

As Diretrizes recomendam que se estuda a História dos africanos e de seus descedentes numa perspectiva dialógica, sempre em diálogo com outras

38 B. de SANTOS, art. citado. 39 C. RIVIÈRE, Os ritos profano, 1997. 40 C. MOURA, Op.cit. 41 L. A. GONÇALVES; P. B. G e Silva, Multiculturalismo e educação: do protesto de rua a propostas e políticas. In : Educação e pesquisa, pp. 109-123. 42 B. MALOMALO, Poder simbólico alternativo e a identidade étnica no Brasil, 2005. 43 Diretrizes, pp. 21-22. 98 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. histórias da humanidades, sobretudo de suas diásporas. Não só isto. O negro deve ser estudado, como afirma o sociólogo Guerreiro Ramos, “a partir de dentro” como sujeito da história e não como um mero objeto44. Como edu- cador, o cientista do sagrado há de assumir a postura do afro-optimismo e não o seu contrário que tem prevalecido até então, o afro-pessimismo. Outra grande novidade que trará para o ensino multicultural é o resgate das civi- lizações africanas e de seus heróis mostrando a ligação que aquelas e estes têm com o mundo do sagrado45. A beleza, a estética negra, os saberes negros devem ser apresentados de maneira positiva sem nenhuma ideologia etnocên- trica. Nem o eurocentrismo, nem o afrocentrismo deve prevalecer. Pois cada “ismo” mata o espírito científico. Somente a africanidade, como saber aberto deve guiar o seu espírito. A historiografia africana é um aliado indispensável nesse empreendimento, sobretudo a corrente da egiptologia realizada pelos estudiosos como Cheik Anta Diop, Théophile Obenga e companhia. É uma corrente cientifica multidisciplinar e transdisciplinar que aborda o negro a partir de dentro e na lógica da complexidade e do diálogo46. Já a terceira parte das Diretrizes dá dicas sobre Cultura Afro-Brasileira: “O ensino de Cultura Afro-Brasileira destacará o jeito de ser, viver e pensar mani- festado tanto no dia-a-dia, quanto em celebrações como congadas, moçambiques, ensaio, maracatus, rodas de samba, entre outros”47. Em relação aos elementos culturais afro-brasileiros, o cientista da religião poderia desvendar as “religações” existentes entre a religiosidade negra com a poesia, a literatura afro-brasileiras, a capoeira, música negra, o rapp, o maracatu, por exemplo. Enfim, a última parte das Diretrizes fala da Cultura Africana:

O ensino da Cultura Africana abrangerá: - as contribuições do Egito para a ciência e filosofia ocidentais; - as universidades africanas de Timbuktu, Gao, Djene que floresceram no século XVI; - as tecnologias de agricultura, de beneficiamento de culti- vos, de mineração e de edificações trazidas pelos escravizados, bem como a produção cientifica, artística (arte plástica, literatu- ra, musica, dança, teatro), política, na atualidade48.

44 G. RAMOS, Introdução crítica à sociologia brasileira., 1995. 45 CENTRE D´ÉTUDES DES RELIGIONS AFRICAINES, Religions Africaines et projet de socété. In : Cahier des Religions Africaines, p. 23-28. 46 C. A . DIOP, Origem dos antigos egípcios. In: G. Mokhtar (Org.). História Geral da África, A África antiga, 1983; Th. OBENGA, Fontes e técnicas especificas da historiografia da África Panorama Geral. In: KI-ZERBO, Joseph. História geral da África: metodologia e pré-história da África, 1982, p. 91-104; Egiptologia. Disponível em : http :// www.ankhonline.com.. 47 Diretrizes, p. 22. 48 Ibidem. 99 Edelamare Melo (Organizadora)

Apesar das influências do fenômeno da globalização, do hibridismo nas culturas, pode-se dizer que tanto as culturas africanas como a cultura afro-brasileira continuam conservando umas de suas características “genéticas”, que definem suas identidades: a sua ligação com o mundo do sagrado49. O cientista social da religião pode confirma a veracidade ou a falsidade dessa afirmação no quadro de seus estudos. Temos a certeza que não lhe será difícil mostrar a lógica “conservadora” da cultura africana, mesmo nesse nosso período da alta modernidade, isto é, o modo como essa cultura continua conservando a sua visão cósmica, a “religação” entre o mundo invisível, do sagrado, dos antepassados e o mundo do visível, do profano, até os dias de hoje. A economia, a arte, a política, a sexualidade só podem ser compreendidas na África se levar-se em conta essa visão cósmica do mundo do mundo africano em que o sagrado e o profano coexistem50. Não será também uma tarefa difícil ao cientista da religião comprovar a lógica dialógica presente nessa cultura, isto é, a sua capacidade, elasticidade em dialo- gar com o diferente, as culturas ocidentais, orientais por exemplo. Essa visão cósmica da realidade faz também parte do imaginário religioso dos afro-brasileiros que frequentam as religiões de orixás e que ocupam os territórios ur- banos e rurais, os quilombos. A preservação da cosmovisão africana nesses grupos é devida à sua “resistência” à dominação da cultura ocidental. O estudo comparativo das “Religiões Africanas no Brasil”51, nesse sentido, desempenharia um papel fundamen- tal para o ensino multicultural e das relações interétnicas nas salas de aulas52. Dito em outras palavras, a arte, a música, a poesia, os mitos, o corpo, os territórios, a história ligados, vistas como religiosidades negras ou africanidades religiosas se apresentam como “bens culturais”, objetos de análise, cujo cientista da religião poderia apreender os sentidos, os significados que dizem respeito à “condição humana” para se iniciar uma discussão em torno da educação multicultural para negros e brancos no Brasil. É nesse sentido é que pensamos que o ensino religioso poderia servir de espaço para a construção de uma sociedade democrática onde o mito da democracia racial não fun- ciona somente como um mero instrumento da dominação da elite brasileira. Conclusão Com Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva pode-se concluir dizendo que a aprendizagem e o ensino das africanidades fazem parte de uma pedago- gia anti-racista que têm como exigências:

49 M. C. FAIK-NZUJI, La puissance du sacré; l´homme, la nature et l´art en Afrique, 1993. 50 CENTRE D´ÉTUDES DES RELIGIONS AFRICAINES, Religions Africaines et projet de socété. In : Cahier des Religions Africaines, p. 23-28. 51 R. BASITIDE, As religiões Africanas no Brasil: contribuição a uma sociologia das interpretações de civilizações, 1989. 52 TERCEIRO SEMINÁRIO RELAÇOES RACIAIS E EDUCAÇÃO : Saberes, Políticas e Perspectivas, 03 a 07 de no- vembro de 2003; SECRETARIA DE EDUCAÇÃO CONTINUADA, ALFABETIZAÇÃO E DIVERSIDADE, pp. 205-229. 100 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

• Diálogo, em que seres distintos miram-se e procedem a intercâmbios, sem sentimentos de superioridades ou inferioridades, isto é, estabele- cem um diálogo intercultural ou multicultural emancipatório na pers- pectiva de Santos (2003). • A reconstrução do discurso e da ação pedagógica, no sentido de que participem do processo de resistência dos grupos e de classes postos à margem, bem como contribuam para a formação da sua identidade e de sua cidadania; • e estudos da recriação das diferentes raízes da cultura brasileira, que nos encontros e desencontros de umas com as outras se refizeram e, hoje, não são mais gêges, nagôs, bantus, portugueses, japoneses, ita- lianas, alemãs; mas brasileiras de origem africana, europeia, asiática53.

A tomada de consciência da parte do cientista da religião da sua iden- tidade no cenário das ciências das humanidades e o uso político dessas é o primeiro passo para se discutir o alcance da contribuição desse profissional sobre o debate em torno da educação multicultural. O segundo passo será de estabelecer um diálogo com os estudos das relações raciais, sobretudo o cam- po das ciências da educação, sociologia, filosofia da educação e a pedagogia. Só dessa forma, incorporando as exigências de uma pedagogia anti-racista é que ele poderia intervir na construção de uma educação democrática tendo as africanidades religiosas negras como objetos científicos e armas políticas. Referências Bibliográficas Basitide, Roger . As religiões Africanas no Brasil: contribuição a uma sociologia das inter- pretações de civilizações. 3 ed. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1989.

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103

Sheik Modibo Dadiarra, fundador da Comunidade Mandinatu Munawara (CMM) Edelamare Melo (Organizadora)

106 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

TEOLOGIA E ESPIRITUALIDADE AFRO-ANCESTRAL EM DEFESA DE PESSOAS HOMOAFETIVAS E DESAMPARADAS

Bas´Ilele Malomalo1

Dedico esse texto ao meu amigo F. Vitor Macedo Pereira

Introdução O texto que vou apresentar fará parte de uma mesa redonda que se denomi- na: “Teologia e Espiritualidade Afro-Ancestral: Resistir, (Re)Existir e Transformar em Tempos de Crise”. Como organizadores/as da referida mesa redonda, pensamos em discutir sobre as religiões, teologias e espiritualidades africanas focando nas formas de suas elaborações e vivências nos espaços moldados pelos valores civilizatórios africa- nos e/ou que estão em permanente diálogos com outras religiões como religiões indíge- nas, o islã, o cristianismo e o espiritismo na África e no Brasil. Tensionar a questão do pluralismo religioso, e destacar como as comunidades religiosas lideradas por pessoas negras podem se tornar espaços de resistência, re-existência e transformação em tem- pos de crise. A mesa visa igualmente a troca de experiências de resistências feitas pelos africanos e seus descendentes no continente africano e na diáspora negra no Brasil. O texto apresentado inscreve-se na tradição da oralidade africana.

Quando falamos de tradição em relação à história africana, refe- rimo-nos à tradição oral, e nenhuma tentativa de penetrar a histó- ria e o espírito dos povos africanos terá validade a menos que se apóie nessa herança de conhecimentos de toda espécie, paciente- mente transmitidos de boca a ouvido, de mestre a discípulo, ao longo dos séculos. Essa herança ainda não se perdeu e reside na memória da última geração de grandes depositários, de quem se pode dizer são a memória viva da África. (BÂ, 2010, p. 167).

1 Graduado em Filosofia e Teologia, é doutor em Sociologia pela UNESP, estagiário pós-doutorado pelo Instituto da Biociência/ Departamento de Educação/UNESP-Botucatu, docente e líder do Grupo de pesquisa África-Brasil: Produção de conhecimento, Sociedade civil, Desenvolvimento e Cidadania Global/UNILAB/CNpq, pesquisador do Centro de Ciência e Tecnologia para Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (INTERSSAN-Unesp), do Centro dos Estudos das Culturas e Línguas Africanas e da Diáspora Negra (CLADIN-Unesp), da Rede para o Constitucionalismo Democrático Latino-Americano/Brasil e expert da plataforma Harmony with Nature/ONU e fundador do Instituto da Diáspora Africana no Brasil (IDDAB). 107 Edelamare Melo (Organizadora)

Iniciarei a escrita do meu texto com duas histórias, ouvidas junto do meu mestre espiritual Sheik Modibo Dadiarra, fundador da Comunidade Ma- dinatu Munawara (CMM). Ambas me foram contadas no dia 17 de setembro de 2019, quando estávamos na mesa conversando sobre a espiritualidade. A primeira tem a ver com a história de um jovem senegalês, Ndemba, que as- sumiu a sua identidade homoafetiva feminina - por isso vou nomear ‘ele’ de ‘ela’ -, e por causa disso vem sendo perseguida. A segunda é a história do Dagui, um jovem que tinha se envolvido com o álcool e as drogas, e se viu interpelado para assumir a sua paternidade. As duas histórias têm a ver com as teologias e espiritualidades africanas. Di- ria ancestrais e islâmicas, uma vez que o meu mestre é uma pessoa que vive nesses dois mundos, africano e islâmico. Ademais, seus/suas discípulos/as são de diversas tradições religiosas do mundo. As reflexões a seguir terão um pouco do sabor do cristianismo que é uma das religiões do pertencimento do narrador desse texto. Divido a minha escrita em cinco seções. A primeira começa a falar da di- vindade que é o tema principal da teologia refletindo sobre “Deus/a da palavra que se fez história”. História cósmica, que trato na segunda seção, quando falada é a teologia e quando vivida é a espiritualidade africana. Mas chamo desde já a atenção pelo fato de que essa separação é somente pedagógica, pois no mundo africano teologia e espiritualidade devem andar juntas. Na terceira seção, destaco o aspecto do imperialismo, colonialismo e colonialidade nos modos de se fazer e viver a teologia-espiritualidade africana. Os duplos e múltiplos pertencimentos religiosos, existentes em nossas vidas de africanos/as, têm muito a ver com as histórias de dominação imperialista árabo-muçulmana e cristã-ocidental que afri- canos/as enfrentaram no passado e que têm repercussões no presente. No meio às dominações estrangeiras, nasceram também as tradições africa- nas de resistências. Ainda na terceira e, especificamente, na quarta e quinta seção ocupo-me de uma tradição de resistência africana dentro do Islã, o muridismo. Defendo que a CMM, fundada e liderada pelo Sheik Modibo Dadiarra é a radica- lização e modernização do muridismo, enquanto um islã não somente negro, mas pan-africanista e genuinamente plural em que se busca viver o amor incondicio- nal pelo Outro/a, entenda-se com isso: Comunidade-Divino-Ancestral, Comuni- dade-Universo-Natureza e Comunidade-dos-Bantu/Seres-Humanos. Deus/a da palavra que se fez história Dizer que Deus/a Africano/a é Deus/a que se fez história não quer dizer que essa afirmação deve, como o fazem muitos/as teólogos/as africanos/as, partir dos textos judaico-cristãos ou islâmicos, uma vez que os textos africa-

108 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. nos são anteriores aqueles e têm seu valor único. Os textos africanos que me inspiram encontram-se, por exemplo, nas escritas de Hamadou Ampaté Bâ.

A tradição bambara do Komo ensina que a Palavra, Kuma, é uma força fundamental que emana do próprio Ser Supremo, Maa Ngala, criador de todas as coisas. Ela é o instrumento da criação: “Aquilo que Maa Ngala diz, é!”, proclama o chantre do deus Komo. O mito da criação do universo e do homem, ensinado pelo mestre iniciador do Komo (que é sempre um ferreiro) aos jovens cir- cuncidados, revela-nos que quando Maa Ngala sentiu falta de um interlocutor, criou o Primeiro Homem: Maa. (BÂ, 2010, p. 170).

Deus/a Africano/a fez-se história e é/existe fazendo-se história. E já adianto, trata-se da História cósmica (OBENGA, 1980), isto é, em que todas as Comunidades de Vida participam: Comunidade-Sagrado-Ancestralidade, Comunidade-Universo-Natureza e Comunidades-Bantu. Ubuntu, o Ser-Sen- do (RAMOSE, 2011), que traduzimos por “Existo porque Nós Existimos” (MALOMALO, 2014), traduz melhor esse movimento histórico cósmico. A primeira história, que me foi contada pelo meu mestre, ocorreu no mês de setembro deste mesmo ano. Trata-se da perseguição de Ndemba. Jovem senegalês –como avisado que vamos identificar como ‘ela’, em Dakar, que para assumir a sua identidade homoafetiva, vestiu-se como se sentia confortavelmente de mulher. Isso acarretou raiva da parte do público fundamentalista, de maioria muçulmana, que a perseguiu para matá-la. Apavorada, ela acabou entrando em contato com o meu mestre espiritual que, em seguida, acionou outros discípulos para auxiliá-la na sua fuga. No momento que estava me contando a história, garantiu-me que es- tava num lugar seguro; mesmo assim estava a tomar providências para fazer sair Ndemba do território senegalês rumo a um país vizinho. Será lá acolhida por um ativista muçulmano homoafetivo que tem auxiliado nesses casos. A segunda história aconteceu nos anos setenta. É a história do Dagui. Um jovem senegalês que tinha seus 20 anos que bebia álcool, usava algumas drogas e namorava uma menina que era cristã. Essa situação de Dagui fazia com que não fosse respeitado e rejeitado pelo seu marabo, seu líder religioso. Aconteceu um dia que a namorada dele teve um bebê, um menino, e Dagui não queria realizar o batizado da criança. Como frequentava o espaço religio- so do meu mestre, por ser rejeitado pelo seu maraabo, aquele lhe disse que ia batizar a criança, fazer uma cerimônia e dar nome a ela. No dia que o Sheik Modibo Dadiarra foi para comprar um carneiro para o batizado, Dagiu furtou o botijão de gás para vendê-lo na vizinha, e acabou sendo pego por outros discípulos. Esses amarraram-no numa árvore até a chegada do mestre. Aos

109 Edelamare Melo (Organizadora) gritos do público para castigar o Dagiu, que poderia envolver surras, expul- são ou até apedrejamento, o mestre não sabia o que fazer diante da tamanha incompreensão da situação. Logo me disse que ouviu uma voz que lhe disse para perguntar ao seu discípulo porque teria furtado o gás, mesmo sabendo que teria ido comprar a ovelha para o batizado. O discípulo respondeu que não sabia porque estava fazendo aquilo, e implorou ao mestre para perdoá-lo. O que foi feito; e no dia seguinte, o mestre, Dagui e outros discípulos foram até a casa do pai da namorada para pedir a autorização para batizar a criança. Teologia e espiritualidade africana Nós pensamos e acreditamos que teologia é uma fala ou discurso so- bre o sagrado. Rubem Alves, um dos teólogos brancos mais críticos que eu admiro, compreende a Teologia, em geral, como “variações sobre a Vida e a Morte”. Em outras palavras, conforme o teólogo protestante: “É assim que entendo a teologia. Falar sobre a vida, suas coisas mais simples e mais gra- ves, com amor, usando símbolos/memórias que uma tradição enfiou na minha carne. É por isso que não tenho alternativas...” (1985, p. 7). Contrariando, o mestre Rubem Alves, digo que alternativas sempre temos, quando nos situamos numa tradição de insurgência, de resistência e busca de liberdade absoluta. É isso que os povos negros sempre buscaram e fizeram: encontrar alternativas para além de projeto de morte imposto a eles pelos imperialistas e isso não somente no campo teológico. Para me restringir no campo da resistência negra no campo teológico, trago duas definições do teólogo metodista africano, Gabriel Setiloane, que escreve desde África do Sul, e Marcos Rodrigues da Silva, que escreve desde a diáspora negra brasileira.

Falando de modo muito bem resumido, então, a Teologia Africana é uma tentativa de verbalizar a reflexão a respeito da Divindade (fazer teologia) a partir da perspectiva do ambiente e da cultura do povo africano. Esse ambiente e cultura são vistos e julgados, não somente como ingredientes, mas como algo que determina as respostas finais que essa teologia dá a perguntas referentes à natureza da Divindade e da humanidade; aos imperativos que derivam daí, referentes às relações humanas, individuais e em comunidades; e a perguntas so- bre a morte e a vida depois da morte. (SETILOANE, 1992, p. 54).

Na mesma perspectiva de Setiloane, Marcos Rodrigues da Silva (1998, P. 9-10) pondera que “o pensamento teológico afro-americano toma como referên- cia básica as experiências de Deus vividas pelas comunidades negras no conti-

110 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. nente”; e em seguida, destacando que essa teologia é uma experiência de fé numa sociedade marcada pelo racismo e pela opressão sobre tantos e de maneira parti- cular sobre os negros, chama atenção sobre as particularidades da teologia negra.

O pensamento teológico afro-americano, embora tenha um pon- to de partida comum determinado pelo racismo, pela opressão, marginalização e exclusão da comunidade negra no continente, está atento também às particularidades geográficas e às práticas do cotidiano. A comunidade negra vive realidades que fazem dela um todo. Entretanto, ela constitui também uma realidade plural, presente em todos os espaços do continente. Estes fatores fazem com que o pensamento teológico define uma ótica pró- pria, priorizando acontecimentos e experiências que caracteri- zam este modo de fazer e lhe dão sentido. (SILVA, 1998, p. 10).

O ponto comum entre os membros de CMM é que nós acreditamos nas divindades ancestrais africanas; e nossa diferença é que temos membros que são muçulmanos, cristãos, crentes de outras espiritualidades. Nesse sen- tido, o sagrado sobre o qual se fundamenta a fala nossa teológica expressa-se em muitas línguas, expressões culturais: Nzambi, Ngala, Olodumaré, Orixás, Deus, Deusa, Yavé, Allah, Divindades, Ancestralidade. Espiritualidade, de outro lado, é Ubuntu, Ser-sendo. O Grande-Movimen- to-da -Vida; o Viver o/do Mistério da Vida. A Vida, conhecida pelos povos afri- canos com o nome de Ntu ou Axé, é Energia/Força que se manifesta através do Movimento de três comunidades de Vida: Comunidade-Sagrado-Ancestral, Co- munidade-Universo-Natureza e Comunidade-dos-Bantu/Seres-Humanos. Espiritualidade não é só do domínio do racional, mas sobretudo do sen- tir e viver. Ela é experiência. Praticar a espiritualidade africana é deixar-se guiar pela Comunidade-Sagrado-Ancestral que guia as outras duas: Comuni- dade-Universo-Natureza e Comunidade-dos-Bantu. Em termos concretos, a partir das duas histórias que acabei de contar. Teologia-espiritualidade significa falar/experimentar sobre a Vida-Ntu-Axé. No mundo africano, tem a ver com os ensinamentos que brota das três Comu- nidades e pensar como se relacionam. O meu mestre com a força da palavra me contou aquela duas histórias querendo me ensinar algo na vida concreta. Quando o/a mestre fala, os/as discípulos/as escutam. Escutam para aprender se tornar pessoas boas, cheias de ética espiritual, aberto ao Ntu, por isso, o ser-humano é um Mu-Ntu. Pessoa que só se realiza em comunidade; pessoa voltada para a busca do Maat, a justiça, harmonia divino-ancestral e socioambiental (NTUMBA, 2014; OBENGA, 2005; BILOLO, 1986)

111 Edelamare Melo (Organizadora)

Quando meu mestre acabou de me contar as histórias, disse-me essa é a fé. Esse é Deus. Na primeira história Deus/a se manifesta através de nós quando protegemos os/as perseguidos por causa de diferença de identidade sexual. Ele se manifesta igual- mente no perdão que quem se encontra numa posição de superioridade deve conceder a quem, por muitos motivos que podem nos escapar, cometeu erros. Amor, perdão e solidariedade incondicional são realidades históricas e não pura fantasia. Colonialidade e reinvenção de espiritualidade africana na CMM Temos que buscar interpretar a noção da colonialidade (BERNARDINO- COSTA, Joaze ; MADOLNADO-TORRES, Nelson ; GROSFOGUEL, 2018; MALOMALO, 2017) procurando situar sua gênese e sentido semântico nas e dentro das dominações exercidas pelos impérios árabo-muçulmano (a partir do século VIII) e europeu (a partir do século XV) para compreender as domina- ções estrangeiras nos territórios africanos. Dominações que se fizeram de for- ma paulatina, mas que tiveram impactos duradouros que se refletem até hoje. O racismo é um dos elementos que acompanharam as colonizações árabo-mu- çulmanas e europeias. Transformaram africanos/as e suas culturas em não humanos e em culturas diabólicas. Apropriaram-se das terras africanas. Escravizaram e traficaram africanos/as, ou ainda impuseram-nos/as o trabalho forçado, uma forma de escravidão moderna camuflada. Saquearam o seu patrimônio material e cultural e os/as obrigaram a menosprezaram a si mesmos/as, suas culturas, suas divindades. Só que quaisquer forma de dominação gera, geralmente, resistência da parte dos/as dominados/as. Essa pode ser lenta, mas acaba por aparecer um dia, quando as condições históricas permitem-na. Dessa forma, é que a África dominada pela cultura árabo-muçulmana ou euro-cristã, reagiu para assegu- rar a sua existência coletiva. Dentro das formas de resistências que os povos africanos travaram contra seus opressores, a resistência religiosa foi uma delas e foi e tem sido uma das mais eficientes, tendo-se em conta a não separação do mundo sagrado e mundo pro- fano entre esses povos (SODRÉ, 2005). Conseguiram dessa forma, de um lado, a depender de lugares, salvaguardar as religiões de seus ancestrais sem ceder às imposições das religiões estrangeiras, o cristianismo e o islã. De outro lado, le- vando-se em conta o contexto de dominação que sofriam, souberam reinterpretar as religiões de seus opressores, criando novas formas de religiosidades africanas, conhecidas como islã negro ou cristianismo negro (BASTIDE, 1989). Esse hibridismo é que explica, em parte, porque uma parte de africanos/as vivenciam dois ou múltiplo pertencimento religioso sem que seja um problema. Continua sendo africano/a tradicionalista e/ou muçulmano/a e/ou cristão/ã.

112 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Temos igualmente no mesmo continente, pessoas que rezam somente o credo de seus dominadores. São os fundamentalistas tradicionalistas e/ou muçulmanos/as e/ou cristãos/ãs. No caso das histórias contadas, esse grupo de africanos/as usa da religião negando os direitos de existir para os/as outros/ as. Seu Deus é deus da vingança, da morte. Espiritualidade pan-africana da Comunidade Madinatu Munawara O Sheik Modibo Dadiarra é da linha teológico-espiritual que segue a tradição da resistência africana. Pertence à irmandade muçulmana africana sufista muride. Essa foi fundada pelo Cheikh Ahmadou Bamba Mbacké, cha- mado de Khadimou al-Rassoul (em arábe que significa servidor do profeta) e Serigne Touba (chefe religioso e fundador de Touba, em 1887). A doutrina do muride é assente em quatro princípios fundamentais: a fé em Deus, imitação do profeta Mohammad, a aprendizagem do Alcorão e o amor ao trabalho. Os murides assimilaram o islã às tradições do povo wolof, tal o caso do amor ao trabalho, o apego elevado a ajuda mútua e solidariedade. O Sheik Modibo Dadiarra é o fundador da Comunidade Madinatu Munawa- ra. Além dos quatro princípios já apresentados que rege o muridismo, percebe-se nele a liberdade especial em interpretar o islã à luz das tradições e à modernidade africanas. O Ndeup, uma prática religiosa terapêutica do povo wolof semelhante ao Candomblé é usado nos processos de manutenção da vida da comunidade. Em muitas das nossas conversas o mestre sempre me disse que além da fé, solidariedade cósmica, a serenidade e a paciência são valores impor- tante para a vida espiritual. Nesse sentido é o mestre Sheik Modibo Dadiarra prega que somos somente instrumentos de Deus/as nessa terra. A religião, e quaisquer uma delas, é vista como caminho de salvação do cosmos, e do ser humano. Além disso, em CMM impera o pluralismo religioso. O/a Deus/a aqui existente é Ubuntu, Ser-sendo, Movimento de Abertura para o Outro/a. É anti colonialidade, anti racismo, anti sexismo. Os dois casos analisados apontam a figura de um/a Deus/a da Vida que ama os/as homoafetivos/as, perdoa incondicionalmente e celebra a vida dos/as que conseguem, em um momento, retomar o caminho da valorização do outro/a. O caso da jovem homoafetiva, Ndemba, será resolvido dentro da rede de solidariedade que o meu mestre tem e participa como liderança religiosa e que se preocupa pelas pessoas oprimidas pelas tradições religiosas fundamen- talistas, sejam elas africanas ou estrangeiras. Há muitos outros casos ligados à defesa da vida e direitos de homoafetivos/as que ele me tem contato. Mas prefiro ficar com esse único que acabei de relatar.

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O segundo caso foi contado somente a metade, e vou retomar a histó- ria. Quando meu mestre perguntou a Dagui por que o teria roubado mesmo sabendo que ele se preocupava com ele e com o batizado do filho dele que tinha nascido. Ao pedir perdão e prometer a mudança na sua vida, meu mestre mandou soltar o Dagui. Isso criou revoltas da parte dos fundamentalistas que alegavam que ele incentivava o mal. No dia seguinte, o mestre, o Dagui e outros discípulos pegaram o carro e se foram para a casa do pai da namorada para pedir a permissão para realizar o bati- zado e o casamento. Quando chegaram, o pai da moça se recusou a recebê-los, e o mestre com seus discípulos ficaram a esperar na rua desde de manhã cedo até duas horas da tarde. Os discípulos cantavam louvores a Allah, e uma multidão se aglo- merava para entender o que estava a acontecer. Uma parte dela admirava a gene- rosidade do mestre em acompanhar o seu discípulo que foi renegado pelos pais e pelo próprio marabou perante o mal cometido; e uma outra reprimia o mestre. Acontece que o tio da moça, depois de conversar com o pai dela, veio con- versar com o Sheik Modibo Dadiarra que o receberia na sua casa, que ficava bem perto, para a realização do ritual. O mestre se dirigiu com toda sua comunidade e procedeu primeiro ao batizado e depois ao casamento do Dagui com a namorada. A criança recebeu o próprio nome do mestre. Realizou-se o casamento. Imolou-se o carneiro e esse foi cozido e consumido pela comunidade presente. O pai e a mãe da namorada, emocionados, acabaram vindo na casa do tio para a festa. Desde então Dagui nunca mais consumiu drogas e nem bebeu mais o álcool. Teve seis crianças com a esposa. Tornou-se um homem responsável e trabalhador. Acabou se mudando para os Estados Unidos. Quando chegou lá comprou para o seu mestre a primeira televisão de cor. Cada vez que voltava para Dakar, procurava para o seu mestre, e em cada viagem que fazia entrega- va um envelope de dinheiro para o mestre e sua comunidade. A CMM no mundo, África e Brasil O texto apresentado sinaliza uma forma especial de africanos/as vivenciar sua espiritualidade nos contextos pós-coloniais marcados pela colonialidade. A CMM é uma comunidade que tem seus/suas discípulos/as espalhados/as pelo mundo, na África e no Brasil. O contato com a sua teologia e espiritualidade dá-se pelo contato com o seu fundador, Grand Papa, Sheik Modibo Dadiarra, o instrumento de Deus, enviado e seu Pelegrino nas diásporas negras. Para o meu mestre, o que importa é que cada um/a de seus filhos e filhas se torne Grand Papa ou Grand Maman, enviado ou enviada de Deus/Deusa, não importa o nome que Esse/Essa receba.

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Sheik Modibo Dadiarra, não somente porque vivenciou o tempo da co- lonização, mas é o guardião das tradições africanas do passado e do presente que luta contra todas formas de opressões, especialmente que afetam as popu- lações negras. Sua família foi convertida ao islã e não é por causa disso que tinha que renegar as tradições de seus/suas ancestrais. O que importa, para ele, é se colocar como instrumento de Deus/Deusa e isso não depende de formato de religião onde a pessoa se encontra. A religiosidade africana que ele ensina é aquela que preserva e reinter- preta a tradição dos/as ancestrais, o islã e, muitas vezes, o cristianismo a partir da nova realidade histórica. Por isso luta contra qualquer opressão que nega a humanidade do outro. No caso, o racismo, a homofobia, o machismo ou degradação ao meu ambiente. A CMM através do seu fundador é igualmente uma comunidade de fé e cura de vidas. Na diáspora brasileira, a CMM tem recebido brasileiros/as negros/as e brancos/as. O seu líder tem zelado para que os valores civilizatórios africa- nos, que se expressam pela espiritualidade africana, ancestral e do islã negro, prevaleçam e guiem a vida das famílias de seus/suas filhos/as. Considerações finais O trabalho espiritual realizado pelo Sheik Modibo Dadiarra e a CMM, no Brasil, na África e no mundo, condiz com os princípios e objetivos que o simpósio “Indígenas, Negros, Quilombolas e Religiosos de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Discriminação e seus Reflexos nas Relações de Traba- lho, Produção e Consumo” pretende divulgar e atingir. A população que o meu mestre e a nossa comunidade atendem direta ou indiretamente é composta de trabalhadores/as, especialmente de camadas mais pobres, oprimidas e discriminadas pela sua condição social, de sexo, raça, etnia ou religião. A voz de CMM e da sua liderança religiosa fazem-se entender no Brasil pela diáspora africana contemporânea – não só a senegalesa – que reside e traba- lha nas cidades brasileiras. A maioria constitui família, residência e trabalha aqui. A CMM e sua liderança são representantes, na atualidade, dos/as afri- canos/as islâmicos/as e cristãos/ãs que foram escravizados/as no Brasil. Sua missão é de travar a resistência africana integrando descendentes de africa- nos/as da diáspora escravizada com a diáspora africana contemporânea re- sidente atualmente no Brasil e com o continente africano. Tudo isso numa perspectiva pan-africana libertária.

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La discriminación por razones étnicas y culturales

Cayetano Núñez González 1

1. Nota introductoria Abordar un tema tan complejo sobre la discriminación por razones étnicas en el trabajo pasa, de manera inexorable, por valorar cuáles son las repercusiones jurídicas que dichas conductas conllevan. Dicho de otra forma, parece imprescindible evaluar cuál es la dedicación, alcance y efectividad de las normas que tutelan a las personas que sufran dichas actitudes peyorativa. En este sentido, es imprescindible una aproximación inicial a los derechos constitucionales en juego, concretando cuál es el bien jurídico protegido. Múltiples son las causas y las formas de discriminación proscritas por el Derecho, que en la mayoría de las ocasiones son susceptibles de ser pluriofensivas y vulnerar varios derechos fundamentales a la vez. En el tratamiento del tema que aquí se va a desarrollar, parece relevante partir de un derecho que no sólo es parte indisoluble del ser humano: el derecho a su diversidad, a ejercer con libertad e igualdad sus propios rasgos culturales, a una diversidad cultural que, cuando no se tutela, vulnera derechos tan fundamentales como la dignidad, la igualdad, el honor, la libre determinación de la personalidad, su integridad corporal… Parece por ello importante realizar una breve revisión conceptual y normativa2 que, en principio, pueda servir como aproximación pero que, en definitiva, puedan a posteriori ser utilizadas como base para conocer y realizar propuestas sobre el tratamiento que reciben en el mundo del trabajo. Quiero por tanto empezar este trabajo destacando el valor de la cultura y su relación estructural con las personas, así como poner en evidencia el inevitable reflejo que tiene la cultura en todos los actos de la vida: sus manifestaciones definen y diseñan la personalidad del ser humano. 2. La diversidad cultural como bien jurídico protegido Las personas son, básicamente, culturales: cada una ha nacido en una comunidad de vida en la que ha socializado, interiorizando unas maneras

1 Doctor en Derecho, Profesor Titular de Derecho del Trabajo y de la Seguridad Social de la Universitat de València (Es- paña). Investigador del Instituto Internacional Derecho y Sociedad (Lima, Perú). Investigador del Instituto Polibienestar y del proyecto de Investigación sobre la violencia en el trabajo y género (VITRAGE) de la Universitat de València. 2 Este texto está basado en partes de mi monografía Interculturalidad y Derecho del Trabajo. Una aproximación a la gestión no discriminatoria de la diversidad cultural en la empresa, Tirant lo Blanch, Valencia 2009. 117 Edelamare Melo (Organizadora) de pensar, de sentir y de actuar, ayudando en su devenir a su transmisión, conservación y transformación3. La cultura es considerada como el conjunto de los rasgos distintivos espirituales y materiales, intelectuales y afectivos que caracterizan a una sociedad o a un grupo social y que abarca, además de las artes y las letras, los modos de vida, las maneras de vivir juntos, los sistemas de valores, las tradiciones y las creencias4. Son estos elementos los que perfilan la identidad cultural, dando forma a la personalidad humana, cuya consideración y libre ejercicio están directamente vinculados con el respeto a la dignidad, razón por la que el pluralismo se considera fundamento del orden político y de la paz social. La diversidad cultural se refiere a la multiplicidad de formas en que se expresan las culturas de los grupos y sociedades (artículo 4 Convención UNESCO 2005)5, manifestándose por la pluralidad del lenguaje, de las creencias religiosas, de las prácticas del manejo de la tierra, en el arte, en la música, en la estructura social, en la selección de los cultivos, en la dieta y en todo número concebible de otros atributos de la sociedad humana6. “La cultura adquiere formas diversas a través del tiempo y del espacio. Esta diversidad se manifiesta en la originalidad y la pluralidad de las identidades que caracterizan los grupos y las sociedades que componen la Humanidad. Fuente de intercambios, de innovación y de creatividad, la diversidad cultural es, para el género humano, tan necesaria como la diversidad biológica para los organismos vivos. En este sentido, constituye el patrimonio común de la humanidad y debe ser reconocida y consolidada en beneficio de las generaciones presentes y futuras”7. En esta línea, puede afirmarse que las diferencias culturales vienen determinadas “por el modo de concebir el sentido de la vida o la muerte, de la felicidad, de la justicia y la organización social, nacidas de distintas cosmovisiones que justifican la existencia de diferentes normas y valores”8. La diversidad cultural es “una manifestación típica de las sociedades multiétnicas, en las que suelen plantearse los problemas relacionados con la multiculturalidad, considerando que estos problemas no proceden tanto del

3 RODRIGO ALSINA, M., “La comunicación intercultural”, Estudios interculturales, textos básicos para el forum 2004, http://www.blues.uab.es/incom/2004/cas/rodcas1.html 4 Conferencia Mundial sobre las Políticas Culturales (MONDIACULT, México, 1982), de la Comisión Mundial de Cultura y Desarrollo (Nuestra Diversidad Creativa, 1995) y de la Conferencia Intergubernamental sobre Políticas Culturales para el Desarrollo (Estocolmo, 1998). 5 Artículo 4 de la Convención sobre la protección y promoción de la diversidad de las expresiones culturales de la UNES- CO, aprobado en París el 20 de octubre de 2005 y ratificado por España el 25 de octubre de 2006 (BOE 12 febrero2007). 6 http://www.prodiversitas.bioetica.org/cultural.htm 7 Artículo 1º (“La diversidad cultural, Patrimonio Mundial de la Humanidad”) de la Declaración Universal de la UNESCO sobre la diversidad cultural de 2002. 8 CORTINA, A., Ciudadanos del Mundo. Hacia una teoría de la ciudadanía, Alianza Editorial 2005, p. 188. 118 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. hecho de que haya diversas culturas, sino del hecho de que personas con distintos bagajes culturales hayan de convivir en un mismo espacio social, sea una comunidad política, sea una comunidad humana real en su conjunto, donde la mayoría de las veces una de las culturas es la dominante”9. La idea es crear un marco jurídico que permita el libre desarrollo de la personalidad humana en todas las dimensiones sociales, incluida la laboral, tutelando la condición humana en el doble sentido de no interferir en su ámbito interior y de proporcionarle las condiciones que necesita para vivir con dignidad. “La integración es, ante todo, igualdad de derechos (que no uniformidad) y, por tanto, no sólo no discriminación, sino igualdad”10. 3. Dignidad humana, identidad cultural y libre desarrollo de la personalidad La diversidad cultural proporciona a las personas su identidad personal, diferenciándola de otras personas o grupos al incorporarse de manera indisoluble a su forma de ser y de pensar: el respeto a la diferencias está, por esta causa, en íntima relación con la dignidad humana, lo que tiene suficiente valor en sí mismo11 como para alejarlo del tráfico mercantil y no permitir su medición en términos económicos. Si los derechos humanos “son el núcleo básico, ineludible e irrenunciable del status jurídico del individuo”12, y “la proyección positiva, inmediata y vital de la dignidad de las personas”13, su satisfacción no debería alcanzarse a través de un quid pro quo mercantil que implique la renuncia de aquellos elementos y circunstancias que nos definen como personas: el origen racial o étnico, social o nacional, las convicciones religiosas o ideológicas, el género, la lengua o las manifestaciones de sus tradiciones, incluida la apariencia física. Expresado en otras palabras, “para obtener el reconocimiento como seres humanos, iguales en dignidad y derechos, no se nos puede exigir que dejemos de ser humanos”14. El respeto a la diversidad cultural, el derecho a ser diferente, es “el derecho de todas las personas a un trato que no contradiga su condición de ser igual y libre, capaz de determinar su conducta en relación consigo mismo y su

9 En este sentido, CORTINA, A., ob .cit. (2005-a), pp. 178-179. 10 DE LUCAS, J., ob. cit. (2005), p. 256. 11 Este enlace con el sentido kantiano del fin en sí mismo lo plantea CORTINA, A., Conferencia en el Congreso Nacional del voluntariado celebrado en Granada el 2 de diciembre de 2005, ejemplar fotocopiado. 12 Respecto de los derechos fundamentales, GARCÍA-PERROTE, I. y MERCADER UGUINA, J.R., “Conflicto y ponderación de los derechos fundamentales de contenido laboral”, en El modelo social de la Constitución Española de 1978 (SEMPERE NAVARRO, A., Director), MTAS, Madrid 2003, p. 251-252. 13 GARCÍA-PERROTE, I. y MERCADER UGUINA, J., ob. cit. (2003), p. 251. 14 DE LUCAS, J., “La herida original de las políticas de inmigración. A propósito del lugar de los derechos humanos en las políticas de inmigración”, ISEGORÍA 26/2002, p. 70. 119 Edelamare Melo (Organizadora) entorno, esto es, la capacidad de autodeterminación consciente y responsable de la propia vida”15 y el libre desarrollo de su personalidad. La dignidad ha de permanecer inalterada cualquiera que sea la situación en que la persona se encuentre, constituyendo, en consecuencia, un mínimum invulnerable que todo estatuto jurídico debe asegurar, de modo que las limitaciones que se impongan en el disfrute de derechos individuales no conlleven un menosprecio para la estima que, en cuanto ser humano, merece la persona”16. Lo que implica “una explícita interdicción de que determinadas diferencias sean la razón que hayan situado históricamente, tanto por la acción de los poderes públicos como de la práctica social, a sectores de la población en posiciones, no sólo desventajosas, sino contrarias a la dignidad de la persona que reconoce el artículo 10.1 CE17. La dignidad, “como rango o categoría de la persona del que se proyecta el derecho al honor no admite discriminaciones por razón de nacimiento, origen racial o étnico, opiniones o creencias, considerando que el odio o el desprecio a todo un pueblo o a una etnia es una perversión jurídica incompatible con el respeto a la dignidad humana, rechazo predicable sobre las conductas que, proyectadas sobre un solo individuo, encuentran su motivación en la pertenencia de este a un grupo racial, étnico, religioso o cultural determinado” 18. 4. Igualdad en la diversidad Desde luego que para lograr la dignidad personal es necesario un ejercicio pleno de los derechos económicos, sociales y culturales19. Ahora bien: para que coadyuven a conseguir un estatus personal que permita disfrutar de los derechos humanos en condiciones de justicia, igualdad y libertad, es imprescindible superar la clásica concepción jurídica abstracta de estos derechos. Esto significa que su ejercicio deberá tener en cuenta la posición social y la especificidad cultural de cada persona, posición sólo compatible con una comprensión de la sociedad en la que no quepan los etnocentrismos y donde no existan jerarquías culturales que limiten el derecho a ser diferente. Desde esta perspectiva, “su concepción ideológica debe incorporar las complejas adaptaciones que la diversidad exige a la organización moderna de la sociedad”20.

15 STC 53/1985, de 11 de abril, FJ 8. 16 STC 192/2003, de 27 de octubre de 2003, FJ 7º, citando las SSTC 120/1990, de 27 de junio, FJ 4ª y 57/1994, de 28 de febrero, FJ 3. 17 Tal y como afirma la STC 3/2007, de 15 de enero, FJ 2, haciendo también referencia a las SSTC 128/1987, de 16 de julio, FJ 5; 166/1988, de 26 de septiembre, FJ 2; 145/1991, de 1 de julio, FJ 2; 17/2003, de 30 de enero, FJ 3. 18 STC 13/2001, de 29 de abril FJ 7. 19 Un instrumento interesante, aun cuando falta por ver cuál va a ser su eficacia, es el Protocolo Facultativo del Pacto Internacional de Derechos Económicos, Sociales y Culturales de 1966, Resolución de la Subcomisión de Derechos Humanos de la ONU 2001/6 de 15 de agosto de 2001, adoptado por la Asamblea General del 10 de diciembre de 2008. 20 BARBERÁ, “El desafío de la igualdad”, Temas Laborales 59/2001, p. 259. 120 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Como se ha destacado, la igualdad no es identidad ni homogeneidad, puesto que no prescinde de elementos diferenciadores21. La diversidad, por su parte, no se contrapone a la igualdad, sino a la identidad homogénea: significa que, de hecho, las personas se encuentran en situaciones y condiciones diferentes y que la identidad de toda persona viene dada por sus diferencias. Por eso, las políticas públicas democráticas no pueden caer en “el fobotipo de mostrar las diferencias culturales como un peligro para la universalidad de los derechos humanos”22 y “la presentación de cualquier diferencia cultural como patología”23. Ese camino sólo conduce a la uniformidad, mediante la llamada lógica de la identidad, que se limita a reducir las cosas a unidad, buscando una fórmula que sólo admite a las personas si están dentro de una categoría, negando o reprimiendo la diferencia24. Este modelo, llamado de asimilación cultural, está regido por conductas autoritarias que imponen la cultura propia sobre las demás y eliminan la diferencia25, lo que significa excluir el pluralismo y desconsiderarlo como valor superior del ordenamiento jurídico. La cultura construye la identidad personal, y tiene la suficiente entidad como para ser considerado “un derecho humano universal”26. Se incorpora así a la esfera jurídica personal (individual y colectiva), bajo la comprensión de que su ausencia tiene consecuencias dramáticas: “lo peor que se le puede quitar a una persona es su autoestima, excluyéndole del ámbito económico, del ámbito político y, desde luego, del ámbito cultural”27. Una “identidad cultural infravalorada o no reconocida lesiona al individuo, en tanto que su identidad se forja en un contexto, en una relación dialéctica con una lengua y una cultura y eso forma parte de las fuentes de su yo”28. Esta es la razón que hace incompatible la asimilación con el pluralismo. El tratamiento de la diferencia, para ser respetuoso con los derechos humanos, debe regirse por el principio de igual dignidad y respeto de todas las culturas29. “Se trata de aceptar la paradoja de que somos iguales y diferentes”30. Incluir

21 AÑÓN ROIG, M.J., Igualdad, diferencias y desigualdades, México 2001, pp. 23-24. 22 DE LUCAS, J., ob. cit. (2002), p. 76. 23 AÑÓN ROIG, M.J., “La multiculturalidad posible: la mirada del Derecho”, Cuadernos Electrónicos de Filosofía Del Derecho 8/2003, www.uv.es/CEFD/Index_8.htm, p. 21. 24 “En el discurso occidental estas dicotomías se estructuran en torno a la dicotomía buena/mala, pura/impura. La pri- mera parte de la dicotomía se eleva sobre la segunda porque designa lo unificado, idéntico a sí mismo, mientras que la segunda parte se ubica fuera de lo unificado como lo caótico, sin forma, en transformación, que siempre amenaza con traspasar el borde y romper la unidad de lo bueno”, YOUNG, ob. cit. (2000), pp. 168-169. 25 ELÓSEGUI ITXASO, M., “Asimilacionismo, multiculturalismo, interculturalismo”, Claves de la razón práctica 74/1997, p. 24 ss. 26 ELÓSEGUI ITXASO, M., ob. cit., p. 31. 27 CORTINA, A., ob. cit. (2005-b). 28 AÑÓN ROIG, M.J., ob. cit. (2003), p. 4. 29 Artículo 2.3 Convención UNESCO 2005. 30 RODRÍGUEZ ALSINA, M., ob. cit. (1999), p. 60. 121 Edelamare Melo (Organizadora) comienza por respetar las creencias y costumbres de cada persona renunciando a implantar las propias, “porque integrar es incompatible con convertir”31. Una sociedad puede ser multicultural, en su nivel más sencillo de tolerancia; o superar esa fase y ser intercultural, potenciando no sólo la comprensión mutua, sino también el diálogo y el intercambio entre culturas (sobre estos conceptos, infra 1.3.1). Pero una sociedad asimilacionista es democráticamente insostenible, porque atenta al corazón mismo de los derechos humanos, al pretender “vaciar toda identidad diferente, en aras del abstracto reconocimiento de quien solo es persona si se asemeja a ese molde, pretendidamente vacío pero hecho a nuestra medida que es el canon occidental”32. La materialización jurídica de esta idea fuerza es fundamental para impedir que puedan establecerse privilegios entre culturas, basados en un mayor rango o jerarquía de unas sobre otras: todas son igualmente dignas y merecedoras de respeto33, teniendo en cuenta que la única forma de comprenderlas correctamente es interpretar sus manifestaciones de acuerdo con sus propios criterios culturales34. La sociedad ha querido poner límites al criterio de las mayorías: los derechos humanos, cuyo ejercicio, al menos el ejercicio de su contenido esencial, debe ser siempre objeto de respeto y protección. En este sentido, deben tenerse en cuenta los derechos de las minorías, en su condición abstracta o universal de persona, y en su condición específica de persona con una identidad diferente a la del grupo hegemónico: una sociedad democrática se compromete en la defensa de las minorías a ser diferentes, no forzándolas a ajustarse a la “normalidad artificial construida por la mayoría”35. Los derechos humanos son un “mínimo ético imprescindible y común a todos los seres humanos, en virtud de su dignidad humana, lo que les convierte en patrimonio necesario de toda la humanidad”36. Esta es la razón por la que no deben ser objeto de intercambio, sino actuar como “inmunidades”37 o límites al ejercicio del poder38, sea este público o privado. Su privilegiada posición de

31 DE LA VILLA GIL, L.E., “Inmigración y Gobierno”, en Derecho del Trabajo y de la Seguridad Social. Cincuenta estudios del profesor Luis Enrique de la Villa Gil. Homenaje a sus 50 años de dedicación universitaria, Ediciones CEF, Madrid 2006, p. 1751, publicado originalmente en AAVV Derechos y libertades de los extranjeros en España. XII Congreso Nacional de Derecho del Trabajo y de la Seguridad Social, Gobierno de Cantabria, Santander 2003, Tomo I, pp. 255-281. 32 DE LUCAS, J., ob. cit. (2002), p. 69. 33 Algunas reflexiones sobre la igual dignidad de todas las culturas pueden verse en CORTINA, A., ob. cit. (2005-a), pp. 206 ss. 34 Así se pronuncia el artículo 9 del Convenio 169 sobre pueblos indígenas y tribales de la OIT (1989). 35 GARRIDO PÉREZ, E., “El tratamiento comunitario de la discapacidad: desde su consideración como una anoma- lía social a la noción del derecho a la igualdad de oportunidades”, Temas Laborales 59/2001, pp. 173. 36 LÓPEZ ÁLVAREZ, A., “Derechos fundamentales e inmigración”, La inmigración en la Comunidad Valenciana: un estudio multidisciplinar, Tirant lo Blanch, Valencia 2006, pp. 12-13. 37 FERRAJOLI, L., Derecho y razón, Trotta, Madrid 1989, p. 911. 38 Son la oposición de la verdad al poder, utilizando las palabras de FOUCAULT, La verdad y las formas jurídicas, 122 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. ser un “interés público y primario”39 les permite fijar “principios de justicia material destinados a informar todo el ordenamiento jurídico”40. De esta forma, su contenido esencial proporciona un escudo que debería blindarlos ante la negociación (contractual, parlamentaria o de otra índole), en su consideración básica para la realización de todo plan de vida, “sin que pueda quedar librado este campo de exclusión al consenso fáctico de las partes negociadoras”41. Desde esta perspectiva, tutelar su ejercicio es una obligación de orden público, ya sea “a través de derechos positivos que generan expectativas de derechos, ya sea como inmunidades frente al poder, es decir, como derechos negativos que obligan al legislador y a la administración a no privar a las personas, de manera arbitraria, de recursos básicos que hayan obtenido o tengan un legítimo interés en obtener”42. 5. Diferencia y desigualdad. Ahora bien, teniendo en cuenta la Declaración Universal de los Derechos Humanos de 1948, hablar de justicia y de dignidad significa que toda persona tiene derecho a disponer, al menos, de un mínimo vital para vivir dignamente, incluyendo el derecho a participar de la cultura de su sociedad, no importa dónde se encuentre. En este sentido, es importante tomar en consideración la distinción entre diferencia y desigualdad. “Las diferencias -sean naturales o culturales- son los rasgos específicos que distinguen y al mismo tiempo individualizan a las personas y que, en cuanto tales, deben ser tuteladas por los derechos fundamentales. Mientras que las desigualdades –sean económicas o sociales- son en cambio las disparidades entre sujetos producidas por la diversidad de sus derechos patrimoniales, así como sus posiciones de poder y sujeción. Las primeras concurren, en su conjunto, a formar las diversas y concretas identidades de cada persona; las segundas, a formar las diversas esferas jurídicas. Unas son tuteladas y valoradas, frente a discriminaciones o privilegios, por el principio de igualdad formal en los derechos fundamentales de libertad; las otras son, si no removidas, al menos reducidas o compensadas por aquellos niveles mínimos de igualdad sustancial que están asegurados

GEDISA, Barcelona 1980, p. 64. 39 RODRÍGUEZ PIÑERO, M., “Constitución, derechos fundamentales y contrato de trabajo”, Relaciones Laborales 1-2/1996, p. 13. 40 ZAGREBELSKY, G., ob. cit. (2002), p. 93. 41 GARZÓN VALDÉS, E., “El consenso democrático: fundamento y límites del papel de las minorías”, Cuadernos Electrónicos de Filosofía del Derecho Número 0/1998, http://www.uv.es/CEFD/Index_0.html 42 PISARELLO, G., “Derechos sociales, democracia e inmigración en el constitucionalismo español: del origi- nalismo a una interpretación sistemática y evolutiva”, en La universalidad de los derechos sociales: el reto de la inmigración, Tirant lo Blanch/PUV, Valencia 2004, p. 55. 123 Edelamare Melo (Organizadora) por la satisfacción de los derechos fundamentales sociales. En ambos casos la igualdad está conectada con los derechos fundamentales: a los de libertad en cuanto derechos al igual respeto de todas las diferencias; a los sociales en cuanto derechos a la reducción de las desigualdades”43. Que la diferencia no se convierta en desigualdad está, en la mayoría de las ocasiones, conectada con la satisfacción simultánea de ambos tipos de derechos. En realidad, la diferencia no sería un problema si no fuera por la consideración social que de ella se tiene, que es lo que puede convertirla en un elemento de riqueza, convivencia y cohesión social o, en el otro extremo, de trato peyorativo, desigual, discriminatorio, de sometimiento y base de relaciones de dominación. Puede así afirmarse que “la diferencia tiene que ver con la identidad delas personas y las desigualdades con la disparidad de condiciones sociales”44. Hay en esta afirmación una relación implícita entre la desigualdad de trato que provoca la diferencia y la posición económica que el sujeto o colectivo disfruta en la sociedad en la que se encuentra. Son las consecuencias de las relaciones sociales de dominio y opresión entre grupos las que “dan lugar al modelo, según el cual lo característico y/o específico del grupo dominante es la norma y la diferencia estaría representada por los rasgos del grupo dominado; la distribución se ha realizado a partir de una medida o regla considerada injusta y de ahí surge una desigualdad y puede dar lugar a una discriminación”45. En esta mercantilización de los derechos humanos, el ejercicio de los derechos en virtud de la capacidad económica de las personas es, quizás, una de las principales razones de la “crisis de la democracia representativa, del alejamiento constante entre el pueblo y sus representantes, de la deslegitimación de un sistema que se llama pluralista pero que siempre desconoció el supuesto político que lo caracteriza desde el punto de vista del poder: la presencia y la participación igual, real y efectiva, en el mismo marco institucional, de todos los grupos sociales y de sus reales posibilidades de influir en las decisiones políticas fundamentales, con independencia del grado de riqueza que posean”46. 6. La interculturalidad como proceso de inclusión social Los derechos humanos han pasado de ser derechos de exclusiva reclamación ante los poderes públicos, a ser derechos también aplicables ante la esfera privada, lo que tiene una virtualidad mayor, si cabe, en el derecho a no ser

43 FERRAJOLI, L., en Derechos y garantías: la ley del más débil, Trotta, Madrid 2004, p. 82. 44 AÑÓN ROIG, M.J., ob. cit. (2001-b), p. 18. 45 AÑÓN ROIG, M.J., ob. cit. (2001-b), p.26. 46 DAMIANI BUSTILLOS, L.F., “De la subversión social a la subversión política”, Cuadernos para el debate agosto 1991, Ediciones Primera Línea, Caracas, pp. 45-46. 124 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. discriminado47. No obstante este tránsito tan significativo, para que los derechos humanos sean justiciables48 y se puedan disfrutar materialmente, es necesario, de un lado, que los poderes públicos faciliten el ejercicio progresivo, irrenunciable, indivisible e interdependiente de todos ellos, con independencia de cuál sea su naturaleza; y, de otro, que lo hagan alentando la construcción de unas relaciones sociales y, por supuesto, de un ordenamiento jurídico (también jurídico-laboral), en el que la identidad cultural forme parte del derecho a la igualdad49. Considerando que el primero de los derechos humanos es el derecho a tener derechos, sólo un disfrute integral de todos ellos permitirá el reconocimiento de los seres humanos como sujetos, pero no en el sentido de una universalidad uniforme, “sino precisamente desde su carácter insustituible, desde su diferencia, su otreidad”. Al amparo de esta idea, me parece que conviene superar el modelo que propone un tratamiento jurídico neutro que ignora la diversidad, en un vivir y dejar vivir, pero cada una en su cultura, que normalmente ha estado vinculado con la creación de ghettos50. “Una sociedad multicultural moderna requiere adoptar, por parte de todos los grupos, pautas y referencias comunes que faciliten la convivencia política y hagan posible el diálogo intercultural”51, considerando al otro como alter ego, y teniendo en cuenta que para comprender sus intereses es preciso comprender su cultura52. La apuesta es conseguir que entre los grupos sociales con distintos códigos culturales53 y sus conjuntos de valores, de creencias y de comportamientos54, exista un proceso abierto de diálogo que admita la posibilidad real de intercambio55, fomentando una interacción cultural basada en el derecho a la inclusión56. La diversidad cultural es hoy una realidad que requiere construir una convivencia para la integración, donde en el desarrollo de la identidad ciudadana, promover y facilitar el diálogo intercultural sean prioridades declaradas que contribuyan a la cohesión social y a la aceptación de identidades culturales y de creencias diferentes dentro de la ciudadanía europea57.

47 VALDÉS DALRÉ, F., “La prohibición de discriminación: una cualificada expresión del moderno ius gentium”, Relaciones Laborales 5/2008. 48 Término utilizado por FERRAJOLI, L., Los fundamentos de los derechos fundamentales, Trotta, Madrid 2001. 49 AÑÓN ROIG, M.J., ob. cit. (2003), CEFD, p. 7. 50 Idea expresada por CORTINA, A., Conferencia “Tolerancia y solidaridad” Universitat de València, 29 de marzo de 2007. 51 ÁLVAREZ DE FORRONSOLO, I., ob. cit., http://www.uv.es/CEFD/Index_0.html 52 CORTINA, A. ob. cit. (2005-a), p. 184. 53 Utilizando la expresión de AÑÓN ROIG, M.J., ob. cit. (2003), p. 2. 54 Vid. CEAR-Euskadi, Inmigración y empresa. Dodecálogo de recomendaciones para un tándem económicamente eficiente y socialmente responsable, CEAR (2006), http://www.cear.es/DodecalogodeRecomendacio.pdf 55 ELÓSEGUI ITXASO, M., ob. cit., p. 25. 56 JAHANBEGLOO, R., “En defensa de la diversidad”, Diario El País 29 de octubre de 2006, Edición Digital. 57 Exposición de Motivos del Real Decreto 367/2007, de 16 de marzo, por el que se crea y regula la Comisión Na- cional para el Fomento y Promoción del Diálogo Intercultural (BOE 24 marzo 2007). 125 Edelamare Melo (Organizadora)

El diálogo intercultural, entendido como “presencia e interacción equitativa de diversas culturas”58, es todavía un proyecto más que una realidad de hecho59, un esfuerzo que es necesario materializar en unas “reglas jurídicas que utilicen de manera selectiva el derecho como vía de diferenciación al objeto de conseguir una igualación real y efectiva”60. Ahora bien, la configuración jurídica de la diversidad va a depender de la concepción ideológica que predomine61, lo que determinará la elección del modelo jurídico encargado de regular la nueva sociedad plural62. El diseño de un ordenamiento jurídico intercultural no puede ser ciego a las diferencias, porque entonces la igualdad sirve para ocultar una realidad discriminatoria63. En este sentido, debe crear una esfera de tutela que no sólo garantice el respeto a la dimensión interna de la identidad cultural, sino que facilite (incluso que fomente) el libre ejercicio de sus manifestaciones externas. El Derecho tiene que incentivar la convivencia, reflejando las necesidades de la nueva sociedad y colaborando a construir unas relaciones más humanas. Valorar jurídicamente las diferencias, en el doble plano descrito, implica además rechazar la doctrina que clasifica los derechos humanos por generaciones64. A mi juicio, y así parece deducirse de su original manifestación en la Declaración Universal de 1948, todos los derechos humanos tienen idéntico valor, alcance y reconocimiento, porque su conexión con la dignidad personal y el libre desarrollo de la personalidad es un valor espiritual y moral inherente a la persona, cuyo respeto goza del mayor nivel de protección65. Proteger el derecho al voto sin permitir el ejercicio del derecho a la alimentación, a la salud, a la vivienda, a la educación, a un medio ambiente sano o a la identidad cultural es un espejismo, una ficción democrática que se manifiesta en el distinto rango que se otorga a cada uno de los derechos que en modo alguno contribuye a hacer efectivo el derecho a la igualdad.

58 Artículo 4.8 Convención UNESCO 2005. 59 FORNET-BETANCOURT, R., “Supuestos filosóficos del diálogo intercultural”, http://www.ensayistas.org/criti- ca/teoria/fornet 60 VALDÉS DALRÉ, F., ob. cit. (2008), p. 3. 61 En sentido similar, GARCÍA-PERROTE ESCARTÍN, I. y MERCADER UGUINA, J.R., ob. cit. (2003), p. 255. 62 Ver FERRAJOLI, L., ob. cit. (2004), pp. 73 y ss.. 63 SEMPRINI, A., Le multiculturalisme, Presses Universitaires de France, París 1997, p. 66. 64 Una interesante y relativamente reciente reflexión crítica sobre esta doctrina puede verse en HERREÑO HER- NÁNDEZ, A.L., ¿Todo o nada? Principio de integralidad y derechos sociales, ILSA, Bogotá 2008, pp. 25 ss. 65 Vid. STC 192/2003 de 27 de octubre. 126

Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

AS BARREIRAS DE ACESSO AO UNIVERSO DO TRABALHO PARA A MULHER NEGRA E AFRO-RELIGIOSA. De que mulher negra falamos? Qual a sua história?

Edelamare Melo1

De que mulher negra falamos? Qual sua história e sua contribuição para a identidade feminina brasileira? Estas são perguntas que devemos sempre nos fazer quando falamos da mulher negra e afro-religiosa no universo do trabalho. Não deveria, mas, não raro, a escolha de credo/ crença/ orientação religiosa tem sido levada em conta pelas empresas na hora da contratação. Daí a importância de nos debruçarmos sobre o tema das barreiras de acesso da mulher negra e afro-religiosa no universo do trabalho porque é fato, a vio- lência do preconceito, do racismo, da intolerância e da discriminação racial e religiosa é sentida como algo único e solidário por quem a sofre na medida em que afeta, de forma contundente, a sua dignidade. Trata-se de um preconceito velado, que restringe o acesso ao mercado de trabalho de afro-religiosos, em especial as mulheres negras, porque sobre elas pesa tríplice discriminação: gênero, étnico-racial e orientação religiosa, que se agrava quando agregamos a estes fatores outros fatores que também trazem consigo as marcas do preconceito, do racismo, da intolerância e da discriminação: orientação sexual ou identidade de gênero. Apesar da existência de vedação constitucional e legal expressa para tal prática, o fato é que, no país, 80% das pessoas de religiões de matriz afri- cana, em sua significativa maioria mulheres, sofrem restrições no mercado de trabalho, seguida das mulheres muçulmanas, com 70%2. Refletindo sobre este quadro nos remetemos a Abdias Nascimento3, que apresenta um iter histórico pós-abolicionista que persiste até os dias atuais, lem- brando que, antes de 1950, no Brasil, a discriminação racial para acesso ao emprego era uma prática corrente, sancionada pela lei consuetudinária, tanto as-

1 Doutora em Direito pela Universidad Pablo de Olavide (Sevilla, Espanha). Subprocuradora Geral do Trabalho. Membro do Conselho Superior do Ministério Público do Trabalho. Coordenadora do Grupo de Trabalho Comunida- des Tradicionais do Ministério Público do Trabalho. 2 Dados disponíveis em: https://extra.globo.com/emprego/intolerancia-religiosa-reduz-chances-no-mercado-de-tra- balho-15876508.html. Acesso em 18.11.2018 3 NASCIMENTO, Abdias. O Genocídio do Negro Brasileiro: Processo de um racismo mascarado. 3ª edição. São Paul. Perspectivas, 2016, pp 62-63 p. 97 129 Edelamare Melo (Organizadora) sim que os anúncios de oferta de emprego continham uma explícita advertência: “não se aceitam pessoas de cor”, situação que, pensava-se, seria revertida após a promulgação, em 1951, da Lei Afonso Arinos4 - Lei no 1.390, de 3 de julho de 1951-que proibiu a discriminação racial no Brasil, constituindo-se no primeiro diploma normativo brasileiro a incluir entre as contravenções penais a prática de atos resultantes de preconceito de raça e cor da pele. Sobre este iter normativo pertinentes ontem, como hoje, as observações de Abdias Nascimento, quanto aos mecanismos de seleção no mercado de trabalho na sua relação com a nossa pseu- do-democracia racial e as cicatrizes que se perpetuam como marcas indeléveis, que só quem as sofre sabe o quem elas significam em suas vidas:

As feridas da discriminação racial se exibem ao mais superfi- cial olhar sobre a realidade social do País. A ideologia oficial ostensivamente apoia a discriminação econômica- para citar um exemplo- por motivo de raça. Antes de 1950, a discriminação em empregos era uma prática corrente, sancionada pela lei con- suetudinária. Em geral, os anúncios procurando empregados se publicavam com a explícita advertência: “não se aceitam pes- soas de cor”. Mesmo após a lei Afonso Arinos, de 1951, proi- bindo categoricamente a discriminação racial, tudo continuou na mesma...Depois da lei, os anúncios se tornaram mais sofis- ticados que antes: requerem agora “pessoas de boa aparência. Basta substituir “boa aparência” por “branco” para se obter a verdadeira significação do eufemismo. Com lei ou sem lei, a discriminação contra o negro permanece: difusa, mas ativa”5.

É fato histórico inconteste que as negras e negros ao chegarem no Brasil na condição de escravizados e escravizadas tiveram expropriadas, confisca- das e negadas a sua condição humana, a sua família, sua dignidade, além de terem que testemunhar as tentativas de negação da identidade do seu povo. Foram mais de cinco milhões de seres humanos transportados por mais de seis mil quilômetros em condições subumanas nos porões de navios negrei- ros, chamados de tumbas porque nesta travessia muitos deixaram suas vidas entre os anos de 1525 e 18516. A situação mais vexatória nesta época era a da mulher negra que, neste transito negreiro, sofriam abusos sexuais seja por seus pares, seja pelos membros do exército colonizador.

4 Lei Afonso Arinos, Lei 1390, promulgada por Getúlio Vargas em 3.7.1951. Batizada de Lei Afonso Arinos em homenagem a seu autor, vice-líder da bancada da conservadora União Democrática Nacional (UDN) na Câmara. Leia mais: https://acervo.oglobo.globo.com/fatos-historicos/criada-lei-afonso-arinos-primeira-norma-contra-racis- mo-no-brasil-10477391#ixzz5Wa1MVF5m 5 NASCIMENTO, Abdias. Ob. Cit. 6 PRANDI, Reginaldo. Povo Negro. Revista USP. p. 64-83, dezembro/fevereiro: 1996 130 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Neste contexto, a história destas mulheres e de seus espaços de luta e resistência para preservação da sua identidade de gênero, racial e religiosa se confundem. Foi no candomblé7, nos terreiros e nos quilombos que estas lutas foram travadas. Foi nesses espaços que os escravizados encontraram forças para resistir à desumanidade da escravidão, na qual não poucos su- cumbiram. Foi por meio da resistência dessas mulheres africanas negras e escravizadas que, por meio da religião, dentro das senzalas, foram desenvol- vidas estratégias de resistência e luta para preservação da cultura, história e religiosidade do povo negro traficado de diversas regiões da África. Povo negro escravizado que trouxe consigo elementos culturais e religiosos que ensejaram reações e transformações nas estruturas sociais, culturais, étnicas, econômicas e políticas do país, conformando a nossa identidade nacional ao lado da influência do colonizador europeu, mas ignorada porque se pretendeu varrer da nossa história a “mancha negra”, a exemplo do que ocorreu com o processo de branqueamento da nossa população por meio da abertura de nos- sas portas apenas ao imigrante branco no período pós-“abolicionista”. Como observa Neris8, citando Prandi e Bastide:

A capacidade de resistência do pouco que sobrou das culturas das nações dependia da capacidade de absorção pela cultura branca, a origem negra foi apagada ou disfarçada até meados

7 Candomblé é uma palavra derivada da língua bantu: ca [ka]=uso, costume, ndomb=negro, preto e lé=lugar, casa, terreiro e/ou pequeno atabaque. A reunião dos três vocábulos resulta em “lugar de costume dos negros”, por extensão, lu- gar de tradições negras, tradições entre as quais, destacam-se, no sentido atual as práticas religiosas que incluem a música percussiva [A TARDE, 1980]. Outra interpretação informa que kandombele significa “adorar” [Ngunz’tala, 2006] [Fonte: https://www.portalsaofrancisco.com.br/historia-geral/candomble]. O candomblé é uma religião anímica porque tem, por base, a anima (alma) da Naturezao. Sendo de origem totêmica e familiar, é uma das religiões de matriz africana mais praticadas, tendo mais de três milhões de seguidores em todo o mundo, principalmente no Brasil.[...] Os sacerdotes afri- canos que vieram para o Brasil como escravos, juntamente com seus orixás/nkisis/voduns, sua cultura, e seus idiomas, entre 1549 e 1888, tentaram dar continuidade à sua cultura e religiosidade em terras brasileiras. Foram os africanos que implantaram suas religiões no Brasil, juntando várias em uma casa só para a sobrevivência das mesmas, e nisto consiste o seu diferencial em relação às práticas religiosas em África onde cada nação cultuava uma determinada divindade. Embora confinado originalmente à população de negros escravizados, inicialmente nas senzalas, quilombos e terreiros, proibido pela igreja católica, e criminalizado mesmo por alguns governos, o candomblé prosperou nos quatro séculos, e expandiu consideravelmente desde o fim da escravatura em 1888. Estabeleceu-se com seguidores de várias classes sociais e dezenas de milhares de templos. Em levantamentos recentes, aproximadamente 3 milhões de brasileiros (1,5% da população total) declararam o candomblé como sua religião. Na cidade de Salvador existem 2.230 terreiros regis- trados na Federação Baiana de Cultos Afro-brasileiros e catalogados pelo Centro de Estudos Afro-Orientais da UFBA, [Universidade Federal da Bahia. Mapeamento dos Terreiros de Candomblé de Salvador. Fonte: Wikpedia. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Candombl%C3%A9]. Por conta do histórico de perseguições e de discriminação, o sincretismo entre a religiosidade africana e o catolicismo sempre foi um dos aspectos mais destacados do Candomblé, que continuou a cultuar seus Orixás, resguardando-os sob a aparência de santos católicos. As religiões de matizes africanas são ancoradas nos princípios da oralidade, temporalidade, senioridade, na ancestralidade, não necessitando de um texto básico para defini-las. 8 NERIS, Júlia Simões. “Intolerância Religiosa nas relações de trabalho: proteção ao povo de Santo”. In: Revista Eletrônica do Tribunal Regional do Trabalho da Bahia, Ano V, n. 9, Out. de 2017. 131 Edelamare Melo (Organizadora)

do século XX. A religião era uma expressão de resistência que simbolizava a reconstrução de elementos familiares e societá- rios africanos que haviam sido roubados dos povos escravizados e substituídos por padrões ibero-brasileiros (PRANDI, 1996), os locais de culto se tornavam casas de acolhimento a doentes, emancipados, prostitutas e outros sujeitos marginalizados pela sociedade, vistos como seres sem alma. As senzalas, terreiros e confrarias acabaram tendo um papel marcante na aplicação dos conhecimentos médicos tradicionais, passados através das ge- rações até chegarem ao Brasil, por meio da utilização de ervas, orações, entre outros. Tornou-se assim um elo de união entre as camadas sociais mais baixas que se sentiam protegidas e cuida- das nesses ambientes de um modo que não poderiam na casa dos seus senhores, onde havia a precarização da medicina ou mesmo ausência dela para os menos abastados (BASTIDE, 1989).

Assim, à hora de tratarmos das barreiras de acesso da mulher negra e afro-religiosa ao mundo do trabalho faz-se necessário identificar de que sujei- to falamos e qual sua história. Falamos da mulher negra e afro-religiosa que traz consigo os signos de uma identidade herdada de suas ancestrais: mulheres negras africanas escra- vizadas, que, com sabedoria, migravam para o mundo material as característi- cas míticas das divindades femininas, que cultuavam e cuja sensualidade não ameaçava a sua maternidade, tanto assim que, tendo a si negado o direito de ser mãe de filhos de escravos, não sucumbiu. Ao contrário, fez desta imposi- ção um signo de liberdade e de autonomia. Falamos de mulheres que, sendo autônomas, sempre prescindiram da presença masculina, seja no regime poligâmico no qual viviam em terras afri- canas, seja como escravizadas porque, lá, no longínquo continente africano, já eram livres do jugo masculino. Não obstante, a independência em relação à figura masculina, estas mulheres não abandonavam seus companheiros à sua própria sorte e com eles compartilhavam suas lutas, seu trabalho e sua divindade. Deidades que representavam a tradição, mas, que, para ela, mu- lher negra escravizada, seu tempo era o presente: o tempo do aprisionamento da escravidão, mas, também, tempo de resistência e luta pela liberdade, pela preservação de sua cultura e religiosidade, de sua identidade enfim. Mulheres que sabiam fazer prevalecer seus desejos e proteger seus filhos porque, com suave e estratégica naturalidade, se permitiam a dissimulação como instrumento de luta e defesa. Estas mulheres, que, com insustentável leveza de ser e estar, transitavam entre o mundo mítico e real como transitavam, com indepen- dência e liberdade, entre as esferas pública e privada, na sua terra natal. Como es-

132 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. cravizadas conseguiram agregar aspectos africanos, europeus e indígenas na cons- trução de uma identidade que tinha por marca o feminino na sociedade brasileira. Falamos de uma mulher que, com maestria, conduzia sua vida e que fez da sua cultura e religiosidade instrumentos de resistência e de conquista de espaços para a defesa dos seus. Ontem, como hoje, esta é a mulher negra e afro-religiosa. É a partir desta realidade que examinamos a hipótese de preconceito, ra- cismo, intolerância e discriminação no universo do trabalho vivenciada pelas mulheres negras, segundo a sua auto- identificação étnico-racial e religiosa. A motivação deste trabalho provem de nossa indignação quanto a si- tuação da mulher negra e afro-religiosa, cuja história, cultura e religiosidade são invisibilizadas e sua imagem é estigmatizada – como cantado e decantado no imaginário popular- como mulheres submissas, incultas, supersticiosas, tra- balhadoras e cuidadoras de crianças e de seus senhores/empregadores quando, em verdade, sua história é outra: é a história de mulheres fortes, líderes e mães que, com sua sabedoria ancestral, força e independência, permearam a imagem feminina em períodos marcados por uma lógica preconceituosa, sexista e racista. É importante salientar que, diversamente das sociedades ocidentais, na qual cabia tradicionalmente à mulher o espaço doméstico, resguardado da vida pública e voltado para a criação dos filhos e administração interna do lar, nas sociedades africanas a mulher ocupava um espaço na divisão do trabalho que lhe proporcionava independência, não obstante a prevalência do regime poligâmico. No que se refere ao mundo do trabalho - na esfera pública ou privada- dele também participava a mulher africana, que o ocupava como um espaço privilegiado de sociabilidade. Como observam Josélia Ferreira dos Reis e Rita de Cássia Santos Freitas9:

O mundo do trabalho na sociedade tradicional ioruba também não era apartado das mulheres que, ocupando o espaço público com tan- ta habilidade quanto o doméstico e, segundo, Bernardo, muitas ve- zes lucravam com a produção de seu marido a ponto de “amealhar fortunas consideráveis – o que as torna, muitas vezes, mais ricas do que seus próprios maridos” (IDEM, p.34), posto que compra- vam dele a produção, para revender na feira e o lucro resultante desta venda ficava para a mulher. Desta forma, o espaço privilegia- do da sociabilidade africana, era de domínio feminino. O mercado, lugar de negócios, também era lugar para troca de bens materiais

9 REIS, Josélia Ferreira dos; e FREITAS, Rita de Cássia Santos. De Matriz Africana: O Papel das Mulheres Negras na Construção da Identidade Feminina. Fazendo Gênero 9. Diásporas, Diversidades, Deslocamentos 23 a 26 de agosto de 2010. 133 Edelamare Melo (Organizadora)

e simbólicos (músicas, orações, danças, receitas para curar o cor- po, receitas para aconchegar os corações); (AMARAL, R., 1998). Bernardo concorda, para ela, a mulher é “mediadora, não só das trocas de bens econômicos, como também das de bens simbólicos”. Mas não se limitavam somente ao mercado e à casa. A política e a administração pública também eram espaços por onde circulavam mulheres competentes, exemplos desta ocupação foi a organização dos reinos fon e nagô-ioruba, onde acumulavam a administração do palácio real, postos de comando importantes além da fiscalização do próprio Estado. (Silveira, 2000, p.88 apud BERNARDO). As so- ciedades Ialodê e Gueledé eram respectivamente responsáveis pela representação feminina nos espaços políticos e simbólicos. Enquan- to a primeira representava os interesses das comerciantes, a segunda se encarregava dos rituais de fecundidade e fertilidade.

Salientam as autoras citadas, que, na sociedade africana tradicional, a existência de diferenças não equivalia, necessariamente, à presença de de- sigualdades, da mesma forma que a relação entre gêneros não conduzia ao “aprisionamento a um determinado espaço”. Para a mulher africana, desta- cam, o trânsito entre o público e o privado era livre e se constituía na base de sua identidade. Esta característica, pontuam, foi reconstruída no Brasil, ainda que sob o pálio do regime de escravidão. Confira-se10:

No Brasil colonial as características tradicionais da sociedade africana acabarão por influenciar e permitir o transito da mulher negra nos espaços público/privado na realidade da diáspora, que teve como duas características a criatividade e o sincretismo para resistência e reorganização. Seja como ama de leite, ama seca ou cozinheira, ela ocupará o espaço privado, não se abstendo, no entanto, de transitar pelo público como vendedora de quitutes, escrava de ganho, etc. Desta circulação livre, ainda, se beneficiam os integrantes de diversas etnias que acabam por se organizar para a compra da liberdade, movimento identificado principalmente nos espaços urbanos, como citam Amaral e Bernardo.

As autoras ressaltam que, chama a atenção o fato de que, dentre as diversas funções desempenhadas pela mulher negra no período colonial, o cuidado com o outro sempre esteve presente, “seja na alimentação para as quituteiras, seja no cuidado de crianças, no caso das amas, ou no cuidado espiritual e de saúde das mães de santo e benzedeiras, ou seja, mantém-se ainda a troca material e simbó- lica”, tal e como elas vivenciavam como pessoas livres na África.

10 Idem 134 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

O cuidado como atribuição feminina estará presente e não objetará a liberdade feminina. A independência africana estará presente mes- mo quando o mais cruel dos modos de vida persistir: a escravidão. É da preservação - a duras penas - da sua cultura, que a mulher negra permitirá a si e à sua religião o reconhecimento e o espaço público11. Não é à toa que, no Brasil, o cargo de Ialodê12 ganhará uma ressig- nificação como título religioso do candomblé para as mulheres de grande importância. Seu papel foi extremamente importante para a resistência: ‘(...)as ganhadeiras-escravas ou forras anônimas, à me- dida que circulavam pela cidade, faziam circular também notícias, informações, músicas, orações...recriando, no Brasil, o papel femi- nino de mediadora de bens simbólicos; porém, mais do que isso, articulando escravos e libertos da alienação promovida pelo sistema escravagista’. (BERNARDO, 2003:p.39)

Ainda segundo o escólio de Josélia Ferreira dos Reis e Rita de Cássia Santos Freitas13, a relativa independência destas mulheres negras escraviza- das conduz a uma singular característica de formação dos grupos familiares: a matrifocalidade, consequência do impedimento de formação de grupos co- esos de escravos dado o temor dos senhores de rebeliões. Assim, remetendo ao temor produzido ante a possibilidade da emer- gência dos filhos de escravos como sujeitos de direitos, Bernardo14, citado por Reis e Freitas15, observa que a lei do ventre livre “com o seu pecúlio, nada mais fez do que acentuar uma forma alternativa de família, que tem suas origens na diáspora e seus desdobramentos na escravidão e no pós-abolição”, de modo que, se na África, ressalta, as mulheres viviam com seus respectivos filhos em casas conjugadas à grande casa do esposo, num sistema poligâmico, no Brasil rompeu-se a relação da mulher com o homem, permanecendo a mãe com seus filhos, florescendo a matrifocalidade, cuja vivência sofre significa- tiva diferenciação conforme se trate de mulheres negras e brancas. Para estas a família matrifocal representaria uma vivência sofrida, enquanto que para aquelas foi encarada com satisfação e autonomia. Da conjugação da autonomia, satisfação e matrifocalidade, das quais desfrutavam as mulheres negras escravizadas, surgiram importantes persona- gens para a defesa da identidade feminina de matriz africana: as mães de santo, que, juntamente com suas comunidades, emergirão no cenário nacional ga-

11 REIS, Josélia Ferreira; FREITAS, Rita de Cássia Santos. Ob.Cit. 12 Líder comunitária na sociedade tradicional ioruba 13 REIS, Josélia Ferreira; FREITAS, Rita de Cássia Santos. Ob.Cit. 14 BERNARDO, T. apud REIS, Josélia Ferreira; FREITAS, Rita de Cássia Santos. Ob.Cit. 15 Idem 135 Edelamare Melo (Organizadora) nhando notoriedade a partir do final do século XIX e no início do século XX, pela premente necessidade de resistir e lutar contra a violência e pelo direito de cultuar os deuses de seus antepassados. Para tanto sua maior arma era a con- ciliação, o acolhimento e o cuidado com o outro, características muitas vezes atribuídas ao feminino – e que não significam, necessariamente, passividade, ressaltam Reis e Freitas. Nas palavras de Amaral16, citado pelas autoras:

Enfrentando violências extremas, as comunidades negras organiza- das em torno das mães-de-santo (as famílias de santo) foram capazes de resistir e de preservar seus valores. Estas mulheres souberam, ain- da, abrir espaço na cultura que lhes negava o direito à diferença, sem deixar de receber entre os seus quaisquer pessoas que a elas recorres- sem em busca de conselhos e ajuda espiritual, não discriminando, por sua vez, raça, cor, gênero, ideologia, religião ou classe social.

Neste passo convém destacar os traços distintivos específicos, àquela épo- ca, entre o ser mulher branca e o ser mulher negra. Neste período, segundo a cul- tura então vigente, as mulheres brancas se circunscreviam ao ambiente domésti- co, sequer se lhes reconhendo a maternidade quando do anuncio do nascimento de uma criança. Estas mulheres eram anônimas ou anuladas, salvo na condição de consumidoras de produtos de baixo custo para tratar da sua saúde reprodutiva, ou melhorar o seu aspecto (caso dos cosméticos). De outra parte, sua visibilidade pública ocorria no caso do cometimento de infrações penais. Diversamente, a mulher negra, via de regra mães de santo, eram retratadas como líderes religio- sas que recebiam políticos e intelectuais em seus templos. Assim, a imagem da mulher negra, líder religiosa, articulada a políticos e intelectuais, se contrapôs àquela do homem negro, retratado como “feiticeiro” ou como criminoso, o que não exclui relatos de prisões de negras por roubo, ou vítimas de agressões de agentes dos aparelhos institucionais, destacam Reis e Freitas17. Como observa Amaral18, citado por Reis e Freitas19, a religiosidade per- meia a história das mulheres negras uma vez que “(...) a cultura afro-bra- sileira foi sustentada, em grande parte, pela força feminina nos terreiros e irmandades, de onde se espraiou pela sociedade, passando a constituir alguns dos mais marcantes valores da cultura nacional”. Portanto, do que se trata aqui, é de ressaltar a importância e a influência da mulher de origem africana e afro-religiosa na construção de uma identidade

16 AMARAL, R. apud REIS, Josélia Ferreira; FREITAS, Rita de Cássia Santos. Ob.Cit 17 REIS, Josélia Ferreira; FREITAS, Rita de Cássia Santos. Ob.Cit. 18 AMARAL,R. apud REIS, Josélia Ferreira; FREITAS, Rita de Cássia Santos. Ob.Cit 19 REIS, Josélia Ferreira; FREITAS, Rita de Cássia Santos. De Matriz Africana: Ob.Cit 136 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. de gênero, étnico-racial e religiosa, e as formas como esta presença fortaleceu as práticas religiosas e a sociabilidade de matriz africana na sociedade brasileira. Esta situação sofreu radical transformação com o advento do processo de industrialização e modernização da sociedade, ocorrido na Década de 30. Neste período as mulheres brancas dos estratos médios e médio-alto se aliam à Igreja Católica e ingressam no mercado de trabalho; e, no rastro das ideias feministas que estavam em voga, lutam pelo sufrágio feminino. Inversamente, as mulheres negras continuam levando e lavando roupas nas fontes ou vendendo seus doces, salgados, frutas e flores pelas ruas e mercados. A década de 30 marca, assim, a emergência do movimento feminista, e também, como destacam Reis e Freitas20,

[...] a reviravolta na sociabilidade e na expressão das mulheres negras, posto que as mulheres brancas e de camadas sociais que permitiam o acesso a educação e a melhores condições de vida emergiam no cenário por via dos movimentos feministas, as mu- lheres negras continuavam a ocupar os papéis tradicionais que anteriormente proporcionavam uma brecha estratégica no mun- do do trabalho e na sociabilidade. Não é difícil concluir que as condições para ocupação no mundo do trabalho de lugares mais qualificados se tornassem favoráveis para as mulheres brancas, ainda que com as restrições conhecidas pelo recorte de gênero que permeia os estudos sobre trabalho.

No Centenário da Abolição Abdias do Nascimento21 fez a seguinte ava- liação crítica, que, cremos, ainda permanece atual, embora seja constrangedor reconhecer a triste realidade que vivencia a população negra, em especial as mulheres negras e afro-religiosas.

[...]como esquecer que a República, logo após a abolição, cassou ao ex-escravo seu direito de votar, inscrevendo na Constituição que só aos alfabetizados se concedia a prerrogativa desse direito cívico? Como esquecer que, após nosso banimento do trabalho livre e assalariado, o código penal de 1890 veio definir o delito de vadiagem para aqueles que não tinham trabalho, como mais uma forma de manter o negro à mercê do arbítrio e da violência policiais? Ainda mais, definiram como crime a capoeira, a própria expressão cultural africana. Reprimiram com toda a violência do estado policial as religiões afro-brasileiras, cujos terreiros se vi- ram duramente invadidos, os fiéis e os sacerdotes presos, pelo crime de praticar sua fé religiosa. Temos vivido num estado de

20 REIS, Josélia Ferreira; FREITAS, Rita de Cássia Santos. Ob.Cit 21 NASCIMENTO, Abdias. 13 de maio: Dia de Denúncia contra o Racismo, Minas Gerais, n. 1.098, 7 maio 1988. (Suplemento Literário). 137 Edelamare Melo (Organizadora)

terror: desde 1890, o negro vem sendo o preso político mais igno- rado desse País[...]

Passados tantos anos da chama “abolição” da escravidão, fato é que, os jovens negros são as maiores vítimas de homicídios nos quais corpos negros matam corpos negros, as mulheres negras são as maiores vítimas de feminicídio – mais uma vez corpos negros destruindo corpos negros-; as mulheres negras ocupam os postos de trabalho mais precarizados com percepção de salários in- feriores ao homem ou mulher não negros, embora muitas vezes os superem em nível de escolaridade e, as religiões de matriz africana, em um triste e preocupante retrocesso histórico, estão sendo objeto de perseguição, inclusive por estamentos do Estado, que, tem utilizado de forma arbitrária seu poder de polícia, invadem os terreiros e apreendem objetos de culto, sem falar da ação de criminosos que, em nome de um “Cristo”, que em nada e por nada reflete as lições do verdadeiro Messias, perseguem os religiosos desalojando-os de seus territórios de identidade com violência e grave ameaça: no caso a pena capital... Dada a sua carga que traz consigo pedimos vênia para trazer uma re- flexão de Sueli Carneiro22 sobre a utopia perseguida pela povo negro para alcançar uma igualdade de direitos para além do gênero, raça, cor, etnia, ou qualquer outro fator discriminatório fundados nas reminiscências da escravi- dão, mas ainda atuais: a objetificação e demonialização de sua história, cultura e religiosidade. Objetificação, porque aqui chegaram como um nada e, nada, não possui direitos, não possui história, não possui cultura. Demonialização, porque suas manifestações de cultura e religiosidade não se enquadravam no modelo eurocêntrico da cristandade, a quem pertence a construção do mito do satânico, do demoníaco a partir da figura do “anjo caído”. A afetação do negro à figura do demônio também encontrou reforço no livro bíblico do Gênesis que considera os negros descendentes de Cam, o filho de Noé amaldiçoado por Deus. Neste caso, como ressalta Giralda Seyferth23 “a maldição bíblica é trans- formada em maldição de cor da pele — e a possibilidade de branqueamento em três gerações[...] redime a negra no fenótipo ariano do seu descendente! Assim, a utopia desde sempre perseguida pela população negra segun- do Sueli Carneiro24

22 CARNEIRO, Sueli. “Enegrecer o Feminismo: A Situação da Mulher Negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero”. Disponível em: http://latitudeslatinas.com/download/artigos/enegrecer-o-feminismo-a-situ- acao-da-mulher-negra-na-america-latina-a-partir-de-uma-perspectiva-de-genero.pdf. Acesso em 10/11/2018 23 SEYFERTH,Giralda. A Invenção da Raça e o Poder Discricionário dos Estereótipos. Comunicação apresentada na mesa redonda “Racismo e Identidade Social”, 45a Reunião Anual da SBPC, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 11a 16-7-93. Anuário Antropológico/93 Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1995, p. 185 24 CARNEIRO, Sueli. Ob.Cit. 138 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

[...]consiste em buscar um atalho entre uma negritude redutora da dimensão humana e a universalidade ocidental hegemôni- ca que anula a diversidade. Ser negro sem ser somente negro, ser mulher sem ser somente mulher, ser mulher negra sem ser somente mulher negra. Alcançar a igualdade de direitos é con- verter-se em um ser humano pleno e cheio de possibilidades e oportunidades para além de sua condição de raça e de gênero. Esse é o sentido final dessa luta25.

Neste passo, e para compreender a realidade vivenciada pelas mulheres negras e afro-religiosas faz-se necessário a abertura de um parágrafo para referir ao passado e à realidade atual que elas vivenciam em razão de sua orientação religiosa. Estes seres humanos, independente do seu gênero, aqui chegaram com seus corpos negros escravizados e denegridos em sua condição humana e eram obrigados à conversão pelo batismo à religião cristã, oportunidade na qual tam- bém se lhes eram atribuídos nomes cristãos, com o que pretendia-se romper toda a sua ligação com sua ancestralidade, cultura, história, e religiosidade, que não convertia para a ideia de dois mundos: o céu e a terra, mas, de um único mundo, coeso e harmônico criado e regido por um único Deus: o mundo da natureza. Portanto, as religiões de matriz africana são monoteístas e, como as demais que professam a esta crença, se assenta na idéia de um Deus único, Olodumare. As religiões de matriz africana não acreditam na existência de uma força maligna, que se opõe à uma força benigna, e que nega a ideia de Deus e do sacrifício de seu único filho: Jesus. Não obstante, por ignorância e desconhecimento, o senhor de escravos – como hoje os neopentecostais o fazem - lhes incutia a ideia cristã de pecado a ser redimido. No caso dos se- nhores escravocratas apelava-se pela redenção pelo trabalho forçado. Neste aspecto, Abdias Nascimento26, na sua célebre obra “O Genocídio do Negro Brasileiro: Processo de um Racismo Mascarado”, ressalta a impor- tância do papel exercido pela Igreja Católica como o “principal ideólogo e pedra angular para a instituição da escravidão em toda a sua brutalidade”. Destaca o autor o papel desempenhado por seus missionários na colonização da África que “não se satisfez com a conversão dos “infiéis”, mas prosseguiu, efetivo e entusiástico, dando apoio até mesmo à crueldade, ao terror do de- sumano tráfico negreiro”. À continuação cita uma pregação aos escravos do padre jesuíta Antônio Vieira27, tido e havido como exemplo de piedade e de caridade na Bahia de 1633:

25 Idem 26 NASCIMENTO, Abdias. O Genocídio... pp 62-63. 27 VIEIRA, Antonio apud NASCIMENTO, Abdias, ob. Cit.p.62 139 Edelamare Melo (Organizadora)

Escravos, estais sujeitos e obedientes em tudo a vossos senhores, não só aos bons e modestos, senão também aos maus e injustos [...] porque nesse estado em que Deus vos pôs, é a vossa vocação semelhante à de seu Filho, o qual padeceu por nós, deixando-vos o exemplo que vos haveis de imitar. [...] Deveis dar infinitas graças a Deus por vos ter dado conhecimento de si, e por vos ter tirado de vossas terras, onde vossos pais e vós vivíeis como gentios, e vos ter trazido a esta, onde, instruídos na fé, como cristãos e vos salveis.

Em outro Sermão, também citado por Abdias, o Padre Antonio Vieira verbera que “Um etíope que se lava nas águas do Zaire, fica limpo, mas não fica branco: porém na do batismo, sim, uma coisa e outra”. Quanto a esta observação Abdias observa que, segundo a oratória do Padre Antonio Vieira: “[...] as águas do batismo cristão possuíam as diversas virtudes justificativas do escravizamento do africano e, mais, ainda, tinha o poder mágico de erradi- car a própria raça- um desraçado limpo e branco!”28 Observa Abdias Nascimento que se o desejo maior dos cristãos era a salvação pela imitação de Cristo- caminho direto para o céu- o ramo protes- tante teria atuado na mesma direção traduzindo-se em mera ideologia à servi- ço do opressor. Neste passo o autor evoca as palavras proferidas àquela época pelo Pastor inglês Morgan Goldwin29:

O Cristianismo estabeleceu a autoridade dos senhores sobre seus servos e escravos em tão grande medida como a que os próprios senhores poderiam havê-la prescrito[...]exigindo a mais estrita fidelidade[...] exigindo que se os sirva com o coração puro como se servissem a Deus e não aos homens [...] E está tão longe de fomentar a resistência que não permite aos escravos a liberdade de contradizer ou a de replicar de forma indevida a seus senho- res. E lhes promete a recompensa futura no céu, pelos leais ser- viços qu.e tenham prestado na terra.

Atualmente este processo de conversão e redenção, a partir da ideia de pecado e de luta contra o demônio, é reeditado pela igrejas de denominação neopentecostal – diríamos nós de forma mais perversa- , como se constata do estudo realizado por Vagner Gonçalves da Silva30, professor do departamento de antropologia da USP, que classifica estas ações segundo os seguintes crité-

28 Idem 29 GOLDWIN, Morgan apud NASCIMENTO, Abdias, ob.cit. p.63 30 SILVA, Vagner Gonçalves da. Neopentecostalismo e religiões afro-brasileiras: Significados do ataque aos símbolos da herança religiosa africana no Brasil contemporâneo. In: Mana vol.13 no.1 Rio de Janeiro Apr. 2007. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-93132007000100008&script=sci_arttext. Acesso em 16.11.2018 140 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. rios: 1. Ataques feitos no âmbito dos cultos das igrejas neopentecostais e em seus meios de divulgação e proselitismo, que têm como ponto de partida uma teologia assentada na idéia de que a causa de grande parte dos males deste mun- do pode ser atribuída à presença do demônio, que geralmente é associado aos deuses de outras denominações religiosas. Segundo esta visão cabe aos fiéis dar prosseguimento à obra de combate a esses demônios iniciada por Jesus Cristo: “Para isto se manifestou o Filho de Deus: para destruir as obras do diabo” (1 João 3:8).; 2. Agressões físicas in loco contra terreiros e seus membros, que, insulados pela crença antes referida, invadem terreiros visando destruir altares, quebrar imagens e “exorcizar” seus freqüentadores, o que geralmente termina em agressões físicas; 3. Ataques às cerimônias religiosas afro-brasileiras rea- lizadas em locais públicos ou aos símbolos destas religiões existentes em tais espaços, quando os adeptos ficam mais expostos a esses ataques, que englobam desde a simples distribuição aos presentes de panfletos com propaganda contra esses cultos até a tentativa de interrupção forçada dos rituais, com uso de violên- cia física, inclusive; 4. Ataques a outros símbolos da herança africana no Brasil que tenham alguma relação com as religiões afro-brasileiras, são estigmatizados e combatidos. Outra face da desqualificação desses símbolos é paradoxalmen- te, a sua “incorporação” nas práticas evangélicas, porém dissociando-os de sua relação com as religiões afro-brasileiras. Neste contexto, como observa o autor, surge a capoeira de Cristo, evangélica ou gospel, em cujas letras não há refe- rências aos orixás ou aos santos católicos; 5. Ataques decorrentes das alianças entre igrejas e políticos evangélicos com a crescente eleição de candidatos evangélicos ou de aliados dessas igrejas. Neste caso, a batalha contra outras denominações religiosas se reflete ou se ampara no campo da representação po- lítica, de modo que, políticos evangélicos, aproveitando-se do poder decorrente desta investidura, articulam ações antagônicas ao desenvolvimento das religiões afro-brasileiras; e, finalmente, 6. As reações públicas (políticas e judiciais) dos adeptos das religiões afro-brasileiras, que ainda estão muito longe de represen- tar um movimento articulado que faça frente à organização dos evangélicos neopentecostais, que cada vez mais se empenham em ocupar espaços estraté- gicos nos meios de comunicação e nos poderes Legislativo e Executivo, mas, também, no poder Judiciário, no Ministério Público e na Defensoria Pública. Ainda é Vagner Gonçalves da Silva31 quem destaca como principal ca- racterística do neopentecostalismo, derivada da sua crença no sentido de que é imperativo eliminar a presença do demônio do mundo: “classificar as ou-

31 GONÇALVES, Vagner. Ob. Cit. 141 Edelamare Melo (Organizadora) tras denominações religiosas como pouco engajadas nessa batalha” ou “como espaços privilegiados da ação dos demônios, os quais se “disfarçariam” em divindades cultuadas nesses sistemas”, com destaque para as religiões de matriz africana, cujos deuses são vistos como manifestações dos demônios. Outra face desse processo que é destacada pelo autor “é a ‘incorporação’ da liturgia afro-brasileira nas práticas neopentecostais de algumas igrejas”. Desta herança e situação atual de perseguição aos afro-religiosos tem- se que as mulheres negras e afro-religiosas são alvos constantes de precon- ceito, racismo, intolerância e discriminação de gênero – como toda e qualquer mulher- e étnico-religiosa. Assim, o tema da igualdade no trabalho na perspectiva das relações de gênero, étnico-raciais e religiosas no Brasil tem relevância conjuntural e histórica, uma vez que o trabalho foi inicialmente utilizado no país como fer- ramenta de redenção, opressão e aprisionamento da população negra. Nesse sentido, poder ressignificá-lo como catalisador da igualdade é um passo rele- vante para as relações étnico-raciais e religiosas no país. Desde esta perspectiva, o conhecimento sobre as formas como as desi- gualdades de gênero e étnico-raciais-religiosas se produzem e reproduzem é condição para que elas possam ser enfrentadas, razão pela qual, para compre- ender a realidade da mulher negra no universo do trabalho é preciso conhecê-la a partir de quem as vivi, porque só elas podem falar de suas dores e cicatrizes, suas angústias, tristezas, decepções.... A nós, que ouvimos, resta exercitar a capacidade da empatia, de se colocar no lugar do outro para aferir o que sen- tiríamos se estivéssemos naquele lugar de vida. No caso, no lugar da mulher negra e afro-religiosa que, ontem, como hoje, no seu cotidiano, enfrenta todas as formas de preconceito, racismo, intolerância e discriminação de gênero, cor, raça, etnia e orientação religiosa, ainda que possua escolaridade, capacidade e qualificação técnica para ocupar um posto de trabalho e, que, pelo só fato de sua identidade, é preterida por alguém que seja não-negra, não-afro-religiosa. Preconceito, racismo, intolerância e discriminação que se manifestam sob as mais variadas formas de violência física e/ou moral e que se estendem aos seus filhos. Neste momento é imperativo reconhecer e afirmar a intrínseca relação entre desigualdades de gênero, étnico-raciais e religiosas no contexto da edu- cação superior, do mercado de trabalho e renda, da pobreza, do acesso a bens e serviços públicos de qualidade, da exclusão digital e da violência, as quais, à sua vez, se articulam com a situação de classe, geracional, regional, e com a dinâmica temporal destes fenômenos na realidade brasileira. Reconhecendo,

142 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. de plano, esta articulação, será possível construir mecanismos que permitam a conformação desta perversa distribuição desigual socioeconômica, cultu- ral e política, o que exige um efetivo compromisso com o rompimento das desigualdades étnico-raciais e de gênero, e com a desconstrução de papéis pré-concebidos e estereótipos, por intermédio da ação formativa, educativa e afirmativa, que possuem caráter reparador de lesões perpetradas a séculos. Dito isto, imagine a situação de ser apedrejada por intolerância religio- sa – como ocorreu com uma menina de 11 anos - Kailane Campos-, no Subúrbio do Rio de Janeiro. Na oportunidade Kailane declarou que esta não foi sua maior cicatriz, mas, sim, o medo de morrer. “Achei que ia morrer. Eu sei que vai ser difícil. Toda vez que eu fecho o olho eu vejo tudo de novo. Isso vai ser difícil de tirar da memória”32. Seu pecado, seu crime, foi estar vestida de branco e carregar contas no pescoço, que, para o candomblecista, não são apenas símbolos de proteção, são manifestações de atributos próprios, características individuais que emanam para além delas, mas, por meio delas, se expressam. Imagine perder uma oportunidade de trabalho pelo só fato de sua cor de pele e/ou sua religião; Imagine não ser atendida por um médico pelo só fato de sua cor e/ou religiosidade; Imagine ser agredida em um transporte público pelo só fato de usar indumentárias próprias de sua religião; Imagine-se como mãe/ pai vendo seu filho ou filha sofrer diuturnamente bulling em razão de sua cor da pele e/ou religião, de seu cabelo; Imagine não ter sossego quando seu filho(a) negro(a) sai às ruas com o risco de não voltar porque vitimado por uma desas- trosa ação policial que lhe tolhe a tenra vida; Imagine ser preterida em uma promoção na empresa em razão da sua cor de pele e/ou religiosidade; Imgine perceber salário inferior ao pago a uma pessoa não-branca, seja ela homem ou mulher; Imagine seu empregador lhe sugerir alisar seus cabelos ou cortá-lo como condição para permanência no emprego, ou, ainda, sofrer pressões para deixar o emprego por meio de imputações de fatos falsos, tais como a respon- sabilização pelo sumiço de produtos de trabalho que nunca sumiram... Imagine ser submetida(o) a tantas outras formas de violação de direitos com as quais diuturnamente vivem e convivem as mulheres negras, notada- mente a exigência de, a cada fração de segundo de sua vida, ter que lutar contra as mais variadas formas de preconceito, racismo, intolerância e discriminação e de ter que se afirmar e reafirmar como um sujeito de direitos que, como tal, merece respeito e tratamento aos seus iguais na sua condição humana...Imagine não ter paz, estar sempre em alerta, porque não sabe de onde virá o próximo

32 Confira-se reportagem e vídeo em: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/06/menina-vitima-de-intole- rancia-religiosa-diz-que-vai-ser-dificil-esquecer-pedrada.html 143 Edelamare Melo (Organizadora) ato de preconceito, racismo, intolerância e discriminação...Imagine viver em uma pseudo-democracia racial e ser detentor, por força da natureza, da cor “negra”, vocábulo que a língua portuguesa adjetiva com sentidos negativos e estigmatizantes, e que o racismo associa à pessoa negra... Consoante Abdias Nascimento33, “na mais proeminentemente autoriza- da tradução inglês-português, o New Appleton Dictionary of the English and Portuguese Language” “negro” apresenta as seguintes definições:

Black(black).I.s. preto, negro (cor, raça); mancha; luto.-in bl.(- com.) com saldo credor do lado do haver, sem dívidas. II.a.,pre- to; negro; escuro; sombrio; lúgubre; tétrico; tenebroso; sinistro; mau; perverso; hostil; calamitoso; desastroso; mortal; maligno. III.vt e vi., enegrecer; pintar de preto; engraxar (sapato, etc.) de preto; desenhar em negro; manchar; difamar[...]

Imagine ser visto como exteriorização destes sentidos e significados e levar consigo esta carga negativa atribuída à palavra “negro”, por aqueles beneficiários do mito da “democracia racial”, uma democracia cuja artificio- sidade, no dizer de Abdias Nascimento34:

[...] se expõe para quem quiser ver; só um dos elementos que constituíram detém todo o poder em todos os níveis político-e- conômico-sociais: o branco. Os brancos controlam os meios de disseminar informações; o aparelho educacional; ele formulam os conceitos, as armas e os valores do país. Não está patente que neste exclusivismo se radica o domínio quase absoluto des- frutado por algo tão falso quanto essa espécie de “democracia racial”? Os efeitos negativos desse exclusivismo se expressam de formas várias, inclusive no veículo condutor de uma cultura e sua cosmovisão: a língua.

Agregue-se a tudo o que até aqui foi dito a necessidade de alguém negar a sua identidade de cor e religiosidade para se incluir no universo que lhe ex- clui por força do preconceito, do racismo, da intolerância e da discriminação de gênero, raça, cor, etnia, religiosidade. Isto é um fato que foi identificado em um censo do IBGE, e que foi objeto de análise pelos repórteres do Estado de São Paulo, Edison Veiga e Rodrigo Burgarelli, em 7 de março de 2017 , cuja reportagem recebeu o seguinte título: ‘Faltam’ 2,5 milhões de mulheres pretas e pardas no País, segundo IBGE35. Intrigados com referidos dados es-

33 NASCIMENTO, Abdias. Ob. Cit. pp 54-55. 34 Idem. p. 54 35 VEIGA, Edison, e BURGARELLI ,Rodrigo. O Estado de S. Paulo. ‘Faltam’ 2,5 milhões de mulheres pretas e 144 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. tatísticos os jornalistas empreenderam uma pesquisa para tentar compreender o fenômeno destacando como premissa que, historicamente, as mulheres de- claram ser mais brancas que o sexo oposto, diferença que se manteve mesmo durante o expressivo crescimento do número de brasileiros que afirmavam serem pardos ou pretos na última década: a proporção cresceu de 45% para 55% de 2001 para 2015. Na PNAD referida na reportagem, 53% das mulhe- res se declaram não brancas, ante quase 56% dos homens. Noticia, ainda, a reportagem, que, para o então pesquisador da Coordenação de População e Indicadores Sociais do IBGE Leonardo Athias, “não há pesquisa suficiente no Brasil para conseguir entender exatamente porque as mulheres parecem ter tendência de se imaginarem, na média, mais brancas do que são”. Aponta a reportagem que uma das causas para este fenômeno seria a questão cultural posto que, nos Estados do Norte e do Nordeste como Ron- dônia, Piauí, Roraima e Bahia, a proporção de brancos, pretos e pardos é praticamente igual, diversamente do que ocorre em Estados do Sul e do Su- deste, como Santa Catarina, Paraná e Rio. Outro fator a ser considerado na hipótese, salienta a reportagem, é a escolaridade. Quanto mais anos de estudo a mulher possui, maior a chance de ela se declarar não branca. A maior di- ferença proporcional entre mulheres e homens que se declaram brancos está no grupo que não concluiu o ensino fundamental: as brancas têm 3,2 pontos porcentuais a mais. Entre a população com curso superior completo, o gráfico se inverte – 26% das mulheres declararam ser negras ou pardas, número su- perior aos 23% referente aos homens dessa escolaridade. Para compreender o processo de transformação na percepção da pró- pria raça realizou-se processo de escuta com mulheres que viveram essas mudanças ou eram símbolos para esse grupo. Perguntadas sobre as razões que explicariam a diferença entre homens e mulheres na hora de declarar sua raça, a resposta foi praticamente unânime, destaca a reportagem: “É difícil para a mulher assumir-se preta ou parda. Há um discurso cultural dominante, uma construção do padrão de beleza com base em um embranquecimento”, avaliou a jornalista consultada pela reportagem, Viviane Duarte, criadora do projeto Plano Feminino. A reportagem é finalizada com avaliações da advogada Mayara Sou- za, fundadora do grupo Negras Empoderadas, e da atriz Taís Araújo. Afirma Mayara que “A mulher negra está na base da pirâmide social, por ser mulher e por ser negra. É natural que ela tente se afastar dessa imagem” [...] ; e, ao pardas no País, segundo IBGE.7.3.2017. Disponível em: https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,faltam-2-5-mi- lhoes-de-mulheres-pretas-e-pardas-no-pais-segundo-dados-do-ibge,70001689376. Acesso em 15.11.2018 145 Edelamare Melo (Organizadora) seu turno, Taís Araújo pontua: “Ser mulher negra neste País é muito difícil. Entendo profundamente as pessoas que tentam se aproximar de uma realida- de que não é delas”. Ou seja, trata-se de uma triste rota de fuga dos estigmas que recaem sobre a mulher negra. Uma tentativa de negar aquilo que se lhe imputa como características negativas. A partir deste contexto tentemos refletir sobre as seguintes narrativas de preconceito, racismo, intolerância e discriminação nas relações de trabalho e como elas podem afetar a saúde da mulher negra, sua qualidade de vida, sua autoestima, sua dignidade, enfim. Primeira narrativa: Larissa Neves, estudante de psicologia, quando ti- nha 18 anos conseguiu emprego como recepcionista em uma empresa mul- tinacional, mas acabou tendo que sair por não suportar os ataques e piadas preconceituosas por ser negra. Relata Larissa que “Na época eu estava come- çando meu processo de transição, tinha parado de relaxar o cabelo e cortei ele bem curtinho. Quando ele começou a crescer começaram a dizer que minha aparência não era compatível com o trabalho, me questionaram se eu não iria relaxar o cabelo. Até que um dia eu estava na sala e começaram, além de fazer piada, a colocar objetos do escritório na minha cabeça”36. Segunda narrativa, dentre muitas outras...

História 1: Meu primeiro emprego depois de me tornar uma mãe solteira37 Eu lembro bem dessa experiência, pra ser bem sincera nunca consigo esquecer. Eu tinha 24 anos, um filho de três meses para sustentar e nenhuma grana no banco. Tinha saído de uma expe- riência de trabalho precário antes da gravidez e pedia a todos os santos por um emprego. Quando esse emprego apareceu e eu agradeci aos céus e fui com toda a minha dedicação trabalhar agradecida e pela certeza de que agora eu ia poder cuidar e suprir toda as necessidades do meu filho. Sou pedagoga e fui contratada por uma empresa relativamente nova, para elaborar projetos pe- dagógicos; no escritório todas as pessoas eram brancas, eu ia ser a primeira negra por ali; No final de uma agitada primeira sema- na de trabalho (duas vezes me ligaram propondo que eu chegas- se mais cedo pois havia muito que escrever) vivi uma das mais dolorosas experiências da minha vida: Uma das sócias proprietá-

36 THÂMARA, Thamyra. Mulher negra ainda é mais discriminada no trabalho. Homens brancos ganham mais que mulheres brancas, mulheres brancas ganham mais que homens negros. e mulheres negras ganham menos que todos. In: Maré Online. Disponivel em: http://redesdamare.org.br/mareonline/2017/11/29/mulher-negra-ainda-e-mais-dis- criminada-no-trabalho/. Acesso em 15.11.2018 37 SANTIAGO, Viviana. Diário de Uma Mulher Negra no Mercado de Trabalho. In: geledes.org.br.21.8.2017. Dispo- nivel em: https://www.geledes.org.br/diario-de-uma-mulher-negra-no-mercado-de-trabalho/. Acesso em 11.11.2018 146 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

rias me chama para conversar: tece elogios a minha prática, que minha escrita era muito boa, que eu era muito educada e tinha maneiras excelentes ao telefone (?!) mas ela precisava fazer uma observação: eu tinha um cheiro que incomodava as pessoas, que algumas pessoas já tinham pedido sua intervenção…me dizia que sabia que era uma situação constrangedora; Eu me lembro de ficar ali, sem palavras, prendendo o choro, mas vinha mais: ela me diz que está chateada com a situação, mas eu precisava entender que tentavam manter o escritório num nível muito alto, pois recebiam muitas pessoas muito importantes, mas ela gosta- va muito do meu trabalho, por isso, me informa, ela decidiu en- tender que as vezes, algumas pessoas tem um cheiro muito forte e me oferece um dos seus desodorantes. Eu lembro muito bem da minha sensação, sentia uma vergonha, os olhos ardendo, das lágrimas que eu tentava reprimir, a voz não saia… Me senti tão humilhada; na volta pra casa arrasada, a sensação de vergonha e de estar inadequada me seguindo a cada passo, a vontade de não voltar ao trabalho no outro dia… Mas desistir não era uma opção, tinha um filho pra criar e alimentar, não podia abrir mão do salário. E assim engoli as lágrimas e voltei ao trabalho às 7h da manhã seguinte. Depois de algumas semanas, toda a equipe viajou e eu fiquei sozinha no escritório, nessa tarde, por volta das 14h um dos sócios chega e precisa resolver muitos assuntos de pagamento, e ele me perguntou se eu podia ir ao banco descontar um cheque. O banco ficava a uns 10 minutos de caminhada do escritório, fui, com uma sensação de inquietude, porque eu esta- va fazendo aquela tarefa? Eu havia sido contratada para escrever projetos, será que ele pediria isso à coordenadora branca caso ela estivesse sozinha no escritório? Fui ao banco, enfrentei uma fila enorme e saquei o dinheiro. Nova caminhada até o escritório. Entreguei o dinheiro e voltei a minha sala para trabalhar. Um mi- nuto depois o sócio chega a minha sala, irado, diz que está faltan- do dinheiro. Me pergunta se eu não vi. Eu disse que não, ele me diz que quer o dinheiro completo, e decide ir comigo até o banco para pedir que o atendente do caixa lhe entregue a diferença. Vou com ele. Na rua ele vai irritado, reclamando. Ao chegar ao banco, informo ao atendente do caixa o que aconteceu, ele me diz que só pode me entregar a diferença de valor no final do dia, quando conferir seu caixa e observar que está sobrando. Informo isso ao chefe, que decide voltar ao escritório e me deixa no banco espe- rando. E eu esperei, esperei por muito tempo, por horas. Até o banco fechar, até que o banco fechou e não havia quase ninguém lá dentro. Um gerente se aproxima e ao me ver ali em pé perto do caixa, pergunta o que estava havendo, diante da explicação, ele pergunta quanto é que está faltando. Eu informo, ele se espanta, puxa sua carteira, tira 10 reais e me entrega. Fico mais uma vez

147 Edelamare Melo (Organizadora)

paralisada. Uma vergonha, me sentindo tão humilhada. Pego seu dinheiro e volto ao escritório. Já era noite. Entrego o dinheiro e aviso que se não houver mais nada, vou organizar minhas coisas para ir pra casa. Quando chego ao ponto de ônibus, meu celular toca. O chefe pede que eu volte ao escritório. Chegando lá em cima, vou a sua sala e ele está irado, me perguntando pelo dinhei- ro. Onde foi que guardei? Eu digo que entreguei a ele e que vi quando ele colocou no bolso da camisa. Ele apalpa o bolso, deve ter sentido o dinheiro, porque olha para mim e somente diz seco: desculpe, lembrei. Eu desço mais uma vez, vou chorando o ca- minho inteiro, agora não tinha nenhuma duvida, ele achava que eu tinha roubado o dinheiro. Ele achava que eu, a única pessoa negra do escritório, tentei por duas vezes naquele dia roubar seu dinheiro. Fui durante todo o caminho chorando, perto de casa, enxugo meu rosto, quando abro o portão, minha irmã vem sorri- dente me entregar meu bebê; às pressas termino de me recompor. É dia 05 de agosto: estavam me esperando para comemorar meu aniversário.

As terceira e quarta narrativas foram colhidas no trabalho de Júlia Si- mões Neris38 que tem como título “Intolerância Religiosa nas relações de trabalho: proteção ao povo de Santo”, única bibliografia encontrada sobre a intolerância religiosa nas relações de trabalho contra a mulher adepta de re- ligião de matriz africana, o que comprova a invisibilidade desta problemática, tributária do medo das vítimas da banalização da violência, que, de fato e de direito, já é vivenciada com o acirramento dos discursos de ódio e das perse- guições por eles sofridas por grupos evangélicos fundamentalistas e sectários. A esta circunstância - que também justifica a ausência de estatísticas- se soma a postura dos candomblecistas no sentido de preferirem não buscar o auxílio do aparato do Estado para não expor a sua religião por medo de repre- sália, notadamente o assédio, mas, também, por nele não acreditar dada a falta de respostas institucionais em relação as graves violações de direitos sofridas diuturnamente. Como observa a autora39:

Essas pessoas compõem uma zona cinzenta na sociedade, a qual torna senso comum o conhecimento acerca da existência do pre- conceito, mas não se dimensiona os danos provocados tanto à coletividade quanto ao indivíduo gerados pela intolerância. Quando analisamos a ocorrência de abuso de direitos por parte de empregadores ou colegas de trabalho contra candomblecis-

38 NERIS, Júlia Simões. Ob.Cit 39 Idem. p.185 148 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

tas, o silêncio acerca do preconceito pode surgir por diversos motivos segundo os entrevistados: medo do desemprego, medo de agravamento da situação de assédio.

Vejamos as narrativas: Terceira narrativa:

No processo número 01786-2013-016-10-00-6, TRT-10, julgado em primeira instância pela Magistrada Luiza Fausto Marinho de Medeiros e em sede de recurso teve como relator Maria Regina Machado Guimarães, é possível analisar com maior profundidade a ocorrência, no caso concreto, desse tipo de conflito entre o po- der diretivo do empregador e a liberdade de crença do empregado. Segundo consta nos autos, a Autora foi vítima de despedida sem justa causa motivada por circunstâncias discriminatórias de cunho religioso, dado o fato de a ela terem sido atribuído os caracteres de “Macumbeira” e “Mão de Santo” por colega de profissão (coorde- nadora do colégio o qual a Autora era professora). A partir disso, foi vítima de constrangimento pelos demais colegas. A Autora susten- ta ainda, afirmação reiterada por testemunhas, que foi questionada pela empregadora sobre a verdade dos boatos acerca de suas práti- cas religiosas e, mediante confirmação, seria despedida.

Quarta narrativa

Gilmara Santos, professora de filosofia de escola particular em Salvador-Ba, na constância do contrato de emprego, era even- tualmente vítima de comentários de conotação depreciativa como “Macumbeira” e “Mulher do torço” por parte de colegas de trabalho e estudantes. Em dado momento, isso chegou a ser suscitado por alguns colegas com caráter vexatório em reuniões de professores, em seu período de iniciação no Candomblé, no qual as vestes características da religião eram mais expressivas. A partir de então, Gilmara passou a ter de se posicionar constan- temente em face do preconceito dentro da escola, trazendo para a sala de aula discussões sobre religiosidade e tolerância. Além disso, houve casos de alguns pais tirarem as crianças da escola devido à presença da educadora, pois, nas palavras dela, alega- vam que a diretora estava “colocando gente que tem parte com o diabo para dar aula” e não manteriam as crianças na escola se Gilmara continuasse a ministrar aulas na instituição. A resposta da escola foi não permitir o preconceito, perpetuando o contra- to de emprego de Gilmara e lhe dando discricionariedade para trabalhar o tema religiosidade dentro da disciplina por ela mi- nistrada. Ela relata ainda que a escola tinha inúmeros estudantes candomblecistas que não se apresentavam enquanto tal, filhos de 149 Edelamare Melo (Organizadora)

babalorixás inclusive, pois não se sentiam protegidos ou iden- tificados. A partir do momento que ela começou a se reafirmar enquanto mulher negra e candomblecista, essas crianças encon- traram espaço para manifestar seu credo sem vergonha ou medo.

Porque é assim, para enfrentar a questão relativa às barreiras de acesso da mulher negra e afro-religiosa no mundo do trabalho, é necessário fixar uma premissa necessária, a saber: a questão do gênero é uma variável teórica que não pode ser alijada de outros eixos de opressão – raça, cor, etnia, orientação sexual, identidade de gênero e orientação religiosa- , portanto, não admite uma única forma de enfrentamento, tão pouco que se olvide do fato de que vivemos em uma sociedade multirracial, pluricultural e racista. Como salienta Sueli Carneiro40 : “A origem branca e ocidental do feminismo estabeleceu sua hegemonia na equa- ção das diferenças de gênero e tem determinado que as mulheres não brancas e pobres, de todas as partes do mundo, lutem para integrar em seu ideário as espe- cificidades raciais, étnicas, culturais, religiosas e de classe social”. Portanto, para que possua utilidade prática o enfrentamento da questão objeto deste estudo é necessário considerar que à variável gênero outras de- vem ser agregadas outras tão estigmatizantes como o gênero: raça, cor, etnia, orientação sexual, identidade de gênero e religião. Isto porque, a mulher negra, ademais de enfrentar os agravos decorrentes do fato de ser mulher, enfrenta ou- tros embates que não se restringem ao enfrentamento da hegemonia masculina, mas, também, de um sistema de privilégios para a mulher branca e de formação eurocristã, que a ela não são extensíveis por uma série de fatores históricos: a escravidão negra no Brasil e seus efeitos deletérios para a construção de uma cidadania; sócio-econômicos, a exclusão social e produtiva decorrente da falta de acesso a bens e serviços que lhes assegure condições de vida digna; cultu- rais, marcado pela cultura cristã e pelo eurocentrismo, que nega a identidade da cultura negra herdada dos nossos ancestrais africanos escravizados pelo sim- ples fato que aqui chegaram como objetos, portanto tidos como destituídos de cultura, história, tradição, religiosidade, afetos e emoções; e políticos, a falta de representatividade, que conduz à falta de legitimação dos seus direitos e o cerceio de garantia e de direitos fundamentais, e culturais. Desde esta perspectiva tem-se que as lutas das mulheres tal e como propugnadas pelos movimentos feministas para ter caráter de universalida- de exigem transversalidade e interseccionalidade para abarcar não apenas as questões de gênero, mas, também, étnico-raciais, religiosas, culturais, de

40 CARNEIRO, Sueli. Ob.Cit. 150 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. orientação sexual e identidade de gênero pela elementar razão de que vive- mos em uma sociedade multirracial, pluricultural e racista. De mais a mais, não existem mulheres e “mulheres”. Existem mulheres de diversas cores e matizes etno-raciais, religiosas, culturais, de orientação sexual e identidade de gênero. Sueli Carneiro41, citando Lélia Gonzalez, faz referência a dois tipos de dificuldades para as mulheres negras, a saber: a inclinação eurocentrista do feminismo brasileiro, que omite a natureza central da questão racial nas hierarquias de gênero e universaliza a cultura ocidental para o conjunto das mulheres sem proceder à necessária mediação com base na interação entre brancos e não brancos; e - o que nos parece ser consequência do primeiro- o distanciamento da realidade vivenciada pela mulher negra e afro-religiosa, negando toda a sua história de lutas e resistências na qual estas mulheres são e foram protagonistas em razão da dinâmica de uma memória cultural ancestral que não se confunde, em nada e por nada, com o eurocentrismo que orienta este tipo feminismo. Em sequência, com Patrícia Collins, destaca a autora citada os temas fundamentais que caracterizariam o ponto de vista feminista negro: o legado de uma história de luta, a natureza interconectada de raça, gênero e classe e o combate aos estereótipos ou “imagens de autoridade. Confira-se:

“[...] por um lado, a inclinação eurocentrista do feminismo bra- sileiro constitui um eixo articulador a mais da democracia ra- cial e do ideal de branqueamento, ao omitir o caráter central da questão da raça nas hierarquias de gênero e ao universalizar os valores de uma cultura particular (a ocidental) para o conjunto das mulheres, sem mediá-los na base da interação entre brancos e não brancos; por outro lado, revela um distanciamento da rea- lidade vivida pela mulher negra ao negar “toda uma história feita de resistência e de lutas, em que essa mulher tem sido protago- nista graças à dinâmica de uma memória cultural ancestral (que nada tem a ver com o eurocentrismo desse tipo de feminismo)”. Nesse contexto, quais seriam os novos conteúdos que as mulhe- res negras poderiam aportar à cena política para além do “toque de cor” nas propostas de gênero? A feminista negra norteame- ricana Patricia Collins argumenta que o pensamento feminista negro seria “(…) um conjunto de experiências e idéias compar- tilhadas por mulheres afro-americanas, que oferece um ângulo particular de visão de si, da comunidade e da sociedade… que

41 CARNEIRO, Sueli. Ob.Cit. 151 Edelamare Melo (Organizadora)

envolve interpretações teóricas da realidade das mulheres ne- gras por aquelas que a vivem…” A partir dessa visão, Collins elege alguns “temas fundamentais que caracterizariam o ponto de vista feminista negro”. Entre eles, se destacam: o legado de uma história de luta, a natureza interconectada de raça, gênero e classe e o combate aos estereótipos ou “imagens de autoridade”.

Assim, ainda uma vez com Sueli Carneiro42, temos que um feminismo negro “tem como principal eixo articulador o racismo e seu impacto sobre as relações de gênero, uma vez que ele determina a própria hierarquia de gênero em nossas sociedades”. Neste sentido observa a autora que, para a mulher negra:

[...] se impõe uma perspectiva feminista na qual o gênero seja uma variável teórica, mas como afirmam Linda Alcoff e Elizabeth Pot- ter, que não “pode ser separada de outros eixos de opressão” e que não “é possível em uma única análise. Se o feminismo deve liberar as mulheres, deve enfrentar virtualmente todas as formas de opressão”. A partir desse ponto de vista, é possível afirmar que um feminismo negro, construído no contexto de sociedades mul- tirraciais, pluriculturais e racistas – como são as sociedades latino -americanas – tem como principal eixo articulador o racismo e seu impacto sobre as relações de gênero, uma vez que ele determina a própria hierarquia de gênero em nossas sociedades.

Portanto, como salienta Sueli Carneiro, “a unidade na luta das mulhe- res em nossa sociedade não depende apenas da capacidade de superar as desigualdades geradas pela histórica hegemonia masculina”. Requer mais como pressuposto de legitimação da luta. Requer, ou melhor dito, exige

“[...] a superação de ideologias complementares desse sistema de opressão, como é o caso do racismo, que estabelece uma in- ferioridade social dos segmentos negros da população em geral e das mulheres negras em particular, operando como fator de divisão na luta das mulheres pelos privilégios que se instituem para as mulheres brancas”. Nessa perspectiva, a luta das mu- lheres negras contra a opressão de gênero e de raça vem dese- nhando novos contornos para a ação política feminista e anti-ra- cista, enriquecendo tanto a discussão da questão racial, como a questão de gênero na sociedade brasileira. Esse novo olhar feminista e anti-racista, ao integrar em si tanto as tradições de luta do movimento negro como a tradição de luta do movimento de mulheres, afirma essa nova identidade política decorrente da

42 CARNEIRO, Sueli. Ob.Cit. 152 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

condição específica do ser mulher negra. O atual movimento de mulheres negras, ao trazer para a cena política as contradições resultantes da articulação das variáveis de raça, classe e gênero, promove a síntese das bandeiras de luta historicamente levanta- das pelos movimento negro e de mulheres do país, enegrecendo de um lado, as reivindicações das mulheres, tornando-as assim mais representativas do conjunto das mulheres brasileiras, e, por outro lado, promovendo a feminização das propostas e reivindi- cações do movimento negro. Enegrecer o movimento feminista brasileiro tem significado, concretamente, demarcar e instituir na agenda do movimento de mulheres o peso que a questão ra- cial tem na configuração, por exemplo, de políticas demográfi- cas, na caracterização da questão da violência contra a mulher pela introdução do conceito de violência racial como aspecto determinante das formas de violência sofridas por metade da população feminina do país que não é branca; introduzir a dis- cussão sobre as doenças étnicas/raciais ou as doenças com maior incidência sobre a população negra como questões fundamentais na formulação de políticas públicas na área de saúde; instituir a crítica aos mecanismos de seleção no mercado de trabalho como a “boa aparência”, que mantém as desigualdades e os privilégios entre as mulheres brancas e negras.

Vistas as coisas a partir da perspectiva do feminismo negro, o que nos moveu neste estudo foi o desejo de enfrentar as barreiras de acesso da mulher negra e afro-religiosa no mundo do trabalho em uma perspectiva crítica que considere todos os fatores de opressão aos quais ela é submetida para lograr um emprego e, assim, de alguma forma, contribuir para retirar da invisibilidade as situações de preconceito, racismo, intolerância e discriminação por elas diutur- namente vivenciadas a partir das categorias: raça, classe, gênero, mas, também - porque fatores de agravamento do preconceito, do racismo, da intolerância e da discriminação- a cultura e religiosidade herdada dos nossos ancestrais africanos escravizados, orientação sexual e identidade de gênero. Situação tri- butária de um triste passado de uma sociedade colonial escravagista. Mais uma vez invocamos as lições de Sueli Carneiro43 como suporte à tarefa que nos propomos e para fixar premissas que entendemos necessárias para o enfrentamento do objeto deste estudo, agora desde uma perspectiva histórica: as barreiras de acesso da mulher negra no mundo do trabalho.

No Brasil e na América Latina, a violação colonial perpetrada pelos senhores brancos contra as mulheres negras e indígenas e

43 CARNEIRO, Sueli. Ob.Cit. 153 Edelamare Melo (Organizadora)

a miscigenação daí resultante está na origem de todas as constru- ções de nossa identidade nacional, estruturando o decantado mito da democracia racial latino-americana, que no Brasil chegou até as últimas consequências. Essa violência sexual colonial é, também, o “cimento” de todas as hierarquias de gênero e raça presentes em nossas sociedades, configurando aquilo que Ângela Gilliam define como “a grande teoria do esperma em nossa formação nacional”, através da qual, segundo Gilliam: “O papel da mulher negra é ne- gado na formação da cultura nacional; a desigualdade entre homens e mulheres é erotizada; e a violência sexual contra as mulheres ne- gras foi convertida em um romance”. O que poderia ser considera- do como história ou reminiscências do período colonial permanece, entretanto, vivo no imaginário social e adquire novos contornos e funções em uma ordem social supostamente democrática, que man- tém intactas as relações de gênero segundo a cor ou a raça insti- tuídas no período da escravidão. As mulheres negras tiveram uma experiência histórica diferenciada que o discurso clássico sobre a opressão da mulher não tem reconhecido, assim como não tem dado conta da diferença qualitativa que o efeito da opressão sofrida teve e ainda tem na identidade feminina das mulheres negras.

É dizer, as mulheres negras possuem desde perspectiva histórica pon- tos de partida absolutamente diferentes não apenas em relação aos homens – negros e não negros-, mas, também, em relação às mulheres não negras e eurocristãs, especificidades que precisam ser priorizadas, mas que não são consideradas no mundo do trabalho, via de regra. Suas barreiras de acesso ao trabalho são o preconceito, o racismo, a intolerância e a discriminação, que mais se agravam quando à condição de mulher negra se agregam as condi- ções de afro-religiosa e integrante da comunidade LGBTQIAP+ Porque é assim, o lugar que se destina à mulher negra, ainda hoje na sociedade brasileira, pede que voltemos o olhar para o nosso passado colo- nial para tentar entender um presente que, no cotidiano, ainda a desvaloriza e, muitas vezes, as aloca em lugares de subalternidade e submissão. Passado colonial cuja ação escravizadora transformava homens e mulheres em merca- dorias; fomentou a estigmatização da mulher negra, a partir da objetificação sexual, expondo-as, também, à violência física e sexual, ao assédio moral e ao cinismo, que ainda hoje persistem, lamentavelmente... Referências Bibliográficas Carneiro, Sueli. Enegrecer o Feminismo: A Situação da Mulher Negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. Disponível em: http://latitudeslatinas.com/download/ artigos/enegrecer-o-feminismo-a-situacao-da-mulher-negra-na-america-latina-a-partir-de-u- ma-perspectiva-de-genero.pdf. Acesso em 10/11/2018 154 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Nascimento, Abdias. 13 de maio: Dia de Denúncia contra o Racismo, Minas Gerais, n. 1.098, 7 maio 1988. (Suplemento Literário).

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Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

MANIFESTO POÉTICO DA LUTA ANTIRRACISTA

Milsoul Santos

Racismo é a prática mais genocida de todos os tempos, fato. Cumprindo o seu maior objetivo, segue invisibilizando o povo preto, de África à diáspora, num número incalculável; por isso,na hora do feio, do demonizado, do rejeitável, do odiável, do tenebroso, do fodido, do desgraçado, em primeiro, se não único lugar, vem desenhado “preto” em nosso pensamento, enquanto colonizado. Tudo foi programado e a corda, ainda,só quebra do lado mais afro! Esse negócio de esquerda e de direita, situação e oposição, quando contempla, sempre tenta branquificar as lutas pretas. Isso ocorre porque ocupamos quase nada das cadeiras que governam. Apesar de sermos a maioria no país, ainda somos minoria no comando da caneta. Vejam; vejam o que os europeus fizeram com os nativos, exterminaram milhares de originários, destruíram diversas tribos. Sim, vejam, diariamente, irmãos matarem outros irmãos por trocados. Na tela da TV tem Preto favela contra Preto favela e Preto favela contra Preto fardado. E tem gente da gente que, só porque está estudando numa universidade ou melhorou o seu salário ou passou no concurso público ou acessou um cargo na prefeitura ou no estado, já não coloca mais os pés na favela, fica na primeira pessoa do singular, pousando de ser intelectualóide diferenciado, enquanto a mídia faz piada, funerárias e floriculturas vendem e nossas mães prosseguem enterrando seus filhos, nossos irmãos assassinados. Se for gordo e tiver uma vida sexoafetiva que não seja hétero, sofre; se for gordo, tiver uma vida sexoafetiva que não seja hétero e for preto, sofre dobrado; se for mulher, o machismo a agride, se essa mulher for preta, o machismo junta-se ao sexismo, com suporte do racismo e faz com que essa mulher sofra seu bocado. Racismo é estruturante e, sobretudo, é extremamente estruturado. É, meu preto; é, minha preta, racismo não dá intervalo. E no bê-á-bá do degradê de melanina fui guiado para me sentir inferior, fraco, incapacitado; entre tantos absurdos, nos ensinam a fugir para o moreno escuro e moreno claro. E eu queria tanto falar de paz, mas minhas palavras jorram sangue para todos os lados. A luta antirracista é uma luta para todos, seja alvo ou privilegiado, porque racismo provoca dor, dor que produz revolta, revolta que forma indignados, indignados cada vez mais estratégicos, estratégicos cada vez mais articulados, articulados cada vez mais Xangô, Xangô cada vez mais machado, machado de dois gumes, dois gumes bem afiados que cortam de dois lados. Justiça seja feita. Nesse acerto de contas, inevitável, eu desejo o menor dos estragos. 157

Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

70 ANOS DE DECLARAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS: SOBRE O PRECONCEITO, O RACISMO, A INTOLERÂNCIA E OUTRAS DROGAS AFINS

Edelamare Melo1

Resumo No marco dos 70 anos da Declaração dos Direitos Humanos, pretende- se demonstrar que, como as drogas, o preconceito gera dependência – senão química, comportamental-, afetando o nosso modo de ser e estar no mundo, condicionando nossas reações a ponto de colocar em risco a nossa própria hu- manidade no sentido de que, movidos pelo preconceito, estabelecemos proces- sos discriminatórios que infirmam a condição humana do outro, a quem não vemos como igual, mas, sim, como um ser inferior ao qual se nega direitos elementares como o direito à vida, à igualdade, à liberdade...ou simplesmente, o direito de, como nós (os detentores do preconceito) termos direito à felicidade, tal e como nos albores do liberalismo foi concebido pelo naturalismo, raciona- lizado pelo racionalismo e interiorizado pelo individualismo - elemento central do liberalismo, que descansa na ideia de propriedade e na afirmação de que a natureza do homem implica a propriedade sobre sua pessoa e, por tanto, sobre suas capacidades e o fruto delas: seu trabalho, sendo livre para dela se valer para perseguir a constante e eterna meta da felicidade. Contudo, a realidade da vida demonstrou a insustentabilidade destes paradigmas liberais, o que conduziu às suas releituras em especial sob a forma do liberalismo igualitário, que tem ser- vido de justificação para políticas de ação afirmativa, notadamente aquelas de recorte étnico-racial. Mas não se pretende cuidar do preconceito e da discrimi- nação sob o viés do liberalismo igualitário e de sua pretensão de enfrentar suas consequências de exclusão por meio de ações afirmativas, que já demonstraram ser meros paliativos para a questão senão acompanhadas de medidas e políticas estruturantes que propiciem condições efetivas de inclusão social considerando a questão que a subjaz: no caso brasileiro, a renitência da pobreza, da miséria e de seus agravos, fruto de um processo histórico e cultural de negação de direitos

1 Doutora laureada em Direito pela Universidade Pablo de Olavide (Sevilla, Espanha) Subprocuradora Geral do Trabalho. Membro do Conselho Superior do Ministério Público do Trabalho. Coordenadora do Grupo de Trabalho Comunidades Tradicionais do Ministério Público do Trabalho. 159 Edelamare Melo (Organizadora) a um significativo contingente de seres humanos submetidos às mais variadas formas de escravidão, entendida esta como forma limitativa do direito à liberda- de em seus mais variados matizes. Para alcançamos os objetivos que nos propo- mos –no caso demonstrar que o sistema de valores do indivíduo informa todo o seu agir, inclusive como agente produtor e aplicador do direito impregnando-o com seus conceitos e preconceitos- lançamos mão dos métodos indutivo, dialé- tico e sócio-histórico, com análise de dados qualitativos de natureza bibliográ- fica e documental, que conduziu à conclusão no sentido de que preconceito, racismo, intolerância e discriminação são frutos do sistema de valores e crenças do indivíduo que informam todo o seu agir, seja para afirmar direitos, seja para negá-los pelo só fato de existir entre ele e o outro a diferença. Desta realidade o direito se alimenta, produzindo e reproduzindo um sistema de valores que, não raras vezes, obsta a realização concreta dos direitos fundamentais à igualdade e à liberdade porque fruto da ação daqueles que, dizendo-se representar a maioria, consolida um sistema normativo que, ainda que não declaradamente excluden- te, propicia a negação de direitos e a discriminação negativa. É dizer instrumentaliza-se o Direito, na sua produção e na sua aplicação para favorecer determinados grupos em detrimento de outros que são vítimas de preconceito e discriminação em razão de sua cor, raça, credo/crença religiosa, gênero, orientação sexual, identidade de gênero, condição econômica ou social. Palavras chave: Direitos humanos, preconceito, racismo, discriminação. I - Introdução À primeira pode causar alguma perplexidade o título destas minhas refle- xões, que, sim, terão um viés jurídico, mas, também, sociológico e filosófico. Este título tem sua razão de ser porque fruto de um processo observatório do agir humano em face do que lhe é diferente, notadamente quando este diferente é objeto de preconceito por fatores diversos, sendo os mais relevantes desde sempre, a cor, a raça, a etnia, o gênero e aquela que motiva as guerras das guerras: a religião. As distintas formas de preconceito nos levam a negar um espaço de convivência qualificado a todos porque importa em uma recusa em aceitar o diferente em face de padrões tidos por ideais naquela sociedade específica, olvidando da importância da alteridade na coexistência entre os seres humanos, e da importância do outro- igual ou diferente- para a constituição de cada qual como assinala Maria do Céu Patrão Neves (2018) ao afirmar que nós nos fazemos na relação com o outro. Assim, a relação preconceito-droga se justifica em razão das altera- ções que o primeiro provoca no nosso modo de pensar e agir. Se é certo que o preconceito produz um sentimento de repulsa ao outro (porque ignoramos

160 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. a sua importância para a nossa constituição), não é menos certo que, este sentimento, produz alterações em nosso sistema biológico e deflagra reações físicas e comportamentais que, não raras vezes, conduz a prática de verda- deiras atrocidades que vão de encontro à humanidade humana, permitam-nos a redundância ou a licença poética, acadêmica, como se queira. Não é novidade que, se é certo que sofremos influência do meio no qual vive- mos – que informa nosso sistema de valores e crenças-, não é menos certo que também somos seres biológicos havendo uma intrínseca relação entre o nosso corpo físico e o nosso corpo emocional, que também determinam, ou se se prefere, influenciam nos- sas reações e condutas aos variados estímulos que recebemos em nossa vida diuturna. Explico: nosso sistema biológico reage às provocações do meio ambiente na sua inteireza e complexidade por meio de reações químicas que provocam do êxta- se, da alegria, da felicidade, à tristeza, à depressão, ao amor, ao ódio..., das lágrimas ao sorriso...e respondemos a este influxo enquanto seres sociais de formas diversas. Ora contendo estes impulsos porque social, moral, cultural, ética e/ou juridicamen- te reprováveis; ora nos entregamos a eles agindo, muitas vezes, como bestas-feras. Mas também temos a capacidade de empatizar, de nos colocarmos no lugar do ou- tro, de tentar sentir como o outro...o que se constata como uma dificuldade, notada- mente no campo do preconceito que conduz a perversas formas de discriminação. Estas relações entre comportamento, conduta humana e o funcionamen- to do sistema biológico, em especial do sistema cerebral, são objeto de estudo pela neurociência, dando azo de algum tempo a estudos que buscam estabele- cer relações entre a neurociência e o direito, a ética articulando-os sob as con- signas neurodireito, neuroética. Entre nós Atahualpa Fernandez e Manuella Maria Fernandez (2010) têm se dedicado a esta temática, observando que:

Os estudos da natureza da mente e do funcionamento do cérebro co- meçam a chegar à filosofia moral e ao direito de uma maneira cada vez mais contundente; de forma direta ou indireta, não param de lançar novas luzes sobre questões antigas acerca da racionalidade humana, da moralidade, do bem e do mal, do justo e do injusto, do livre-arbítrio, da “rule of law” e das relações entre os indivíduos.

No mesmo texto ora citado, evocam P. Churchland2, que afirma:

Aqueles que supõem que ciência e humanismo estão divorciados tendem a ver as novas teorias neurobiológico-psicológicas como

2 P. CHURCHLAND apud FERNANDEZ, Atahualpa; FERNANDEZ, Manuella Maria, FERNANDEZ, Atahualpa; FERNANDEZ, Manuella Maria. Neuroética, “neurodireito” e os limites da neurociência. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIII, n. 83, dez 2010. Disponível em: . Acesso em dezembro/2018 161 Edelamare Melo (Organizadora)

uma irreparável perda de nossa humanidade. Mas também se pode ver de outra forma.(...). Pode ser de um profundo aumento na compreensão de nós mesmos, o qual contribuirá a aumentar em vez de diminuir nossa humanidade. Em qualquer caso, é um erro mirar a ciência como proposta em oposição ao humanismo.

Advirta-se, porque necessário, que não se pretende realizar uma abor- dagem na seara do neurodireito ou da neuroética, mas, sim, demonstrar que, como as drogas, o preconceito gera dependência – senão química, compor- tamental-. Atua como verdadeira droga que afeta o nosso modo de ser e es- tar no mundo, condicionando nossas reações a ponto de colocar em risco a nossa própria humanidade no sentido de que, movidos pelo preconceito, pelo racismo, e pela intolerância, estabelecemos processos discriminatórios que infirmam a condição humana do outro, a quem não vemos como igual, mas, sim, como um ser inferior ao qual se nega direitos elementares como o direito à vida, à igualdade, à liberdade...ou, simplesmente, o direito de, como nós (os detentores do preconceito, do racismo e da intolerância) termos direito à felicidade, tal e como nos albores do liberalismo foi concebido pelo natura- lismo, racionalizado pelo racionalismo e interiorizado pelo individualismo - elemento central do liberalismo, que descansa na ideia de propriedade e na afirmação de que a natureza do homem implica a propriedade sobre sua pessoa e, por tanto, sobre suas capacidades e, o fruto delas: seu trabalho sendo livre para dela se valer para perseguir a constante e eterna meta da felicidade. A realidade da vida demonstrou a insustentabilidade destes paradigmas li- berais, o que conduziu às suas releituras em especial sob a forma do liberalismo igualitário, que tem servido de justificação para políticas de ação afirmativa, nota- damente aquelas de recorte étnico-racial, sendo certo a existência de opiniões que vão desde a defesa, passando por posições intermediárias até a rejeição de referi- das políticas, motivo pelo qual é razoável afirmar a inexistência de consenso en- tre a teoria política e moral do liberalismo igualitário e a justificação de políticas de ação afirmativa de recorte étnico-racial no contexto das democracias liberais. Contudo, também não é nossa pretensão cuidar do preconceito e da discriminação sob o viés do liberalismo igualitário e de sua pretensão de en- frentar suas consequências de exclusão por meio de ações afirmativas, que já demonstraram ser meros paliativos para a questão senão acompanhadas de medidas e políticas estruturantes, que propiciem condições efetivas de inclu- são social considerando a questão que a subjaz: no caso brasileiro, a renitên- cia da pobreza, da miséria e de seus agravos, fruto de um processo histórico e cultural de negação de direitos a um significativo contingente de seres

162 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. humanos submetidos às mais variadas formas de escravidão, entendida esta como forma limitativa do direito à liberdade em seus mais variados matizes. Explico, escraviza-se quando se nega o direito a todas as formas de liberda- de, não apenas do direito de ir e vir porque à base da escravidão está a inferiori- zação do outro para submetê-lo a partir da afirmação de uma superioridade étnico -racial, cultural, de gênero, religiosa, de condição econômica-social... Se escraviza quando se nega o direito sacrossanto à liberdade. Escraviza-se sempre que se põe mordaças à livre expressão das liberdades e se impõe ao outro o enclausuramento forçado em razão da irracionalidade do preconceito e da discriminação. É desta escravidão – a qual submeto o outro pela violência física ou moral, esta por meio do assédio, uma de suas formas mais indignas- que afeta o direito de ser, estar e viver conforme seus valores e crenças à qual me refiro: a escravi- dão que, ainda que não aprisione o corpo, nega ao outro condições de existência digna em um ambiente de respeito, não de tolerância àquele que, a um só tempo é um meu igual, mas, também, um meu diferente em razão de sua raça, cor, etnia, gênero, crença, credo religioso, ideologia política, condição econômica e social, para falar apenas de alguns fatores que geram o preconceito e a discriminação. É desta realidade que nos ocupamos enquanto cientistas do Direito, ci- ência do dever ser (porque apoiada no postulado da liberdade) que tem como matéria prima a conduta humana. Para alcançamos os objetivos que nos propomos –no caso, demonstrar que o sistema de valores do indivíduo informa todo o seu agir, inclusive como agente produtor e aplicador do direito impregnando-o com seus conceitos e preconceitos- lançamos mão dos métodos indutivo, dialético e sócio-históri- co, com análise de dados qualitativos de natureza bibliográfica e documental. II - Preconceito, discriminação e outras drogas afins A Declaração Universal de Direitos Humanos se traduziu em uma reação às atrocidades cometidas no curso da Segunda Grande Guerra tendo como eixo central o direito à proteção da dignidade da pessoa humana, o que representa a maior conquista jurídica e social do pós-guerra. Por ocasião da celebração dos seus 20 anos Roberto Bobbio (1992, p.25) proferiu discurso no qual asseverou:

[...] o problema grave de nosso tempo, com relação aos direi- tos do homem, não é mais o de fundamentá-los, mas sim o de protege-los. [...] Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é a sua natureza e o seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas, sim, o modo mais seguro de garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados. 163 Edelamare Melo (Organizadora)

Vivemos hoje um momento de incertezas e de regressão dos Direitos Humanos. Estão em tela de juízo, de ponta a ponta, e em dimensões mundiais, a liberdade de expressão, de organização, de participação social pacifica, a agenda do trabalho decente, moradia adequada, seguridade social, acesso universal à educação e à cultura, o direito à dissidência política, à igualdade independente de gênero, raça, cor, etnia, origem, orientação sexual, identida- de de gênero, liberdade de culto, a criação artística, enfim tudo o que se insere na categoria direitos humanos. Não por outra razão à hora de proferir discurso por ocasião da diplomação do Presidente eleito para governar a República Federativa do Brasil no período de 1.1.2018 a 31.12.2022, a Ministra Rosa Weber –do Supremo Tribunal Federal e Presidente do Tribunal Superior Elei- toral- proclamou, de forma firme e contundente, a necessidade de respeito à primazia dos Direitos Humanos, da Constituição Federal e do risco aos quais estão expostas estas instituições democráticas em razão do fomento ao pen- samento único, à proscrição das minorias e da diversidade inerente ao existir humano. Confira-se ao que nos interessa passagens do histórico discurso da Ministra se se considera o marco político no qual proferido:

[...] esta sessão realiza-se sob o signo de uma data de singular im- portância na história da luta permanente do Povo pela conquista e preservação de seus direitos básicos.Refiro-me ao Dia Mundial dos Direitos Humanos, hoje celebrado! Há exatos 70 anos, pre- cisamente em 10 de dezembro de 1948, a 3ª Assembleia Geral das Nações Unidas, reunida extraordinariamente em Paris, pro- mulgou a Declaração Universal dos Direitos da Pessoa Humana, que o Brasil subscreveu, a proclamar, já em seu preâmbulo, que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo. Tam- bém neste ano de 2018 se comemoram os setenta anos da Decla- ração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, aprovada na IX Conferência Internacional Americana, em Bogotá, em abril de 1948, documento revestido de inexcedível relevo no contexto do sistema interamericano em que nos inserimos, a antecipar, de modo significativo, em oito meses, a consagração, em nível glo- bal, dos direitos humanos no âmbito das Nações Unidas. Nele proclamou-se que todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos, sem distinção de raça, língua, crença, origem nacional, orientação sexual, identidade de gênero ou qualquer outra condição, porque, nunca nos esqueçamos, os di- reitos fundamentais da pessoa humana, além de universais, são essencialmente inexauríveis. Esses importantes estatutos das li- berdades públicas reverberaram, em conjuntura histórica de tem- 164 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

pos especialmente sombrios, a repulsa à degradação da condição humana, e às atrocidades que dela sempre decorrem, em respeito à necessidade de fazer prevalecer a ideia essencial de que cada indivíduo é detentor de igual dignidade e senhor de direitos e li- berdades inalienáveis, entre os quais o direito à vida, o direito à liberdade, o direito à segurança em sua projeção global, e o direito a ter direitos. É o que solenemente estampa o Artigo 1º da Declaração Universal das Nações Unidas: “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade”, ecoando o que reconheceu, com prima- zia, a Declaração Americana de abril do mesmo ano de 1948. Em país de tantas desigualdades, como o nosso, Senhoras e Senhores, refletir a sobre as declarações de direitos não constitui mero exer- cício teórico, mas necessidade inadiável que a todos se impõe, governantes ou governados. Daí o significado ímpar desta data, o Dia Mundial dos Direitos Humanos, e a ênfase que se deve atri- buir ao que expressa também o Artigo II da Declaração das Na- ções Unidas:“Toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição”. Nessa linha, enfatizo que a democracia não se resume a escolhas periódicas, por voto secreto e livre, de governantes. Democracia é, também, exercício constante de diálogo e de tolerância, de mútua compreensão das diferenças, de sopesamento pacífico de ideias distintas, até mes- mo antagônicas, sem que a vontade da maioria, cuja legitimidade não se contesta, busque suprimir ou abafar a opinião dos grupos minoritários, muito menos tolher ou comprometer-lhes os direitos constitucionalmente assegurados. Em uma democracia, Senhoras e Senhores, maioria e minoria, como protagonistas relevantes do processo decisório, hão de conviver sob a égide dos mecanismos constitucionais destinados à promoção do amplo debate, sem pré- compreensões estabelecidas, nos foros políticos e sociais adequa- dos. Mais do que isso: a todos os cidadãos, sem qualquer exclu- são, se assegura um núcleo essencial de direitos e garantias que não podem ser transgredidos nem ignorados, pelas instâncias de poder nem pelas instituições da sociedade civil, pelo simples fato de não refletirem em dado momento histórico a vontade dos gru- pos majoritários. Vale insistir, Senhoras e Senhores, na asserção de que o princípio democrático, expressão vital de nossa crença inabalável na autoridade da Constituição da República, reside não só na observância incondicional da supremacia da ordem jurídica, mas também no respeito às minorias, em especial àquelas estig- matizadas pela situação de vulnerabilidade a que se acham injus-

165 Edelamare Melo (Organizadora)

tamente expostas. Em uma república democrática, a Constituição e as leis a todos irmanam, nivelam e igualam, com lapidarmente observou João Barbalho, eminente Ministro do Supremo Tribunal Federal e integrante do Congresso Constituinte de 1890/1891. Os sistemas de governo constituem, sem dúvida, modelos em per- manente evolução. As reformas políticas, por isso mesmo, hão de ser implementadas sempre com o elevado propósito de aper- feiçoamento das instituições da República, jamais com o intento menor de inibir o dissenso ou excluir forças políticas com ideo- logia diversa. A democracia, não nos esqueçamos, repele a noção autoritária do pensamento único. É da essência mesma do regime democrático a convivência de opostos, pois dessa pluralidade re- sulta a realização de um dos princípios estruturantes do Estado Democrático de Direito, como expressamente o proclama nossa Constituição (art. 1º, V). 7. A necessidade de conferir garantia à estabilidade desses direitos essenciais é, em país regido por uma Constituição democrática, como a nossa, uma das funções mais relevantes e irrenunciáveis do Poder Judiciário: o exercício da ju- risdição das liberdades. Como diz o artigo VIII da Declaração Universal de 1948: “Toda pessoa tem direito a receber dos tri- bunais nacionais competentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei” [...]3.

Como se vê, não por acaso, o discurso da Presidente do Tribunal Su- perior Eleitoral se pautou na defesa das minorias e da repulsa ao pensamento único, não por acaso... É fato que o processo eleitoral que antecedeu à diplomação do presidente eleito foi marcado pelo discurso de ódio, pela repulsa às minorias, por uma ideo- logia carregada de racismo, homofobia, sexismo, e pela tentativa de imposição de um pensamento único – que foi rechaçado com contundência pelo Supremo Tri- bunal Federal por ocasião de ação estatal de tolhimento da liberdade de expressão nas universidades4 - ; pela anunciada e prometida implementação de uma política

3 Discurso proferido pela Ministra Rosa Weber por ocasião da diplomação do Presidente eleito para exercer as funções de chefe de governo e chefe de Estado da República Federativa do Brasil. Tribunal Superior Eleitoral, 10.12.2018. 4 Foi noticiado na imprensa, gerando comoção, o fato de que, na campanha eleitoral de 2018 para Presidência da Repúbli- ca, universidades públicas de ao menos nove estados brasileiros foram alvos de operações autorizadas por juízes eleitorais para averiguar denúncias de campanhas político-partidárias que estariam acontecendo dentro das universidades. O Minis- tério Público Federal judicializou a questão e,em voto histórico, a Ministra Carmém Lúcia deferiu liminar, em 27.10.2018, vedando tal prática abusiva. No despacho, a ministra também suspendeu os efeitos de decisões que determinaram o reco- lhimento de documentos, a interrupção de aulas debates ou manifestações de professores e a alunos universitários.”(...) para, ad referendum do Plenário deste Supremo Tribunal Federal, suspender os efeitos de atos judiciais ou administrativos, emanado de autoridade pública que possibilite, determine ou promova o ingresso de agentes públicos em universidades públicas e privadas, o recolhimento de documentos, a interrupção de aulas, debates ou manifestações de docentes e dis- 166 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. de armamento da sociedade civil aparelhada por uma “inovadora” política públi- ca de segurança pública centrada no encarceramento, que a história já demons- trou ser ineficiente para a contenção da violência, senão aparelhada de medidas estruturais e estruturantes de acesso universal à uma educação de qualidade, à saúde pública, à assistência, ao fomento ao emprego e renda, que não desleixam da garantia dos direitos fundamentais sociais do trabalhador, hoje mitigados por uma reforma trabalhista que se pretende aprofundar, e cujos resultados são a redução dos níveis de emprego, que fez migrar, para a linha abaixo da pobreza, o segmento social que se encontrava na linha da pobreza; pelo influxo para a implementação de uma Escola sem partido, que foi rechaçada no Congresso na sua atual composição, que nada mais é que uma escola de partido que rechaça a implementação de uma cultura de paz apoiada no respeito à diferença, pilar de uma convivência social pacífica e, que, para inibir todas as formas de preconceito, racismo, intolerância e discriminação, perpassa pelo conhecimento da diversida- de inerente à sociedade. Este quadro parece ser agravado quando a futura ministra do “Ministério da Família, Cidadania e Direitos Humanos” propala o discurso de que a salvação da nação está na igreja...isto em um Estado Democrático e de Direito que se afirma laico, até que ocorra uma ruptura com a ordem jurídico-constitucional em vigor. Assim, ontem, como hoje, para além de discussões acadêmicas sobre a natureza e o fundamento dos direitos humanos o problema que, desde sempre, inquieta e angustia, diz respeito à sua eficácia e efetividade, ao modo mais se- guro para garanti-los e evitar que sejam violados sem solução de continuida- de, notadamente se consideramos nosso ambiente político, desde algum tem- po marcado pela fragilidade e pela ameaça de fortalecimento de discursos que defendem a restrição de direitos, supostamente em favor de uma questionável “maioria”, que, na realidade, representa algo em torno de 25% da população brasileira, se consideramos que o presidente eleito contou com cerca de 57 milhões de voto e que somos algo em torno – para mais ou para menos - 220 milhões de brasileiros diversos e diferentes em sua cor, raça, etnia, gênero, orientação sexual, identidade de gênero, orientação política e religiosa, con- dição econômico-social, para os quais o presidente eleito deverá governar, como anunciou por ocasião de sua diplomação. Oxalá assim seja! centes universitários, a atividade disciplinar docente e discente e a coleta irregular de depoimentos desses cidadãos pela prática de manifestação livre de ideias e divulgação do pensamento nos ambientes universitários ou em equipamentos sob a administração de universidades públicas e privadas e serventes a seus fins e desempenhos (...)”, escreveu a ministra. Posteriormente, em 31.10.2018, o Supremo Tribunal Federal confirmou, à unanimidade a ordem liminar. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2018/10/31/maioria-do-stf-confirma-decisao-que-suspendeu-acoes-dentro-de-uni- versidades.ghtml. Acesso em 10.12.2018 167 Edelamare Melo (Organizadora)

Portanto, hoje, mais do que nunca, o desafio a enfrentar é buscar formas alternativas e idôneas para garantir a efetividade dos direitos humanos, que seguem sendo continuamente violados, como ocorre no Brasil, onde, no Esta- do do Rio de Janeiro, no ano de 2017, foram registradas 431 vítimas de LGB- Tfobia5 e, de acordo com a Comissão Pastoral da Terra (CPT), em relatório divulgado pela Anistia Internacional, 62 ativistas dos direitos humanos foram assassinados no Brasil6. Um Estado no qual, segundo uma pesquisa do Instituto Ipsos, realizada no começo de abril de 2018, 66% dos brasileiros acreditam que os direitos humanos protegem mais os bandidos do que as vítimas, percepção que, na região Norte, alcança 79%; e, que, 54% concordam com a frase “os direitos humanos não defendem pessoas como eu”7. Mas não só: Assistimos com uma inércia pouco justificável dos poderes públicos, e com uma sociedade anestesiada pelo discurso nacionalista, a ataques xenofóbicos contra os imigrantes venezuelanos praticados por bra- sileiros principalmente nas cidades fronteiriças. Prática xenófoba que possui “raízes profundas no profundas no discurso hegemônico de seguranca na- cional e na falta de política migratória no acolhimento desses indivíduos” (Mello, 2018, p.243)8. Este o contexto no qual se impõe a pergunte: O que dizer da garantia de direitos humanos em um pais onde as mulheres negras continuam sendo a maioria das vítimas da violência doméstica e obstétrica e da mortalidade ma- terna? Onde, também, a maioria da população carcerária é negra e feminina. Onde estas mesmas mulheres assistem à morte violenta de seus filhos, muitas vezes pela ponta da bala de um seu igual negro, mas integrante do corpo de segurança pública do estado: é o corpo negro matando o corpo negro. Balas que são deflagradas na eterna luta contra o tráfico, mas que ceifa, em grande medida, vítimas inocentes: jovens corpos negros do sexo masculi- no. Ou seja, desigualdades educacionais, a insegurança no mundo do trabalho e a violência afetam a juventude de maneira mais acentuada, como explica a antropóloga Regina Novaes (2018)9. Para ela, “a construção da juventude

5 Universa: Rio registra 431 vítimas de LGBTfobia no estado em 2017. Disponível em: https://universa.uol.com.br/ noticias/redacao/2018/12/11/rio-registra-431-vitimas-de-lgbtfobia-no-estado-em-2017.htm. Acesso em 10.12.2018 6 Carta Capital. Como o Brasil lida com os Direitos Humanos. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/ sociedade/como-o-brasil-lida-com-os-direitos-humanos. Acesso, 11.12.2018 7 Idem 8 MELLO, Bruna Peneluppi. Os limites das fronteiras in: Direitos Humanos no Brasil 2018. Relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos. Organização STEFANO, Daniela e MENDONÇA, Maria Luisa. 1ª Edição. São Paulo: Outras Expressões, 2018, p. 9 NOVAES, Regina. Jovens como sujeitos de direitos?. In: Direitos Humanos no Brasil 2018. Relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos [...] 168 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. como um ‘sujeito de direitos’ se deu em um momento histórico em que as noções de direitos de cidadania e direitos humanos já não eram mais conside- radas como pertencentes a áreas claramente distintas”. Isto sem falar do significativo, crescente e assustador, aumento da vio- lência sofrida pelos travestis e transexuais negras que vivenciam múltiplas formas de discriminação. Como observa o psicólogo Richarlls Martins, da Rede Brasileira de População e Desenvolvimento, e autor do artigo Entre normas e práticas: panorama dos direitos da população LGBTI10.

Se por um lado apresentamos um positivo arcabouço legal de princípios na garantia de direitos pautado no reconhecimento das iniquidades que constituem a sociedade brasileira, por ou- tro, há um abismo na tradução destes pilares em escopo legal e na institucionalização de políticas publicas.

Ou seja, não há como negar que, no curso de uma trajetória constitucional que, em 2018, completou 30 anos, não consolidamos direitos fundamentais. Tal e como no período que lhe antecedeu - um militarismo marcado por um regime ditatorial, e, com antecedência a este, em um salto histórico, o regime escrava- gista-, temos que, a evolução dos direitos humanos no Brasil é lenta e cheia de percalços das mais diversas naturezas, sendo certo que as vítimas de sua violação seguem sendo os integrantes dos grupos em situação de vulnerabilidade social. A raiz dessa escalada de negação de direitos humanos aos grupos vulne- ráveis- desde perspectiva de uma abordagem qualitativa, não quantitativa- é, sem sombra de dúvidas, o preconceito, o racismo e a intolerância, que, na atualidade, saíram fortalecidos em razão do discurso sectário que se fez pre- sente na campanha presidencial ao governo brasileiro. Portanto, no que se refere aos direitos humanos, não é demais afirmar que, nesta escalada de negação de direitos, ele passou a ser um problema para ele mesmo. É dizer, sua existência como marco limitador da atuação estatal na esfera juridicamente protegida do cidadão, ou conjunto de cidadãos, passou a ser um problema para quem deveria garanti-los de forma incondicional: o Estado. Lurdes Bandeira e Anália Soria Batista (2002) no atualíssimo ensaio sobre Preconceito e Discriminação como formas de violência observam que:

A sensibilidade cada vez maior de cientistas sociais para com a com- preensão da multiplicidade na unidade, isto é, “das múltiplas faces do povo que é um”, e especificamente com a visibilidade da violência nas

10 In: Direitos Humanos no Brasil 2018. Relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos […] 169 Edelamare Melo (Organizadora)

diversas relações sociais, associou-se à proliferação de movimentos sociais de afirmação identitária, em sociedades acostumadas a silen- ciar as diferenças, os particularismos e as singularidades, até então vividos sob intensas formas de discriminação. Tais movimentos reve- laram o início de uma nova fase de reivindicações sociais expressas nas demandas dos direitos sócio-culturais pelo respeito à diferença e à alteridade, como partes constitutivas dos direitos humanos, bem como da reflexão e do debate no campo das ciências sociais. Diversas mani- festações de afirmações identitárias, declarando o orgulho de ser ne- gro, de ser homossexual, de ser mulher, de ser indígena, entre outras, denunciavam a existência de preconceito, discriminação e exclusão nas várias esferas da sociedade e preencheram as agendas da refle- xões sócio-antropológicas. Marchas e declarações colocavam a nú a presença inquietante da violência nas relações sociais, como também reações se manifestavam contra os sujeitos-objetos de violência. De fato, os diversos movimentos tentavam enfrentar as atribuições identi- tárias negativas, opondo, ao sentimento de vergonha e do silêncio que tinha sido construído através de sociabilidades baseadas na negação da alteridade, o sentimento de orgulho. O sentimento de vergonha que se desejava combater, por ser homossexual, negro, mulher, velho, in- dígena, deficiente, pobre, entre outros, revelava a luta contra a atribui- ção social de um valor negativo à diferença do outro: o preconceito.

Preconceito que é fruto do sistema de valores e crenças do indivíduo e que informa todo o seu agir, seja para afirmar direitos, seja para negá-los pelo só fato de existir entre ele e o outro a diferença. Desta realidade o direito se alimenta, produzindo e reproduzindo um sistema de valores que, não raras vezes, obsta a realização concreta dos direitos fundamentais à igualdade e à liberdade porque fruto da ação daqueles que, dizendo-se representar a maio- ria, consolida um sistema normativo que, ainda que não declaradamente ex- cludente, propicia a negação de direitos e a discriminação negativa. É dizer instrumentaliza-se o Direito, na sua produção e na sua aplicação para favorecer determinados grupos em detrimento de outros, que são vítimas de preconceito e discriminação em razão de sua cor, raça, credo/crença religiosa, gênero, orientação sexual, identidade de gênero, condição econômica ou social. Como bem dizia, com muita ênfase, meu Mestre Calmon de Passos, o Direito é um objeto cultural, é algo construído pelo homem, não lhe é dado pela natureza, embora esta natureza imprima sua nota distintiva específica naquele ser que produz a norma jurídica: o ser humano com seu contexto e historicidade. É este ser que, sendo criação da natureza, portanto produto de um ambiente naturalmente diverso, encontra descomunal dificuldade em com ela –a diversidade- viver e conviver.

170 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

É dizer, se, segundo o paradigma liberal, enquanto seres criados somos iguais e livres, enquanto seres viventes é-nos difícil aceitar este princípio não superado por qualquer outra corrente ideológica. Igualdade e liberdade que, no plano da sua concretude normativa, se faz realidade quando se afirma a necessidade de tratar os iguais na medida da sua igualdade, melhor dizendo da sua desigualdade, porque esta é a realidade da vida humana, seja nas suas inter-relações subjetivas com seus pares, seja com os demais seres da natureza com os quais o homem se põe em relação em um primeiro momento para garantir sua sobrevivência. A diferença, que está presente em todos os planos e altiplanos da exis- tência humana é fato....mas, porque a dificuldade em aceitar a nossa intrínseca diferença, aquele traço distintivo específico que nos faz únicos, seja pela nossa ancestralidade, gênero, orientação sexual, idade, raça, cor, credo, condição físi- ca, cultural, social e econômica, seja por nossos sistemas de crenças e valores; seja por nosso especial modo de ser e estar no mundo, na nossa solidão de ser individual ou na nossa condição de ser social, dentre muitos outros fatores que nos torna diferentes uns dos outros, salvo quanto ao fato de sermos humanos? Creio que o pluralismo explica esta realidade e, por isso, é que, neste viés a um só tempo normativo, sociológico e filosófico, que devemos en- frentar o tema sem perder de vista que, sim, o modo de ser preconceituoso e discriminatório conforme avança na existência e experiência humana, se torna uma droga que como toda e qualquer substância alucinógena tem a potencialidade de gerar dependência no nosso modo de ser e estar no mundo. Como no vício da droga, a interiorização e a apropriação de determina- do valor que afirmo como verdade incontestável e que serve de fundamento “legitimante” – a superioridade étnico-racial, religiosa, de gênero, e outras tantas- do preconceito ou da discriminação, cega, inebria, tira o foco, vicia, nos faz presumir sermos detentores de sobrenatural condição, força e verda- de que nos empodera, a tal ponto, que vemos no outro um ser diferente a ser submetido, subjugado, inferiorizado, a ser escravizado e reduzido na sua con- dição humana.... Assim, preconceito, racismo, intolerância e discriminação geram um êxtase, libera adrenalina, endorfina a tal ponto que crescemos dian- te do outro a ponto de – senão contidos- nos conduzir ao que vimos à época de Hitler – para falar de fato mais recente- e ao que vemos hoje na prática de grupos fundamentalistas e sectários de qualquer natureza.... Como observa Maria Auxiliadora Minahim (2018):

Em Roma, já se considerava que as ofensas à dignidade humana atingiam a personalidade em seu tríplice aspecto: corpo, condi- 171 Edelamare Melo (Organizadora)

ção jurídica e honra. A preocupação antecipada dos romanos não impediu o mundo de testemunhar episódios escabrosos e uma prática cotidiana de desprezo pelas pessoas em razão da diferença de pele, religião ou origem. É possível afirmar que o racismo é uma ideologia que está sempre ligada ao colonialis- mo, à escravidão, ao totalitarismo político, aos genocídios, aos crimes nazistas e aos regimes do apartheid.

Assim, a guerra de hoje, como a maioria das guerras de ontem, não é movida por outra coisa que não a dificuldade de aceitar e respeitar a diferen- ça.... A droga do preconceito, do racismo, da intolerância e da discriminação faz mal...dá ressaca, a ressaca da culpa...isto se, algum dia, tomamos consci- ência do vício que orienta nosso pensar e agir... Porque é assim é imperioso refletir sobre como este modo de ser e estar preconceituoso, racista, intolerante e discriminatório se imiscui na produção normativa estatal e na gestão e aplicação do direito posto e pressuposto. Esta reflexão se faz impositiva porque, como sustento, de fato e de direito, temos uma ordem jurídica que se afirma orientada pelo princípio democrático, mas, que, em realidade, traduz-se em um conglomerado e emaranhado de normas simbólicas e aplacatórias de reclamos sociais, políticos e culturais por igualda- de material, melhor dizendo, pelo direito a receber tratamento igual à hora dos processos de concepção, criação e aplicação do direito por parte de todos – aqui incluído o Estado, seus órgãos e agentes; e a sociedade civil organizada. Neste sentido é a literalidade dos postulados dos artigos 5º da Cons- tituição da “República”: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segu- rança e à propriedade [...]”, e do art. 3º, IV que estabelece como objetivo da República “promover o bem de todos, sem preconceitos, de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.” Mas assim não é, como demonstram as estatísticas e os números que são utilizados e instrumentalizados por muitos para falar de uma realidade que não se quer ver e tão pouco enfrentar para transformá-la: a realidade do preconcei- to, do racismo, da intolerância, da discriminação e de outras drogas afins... Não é assim, notadamente no campo da aplicação do direito, porque a ordem jurídica posta entranha o preconceito e a discriminação e gera um sistema que a garante por meio de instrumentos e mecanismos que asseguram a ineficácia e ausência de efetividade normativa de normas que, em tese, pre- tendiam concretizar o ideal da igualdade, da não discriminação.

172 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

É sintomático que, no campo do preconceito, do racismo, da intolerância e da discriminação negativa, cuide-se dos chamados “crimes de ódio”. É dizer, prática de conduta motivada por preconceito, racismo, intolerância e discrimina- ção, que, ao fim e ao cabo, criminaliza um sentimento: o ódio contra um seu igual em direitos, deveres e liberdades, que é o que está ínsito no racismo, na xeno- fobia, na misoginia, na homofobia e em outras tantas formas de discriminação. Sim! Temos um sistema jurídico garantístico da igualdade e com vocação para a prevenção e repressão às formas ilícitas de discriminação. Mas ele não possui, de fato, a efetividade que se propõe, conclusão a que se chega da simples leitura de algumas normas que integram o Estatuto (jurídico) da Igualdade no Es- tado brasileiro. Vejamos: - Lei 7.853/89, de 24 de outubro de 1989. Lei anti-dis- criminação contra pessoas com deficiência. Propugna por igualdade de tratamento, justiça social, respeito e apoio às pessoas portadoras de deficiências, na sua inte- gração social; - Lei 9.029/95 de 13 de abril de 1995; Lei anti-discriminação contra origem, raça, cor, estado civil, situação familiar, idade e sexo. Pretende coibir a exigência de atestados de gravidez, esterilização e outras práticas discriminató- rias para efeito de admissão ou permanência da relação jurídica de trabalho; - Lei 7.716/89; Lei anti-discriminação contra raça e cor, que objetiva punir crimes de discriminação e preconceito de raça, cor, etnia, religião, ou procedência nacional. Temos ainda, e não podemos olvidar, dos sistemas garantísticos da in- fância e da juventude, e dos idosos, sem falar daquelas que pretendem assegu- rar igualdade de tratamento independentemente de gênero/ orientação sexual/ identidade de gênero. Neste último rincão do preconceito e da discriminação estamos a passos lentos no que toca à criminalização de condutas homofóbicas destacando-se apenas a Lei Estadual 10.948/2001, do Estado de São Paulo, que estabele- ceu diferentes formas de punição (de natureza não penal) a diversas atitudes discriminatórias relacionadas aos grupos de pessoas que são perseguidas por homofóbicos e intolerantes. No mais encontra-se em tramitação há cerca de seis anos no Congresso Nacional o Projeto de Lei da Câmara (PLC) 122/2006 que tem como proposta a criminalização da discriminação gerada por diferen- tes identidades de gênero e orientação sexual. Ainda a título de simples reflexão sobre a eficácia e efetividade das normas que tentam conter este sentimento de ódio – portanto algo que se in- sere no campo da subjetividade do sujeito, dos valores que ele elege como conducentes do seu modo de agir ou não agir- motivado pelo preconceito e pela discriminação trazemos a lume uma norma, que, da sua leitura, emerge sua natureza simbólica e aplacatória de um sentimento de injustiça de grupos

173 Edelamare Melo (Organizadora) historicamente discriminados: os negros que passaram a receber este rótulo na época escravagista, porque, como ouvi recentemente, na África não exis- tiam negros, existiam etnias (fon, yorubá, hausssá, dentre outras tantas que povoam o continente, com sua história, cultura e identidades próprias). Falamos do Estatuto da Igualdade Racial - Lei Nº 12.288, de 20 de Ju- lho de 2010, que tem por finalidade normativa “garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos indivi- duais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica” (art.1º). O fundamento de validade de referido diploma legal é o artigo 5º, XLII da Constituição Federal de 198811 segundo o qual “A prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”. Com tal dispositivo o legislador constituinte impôs ao legislador ordi- nário a criação de leis que punissem as ações que atentassem contra todas as formas de discriminação racial. Sobre este impulso normativo determinado pelo Constituinte, observa Maria Auxiliadora Minahim (2018) que

Trata-se mandado de criminalização o que indica a reprovação pela ordem jurídica nacional de condutas atentatórias à igualdade entre as pessoas. A partir de então, houve uma preocupação crescente em criminalizar as condutas discriminatórias. Esse fato pode ser visto de três formas, de um lado como reflexo do repúdio da sociedade brasileira à distinção entre seres humanos e à consideração do outro ser inferior por ser diferente em suas características. De outro lado, a farta edição de leis pode também ser interpretada como ineficácia do direito para atingir os fins propostos na norma ou como incom- petência do Estado brasileiro para fazer valer as proibições. Pode-se ainda interpretar o fato, como o uso puramente simbólico da lei para aplacar as aspirações de alguns grupos, sabendo-se de antemão de sua inefetividade para mudar o contexto social.

Importante registrar que a Lei 7.716 foi editada sob o influxo da Con- venção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discrimina- ção Racial, de 1963, que conclamou aos países a tomarem:

“todas as medidas necessárias para eliminar rapidamente a dis- criminação racial em todas as suas formas e manifestações, e a prevenir e combater doutrinas e práticas racistas e construir uma

11 BRASIL. Presidência da República, Casa Civil, Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. www. planalto.gov.br 174 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

comunidade internacional livre de todas as formas de segrega- ção racial e discriminação racial12”. (Adotada pela Resolução n.º 2.106-A da, em 21 de dezembro de 1965).

Referida lei define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. Posteriormente, foram introduzidas alterações pelas Leis nº 9.459 de 13 de maio de 1997 e 12.288 de 201013, esta conhecida como como o Estatuto da Igualdade Racial. Ambas ampliaram o rol dos crimes constantes da Lei 7.716 e aumentaram a proteção contra a discriminação racial e religiosa. A Lei 9459/97 modifica o artigo 20 da Lei 7716 para nela incluir a ex- pressão “discriminação, etnia, religião ou procedência nacional‎” e acrescenta parágrafo ao art. 140 do Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Eis a redação atual do artigo-Lei que dispõe sobre os crimes de racismo:

Art. 1º: Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”.

Sobre a previsão do preconceito como crime merece referência a crítica trazida por Maria Auxiliadora Minahim (2018), a seguir transcrita:

Como se vê, o legislador fala em preconceito e discriminação, de forma que é importante distinguir uma expressão de outra. O preconceito é um sentimento, ideia, opinião ou sentimento des- favorável formado sem conhecimento abalizado, ponderação ou razão. O preconceito racial consiste em sentimento, assimilado de forma acrítica em razão de desvios culturais ou “da generalização apressada ou imposta pelo meio, conduzindo geralmente à intole- rância.”14 É possível afirmar que o preconceito não pode ser objeto de Lei, na medida em que esta não tem o poder, nem aptidão para mudar sentimentos, ou questões que dizem respeito à subjetivida- de da pessoa, a menos que estes se revelem em atos exteriores. O que a lei pode determinar é que alguém aja como se não tivesse tais afetos. A discriminação racial é o preconceito determinando atitudes, políticas, restringindo oportunidades e direitos no conví- vio social. A discriminação se concretiza no ato de estabelecer di- ferenças, de tratar de modo desigual às pessoas, em razão das suas características raciais, religiosas, atingindo o princípio constitu-

12 UNESCO. Convenção da ONU sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial. Disponível em: unesdoc.unesco.org/images/0013/001393/139390por.pdf 13 Brasil, Presidência da República, Casa Civil, Lei 12.288/2010. Disponível em: www.planalto.gov.br 14 ANDREUCCI, Ricardo Antonio. Breves Considerações sobre Racismo e Intolerância Racial.Disponível em : ANDREUCCI, Ricardo Antonio. Breves Considerações sobre Racismo e Intolerância Racial. http://www.revista- persona.com.ar/Persona70/70Andreucci.htm. 175 Edelamare Melo (Organizadora)

cional da igualdade. Há várias formas descritas na lei de manifes- tar racismo ou discriminação. É importante destacar que algumas dessas condutas podem constituir outro crime ou, até mesmo, ser um indiferente penal. Para que sejam consideradas como um dos tipos da Lei 7716 e se a motivação for distinta daquela descrita nos artigos da lei, ou seja, se a ação não for praticada por discrimina- ção ou preconceito, pode não haver crime de racismo. (...) O bem jurídico, o valor tutelado na Lei é o direito à dignidade humana (art. 1º, III) e o direito à igualdade (art. 5º), ambos consignados na Constituição de 1988.

Referida normatividade, fechando seu ciclo conceitual, procede à defi- nição do que entende por discriminação racial, desigualdade racial e desigual- dade de gênero e raça, e o faz nos seguintes termos:

I - discriminação racial ou étnico-racial: toda distinção, exclu- são, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objeto anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em igualdade de condições, de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer ou- tro campo da vida pública ou privada; II - desigualdade racial: toda situação injustificada de diferencia- ção de acesso e fruição de bens, serviços e oportunidades, nas esferas pública e privada, em virtude de raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica; III - desigualdade de gênero e raça: assimetria existente no âm- bito da sociedade que acentua a distância social entre mulheres negras e os demais segmentos sociais;

A sua vez, o Código Penal (art.208) cuida dos crimes contra o sentimento religioso concretizando, por este meio, o disposto no artigo, 5º, VI da Consti- tuição da República, segundo o qual “é inviolável a liberdade de consciência religiosa e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e suas liturgias”. Ressalte-se, ainda, neste campo da intolerância (melhor dito, desrespei- to religioso), que a Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, alterada pela Lei nº 9.459, de 15 de maio de 1997, considera crime a prática de discriminação ou preconceito contra religiões. Eis as condutas que, neste contexto, são tipifica- das como crime de preconceito ou discriminação religiosa:

“Impedir ou obstar o acesso de alguém, devidamente habilitado, a qualquer cargo da Administração Direta ou Indireta, bem como das

176 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

concessionárias de serviços públicos” (art.3º) ; “Negar ou obstar emprego em empresa privada” (ar.4º); “Recusar ou impedir aces- so a estabelecimento comercial, negando-se a servir, atender ou receber cliente ou comprador” (art. 5º); “Recusar, negar ou impe- dir a inscrição ou ingresso de aluno em estabelecimento de ensino público ou privado de qualquer grau” (art. 6º); “Impedir o acesso ou recusar hospedagem em hotel, pensão, estalagem, ou qualquer estabelecimento similar” (art. 7º); “Impedir o acesso ou recusar atendimento em restaurantes, bares, confeitarias, ou locais seme- lhantes abertos ao público” (art. 8º); “Impedir o acesso ou recusar atendimento em estabelecimentos esportivos, casas de diversões, ou clubes sociais abertos ao público” (art. 9º); “Impedir o aces- so ou recusar atendimento em salões de cabeleireiros, barbearias, termas ou casas de massagem ou estabelecimento com as mesmas finalidades” ( art. 10); “Impedir o acesso às entradas sociais em edifícios públicos ou residenciais e elevadores ou escada de acesso aos mesmos” (art. 11) ; “Impedir o acesso ou uso de transportes públicos, como aviões, navios barcas, barcos, ônibus, trens, metrô ou qualquer outro meio de transporte concedido” (art. 12); “Im- pedir ou obstar o acesso de alguém ao serviço em qualquer ramo das Forças Armadas” (art. 13); “Impedir ou obstar, por qualquer meio ou forma, o casamento ou convivência familiar e social” (art. 14); “Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional (art.20); e; “Fa- bricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo” (art. 20,§ 1º).

A simples leitura dos enunciados normativos dá conta da realidade viven- ciada por aqueles que professam uma fé que não se insere no contexto daquelas professadas por grupos religiosos sectários e fundamentalistas que tentam impri- mir um pensamento único de religiosidade, de fé, por meio da violência física, se for necessário, como temos visto com as ações terroristas do Estado Islâmico, mas, também, aqui, com as violências perpetradas contra templos e religiosos de matriz africana, e até mesmo católicos, por um suposto “Exército de Cristo”, formado por evangélicos sectaristas e fundamentalistas, em sua maioria egressos do sistema prisional onde são doutrinados e convertidos à fé “cristã”. Não obstante esta avalanche de normas, em grande parte destituídas de efetividade real tendo em vista a finalidade que as justificaram: atender recla- mos de proteção por parte de grupos vulneráveis e minorias étnico-raciais e religiosas - no contexto da Década Internacional de Afrodescendentes (2015- 2024), a ONU destaca as manifestações brasileiras de intolerância religiosa e alerta para a grave violação de direitos fundamentais de que são vítimas os

177 Edelamare Melo (Organizadora) afro-religiosos e seus templos religiosos em razão de práticas de racismo reli- gioso, inclusive no mundo do trabalho, motivo pelo qual, durante a apresen- tação de seu relatório anual sobre a liberdade de religião ou crença, o relator especial da Organização das Nações Unidas, Heiner Bielefeldt, lembrou que a intolerância religiosa não se origina diretamente das próprias religiões, isto porque “Os seres humanos são os únicos, em última análise, responsáveis pelas interpretações de mente aberta ou intolerantes”15. Na oportunidade lembrou que, em diversos países, grupos não estatais também promovem a intolerância religiosa, alertando que em alguns casos uma combinação das duas situações pode ser observada. Segundo dados da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, no Brasil, nos últimos cinco anos, a intolerância religiosa com práticas de preconceito, discriminação e assédio, que tipificam racismo reli- gioso, cresceu 3.706%, sendo seu principal alvo as religiões de matriz africa- na e, portanto, os afro-religiosos. Na imprensa especializada podem ser encontrados relatos e notícias que de- monstram que os dados não se apartam da realidade cotidiana dos afro-religiosos, como se vê das denúncias publicadas no site “dossiê da intolerância religiosa”16. Este quadro se faz ainda mais grave se a vítima desta forma de precon- ceito e de discriminação é a mulher negra. Pior se torna o quadro se agrega- mos ao racismo e à intolerância religiosa o fator orientação sexual, identidade de gênero e condição econômica-social... Diferente não é a situação das pes- soas com deficiência, das crianças e adolescentes e dos idosos de raça negra, que integram a camada social denominada de baixa renda, estes em razão de sua natural condição de vulnerabilidade. É dizer ser pobre, negro e afro-religioso no Brasil – e mais recentemen- te, em razão de imigração forçada decorrente de conflitos armados, ser negro muçulmano e/ou refugiado, que também é vítima de práticas xenofóbicas- é razão bastante em si para justificar as práticas preconceituosas e discrimi- natórias que, ainda quando constituam crime, são elididas e reduzidas pelos aplicadores do direito- com especial destaque para os órgãos garantísticos dos direitos fundamentais, como são os aparatos policiais, ministeriais e jurisdi- cionais- a meros conflitos interpessoais de baixa densidade, o que prova a velada rejeição social a estes grupos.

15 Intolerância religiosa é incentivada por governos e favorece crimes de ódio, alerta relator da ONU. In: ONU- BR- Nações Unidas Brasil, 28.10.2016. Disponível em: https://nacoesunidas.org/intolerancia-religiosa-e-incentiva- da-por-governos-e-favorece-crimes-de-odio-alerta-relator-da-onu/ . Acesso em 16.5.2017 16 Dossiê da intolerância religiosa. Disponível em : http://intoleranciareligiosadossie.blogspot.com.br/ 178 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Ao fim e ao cabo, temos a prática diuturna de condutas tipificadas como crime que são esvaziadas na sua aplicação pelos operadores do direito em razão dos valores que informam o seu agir – como posso eu que professo determinado valor aplicar uma norma que, para mim, o nega? .... Melhor então fechar os olhos e, na prática, descriminalizar a conduta qualificando-a como comportamento, que, quando muito, gera, para alguns, um desconforto, uma mínima censura moral e/ou ética... Assim é com a Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, alterada pela Lei nº 9.459, de 15 de maio de 1997 - Estatuto da Igualdade Racial- ; com o Estatuto da Criança e do Adolescente; com o Estatuto do Idoso; com a Lei 11.340/2006 – Lei Maria da Penha, e, porque não dizer, com o Código Penal, que, muitas vezes, é utilizado para afastar a incidência normativa específica e mais gravosa, e aplicar a norma geral mais branda. Caso típico é a transmutação do crime de racismo em mera prática injuriosa não qualificada, quando muito. Com este proceder se nega efetividade real às normas que tentam coibir práticas preconceituosas e discriminatórias que, em verdade, atentam contra a dignidade da pessoa humana, e, por esta razão, foram elevadas à categoria de crime com penas mais gravosas para garantir uma convivência social mi- nimamente harmoniosa entre os diferentes.... Não tem sido assim. No Brasil é inegável o fato de que nossa sociedade é racista e preconceituosa e, portanto, fomentadora de conflitos inter-raciais, de gênero, orientação sexual e religiosos. Contudo, esta realidade é invisibi- lizada – notadamente pelos meios de comunicação de massa- para garantir uma salvaguarda para uma pseudodemocracia racial, religiosa e de gênero, que dados de organizações internacionais desmentem. Como é de conhecimento, os altos índices de criminalidade e de crimi- nalização afetam os negros, em especial os negros do sexo masculino que pontificam em primeiro lugar nas estatísticas de mortes violentas, emsua maior parte em razão do recrudescimento do tráfico de drogas, em especial nos municípios da zona rural e nas favelas e guetos das nossas metrópoles vitimizando, em sua maioria, jovens adolescentes. Este só fato é suficiente para pré-conceber o negro como autor de infração penal. Como destacam Lurdes Bandeira e Anália Soria Batista (2002), neste tema

“[...]os aportes jurídicos contemplaram dois pressupostos: pri- meiro, o de erradicar as diferenças, ou seja, visibilizar o valor de ser igual, de ser o mesmo, diante da lei, da Justiça, do Estado, no seio dos quais deve inscrever-se a pluralidade ou a tolerância ao semelhante; segundo, o de cidadania, de ser reconhecido como

179 Edelamare Melo (Organizadora)

cidadão, por si e diante de todos, pois pertencer a um grupo ou a uma raça não pode ser objeto de julgamento ou discriminação. A propósito, os judeus, no contexto da Antiguidade das tradições ancestrais, separavam a humanidade em judeus e estrangeiros... assim como os gregos dividiam o mundo em gregos e bárbaros, escreveu Hannah Arendt. Hoje ainda se divide a população bra- sileira em negros e brancos, ricos e pobres, mulheres e homens, etc., não como signo do direito à diferença, mas como signo de suspeição. Tais divisões remetem a uma violência moral exerci- da nem sempre de maneira explicita ou visível na relação com o outro, muitas vezes recoberta por boas intenções. A diversidade do real - as diferenças, objeto de diabolização, seja por exces- so, seja por ignorância- na maioria das vezes convive à margem dos procedimentos jurídico-legais, pois essas diferenças não são percebidas como relações discriminatórias pela lei, que exige não apenas evidências, mas também a presença da prova.

Mas não apenas o ser humano de raça negra e do sexo masculino é obje- to de preconceito, discriminação e estigmatização. A mulher, os afro-religio- sos, as pessoas com deficiência, as crianças e idosos, os integrantes do grupo LGBTQI+, os nordestinos, os negros refugiados, também o são. A mulher é tida como fomentadora da prática de crimes sexuais pelo só fato de ser mulher que possui uma especial leveza de ser que a sensualiza; os inte- grantes do Grupo LGBTQI+ pelo só fato de sua orientação/ identidade sexual ser tida por muitos, em razão de credo religioso, como doentes que precisam de cura. Estes são estigmatizados como pessoas promiscuas que de tudo fazem para garan- tir um segundo de prazer...; os afro-religiosos que, por sua fé monoteísta ancestral de culto aos Orixás, são tidos como tribais que cultuam forças demoníacas e, por isso, atentam, com suas práticas litúrgicas, aos valores estabelecidos pelo influ- xo do cristianismo na sua vertente sectária e fundamentalista capitaneada pelos neopentecostais; as crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade pelo só fato de estarem em contextos que a propicia; as pessoas com deficiência pela sua vulnerabilidade que demanda quebra de barreiras físicas, sociais, e culturais, e, muitas vezes, cuidados de terceiros para que lhes seja assegurada existência digna, situação que também é compartilhada pelos idosos17.

17 Sobre estes temas são interessantes as discussões travadas no XXV CONGRESSO DO CONPEDI – CURITIBA, no Grupo SOCIEDADE, CONFLITO E MOVIMENTOS SOCIAIS, com destaque para os seguintes trabalhos: “Violência Institucionalizada: Os conflitos que permeiam a sociedade do Século XXI”, escrito por Albo Berro Rodrigues e Ivo dos Santos Canabarro, que aborda a questão de violência religiosa no Brasil, através de uma análise histórica, demonstrando a existência de preconceito étnico e violência existentes no Brasil; “Instrumentos para a captação de demandas sociais e o exemplo das influências culturais nas políticas públicas voltadas para o grupo LGBT”, cujos autores Marco Antonio Turatti Junior e Felipe Ferreira Araújo, abordam a necessidade de articulações de ações governamentais que percebam os 180 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Note-se, que o preconceito e a discriminação ostensivas operam de forma incomensuravelmente mais gravosa quando os integrantes dos grupos tradi- cional e historicamente discriminados encontram-se em extratos econômicos- sociais marcados pela vulnerabilidade, sendo certo que, fora deste ciclo – desta gaiola dourada- , pessoas que ostentam a mesma condição que justifica o pre- conceito e a discriminação, quando muito, são toleradas, isto porque o precon- ceito segue presente de forma implícita e velada, como se constata, não raras vezes, por meio de gracejos e insinuações de duvidoso bom gosto... Enfim, seja como seja, o só fato de ser “diferente de mim” é o fator de- terminante do preconceito e da discriminação, não para igualar em direitos e liberdades, mas, sim, para inferiorizar em direitos e liberdades. Vale, portanto, a regra protetiva dos meus iguais, a qual, por sua vez, contamina todo o sistema de produção e aplicação do direito porque, não por a caso, estes grupos porque tidos como minoritários – o que não é verdade quando se fala dos negros e das mulheres – carecem de representatividade política e institucional para fazer valer o seu direito à igualdade. Portanto, porque inferiorizados em razão de sua raça, cor, gênero, religião, orientação sexual, identidade de gênero, idade, condição física, ou condição econô- mica e social, determinados grupos de pessoas são destinatários de um não-direito, de uma justiça parcial representada pela minoria que se faz, em tese, maioria, fundamen- talmente em razão da sua condição econômica-social que lhes propicia acesso a bens e serviços aos quais a maioria inferiorizada por fatores vários não tem acesso, ou, quan- do tem, este é obstacularizado por barreiras sociais, econômicas, culturais, religiosas, de raça, cor, gênero, idade, orientação sexual, identidade de gênero, condição física. Fato é que, com ou sem acesso, o que se lhes disponibiliza padece do vício da falta de qualidade, como também é fato que as ditas minorias raciais, religiosas, de orientação sexual ou condição física – para citar algumas – situ- am-se dentro das maiorias étnicos-raciais e de gênero da população brasileira, segundo censos oficiais a ela relativos. Como se vê, o panorama é dantesco se trazemos o foco para a efetivi- dade do sistema garantístico da igualdade e da liberdade... e, porque é assim, esta é a questão que nos inquieta e que tentaremos responder à continuação. Como afirmam os existencialistas o homem não é uma ilha, é ele e suas circunstâncias, circunstâncias pessoais ligadas a seu pertencimento a deter-

problemas e demandas sociais, visando a melhoria da qualidade de vida dos grupos vulneráveis, neste caso voltadas ao grupo LGBT; “Cristo gay crucificado: movimento LGBT, religião e liberdade de expressão”, de autoria de Ricardo Adria- no Massara Brasileiro e Thiago Lopes Decat, que, sob a ótica da Teoria do Direito e perspectiva crítica da teoria liberal, analisam dois casos recentes afetos às comunidades LGBT ocorridos no Brasil – em 2011 e 2015 181 Edelamare Melo (Organizadora) minados grupos sociais, culturais, políticos, econômicos, religiosos, dentre muitos outros. E, exatamente porque é assim, na sua atividade diária, no seu viver e conviver, ele não se afasta de tudo o que determina a sua condição individual e social. Esta condição que o distingue dos demais, por assim dizer, e sem cunho pejorativo de qualquer natureza, impregna todo o seu agir, inclusive a sua ação política de formulação, produção e aplicação do direito. No campo do preconceito, do racismo, da intolerância e da discrimi- nação, que estigmatizam certos e determinados grupos sociais, este modo de ser e estar no mundo do indivíduo atua de forma mais incisiva, e, porque não dizer, com força tal que afeta a realização concreta do princípio da igualdade. Elegemos quem são nossos iguais e discriminamos aqueles que entendemos não fazer parte do grupo, do coletivo dos nossos iguais. Não há, neste campo, ou em qualquer campo da ação humana, a tão propa- lada imparcialidade e neutralidade, tema que que foi objeto de nossa tese de dou- torado sobre a neutralidade e independência dos entes reguladores (Melo, 2006). Não somos neutros e imparciais, mesmo à hora de formular e aplicar o direito. Nossos conjuntos de valores informam o nosso agir, muitas vezes de forma muito insidiosa. E, porque é assim, a nossa tendência natural é criar condições para fazer valer nossos valores e nossas crenças, fazendo com que, não raras ve- zes, nos apartemos do ideal de igualdade, da liberdade, do respeito. Por tanto, é fato, que nosso sistema (pessoal) de valores afeta o nosso agir porque está presente com muita força e energia no nosso inconsciente... Neste campo é que se insere a importância exata – ou pelo menos próxima – do pluralismo cultural. A questão que se põe, portanto, é a seguinte: os fatores determinantes de práticas discriminatórias e preconceituosas seriam fruto do pluralismo cul- tural, que é acolhido no nosso sistema constitucional, notadamente em razão da formação histórica da nação brasileira? Como já afirmei o direito é objeto cultural, ocorre que não há uma cultura, existem várias culturas porque somos fruto de várias culturas: a indí- gena, a negra africana, a européia, a asiática, a judaíca - para citar apenas al- gumas - , que, à sua vez, são produto de um complexo cultural que informam seus sistemas de valores, os quais a ordem jurídica hierarquiza, ou melhor dito, prioriza para garantir, pelo menos em tese, um sistema de convivência harmônica. Valores fundamentais deste sistema são a liberdade e a igualdade, o direito a vida e a uma existência digna, para simplificar.

182 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Sendo assim, como conciliar diversos sistemas de valores que infor- mam culturas também diversas, cada qual com sua concepção de mundo, de vida, de igualdade e de liberdade? O acolhimento do pluralismo cultural, religioso, político foi a resposta encontrada por nossa Constituição, não para fomentar conflitos, mas, sim, para promover o respeito entre diferentes de modo a propiciar uma convivência pacífica. Portanto, embora o pluralismo cultural responda à questão da diversidade, não é ele a causa do preconceito e da discriminação. Estes são produto do agir humano. A questão relativa à prevenção e repressão a formas negativas de dis- criminação – porque todo preconceito é pré-conceito relativo a algo ou al- guém que fundamenta referidas formas de discriminação- no aspecto que reclama ação pública estatal para igualização de condições de vida digna com grupos historicamente não-discriminados – portanto, inclusão sócio-política e econômica- ganha especial relevo na atualidade brasileira, onde há um agra- vamento de práticas ilícitas discriminatórias e em relação às quais as políticas inclusivas e afirmativas não respondem a contento. A pergunta é, este Estado brasileiro que agora aí está sob gestão de grupos que orientam sua ação política por ideais liberais, enfrentará, de forma efetiva e não simbólica, o problema, a grave chaga social, da discriminação de grupos historicamente desfavorecidos por meio da formulação e imple- mentação de políticas públicas que sirvam de antídoto à droga social do pre- conceito, da intolerância, do racismo e da discriminação? É do seu interesse promover ações afirmativas aparelhadas com medidas estruturais na educa- ção, saúde, assistência, emprego e renda aptas a permitirem a inclusão social e produtiva de grupos historicamente excluídos deste acesso? Para responder a esta questão é necessário termos compreensão do sen- tido e significado da liberdade e da igualdade na República Federativa do Brasil, que se afirma um estado democrático e de direito. Isto porque, só a partir desta compreensão é que poderemos desenhar o que podemos esperar – pelo menos em tese- em tema de superação das barreirais sociais, culturais e econômicas que obstam a migração da desigualdade para a igualdade de modo a propiciar a realização concreta da igualdade material tratando os desi- guais na medida de sua desigualdade. No caso os grupos menos favorecidos. Antes, porém, e a partir do que até aqui refleti e afirmei, ouso afirmar que a discriminação e o preconceito são sistêmicos e estão, em grande medi- da, institucionalizados como prática na nossa vida cotidiana. Como é de ci- ência comum – pelo menos por aqueles que sofrem os dissabores do precon- ceito, do racismo, da intolerância e da discriminação - o sistema não reage de

183 Edelamare Melo (Organizadora) forma efetiva ao assédio discriminatório presente nas instituições, ao revés, o alimenta e busca justificativas para sua existência e permanência, muitas vezes invertendo as regras do jogo para transformar a vítima da discriminação em autor, no agente provocador da discriminação, notadamente quando esta envolve conduta tipificada como crime... Afirmo o que afirmo porque por trás das instituições estão os homens, eles que a constroem, e, neste processo, não se aparta de suas circunstâncias de vida, de seus valores, de sua cultura, de suas crenças, ainda que estas sejam preconceituosas e discriminatórias. Isto é da natureza humana. O homem não é neutro e imparcial, portanto suas instituições não são neutras e imparciais, ainda que se afirme, em tese, que o sejam. Como dis- se, cuidou-se longamente desta questão em tese doutoral (Melo, 2006), na qual sustentou-se a inexistência de neutralidade e imparcialidade dos entes reguladores, bem assim da técnica. Esta, porque o que dela é produto sofre o influxo do subjetivismo18 de quem a aplica, detém ou conhece, em função de determinados fins que o sujeito se propõe. É dizer instrumentalizamos a técnica, a ciência, o Direito conforme sejam os nossos interesses e sistema de valores, como instrumentalizamos as instituições, ainda que a pretexto de fazer com que ela cumpra os objetivos que justificaram a sua criação. Neste caso, não raro, com a omissão de enfrentamento de determinados problemas sociais – como é o caso do preconceito, do racismo e da intole- rância, inclusive de natureza religiosa. Tal omissão de agir é justificada para não aflorar determinadas questões que imporão a tomada de posição pró-i- gualdade, portanto em desfavor de grupos que patrocinam a discriminação atentatória da dignidade da pessoa humana e que se encontram no ápice das instâncias do poder estatal... Não devemos fugir desta realidade e, por isso, faz-se necessário elencar algumas questões que estão aí na ordem do dia de quem sofre a ação negativa do preconceito e da discriminação e, que, não são tratadas nas instituições com a seriedade e compromisso que a situação e os fundamentos de uma Re- pública que se afirma um Estado Democrático e de Direito exigem. É fato a existência de barreiras sociais de acesso e permanência no mun- do do trabalho em razão de credo/crença religiosa, gênero, raça, cor, orientação sexual, identidade de gênero, condição física....; é fato o assédio, ou, como pre-

18 Sobre o tema do subjetivismo consulte-se as aportações de FOUCAULT, que foram objeto de excelente análise desde perspectiva das diferenças e reconhecimento étnicos por Laira Correia de Andrade e Paulo Raimundo Lima Ralin no estudo “Reconhecimento, Diferença E Subjetividade Etnica” apresentado no XXV CONGRESSO DO CONPEDI – CURITIBA - Grupo SOCIEDADE, CONFLITO E MOVIMENTOS SOCIAIS Disponível em: http:// www.conpedi.org.br/publicacoes/02q8agmu/09gc6o3b/u298hAykM5NvFvvd.pdf. Acesso: Maio/2017 184 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. ferem os espanhóis, e particularmente concordo, o acosso moral no mundo do trabalho fundado em questões de raça, cor, gênero, orientação sexual, credo/ crença religiosa, notadamente em unidades educacionais que deveriam velar por formação cidadã vocacionada para a realização concreta da democracia racial, religiosa, de gênero, só para citar algumas. Situação que também está presente no mundo do consumo, mas, também, da prestação de serviços públicos essenciais, notadamente nas áreas da educação, saúde, assistência e emprego e renda. Aqui a proposta dos agentes da discriminação, do preconceito e do acos- so moral é impedir o pensar e o agir crítico responsável, é inibir que se ponha em tela de juízo suas infundadas razões de preconceito, racismo, intolerância e discriminação; é impedir a conscientização, capacitação e qualificação do cidadão, do trabalhador, do consumidor, do educador, do empresário, do mé- dico de hoje e de amanhã para o enfrentamento de questões racistas, sentido amplo, pela compreensão racional de suas causas e consequências, inclusive para a saúde do ser humano e sua dignidade. Tudo se justifica porque preciso manter meu rebanho sobre o efeito e dependência da droga na qual se constitui a irracionalidade do preconceito, do racismo, da intolerância e da discriminação nele fundada, que, em grande medida, notadamente no campo político das instâncias legislativas, constitui- se no principal apelo para a investidura em um munus que deveria servir à democracia, à república e aos valores que a informam. Portanto, para me manter no poder, no comando, preciso, da letargia, da cegueira, da ignorância... porque sem elas não consigo manipular para incitar a prática de condutas motivadas pelo preconceito, pela intolerância, pelo racismo e tipificadas como crime, mas, que, deverão ser tratadas como simples inciden- tes sociais indignos de submissão às regras estritas – notadamente aqueles de natureza penal- do estatuto constitucional e infraconstitucional da igualdade. Assim, agentes da violação a direitos humanos fundamentais serão tra- tados com parcialidade conivente pelos agentes da aplicação do direito, por- que ambos egressos do mesmo sistema – inclusive educacional - que patroci- na a manutenção do status quo do preconceito, do racismo, da intolerância e da discriminação, e do seu sistema de valores. Prova desta questão é a praticamente impossibilidade de implementa- ção na rede de ensino – incluindo o terceiro grau- e que permitiria um enfren- tamento sério efetivo das questões ligadas ao racismo- da Lei 10.639/ 2003, que altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as dire- trizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”.

185 Edelamare Melo (Organizadora)

É assim porque esta história e cultura é demonializada por grupos sectários e fundamentalistas religiosos, de forma que membros deste segmento social e religioso – mas, também, político como demonstra a ascensão à chefia do Exe- cutivo da República de um representante deste segmento que, inclusive, entregou a pasta de direitos humanos a uma pastora evangélica que, como já dito em outro lugar deste texto, entende que a solução para a nação é a igreja, a sua igreja, por óbvio- que se encontram espalhados em todos os setores sociais, econômicos, políticos e educacionais e de serviços públicos essenciais, usam da pressão e do assédio para impedir a aplicação de referido estudo. A questão é elidida, é invisi- bilizada... e cai em um vazio que o silêncio eloquente explica e justifica. Também as questões de gênero, orientação sexual e identidade de gê- nero sofrem o influxo desta ação nefasta que tenta, a todo custo, impedir que elas sejam discutidas em salas de aula...mais uma vez os grupos sectários e fundamentalistas religiosos patrocinam esta ação onde quer que estejam... Neste processo, as pessoas jurídicas que se constituem em operadores do sistema econômico ou público-estatal passam a ter crença e credo religio- so, passam a adquirir contornos de instituições racistas, homofóbicas, xeno- fóbicas...ou seja, passam a ser instrumentalizadas para finalidades ilícitas... mas onde está o Estado que tudo vê e nada vê, que tudo faz e nada faz para evitar barreiras que tais no acesso e permanência no trabalho, e/ou no gozo de direitos e garantias fundamentais, individuais, sociais ou coletivas? Considerações finais Ao estudioso e pesquisador do Direito, ao cientista do Direito e das demais ciências sociais gera certa perplexidade este estado de coisas que pro- duzem anomalias tais como: escolas e empresas confessionais que dissemi- nam valores antidemocráticos e atentatórios a dignidade da pessoa humana, portanto a direitos humanos fundamentais em um estado republicano e de- mocrático, que tem o compromisso constitucional de garanti-los. Órgãos policiais, jurisdicionais e ministeriais, dentre outros que integram o sistema orgânico de garantia de direitos fundamentais, fazem de conta que estas situações se constituem em quimeras e, por isso, não as enfrentam dado o receio de causar fissuras em um tecido social já esgaçado e no qual se consolida como algo normal práticas preconceituosas e discriminatórias, estas de natureza negativa e que visam inferiorizar determinados segmentos sociais dando-lhes o não-direito e a parcialidade como resposta às agressões das quais são vítimas. Sendo assim se trafica e institucionaliza, com certa tranquilidade, a dro- ga social na qual se constituem o preconceito, o racismo, a intolerância e a

186 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. discriminação fundada em raça, cor, idade, gênero, orientação sexual, identi- dade de gênero, credo/crença religiosa, condição física, social, econômica e cultural... e por aí vai. Este é o quadro do preconceito, do racismo, da intolerância e da dis- criminação que hoje vivenciamos neste Brasil que se constitui em uma repú- blica democrática...mas... onde estão os valores republicanos e democráticos que lhe cumpre guardar, velar e preservar de tais ações nefastas? Entender esta relação entre preconceito, racismo, intolerância, discriminação e ação estatal pro-igualdade exige situá-la em um determinado marco que não pode prescindir da educação como única ferramenta idônea a vencê-los e superá -los rumo a uma democracia que, como tal, possa ser qualificada. Uma democracia em que o respeito aos direitos fundamentais não seja um discurso vazio e meramente simbólico, mas, sim, um valor apropriado por todos e cada um de nós. Educação sentido amplo que promova a cultura da paz e do respeito entre iguais. Em 1995, a UNESCO (1995) lançou a Declaração dos Princípios sobre a Tolerância, definindo-a nos seguintes termos

A tolerância é o respeito, a aceitação e a apreço da riqueza e da diversidade das culturas de nosso mundo, de nossos modos de ex- pressão e de nossas maneiras de exprimir nossa qualidade de seres humanos. É fomentada pelo conhecimento, a abertura de espírito, a comunicação e a liberdade de pensamento, de consciência e de crença. A tolerância é a harmonia na diferença. Não só é um dever de ordem ética; é igualmente uma necessidade política e jurídica. A tolerância é uma virtude que torna a paz possível e contribui para substituir uma cultura de guerra por uma cultura de paz.

Contudo, para fazer realidade o princípio da tolerância – melhor dito do res- peito à diferença- é necessário, antes de quaisquer ações afirmativas, que se mude o paradigma educacional a partir da conscientização dos seus agentes no sentido de que o espaço educacional não está posto para o fomento à cultura do ódio, do racismo, da intolerância, do preconceito e da discriminação, como hoje ocorre sem qualquer ação reativa do Estado àqueles que o utilizam de forma ilícita. É dizer, a mudança de paradigma para aceitação da diferença reclama uma mudança cultural, o que apenas é possível por meio da educação, in- clusive de massa. Para tanto reclama-se um Estado pró-ativo que promova ações que fomentem o respeito à diferença, inclusive por meio de propagan- das institucionais pro-igualdade. Ou seja, faz-se necessário a construção de um espaço público pro-igualdade.

187 Edelamare Melo (Organizadora)

Mas não só. É necessário levar tratamento e condições de vida digna para os guetos e favelas dos grandes centros urbanos, mas, também, para os municípios, hoje, em sua maioria, tomados pelo tráfico que se constitui em poder paralelo ao poder do estado. É necessário levar serviços públicos de qualidade que permitam o aces- so dos grupos historicamente discriminados e excluídos – e nos quais se concentra a maioria vitimada por processos preconceituosos, racistas, intole- rantes e discriminatórios – a uma educação básica que lhes permita acesso às universidades, trabalho, emprego e renda dignos, capacitação e qualificação que lhes permita inclusão social e produtiva sem necessidade de cotas, que muitas vezes não são preenchidas por falta daquela condição básica essencial: educação básica e fundamental de qualidade. Enquanto tal não ocorrer, sim, faz-se necessário, políticas e ações afirmativas pró-inclusão social, política e econômica das vítimas de preconceito, intolerância, racismo, que fundamen- tam as perversas formas de discriminação em razão de raça, credo/ crença religiosa, cor, etnia, gênero, orientação sexual, identidade de gênero, idade... Referências Bibliográficas Aguiar, Jean Menezes de. O preconceito e o preconceituoso. In: Pragmatismo Político. Observatório Geral. 27.6.2014. Disponível em: http://www.pragmatismopolitico.com. br/2014/06/o-preconceito-e-o-preconceituoso.html. Acesso: Maio/ 2017

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190 MÃE STELLA DE OXOSSI Terreiro Opó Afonjá/ Bahia

Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Empoderamento e Contribuição da Mulher do Terreiro de Candomblé

Egbom Sandra Maria Bispo de Yemanjá1

A presente reflexão tem como objetivo versar sobre o empoderamento das mulheres do Candomblé e sua contribuição ao fortalecimento da sociedade por meio de seus vários papéis sociais. Desde líder, educadora, conselheira, empreendedora, até ações políticas em defesa dos direitos básicos e defesa e dos espaços religiosos. Ações tomadas sempre com sabedoria, coragem e compromisso. Podemos também lembrar a intensa participação dessas mulheres nas festas e rituais internos aos Terreiros de Candomblé até as festas públicas que lhe são confiadas, como a da Boa Morte e a de Iemanjá, por exemplo, em um corajoso processo de sobrevivência e manutenção de tradições. È notória, historicamente, a intensa participação de mulheres na constituição das Irmandades Religiosas enquanto núcleos de resistência e de luta pela sobrevivência. A Irmandade Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, em Salvador, exemplifica toda uma atuação de enfrentamento a um modelo de sociedade de base estruturalmente racista e machista. Nessa caminhada de resistência, essas heroínas agem com empenho e determinação, inclusive com investimento logístico e financeiro nas interven- ções para mudar a sua situação social de suas comunidades. Nessa dinâmica de atuações e intervenções, aflora uma relevante contribuição para a constru- ção de uma imagem positiva da mulher via o exercício de uma religiosidade que tem como essência a observância ancestral da cultura de matriz africana. No interior dos templos religiosos, os ritos e normas praticadas de forma lú- cida e responsável, o aprender fazendo, as lendas contadas como forma de transmissão de saber, os aconselhamentos individuais e os projetos sociais bem desenvolvidos, influenciam no despertar de uma mulher forte, criativa, que detém o fazer, o saber e muitas vezes o poder em um mundo ainda ma- chista. Importante citar que a mulher, em um terreiro de Candomblé, dado a sua sensibilidade, favorece uma maior sociabilidade entre os membros comu- nitários, inclusive estimulando-os, a partir dos saberes e fazeres rituais, um tipo de conhecimento que muitas vezes pode ser utilizado, fora do terreiro, no sustento familiar (por exemplo, com o comércio de quitutes tradicionais). Ou seja, favorece a formação de empresas domésticas e comerciais, o que contri- bui para a maior arrecadação tributária e fiscal, além de preservar receitas e saberes ancestrais. A atuação dessas religiosas também auxilia a constituição de famílias extensivas, ou seja, todos da comunidade religiosa estão ligados

1 Ya kekerê do Terreiro de Oxumaré, Professora de Metodologia do Ensino Superior e Educação Infantil, Socióloga, Psicopedagoga Institucional, Produtora Cultural. 193 Edelamare Melo (Organizadora) por laços afetivos de axé. A difusão desses saberes revela a cultura e um mo- delo de religiosidade de um povo, reafirmando a herança simbólica que era específica do candomblé. Ao estabelecer elos entre os Terreiros e a sociedade como um todo, introduz de diversas formas e maneiras, o cardápio sagrado com autorização dos orixás, somente o que é permitido. Esses elos estabe- lecidos trazem em si os utensílios de trabalho, as indumentárias do povo de santo e outros elementos que estimulam uma relação de produção, venda e mercado consumidor. Basta visitarmos as feiras para verificarmos esse ponto, a exemplo de São Joaquim em Salvador, na Bahia. Pela própria característica de um espaço de Terreiro, a atuação das mu- lheres de Candomblé denota atitude de inclusão, o respeito à diversidade e às diferenças, a luta pelo direito de pensar e agir de toda uma população feminina marcada pelo resquício da Escravidão Oficial. Mesmo na moderni- dade, valem destacar as várias formas e maneiras, artimanhas e armadilhas historicamente construídas na tentativa de excluir e negar o grande potencial inteligente e criativo da mulher. Nessa onda perversa de exclusão, percebe- se dentre outros meios, a tentativa de manter uma invisibilidade socialmente forjada, que insiste em não dar vez e nem voz às mulheres. Esse ser feminino vivendo em uma sociedade tecnológica, informatizada, vem contribuindo de forma marcante para o desenvolvimento de uma geração mais justa, humana, em que predomine o respeito aos Direitos Humanos. Considero fundamental tentar romper as oposições estabelecidas pelas ideologias globalizantes que tenta a todo custo negar o direito a diversidade, as diferenças, reforçando cada vez mais o racismo, o machismo e a intole- rância religiosa. É urgente caminharmos no estímulo às nossas crianças e jovens, exercitando a solidariedade e respeito, ensinando a compreensão que é a essência da comunicação humana. Também consideramos necessário fa- zermos uma autorreflexão sobre nosso conhecimento, quanto à complexidade do ser humano para melhor atuarmos em favor de um mundo de paz. Como sujeito histórico que vivencia o Candomblé e considera fundamental com- preender que todos nós somos seres políticos, encontramos na religião nossa sensibilidade, que não é exclusivamente masculina nem feminina, mas que inclui as estruturas diversas de todo e qualquer ser humano. Acreditamos que o despertar da sensibilidade e a educação tanto na família, como nas escolas, será o grande caminho de mudança, pois a sensação de impunidade ajuda a aumentar à revolta e a violência. Neste ponto, confesso o quão difícil é falar sobre a questão da impu- nidade, da violência contra a mulher em todos os níveis, da intolerância re-

194 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. ligiosa e o perverso processo de discriminação e exclusão, do silêncio en- surdecedor, a ética hipócrita, dentre outros aspectos que afetam as mulheres. Principalmente, se a mulher for negra e possuir um alto potencial, ela é vista como inimiga e perigosa. O processo de tentativa de exclusão da mulher é tão grave que muitas vezes se constrói um grupo paralelo para atuar dentro dos terreiros de Candomblé para tolher o poder feminino. Por vezes, mantém-se uma hierarquia herdada (com seus respectivos cargos) apenas para legitimar a inclusão feminina, mas exclui-se a participação das mulheres das decisões mais importantes. Precisamos de coragem para repensar nossa prática religio- sa, pois somente assim podemos manter o que já conquistamos e aumentar o empoderamento feminino no Candomblé. A sociedade atual, através de leis justas e dignas, pode contribuir para a construção de atitudes mais inclusivas, no sentido de frisar a importância de termos direitos e deveres de maneira igualitária. Apesar disso, não basta somente tomar conhecimento dos direitos constitucionais. Acredita-se que as mais difíceis barreiras são as barreiras das atitudes cotidianas. É preciso que, de fato, nos tornemos acessíveis e prati- quemos a inclusão no nosso dia a dia. Estamos em uma sociedade dita demo- crática, ninguém deve ser excluído por preconceito, perversidade ou ignorân- cia racista e machista. Há de haver um despertar de consciência que nos leve a uma mudança de atitude, a uma prática mais respeitosa e, por consequência, a uma maior comunhão entre os seres humanos e as forças do bem.

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Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

A atuação do Ministério Público Federal na proteção à igualdade étnico-racial e à liberdade religiosa

Ela Wiecko V. de Castilho

Introdução No contexto do Simpósio Nacional sobre Racismo e Intolerância Religiosa no Brasil e seus Reflexos no Mundo do Trabalhocoube-me comentar a atuação do Ministério Público Federal (MPF) na proteção à igualdade étnico-racial e à liberdade religiosa. Este artigo reproduz basicamente o conteúdo da exposição oral feita no Painel 5, mas traz alguns outros dados e informações sobre a atuação judicial e extrajudicial do MPF, no período de 2000-2018. Trata-se de uma abordagem exploratória que aponta para um campo inexplorado de pesquisa, o qual deveria merecer atenção da Escola Superior do Ministério Público da União (ESMPU) na Década Internacional de Afrodescendentes, iniciada em 1º de janeiro de 2015 com término previsto em 31 de dezembro de 20241. Especialmente porque todos os Ministérios Públicos, a despeito de terem a missão de defesa de direitos individuais e coletivos indisponíveis, entre eles dos direitos das populações em situação de vulnerabilidade e das minorias, praticam o racismo institucional. Entende-se por racismo institucional:

o fracasso das instituições e organizações em prover um servi- ço profissional e adequado às pessoas devido a sua cor, cultura, origem, racial ou étnica. Ele se manifesta em normas, práticas e comportamentos discriminatórios adotados no cotidiano de tra- balho, os quais são resultantes da ignorância, da falta de atenção, do preconceito ou de estereótipos racistas. Em qualquer caso, o racismo institucional sempre coloca pessoas de grupos raciais ou étnicos discriminados em situação de desvantagem no acesso a benefícios gerados pelo Estado e por demais instituições e or- ganizações (PCRI, 2007).

1 A Assembleia Geral da ONU, por meio da Resolução n. 68/237, de 23/12/2013, proclamou a Década Internacio- nal com o tema: “Afrodescendentes: reconhecimento, justiça e desenvolvimento”. O principal objetivo consiste em promover o respeito, a proteção e a realização de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais de afrodes- cendentes, como reconhecidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos. 197 Edelamare Melo (Organizadora)

O marco inicial escolhido para a pesquisa corresponde ao ano em que a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), do MPF, criou um Grupo de Trabalho para discutir a questão da discriminação racial em geral, no contexto das reuniões preparatórias da III Conferência Mundial de Combate ao Racismo de Durban (2001). Na sequência houve uma reunião realizada em Goiânia, em 2002, cujos resultados foram relatados na publicação Discriminação e Ações Afirmativas: O Ministério Público Promovendo o Debate. Na mesma época, o MPF aderiu ao Programa de Combate ao Racismo Institucional (PCRI) do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), fazendo parte do Comitê Supervisor Nacional, por intermédio da PFDC. A adesão impulsionou a realização, em 2005, da Pesquisa sobre Perfil Racial e Percepção do Racismo entre membros, servidores, estagiários e trabalhadores terceirizados do MPF, tendo sido contratado como consultor o professor de antropologia da UnB José Jorge de Carvalho. No relatório final ele analisou os dados e apresentou conclusões e recomendações para a superação do racismo institucional no âmbito do MPF (PFDC, 2006). Embora o GT tenha encerrado em 2004, a PFDC continuou dando especial tratamento no combate ao racismo e à discriminação racial, seja através da instauração de Procedimentos Administrativos para acompanhar políticas públicas de combate ao racismo e projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional, seja através da promoção na Procuradoria Geral da República, nos anos 2005, 2006 e 2007, do evento chamado “Semana de Debates sobre Racismo e Desigualdade Racial”, que contou com a participação de órgãos públicos e especialistas no assunto, visando informar e sensibilizar membros e servidores sobre as peculiaridades que envolvem as populações negras no Brasil (PFDC, 2010). A PFDC também vem atuando, por meio de outros grupos de trabalho, com a perspectiva étnico-racial. Assim, no GT Alimentação Adequada, em que há preocupação com a inclusão dos quilombolas em programas estatais; no GT Comunicação Social, com a discriminação racial nos programas televisivos e na internet, resultando em Termos de Ajustamento de Conduta (TAC) e Ações Civis Públicas (ACP); e no GT Educação, com vistas à implantação do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena (PFDC, 2010). Em 2018, o tema do racismo voltou a ter foco próprio, pela instituição do Grupo de Trabalho Enfrentamento e Prevenção ao Racismo, com o objetivo de atuar no combate à discriminação e no fortalecimento de políticas públicas voltadas à promoção da igualdade racial, bem como atuar transversalmente com outras frentes de trabalho já implementadas pela PFDC, como o

198 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. enfrentamento à criminalização e ao extermínio da juventude negra. O GT é interinstitucional, pois conta com a participação de promotoras de Justiça. A atuação do/as Procuradores/as da República de todo país na busca da igualdade étnico-racial é objeto de coordenação e revisão pela PFDC. Todavia, quando a questão é submetida no enfoque criminal, os casos são objeto de revisão da 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF. Nas bases de dados do MPF encontramos, por exemplo, TAC firmado em 18/10/2003 pelo MPF no Rio Grande do Sul, Ministério Público Estadual, Departamento de Polícia Federal e empresas de serviços de internet, com vistas à prevenção e ao combate da prática de racismo e outras formas de discriminação, via internet; a ACP ajuizada em 28/6/2005 pelo Procurador da República Alessander Wilckson Cabral Sales, no Ceará, visando a instituição, pela Universidade Federal do Ceará, de sistema de cotas para afro-brasileiros, já que a instituição de ensino superior não havia atendido recomendação anteriormente expedida com tal finalidade; a Recomendação, expedida em 29/9/2009, pela Procuradora Regional dos Direitos do Cidadão (PRDC), Silmara Cristina Goulart, em Minas Gerais, ao Presidente da Empresa Federal de Processamento dedados (SERPRO) que se negara a cadastrar a Associação e Resistência Religiosa e Cultural de Cultos Afro Brasileiros Ilê Axé Alafin Odé, para celebração do convênio com o governo federal. Considerando o propósito do Simpósio, solicitei pesquisa, em 13/8/2018, à Coordenadoria de Biblioteca e Pesquisa da Procuradoria Geral da República. Com os termos “intolerância, religião e africana”. Foram recuperados pelo Sistema Único2 21 procedimentos, dos quais 11 não foram visualizados em razão de sigilo. Com os termos “ação civil pública, intolerância e religião”, mais 10 procedimentos. Na Justiça Federal foram localizadas 7 ações civis públicas, nenhuma delas relativa aos procedimentos antes localizados. Observo que a recuperação de dados pelo Sistema Único apresenta problemas variados. Entre eles, a ausência de registros de inteiro teor das manifestações ministeriais. Mas o objetivo que norteou a pesquisa não foi a de fazer levantamento quantitativo ou qualitativo exauriente, apenas identificar casos de atuação do MPF para uma avaliação preliminar sobre as demandas encaminhadas e a resposta institucional oferecida. Vejamos de que tratam os procedimentos que puderam ser visualizados em algum grau. A apresentação seguirá a ordem cronológica de instauração.

2 Sistema de informação para agilizar e unificar o trâmite de documentos judiciais e administrativos do Ministério Público Federal, visando, entre outras coisas, proporcionar meios de responder a questões estratégicas que possibi- litem ter uma noção quantitativa e a melhoria qualitativa da gestão. 199 Edelamare Melo (Organizadora)

Em 2012, foi instaurado inquérito civil (IC) na PR/Bahia com base em uma representação do Departamento de Polícia Metropolitana de Salvador, noticiando atos de intolerância religiosa em alguns terreiros de candomblé daquela cidade e Região Metropolitana. Outros órgãos trouxeram notícias de atos semelhantes, praticados entre 2006 a 2014 em várias localidades no estado. O Procurador da República Edson Abdon Peixoto Filho promoveu o arquivamento, em 2016, considerando que foram adotadas medidas pelos órgãos competentes para prevenir e reprimir a prática de violência e de intolerância religiosa contra os templos e praticantes das religiões de matriz africana. A PFDC homologou o arquivamento. Em 2013, duas manifestações foram recebidas pelo Sistema de Atendimento ao Cidadão (SAC) alegando intolerância religiosa em um artigo publicado no sítio da UOL por Gregório Duvivier. Uma delas foi feita por Edmar Barbosa Bonfim, nos seguintes termos: “Como sacerdotisa de matriz africana, cidadã cumpridora de meus deveres, defendo a liberdade religiosa de nossa Carta Magna, e solicito uma retratação do escritor, do veículo que a publicou, tendo em vista as palavras de tom totalmente pejorativo”. As duas manifestações foram autuadas como Notícia de Fato (NF) apensadas e encaminhadas a um ofício criminal da PR/SP. O membro do MPF promoveu o arquivamento na Justiça Federal. No mesmo ano mais uma manifestação pelo SAC gerou NF, instaurada pela PRDC/SP. Aponta prática de discriminação e intolerância religiosa praticada por Robson Pinheiro, autor do livro “Tambores de Angola”. O Procurador da República, Jefferson Aparecido Dias, indeferiu liminarmente a instauração de inquérito civil, sob fundamento de que as informações trazidas pelo livro são fruto de liberdade de expressão e manifestam opinião pessoal do autor, sem instigar a prática de racismo ou intolerância. Em 2015, manifestação reclamou que o Pastor Lucinho, de Belo Horizonte/MG, propagara discurso de ódio contra religiões de matriz africana, e apresentou link de um vídeo em que o pastor alicia jovens em Governador Valadares para causar desordem em um encontro de seguidores daquelas religiões. A manifestação foi autuada como NF, tendo sido requisitada a instauração de inquérito policial. Em 2016, o Procurador da República Eduardo Morato Fonseca, em Belo Horizonte, ofereceu denúncia pela prática do crime de racismo (art. 20, § 2º, da Lei n. 7.716/1989). Em março de 2018, um Juiz Federal absolveu o réu porque “a despeito das palavras de baixo calão e da intolerância, para haver o crime, seria indispensável que tivesse ficado demonstrado o especial fim de supressão ou redução da dignidade do diferente”.

200 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Também em 2015, manifestação pelo SAC de Luiz Fernando Martins da Silva, solicitando apuração da prática de crime de ódio na página do Facebook “Igreja Internacional” e ajuizamento de ação civil pública, gerou NF na Procuradoria do Município de Teresópolis/RJ, com posterior requisição de inquérito policial. O relatório do delegado de polícia concluiu que a página tem conteúdo humorístico, ausente dolo de injúria racial, preconceito religioso, ultraje ou vilipêndio a culto religioso. O Procurador da República Paulo Cezar Calandrini Barata promoveu então o arquivamento na Justiça Federal. Todavia, em outra manifestação, formulada por Barbara Copque, distribuída ao Procurador da República no Rio de Janeiro, Daniel Prazeres, este não conseguiu acessar a publicação no Facebook denominada “Igreja Internacional”, mas constatou na página imagens discriminatórias contra católicos. Requereu judicialmente quebra do sigilo de dados telemáticos da página. Não constam registros de andamento posteriores a esse requerimento. Ainda em 2015, várias manifestações foram direcionadas ao MPF contra a Igreja Universal Reino de Deus (IURD). Um procedimento preparatório (PP) foi instaurado na PR/Ceará, com base em manifestação de Verônica da Costa Silveira sobre a possível existência de um exército comparável a uma milícia, denominado “Gladiadores do Altar”, incitando o ódio contra outras religiões. A ele foram apensados procedimentos oriundos do Maranhão (Fórum Estadual de Religiões de Matriz Africana do Maranhão), e de Santa Catarina. A Procuradora da República Nilce Cunha Rodrigues promoveu o arquivamento, sob o argumento de que o vídeo referido pelos representantes revela apenas um grande número de fiéis do sexo masculino demonstrando sua fé e religiosidade dentro do ambiente do templo da religião que professam. A decisão foi homologada pelo Núcleo de Apoio Operacional da PFDC da 5ª Região (NAOP). Um IC foi instaurado, na PR/Bahia, com base em representação de James Amorim de Araújo, à qual foram juntadas representações do Coletivo de Entidades Negras (CEN) e de religiões de matriz africana, noticiando prática de intolerância religiosa por parte da IURD e preocupação com os possíveis desdobramentos da formação do grupo denominado “Gladiadores do Altar”. O procurador Leandro Bastos Nunes arquivou o inquérito porque os representantes não trouxeram informações solicitadas nem se manifestaram sobre a resposta da IURD. O arquivamento foi homologado pela PFDC, em abril de 2018. Em 2016, a titular da PRDC no Rio de Janeiro, Ana Padilha Luciano de Oliveira, indeferiu a instauração de IC requerida por Daniel Borges Diniz Vieira com o objetivo de apurar prática de intolerância religiosa no Blog Ministério do Louvor Infantil Quelly Silva contra religiões de matriz

201 Edelamare Melo (Organizadora) africana, ao tratar da comemoração de São Cosme e Damião. A procuradora avaliou que o radicalismo da blogueira não configurou discurso de ódio apto a reivindicar a atuação do MPF. De outra parte, a referida PRDC instaurou PP, a partir da representação da Sociedade de Economias Unificadas Afro Beneficência Brasileira, à vista de notícia veiculada na imprensa de que as religiões de matriz africana não teriam representatividade no centro ecumênico da Vila Olímpica Paraolímpica. Foram expedidas duas Recomendações ao Comitê Olímpico Internacional para que assegurasse a igualdade de acesso a todos os cultos religioso. A homologação do arquivamento pelo NAOP da 2ª Região ressaltou que, embora a situação do tratamento discriminatório às religiões de matriz africana ter sido regularizada três dias após o início do evento, não foram noticiados novos relatos de atos discriminatórios concretos. Ainda em 2016 foi instaurado um IC pela PRDC/SP, a partir de um ofício da Ouvidoria Nacional da Igualdade Racial, para apurar possível discriminação contra religiões de matriz africana praticada pelo Padre Ironi Spuldaro em missa veiculada ao vivo pela página eletrônica da Comunidade Canção Nova, na rede Facebook, em 2016. A Procuradora da República Lisiane Braecher promoveu o arquivamento por entender que as manifestações do clérigo encontram-se no âmbito de sua liberdade de crença e de expressão, sem caracterizar intolerância religiosa ou discriminação, apenas divergência de crença. O arquivamento foi homologado pelo NAOP da 3ª Região. Em 2017, com base em manifestação de Daniel Horn Majczak, residente em Curitiba, foi instaurada NF para apurar eventual prática de crime contra a honra em comentários na plataforma YouTube por usuário identificado como “A verdade que liberta”, em vídeo destinado a promoção do Candomblé. Em 2018, a Promotoria de Justiça de Osasco encaminhou documentação recebida de Jadson Maurício dos Santos, sacerdote de Umbanda, em que solicita providências em face da discriminação e preconceito contra os praticantes das religiões de matriz africana e profanação de seus templos por pessoas de religião evangélica, em Campinas e Osasco. A documentação foi autuada e distribuída a um dos ofícios da PR/SP e houve declínio de atribuição para a PRDC/SP, onde encontrava-se em tramitação. Vejamos agora as ações civis públicas localizadas na pesquisa. No final de 2004, a PRDC/SP, pela Procuradora da República Eugênia Augusta Gonzaga, o Instituto Nacional de Tradição e Cultura Afro-brasileira (Intecab) e o Centro de Estudos das Relações de Trabalho e da Desigualdade (Ceert), pelo Advogado Hédio Silva Júnior, propuseram ACP com pedido de

202 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. antecipação de tutela para garantia do exercício de direito de resposta coletivo em face de Rede Record de Televisão, Rede Mulher de Televisão e União. Isso porque aquelas redes veiculavam programas de caráter religioso produzidos pela Igreja Universal do Reino de Deus com menosprezo às religiões afro- brasileiras, chamando “pais e mães de santo” como “pais e mães de encosto” e mostrando “sessões de descarrego”. A União foi acionada tendo em vista sua omissão na fiscalização das concessionárias de rádio e televisão por atos atentatórios à cidadania, à dignidade da pessoa humana e à liberdade de crença religiosa. O pedido objetivou a exibição de 30 programas televisivos com duração de duas horas cada, a serem exibidos em 30 dias consecutivos no horário de 21 às 23 horas. O pedido antecipatório foi parcialmente deferido pela Juíza Federal Marisa Cláudia Gonçalves Cucio para garantir o direito de resposta coletivo às associações autoras, determinando-se que as rés fornecessem todo o apoio técnico e material necessário para a produção e gravação de um único programa, com duração de uma hora, para exibição, por elas, durante 7 dias, nos mesmos horários dos programas tidos como ofensivos, com três prévias chamadas aos telespectadores. Essa decisão liminar não logrou ser executada, pois embora não suspensa pela relatora no Tribunal Regional Federal da 3ª Região, o foi por cautelar concedida pelo relator no Superior Tribunal de Justiça (STJ). A sentença, proferida em 2015, relata a sucessão de recursos e de obstáculos processuais opostos, visando impedir o reconhecimento do direito de resposta coletivo. Nesse trâmite a União foi excluída do feito. No mérito, o Juiz Federal Djalma Moreira Gomes julgou parcialmente procedente o pedido, determinando a produção pelas rés de quatro programas, os quais deverão ser exibidos em 8 oportunidades em cada uma das emissoras, pelos quais serão feitos pelos autores os esclarecimentos por eles considerados importantes, por serem capazes de promover o restabelecimento da verdade segundo práticas e tradições das religiões afro-brasileiras. Os horários das apresentações devem ser compatíveis com aqueles em que regularmente eram exibidos os programas “Mistérios” e “Sessão de Descarrego”. Foi concedida tutela específica para que a produção do primeiro programa ocorresse dentro de 30 dias e as exibições com início em 45 dias e término em 75 dias, a contar da data da intimação da sentença. Fixada multa, por emissora, por dia de atraso na produção ou exibição dos programas, podendo ser convolada em suspensão de toda a programação em caso de recalcitrância. As rés opuseram embargos de declaração parcialmente acolhidos para explicitar a abrangência do direito de resposta, os parâmetros para a produção

203 Edelamare Melo (Organizadora) dos programas, a priorização do conteúdo informativo e cultural, as chamadas para o direito de resposta e a não condenação em honorários advocatícios. Novos embargos de declaração sobre o tema das chamadas comerciais foram rejeitados. Seguiram-se as apelações, com pedido de efeito suspensivo da tutela, o que foi concedido. Em abril de 2018, a sentença de primeiro grau foi mantida. As rés continuaram a resistir, tendo interposto recursos especiais e extraordinários. Todavia, o Gabinete da Conciliação do TRF3 conseguiu articular um acordo. Além da obrigação de veicular quatro programas de televisão na Record News, estabeleceu R$ 300 mil de indenização para cada uma das autoras da ação, Itecab e a Ceert. As duas entidades serão responsáveis pela concepção e produção dos programas, que serão pagas pela Record. Para Daniel Teixeira, coordenador de projetos do Ceert: “É uma grande vitória poder mostrar a riqueza de valores religiosos que o país tem e passar uma mensagem de paz entre as crenças e contra a intolerância religiosa” (FIORATTI, 2019). Em 2005, o MPF na Bahia ajuizou ACP contra Edir Macedo Bezerra, Editora Gráfica Universal Ltda. e Igreja Universal do Reino de Deus, objetivando a suspensão definitiva, em todo o território nacional de tiragem, venda, revenda, entrega gratuita ou qualquer outro tipo de circulação da obra “Orixás, caboclos e guias, deuses ou demônios?”, com a estipulação de preceito cominatório para caso de descumprimento. Em 2017, o Juiz Federal Rodrigo Britto Pereira Lima revogou a liminar e julgou improcedente os pedidos porquanto “embora determinados trechos da obra literária em questão sejam intolerantes, tenho que a mesma se insere no cenário do embate entre religiões e decorre da liberdade de proselitismo, essencial ao exercício, em sua inteireza, da liberdade de expressão religiosa”. O MPF interpôs apelação em abril de 2018. Em 2011, o MPF e o Ministério Público Estadual da Bahia ajuizaram ACP, com pedido liminar, em face de Ademir Oliveira dos Passos, para que o requerido fosse compelido a abster-se de praticar qualquer ato impeditivo da prática religiosa do candomblé e de seus liturgias, como derrubar, reformar, alterar, construir na área do terreiro Zô Ogodô Malê Bogun Seja Hundê, no município de Cachoeira, ou contígua a ele, sob pena de multa diária de R$ 50.000,00. Em 2014, o Juiz Federal Carlos D’Ávila Teixeira revogou a liminar e extinguiu o processo com resolução de mérito, tendo em vista a homologação de acordo celebrado entre as partes. Em 2014 o MPF, no Rio de Janeiro, pelo Procurador Regional dos Direitos do Cidadão, Jaime Mitropoulos, a partir de representação da

204 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Associação Nacional de Mídia Afro, ajuizou ACP, com pedido de tutela de urgência, em face de Google Brasil Internet Ltda. por não ter retirado da rede mundial de computadores 15 vídeos que veiculam proposições, imagens e abordagens expondo pessoas e grupos ao ódio e ao desprezo por motivos fundados na religiosidade de matrizes africanas, configurando práticas de intolerância religiosa nos meios de comunicação. A ação foi precedida de audiência pública que debateu o papel da mídia e do Estado frente a possíveis violações aos princípios da liberdade religiosa e do Estado laico. Após análise dos conteúdos questionados foi expedida recomendação para que a Google retirasse os conteúdos da Internet, mas houve recusa sob o argumento de que constituíam manifestação da liberdade religiosa e que não violavam as práticas da empresa. Em sentença de 2015, o Juiz Federal Eugenio Rosa de Araújo acolheu o pedido de retirada definitiva dos vídeos, mas rejeitou o de indenização por dano moral coletivo. Em 2016, os Procuradores Regionais dos Direitos do Cidadão no Rio de Janeiro, Renato Freitas Souza Machado e Ana Padilha Luciano de Oliveira, propuseram ACP, com pedido de tutela de urgência, em face de Igreja Universal do Reino de Deus, de Guaracy dos Santos e de Google Brasil Internet Ltda. tendo em vista conteúdos divulgados através do canal do YouTube e perfil de Facebook que disseminam a intolerância e a discriminação contra as religiões de matriz africana. A IURD promove periodicamente o evento religioso denominado “Duelo dos Deuses”, conduzido pelo Bispo Guaracy. O culto é itinerante e reúne centenas de fiéis em diversas cidades do Brasil. Cada evento é filmado e editado na forma de programa que passa a compor a programação do canal de Youtube TV IURD. Os eventos incluem sessões de exorcismo nas quais o Bispo conduz o que alega ser a expulsão de entidades demoníacas do corpo de um ou mais presentes. Os supostos demônios declinam seus nomes, identificando-se como divindades das religiões afro- brasileiras, tais como Ogum de Ronda, Xangô da Pedreira, Iansã do Fogo, entre outras. Houve pedido de medida cautelar para quebra do sigilo de dados cadastrais de conexão e de usuário dos(s) responsável(is) pela postagem de vídeo excluído, e de vídeos hospedados em endereços do YouTube; retirada de vídeos acessíveis em diversos endereços eletrônicos. Ao final, pedido de condenação em danos morais coletivos causados, a partir de recomendação dirigida a IURD e não atendida. A Juíza Federal da 24ª Vara Cível da Seção Judiciária do estado do Rio de Janeiro declinou da competência para a Seção Judiciária do estado de São Paulo, mas ali o Juízo Federal da 26ª Vara Cível suscitou conflito,

205 Edelamare Melo (Organizadora) decidido pelo STJ, em 2017, para declarar a competência do juízo suscitado. Retornando os autos ao juízo inicial, dado o tempo decorrido sem notícia nos autos sobre eventual alteração dos fatos, a Juíza Federal Maria Cristina Ribeiro Botelho Kanto indeferiu a liminar. O feito encontra-se em trâmite, que deverá ser longo, pois o réu Guaracy dos Santos reside nos Estados Unidos. Por fim, vale ressaltar o posicionamento do Ministério Público Federal pelo não provimento do Recurso Extraordinário interposto pelo Ministério Público do estado do Rio Grande do Sul, o qual defende a inconstitucionalidade da Lei estadual n. 11.915/2003 (com as alterações da Lei n. 12.131/2004), que veda o sofrimento e sacrifício de animais, mas permite excepcionalmente o sacrifício ritualístico nos cultos e liturgias das religiões de matriz africana. A Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão Deborah Duprat e o Procurador Regional da República Walter Claudius Rothenburg subscreveram Nota Técnica e a encaminharam a Procuradora-Geral da República com o propósito de oferecer argumentos adicionais para eventual apresentação de memoriais. A data do julgamento no STF está marcada para o dia 28/3/2019. Considerações Finais A atuação do MPF na proteção à igualdade étnica-racial e à liberdade religiosa é relativamente recente, impulsionada pela Conferência de Durban, em 2001. A pesquisa exploratória revelou dificuldades para a obtenção de dados e informações consistentes porque a informatização de todas as unidades do MPF em um sistema único só veio a se completar em dezembro de 2014. A padronização dos temas e subtemas data de 1º/12/10, a partir de recomendação da Resolução n. 63 do CNMP. Todavia, a padronização das tabelas não garantiu a plena consolidação das informações do sistema, porque falta ainda a adoção efetiva de um procedimento de trabalho padrão em todas as unidades. No entanto, os resultados da pesquisa parecem expressar adequadamente o grau de atuação do MPF no tema da proteção à expressão das religiões de matriz africana. Uma atuação pontual, reativa, sem coordenação ou priorização, que alcança efetividade quando conta com o suporte das entidades afro-brasileiras. As ações civis ou criminais que buscam a retirada de conteúdos escritos ou audiovisuais disponibilizados pela internet encontram as dificuldades conhecidas de investigação para apurar a autoria das postagens e a má-vontade dos provedores de fornecer os dados cadastrais dos usuários. A paradigmática ação visando obter o direito de resposta coletivo tramitou por 15 anos. O

206 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. reconhecimento de danos morais coletivos tem sido praticamente inexistente, assim como o reconhecimento do preconceito e da discriminação praticada em desfavor dos/as seguidores/as das religiões afro-brasileiras, como o Candomblé e a Umbanda. A utilização do sistema de justiça para a repressão e a reparação dos danos morais, portanto, não nos deve entusiasmar como solução. A despeito disso, não é de ser desprezada, pois a simples propositura de uma ação pode gerar efeitos simbólicos relevantes. A atuação conjunta do MP com as entidades da sociedade civil traz um fortalecimento mútuo e maiores chances de êxito nos mecanismos escolhidos, seja a realização de audiências públicas, recomendações, ajustamentos de conduta, ações criminais ou civis. Referências Bibliográficas Brasil. Conselho Nacional do Ministério Público. Resolução n. 63, de 1º de Dezembro de 2010. Cria as Tabelas Unificadas do Ministério Público e dá outras providências. Disponível em http://www.cnmp.mp.br/portal/atos-e-normas/norma/688/&h. Acesso em 12 de jan. 2019.

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208 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

______. ______. Notícia de Fato 1.30.001.000279/2015-11. Criminal. Autuada 23 janeiro 2015. Representação contra possível crime de intolerância religiosa. Representa- do: Facebook.com/igrejainternacional. Interessado: Barbara Copque. Disponível em sistema Único MPF . Acesso em 10 de jan. 2019.

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______.______. Notícia de Fato 1.22.000.001266/2015-41. Criminal. Autuada 20 de maio de 2015. Descrição da manifestação: Gostaria de denunciar Lúcio Barreto Junior, de Belo Horizonte, conhecido como Pastor Lucinho por propagar discurso de ódio contra religi- ões de matrizes africanas. Inclusive neste vídeo que colocarei o link para a análise de vocês ele confessa que aliciou jovens para causar desordem em um encontro de vários centros de religiões de matrizes africanas em Belo Horizonte (MG). Autuada 20 de maio de 2015. Re- presentado: Vinicius Zaneli Maganha. Representado: Lúcio Barreto Júnior. Disponível em sistema Único MPF. Acesso em 10 de jan. 2019.

______. ______. Notícia de Fato 1.27.000.000403/2015-44. PFDC. Autuada 30 março 2015. Manifesto elaborado por instituições religiosas, sacerdotes, adeptos, ativistas e cidadãos contra a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), pela prática de intolerância/ discriminação religiosa. Representante: Coletiva de Entidades Negras (CEN); Fórum Estadu- al de Religião de Matriz Africana (FERMAPI). Disponível em sistema Único MPF. Acesso em 9 de jan. 2019.

______. ______. Notícia de Fato 1.14.000.002976/2015-61. Cível Tutela Coletiva. Autuada 3 de novembro de 2015. Representação formulada por integrantes da comunidade Ylêaséogumtòóla, de Lauro de Freitas-Ba, em que solicitam providências do MPF para que seus direitos de culto e liberdade religiosa sejam respeitados, uma vez que estão sendo alvo de intolerância. Disponível em sistema Único MPF. Acesso em 12 de jan. 2019.

______.______. Notícia de Fato 1.30.001.004066/2016-40. PFDC. Suposta prática de intolerância religiosa praticada através do blog ministério de louvor infantil Quelly Silva - possíveis ofensas às religiões de matiz africana referente ao dia de comemoração de São Cosme e são Damião. Interessado: Daniel Borges Diniz Vieira. Disponível em em sistema Único MPF. Acesso 14 de jan. 2019.

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209 Edelamare Melo (Organizadora) cujo conteúdo é a marcha de uma espécie de exército conhecido como Gladiadores do Altar. Espécie de milícia religiosa. Fanatismo. Solicitação de investigação. Representada: Igreja Universal do Ceará. Representante: Verônica da Costa Silveira. Disponível em sistema Único MPF. Acesso em 10 de jan. 2019.

______. ______. Procedimento Preparatório 1.19.000.000382/2015-39. PFDC. Autuado 10 de abril 2015. Representada: Igreja Universal do Reino de Deus. Representante: Fórum Estadual de Religiões de Matriz Africana do Maranhão (FERMA). Disponível em sistema Único MPF. Acesso 10 de jan. 2019.

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Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

QUILOMBISMO E REPARAÇÃO DA ESCRAVIDÃO

Elisa Larkin Nascimento1

Introdução No século passado, mais precisamente no ano de 1980, o então profes- sor catedrático da Universidade do Estado de Nova York, nos Estados Unidos, Abdias Nascimento participava do 2º Congresso de Cultura Negra das Amé- ricas, no Panamá. Nesse conclave, ele apresentou sua “proposta aos irmãos afrodescendentes do Brasil e das Américas”: o quilombismo. Assumindo o princípio básico da democracia em um país de maioria negra, ele foi muito além de propor ideias e princípios de organização e protagonismo coletivo do povo negro para enfrentar e combater o racismo. O quilombismo é uma proposta de organização do Estado brasileiro, em bases democráticas plurais que contemplem a diversidade demográfica e cultural de seu povo. Naquele momento histórico, o Brasil vivia o período conhecido como Ditadura Militar (1964-1985), cuja opressão e censura tirou Abdias do país por 13 anos (1968-1981). Seu livro O Quilombismo (Nascimento, A., 1980) foi publicado um ano após a anistia e o início do retorno ao país dos exilados da ditadura militar. O cenário político e o palco das ideias efervesciam. Ain- da faltava quase uma década para a promulgação da Constituição Cidadã. O foco da agenda política era a construção do Estado democrático de direito; construíam-se as bases conceituais da Carta de 1988. A luta do movimento negro focalizava direitos formais como, por exemplo, o voto ao analfabeto, a revogação da vadiagem como figura do direito penal e a substituição da Lei Afonso Arinos por uma legislação eficaz de combate à discriminação racial. Dois anos antes, Abdias havia publicado o seu livro O Genocídio do Negro Brasileiro (Nascimento, A., 1978), trazendo ao debate público um termo en- tão considerado absurdamente ousado e exagerado. Passados quase 40 anos, a vida da população negra no Brasil hoje se parece, de forma bastante decepcio- nante, com a daquele momento. A implantação de medidas de ação afirmativa

1 Mestre em Direito e em Ciências Sociais pela Universidade do Estado de Nova York, Doutora em Psicologia pela USP, preside o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (IPEAFRO), que trabalha com relações étnico-ra- ciais e história e cultura de matriz africana. Coordena o tratamento técnico para preservação e difusão do acervo museológico e arquivístico de Abdias Nascimento, sob a guarda do IPEAFRO. Curadora de exposições educacionais e artísticas com base nesse acervo, é autora de diversos livros e trabalhos publicados. 213 Edelamare Melo (Organizadora) e a criação de órgãos oficiais encarregados de sua execução trouxeram mu- danças importantes, mas as desigualdades continuam flagrantes. A violência contra a população negra e favelada continua, reconhecida por organismos internacionais como a ONU e a Anistia Internacional, ambas as quais recente- mente promoveram campanhas específicas na tentativa de combater o flagelo da juventude negra. O preconceito, a agressão aos fiéis e a violência contra os terreiros e templos da religiosidade de origem africana crescem e se in- tensificam. O que não mudou é a necessidade de refletirmos sobre a situação e pensarmos os caminhos possíveis para enfrentar esse grave empecilho ao desenvolvimento sustentável com justiça social: o racismo. Ao realizar este Simpósio Nacional Indígenas, Negros, Quilombolas e Re- ligiosos de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Discriminação e seus Re- flexos nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo, o Ministério Público de Trabalho sublinha essa necessidade e exemplifica a saudável tendência, con- quistada ao longo de décadas pelo movimento negro em suas diversas ações e abordagens, de instituições oficiais assumirem o debate e formularem políticas internas e públicas de enfrentamento à discriminação, ás desigualdades e ao ra- cismo institucional. Em 1980, quando Abdias Nascimento formulou sua tese do quilombismo, soava absurda a ideia de algum órgão governamental sequer re- conhecer a existência da discriminação racial; a discussão sobre a questão racial girava em torno da persistente negação de racismo na sociedade brasileira. Cer- tamente, o caminho protagonizado pelo ativismo negro ao longo dessas décadas resultou em sensíveis mudanças. Mas ainda há muito a fazer. Reparação da escravidão Desde o século XVII, a ideia da reparação da escravidão existiu e foi promovida de diversas formas nos Estados Unidos, bem como no Brasil e em Cuba (Araújo, 2017). Assim como a Lei Áurea no Brasil de 1888, a 13ª Emenda à Constituição, que aboliu a escravidão nos Estados Unidos em 1865, não continha nenhuma medida de restituição à população negra por 250 anos de trabalho não remunerado. Ao final da Guerra Civil houve uma política efêmera, parte do programa de Reconstrução da região devastada pela guerra, que envolvia prover a famílias de pessoas antes escravizadas um pequeno terreno em áreas que o governo federal tomara dos rebeldes escravistas. Ape- sar de permanecer vívida a sua memória no imaginário nacional2, tal política

2 Cultiva-se nas escolas e no folclore nacional a frase “40 acres and a mule”, que se refere a essa política, como forma de consolidar a consciência dominante do suprematismo branco, que se considera generoso para com os negros e livre de qualquer dívida histórica com relação à escravidão. 214 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. nunca foi implantada de forma significativa, pois Andrew Johnson, sucessor de Abraham Lincoln, revogou a medida imediatamente ao assumir a presi- dência. O sistema de sharecropping que prevaleceu deixou o povo negro des- tituído de qualquer meio de subsistência e vulnerável à ira racista dos brancos sulistas derrotados. Com sua eloquente defesa do direito dos descendentes de escravos a uma compensação, o jornalista Frederick Douglass conseguiu deflagrar o movimento que culminou na apresentação de um projeto de lei na Câmara dos Representantes (Vaughan, 2017). No bojo dessa iniciativa, pro- liferou uma série de organizações em busca de reparação na forma do paga- mento de pensões às famílias dos libertos. O maior movimento, que abrangia 300 mil pessoas espalhadas pelo território nacional – um número enorme para o final do século XIX – era liderado por uma valente mulher negra chama- da Callie House. A Associação Nacional pela Ajuda Mútua, Alívio e Pensão para Ex-Escravos (MRB&PA) gerou um novo projeto de lei, apresentado em 1899, e em 1915 processou o governo federal no caso Johnson vs. McAdoo (Perry, 2010). Perseguida sem tréguas, Callie House se mostrou indomável, mas acabou sendo presa em 1918 e o movimento suprimido em 1922. Na década dos 1970, o movimento pela reparação ressurgiu no bojo do e do Pan-Africanismo. No seu Manifesto Negro apresentado em nome da Conferência Nacional de Desenvolvimento Econômico Negro em 1969, James Forman exigiu meio bilhão de dólares em reparação à popula- ção negra (Lechtreck, 2012). Várias organizações levaram a demanda adiante nas décadas seguintes, notadamente a TransAfrica sob a liderança de (2000). Novamente em 1995, houve uma iniciativa coletiva de pro- cessar o governo dos Estados Unidos: Cato vs. United States. Hoje, a questão está em evidência como nunca, com destaque, inclusive, na campanha políti- ca para as eleições presidenciais de 2020. A 3ª Conferência Mundial Contra o Racismo, a Intolerância, a Xeno- fobia e Outras Formas de Intolerância, realizada pela ONU em 2001 definiu a escravidão como crime contra a humanidade, assim estabelecendo a base jurídica para o direito à reparação. O Brasil teve atuação destacada e influente na construção desse marco histórico, em parte através de sua representação oficial, mas sobretudo pela atuação dos movimentos e organizações negras da sociedade civil. Esse processo abriu o caminho para as políticas domésticas de ação afirmativa e de ensino das relações étnico-raciais e da história afri- cana e afro-brasileira no início do século XXI. A participação brasileira na Conferência da ONU se deu no contexto da forte presença de delegações de toda a chamada América Latina e do Caribe. A população negra dessa região

215 Edelamare Melo (Organizadora) se organizava coletivamente a partir de 1977, quando se realizou em Cali, Colômbia, o 1º Congresso de Cultura Negra das Américas. Na segunda reu- nião desse movimento, Abdias Nascimento lançou sua tese do quilombismo. A terceira edição foi organizada pelo IPEAFRO e realizada em São Paulo em 1982. Foi a primeira ocasião em que o Brasil recebeu uma representação do partido de Nelson Mandela, o Congresso Nacional Africano da África do Sul. No Brasil, a demanda da reparação integra o discurso e as iniciativas de organizações negras há décadas. Mais recentemente, a Comissão da Verdade da Escravidão Negra no Brasil, empossada pelo Conselho Federal da OAB em 2015, vem advogando o tema, desdobrando-se em comissões estaduais e municipais em diversos estados e regiões do país. Em julho de 2019, a As- sembleia Legislativa do Estado de São Paulo sediou o encontro Reparação Já, sob a liderança da Organização pela Libertação do Povo Negro3. No Rio de Janeiro, onde a região Pequena África abriga o Cais do Valongo, nominado Patrimônio da Humanidade pela UNESCO, a Câmara dos Vereadores apro- vou uma lei sobre a gestão econômica e cultural do respectivo território, cujo texto se baseia em proposta de autoria do Movimento pela Reparação4. For- mou-se uma comissão sob a liderança do Movimento pela Reparação para o Povo Negro e Povos Indígenas, com a participação de ativistas negros, nota- damente o veterano Yedo Ferreira, no intuito de definirem, em conjunto com as autoridades municipais, as matrizes dessa gestão5. No presente trabalho, procuro explorar intersecções e campos de diá- logo entre as teses do quilombismo e da reparação. Longe de pretender pro- duzir uma tese ou fechar conclusões, meu objetivo é compartilhar com os participantes do Simpósio algumas observações, no intuito de contribuir para o debate e a discussão. Quilombismo e Tradição dos Orixás Os objetivos deste Simpósio coincidem com a tese do quilombismo ao abordarem o racismo em seus diversos aspectos: o cultural e o simbólico in- terligados com o histórico, o social, o jurídico, o econômico e o político. Esse fato reflete uma evolução na luta de combate ao racismo, pois a ampla abor- dagem vem contrabalançar o peso da tendência de tratar-se o racismo como um conjunto de desigualdades raciais mensuráveis por estatísticas. As pes- quisas realizadas nessa linha têm fundamental importância no sentido de dar

3 https://www.al.sp.gov.br/noticia/?id=366043, acessado em 18.set.2019. 4 Lei n. 6.613, de 13 de junho de 2019, publicada no Diário Oficial do Município do Rio de Janeiro em 14/06/2019. 5 https://pretitudes.blogspot.com/2019/07/ngola-janga-territorio-livre.html, acessado em 18.set.2019. 216 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. suporte técnico à formulação de políticas públicas endereçadas à eliminação de tais desigualdades. Ao mesmo tempo, entretanto, tal enfoque corre o risco de contribuir para esvaziar o racismo de sua função ideológica de dominação, sua natureza e efeitos psicológicos e seu impacto concreto e marcante como dimensão do imaginário social. O aspecto cultural e simbólico hoje se delineia em diversos campos, merecendo cada vez mais atenção o da religiosidade. Comunidades tradicio- nais e terreiros de candomblé, umbanda e outras religiões de origem africana sofrem, desde sempre, violenta agressão física, simbólica, retórica, psico- lógica, social e econômica, perpetrada pela igreja católica no seu papel de instituição do poder constituído, e mais recentemente por certos cultos pen- tecostais evangélicos. Existe um amplo movimento inter-religioso de defesa da liberdade de culto e contra a intolerância, que sob a liderança das religiões afro vem realizando caminhadas há 12 anos, com considerável repercussão política e social (Santos e Esteves Filho, 2009; Santos, et.al, 2016). Como a maioria das ações do movimento negro, o processo de organiza- ção das comunidades-terreiro no enfrentamento dessa violência tem como pri- meira característica seu valor educativo. O projeto Tradição dos Orixás exem- plifica esse processo no Estado do Rio de Janeiro na segunda metade da década dos 1980. Um de seus objetivos era educar para a convivência democrática a sociedade que então construía a “Nova República” e a Constituinte de 1988, ano do centenário da Abolição da Escravatura. Nesse mesmo ano a Comissão Ojuobá do projeto Tradição dos Orixás entrega ao então Procurador-Geral da República, Aristides Junqueira, sua Ação Pública contra a Intolerância Reli- giosa. O projeto integrava, assim, o esforço da sociedade civil que resultou em marcos importantes do sistema jurídico brasileiro que convergem para a luta e proposta do combate ao racismo. Conforme comenta o Ogã Uilian Portella: “Aquilo não era uma discussão religiosa pura e simplesmente, era uma orga- nização social discutindo políticas públicas em todos os ângulos” (Gomes e Oliveira, 2019, p. 47). O Tradição dos Orixás era um fórum para pensar o seu tempo. E hoje a luta contra o racismo religioso continua à frente dos esforços de se reconstruir e consolidar um Estado democrático de direito cujo desman- telamento assistimos diariamente no cenário político atual. A proposta do projeto – de levar para a arena política o combate ao ra- cismo religioso e a riqueza de significados e simbolismos oriundos da tradição africana no Brasil – dava continuidade a uma longa história de luta, parte da qual está documentada nas páginas do jornal Quilombo (2003) do Teatro Ex- perimental do Negro, fundado por iniciativa de Abdias Nascimento em 1944.

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Desde seu primeiro número, o jornal trazia matérias sobre a liberdade de culto. Décadas depois, voltando do exílio, Abdias Nascimento vinha somar sua ex- periência à atuação da nova geração do movimento negro que levava adiante a luta de resistência. Na tese do quilombismo, Abdias frisava a necessidade for- talecer a transmissão de valores africanos às sucessivas gerações na Diáspora. O quilombismo tem como objetivo construir ações e legados de com- bate ao racismo a partir das tramas culturais, filosóficas, artísticas e episte- mológicas tecidas pelos povos negros em África e sua diáspora. Isto significa recuperar, estudar, ressignificar e disseminar os valores semióticos e episte- mológicos africanos como ferramentas para construir um desenvolvimento sustentável com justiça social no mundo contemporâneo. Novamente, a ideia dá continuidade a uma longa trajetória de luta contra aquilo que Jayro Pereira, citando Muniz Sodré, aponta como o “semiocídio ontológico praticado pelos evangelizadores, que se constituiu no pressuposto do genocídio físico”. (Go- mes e Oliveira, 2019, p. 188), Abdias Nascimento e o TEN brandiam os sig- nos estéticos da matriz africana como armas de enfrentamento nos anos 1940. Nesse caminho eles não estavam sozinhos. Desde os idos dos 1930 os poetas anticolonialistas africanos e antilhanos do movimento da Negritude percor- riam veredas semelhantes (Césaire, 2010). Mas a afirmação da cultura negra era vista como “racismo às avessas”, e aliados da esquerda se recusavam a reconhecer a legitimidade da negritude e do combate à discriminação racial com frente de luta política. Com o acirramento da guerra fria nos anos 1960 e 1970, lideranças e movimentos de libertação optaram pela estrita adesão ao legado europeu do marxismo, o chamado “socialismo científico”, rechaçando as referências à ancestralidade africana como recursos legítimos de organiza- ção política. Chegando ao páis no final dos anos 1970, Abdias Nascimento se deparou com um movimento negro identificado à esquerda ocidental, cujas propostas ignoravam largamente os valores africanos enquanto mobilizadores de uma luta política. Abdias manteve sua postura ao propor, no quilombismo, um modelo de luta construído a partir da própria experiência histórica e dos próprios valores culturais e filosóficos ancestrais africanos. Ao estabelecer diálogo entre setores do movimento negro e as casas de santo, o projeto Tra- dição dos Orixás colocava em prática esse princípio do quilombismo. A partir de 1983, Abdias Nascimento atuava – na legislatura anterior à Constituinte – como único deputado federal a levar ao Congresso propostas de políticas antirracistas, tratando a questão racial como tema urgente e fundamen- tal à construção da democracia e da Nação brasileira. Para ele, fazia parte da demanda democrática a inclusão e o reconhecimento dos valores africanos como

218 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. referências dessa nacionalidade. Num contexto em que todas as sessões do Con- gresso são abertas com a frase “Sob a proteção de Deus”, Abdias abria os seus pronunciamentos dizendo “Sob a proteção de Olorum” e neles incluía referências às divindades africanas, situando-as no cenário político. Talvez o maior movi- mento daquela época tenha sido a campanha pela eleição direta, o Diretas Já, que em 1984 levou centenas de milhares de pessoas às ruas em comícios inéditos e inesquecíveis. A organização pluripartidária definiu o amarelo como cor do mo- vimento e pediu para todos o vestirem para marcar sua adesão. Abdias apropriou esse signo para realçar o protagonismo do povo negro e da matriz africana no cenário político, invocando o amarelo de Oxum (Nascimento, A., 1984, p. 13):

Faço questão de registrar nos Anais desta Câmara a substancial parti- cipação organizada do negro no movimento mais importante do atual momento político: a luta pelas diretas já. (...) O negro continua pre- sente, de forma organizada, vestindo o amarelo da esperança demo- crática e da fraternidade, do amor e da criatividade de Oxum. Aliás, tanto se ressaltaram, nessa caminhada cívica, as três qualidades de nossa mãe Oxum, que bem poderíamos proclamá-la a patronesse es- piritual das diretas já. Oraiêiê-ô! Axé quilombolas da libertação!

Tratava-se, nas palavras de Sérgio Dias (2019, p. 51), de “uma forma de ver o mundo a partir de um olhar afrocentrado e forçar a amplitude do próprio movimento negro, alicerçando-o em uma memória, na nossa originalidade e ancestralidade”. Nas décadas seguintes, essa estratégia quilombista veio se alargando no ativismo antirracista. Quilombismo e genocídio Quando escreveu o livro O Genocídio do Negro Brasileiro, cuja pri- meira edição saiu em 1978, o professor Abdias Nascimento denunciava as condições da população negra no Brasil, apresentando ao mundo o que ele classificou como genocídio. Abdias vinha apontando a matança do negro pela sociedade brasileira desde os seus primeiros ensaios e trabalhos, especial- mente no campo da arte, à frente do Teatro Experimental do Negro. De lá para cá, o assassinato das populações negras continua em curso. Segundo o Fórum de Segurança Pública, somente em 2018 foram quase 70 mil mortes violentas no Brasil. Destas, 75% foram homens negros, em sua maioria jovens. Dos mais de 1.200 casos de feminicídio (morte de mulheres por seus companheiros), 60% foram mulheres negras, sendo 6 em cada 10 mortes dentro de casa. Conclui-se que a cada 23 minutos um jovem negro morre violentamente, somando mais de 70 mortes a cada dia.

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No Rio de Janeiro, cidade onde o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro -Brasileiros (IPEAFRO) está instalado e atua há quase 40 anos, o cenário é ainda mais dramático. A Polícia Militar do Rio de Janeiro continua a exercer seu papel com cada vez mais afinco e voracidade, chancelado pela política de segurança pública atual do governador Wilson Witzel (PSC), que é a de “mirar na cabecinha e... bum!”. Com essa narrativa, diga-se, ele foi eleito democraticamente com ampla votação, inclusive, de pessoas que são justa- mente os alvos de sua política assassina. Este é um dos paradoxos do racismo à brasileira: difuso, evasivo, mascarado, complexo, implacável e persistente. A vítima mais recente dessa cruzada racista foi a menina Ágatha Vitória Sales Felix, de apenas 8 anos, morta com um tiro nas costas no Complexo de Favelas do Alemão (RJ), em uma operação policial em 20 de setembro de 2019. A morte dela se soma às 1.249 pessoas mortas pela polícia nos oito primeiros meses do ano. Destas, 16 crianças6. Ao realizar este Simpósio, o Ministério Público do Trabalho contribui para uma importante tendência que se situa no elenco das conquistas do movimento negro e da população negra ao longo dessas décadas: a formulação e implantação de políticas in- ternas e públicas por parte de órgãos governamentais e instituições da sociedade civil no intuito de enfrentar e superar os efeitos da discriminação racial que impera desde a fundação da nação. Sendo assim, consideramos imprescindível que este Simpósio faça um apelo ao Ministério Público do Rio de Janeiro para que tome as providências necessárias diante da política assumidamente assassina do atual governo estadual. Tal política de segurança identifica o povo preto e pobre como o inimigo a ser combatido em solo e abatido desde o alto por atiradores alojados em helicópteros. Na sua guerra contra essa população, o governo mata e depois atribui, cinicamente, ao narcotráfico a culpa pelas mortes ocorridas. Para a máxima autoridade estadual e policial, o estado de guerra justifica, ao arrepio da lei, a matança direta e o desprezo oficializado dos -di reitos dos cidadãos. Este Simpósio também precisa se posicionar contra a proposta de excludente de ilicitude e outras que tramitam no Congresso Nacional, travestidas de projeto anticrime. Caso aprovado, o conjunto de medidas apresentadas sob este título eufemístico constituirá um grave retrocesso civilizatório, com a institucionalização do assassinato como política de Estado – isto é, a oficialização da barbárie que já preva- lece, mas ainda sem o endosso das normas jurídicas do país. No livro O Genocídio do Negro Brasileiro, Abdias Nascimento caracte- rizou as bases históricas e empíricas do processo de racismo que culmina no atual cenário, e apresentou um conjunto de propostas para enfrenta-lo. Em O

6 https://www.oabrj.org.br/noticias/nota-oabrj-sobre-morte-menina-agatha-complexo-alemao, acessado em 21.set.2019. 220 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Quilombismo, ele previu que a tentativa de se construir um Estado democráti- co de direito com justiça social, sem a devida atenção a esse processo, estaria fadada ao fracasso. A proposta do Estado quilombista que ele esboçou indica possíveis caminhos para evitar tal fracasso. Muito recentemente, 40 anos após a publicação de O Genocídio do Negro Brasileiro, destacados cientistas sociais, historiadores, jornalistas e intelectuais vêm chegando a um consenso bastante sólido sobre o papel da escravidão como pedra fundamental da estruturação da sociedade brasileira7. Segundo esse consenso, o sistema escravista e sua herança de racismo consti- tuem o principal determinante das atuais desigualdades e injustiças, das quais o quadro de violência contra a população negra e quilombola, os povos indí- genas e as mulheres se destacam como a mais grave característica. Ou seja, o trabalho desse intelectual negro, raramente citado nos tratados acadêmicos, forma a base do pensamento atual sobre o tema. Quilombismo e reparação A proposta do Estado quilombista recolhe e resume a da reparação da es- cravidão, à medida em que reconhece e cobra a dívida gerada pelos séculos de trabalho não remunerado, além das violações sistemáticas da condição humana dos povos e das pessoas escravizadas. No ideário quilombista, a prioridade é a reparação coletiva, direcionada às comunidades quilombolas através da de- marcação e legalização de suas terras, bem como políticas públicas de proteção e desenvolvimento da ocupação comunitária dessas terras, dentro da tradição ancestral; direcionada à população negra através de políticas públicas de reco- nhecimento e preservação de seu legado histórico e cultural, ensino da história e cultura africana e afrodiaspórica, ação afirmativa consolidando o acesso dos negros à educação, ao mercado de trabalho privado e ao serviço público, à se- gurança alimentar e habitacional e aos serviços de saúde e segurança pública. São direitos asseguradas no Brasil pela Constituição de 1988 que até o atual momento carecem de aplicação e de garantia na prática para as populações em questão. O respeito ao Estado democrático de direito implica no cumprimento desses princípios constitucionais, que teria como consequência a superação de desigualdades em vários campos. Mas não seria a solução final do problema. A reparação através da remuneração pecuniária aos descendentes de afri- canos escravizados é uma proposta que vem merecendo cada vez mais atenção nos Estados Unidos. Um sintoma da extensão dessa visibilidade está no pro-

7 Uma das referências mais destacadas desse consenso é o trabalho de Jessé de Souza (2017). 221 Edelamare Melo (Organizadora) cesso pré-eleitoral de 2020, em que uma mulher branca candidata, Marianne Williamson, anuncia um plano de reparações como parte de sua plataforma política8. Em junho de 2019, uma audiência pública na Câmara dos Represen- tantes explorou a questão da reparação em consequência do projeto de lei H.R. 40, de autoria da deputada negra Sheila Jackson Lee (D-TX), que propõe a criação de uma comissão para estudar e desenvolver propostas de reparação9. O exemplo das reparações pagas pela Alemanha aos descendentes de ju- deus e de pessoas escravizadas durante o período do nazismo indica a potencial viabilidade da proposta. Até 1990, a Alemanha havia desembolsado o equiva- lente a US$ 40 bilhões em compensação às vítimas judias do regime nazista10. Em 2013, o país assumiu um novo compromisso, o de investir US$ 1 bilhão nos cuidados de idosos judeus vítimas da perseguição, escravização e dos cam- pos de concentração11. De acordo com um analista da proposta de reparações para os afrodescendentes nos Estados Unidos, o exemplo da Alemanha sugere que há possibilidade de se encontrar uma solução política quando o lado que perpetrou o crime apresenta a proposta ao lado das vítimas (Craemer, 2018). Certamente, a proposta cabe nos princípios do quilombismo, cuja abor- dagem, entretanto, é muito mais ampla. O quilombismo parte do princípio da agência histórica dos próprios afrodescendentes, protagonistas das estratégias e ações de sua própria libertação. E vai mais longe, situando o combate ao ra- cismo e a construção do Estado democrático de direito com justiça social como alvos desse protagonismo. Não é à toa que o ensaio apresentado no Panamá em 1980 (Nascimento, A., 2019, p. 271-312) abre com a afirmação da necessida- de de recuperação e valorização da memória do protagonismo do povo negro no palco da história mundial como base para a consolidação de sua identidade positiva com autoestima, condição necessária para que o povo negro assuma seu papel de liderança na construção do Estado quilombista. A demanda da re- paração pode ser uma estratégia para financiar a preparação de quadros para de- sempenharem esse papel. Mas a ênfase do quilombismo é no projeto maior que contempla o conjunto da população em seus diversos segmentos étnico-raciais: a construção de um Estado democrático de direito que atenda às necessidades e respeite os direitos e o legado histórico-cultural de todos os seus cidadãos.

8 https://www.marianne2020.com/issues/the-reparations-plan, acessado em 19.set.2019. 9 https://www.nytimes.com/2019/06/19/us/politics/slavery-reparations-hearing.html?partner=IFTTT, acessado em 20.set.2019. https://www.congress.gov/bill/116th-congress/house-bill/40, acessado em 20.set.2019. 10 https://www.latimes.com/opinion/story/2019-07-19/reparations-germany-hr40-holocaust-slavery, acessado em 20.set.2019. 11 https://www.spiegel.de/international/germany/germany-to-pay-772-million-euros-in-reparations-to-holocaust- survivors-a-902528.html, acessado em 20.set.2019. 222 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

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Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

História da sexualidade, corporeidade e gênero.

Elisia Santos

A proposta deste trabalho é revisitar os conceitos sobre sexualidade, corporeidade e gênero. Estas temáticas têm ganhado bastante visibilidade na área das ciências humanas e da saúde. Para Goellner o corpo é construído com o passar dos diferentes tempos, espaços, conjunturas econômicas, grupos sociais, étnicos, raciais, neste sentido nosso corpo é “mutável” e “receptivo” às intervenções históricas, sociais, cul- turais e científicas, sociais e culturais, apesar de seguirmos normas e padrões estabelecidos por uma sociedade hegemônica e muitas vezes heteronormativa. Por conta disso nosso ponto de discussão neste primeiro capítulo é pensar no corpo e sua influência nas representações de gênero e das sexualidades. O movimento feminista é fundamental para construção do conceito de gê- nero na década de 70, atualmente é uma categoria bastante estudada por diversos campos da ciência, para além das ciências humanas. O conceito de gênero refere- se à construção social do sexo podendo então separar a dimensão biológica da social. Este pensamento se apoia na ideia de que há machos e fêmeas na espécie humana, mas o ser homem e o ser mulher são construídos culturalmente. Não podemos esquecer a clássica frase de Simone de Beauvoir no livro O Se- gundo Sexo, publicado em 1949, um marco dentro do movimento feminista que afir- ma: “Não se nasce mulher, torna-se mulher” (BEUAVOIR, 1980). Nesta frase deixa claro que a mulher não tem um destino biológico determinista com funções e papéis consolidados, estas são formadas dentro do seio da sociedade, da mesma forma que o homem. Contudo, aquelas ficam aprisionadas ao papel de dona-de-casa, esposa e à maternidade, outra opção seria os conventos e senão fosse uma “boa” moça o prostí- bulo. Porém, a própria Simone rompe com o que seria este destino feminino. Homens e mulheres existem dentro uma cultura e são moldados a partir desta, não há uma naturalidade nos papéis e funções, no senso comum as con- dutas ditas femininas ou masculinas são consideradas como naturais aos cor- pos. Para Antropologia, ciência que estuda as diversidades culturais a dimen- são biológica da espécie humana não é essencialmente um fator explicativo. Compreender o conceito de gênero, corpo e de sexualidade em suas interfaces é ir além do que denominamos masculino/feminino. Desejamos,

225 Edelamare Melo (Organizadora) nesta primeira etapa do módulo proporcionar um olhar mais cuidadoso para as construções de gênero, que se naturalizam e normatizam a sexualidade, reduzindo toda análise ao sexo, ou melhor, dizendo, desejo heterossexual, gerando, assim, desigualdades, indiferenças e inúmeras violências. Iremos trabalhar os três conceitos, o primeiro será o de gênero. Este que re- flete o modo como diferentes culturas, em diversos períodos históricos, classificam atributos pessoais, os papéis sociais, labor, atividades de trabalho na esfera pública e privada, e os encargos destinados a homens e a mulheres no campo da política, da religião, da educação, do lazer, dos cuidados com saúde, da sexualidade etc. O conceito de gênero é oriundo do movimento feminista anglo-saxão e suas teóricas e as pesquisadoras de diversas disciplinas. Naquele momento, o movimento tinha por finalidade evidenciar na linguagem o caráter essencial- mente social das discriminações baseadas no sexo. O conceito consegue mais expressividade na década de 70, como objeto de análise das ciências sociais, atualmente, há ele perpassa diversas disci- plinas, principalmente aquelas que fazem alguma interface com o campo da sociologia, saúde ou do direito. Dentro das ciências sociais, os estudos de gênero foram e são responsáveis por estudos sobre corpo e sexualidade. No Brasil, as feministas introduzem o conceito na década de 80, na inten- ção de evidenciar que “o conceito de gênero se configurava num construto social e histórico, produzido sobre as características biológicas” (LOURO, p.21,1997). Para esta autora, para compreender a condição e as relações de homens e mulheres numa determinada sociedade, precisaríamos estar atentos não exa- tamente a seus sexos, mas o que socialmente se construiu sobre os sexos. Pois, o conceito de gênero é construção e seu significado está para além das diferenças biológicas entre os sexos, para Louro:

(...) o conceito pretende se referir ao modo como as característi- cas sexuais são compreendidas e representadas ou, então, como são trazidas para a prática social e tornadas parte do processo histórico. (LOURO, p.22,1997).

Podemos observar que ao longo da história as mulheres começaram a questionar este padrão que só (re) produziam desigualdades sociais e culturais entre os sexos. Essa narrativa foi e é reforçada, quando perceberam que em todos os setores sociais havia uma reprodução destas construções que gerava diversas formas de hierarquia de gênero, em geral com destaque para o gênero masculino. As autoras Scott (1995) e Butler (2003) discutem que precisamos rejeitar o determinismo biológico implícito no uso de expressões como “sexo” ou “dife-

226 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. rença sexual”, pois a palavra exerce poder sobre os corpos que ainda estão cons- truindo seu gênero, identidade de gênero e sexualidade, faz-se necessário pensar possibilidades de resistência a essas formas de poder exercidas pelo discurso

(...) através do aprendizado de papéis, cada um/a deveria co- nhecer o que é considerado adequado (e inadequado) para um homem ou para uma mulher numa determinada sociedade, e res- ponder a essas expectativas. (LOURO, p.24,1997).

Segundo hooks (1984) gênero é instrumento basilar do patriarcado ca- pitalista de supremacia branca, pois em diferentes tempos históricos, contex- tos sociais, culturais, econômicas, religiosas e políticas tiveram desigualdades oriundas dessa relação. O binarismo masculino-feminino criou polos opostos – homem x mulher – que se convivem num sistema de dominação-submissão. Por conta disso, a ideia de dominação-submissão é retroalimentada ao assina- lar a superioridade de apenas um dos polos (masculino),

(...) entender processos de construção/reconstrução das práticas das relações sociais, que homens e mulheres desenvolvem/vi- venciam no social” (Bandeira e Oliveira, 1990, p.8), tem redun- dado em algumas questões que precisam ser melhor clareadas. Em primeiro lugar, o conceito tem uma história, pois ao longo dos séculos, as pessoas utilizaram de forma figurada “os termos gramaticais para evocar os traços de caráter ou os traços sexuais (Scott, p. 72, 1995)

Não tem como discutir gênero e não adentramos o conceito de sexua- lidade e corpo, as culturas constroem modelos de sexo, sexualidade, corpo e identidades de gênero que estão intimamente afetados e atravessados uns pelos outros. Na nossa cultural, temos o péssimo hábito de colocar como “normal” a relação heterossexual e qualquer comportamento, gosto ou prática sexual que transcorra esse binarismo é visto como desvio da norma. A sexualidade deve ser o ápice do amor, ternura e intimidade, que integra o que sentimos, é ser-se sensual e ao mesmo tempo sexual sem preconceitos e padrões. A sexualidade é uma experiência pessoal e subjetiva. Sendo assim a sexualidade pode ser percebida no desenvolvimento huma- no, “potencialmente geradora de bem-estar, crescimento, de auto-realização, mas também e, simultaneamente, de conflitos e sofrimento” (Vilar, 2002, p. 14). A sexualidade vem sendo discutida e resignificada com o passar dos anos, para Weeks (2003), existem cinco dimensões que são cruciais para a organização social da sexualidade:

227 Edelamare Melo (Organizadora)

1. Sistemas de família e parentesco: Nesta primeira dimensão é discu- tido o tabu do incesto, que foi uma forma de regular a sexualidade. Na sociedade ocidental contemporânea é natural a proibição de relaciona- mento entre parentes de primeiro grau; 2. Organização econômico-social: Na segunda dimensão é analisado o labor condicionado a vida sexual. Exemplificando, a imersão das mu- lheres no mundo de trabalho teve consequências inevitáveis nos pa- drões de vida familiar e levando um maior reconhecimento da autono- mia sexual das mulheres; 3. Formas de regulação social; formais e informais: A regulação for- mal da sexualidade passa por constantes mudanças, principalmente as relacionadas com a religião numa normatização através da medicina, educação, psicologia, intervenção social e práticas de promoção da saú- de. A regulação informal tem uma maior dificuldade de romper com os padrões consensuais dos grupos hegemônicos, assim acaba por reforçar certas convenções sociais, através de rituais de humilhação pública. 4. Contextos políticos: é o controle do poder executivo, legislativo ou do judiciário em intervenções morais em relação à sexualidade. 5. E por último, mas não menos importante às culturas de resistência: são os grupos de oposição e resistência aos códigos morais impostos socialmente.

A influência destas dimensões é determinante para todas as mudanças ocorridas nas sociedades ocidental e oriental, que puderam ter alterações nos cenários e processos de socialização sexual. Assim sendo, a sexualidade é largamente influenciada pelas normas sociais, deveras a influência é recípro- ca, estamos na era da liberdade sexual e da emancipação feminina. Desde a Antiguidade que a sexualidade é objeto de estudo e preocupação moral de homens brancos, pois na Grécia Antiga, o papel que se desempenhava na re- lação sexual era todo masculino e a mulher apenas, uma propriedade. E falar se sexualidade é discutir o corpo na sociedade. A forma como usamos o corpo está relacionado a um conjunto de sistemas simbólicos, idios- sincrasias e nossas identidades, nosso corpo se inscreve a cultura que perten- cemos ao mesmo tempo em que se originam e se propagam significações que constituem a existência coletiva e individual. Este corpo é um ser agente que adquire significado na experiência so- cial, sendo “ele próprio um discurso a respeito da sociedade, passível de leitu- ras diferenciadas por diferentes agentes sociais” (VICTORA, p.75, 2001). As práticas e representações femininas a respeito da maternidade, sexualidade,

228 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. e contracepção esta relacionadas à compreensão dos significados, pois, é no discurso social que percebemos as diversas leituras dos sujeitos sociais e a possibilidade de contínua (re) interpretação. Estes corpos organizam-se numa dinâmica, que permitem sempre novas possibilidades de resistência aos ditames da normatividade, desse modo, pode- mos compreender as atitudes em relação ao corpo e à sexualidade em seu contex- to histórico específico, explorando as condições historicamente variáveis que dão origem à importância atribuída à sexualidade num momento particular e apreen- dendo as várias relações de poder que modelam o que vem a ser visto como com- portamento normal ou anormal, aceitável ou inaceitável.” (WEEKS, p.43, 2010) Corpo, gênero e sexualidade estão imbuídos numa série de conceitos e ideias que serão discutidos no decorrer deste módulo. Estas categorias são moldadas, ganham formas, e estão imbricadas com os mecanismos de poder, presente nos discursos e práticas sociais. Infelizmente na nossa sociedade podemos observar a mercantilização do cor- po por baixo dos panos patriarcais, do falso moralismo e escravidão sexual. Vive- mos numa sociedade do espetáculo, em que o corpo e o sexo são a sua apoteose. Muitos nem querem discutir sexualidade e pouco se importa com os de- sejos alheios, mas estão preocupados em exaltar corpos que eles consideram perfeitos, dietas excessivas, receitas para se chegar ao orgasmo, propagandas sensuais em outdoors e cartazes, silicone, produtos eróticos para ser sensuais etc. Desta maneira a sexualidade tem uma referência e modelo jamais alcançado. Precisamos discutir estes conceitos para não acabarmos saturados no vazio que muitas vezes é preenchida pela angústia que consome nossa felici- dade e ânsia de vida. Nossa proposta neste trabalho é estudar estas categorias e as descons- truções para assim, trazer reflexões sobre o caráter mutável do que é natura- lizado dentro da vida social. Acreditamos que uma das tarefas mais delicadas para você leitora e leitor será lidar com determinadas pressuposições que são provenientes de grupos hegemônicos e não consideradas universais. As ideias e concepções sobre corpo, sexualidade e gênero são extrema- mente variadas e, como intelectuais que somos, não devemos ser generalistas. Esperamos que você possa fazer uma reflexão antropológica e refinar a sua prática da intervenção sobre o seu corpo e os alheios. A questão de gênero ganhou maior visibilidade em meados dos anos de 1990, principalmente no ramo da educação. Este tema conseguiu grandes avanços no âmbito do Estado, das políticas públicas e de várias medidas con- tra a discriminação da mulher.

229 Edelamare Melo (Organizadora)

Infelizmente ainda são poucas as investigações que abordam o impacto da discriminação de gênero, mas os impactos são percebidos em sua magni- tude no nosso dia a dia. Na sociedade como um todo, as relações de gênero ganham pouca rele- vância, temos poucas pessoas formadas que conseguem tem uma visão apro- fundada sobre as dimensões de gênero no dia-a-dia. Acreditamos que a maior dificuldade é oriunda de pouca reflexão das desigualdades entre os sexos, que desemboca em poucas políticas públicas inclusivas. Para pensar gênero, precisamos discutir sexo e corpo dentro de um con- texto histórico. Existe um caminho repleto de valores e cultura em cada tem- po. Falar de masculino ou de feminino acarreta num julgamento de valor, na referência a uma conjuntura cultural e social. No século XX o movimento feminista denuncia o eterno feminino e o eterno masculino. Friedan afirma que, neste momento, há uma angústia do eterno feminino, de uma mulher sedutora. Contrapondo a esta ideia está a de uma mulher do “lar”. A antropóloga Margareth Mead, ainda no século XX, afirmava que homem e mulher são constructos socais, cujos atributos e papéis são variáveis, estes são transmitidos pela socialização, contudo não é a essência do ser humano,

não temos mais bases para falar desses aspectos do comportamento como sendo determinados pelo sexo... O material estudado sugere que podemos dizer que muitos, se não todos, os traços de perso- nalidade que identificamos como masculino ou feminino são tão determinados pelo sexo quanto as vestimentas, maneiras ou o tipo de chapéu que uma sociedade a um determinado período designa para cada sexo” (MEAD, 1968, p.259-260).

Mead, mesmo sem categorizar, estava discutindo a questão de gênero, que foi a base da revolução dos anos 30. Ela que propõe a ideia da desnatura- lização das identidades sexuais, muito próximo do pensamento de Simone de Beauvoir, autora da frase clássica do movimento feminista: “Não se nasce mulher, torna-se mulher” (BEAUVOIR, 1980, p.129). Esta é uma das frases mais famosas do seu livro: O Segundo Sexo, que como MEAD, afirmava que a essência humana não é determinada, mas mu- tável no processo social. Este livro instrumentaliza a segunda onda feminista nos anos 60 e 70, que foi marcada pelas reivindicações de direitos ao corpo e ao prazer. Questionada sobre seu livro, Simone afirmou que esperava que seus escritos servissem para que as mulheres lutassem por seus direitos e me- lhorassem suas vidas: 230 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Devem passar à ação coletiva. Não o fiz pessoalmente até agora porque não havia movimento organizado com o qual eu estivesse de acordo. Mas, apesar disso, escrever O Segundo Sexo foi realizar um ato que ultrapassava a minha própria libertação. Escrevi esse livro por interesse pelo conjunto da condição feminina e não apenas para compreender o que era a situação das mulheres, mas também para lutar, para ajudar as outras mulheres a se compreenderem. Aliás, nestes vinte anos, recebi enorme quantidade de cartas de mulhe- res, dizendo que meu livro as tinha ajudado muito a compreender sua situação, a lutar, a tomar decisões. Tive sempre o cuidado de responder-lhes. Encontrei algumas delas. Sempre tentei ajudar as mulheres em dificuldades. (SCHWARZER, 1986, p. 41)

O sexo biológico, como conhecemos no senso comum, o nascer femini- no ou masculino, não exerce coerção sobre a identidade sexual, isto é, sobre os comportamentos de gênero e a sexualidade. O gênero engendra a tangibilidade do corpo e dos comportamentos no espaço público, contudo, o masculino e o feminino não existem senão através das reincidências, como as normas de comportamento. Contudo, as concepções tradicionais de gênero, corpo e sexualidade estão desmoronando. A feminilidade e a masculinidade, na atualidade, estão sendo vistas como múltiplas. O gênero torna-se o resultado de decisões indi- viduais e a identidade de homem ou de mulher ou de outra coisa, independe de seu sexo biológico. Corpo, Gênero e Sexualidade padecem de três problemas de ‘interpretação’:

1. Religioso: as religiões monoteístas tendem a ter uma visão conserva- dora e misógina; 2. Masculina: dominação masculina como hegemônica; 3. E família tradicional: excluindo todas as diversidades existentes.

Contudo, as concepções tradicionais de gênero, corpo e sexualidade estão desmoronando. A feminilidade e a masculinidade, na atualidade, estão sendo vistas como múltipla. O gênero tornasse o resultado de decisões indivi- duais e a identidade de homem ou de mulher ou de outra coisa, independen- temente de seu sexo biológico. Esta que envolve a questão do sentimento, que poder ser volátil e even- tualmente revogável, pois

(...) a identidade performativa de gênero não é apenas a repetição de um modelo já dado, mas uma improvisação teatral realizada

231 Edelamare Melo (Organizadora)

através de um plano e encenação, do qual cada ator apropria-se de acordo com sua vontade, deslocando-o segundo seu próprio estilo. O gênero é apenas um recurso, uma caixa de ferramentas à disposição dos indivíduos. Ele não é uma coerção, mas uma proposta, semelhante a um papel desempenhado por um ator num palco de teatro. (BRETON, 2014, p.20)

Esta caixa imposta de gênero é extremamente contestada, inclusive Mu- rat (2006) afirma que as polaridades do masculino e do feminino estão com os dias contatos, pois temos no nosso universo social múltiplas definições so- ciais com diversas nuances ou exceções, entre elas o terceiro sexo, que quebra a lei de gênero clássico ao apresentar os hermafroditas e os intersexuados que contêm os atributos dos dois sexos que subvertem a anatomia e as categorias socialmente em uso. (MURAT, 2006, 11) Nestas discussões temos questões mais profundas que a anatomia. São os sentimentos e sua identidade, afinal o corpo feminino ou masculino não dá conta do homem ou da mulher social que estas pessoas são. O filosofo Foucault (1987) em História da Sexualidade, afirma que o sexo, que é um desejo natural, foi regulado por uma sociedade extremamente reguladora e moralista, ancorados por um discurso religioso judaico-cristão, exemplificando:

• O tabu do incesto; • A ordenação política e social; • A exogamia; • A monogamia; • Os acordos políticos e; • O casamento.

Posteriormente este discurso religioso foi substituído pela ciência com posturas muito próximas da teológica. O sexo ainda é confundido com gêne- ro. Este que é marcado por um olhar idiossincrático, lido e interpretado pela/ na cultura, Maria Luiza Heilborn pontua que:

Cumpre agora identificar os processos pelos quais a identidade sexual constitui-se na cultura ocidental em uma das dimensões centrais da identidade social das pessoas. Essa afirmação filia-se à perspectiva construtivista, que sustenta que a sexualidade não pos- sui uma essência a ser desvelada, mas é, antes de tudo, um produto de aprendizado de significados disponíveis para o exercício dessa atividade humana (HEILBORN, 1996, p. 138).

232 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Por conta disso, não cabe mais compreender a sexualidade como um imperativo biológico, não podemos permanecer numa linha unívoca e essen- cialista, devemos conhecer o conjunto de conhecimentos sexuais hegemô- nicos, mas também estudar os que são subalternizados, para que possamos dialogar e construir novas leituras e formas de estar no mundo. Nesse longo caminho, podemos perceber que as sexualidades e desejos não hegemônicos precisam ser reconhecidos, legitimados e respeitados. Falar do pensamento moderno, suas dualidades e implicações quanto a gênero, corpo e sexualidades, é caminhar para superação de obstáculos. O antropólogo Stu- art Hall afirma que precisamos tomar o corpo como uma tela de representação (HALL, 2006), para pensarmos novas experiências e possibilidades existenciais. Levando sempre em consideração, que este novo ainda pode está car- regado de julgamentos de valor e de controvérsias, pois o mundo ocidental ainda insisti em estabelecer uma diferença entre homem e mulher através de socializações específicas. Precisamos, enquanto intelectuais orgânicos que somos, compreender o cor- po, sexualidade e gênero como capítulo político a ser escrito na sociedade contem- porânea. Pois, o sexo, assim como o corpo, é a solidificação de significados sociais que não mais representam uma identidade, mas todo um projeto pessoal e político. O transexual e o transgênero são os indivíduos pós-modernos, eles es- tão para que possamos discutir seu papel social, retificar sua origem e quebrar preconceitos. O corpo deles é uma construção cirúrgica, hormonal, plástica e tecnológica que veio para repensar os padrões. Eles assumem uma identidade que circula, com um habitáculo provisório de uma identidade que abomina toda e qualquer fixação e escolhe uma forma de nomadismo de sua presença na sociedade. (LE BRETON, 2012; 2013). Este discurso é para que possamos considerar que por dentro da lógica de regulação (sexual), existem lutas e contratos que subvertem a lógica insti- tuída e estruturam novos arranjos sociais e afetivos. Diante disso, este eixo sexo-gênero-sexualidade, é para quebrar o pre- conceito e a discriminação que naturaliza o uso da violência simbólica, física, psicológica e material com a pretensa superioridade daquele que discrimina. Estes eixos precisam ser refletidos como movimentos que levam a movimen- tos sociais extremamente importantes para nossa sociedade. A construção social baseia-se em qualquer entidade institucionalizada, ou não, ou um artefato pautado sob um sistema social, desenvolvido a partir das relações sociais de indivíduos numa cultura ou sociedade específica, estabele- cendo de uma certa forma uma organização e coerção social naquele espaço.

233 Edelamare Melo (Organizadora)

A dualidade do masculino e do feminino, fortalece estereótipos e cria uma hierarquia sobre essa construção binaria, como essa dualidade foi cons- truída, avalia-se que pode então ser desconstruída e reconstruída de outra forma, que não seja nociva a nenhum ser. A construção do feminino e do masculino foi criada, com bases solidas, as quais perduram, e trazem consequências, como o paradigma do patriarcado, que foi cons- truído a partir da ideia do que é “tipicamente” feminino e “tipicamente” masculino. As logicas de construção de papeis sociais de gênero determinam diversos aspectos na vida dos homens e das mulheres que se perpetuam até o tempo das atua- lidades. Às mulheres o lugar social que alcançam é no meio privado, estão fadadas a serem donas de casa. Diversamente, para o homem, o seu espaço social é o meio público, o estar na rua. Enquanto a mulher produz as atividades domésticas, está na pratica na cozinha, ao homem é reservado o meio do espaço público, está nos escritórios, praticando as atividades fora de casa. As paletas de cores são constituídas socialmente também para serem demarca- das algumas para homens e outras para mulheres, as mulheres são reconhecidas por usarem rosa, enquanto aos homens a cor demarcada para ele é o azul. A construção das cores interfere muito no imaginário infantil das crianças, criando já uma distinção de gênero a partir das cores que eles utilizam. Os chás de fralda e de bebês das crianças, até mesmo antes deles nascerem já determina a cor a partir do sexo biológico que a criança vai ter, já estagnando a questão do sexo biológico a prerrogativa de gênero. As atividades a serem executadas pela lógica binaria de gênero, tam- bém é atribuída desde cedo, quando se dá brinquedos como bonecas, cozinhas para as meninas, e aos meninos são lhe dados carros, armas, demarcando também uma forma de se comportar no mundo. As meninas devem carregar a postura de serem belas, comportadas, tí- midas, arrumadas, recatadas, gentis, dóceis, delicadas, vaidosas, sensíveis, en- quanto os meninos ficam com as características de serem bravos, viris, ocupa- dos, insensíveis, brutos, largados. Sempre determinando às mulheres um lugar de subserviência aos homens, estando no mundo para servir aos homens. A construção social do gênero é algo que vem se dando há muito tempo, se construindo sob bases misóginas, sexistas e patriarcais, que tem uma lógi- ca de hierarquização sobre os gêneros, e admitindo papeis engendrados para determinados gêneros, sem nem mesmo admitir a compreensão de um estudo que não esteja dentro dessa lógica binaria e segregacionista. A diversidade sexual é o termo usado para determinar uma maneira inclusi- va a todas as diferentes formas de sexualidade. Enquanto a orientação sexual re- fere-se à direção ou inclinação do desejo afetivo de uma pessoa para com a outra.

234 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

A diversidade sexual e orientação sexual são múltiplas, e cada uma carrega suas definições e compreensões, devendo todas serem respeitadas e compreendi- das no âmbito da diversidade. Pretende-se então fazer uma espécie de glossário, para a compreensão das mais diversas sexualidades e orientações sexuais.

• Agênero ou não binária: O sujeito que não se identifica ou não perten- ce aos gêneros binários, ou seja, masculino e/ou feminino • Binarismo: Visão dualista de ser/estar no mundo, classificado como um gênero masculino ou feminino. • Bissexual: O indivíduo que sente atração sexual por mais de uma pes- soa de gêneros diferentes • Cisgênero: A pessoa que se identifica com sua identidade de género igual à do seu sexo biológico. • Gay: Termo inglês utilizado para definir o indivíduo que se relaciona com pessoas do mesmo sexo. • Homossexual: Pessoas que sentem atração de forma física e afetiva por pessoas do mesmo sexo ou gênero. • Intersexual: Ser que possui variação de características sexuais incluin- do o fator cromossômico, gônada ou órgão genitais. • Intergênero: É muito semelhante ao intersexual, mas essas pessoas não pro- curam se identificar nem como homem nem como mulher, sem designar sua orientação sexual, mas um conceito voltado para a identidade de gênero. • Lésbica: Mulher que tem atração por outras mulheres. • Panssexualidade: É a característica dada a pessoas que se sentem atra- ído por todas as diversidades sexuais, tanto homem, quanto mulheres, como também por pessoas que não se identificam com o seu gênero. • Transexual: Pessoa que possui a identidade de gênero oposta ao seu sexo biológico. • Transhomem: Individuo que possui sexo biológico de mulher, mas se identifica como homem • Transmulher: Ser que possui sexo biológico de homem, mas se iden- tifica enquanto mulher • Travesti: Pessoa que utiliza hormônios e faz modificações no corpo através de intervenção cirúrgica, não sendo uma regra dada, para se re- conhecer numa identidade de gênero diferente a do seu sexo biológico.

A compreensão de todas as temáticas que permeiam as questões de gênero, sexualidade, e diversidade perpassa por diversas categorias de analise que devem

235 Edelamare Melo (Organizadora) ser compreendidas para a noção total da temática na atualidade, os termos são categorias importantes para entender e classificar os indivíduos na sociedade. A partir de uma junção dos três pontos abordados, desde a construção social de gênero, a sexualidade como construto histórico e a temática da di- versidade sexual e orientação sexual/afetiva, faz-se necessário o entendimen- to de três eixos centrais que perpassam por todas essas categorias:

• Expressão de gênero: como o indivíduo se apresenta, desde a sua aparência até os seus comportamentos, de acordo com as expectativas padrão da sociedade sobre a aparência e o comportamento que é deter- minado para cada gênero. • Identidade de gênero: o gênero com o qual o sujeito se identifica, po- dendo ou não estar de acordo com o gênero que lhe foi atribuído ao seu nascimento e/ou seu sexo biológico. • Orientação sexual: é a atração sexual/afetiva por alguma pessoa, for- ma de vivenciar internamente à sexualidade.

Sobre a base da compreensão das temáticas da sexualidade, corporei- dade, gênero, sexo biológico, se permite uma compreensão da sociedade que se vive e a temporalidade que se trata, podendo se ter uma compreensão do contexto global e local. Referências Bibliográficas Felipe, Jane; GOELLNER, Silvana Vilodre. Corpo, gênero e sexualidade: um debate contem- porâneo. 5.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010. Beauvoir, Simone de. O Segundo Sexo. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980. bell hooks. Feminist Theory: From Margin to Center. 1984 Louro, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva Pós- estruturalista. Petrópolis: Vozes, 1997. Scott, J. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade, Porto Ale- gre, v. 16, n. 2, jul./dez. 1995. Butler, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. Editora, 2010. Duarte, A. R. F. Betty Friedan: morre a feminista que estremeceu a América. Estudos Femi- nistas, Florianópolis, 14(1): 336, janeiro-abril/2006 Beauvoir, Simone de. O Segundo Sexo, v.I, II. Tradução Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. Mead, Margaret. Sex and Temperament in Three Primitive Societies. New York:: Dell Pu- 236 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. blishing., 1968. Schwarzer, Alice. Simone de Beauvoir hoje. Tradução de José Sanz. 2ª edição. Rio de Janei- ro: Rocco, 1986. Foucault, Michel. 1982. História da sexualidade I – a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal. Fonseca. Roda Maria Godoy Serpa. Gênero como categoria para a compreensão e a intervenção no processo Saúde-Doença no âmbito da saúde do adulto. Porto Alegre: Artmed/Panamericana, 2008, v. 3, p. 9-39. Hall, Suart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2006. Le Breton, D. Anthropologie du corps et modernité. Paris, PUF: 2013. Davis, Natalie Zermon, Women’es History in Transition: The European Case, Feminist Studies, 3 (Winter 1975-76), p.90. Martins, Geiza. Glossário de gênero: entenda o que é cis, trans, não-binário e mais. 2018 Bunchaft Maria Eugenia, OLIVEIRA Gabriele Zini. a problematização do binarismo sexual e a efetivação de direitos dos transexuais nas cortes superiores: uma análise à luz do debate entre Butler e Fraser. 2017. Revista direitos sociais e políticas públicas (UNIFAFIBE) Barbero, Graciela Haydée. A despatologização da orientação sexual: O papel da Resolução 01/99 e o enfrentamento da homofobia. 2006 Monteiro, Alice Brandão; MENDES, Ana Karla Nunes; IORIO, Antônio Alexandre. A despatologi- zação da homossexualidade. Centro Universitário 7 de Setembro Curso de Graduação em Psicologia Anjos, Juliana Prochnow dos; CARDOSO, Lívia de Rezende. Hanami ou corpos fogem, vazam, escapam... Revista Tempos e Espaços em Educação, São Cristóvão, Universidade Federal de Sergipe, v. 12, p. 69-78, jan./abr. 2014. Goellner, Silvana Vilodre. A produção cultural do corpo. In: LOURO, Guacira Lopes; FE- LIPE, Jane; Goellner, Silvana Vilodre. Corpo, gênero e sexualidade: um debate contemporâneo.5.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010. Gomes, Carlos Magno. Os estudos de gênero como modelo de leitura. In: DIAS, Alfrancio Ferreira; Pacheco, Ana Claúdia Lemos (Org.). Gênero trans e multidisciplinar. Jundiaí, SP: Paco, 2013. Turner, Bryan S. Corpo e sociedade: estudos em teoria social. São Paulo: Ideias & Letras, 2014. Dias, Alfrancio Ferreira. Corpo, gênero e sexualidades: Problematizando estereótipos, Revista Retratos da Escola, Brasília, v. 9, n. 16, p. 73-90, jan./jun. 2015. Disponível em: Mendes, Márcia Regina Gavino; POLETTO, Rodrigo de Souza. Sexualidade: atuação dos professores e o uso de práticas pedagógicas no seu ensino. 2016 Ribeiro, M.o. A sexualidade segundo Michel Foucault: uma contribuição para a enfermagem. Rev.Esc.Enf.USP., v. 33, n. 4, p. 358-63, dez. 1999.

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Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Relação da violência de gênero com o aumento da criminalização feminina e baixa empregabilidade de mulheres egressas do sistema penitenciário da Região Metropolitana do Rio de Janeiro

Flavia da Silva Pinto

Justificativa A população carcerária feminina no Brasil é a quarta maior do mundo, com quantitativo atual de 42 mil mulheres presas (INFOPEM, 2018), no livro Encarceramento em Massa a antropóloga Juliana Borges demonstra que esta população cresceu mais de 500%, nos últimos 10 anos. O Rio de Janeiro tem o quantitativo, atualmente, de 2.229 mulheres (BNMP 2.0), distribuídas em 6 pri- sões entre, presídios e penitenciarias. Deste coletivo 64% são mulheres negras, de origem pobres da favela, possuem baixa escolaridade, a maioria foi vítima de abuso sexual, físico e psicológico e muitas são LGBTQI+. Os estudos sobre o perfil desta população, ainda são muito insipientes, o que demonstra uma necessidade de aprofundamento de analises menos superficiais e incompletas deste grupo social para que seja possível a construção de uma política pública, a médio e longo prazo, que posso fortalecer a inserção deste grupo social no mercado de trabalho, fator fundamental para sua emancipação social e inter- rupção do ciclo da violência sofrida pelas mulheres no sistema patriarcal. Ao observar o perfil das mulheres encarceradas percebe-se um padrão que se repete onde a maioria tem: a mesma origem, a mesma cor de pele, o mesmo nível de escolaridade e vitimização dos diferentes tipos de violências de gênero, o que leva a crer que tal regularidade não deve ser tratada como similaridades ou coin- cidências uma vez que esta é uma forma simplista de tratar os fenômenos sociais. De acordo com o Relatório de Desenvolvimento Humano de 1995, de 1.3 bilhões de pessoas na pobreza no mundo 70% são mulheres, o que de- monstra que a “pobreza tem o rosto de uma mulher”. Estudos realizados em 176 países demonstram que mulheres com formação escolar até o secundário se veem forçadas a recorrer ao tráfico de drogas para a sua subsistência e de seus filhos. Os altos índices de desemprego também é um fator considerável para envolvimento das mulheres com atividades ilegais o que as coloca em 241 Edelamare Melo (Organizadora) posição de maior vulnerabilidade para absorção no submundo do crime o que explicaria o aumento da criminalização da pobreza. Estudos sobre as mulheres egressas do sistema penitenciário são tão incipien- tes quanto da população presidiaria. No entanto é sabido que, aproximadamente 80% das mulheres , ao tornarem-se presas, são abandonadas pela família, sofrendo a ruptura dos laços afetivos e sociais, principalmente com suas(eus) filhas(os) que passam a depender do acolhimento de outras pessoas, familiares ou não, que serão também, os responsáveis pela decisão de levar ou não suas crianças para visitação as suas mães dentro do cárcere. Esta questão também interfere diretamente na in- serção social na vida pós cárcere. Diferente do universo feminino, os homens não são tão brutalmente abandonados pela família, o que lhes assegura maiores chances de reintegração social. É sabido que existem ofertas de abrigos, em sua maioria de administração evangélica, para homens egressos do sistema prisional e/ou com problemas de dependência substancia química, no entanto a existência desta rede é menor ou praticamente inexistente para a mesma população feminina, fator que também influencia na empregabilidade e reintegração social destas pessoas. Outra questão bem diferente entre o universo carcerário masculino e fe- minino é a orientação sexual. Apesar de não haver estudos que demonstrem, podemos arriscar dizer que a população carcerária feminina se constitui de 80% de pessoas LGBTQI+, sendo muitas(os) desses “homens trans”, embora este conceito não seja por estas pessoas usado, tão pouco conhecido e com- preendido. A questão de orientação homoafetiva e da transexualidade é tam- bém outro fator que irá influenciar na ressocialização e integração no merca- do de trabalho formal ou informal da população feminina após sua libertação. OBJETIVO Coletar, observar e analisar, cientificamente dados que possam perceber como a violência de gênero sofrida por estas mulheres na infância, adolescên- cia e vida adulta colaboraram para a sua inserção no submundo da ilegalidade, na inserção no tráfico de drogas e na vida ou ato criminal, que possam ajudar a compreender o aumento criminalização feminina e entender como este ciclo da violência, que não é interrompida ao se tornarem presidiarias, interferem na em- pregabilidade e retorno com os vínculos familiares destas mulheres, compreen- dendo estes fatores estruturantes para a integração social deste grupo de pessoas. Pretende-se ter como campo de aplicação da pesquisa as unidades peniten- ciarias Nelson Hungria e Talavera Bruce, onde a instituição Casa do Perdão, cuja a proponente é ministra religiosa, realiza atendimento religioso a mais de 15 anos mantendo com as duas unidades encontros permanentes quinzenais.

242 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Histórico A Casa do Perdão é um Terreiro de umbanda fundado em 23 de Abril de 1999, cadastrado junto a Secretaria de Administração Penitenciaria do Rio de Janeiro – SEAP, para oferta de assistência afro religiosa no sistema prisional ca- rioca, desde 2004. Nos últimos 12 anos, assistindo apenas mulheres no Presidio feminino Nelson Hungria e na Penitenciaria Talavera Bruce, ambos localizado no Complexo Penitenciário do Gericinó, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. O atendimento consiste em oferta de ensinamentos, rezas, cânticos e pa- lestras sobre a religiosidade e cultura milenar africana e indígena. Em virtude de ter formação na área das ciências sociais e atuar há 21 anos como ativista social na área dos direitos humanos, as palestras trazem, também, os temas In- terseccionais sobre o racismo, sexismo, violência de gênero, cidadania LGBT- QI, liberdade religiosa, que são transversais ao processo histórico de formação social brasileira, sendo estes temas presentes na vida destas mulheres. Neste sentido, busca-se ofertar além do conhecimento religioso, abordar assuntos que sejam utilizados pelas futuras egressas do sistema prisional, na conquista de sua cidadania na vida extra cárcere. A cosmologia africana e indí- gena, da qual deriva a tradição filosófica e religiosa umbandista e candomble- cista, não trazem em sua cultural milenar o uso do dogmatismo e proselitismo em sua pratica ritualística, seja nas atividades religiosas internas ao espaço religioso ou em formato de apresentações, quando são transmitidas através de palestras, como é feita dentro das unidades prisionais em que a instituição atua.

243 Edelamare Melo (Organizadora)

De acordo com informações do Departamento Nacional de Administra- ção Penitenciaria - DEPEN, a Casa do Perdão é a única instituição de matriz africana, cadastrada oficialmente, para oferta de assistência afro religiosa no sistema prisional em todo o país. Ao longo destes 15 anos de atendimento, a instituição teve, durante os anos de 2006 há 2012, assento no Conselho da Comunidade, órgão previsto na Lei de Execuções Penais – LEP, composto paritariamente por sociedade civil e poder público, com a finalidade de fisca- lizar o sistema prisional. Como conselheiros a Casa do Perdão, através de sua representante, teve a oportunidade de visitar, quase todos os presídios da re- gião metropolitana do Rio de Janeiro. Atualmente o conselho está desativado. Esta experiencia possibilitou verificar as diferenças entre as unidades masculinas e femininas, principalmente em dois aspectos que mais chamaram a atenção: a questão da massiva presença evangélica neopentecostal em todo o sistema prisional, fato que faz com que cada presidio tenham as chamadas celas evangélicas e destine este espaço as presas e presos, evangelizados e considerados com “ bom comportamento”. As internas e internos que utilizam e cela evangélica usufruem de “privilégios” não possíveis para as/os demais, como por exemplo, ter um tempo maior de banho de sol, são mais escolhidas/ os para trabalhar na cadeia e desta forma reduzir seu tempo de prisão, tem acesso livre para circular nos espaços internos das unidades penitenciaria, em quase todas as cadeias, e no caso especifico da população feminina, são as internas destas celas que receberão uma quantidade maior de absorventes menstruais, doados pela Igreja Universal do Reino de Deus - IURD. Serão elas também, que faram a distribuição do excedente, onde as mesmas, quase sempre priorizam as presas igualmente evangélicas. Outra questão que despertou a atenção foi a chamada reinserção social, através da empregabilidade e moradia para os egressos e egressas do sistema penitenciário. A forma com esta reinserção será conquistada tem haver direta- mente com as condições de sobrevivência que está presa ou preso teve no seu período em reclusão. Questões de impacto direto como as que envolvem não ter rompido o vínculo familiar, receber visita ou recursos financeiros e materiais da família, ter uma casa ou abrigo para morar após sua reclusão, rede de apoio para sua moradia e sustento em sua vida fora da prisão. No caso do público masculino, estes comumente não são abandonados pela família, filhos, esposas, mães e amantes, realidade radicalmente diferente das mulheres em situação de cárcere, que, são 80% abandonadas pela família, filhas(os), companheiros, conforme relato das próprias internas. Aquelas que tem orientação homoafetiva ou transexual, só recentemente tiveram autorização para receber visita regular

244 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. e intima de suas companheiras, mas tão somente aquelas(es) que forem unidos ou casados judicialmente, o que é pouco comum no universo homoafetivo. Todos estes fatores interferem diretamente na empregabilidade, moradia e reinserção destas internas e internos no momento em que se tornam egres- sas(os) do sistema. A perspectiva de objeto de estudo, é realizar observância sobre o universo feminino, levando em consideração, todos os aspectos que podem interferir interseccional mente na vida destas mulheres ou homens trans. Entende-se por homens trans, pessoas nascidas geneticamente mulhe- res, mas que se identificam psicologicamente e socialmente como homem. O termo homem trans é um conceito considerado por grande parte do movi- mento LBTQI como politicamente correto, porem nem todas as pessoas que podem ser consideradas como homens trans, consideram esta terminologia adequadas e aplicáveis para identifica-los ou representar. Em virtude da população carcerária dos presídios feminino serem cons- tituídos de mulheres, de diferentes orientações homoafetivas e de homens trans, utilizaremos em todos os momentos o feminino e masculino, contem- plando o gênero de identificação socialmente escolhida pelos homens trans, e por esta razão quando usarmos as palavras no masculino é preciso que se en- tenda que não estamos falando de pessoas nascidos biologicamente homens, mas tão e somente estaremos nos reportando aos homens trans, que estão cumprindo pena nas mesmas unidade prisionais que as mulheres. Ao longo de todos estes anos de atuação junto ao sistema prisional ca- rioca, a instituição foi procurada por mulheres e homens trans recentemente saídos do cárcere, solicitando ajuda institucional e humana para sua sobrevi- vência temporária que auxiliasse na reconstrução de suas vidas após o perío- do prisional em virtude de não terem vinculo familiar, não terem para onde ir, morar e sem condições de sobreviver. Em virtude da Casa do Perdão ser um terreiro de tradição matriarcal, sempre foi ofertado o acolhimento, porem em virtude da falta estrutura física, administrativa e financeira, houve bastante dificuldade de ajudar estas pessoas com ações concretas para além do acolhi- mento humano, sendo limitados em oferecer auxilio com orientações, alimen- tação, abrigamento de algumas noites, mas, depois, as mesmas iam embora, por necessitarem de uma estrutura mais definida de acolhimento temporário, que pudesse oferecer toda rede de apoio que estas pessoas necessitam nesta situação como: trabalho, ocupação, atendimento médico, acompanhamento psicológico, assistência social, alojamento, dentre outros. Cansados de acumular a frustação de não poder ajudar, a instituição está em processo embrionário de busca por parceiros e investidores para o desen-

245 Edelamare Melo (Organizadora) volvimento de uma infraestrutura física, administrativa, medica e ocupacional para acolher um pequeno número de mulheres e homens trans egressas(os) do sistema prisional, que estejam nas condição acima descritas, dentro do terreiro. Sabedores de que esta iniciativa não resolverá todas as questões que atraves- sam as inúmeras vulnerabilidades interseccionais desta população, constata-se a necessidade de aprofundar e desenvolver pesquisas cientificas que possam produzir dados estatísticos a serem utilizados, há médio e longo prazo, no de- senvolvimento de políticas públicas que revertam a atual situação que é de bai- xíssima empregabilidade e ressocialização destas pessoas, além de contribuir na ruptura do silenciamento deste debate dando visibilidade a esta questão. É desconhecido estudos que possam demostrar o percentual exato da orien- tação homoafetiva das penitenciarias femininas, no entanto, foi percebido durante a longa presença nas penitenciarias que em torno de 80 % das internas e internos são pessoas lésbicas e transexuais, estimativa considerada real pelas próprias in- ternas. Chama atenção o fato de homens trans serem respeitados nesta condição, sendo tratado pelo gênero masculino o tempo todo pelas suas amigas e amigos de cela, desenvolvendo códigos de condutas, como por exemplo, não ser permitido que as namoradas do “sapatão”(assim são chamados os homens trans na cadeia, em virtude desta população não acessar o conhecimentos das terminologias con- sideradas politicamente corretas), tirem a roupa na frente de outro sapatão. Chama atenção, também, o fato de como estas pessoas terão sua identi- dade de gênero tratadas quando estiverem livres, vivendo fora do ambiente do cárcere, onde parece haver uma respeitabilidade para se comportarem e serem tratados(as) como se identificam, e neste contexto entender como o psicológi- co será afetado depois de passarem de 04 a 20 anos sendo tratados pelo nome social na cadeia inteira e como a mudança na forma de tratamento, na socie- dade extra muro pode afetar a sua saúde emocional, que é fundamental para o seu bem estar existencial e consequente empregabilidade e ressocialização. Pesa o fato de saber que para além do uso do “nome social”, pelo qual es- colheram ser chamados, tem o fato público do preconceito com esta população, sendo o Brasil um dos países que mais mata população LGBTQI+ no mundo, logo manter este identidade social, fora do cárcere pode custar a própria vida destas pessoas, e afetar sua empregabilidade, uma vez que pessoas com ves- timenta e postura consideradas “masculinizada”, ou simplesmente por serem lésbicas podem facilmente não serem “aceitas “ em ambientes formais de tra- balho, reforçando assim o ciclo da exclusão e pobreza no universo feminino. Como existem poucos estudos sobre perfil da população carcerária fe- minina, é muito difícil utilizar percentuais estatísticos exatos, e para algumas

246 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. questões, até que se desenvolva a linha de pesquisa investigativa cientifica, será utilizado as impressões observadas durante estes 12 anos de contato com este público. Desta forma é possível dizer que estas pessoas ao se tornarem-se egressas(os) do sistema prisional terão as seguintes características, algumas cruzando várias delas: mulheres, negras(os), pobres, lésbicas, transexuais, ruptura do vínculo familiar e ex-presidiárias, ou seja todas as categorias não respeitadas pela sociedade patriarcal e cristã brasileira que faz com que estas pessoas sejam alvos de preconceito e exclusão. Consequentemente permanecem vítimas de exclusão dentro do sistema patriarcal ao qual a sociedade brasileira se estrutura desde o período colonial ini- ciado com a invasão portuguesa, que trouxe consigo o sistema econômico mer- cantilista, capitalista, euro-cristão e patriarcal que reproduz ao longo destes 519 anos , o ciclo da violência contra as mulheres, que vão desde a subalternização , escravização, estupro , negação do direito a autonomia do uso do corpo e das decisões sobre os mesmos, pobreza e exclusão. Não por acaso o Brasil mantem a marca de 4° país em população carcerária feminina no mundo, 5° em feminicídio, trazendo a estatísticas no Mapa da Violência 2019 de 263.067 casos de violência doméstica, ou seja um registro a cada 2 minutos e 66.041 casos de violência se- xual, contabilizando o total de 180 estupros por dia, sendo 53,8% crianças até 13 anos de idade, ou seja 4 meninas de até 13 anos estuprada por hora, mais de 60% dos crimes ocorreram em casa e foram praticados por familiares. Como a maior parte da população carcerária feminina relata ter sido víti- ma de algum tipo de abuso e violência na infância, adolescência e vida adulta, sendo algumas delas encarceradas por terem assassinado ou agredido o agres- sor, é necessário pesquisar melhor esta relação de vitima e criminosa, buscando entender como a ausência de uma politica preventiva e protetiva da violência de gênero pode evitar a criminalização em massa do universo feminino. É, também, importante observar como um pais que registra, desde a in- vasão portuguesa, 519 anos de existência, sendo 400 escravizando, estuprando e explorando pessoas negras, conta hoje com apenas 131 anos de não escravização oficial, segue mantendo uma politica de encarceramento em massa como estraté- gia para justificar a criminalização da pobreza, que na verdade é prova inconteste de um estado que não desenvolve políticas de combate a pobreza e prevenção da violência e por isso segue aprisionando as(os) pobres, quase todas(os) pretas(os). A condição da mulher presidiaria passa inevitavelmente pela questão re- ligiosa uma vez que a tradição evangélica é a religião mais presente no sistema penitenciário, no entanto, esta jovem tradição religiosa, com pouco mais de 500 anos de fundação, traz em sua filosofia e cosmovisão, um forte discurso patriar-

247 Edelamare Melo (Organizadora) cal, proselitista e dogmático em suas práticas, sendo publicamente defensoras de posturas homofóbicas e machistas que corroboram com o sistema patriarcal que é produtor dos ciclos de violência de gênero. Neste sentido está forte presença evangélica no ambiente penitenciário contribui para ampla disseminação do pre- conceito, uma vez que este universo é constituído em sua maioria por pessoas LGBTQI+, não sendo esta uma orientação aceita pela religião evangélica. Para melhor compreender a presença massiva evangélica dentro do sis- tema prisional, é necessário avaliar o processo histórico de formação da so- ciedade brasileira, que resulta na questão do racismo religioso. Dentre todos os problemas que esta população enfrenta em sua trajetó- ria de vida, além dos que vai enfrentar ao sair do cárcere para conquista da sua cidadania, emancipação social e interrupção do ciclo da violência, que passa pelo enfrentamento e superação do racismo, sexismo, desemprego, abandono familiar, moradia, recuperação da guarda dos filhos, não pode ser a orien- tação homoafetiva transformada em mais um problema para estas pessoas que precisam muito mais do que ser demonizadas e criticadas, amparadas e respeitadas na sua livre escolha de amar e se relacionar social e afetivamente. Desde o processo de invasão euro-cristã portuguesa, e não coloniza- ção, como equivocadamente é retratado nos livros escolares que não imple- mentam a lei 10639 e 11645, que torna o ensino da Historia da África e dos Povos Indígenas nos currículos escolares, assunto bem detalhado no livro Levanta Favela, Vamos Descolonizar o Brasil (Pinto, Flavia), a ser lançado em outubro de 2019 pela Editora Conexão 7, aprofunda a disseminação do pensamento cristão e patriarcal presente no comportamento social da cultura brasileira, reforçando a imagem de demonização da mulher, do corpo negro, das outras praticas religiosas e da homo afetividade. Sendo publicamente aceita e respeitada estão postura evangélica radical e fa- nática neopentecostal, no ambiente público brasileiro, que muito difere da postura dos evangélicos tradicional como luteranos, metodistas, dentre outros, encontram espaço livre dentro do sistema penitenciário, principalmente por haver pouca pro- cura de outras tradições religiosas para ofertar de assistência religiosa voluntaria para esta população. É importante considerar que o fato de serem maioria não ou- torga aos líderes evangélicos utilizarem o discurso do ódio, demonizando a orienta- ção homoafetiva destas pessoas, como é relatado por muitas internas. Diante das possibilidades aqui expostas o objetivo do trabalho é apro- fundar o estudos da violência de gênero que atravessam a população carcerária feminina e perceber como elas são reforçadas para mantê-las na pobreza, no desemprego, na marginalidade, encarceradas e invisibilidades socialmente.

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Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

O catolicismo e a diversidade étnico-racial e religiosa na pós-modernidade

Frei David Santos OFM

I. Introdução Em 16 de maio de 2018, num encontro com religiões não cristãs, o Papa Francisco disse que o “diálogo e colaboração são palavras-chave nos dias de hoje” e é importante ver cada vez mais os líderes religiosos “se compromete- rem em cultivar a cultura do encontro e dar exemplo de diálogo colaborando efetivamente ao serviço da vida, da dignidade humana e da tutela da criação”. Assim o Papa Francisco dá continuidade à EXORTAÇÃO APOSTÓLICA “EVANGELII NUNTIANDI” do PAPA PAULO VI, especialmente no núme- ro 20 Esta leitura nos revela que o diálogo religioso continua sendo o grande desafio que ainda não foi plenamente abraçado pela Igreja, para se libertar do domínio totalitário da cultura europeia dentro dos espaços eclesiais e pregar o evangelho à todas as culturas, com a liberdade de filhos de Deus, a partir dos valores de cada cultura, mantendo o cerne do vigor evangélico. Poucos Car- deais, Bispos, Padres, Religiosos/as e suas respectivas Congregações levam- no a sério e o colocam em prática, no dia-a-dia, com dedicação e compro- misso com o Reino de Deus. Por quê? Infelizmente a resposta é muito fácil e chocante: exigia e exige que as culturas que predominavam e predominam dentro da Igreja abrissem mão de seu poderio cultural europeu, na forma de evangelizar e celebrar, dando espaço para a diversidade cultural criada por Deus e desejada pelos documentos eclesiais. Que permitissem que as culturas oprimidas, especialmente a indígena e a afro-brasileira fossem protagonistas no serviço de evangelizar e gerar o diálogo com Deus. Este é um problema verificado só na Igreja Católica? Não. Todas as Igrejas cristãs desrespeitavam e desrespeitam, na base de suas estruturas, a rica diversidade cultural, criada e doada à humanidade por Deus que é o senhor de todas as culturas. II. De cada 10 líderes negros norte-americanos, 9 foram “gestados” nos espaços religioso-cristãos Este tema é de vital importância para o aprofundamento do ser Igreja na atual fase de busca e construção de comprometimento e identidade com a comu-

251 Edelamare Melo (Organizadora) nidade afrodescendente e indígena, nas Igrejas e fora das Igrejas, em nível nacio- nal. As Igrejas, mais uma vez, erram e não dão espaço para o novo! Os cristãos em geral estão descobrindo algo fantástico: este povo afro-brasileiro é marcadamente religioso! Se a Igreja Católica não lhes permite espaço, buscam, sem perda de tempo, em outras expressões religiosas. Este é um dos fatores através dos quais a Igreja Católica está, cada vez mais, em queda livre... A religião está na flor da pele deste povo negro! Eles têm grande potencial para viver a fé, mas ela está formatada equivocadamente para os pertencentes ao poder branco. Percebemos que, antigamente, nos quatro cantos do Brasil, havia uma tentativa de articulação da luta pelos direitos dos afrodescendentes nas respectivas Paróquias, Dioceses e Arquidioceses nas quais vivenciavam sua fé. Fazendo-se uma retrospectiva histórica da luta dos negros nos EUA vamos constatar que, de cada 10 líderes negros norte-americanos, com diferente inten- sidade na aplicação de sua pedagogia de liderar, 9 foram “gestados” nos espaços religioso-cristãos. É o caso do Pastor Luther King, Malcon X e outros grandes exemplos a serem seguidos. Lá nos EUA, a tática usada pela comunidade afrodes- cendente fez as estruturas das Igrejas a se colocarem a serviço da causa do povo negro, consciente ou inconscientemente. Na década de 80 cresceu aqui no Brasil a articulação dos afrodescendentes dentro dos espaços religiosos. Com a constata- ção de que esta foi também uma estratégia que garantiu conquistas da comunidade negra cristã norte americana. A tendência hoje é de retomada e investimento neste caminho? Ou as estruturas contrárias são as mesmas e, mais uma vez não irão dei- xar o novo florescer? Não temos dúvidas: consciente ou inconscientemente este é o caminho que trará, mais rapidamente, as vitórias que almejamos – uma Igreja sendo instrumento de Deus na construção da diversidade étnica na Igreja e na sociedade. Todos os cristãos: brancos e negros estaremos mais próximos e em sintonia com as exigências proféticas do Reino de Deus, se optar por este caminho! III. Os afro-brasileiros e as Religiões Evangélicas É possível um trabalho conjunto da Católica Católica com os movi- mentos cristãos evangélicos negros, em atitude de abertura? Ao se tratar deste tema no Brasil, uma grande pergunta fica no ar: se nos EUA a Igreja Batista foi o principal instrumento que lutou pela libertação dos afrodescendentes, porque, aqui no Brasil, a Igreja Batista não cumpriu o mesmo papel? E os de- mais Evangélicos? Seria fundamental se fazer esta pergunta a todos os nossos irmãos evangélicos. Uma tentativa de resposta é esta: o poder central batista (que era branco) dificultou, ao longo destes anos a vinda de Pastores Batistas negros que eram conscientes dos direitos do povo negro. Só enviaram como

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Missionários para o Brasil pastores e leigos brancos que tinham posturas con- tra o investimento na retomada da consciência e dos direitos do povo negro no Brasil. Os poucos negros que aqui vieram como Missionários Batistas não tinham consciência de negritude relativamente bem elaborada. Por volta dos anos 80 surgem pessoas batistas negras e outros evangélicos que tentavam fazer um trabalho de evangelização nesta linha. Organizavam-se em várias partes do Brasil. No Paraná editavam um informativo impresso com as demandas por evangelização dos batistas negros. Nas assembleias dos Agentes de Pastoral Negros participavam batistas negros e outras denominações. O Jornal da Igreja Evangélica do Reino de Deus (que tem uma grande tiragem), na edição 304/1998 dedicou uma página inteira discutindo o racis- mo no Brasil e colocando em debate, dois expoentes da reflexão racial brasi- leira: Aroldo Macedo, Diretor da Revista Raça e Ivanir dos Santos, secretário executivo do CEAP-Rio. A Igreja “Assembleia de Deus” tem tido uma ou outra pessoa preocupada com este aspecto da evangelização. O ritmo dos cantos evangélicos adaptado dos ritmos das ricas culturas afros, com letras religiosas, tem sido cada vez mais comum nestas Igrejas e em outras pentecostais que atuam em todo o Brasil. O ritmo do samba, além de ter entrada em várias Igrejas ocupa boa parte das programações evangélicas nas rádios e televisões no Brasil e conquista grande parte da comunidade negra, inclusive multidões de Católicos negros! O estilo musical GOSPEL (dos negros dos EUA), inclusive com seu visual estético afro tem ocupado bons espaços nos corais que se apresentam nas Igrejas e televisões, caindo de cheio no gosto do povo e tem sido cada vez mais comum no Brasil. Em que podemos aprender com as Igrejas evangéli- cas, sem nos contagiar com possíveis equívocos? Cresceu no Rio de Janeiro a articulação através dos encontros de CA- POEIRISTAS EVANGÉLICOS. Conseguiram reunir pastores e leigos afro- descendentes de várias religiões evangélicas e uniram com qualidade a refle- xão evangélica com elementos simbólicos da cultura afro-brasileira. Nos anos 90 surgiu, no Brasil, uma articulação de evangélicos afrodes- cendentes, provenientes de mais de 5 denominações religiosas. Seus objetivos foram o de refletir o evangelho a partir dos valores culturais; avaliar a prática das Igrejas Evangélicas no tocante ao racismo inconsciente ou conscientemente praticado no interior das Igrejas; avaliar possíveis passos de avanço enquanto negros e evangélicos que deveriam ser dados, etc. Tiveram algumas dificulda- des institucionais para manter esta novidade profética e dar continuidade a este valor do Reino de Deus. Por que tudo para o povo negro é mais difícil?

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Entre as Igrejas Evangélicas, a que teve um trabalho de negritude razoável foi a Metodista. Conseguiram elevar à categoria de MINISTÉRIO o trabalho de luta contra o racismo, surgindo assim oficialmente o MINISTÉRIO DE COM- BATE AO RACISMO DA IGREJA METODISTA. Realizam cursos, encontros, seminários, etc. Já realizaram alguns encontros de pastores evangélicos negros metodistas. Num dos Concílios a Igreja aprovou que todas as instituições de en- sino do 1º, 2º e 3º graus pertencentes à instituição deveriam dar prioridade, na concessão de bolsas de estudo, a estudantes afrodescendentes e mulheres. Infeliz- mente a estrutura da Instituição, percebendo o avanço deste povo de Deus, “cor- tou as asas de cada líder” e os trabalhos desapareceram quase que completamente. Na década de 80 um grupo de 16 pessoas, afrodescendentes, que eram Metodistas, Batistas e Católicas organizou um grupo de estudo, com apoio do ISER (Instituto Superior do Estudo das Religiões) com o objetivo de se produzir uma “TEOLOGIA NEGRA DE LIBERTAÇÃO” a partir dos líderes populares dos movimentos sociais negros. O grupo encontrava-se dois dias integrais por mês, com o intuito de estudar e debater as questões comuns à comunidade afrodescendente cristã em geral, a partir do prisma da teologia da libertação. As reuniões aconteceram, em sua maior parte, nas dependências da Faculdade Metodista Bennett, próximo ao Largo do Machado, na cidade do Rio de Janeiro. O primeiro negro Doutor em Teologia no Brasil, desta nova geração, Geraldo da Rocha, foi participante deste grupo experimental. Um dos momentos de auge dos Metodistas negros aconteceu no dia 28 de junho de 1997, quando o Ministério Regional de Combate ao Racismo da Igreja Metodista realizou um importante encontro no Rio de Janeiro, cujo título foi: “COMO A IGREJA COMBATE O RACISMO”? IV. Como a Igreja trataram os negros nestes 518 anos? Em 1994 estávamos preparando fundamentadas pesquisas para trabalhar, com bons conteúdos, a celebração dos 300 anos do martírio de Zumbi dos Pal- mares. Decidi buscar resposta para uma pergunta: como a vida religiosa tratou os Quilombolas do Quilombo dos Palmares, em 1690? Fui pesquisar em Recife, Pernambuco, com esta pergunta bem definida. Tinha uma expectativa de encon- trar posturas corajosas, no estilo de Francisco de Assis, que foi até o Sultão em busca da paz. O que encontrei deixou-me chocado: uma carta do Guardião do Convento Franciscano de Recife, cobrando do Governador da época os salários dos 12 frades colocados a serviço das tropas que foram destruir os Quilombos dos Palmares e matar os Quilombolas. Quais as responsabilidades e compromissos que esta descoberta traz a nós continuadores da Vida Religiosa no Brasil de hoje.

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Para compreendermos a postura omissa da Igreja hoje, podemos e de- vemos olhar para a história. Ao longo destes séculos, a Igreja católica e todos os cristãos foram influenciados e formados por quatro projetos de evangeliza- ção/reino de Deus. São eles: 1. Primeiro projeto No período colonial, entre os anos de 1500 e 1842, a proposta deste projeto era a de promover a fé cristã, baseada na leitura do Evangelho a partir da ótica do opressor, tendo como foco a cultura europeia. Sendo assim, tudo o que se originava da cultura negra era menosprezado pela cultura branca do- minante. O lugar ocupado pelo negro era o de escravo e a escravidão roubava do negro o direito de constituir família, de vivenciar suas tradições culturais, de resgatar suas raízes e possuir os direitos iguais aos demais cristãos. Este projeto, do ponto de vista do colonizador, era anunciado como sendo a grande Boa Nova, mas da ótica do povo escravizado e oprimido, significava MÁ NOTÍCIA: a extinção dos seus direitos de cidadãos, de seus valores culturais, religiosos e humanos. Infelizmente, a Vida Religiosa e a Igreja estabeleceram um forte vínculo com o Império, no sentido de ratificar esta proposta anti-evangelizadora. Elas não tinham como foco a dimensão libertadora e salvífica, trazidas por Jesus Cristo. Preocupavam-se com os privilégios obtidos para a Vida Religiosa e para a Igreja a partir desta parceria. Em outras palavras: a Igreja apoiava o Império nas lutas ar- madas contra os escravizados negros e outros invasores. A vida Religiosa e a Igreja investiram na destruição dos Quilombos dos Palmares, no assassinato de Zumbi, além de estar conivente com o assassinato de todas as demais lideranças do povo negro, nos quatro cantos do Brasil. Um dos exemplos foi o julgamento injusto do líder Manoel Congo, que fez uma forte revolta nos engenhos da cidade de Vassou- ras, Rio de Janeiro, fundando um Quilombo que foi rapidamente exterminado pelo falso herói Nacional Chamado de Duque de Caxias. Manoel congo foi enforcado no dia 6 de setembro de 1839. A Igreja limitou-se a colocar um religioso para legitimar o enforcamento, dando-lhe a extrema unção. Todos os líderes do povo negro que lutaram contra a escravidão e libertação de seu povo foram dizimados para intimidar o surgimento de novas lideranças. Hoje, alguns religiosos mal in- formados têm a coragem de dizer que o negro não lutou contra a escravidão. O Império concedia à Igreja poder e status para que esta também pudesse influenciar politicamente nos rumos do país, e ajudar na manutenção da escravidão.

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2 - Segundo projeto No segundo projeto, denominado romano-europeu, a partir de 1842 até 1968, a luta era pela retomada da europeização da vida religiosa e da Igreja no país e isto significava combater as irmandades e todas as organizações leigas. Passar por cima dos grupos e das culturas consideradas inferiores, a fim de que prevalecesse o processo de ocidentalização. Para isso, abrem-se as portas para os imigrantes europeus, ao mesmo tempo em que se busca a perseguição e elimina- ção dos quilombos, pelo perigo que ele representava ao projeto de europeização do país. Os negros, neste caso, só teriam vez se entrassem no esquema da euro- peização, que tinha como um de seus instrumentos a ideologia do embranqueci- mento. Os negros que procuravam defender sua cultura, principalmente através da vivência da fé nas religiões afro (um dos poucos espaços de resistência), eram impiedosamente perseguidos e mortos. Foi nesta fase que a ideologia determinou que as religiões afro fossem coisas do demônio e proibidas de funcionar. Os colonizadores e missionários europeizavam/catequizavam negros e índios e, aqueles que se rebelavam eram massacrados pelos colonizadores sem a defesa da vida Religiosa ou da Igreja. No máximo, iam ministrar o sa- cramento da extrema unção para os injustamente condenados à morte. Ainda fazendo referência à ideologia do embranquecimento do país, proibindo a entrada de negros e só permitindo brancos, lembramos o decreto Nº 7967, artigo Nº 2, de 18 de setembro de 1945, assinado pelo então Pre- sidente Getúlio Vargas que diz: “Atender-se-á, na admissão dos novos imi- grantes, a necessidade de preservar e desenvolver na composição étnica da população, as características mais convenientes da sua ascendência europeia, assim como a defesa do trabalhador nacional”. Em 1960, com a Lei Afonso Arinos que punia todas as atitudes de discrimi- nações raciais, as Congregações Religiosas do Brasil, por pressão do advogado da CRB Nacional, começaram a tirar de seus estatutos e normas internas a proibição de se permitir a entrada de negros(as) e mestiços(as) na vida religiosa. 3 - Terceiro projeto A partir de 1968, com a Conferência de Medellin e Puebla, a compre- ensão de vida religiosa em missão profética consistia em trabalhar a evange- lização baseada na situação concreta e histórica do povo oprimido, afirmando e defendendo que este era o verdadeiro rosto de Deus, configurando assim, o terceiro projeto de evangelização. Concluíram que este povo oprimido reúne principalmente negros/as e índios, entre o grande volume de marginalizados. Foi então que começaram

256 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. a surgir os grupos de base formados por negros católicos que em 1980, fun- daram articulações de negros(as) católicos em todos os seguimentos. A Arti- culação dos Franciscanos Negros desembocou na luta tenaz pelas Ações Afir- mativas e cotas nas universidades brasileiras, uma das principais conquistas do povo negro nos últimos 150 anos! Depois de um grande trabalho de pressão da base negra católica, formada em grande parte por Religiosas e Religiosos negros/as, a CNBB assume na Campanha da Fraternidade de 1988 o tema: “A Fraternidade e o Negro!” graças a grande mobi- lização dos grupos pastorais negros de base. Esta iniciativa projetou o trabalho dos negros católicos no sentido de conquistar um espaço para levar toda a sociedade a refletir a condição socioeconômica sub-humana de homens e mulheres negros ex- cluídos institucionalmente dos espaços de decisão da sociedade e da Igreja. 4 - Quarto projeto Finalmente, a proposta do “quarto projeto de evangelização” é o que se tem de mais recente no tocante à postura da Igreja em relação às questões raciais. O retorno ao conservadorismo, a valorização da oração sem o compromisso da ação enquanto escolha mais eficaz para a solução dos problemas começam a ganhar mais impulso. A tendência dos grupos de base foi de esmorecimento quase total. Alguns têm optado por realizar trabalhos mais internos, na tentativa de não perder os espaços já conquistados anteriormente. O projeto latino-americano perde sua força na medida em que os agentes negros que tiveram um bom “pique” no co- meço perderam-se no caminho, com conflitos onde o negro era o “revoltado”. Os negros católicos comprometidos, principalmente religiosos e religiosas, tentam trabalhar a causa do negro fora da Igreja. Focam na luta por políticas públicas, contra a continuação da discriminação racial, através dos veículos de comuni- cação, de iniciativas junto ao poder público, atuando também junto ao processo educacional, no sentido de promover a cultura negra e de conscientizar a partir da compreensão da unidade respeitando a diversidade. V - Como os negros católicos organizaram-se nestes 518 anos? A organização religiosa só é possível ser plena na liberdade. A primeira grande experiência de liberdade religiosa foi experimentada nos quilombos reunidos dos Palmares. A comunidade quilombola, por ser radicalmente livre do domínio do pensar político e religioso dos colonizadores, tinha total liber- dade e motivo para rechaçar a influência da Igreja Católica e todos os seus símbolos religiosos. No entanto, não foi isto que aconteceu. O povo quilom- bola foi capaz de distinguir os valores religiosos emanados dos evangelhos,

257 Edelamare Melo (Organizadora) tais como a justiça, o respeito à diversidade que trazia a Igreja Católica da prática dos que se diziam “donos” da fé católica. Os Quilombolas naquele novo espaço de liberdade poderiam fechar-se so- mente em sua compreensão religiosa tradicional africana. Entretanto, eles sabiam diferenciar Jesus Cristo e seu Evangelho da prática dos cristãos colonizadores em terras brasileiras. OS QUILOMBOLAS REPROVAVAM a prática religiosa dos cristãos, pois não valorizavam a justiça e o respeito ao diferente, mas, por outro lado, souberam perceber o potencial libertador trazido por Jesus e seu Evangelho e o abraçaram. Na guerra contra os palmarinos, em 1645, chefiado por BLAER - REIJEMBACH, o escrivão da tropa invasora relata que encontrou no centro do Mocambo GRANDE PALMARES uma casa religiosa, com imagens de Santos Católicos, entre elas a imagem do MENINO JESUS, e ricamente adornadas com objetos religiosos africanos. A inculturação, tão discutida hoje na Vida Religiosa e na Igreja, já era algo normal, praticada no espaço de liberdade chamado QUI- LOMBO. Os Sacerdotes eram escolhidos entre os mais capazes, que possuíam espírito de liderança, sabedoria e profundo conhecimento da natureza. A inti- midade com o DEUS PAI TODO-PODEROSO, chamado de OLORUM - OLO + ORUM (senhor do orum, ou seja: senhor de todos os espaços terrestres e ce- lestes), era a principal qualidade nos Sacerdotes. Já entendiam como normal e natural o Sacerdócio casado, bem como o Sacerdócio feminino, dimensões ainda hoje, em pleno século XXI, negada pela principal religião ocidental. VI – Conclusão O clima e o momento é muito positivo para debater o diálogo religioso ou o macro ecumenismo. Um exemplo, para concluir, está na postura positiva do Papa. Pessoas de diferentes religiões se uniram com o Papa na Praça São Pedro em uma reflexão sobre a importância da abertura inter-religiosa, com as religiões não cristãs. Este encontro ecumênico promovido pelo Papa foi também para comemorar os 50 anos da declaração apostólica “Nostra aetate”. “A Igreja olha com estima para os crentes de todas as religiões, apreciando o seu empenho espiritual e moral. A Igreja aberta ao diálogo com todos é, ao mesmo, tempo, fiel à sua crença” e respeitosa com a crença dos irmãos, disse o Papa Francisco. Neste ano de 2018 a Igreja/CNBB comemora os 30 anos da primeira Campanha da Fraternidade com o tema sobre o negro. De lá para cá, o que mudou dentro da Igreja, com referência ao diálogo intereligioso? Uma litur- gia Inculturada Afro foi oficializada? O maior espetáculo da terra, o carnaval brasileiro e mais especialmen- te os desfiles das Escolas de Samba, trazem dicas de como a Igreja deve se

258 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. inculturar. Como exemplo, vamos ler a letra da Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense, do carnaval de 2015 e vamos nos perguntar: é ou não uma proposta de reflexão que poderia partir da Igreja? E porque não parte? Veja- mos o conteúdo da música:

“AXÉ, NKENDA! Um ritual à liberdade” (E que a voz da Igualdade seja sempre a nossa voz!)

Foi um grito que ecoou, “axé-nkenda”! A luz dentro de você... Acenda! Nada é maior que o amor, entenda A voz do vento vem pra nos contar Que na mãe áfrica nasceu a vida Pura magia, “baobá” abençoado... Tanta riqueza no triângulo sagrado... Mistérios! Grandeza! O homem em comunhão com a natureza! Tristeza e dor, Na violência pelas mãos do invasor E o mar levou... Nossa cultura um novo mundo encontrou

Põe pimenta pra arder, arder, arder! Sente o gosto do dendê, o iaiá, oyá Tem acarajé no canjerê, Tem caruru e vatapá (é divino o paladar) Capoeira vai ferver! Vem ver! Vem ver! Abre a roda que ioiô quer dançar.. Sambar.. Traz maracatu, maculelê.. É festa até o sol raiar

Liberdade! Sagrada busca por justiça e igualdade E com arte eu semeio a verdade O despertar para um novo amanhecer Faço brotar a força da esperança Deixo de herança um novo jeito de viver! Vamos louvar o canto da massa

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Unindo as raças pelo respeito Vamos à luta pelos direitos Uma “banana” para o preconceito. “Mandela”! “Mandela”! Num ritual de liberdade Lá vem a imperatriz! Eu vou com ela Eu sou “madiba”! Sou a voz da igualdade. Referências Bibliográficas Moore, Carlos. Racismo & Sociedade – novas bases epistemológicas para se entender o ra- cismo. Belo Horizonte: Mazza Edições Ltda, 2007

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261 Edelamare Melo (Organizadora)

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Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Religiões Afrodiaspóricas: negros batistas e pentecostais em Salvador (1882-1930)

Gicélia Cruz1

1. Introdução As últimas décadas apresentaram um crescimento no número de negros evangélicos no Brasil. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatís- tica (IBGE), censo de 2010, no Brasil, existem cerca 22.784.825 de negros e pardos, que se declararam evangélicos; na Bahia 1.896.361 e em Salvador 439.2232. Esses dados mostram que os africanos diaspóricos, aderiram às dis- tintas práticas religiosas na interlocução da nova realidade que lhe foi imposta pelo processo de colonização. Essa temática tem sido objeto de análise de muitos estudiosos da História das Religiões Afro brasileiras. Compreender como se configurou, dentro das religiões afroatlânticas na Cidade de Salvador, no período entre 1882 e 1930, a adesão de negros ao protes- tantismo e pentecostalismo, é importante visto que estes sujeitos já tinham expe- riências de práticas religiosas tanto nas religiões de matriz africana, catolicismo, islamismo, bem como de outras. Convém também conhecer o contexto socio- econômico, cultural, religioso e educacional em que este negro estava imerso quando em 1882, chega o trabalho batista na capital baiana, e logo no início do século XX, chegam os pentecostais. Nesse sentido, percebe-se a ressignificação da espiritualidade e fé do afro brasileiro, merecendo tal contexto ser pesquisado. A partir da Lei Federal 10.639/2003, torna-se obrigatório o ensino da História da África e Cultura Afro brasileira na sala de aula, ou seja, a partici- pação do negro na construção da história do Brasil. Assim sendo, é importan- te no que diz respeito ao universo religioso, que tal protagonismo negro tam- bém seja tema de estudos, posto que as especificidades configuram diferentes identidades, processos e trajetórias históricas afro brasileiras. A seguir, faremos um breve resumo sobre a presença da religião protes- tante no Brasil. O primeiro momento se dá nos séculos XVI, XVII com as

1 Mestranda em Educação e Contemporaneidade – Linha 1(UNEB/Salvador) - Bacharel em Teologia(Seminário Teológico Batista do Nordeste) – Licenciada em História (UNIJORGE/Salvador) –– Especialista em Educação de Jovens e Adultos(UFBA) – Especialista em História e Cultura Afro brasileira e Indígena(Instituto Federal da Bahia) 2 IBGE: Censo 2010. Disponível em: < http://www.ibge.gov.br/cidadesat/link.php?uf=ba>. Acesso em: 20 nov 2012. 265 Edelamare Melo (Organizadora) invasões francesas e holandesas, a expulsão desses europeus calvinistas e a Coroa Portuguesa juntamente com a Igreja Católical proibiram a entrada de outras religiões. Fato este que durou cento e cinquenta anos até a chegada da Família Real, em 1808; que na fuga da guerra contra a França, teve apoio da Inglaterra na travessia, e como uma das formas de paga, abriu os portos brasi- leiros para entrar, além das mercadorias inglesas, a fé protestante. Porém, na Constituição de 1824, o catolicismo passa a ser religião oficial.3 O protestantismo chega à Bahia no início do século XIX. Ele é dividido em dois momentos: o de comércio com a chegada dos anglicanos em 1815, que vêm para dar assistência religiosa aos seus súditos que comercializavam em Salvador, por isso o culto religioso era realizado em inglês; e o de missão em 1882 com os batistas, que chegam com objetivo de evangelizar os nativos. Porém, a Igreja Católica reagiu de forma contundente diante da “instalação de uma nova comunhão religiosa no território brasileiro”4. Com a chegada dos batistas em 1882 e dos pentencostais em 1927, tem-se o registro através de livros, cartas de missionários e documentos ad- ministrativos das igrejas, dos primeiros negros protestantes na Bahia. Nesse sentido, analisar o negro evangélico dentro de um contexto histórico onde existe diversidade, significa não restringir a experiência religiosa da diáspora ao candomblé. O que não constitui negar a relevância do candomblé enquan- to uma religião de matriz africana, mas perceber as diferentes trajetórias da população afro-brasileira. A historiografia baiana relata alguns exemplos dessa diversidade quan- do apresenta negros católicos com suas irmandades onde a presença da cultu- ra africana era percebida5, a exemplo da Sociedade Protetora dos Desvalidos, a Irmandade da Boa Morte e Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. A Revolta dos Malês6, quando em 1835, africanos islami- zados, juntamente com os negros escravizados e libertos nascidos na Bahia, realizaram um dos maiores levantes que se tem conhecimento na cidade de Salvador7; como também relatos de negros judeus no período proposto à ser pesquisado. Nesse sentido, observa-se que o africano escravizado procurou diferentes formas para ressignificar sua espiritualidade.

3 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao24.htm (Acessado 10.09.2019) 4 SILVA, Elizete da. Conflitos religiosos na Bahia século XIX. Nº 21. Feira de Santana: Sitientibus, 1999. p.51-67. 5 https://hibridos.cc/po/rituals/igreja-nossa-senhora-do-rosario-dos-pretos/ (Acessado 19.09.2019); http://spd.org.br/ (Acessado 19.09.2019) 6 REIS, João José. Rebelião Escrava no Brasil - A História do Levante dos Malês em 1835. São Paulo: Cia das Letras, 2003 7 REIS, João José. SILVA, Eduardo. Negociação e Conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia da Letras, 1989. p. 100 266 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

O protestantismo chega efetivamente no Brasil quando, ao apoiar a tra- vessia da Coroa Portuguesa à sua colônia na América, a Inglaterra beneficia- se de acordos assinados em troca do ‘favor’ prestado. Surge então, o Tratado de Aliança e Amizade e de Comércio e Navegação, permitindo, de forma le- gal, a entrada de vários comerciantes, artistas franceses e imigrantes, além de viajantes naturalistas de várias regiões do Velho Mundo, que têm permissão de estudar o que o país desconhecido parecia prometer em novidades.8 No Artigo 9º Tratado de Aliança, o Príncipe Regente de Portugal diz que não haverá Inquisição na colônia. Os artigos 12 e 23 do Tratado de Co- mércio e Navegação declaravam:

1º) Que os vassalos de S.M. Britânica residentes nos territórios e domínios portugueses não seriam perturbados, inquietados, per- seguidos ou molestados por causa da sua religião, e teriam per- feita liberdade de consciência, bem como licença para assistirem e celebrarem o serviço divino em honra do Todo Poderoso Deus, quer dentro das suas casas particulares, quer nas suas particula- res igrejas e capelas da sua religião, sob as únicas condições de que estas se assemelhassem externamente a casa de habitação, também que o uso dos sinos não fossem permitido para o fim de anunciarem publicamente as horas do serviço divino. Sendo- lhes vedado, entretanto, pregar ou declamar publicamente contra a religião Católica ou procurar fazer prosélitos ou conversões. 2º) que seria permitida em Goa, e suas dependências a livre tole- rância de todas e quaisquer seitas religiosas.9

Quando da assinatura do tratado que permitia liberdade religiosa aos súditos britânicos, o Arcebispo de Nisibis, que estava no Rio de Janeiro, pro- testou agressivamente contra as medidas do governo de D. João, ameaçando, inclusive, com a volta da inquisição para cuidar dos interesses da religião católica e refrear o progresso dessa heresia entre os brasileiros10. Os primeiros trabalhos do protestantismo de missão foram realizados nas pro- víncias do Rio de Janeiro e São Paulo. Sendo que em 1858, oficialmente, foi criada a primeira igreja protestante brasileira, onde o culto era todo realizado em português: a Igreja Congregacional. Existem relatos de missionários protestantes que por aqui passaram e foram embora, e de outros que permaneceram. Pode-se assim entender como estava o ambiente do Brasil Império para receber a nova religião.

8 LISBOA, Karen M. A Nova Atlântida de Xpix e Martius: natureza e civilização na Viagem pelo Brasil. Vol. II. São Paulo:Hucitec, 1997. p.29 9 RIBEIRO, Boanerges. Protestantismo no Período Monárquico. São Paulo: Pioneira, 1973. 10 SILVA, Elizete da. Conflitos religiosos na Bahia século XIX. Nº.21. Feira de Santana: Sitientibus, 1999 , p.51-67. 267 Edelamare Melo (Organizadora)

Henry Koster, autor de Viagens ao Nordeste do Brasil anos 1815-1816, foi um dos que chegou na primeira levada de imigrantes protestantes, e sugere que, “a cultura brasileira, impregnada pelo catolicismo, excluía totalmente qualquer possibilidade de aceitação, ou até mesmo tolerar, a presença pro- testante”.11 Já F. Biard, escreveu Dois anos no Brasil, relata nessa obra, a preocupação de que o Brasil fosse invadido por sulistas norte-americanos que estavam fugindo da Guerra da Secessão.12 Daniel P. Kidder escreveu os livros Reminiscências de Viagens e Per- manências nas Províncias do Norte do Brasil e Reminiscências de Viagens e Permanências das Províncias do Sul do Brasil e diversos outros trabalhos, além de colaborar com o rev. James C. Fletcher na redação de O Brasil e os Brasileiros. Em sua viagem à Bahia, relata que essa província tornou-se importante no comércio escravagista e que “esse tráfico negreiro, que tem no lucro seu principal objetivo, provoca sentimentos de repulsa13. No que tange ao tema educação, este também deve fazer parte deste tex- to, visto que esta era oferecida pelos protestantes norte-americanos e contribuiu bastante para a implantação do protestantismo no Brasil. Assim um público alvo e seleto foi alcançado: a elite brasileira, que era em grande parte branca, liberal e não estava interessada na religião protestante, mas sim na educação diferenciada do ensino católico, que os missionários protestantes ofereciam, o que repercutiu favoravelmente e favoreceu instalação definitiva do novo credo religioso, já que os próprios missionários foram acolhidos como representantes do liberalismo e do progresso almejados; porém a evangelização foi destinada à massa pobre14. O Teólogo José Carlos Barbosa15, em sua obra Negro não entra na Igre- ja, espia da banda de fora, faz relatos de que no início, os escravos iam acom- panhados dos seus senhores, já que esses eram fiés da nova religião. Depois alguns escravos e libertos passaram a ir sozinhos aos cultos, a exemplo do que aconteceu numa Igreja Presbiteriana em 1879 na cidade de São Paulo, onde cinco escravas por nome: Felismina, Lucinda, Benedicta Justina, Joana e Leonor, passaram a frequentar a igreja sem a presença dos seus senhores. Porém, alguns donos de escravos procuravam impedi-los de participar das

11 BARBOSA, José Carlos. Negro não entra na igreja, espia da banda de fora. Vol. 1. Piracicaca: UNIMEP, 2002. p. 35. 12 Ibid. p. 35. 13 Ibid. p. 39 14 bid. p.56. 15 Possui graduação em Comunicação Social pela Universidade Metodista de Piracicaba (1980), graduação em Teo- logia pela Universidade Metodista de São Paulo (1984), Mestrado em História pela Universidade de Brasília (1988) e Doutorado em História da América - Universidad de Sevilla (1995). Atualmente é professor do Centro Universitá- rio Metodista Izabela Hendrixhttps://www.escavador.com/sobre/2277187/jose-carlos-barbosa 268 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. igrejas protestantes. Um exemplo foi o de uma escrava que esperou quatro anos até seu dono lhe dá a carta de alforria para que assim, pudesse frequentar os cultos religiosos. Alguns senhores protestantes estrangeiros e brasileiros procuravam alforriar seus escravos, mas essa não era a regra16. Segundo Silva(2003):

Os anglicanos da Christ Church, situada no Rio de Janeiro, não só eram donos de escravos, como fizeram batizar nos ritos da Igreja Anglicana os escravinhos nascidos em seu poder. Segun- do uma prática dos senhores de escravos brasileiros que batiza- vam suas peças aos magotes, dando-lhes nomes cristãos, os an- glicanos também buscaram cristianizar seus escravos. No livro de registros de batismo da Christ Church em 24 de janeiro de 1820, está assentado o batismo de Thereza, filha de Louisa – es- crava negra, nativa de Manjoula, África- propriedade de James Thonton, um comerciante inglês17.

Em 1815, chegam os primeiros protestantes à Bahia: os anglicanos. Fi- xando residência em Salvador, instalaram-se no bairro da Vitória. O protes- tantismo nesse caso era o de capelania, ou seja, os missionários prestavam as- sistência espiritual aos fiés e não tinham a intenção de evangelizar os nativos. Os cultos eram realizados nos lares e no idioma dos estrangeiros. A localidade conhecida como Corredor da Vitória, concentrava um considerável número de comerciantes ingleses, por isso ali foi construído um templo conhecido como Igreja dos Ingleses, mas que oficialmente era registrado como sendo S. George Church ou da Bahia Bristish Church.18 O relato feito pelo Rev. Martyn, no seu diário pessoal, é um exemplo seguro de como o clero anglicano percebia o campo religioso baiano no início do século XIX e ao mesmo tempo deixa entrever as representações tecidas sobre a cultura baiana, marcada pelo catolicismo:

Martyn escandalizou-se com as manifestações da fé católica não es- condendo o seu desprazer ante a figura de um frade postado diante de uma Igreja a recolher esmolas enquanto passantes beijam-lhe a mão ou tiravam respeitosamente o chapéu. Concluiu que naquele país “há cruzes em abundância, mas quando será ali sustentada a doutrina da cruz?19

16 Idem. pp.158-159 17 SILVA, Elizete da. Visões Protestantes sobre a escravidão(1860-1890). Revista de Estudos da Religião, n.1/2003/p. 1-26. 18 SILVA, Elizete da. Conflitos religiosos na Bahia século XIX. Nº.21. Feira de Santana: Sitientibus, 1999 ,, p. 51-67. 19 SILVA, Elizete da. Visões Protestantes sobre a escravidão(1860-1890). Revista de Estudos da Religião, n.1/2003. p. 1-26. 269 Edelamare Melo (Organizadora)

Na Bahia, os súditos britânicos, membros da Saint Church, não só deso- bedeceram à ordens de S.M. Britânica ao participarem do rentável comércio negreiro que se fez na Bahia no século XIX, mas também eram proprietá- rios de escravos que utilizavam como mão-de-obra doméstica ou em alguns empreendimentos de caráter manufatureiro que mantinham em Salvador. Os escravos dos ingleses, eram na sua maioria islâmicos, pois na Revolta dos Malês, ocorrida em Salvador em 1835, dos 160 acusados, 45 eram escravos de ingleses residentes no bairro da Vitória. Esses acontecimentos e outras situações mostram um povo aguerrido, que não se dava por vencido. Essa era uma das características da população negra e mulata de Salvador. O aspecto social-econômico da província da Bahia ao longo do século XIX, e em destaque para Salvador e Recôncavo, estava assentado na questão racial. A cor da pele podia ser decisiva na classificação social dos indivíduos. A elite considerava-se branca mesmo que para isso fosse preciso ocultar ou negar, ainda que longínqua ascendência negra. Mesmo sendo pobre, o branco tinha melhor acolhida na Santa Casa de Misericórdia da Bahia.20 No século XIX, os negros e pardos, escravos e libertos, formavam a maior parcela da população na Cidade da Bahia. Porém, sua situação era de total aban- dono e por que não dizer, de miséria. Walter Fraga Filho, explica de forma preci- sa, a situação dessa população, quando muitas vezes os mestiços, e em especial os mulatos, podiam alcançar certos prestígios na carreira militar, eclesiástica ou no funcionalismo público, mas a discriminação que sobre eles recaia podia fechar- lhes as portas da ascensão social e reduzi-los à pobreza.21 Essa era a realidade da sociedade baiana quando da chegada do pro- testantismo, a qual não mudou ao longo dos anos; pois mesmo tendo protes- tantes abolicionistas, não havia entre eles um discurso forte para que houves- se uma mudança significativa na questão da escravidão negra. Só no final do século XIX, com a chegada dos batistas na Bahia,o protestantismo toma impulso, e em 15 de outubro de 1882 é organizada a Primeira Igreja Batista do Brasil, localizada à rua Maciel de Baixo, centro de Salvador, onde havia uma grande concentração de pobres que moravam nos cômodos inferiores ou lojas dos grandes sobrados. Segundo Walter Fraga Fi- lho (1996), somente na freguesia da Sé, uma das mais populosas de Salvador, 30% dos moradores das lojas, livres e escravos, dedicavam-se ao serviço de ganho. Além desses, havia pedreiros, sapateiros, marceneiros, carpinteiros, funileiros, quitandeiros, alfaiates, lavadeiras, costureiras, saveiristas e calafa-

20 FILHO, Walter Fraga. Mendigos, Moleques e Vadios. São Paulo/Salvador: HUCITEC, 1996. p. 30. 21 Idem p. 24 270 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. tes. Em meados do século XIX, 78,6% dos moradores das lojas eram mestiços e negros22. A relevância desses dados está em possibilitar identificar as pri- meiras conversões a exemplo do latoeiro ou funileiro, chamado João Batista, citado na obra História dos Batistas no Brasil23. Seria esse primeiro o negro ou mestiço baiano protestante? Tendo em vista que essas atividades eram desenvolvidas por esse segmento da população? Na década de vinte do século passado, começa o evangelismo pentecostal na Bahia, sendo pioneira a Igreja Assembléia de Deus, que se instala na cidade de Canavieiras em 1927. Expandindo-se para outros municípios vizinhos, abre frentes missionárias em Itabuna, Belmonte, Itapebi, Macote, Pau Brasil, Camacã, Santa Luzia Arataca, Jaçari, Itaimbé, Palmira, Curaçá, Valente e Valença. Chegando à ci- dade de Salvador em 1930, instala-se à Rua Carlos Gomes nº 402. Esses fatos estão documentados no acervo histórico da igreja que também identificam: o seu primei- ro pastor negro Teodoro Feliciano Santana, nascido em 7 de setembro de 1888, no município baiano de Santo Antonio de Jesus; registram também em 28 de maio de 1930, na cidade de Salvador, a primeira conversão de um descendente de africanos, que tinha por nome Heliodoro24. O teólogo Marcos Davi25, questiona a aproxima- ção do afro-brasileiro com as Igrejas Pentencostais, onde há uma concentração de quase 9 milhões de negros professando essa vertente do protestantismo. O II e III Congresso Baiano de Pesquisadores negros, (UEFS,2009) e (UNEB, 2011), publicou em seu Caderno de Resumos, a Análise das Repre- sentações de Negritude e Africanidades no Protestantismo do século XIX26, onde faz-se uma análise sobre o crescimento de negros que se declaram evan- gélicos e qual sua relação com o tema escravidão. Diante de tais informações faz-se necessário compreender em que me- dida a conversão desses negros ao cristianismo protestante e pentecostal, in- fluenciava suas relações sociais nas quais estavam imersos, principalmente com as outras religiões as quais já conviviam há quase 400 anos. Nesse sen- tido na busca da eficácia no resultado do estudo proposto é importante refletir sobre estas prerrogativas acima elencadas, trazendo como exemplo o primei- ro convertido no trabalho batista, um latoeiro, tornando-se um frequentador assíduo da igreja e letrado o suficiente, este é indicado para fazer o curso de teologia, tornando assim o primeiro pastor negro batista no Brasil.

22 FILHO, Walter Fraga. Mendigos, Moleques e Vadios. São Paulo/Salvador: HUCITEC, 1996. p. 26. 23 PEREIRA. J. Reis. História dos Batistas no Brasil:1882-1982. 2º edição. Rio de Janeiro: JUERP,1985. p. 23-2 24 História da Igreja Assembléia de Deus na Bahia. 2ª ed. Rio de Janeiro: CPAD, 1982 25 OLIVEIRA, Marco Davi de. A religião mais negra do Brasil. São Paulo: Mundo Cristão, 2004. 26 CRUZ, Gicélia da. Caderno de Resumos do Congresso Baiano de Pesquisadores negros: outros caminhos das culturas afro-brasileiras: confluências, diálogos e divergências, de 24 a 26 de setembro de 2009, Feira de Santana/ Realização: Associação de Pesquisadores negros da Bahia ET AL., - Salvador: EDUNEB, 2009, pp.138,139. 271 Edelamare Melo (Organizadora)

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EDUCAÇÃO PARA AS RELAÇÕES étnico-raciais: UM DIREITO DO BRASIL1

Iêda Leal de Souza2

“A nossa escrevivência não pode ser lida como “história de ninar os da casa-grande”, e sim para incomodá-los em seus sonos injustos.” “A verdadeira medida de um homem não se vê na forma como se comporta em momentos de conforto e conveniência, mas em como se mantém em tempos de controvérsia e desafio. ” Martin Luther King

Por que a Educação para as relações etnicorraciais é um tema funda- mental que deve ser debatido em todos os espaços da nossa sociedade, espe- cialmente nos espaços escolares do nível básico à pós-graduação? “Porque não se nasce racista, torna-se”. E o racismo é um embrião do Capitalismo, que é o cerne da divisão de classes, onde há exploração do trabalho da população negra; o extermínio da juventude negra passa por assassinatos ou encarceramentos em massa, mas- sacres por exploração de terras. Tudo isso para manter o “status quo” de uma elite branca. Combater o racismo é lutar contra a exploração de pessoas e em prol da distribuição dos frutos da produção humana. Isso é socialismo. Então cabe a nós, classe traba- lhadora, levantar essa bandeira de luta. Mas o que fazer para implementar esse debate de maneira efetiva? Para alcançar a sociedade e conseguir de forma objetiva mais pessoas com capaci- dade política e pedagógica para colaborar na luta antirracista precisamos de um trabalho sistemático, que vai além de ações afirmativas. Urge compreen- dermos que o racismo não é uma luta pequena, mas de grande escala. No âmago do racismo permanecem a exploração da mão de obra da classe trabalhadora, o conservadorismo em oposição ao respeito às diferenças, a imposi-

1 Artigo públicado na Revista Xapuri Socioambiental do mês de janeiro/2017. https://www.xapuri.info/cidadania/ educacao-para-as-relacoes-etnicorraciais-um-direito-do-brasil/ 2 Coordenadora Nacional do MNU. Secretária de Combate ao Racismo da CNTE. Tesoureira do SINTEGO. Vice -Presidenta da CUT-GOIÁS. Coordenadora do Centro de Referência Negra Lélia Gonzales. Conselheira da Conse- lho Nacional de Direitos Humanos 275 Edelamare Melo (Organizadora)

ção de uma religião dita universal em contraposição às mais variadas religiões ou posições filosóficas que divergem de crenças religiosas, a exploração por meio de um padrão de vida a ser seguido (negro é mão de obra barata, não podendo ocupar espaços de decisões políticas) e a agressividade ao meio ambiente. Diante desse quadro, precisamos construir a união da classe trabalha- dora por meio das forças conjuntas dos movimentos sindicais, movimentos sociais, estudantis, movimentos dos sem-terra e sem-teto, moradores de rua e representantes políticos que verdadeiramente defendam e coloquem em práti- ca uma plataforma socialista. Sem isso, não avançaremos. Uma situação que tenta dar maior visibilidade aos negros no Brasil é o projeto de cotas na educação e no serviço público. Mesmo se tratando de um projeto momentâneo, merece toda a nossa atenção, bem como todos os cuida- dos necessários por parte do governo para garantir a entrada e a permanência dos negros no ensino superior e para que também os editais dos próximos concursos respeitem a legislação das cotas, de modo a garantir o direito ao ingresso nos serviços públicos. As ações afirmativas não configuram privilégios, mas sim atos neces- sários, que devem ser realizados por nossos governantes, a fim de atenuar a grande desigualdade e toda a destruição que é causada nas vidas dos negros no Brasil. Essa é uma dívida que precisa ser paga imediatamente! Precisamos que o artigo 5º de nossa Constituição seja amplamente divul- gado, pois é fundamental importância o teor de seu inciso XLII, o qual determina que a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito a pena de reclusão, nos termos da lei. Denunciar é o mínimo que devemos fazer. A destruição da prática racista se dará quando houver de fato o enten- dimento e o conhecimento de como se opera o racismo e a compreensão de seus malefícios. E sendo assim, precisaremos preparar as crianças, instrumen- talizar os jovens e reeducar os adultos para outra prática, onde possam todos enxergar no próximo uma possibilidade de viver a diversidade com respeito, para que possamos construir uma sociedade igualitária. Lembremos que existem outros temas que são importantes como o extermínio da nossa juventude, a violência contra as mulheres, a forma ab- surda como é tratada a comunidade indígena, do mesmo modo que a falta de representatividade dos homossexuais nos espaços e a crescente configuração homofóbica que nossa sociedade tem apresentado; o descaso com o meio ambiente, que ocasiona um imenso dano a nossas vidas; a falta de projetos para amparar nossos idosos, que nos leva à triste conclusão de que não pode- mos projetar nossas vidas para além do momento atual.

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Diante desse quadro, nosso desafio consiste em ter o domínio de como se dá o racismo em nossa sociedade, sua forma perversa de agir, e dar cabo a ele de forma definitiva, usando do nosso poder de conhecer para destruir. Faz-se, portanto, necessário o estudo e a prática diária das variadas for- mas de defesa que possuímos, para sobreviver e construir um mundo bem me- lhor, uma vez que todas as formas de preconceito só serão destruídas quando forem enfrentadas de maneira sistemática, por intermédio de ações diárias de empoderamento político e pertencimento racial da sociedade brasileira. Conhecer e divulgar a história de luta do povo Negro no Brasil constitui um caminho para o enriquecimento de nosso currículo e nos capacita para falarmos sobre nós, de nós e para nós. Keywords: Relações etnicorraciais, Relações, Relações.

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Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

O CORPO RACIALIZADO FEMININO DE SEXUALIDADE DISSIDENTE: As percepções de um corpo avesso

Lara Jennyfer Batista Ferreira1

Introdução Estes escritos têm como intuito ligar os estudos sobre as relações de corpo-mente e ambiente, baseadas no conceito de corpomídia de Helena Katz e Christine Greiner - que entendem o lugar do corpo como um território em constante comunicação com suas percepções, reações, pensamentos e am- bientes, com as perspectivas específicas que acometem o corpo racializado e feminino de sexualidade dissidente na nossa sociedade, assinalando então uma certa localização especificamente do corpo feminino negro não-heteros- sexual na contemporaneidade, que perpassa principalmente a marginalização. A partir desses pontos, propõe-se uma reflexão sobre como esses corpos foram marcados por sua sociedade - ocidental de epistemologias brancas, em lugares comuns que exigem pesquisas com foco específico para clarificar tais históricos, desenvolvi- mentos e repercussões desse grupo atravessado por tantas interseccionalidades. É im- portante assinalar que a racialização perpassa inúmeros corpos e perspectivas, porém o artigo se propõe a analisar as identidades negras, deixando de abordar por exemplo recortes com perspectivas de um corpo indígena ou asiático. Esse é um campo de estudo que apenas a partir do século XX começa a se desenvolver, principalmente no mundo ocidental, e por isso existe uma enorme gama de pesquisas a serem feitas. Sendo assim, é também proposição deste trabalho abrir um diálogo entre as diversas áreas de conhecimento para que esse corpo não mais sofra perante a marginalização, e sim, a partir da consciência de sua posição, consiga achar sua cura pessoal e coletiva. Corpo de qual não se fala, pois foge da modernidade. É oposto ao ser universal neutro e oficial. A modernidade nasce com o “descobrimento”, a colonização das Améri- cas; junto se estabelece uma exploração transnacional e sistemática dos corpos

1 Lara Ferreira é estudante de Artes Cênicas da Universidade de Brasília. Seu trabalho perpassa estudos políticos e as artes performáticas buscando construir relações gesto-imagem-corpo-ação-palavra por meio de uma estética que aborda a liberdade identitária e diversificada através de epistemologias sul globais. Para mais informações: likidah.tumblr.com 281 Edelamare Melo (Organizadora) não-brancos. Além disso, a modernidade consolida o conceito de racionalidade, conceito que Foucault poderia definir como um poder-saber, pois é um conceito que categoriza os saberes dos corpos e automaticamente passa a categorizar esses corpos. Toda a razão, a certeza, a racionalidade se tornam posse do homem branco heteronormativo a partir da construção do Estado, assim esse sujeito acaba por ocupar o centro das relações de poder, agregando a si todos os símbolos de valora- ção do indivíduo e o detendo entendimento completo de sua subjetividade, sendo então visto como ser complexo e completo em todas suas facetas. Então, dicotomicamente, por meio de um binarismo característico da modernidade imposta, irmã do cristianismo, se formam as periferias, o que deve ser escondido, controlado, o corpo racializado, feminino de sexualidade dissidente e de identidade de gênero oposta a normatividade cisgênera, a qual a modernidade em seus diversos artifícios “deixa” morrer. Transformando a existência destes corpo e de seus símbolos em um eterno sobreviver. Não se criam parâmetros para existência desses corpos que fogem do padrão e eles adoecem perante a legalidade e jurisdição do Estado. O domínio patriarcal heteronormativo é intrinsecamente social e histó- rico, logo está dentro de todas as relações que estabelecemos cotidianamente onde o homem branco assume, na maioria das situações, um status de poder que o confere legitimidade, humanidade e autoridade. Então os padrões da proteção e legitimação desses corpos brancos masculinos acabam por se fir- mar dentro tanto de relações cotidianas quanto das jurisdições, pois suas legi- timações são tão profundas que o próprio acesso a constituição das jurisdições de uma nação fica em grande parte sob domínio desses corpos padronizados. Ochy Curiel, escritora colombiana, em La Nación Heterosexual: Analisis del discurso juridico y el regimen heterosexual desde la antropologia de la do- minacion (2013) fez um belíssimo trabalho ao situar o local de extermínio do corpo racializado feminino e não-heterossexual dentro da nação colombiana e da Constituição que institucionaliza a nação. Tomarei desse trabalho uma breve aná- lise para o contexto brasileiro - que além de ter sua constituição escrita na mesma época e contexto, se firma nas mesmas bases cristãs e patriarcais. Temos uma constituição que é assumidamente “fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundado na harmonia social” mesmo que esteja “sob a pro- teção de Deus”, automaticamente remetendo a princípios cristãos de vida e sociedade. A Constituição Brasileira foi desenvolvida a partir de proposições de um grupo de 559 congressistas, nos quais menos de 10% são mulheres, e onde menos de 25% correspondem a maior parte das características que compõe a maioria do povo brasileiro: feminino, jovem, não-branco e pobre.

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E daí já conseguimos ter uma primeira ideia de toda a hipocrisia das falsas liberdades, igualdades, autonomias e direitos sociais que, em suma, foram es- critos na Constituição Brasileira para aqueles que vão, de fato, ser atendidos pelas determinações constitucionais, os homens brancos e heteronormativos. Esse movimento pode ser percebido através da própria aplicação de políticas públicas que perpassa conceitos de população, sujeito e família, presentes em nossa Constituição e mais uma vez ligados a valores cristãos. Assim quando partimos para a análise da afetividade e das trocas dentro de nossas relações sociais, análise crucial para esse trabalho quais são as represen- tações de troca, amor e afetos que nos permeiam e que podemos esperar que nos permeiem desde a infância até o presente momento da vida adulta? O primeiro contexto em que estamos inseridas é o familiar, e particular- mente o da família tradicional brasileira que é em princípio heterossexual. E mesmo que grande parte das famílias brasileiras fujam de um padrão higienizado de família, quando nós ligamos a noção de família a uma análise da imagem difundida no imaginário popular por meio de representações gráficas e audiovisu- ais, visualizamos na maioria das vezes representações de famílias brancas. Logo, quando buscamos as imagens e símbolos que representam a família tradicional brasileira, partimos para a análise de dois importante constitutivos da nossa for- mação e da nossa consolidação imagética de representatividades no mundo: a educação básica e as representações de arte e entretenimento. Dentro da educação básica tem-se uma perspectiva histórica que mos- tra como o ensino sempre foi direcionado para as altas classes, baseado em princípios cristãos (Loureiro, M.C.S. 2008). Observando um retrato do pre- sente, o ensino tem se desenvolvido muito mais pluralmente se comparado aos seus anos anterior, mas ainda enfrentamos diversas questões que partem da regência do conhecimento a partir de perspectivas da modernidade branca, firmando-se pelo racionalismo de Descartes e a teleologia de Hegel. Enquanto oculta filosofias, visões e pesquisas que partem de corpos negros, femininos e de sexualidade dissidente. A criança, pequeno corpo avesso, feminino e negro, passa por grande parte da educação básica entendendo que sua percepção não é importante, que seus sentimentos são irrelevantes para o contexto de sala de aula, reprimindo-os, e caso seja não-heterossexual, provavelmente seu primei- ro contato com relações homossexuais serão sexualizadas ou criminalizadas. Além disso, a probabilidade de desestabilização de seu contexto familiar é enorme, afinal homens negros estão sempre na mira do Estado. E, caso esses homens não estejam diretamente na mira no Estado, ainda existe uma série de questões e abusividades sobre os casais heteronormativos que só se tornam mais

283 Edelamare Melo (Organizadora) complexas se analisadas pelo recorte de raça. Assim, ver a sua representação de família como “errada” ou tomá-la como parte de sua responsabilidade pessoal se torna um mecanismo comum para os pequenos corpos negros e femininos. Agora, se viramos os olhos para a arte/entretenimento, será difícil ver em uma televisão casais despadronizados. Caso se ache, será praticamente impossível achar representações não estereotipadas dos casais não-padronizados e relativa- mente fácil encontrar padrões de preconceito. ( COLLING, Leandro. 2010). E aí resta a pergunta, onde se firma/onde se encontra/ onde se discutem as experiências, as vivências, as necessidades, as invisibilidades desse corpo negro feminino e não-heterossexual se a casa é um espaço institucionalizado, se a escola é um espaço institucionalizado, se as representações são institu- cionalizadas e as próprias relações também são? Sobra a elas, sobra a nós, a violência em diferentes níveis e/ou o adoecimento. Os exemplos e estereótipos sobre qual a criança cresce Se olharmos para algumas teorias sociológicas, e então cito em parti- cular A Construção da realidade social (2004) de Thomas Luckmann e Peter Berger, conseguimos situar a importância da primeira socialização para as crianças. É nesse momento em que se absorvem os conceitos do mundo e se interioriza, tornando todos os estereótipos (positivos e negativos) cheios de significados subjetivos e pessoais. A criança que carrega em seu corpo esses significados sociais de ser racializada e feminina (desconsiderando nesse pri- meiro momento sua sexualidade) mesmo que não os entenda, estará à mercê de dois processos descritos a seguir. O primeiro é a própria interiorização que acontece a nível muito pessoal e se torna ainda mais efetiva quando há identificação. A criança olha para o corpo negro e sabe que é seu semelhante, a criança olha para a repressão do corpo negro e sabe seu lugar de obediência onde sua voz se torna cada vez mais silenciada, podendo se considerar também “feia e inútil”. Nesse ponto é importante assinalar que o processo de internalização de papéis de negras de pele escura e negras de pele clara passa por diversas diferenças onde em grande parte as negras de pele mais clara estarão associadas a sexualização de seus corpos, enquanto as negras retintas estarão ligadas aos estereótipos de empregada - e diversas vezes tratada como tal. (GONZALES, Lélia. 1984) Assim, aos poucos criança absorve diversas ideias, como também a ideia de que se encarar os homens na rua será provocada e sexualizada mesmo que contra sua vontade. Aos poucos também começa a entender que deve en- tregar sua afetividade e compreensão aos homens, pois algum deles a espera -

284 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. mesmo que ela não queira, pois logo chegam os assuntos sobre maternidade e namoricos, constituindo base psicológica para a heteronormatividade. Para a mulher negra resta o papel de cuidar, amasiar, esperar e doar o corpo ao outro. E aqui, nesse momento da interiorização, se coloniza a mente e o corpo, por mais sutil que seja, esse movimento sempre cria repercussões. Então se torna aberto o segundo processo que é o de violação desse corpo criança, ou seja, se o corpo criança negro e feminino não corresponde às expec- tativas já delimitadas pela sociedade, ela é repreendida. Essa repressão pode re- percutir tanto em um endurecimento para esconder tais características quanto em uma extravagância violenta, mas também em várias outras possibilidades ainda não documentadas e estudadas detalhadamente. Além disso, a violação também pode vir de uma sexualização desse corpo, enquanto agressão verbal ou violência física. De qualquer forma as reações raramente serão positivas, pois a repressão e a sexualização em si são negativas para qualquer corpo, e consequentemente essas violências ficarão guardadas no corpo como características específicas. Nesse processo a reprodução dos padrões apreendidos é no mínimo difícil de ser negada e ressignificada, especialmente quando falamos sobre como esses padrões se estabelecem dentro de um relacionamento, seja ele romântico ou não. Quando chegamos a fase da adolescência essas questões se tornam ainda mais delicadas, pois a adolescência é uma fase de grande experimentação sexual e é importantíssima para a construção da noção de sexualidade. Então o corpo negro feminino, geralmente, está desenvolvendo melhor o entendimento de sua não-heterossexualidade, mas an- tes disso, já havia desenvolvido seu entendimento do que é a submissão, do seu lugar de não-amor e do que é o amor romântico - esse sonho vendido pelas ruas como promessa de felicidade, construção social do tipo dominante-dominada em que cada um deve comprimir seus papéis para que a relação se cristalize. O corpo negro feminino de sexualidade dissidente amadurece “escolhen- do” seguir ou não os padrões de feminilidade que lhes são impostos. Quanto mais distantes desse padrão de feminilidade mais sujeitos esses corpos estarão a invisibilização e a violência (física e psicológica) que também vem em par- te da deslegitimação de estereótipos ligados a não-normatividade de corpos dissidentes. Essa não-normatividade também acaba por gerar noções coletivas banhadas em preconceitos como a de “se você é mulher, gosta de mulher e se veste como homem é porque você tem inveja de não ter um pau”. Afinal, a pa- dronização estética é extremamente ligado a concepção do que é ser mulher na nossa sociedade, majoritariamente regida por epistemologias brancas. De qualquer forma não podemos nos esquecer que o próprio sucumbir a feminilidade é prejudicial a saúde mental do corpo auto-intitulado mulher. Susan

285 Edelamare Melo (Organizadora)

Bordo, a partir da ideia de que o corpo deveria ser reconhecido como uma cons- trução cultural e um locus de controle social, estuda doenças que seriam eminente- mente encontradas em mulheres que performance a feminilidade, como a histeria e a anorexia. Assim, assinala que “observando estes distúrbios, vemos o corpo das doentes como uma construção ideológica emblemática da definição de feminilidade de cada período em que formam mais reincidentes.” (GREINER, Christine, 2010). A criação de um corpo regrado e não-humano A dor e a violência então perpassam esse corpo negro e feminino de sexualidade dissidente de várias maneiras ao longo de sua vida, provocando diversas mágoas, angústias e tensões diárias. Consequentemente se desenvol- vem somatizações, blindagens e couraças emocionais nesses corpos específi- cos. “A expressão corporal é a visão somática da expressão emocional típica que é vista a nível psíquico como carácter. Defesas aparecem em ambas as dimensões, no corpo como couraça muscular.” (LOWER, Alexander, 1976). Para o corpo negro feminino de sexualidade dissidente foram relegados os sentimentos negativos e a baixa auto estima enquanto o corpo universal branco masculino relegou a si mesmo a auto estima e os sentimento positivos. E a partir dessa divisão também se cria um corpo específico, regrado e oposto ao ideal de o que é humano, definido pela modernidade capitalista e branca. Um corpo que a margem da legalidade do Estado, adoece.

“Cada sentimento-mapa parece engendrar respostas adaptativas na forma de estados corporais e vice-e-versa. Os mapas da má- goa (ou sentimentos de mágoa) estão, por exemplo, associados a estados de desequilíbrio funcional. A facilidade de ação se reduz. Não raramente estes mapas estão associados a presença da dor, de sinais de doenças, ou de desacordos fisiológicos, indicando uma coordenação diminuta das funções vitais”

GREINER, Christine. O corpo em crise. 2010. P.43 Sobreviventes de um constante estado de regulação, docilização e deses- tabilização - que partem das ações do corpo social enquanto agentes do poder, esses corpos são criados em outros/novos estados de percepção e vivência, tanto física quanto mental, pois ambas as percepções estabelecem uma rede de trocas. Nesse sentido os conceitos - amor, raiva, autoestima, ego, memória tam- bém se tornam vazios e passíveis de ressignificação, pois são pautados na lógica de percepção do corpo universal, e porque as próprias noções de sucesso e pro- gresso causaram sua marginalização. Entretanto, como são esses conceitos, que vão estar presentes durante todo nosso processo de socialização primária, eles

286 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. acabam por resultar em uma internalização por vias de identificação que nos auto induz a imagem de subalternidade - e que também nos relega ao silêncio. Ao longo da vida nos formamos algozes de nós, através de auto con- troles e auto sabotagens que nos relega mais uma vez a raiva, o medo e nos priva de amor, auto estima e memória. Todas essas marcas passam a estar em nossos corpos e mentes. O estado de tensão se torna uma constante e a possi- bilidade de somatização negativa desses estados é recorrente. Considerações Finais O corpo é único e mantém relações únicas com a mente e o ambiente. Entender isso, é também entender que o corpo de cada mulher negra de se- xualidade dissidente é único, mas existem questões que nos perpassam em padrões que se repetem historicamente e socialmente. Essas questões pa- dronizadas, principalmente enquanto violências, nos colocam em um lugar específico e comum por dividirmos esse locus social, e cabe a nós, corpas racializadas de sexualidade dissidente , estudarmos as reverberações sociais da violência em nossos corpos. Pois somente partir de novas epistemologias nossas e a partir do resgate de epistemologias negras e indígenas ancestrais que teremos a possibilidade de desconstruir as caixas terminológicas e sociais que nos prendem em um ciclo repetitivo de relações violentas conosco e com o ambiente. O termo mulher, o termo negra, o termo lésbica, bissexual ou transsexual não nos cabe. Somos muito mais complexas e ancestrais que as definições modernas brancas fabricadas para docilizar os corpos que se mos- traram opostos a certas formas de dominação dos corpos e das mentes E por conta das violências e dominações que permeiam esses corpos, o corpo avesso que está às margens sociais precisa constantemente se adaptar às mudanças sociais, culturais, políticas e econômicas para conseguir sobre- viver. E a partir dessas metamorfoses os corpos marginalizados provocam também um giro de percepções e conceitos, colocando em xeque a si mesmas, criando novas territorializações e agindo como operadores de desestabiliza- ção de conceitos e práticas da modernidade branca. As percepções negras não-heterossexual, nesse sentido e vários outros, se tornam revolucionárias, e esse é um dos vários motivos pelo qual precisamos conduzir nossas próprias produções e definir nossos próprios novos conceitos. Como cita Angela Davis “quando a mulher negra se move, as estruturas se movem com ela”. É necessário nos movermos em meio a lama que nos chafurda, pois a vida nunca foi fácil para aquelas que tentam sobreviver em um país que passou por tantos percalços como o Brasil, desde a colonização até o pós-ditadu- ra. Estamos a margem, mas isso só nos coloca em uma posição de maior urgência

287 Edelamare Melo (Organizadora) em criar demandas por nós, por nossas ancestrais e por nossas descendentes. Aqui escolho as Artes como uma das grande possibilidade de novas territorializações na mesma medida em que, com o olhar e a pesquisa artística, podemos dar visi- bilidade a planos não explorados. Criar novos discursos é uma disputa de narrati- vas, é uma disputa de poder, pois a arte:

“ é autônoma, mas guarda contato a partir de seus pontos de par- tida: o caos, o território e o corpo. É sempre o gesto que dá poder a imagem. O que ele comunica não é só para o outro, mas para si mesmo uma comunicabilidade e não um significado pronto. Toda escritura é dispositivo de poder. A escritura do gesto não é exceção. (Greiner, Christine. Corpo em crise. 2010,p.106).

Além de encarar as Artes como dispositivo de disputa de narrativa e de poder, ao entendermos esses campos como lugar de ressignificações isso também nos gera a possibilidade de entender as Artes como possibilidade de comunicação com o outro por meio do questionamento de símbolos comuns. Somado a esse processo, ainda existe a possibilidade de entender as Artes como possibilidade de comunicação e transformação entre nós mesmas, atra- vés da busca de metodologias que fujam de uma lógica eurocêntrica e que busquem atender demandas tão específicas quanto às demandas de comuni- cação e transformação da mulher racializada latina de sexualidade dissidente. É por nós que todas as lutas em instâncias de significação precisam ser travadas. Assim, é necessário que sejam inscritas novas metodologias, no- vas significâncias e novas subjetivações para esses corpos, a fim de que, em diálogo com diversas áreas do conhecimento, encontremos curas pessoais, coletivas e novos rostos possíveis. Ressignificarmos a fim de tirarmos de nós um pouco do silêncio e da dor que nos foi reservado, tanto a nível psicológico quanto a nível físico. Referências Bibliográficas Berger, Peter L. Luckmann, Thomas. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2004.

Curiel, Ochy. La Nación Heterosexual: Analisis del discurso juridico y el regimen heterose- xual desde la antropologia de la dominacion. Colombia: Impresol Ediciones, 2013

Greiner, Christine. O corpo em crise: Novas pistas e o curto-circuito das representações. São Paulo: Annablume editora, 2010

Louro, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1997.

288 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Louro, Guacira Lopes. Um corpo estranho - Ensaio sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2004.

Barbosa, M.r., Matos, P. M., & Costa, M. E. (2011). Um olhar sobre o corpo: o corpo ontem e hoje.Psicologia & Sociedade, 23(1), 24-34.

Colling, Leandro. Mais visíveis e mais heteronormativos a performantividade de gênero das personagens não-heterossexuais das telenovelas da Rede Globo. 2010, 87-101.

Lower, Alexander. Bioenergetics. New York: Penguin Books, 1976.

Loureiro, M. C. S.. Psicologia da Educação no Brasil. In: Miranda, Marília Gouvea de; Re- sende, Anita C. Azevedo. (Org.). Escritos de Psicologia e Educação. 1ed.Goiânia: Editora da UCG, 2008, v. 1, p. 35-54.

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Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Breve análise da Reforma Trabalhista sob a ótica da discriminação racial indireta

Luana Angelo Leal1

Introdução O mercado de trabalhe o brasileiro é historicamente marcado por diversas desigualdades, dentre as quais destaca-se para os fins do presente estudo a desigualdade racial2: negros3 recebem cerca de 44% a menos do que brancos, representam o maior número de desempregados, maior índice de analfabetismo e maior presença no trabalho infantil4. Esta desigualdade é causada e perpetuada pelo racismo presente na sociedade brasileira, cujo combate é um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, conforme redação do art. 3º da Constituição Federal, e um dos princípios que regem as relações internacionais do Brasil, conforme art. 4º, CRFB. Considerando que a Constituição Federal é a norma superior no or- denamento jurídico brasileiro, o combate à discriminação mostra-se como basilar para a constituição de uma “sociedade livre, justa e solidária”, como estabelece nossa Carta Maior, devendo estar refletido nas demais legislações para possibilitar a redução das desigualdades sob diversos aspectos. Assim, no caso da legislação trabalhista, também deve ser guiada pelo princípio do repúdio ao racismo, criando normas que proíbam a discriminação racial nas relações de trabalho e promovam a redução da desigualdade racial. A Lei nº 13.467/2017, também chamada de Reforma Trabalhista, tra- mitou em regime de urgência no Congresso Nacional e foi aprovada e sancio- nada em apenas 7 meses, alterando mais de uma centena de dispositivos da

1 Mestranda em Teorias Jurídicas Contemporâneas pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGD/UFRJ) e bolsista CAPES. Integrante do grupo de pesquisa Configurações Institucionais e Relações de Trabalho (CIRT/UFRJ). Integrante do Curso de Extensão Jurista Luiz Gama (UFRJ). E-mail: [email protected]. 2 Sem ignorar o relevo das demais formas de desigualdade e discriminação (sexo, orientação sexual, identidade de gênero, origem, idade e etc.), o presente estudo também pode ser observado a partir da ótica destas outras modali- dades e suas interseções. 3 A partir da nomenclatura adotada pelo Instituto Brasileiro de Geografia Estatística em que o termo “negro” re- presenta o somatório da população autodeclarada como preta e parda, bem como por sua utilização nas referências bibliográficas consultadas. 4 IBGE. As cores da desigualdade. Retratos: a revista do IBGE. Rio de Janeiro, nº 11, maio/2018, p. 14-19. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/media/com_mediaibge/arquivos/17eac9b7a875c68c1b2d1a98c80414c9. pdf . Acesso em 17 set. 2019. 291 Edelamare Melo (Organizadora)

Consolidação das Leis do Trabalho. As normas da referida lei são genéricas, não estabelecem qualquer previsão específica para os trabalhadores e traba- lhadoras negras, no entanto, questiona-se: é possível que estas normas afetem desproporcionalmente a população negra? Para responder a esta pergunta, o presente estudo aborda a teoria da discrimi- nação com alguns de seus principais conceitos para análise da legislação laboral, con- centrando-se nos efeitos gerados pela norma, a partir da obra O que é discriminação? (2017) de Adilson José Moreira. Por fim, o estudo analisa alguns dispositivos inclu- ídos pela Reforma Trabalhista, correlacionando-os com dados sobre a desigualdade racial no Brasil para verificar a potencialidade de impacto desproporcional para os tra- balhadores e trabalhadoras negras e, consequentemente, gerando discriminação racial. Aspectos sobre a discriminação racial nas relações de trabalho A discriminação é um conceito com múltiplos significados. O primei- ro deles, chamado de discriminação direta, compreende atos intencionais e individuais que contrariam o tratamento igualitário, pois sujeitam uma pessoa de grupo minoritário a tratamento desvantajoso que não seria dispensado a alguém do grupo dominante5. No entanto, a discriminação mostrou-se mais complexa do que os critérios de intencionalidade e arbitrariedade. Com a percepção da insuficiência deste conceito, outra teoria foi for- mulada, passando a contemplar os casos em que não é possível identificar um agente, pois não há qualquer conduta explicitamente discriminatória, mas sim um impacto desproporcional sobre um determinado grupo. Deste modo, uma discriminação que poderia nem mesmo ter sido imaginada quando da criação da norma ou execução do ato, ocorre no caso concreto. Assim passou-se a de- senvolver a noção de discriminação indireta, que retrata os casos em que a con- cessão de um tratamento igual para pessoas desiguais gera um impacto despro- porcional de caráter coletivo6. Este é o significado atribuído pela Organização Internacional do Trabalho, na Convenção nº 111 (Discriminação em Matéria de Emprego e Ocupação), que vigora no Brasil desde 1969, e que, apesar de não adotar expressamente a nomenclatura da discriminação indireta, define dis- criminação como toda distinção, exclusão ou preferência que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou de tratamento no emprego. Deste modo, não preciso que haja uma conduta expressamente discriminatória, bastando a constatação de um efeito discriminatório para determinado grupo.

5 MOREIRA, Adilson José. O que é discriminação? Belo Horizonte: Letramento: Casa do Direito: Justificando, 2017, p. 17-18. 6 Na mesma obra, p. 103-104. 292 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

A concepção de discriminação indireta nos alerta para o fato de que a aparência de neutralidade de uma norma (ou ato) não é suficiente para des- caracterizar seu potencial discriminatório. Isto ocorre porque o Direito está baseado nos pressupostos de um modelo liberal da igualdade, cujo principal requisito é a generalidade das normas, o que significa que elas devem ser feitas para toda a população do Estado. No entanto, apesar disto, as normas são pensadas para um determinado grupo normativo, que representa o padrão cultural universal: o homem branco heterossexual. O mecanismo que univer- saliza esse sujeito específico é chamado de privilégio, e representa ao mesmo tempo uma vantagem social concedida ao grupo dominante e uma estrutura de exclusão para o grupo socialmente subordinado, especialmente em decor- rência da formação de redes de relacionamentos entre pessoas do grupo domi- nante que auxiliam na perpetuação de posições sociais através do favoritismo e da formação de estereótipos sobre o grupo subordinado7. Porém, a discriminação indireta também mostrou limitações, uma vez que não enxergava as correlações entre distintas formas de discriminação, invisibili- zando as discriminações específicas sofridas por mulheres negras, de modo que as feministas negras desenvolveram a concepção de discriminação interseccional, que abrange a análise das conexões entre o racismo, sexismo e opressão de classe8. Com o desenvolvimento do estudo sobre a discriminação ao redor do mundo, começou-se a perceber que a discriminação ocorre independentemente de condutas discriminatórias e que os impactos desproporcionais são causados não por acaso, mas em razão de existência de uma base social, ideológica, cultural e psicológica que re- produz sistematicamente padrões discriminatórios. Assim desenvolveu-se o conceito de discriminação estrutural, que identifica a discriminação como um padrão normal de funcionamento da sociedade que está organizada sobre desigualdades estruturais e subordinação de grupos minoritários9. No que tange a discriminação racial, Silvio Luiz de Almeida trabalha o conceito de racismo estrutural compreendendo que existe uma base racial que orienta toda a sociedade, suas instituições e indivíduos. Isto faz com que a única forma de reduzir as desigualdades seja por meio do combate efetivo ao racismo, com adoção de práticas antirracistas que promovam a igualdade real, caso contrário ele tende a se reproduzir e perpetuar nas estruturas da sociedade10. Por fim, mais uma modalidade de discriminação que cabe aqui destacar é a discriminação organizacional que abrange a reprodução do racismo na prática

7 Na mesma obra, p. 41 e 146-148. 8 CRENSHAW, Kimberle W. (2004). A intersecionalidade na discriminação de raça e gênero. In: VV.AA. Cruza- mento: raça e gênero. Brasília: Unifem, p. 7-16. 9 MOREIRA, Adilson José. Obra citada, p. 136-137. 10 ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018, p. 36-37. 293 Edelamare Melo (Organizadora) rotineira das empresas em decorrência de uma cultura institucional que perpetua – e não combate – as desigualdades estruturais decorrentes do privilégio branco. Esta teoria também explica a criação de “perfis profissionais ideais” que correspondem às características do grupo dominante, também mantidos pelo favoritismo intragru- po, das quais os membros de grupos minoritários são rejeitados ou desconsiderados devido a perpetuação de estereótipos. Considerando a predominância de pessoas brancas em cargos de che- fia e gerência de empresas11, o racismo se reproduz e perpetua nas relações de trabalho por meio destes modelos mentais socialmente construídos que reduzem as chances de contratação de pessoas negras, independentemente de seu mérito, inteligência ou aptidão para o trabalho. Isto pode ser observado na campanha “Teste de Imagem”, desenvolvida pelo Governo do Paraná, em que profissionais de setores de recursos humanos atribuíam significados di- ferentes para pessoas negras e brancas em situações idênticas, reproduzindo padrões estereotipados12, o que é um sinal da presença do racismo na fase pré- contratual, quando sequer foi constituída uma relação de trabalho, o que pode auxiliar na compreensão dos números do desemprego no Brasil, que apontam para uma predominância negra. Ademais, conforme o art. 2º da Convenção 111 da OIT, os países sig- natários firmam compromisso de adotar uma política nacional que promova a igualdade de oportunidades e de tratamento, em prol da eliminação da discri- minação. Neste aspecto, as políticas de ação afirmativa ganham relevo pois, além de inserirem pessoas negras em locais sociais de onde normalmente são afastadas, possibilitam a integração entre membros de grupos diversos, con- tribuindo para redução gradativa da força dos estereótipos e ampliação das redes de relacionamento13. Atualmente vigora a Lei nº 12.711/2012 que determina reserva de va- gas para negros em concursos para ingresso nos cursos de graduação de univer- sidades federais e instituições federais de ensino técnico de nível médio, e a lei nº 12.990/2014 que estabelece a reserva de vagas para negros em concursos pú-

11 Conforme dados da pesquisa “Perfil social, racial e de gênero das 500 maiores empresas do Brasil e suas ações afirmativas”, realizado pelo Instituto Ethos (2016, p. 22), cujos resultados apontam que pardos representam menos de 5% dos cargos de Conselho de Administração e do Quadro Executivo e pouco mais de 6% dos cargos de gerência (pretos representam menos de 1% nestas funções), ao passo que negros representam 58% dos trainees, 57% dos estagiários, 35% do quadro funcional e 25% dos cargos de supervisão, revelando a desigualdade ocupacional entre negros e brancos no setor privado, em que negros tem menor acesso aos cargos de gestão e comando. 12 CAMPANHA com profissionais de RH retrata racismo institucional. O Estado de São Paulo, 17 nov. 2016. Dis- ponível em: https://emais.estadao.com.br/noticias/comportamento,campanha-com-profissionais-de-rh-retrata-racis- mo-institucional,10000088984 Acesso em: 18 set. 2019. 13 MOREIRA, Adilson José. Obra citada, p. 124-125. 294 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. blicos federais. Estas medidas são basilares para uma mudança gradativa do ce- nário da inserção da população negra no mercado de trabalho, porém, é preciso mais e Coordenadoria Nacional de Promoção de Igualdade de Oportunidades e Eliminação da Discriminação no Trabalho do Ministério Público do Trabalho (COORDIGUALDADE-MPT) defende inclusive a aplicação analógica da lei nº 12.990/2014 para o setor privado, com a possibilidade de reserva e anúncio de vagas específicas para a população negra, o que ampliaria a capacidade de mudança, dado o número de empregos neste setor14. Todavia, o racismo não afeta apenas o momento da contratação, mas todo o curso do contrato de trabalho. Uma das formas de expressão da discri- minação racial no local de trabalho são as microagressões, que são pequenas manifestações de desprezo buscam ofender, rebaixar e/ou invalidar pessoas negras, gradualmente minando sua autoestima, podendo até mesmo ensejar a dispensa voluntária do(a) trabalhador(a) quando a convivência no ambiente de trabalho torna-se insustentável15. Outro exemplo de racismo durante o con- trato de trabalho se dá quando há pressão social para que o(a) trabalhador(a) de grupo minoritário se assemelhe ao máximo ao padrão do grupo normativo. Deste modo, a cultura institucional da empresa tenta gradativamente apagar a identidade do(a) trabalhador(a), que se sente pressionado(a) a dissimular sua identidade pessoal para evitar discriminação (omitindo sua religião ou orientação sexual, por exemplo) ou tentativa de aproximar-se esteticamente do grupo dominante, como meios para evitar a discriminação, manter-se na empresa e avançar na carreira16. 1. Análise de alterações promovidas na CLT Reforma trabalhista sob a ótica da desigualdade racial A Lei nº 13.467/2017 promoveu mudanças em uma série de aspectos da legislação trabalhista, fixados de forma genérica. Apesar da mudança ter sido gené- rica, destinada a todos(as) os(as) que são afetados(as) por esta legislação – trabalha- dores(as), sindicatos e empregadores(as) –, a aparente neutralidade da norma incide sobre uma realidade estruturalmente desigual, onde o racismo se reproduz de forma sistêmica, de modo que tem severo potencial de aprofundar a desigualdade racial nas relações de trabalho em decorrência de seu impacto desproporcional para a população negra, majoritariamente trabalhadora ou desemprega. O presente estudo

14 COORDIGUALDADE-MPT. Nota Técnica GT de raça nº 001/2018, de 06 de agosto de 2018. Disponível em: https://mpt. mp.br/pgt/publicacoes/notas-tecnicas/nota-tecnica-gt-de-raca-no-01/@@display-file/arquivo_pdf. Acesso em 18 set. 2019. 15 MOREIRA, Adilson José. Obra citada, p. 13 e 158. 16 Na mesma obra, p.126. 295 Edelamare Melo (Organizadora) aborda algumas mudanças centrais divididas nos seguintes eixos: Direito Processu- al do Trabalho, Direito Material do Trabalho e Direito Coletivo do Trabalho. As mudanças no Direito Processual do Trabalho podem afetar gra- vemente o acesso à justiça para os trabalhadores, em especial para negros e negras. A Justiça do Trabalho já é considerada uma justiça para desemprega- dos, tendo em vista a não regulamentação da proteção constitucional contra dispensa sem justa causa (prevista no art. 7º, I, CRFB), de modo que os traba- lhadores sentem-se inseguros de ajuizar a ação durante o contrato de trabalho (e muitas vezes até mesmo depois) e a proteção aos direitos trabalhistas se dá de forma reparatória. Dados divulgados pelo Tribunal Superior do Trabalho apontam queda brusca no número de ações trabalhistas ajuizadas a partir de dezembro de 2017 (início estatístico da vigência da Reforma Trabalhista), e no ano de 2018 os números continuaram reduzidos, abaixo do padrão dos mesmos meses nos anos anteriores17. Um dos aspectos que indica que a Reforma Trabalhista dificulta o acesso à justiça é o aumento nos custos do processo judicial trabalhista, den- tre os quais o primeiro que se pode destacar são as mudanças na gratuidade de justiça. Originalmente na Justiça do Trabalho bastava a declaração de próprio punho do(a) trabalhador(a) indicando que não possui recursos para arcar com os custos sem prejuízo de seu sustento. Agora, também é necessária a com- provação de insuficiência de recursos para o trabalhador que receba salário superior a 40% do limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previ- dência Social, conforme art. 790-B. A Reforma também limita o alcance da gratuidade de justiça, que não abrange as novas custas criadas18. Outro aspecto do encarecimento do processo trabalhista é a criação de novos custos. Agora a legislação trabalhista também prevê possibilidade de ho- norários de sucumbência advocatícios (Art. 791-A) e periciais (art. 790-B), o que significa que a parte que perder o processo deverá pagar um percentual para o advogado da parte vencedora ou para o perito, mesmo que seja beneficiário de justiça gratuita. Isto é um empecilho a acesso à justiça uma vez que os honorários sucumbenciais incidem sobre pedidos indeferidos, o que gera receio da formula- ção de determinados pedidos, devido ao risco de indeferimento por divergência judicial, de cálculo ou dificuldade probatória. A sucumbência agora também in-

17 PRIMEIRO ano da reforma trabalhista: efeitos. TST, 05 nov. 2018. Disponível em: http://www.tst.jus.br/noti- cias/-/asset_publisher/89Dk/content/id/24724445. Acesso em: 18 set. 2019. 18 Isto estabelece uma diferenciação entre o acesso à justiça do beneficiário de gratuidade no processo civil e no processo do trabalho, visto que no processo civil, apesar da existência de sucumbência com responsabilização do beneficiário da gratuidade, a obrigação de pagamento pode ficar suspensa pelo prazo de até 5 anos e só será cobrada caso o credor comprove que não há mais insuficiência de recursos, conforme art. 98º, §3º, CPC. 296 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. cide sobre os honorários periciais, até mesmo para os beneficiários da gratuidade de justiça – em flagrante desproporção aos demais ramos do Judiciário. No caso de o reclamante não comparecer à audiência, além do arquiva- mento do processo, a reforma agora prevê a condenação em custas judiciais, até mesmo para o beneficiário da gratuidade de justiça (art. 844, §2º, CLT). Isto é extremamente complexo, porque a distribuição populacional em uma cidade tam- bém segue critérios raciais, que alocam a população negra predominantemente nos bairros periféricos e mais distantes dos centros, como é o caso do Rio de Ja- neiro19, agravado por dificuldades de deslocamento e transporte insuficiente, pre- judicando de maneira desproporcional esta população, o que é mais um exemplo do impacto desproporcional da legislação trabalhista na população negra. Também houve significativa mudança no que tange a indenização por da- nos morais, agora chamados de danos extrapatrimoniais – nomenclatura que tenta afastar a concepção de impacto subjetivo inerente ao dano moral20 –, a Reforma Trabalhista criou um capítulo próprio na CLT com os artigos 223-A a 223-G, que estabelecem regramento específico para as relações de trabalho. A principal modi- ficação é a fixação de limites para a indenização de acordo com o salário recebido pelo(a) empregado(a) (art. 223-G, §1º, CLT), o que pode ensejar que uma mes- ma ofensa (aqui incluídas condutas de discriminação, que ensejam reparação por dano moral) dirigida a empregados(as) que recebem salários distintos, faça com que empregados(as) com maiores salários possam receber maiores indenizações. Considerando as desigualdades ocupacionais no mercado de trabalho brasileiro, é possível imaginar um impacto desproporcional na população negra. No que tange ao Direito Material do Trabalho, a Reforma Trabalhista cria a nova modalidade do contrato intermitente de trabalho, em que o(a) trabalhador(a) fica à disposição do empregador(a) aguardando a convocação para o serviço, sem pagamento de salário quando não há prestação de servi- ços, na forma do art. 443, §3º, CLT. É um contrato que assegura os direitos trabalhistas, porém possui tamanha flexibilidade que prejudica a estabilidade das relações de trabalho, dada a incerteza do salário. Ademais, também houve alteração na regulação da terceirização, mas que não consta na Consolidação das Leis do Trabalho. Foi modificada a Lei nº 6.019/74, que dispõe sobre o trabalho temporário, para estabelecer a ter- ceirização (quando uma empresa presta serviços para outra) ampla e irrestrita,

19 COSTA, Camila. 5 mapas e 4 gráficos que ilustram segregação racial no Rio de Janeiro. BBC Brasil, 10 nov. 2015. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/11/151109_mapa_desigualdade_rio_cc. Acesso em: 17 set. 2019. 20 DELGADO, Mauricio Godinho; DELGADO, Gabriela Neves. A reforma trabalhista no Brasil: com os comentá- rios à Lei n. 13.467/2017. São Paulo: LTr, 2017, p. 144-145. 297 Edelamare Melo (Organizadora) visto que pode ser utilizada até mesmo na atividade-fim da empresa princi- pal, o que anteriormente era vedado pela súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho. Esta alteração, como muitas outras, teve a constitucionalidade questionada no Supremo Tribunal Federal, por meio da Arguição de Descum- primento de Preceito Fundamental nº 324/DF, que já foi apreciada e a Corte entendeu pela constitucionalidade desta transferência de serviços. Esta alteração pode ter impacto negativo nas relações de trabalho e prejudicar especialmente a população negra tendo em vista sua significati- va representação nestes contratos de trabalho, conforme estudo desenvolvido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada que destaca a desigualdade salarial entre empregados terceirizados e os empregados contratados pela em- presa principal, o número expressivo de acidentes de trabalho e até mesmo mortes envolvendo trabalhadores terceirizados21. A Reforma Trabalhista cria novas exigências para a reconhecimento de identidade de funções entre empregados e a consequente concessão da equiparação salarial, que é o mecanismo jurídico para reparar o ato discrimi- natório de pagamento de salários distintos para trabalhadores que realizam as mesmas funções – o que também pode ter aspecto racial, se considerarmos a diferença de renda entre trabalhadores negros e brancos. Agora o art. 461, CLT exige que a comprovação da identidade de funções se dê no mesmo estabelecimento (reduzindo a anterior previsão que abrangia a “mesma loca- lidade”, que era interpretada como o Município ou Região Metropolitana22) e estabelece limites temporais (trabalhadores contemporâneos com diferença de tempo de serviço para o mesmo empregador de no máximo 4 anos e dife- rença de tempo na função de no máximo 2 anos). Um aspecto benéfico trazido por esta norma é a previsão de aplicação de multa caso reste comprovado que a diferença salarial se deu em função de discriminação racial ou sexual, conforme previsão do §6º do art. 461, no en- tanto, a norma estabelece limite indenizatório no valor de 50% (cinquenta por cento) do teto máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência So- cial, o que é um valor pouco expressivo (atualmente equivale a menos de três mil reais) e que não representa potencial inibitório da prática discriminatória. Sob o prisma do Direito Coletivo do Trabalho, a Reforma Trabalhista também enfraquece os sindicatos com o fim da contribuição sindical com-

21 PELATIERI, Patrícia [et. al]. As desigualdades entre trabalhadores terceirizados e diretamente contratados: análise a partir dos resultados de negociações coletivas de categorias selecionadas. In: CAMPOS, André Gambier (org). Terceirização do trabalho no Brasil: novas e distintas perspectivas para o debate. Brasília: Ipea, 2018, pp. 33-48. 22 DELGADO, Mauricio Godinho; DELGADO, Gabriela Neves. A reforma trabalhista no Brasil: com os comentá- rios à Lei n. 13.467/2017. São Paulo: LTr, 2017, p. 172. 298 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. pulsória, sem qualquer período de adaptação, na forma do art. 545, CLT, re- duzindo drasticamente a arrecadação dessas instituições protetivas da classe trabalhadora, que em 2018 apresentaram queda de cerca de 90% no mês de recolhimento da contribuição sindical (abril) de 2018 se comparado com o mesmo mês do ano anterior, conforme Nota Técnica do Departamento Inter- sindical de Estatística e Estudos Sócio Econômicos23. É válido lembrar que a força dos trabalhadores está em sua organização coletiva através do sindicato, que é a instituição com legitimidade para nego- ciar cláusulas específicas para a categoria – por meio de contratos ou acordos coletivos –, configurando um espaço de disputa em que os trabalhadores e tra- balhadoras negros poderiam levar suas reivindicações antidiscriminatórias. Po- rém, com recursos reduzidos torna-se cada vez mais difícil a negociação, como fica evidenciado pela queda significativa de cerca de 25% se comparadas com anos anteriores24. Ao mesmo tempo em que enfraquece a entidade sindical por redução de seus recursos financeiros, a reforma aumenta seu poder de negocia- ção ao estabelecer que a negociação coletiva prevalece sobre a previsão legal em uma série de hipóteses elencadas no novo art. 611-A, CLT. 2. Conclusão Após breve análise de alguns dispositivos de Direito Material, Processual e Coletivo do Trabalho incluídos pela Reforma Trabalhista correlacionados com dados sobre a desigualdade racial no Brasil, é possível perceber o potencial lesi- vo destas normas para a população negra sob os diversos aspectos da legislação laboral, tendo em vista principalmente a desigualdade salarial e ocupacional que atinge os trabalhadores e trabalhadoras negras no mercado de trabalho. A partir do Direito Processual do Trabalho os possíveis impactos estão representados pela limitação ao acesso à justiça das camadas mais pobres devido à elevação os custos do processo do trabalho sem isentar os beneficiários da gratuidade de justiça. No Direito Material do Trabalho são ampliadas as exigências para verificação da identidade de funções e consequente equiparação salarial; os valores de indenização para danos morais (agora chamados de “extrapatri- moniais”) são limitados com base no salário recebido pelo(a) empregado(a) ofendido; é criada uma nova modalidade contratual extremamente flexível e sem garantia sequer de pagamento do salário mínimo mensal e é ampliada a possibilidade de terceirização da atividade-fim das empresas.

23 DIEESE. Nota Técnica: Subsídios para o debate sobre a questão do Financiamento Sindical. São Paulo, nº 200, dez/2018, p. 5. Disponível em: https://www.dieese.org.br/notatecnica/2018/notaTec200financiamentoSindical.pdf. Acesso em: 18 set. 2019 24 Na mesma obra, p. 7-8. 299 Edelamare Melo (Organizadora)

No Direito Coletivo do Trabalho a Reforma Trabalhista proporciona o enfraquecimento das entidades sindicais por redução de sua fonte de custeio, o que impacta diretamente nas condições de negociação coletiva. De outro lado, a Reforma também amplia a responsabilidade dos sindicatos enfraquecidos quanto a negociação coletiva em razão de sua capacidade de afastar disposições legais. Logo, um espaço coletivo que pode promover pautas antidiscriminatórias e alte- rar a realidade social de uma categoria vem sendo cada vez mais minado. Diante do exposto, com base no referencial teórico adotado sobre a re- produção e perpetuação da discriminação racial no Brasil de modo sistêmico e estrutural, o presente estudo alerta para o potencial lesivo das normas da Re- forma Trabalhista sob a ótica das desigualdades raciais, visto que, apesar das mudanças efetuadas na legislação laboral, a realidade social que fundamenta os estudos das teorias da discriminação pouco mudou. Deste modo, tais mu- danças podem gerar impacto desproporcional para a população negra gera a consequente configuração de ato de discriminação indireta da parte do Esta- do, uma vez que não considera as disparidades existentes em sua população que afetam o mercado de trabalho e sujeitam uma aplicação diferenciada das normas trabalhistas. Assim, os dispositivos legais aqui analisados poderão ser objeto de estudos futuros para investigação empírica sobre a concretização ou não do efeito discriminatório sugerido pela teoria. Considerando que os preceitos da Constituição da República estabelecem o combate ao racismo e a promoção de uma sociedade igualitária como princípios que regem nacional e internacional a atuação do Brasil e que a Convenção 111 da OIT proíbe os efeitos discriminatórios, é preciso que as legislações infraconsti- tucionais deixem de ser abstratamente pensadas como universais e passem a ser pensadas e interpretadas a partir da realidade social, que afeta pessoas concretas de maneiras diversas, sob pena de perpetuação das desigualdades sociais. Referências bibliográficas Almeida, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018.

Brasil. Projeto de Lei nº 6787, de 2016 (da Câmara dos Deputados), PL 6787/2016. Altera o Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943 - Consolidação das Leis do Trabalho, e a Lei nº 6.019, de 3 de janeiro de 1974, para dispor sobre eleições de representantes dos trabalhadores no local de trabalho e sobre trabalho temporário, e dá outras providências. Brasília: Câmara dos Deputados [2016]. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichade- tramitacao?idProposicao=2122076. Acesso em: 17 set. 2019.

Brasil. Decreto-Lei nº 5.452, de 01 de maio de 1943, Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho.

300 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Brasil. Decreto nº 62.150, de 19 de janeiro de 1968. Promulga a Convenção nº 111 da OIT sôbre discriminação em matéria de emprêgo e profissão. Brasília, DF: Presidência da Repú- blica

Campanha com profissionais de RH retrata racismo institucional. O Estado de São Paulo, 17 nov. 2016. Disponível em: https://emais.estadao.com.br/noticias/comportamento,campa- nha-com-profissionais-de-rh-retrata-racismo-institucional,10000088984 Acesso em: 18 set. 2019.

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Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

PEDAGOgIAS CIVILIZATÓRIAS DE TERREIROS: A AFROCENTRALIDADE COMO PROJETO POLÍTICO CONTRA O RACISMO RELIGIOSO

Luís Cláudio de Oliveira

Introdução Nesta comunicação pretendo contribuir com o debate sobre pedagogia para a garantia de direitos, iluminando-o com algumas considerações extra- ídas do meu livro O tradição dos Orixás: valores civilizatórios afrocentra- dos, escrito conjuntamente com a antropóloga Edlaine de Campos Gomes. No centro desta conversa estão as tensões existentes na arena de interes- ses da fé religiosa de integrantes do campo evangélico e do campo afro-bra- sileiro, evidenciadas tanto na imprensa corporativa como nas redes sociais, e a pedagogia de perspectiva afrocêntrica como instrumento de salvaguarda do patrimônio material e imaterial representado nos terreiros de candomblé. Creio ser pertinente esclarecer que o título do livro releva o título do Projeto. À época, a visão do grupo que o desenvolveu era influenciada pela concepção que atribuía o candomblé à nação ketu /Nagô cuja língua matriz é o yorubá e na qual se cultuam os orixás, dado que no Rio de Janeiro era esse o grupo predominante. Posteriormente o grupo faria autocrítica, reconhecendo a coexistência da nação Angola/Congo, com línguas de matriz banto e os cultos a inquices, assim como a nação Jeje/Fon tem como língua o ewe e cultua voduns. Igualmente, esclareço que vejo o candomblé como um sistema cosmo- gônico forjado no plano de uma “dialogia” – termo que aprendi com o pro- fessor Muniz Sodré –, que articula conhecimentos de diversas religiosidades africanas trazidas ao Brasil no curso da diáspora negra. A literatura em geral relaciona três grupos étnicos aportados no litoral nordeste e sudeste do nosso país cujas vivências na tradição africana, ainda que incompleta por se trata- rem de jovens escravizados, deram origem a esse sistema. Os educadores Denise Botelho e Wanderson Flor do Nascimento precisam que

Os bantos (vindos da região centro-sul do continente, sobretudo dos atuais Congo, Angola e Moçambique), os Iorubás (vindos dos atuais Nigéria, Benin e Togo) e os Fonewés (conhecidos como Jêjes, vindos dos atuais Benin e Togo). Cada um desses

303 Edelamare Melo (Organizadora)

grupos foi formado por diversos povos com culturas, divindades e costumes diferentes. Aqui no Brasil, esses povos se articulam entre si e fundam novos cultos onde as divindades que eram cul- tuadas separadamente no continente africano vão ser reunidas nas religiões aqui criadas com as heranças africanas. Nasceram, nesse processo, diversos cultos que em termos de classifi cação chamaremos de candomblés. Esses candomblés se organizaram em torno dos três grupos, dando origens aos cultos iorubás (can- domblés Ketu, Ijexa, Efon, Nagô etc.), fons (candomblés Jeje Mahin e Jeje Mina) e bantos (candomblés Angola/Congo). (BO- TELHO; NASCIMENTO, 2010, p.76).

Vale a pena ainda situar que esse sistema pressupõe a existência de uma divindade central criadora. Os candomblés bantos a chamam de Nzam- bi, os iorubas de Oludumare, e os fons de Mawu. As demais divindades exer- cem um papel auxiliar na perpetuação da humanidade e de toda a existência. Trafi cantes de Jesus O primeiro ponto a destacar diz respeito à própria relevância social e política do tema, pois se trata de refl etir sobre situações em que tais ten- sões no Brasil atual – tensões que mantem correspondência com a sociedade brasileira no passado – têm levado a ações extremadas por parte de indivíduos ou grupos que se mostram dispostos a tirar vidas em nome da fé. Refi ro-me aos numerosos casos denunciados e relatados pelo Brasil afora em que delin- quentes armados invadem terreiros e obrigam os integrantes desses templos a destruírem o seu patrimônio material, principalmente imagens e alguidares, ou os expulsam e proíbem o seu retorno.

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Conforme publicado em 16 de janeiro de 2019 pelo jornal O Globo, os dados do Disque 100, canal do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos que concentra denúncias de discriminação e violação de direitos, indicam que foram feitas 213 notificações de “intolerância religiosa” a pessoas ou a espaços litúrgicos de matrizes africanas, de janeiro a novembro de 2018. A reportagem mostra que o número é 47% maior do que o registrado em todo o ano de 2017, quando foram recebidas 145 denúncias. Se em 2014 elas correspondiam a 15% do total de denúncias, ao final de 2018 representa- ram 59% do número total de reclamações. É preciso sublinhar que hoje, diferentemente das incursões punitivas do Estado que interditavam os Terreiros e reprimiam os cultos nas primeiras décadas da República, o que se vê é a proliferação de ações organizadas em paralelo às forças oficiais de repressão e cuja motivação tem sido recorrente- mente atribuída à “intolerância religiosa”. Se nos três últimos anos os ataques contra os seguidores dessas reli- giões aumentaram, no ano de 2019 um novo cenário passou a fazer parte do noticiário. Floresceu, em telejornais, a exibição de imagens dessas ações violentas com a utilização de armas de fogo por parte de traficantes que se dizem convertidos a denominações do campo evangélico. Estes tornaram-se conhecidos como “traficantes de Jesus”. A imprensa tem divulgado que a Polícia Civil e o Ministério Público Federal se articulam na repressão aos ataques dessas quadrilhas e investi- gam os grupos religiosos que atuam nas prisões com autorização do Estado. Recentemente, uma ação desencadeada pela Iyalorixa Palmira de Iansa, do Ile Omo Oya Legi, em Mesquita, Baixada Fluminense criou um programa de capacitação para o exercício de capelania no sistema prisional do Rio de Janeiro. A iniciativa visa intervir diretamente onde se supõe estar o núcleo de conversão dos aprisionados, que uma vez em liberdade, amealhando insuces- sos nas tentativas de reintegração social, voltam-se contra os terreiros para, na sua interpretação, subverter a ordem do incomensurável mal ali representado. A arena dos meios eletrônicos de comunicação O segundo ponto, então, de destaque é como veículos de comunicação têm se posicionado acerca dessas práticas de violência. Restringindo-me às duas principais emissoras de televisão que dispu- tam o mercado da comunicação de massa no país, a Tv Globo e a Tv Record, suponho que ambas embaçam a questão central da garantia do direito à alteri- dade. Uma, desloca a unidade de análise das agressões do que pode ser inter-

305 Edelamare Melo (Organizadora) pretado como racismo religioso para o que se tem chamado de “intolerância religiosa”. A outra, isola a natureza racista dessas agressões, ora atribuindo aos traficantes por si mesmos o falseamento das pregações do evangelho, ora promovendo o silêncio sobre o assunto. A Tv Record mantém a sua programação nos moldes do que parece reputar como o seu principal expectador: o público evangélico. Ignorando parcialmente nos telejornais as denúncias de ataques a Terreiros, e ignoran- do totalmente as imagens desses ataques, procura neutralizar possíveis rea- ções sobretudo por meio dos conhecidos programas de louvor. A Tv Globo, ao contrário da principal concorrente, noticia em foco, mas sempre com referência à “intolerância religiosa”, consolidando assim essa unidade de discurso. O termo passa a ser correntemente reproduzido pelos seus telespectadores e assimilado pelo conjunto da sociedade, incluin- do setores expressivos do movimento negro e suas lideranças, assim como adeptos dos cultos afro. E mais. No âmbito do Rio de Janeiro, a região da Baixada Fluminense é a que tem frequentado mais constantemente os noticiá- rios como principal arena de manifestação do cerceamento do direito ao livre exercício da fé religiosa. Transparece-se para os telespectadores que esses são episódios pontuais e que a Baixada e São Gonçalo, na Região Metropolitana são praticamente os únicos lugares do Rio de Janeiro onde eles ocorrem. Mobilização e resistência O terceiro ponto é como os adeptos dos cultos afro vêm se mobilizando e resistindo à violação desse direito desde as duas últimas décadas do século passado, portanto desde a década do centenário da abolição da escravidão. Ressalto a década de 1980 e a região da Baixada Fluminense e São Gonça- lo na região Metropolitana como recorte para esta intervenção. Foi a partir desse período e lugar que se desenvolveu uma experiência marcante para a história das lutas contra o racismo no Brasil. Para o livro enunciado acima foram realizadas 17 entrevistas entre 2010 e 2016, totalizando aproximadamente 490 páginas transcritas e 10 horas de gravação em vídeo. Esse material permitiu a criação de um documentário com o mesmo título. Os autores procuraram mais registrar do que analisar o percurso do projeto Tradição dos Orixás e os seus desdobramentos ou inter- ferências no pensamento do movimento negro e de suas lideranças do Rio de Janeiro e posteriormente no Brasil. A investigação realizada se deu a partir das memórias daqueles que foram os seus interlocutores à época, especialmente o idealizador do projeto,

306 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. o baiano Jayro Pereira de Jesus, e igualmente de integrantes de comunidades de Terreiros, entre os quais os próprios militantes do movimento negro que, naquele contexto, se iniciaram no Candomblé. Um primeiro aspecto a ser aqui ressaltado para referir a esse contexto de época é o acompanhamento sistemático da imprensa escrita da movimen- tação ruidosa que aquele grupo produzia em cidades da região. Jornalistas como Tim Lopes, repórter investigativo do Jornal do Brasil, Francisco Alves pela Revista Isto É e Carlos Nobre de O Dia demostraram perceber a inova- ção de um ativismo negro que falava “de dentro” dos terreiros e não mais tão somente sobre os terreiros. Ao que se sabe, até os anos 1980 o movimento negro não havia incorporado em sua narrativa de afirmação do negro como sujeito de uma história de resistência ao ódio racial, a defesa do espaço do terreiro como guardião atávico da tradição africana. Antes, porém, de seguir com as ponderações acerca da aliança entre movimento negro e terreiros, aqui é importante sublinhar, brevemente, como os evangélicos chegaram antecipadamente a essas comunidades e expuseram a sua visão sobre os cultos e demais procedimentos litúrgicos afro-brasileiros. Televangelismo e mensagens de fé Desde o final dos anos 1970 pastores evangélicos que faziam sucesso com a veiculação de programas religiosos pelos meios de comunicação social eletrônicos (TV e rádio) nos EUA comercializaram e passaram a exportar os seus programas para emissoras brasileiras e outras da América do Sul. O teólogo e sociólogo norte-ameri- cano Hugo Assmann, no livro A Igreja Eletrônica e seu impacto na América Latina, publicado pela Editora Vozes em 1986, revela que os pastores Rex Humbard, Jimmy Sweaggart e Pat Robertson assinaram contratos com a TV Tupi, o SBT, a Rede Record e a Rede Bandeirantes. A partir de então, tem início uma nova forma no Brasil de “levar a palavra”, ou seja, divulgar as escrituras sagradas e converter fiéis. A venda de publicações de autoria desses pastores e a realização de concentrações “evangelísti- cas” em estádios de futebol se tornariam instrumentos complementares de um projeto político-pedagógico eficiente para o convencimento e a conversão de grandes massas. A partir de então, líderes de igrejas evangélicas no Brasil passam a criar a sua versão do novo modelo de divulgação de mensagens de fé. Inaugura- vam-se assim os programas, inicialmente radiofônicos em frequência AM, especialmente preparados para o contato dos líderes de igrejas com os fiéis. No Rio de Janeiro, a Rádio Copacabana (desde os anos de 1950), Rádio Boas Novas e Rádio Relógio foram as primeiras a se tornarem integralmente reli- giosas, dedicando-se a sua programação basicamente às curas e ao exorcismo.

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Na segunda metade dos anos 1970, no Rio de Janeiro, passam a surgir e a proliferar igrejas de diferentes denominações, sobretudo nos bairros mais distantes da zona Oeste, subúrbios e Baixada Fluminense. A orientação funda- mentalista da interpretação bíblica seria consolidada como o centro do televan- gelismo brasileiro, e o tripé salvação-milagre-coleta de fundos se tornaria a base do que a partir dos anos 1990 sereia referido como teologia da prosperidade. Do ponto de vista do consumo de bens e serviços básicos, a década de 1980 é reconhecidamente um período de grandes dificuldades para as famílias de tra- balhadores no Brasil. Sabe-se que a Tv, presente na maior parte dos domicílios, era muitas vezes a única fonte de entretenimento da maioria da população empo- brecida. Nessa situação, programas de variedades com apresentações musicais, entrevistas e pregações, como o “Reencontro” do pastor batista Nilson Fanini, veiculado pela TV Educativa do Rio de Janeiro, retransmitido em todo o país e com versão radiofônica provavelmente conferiam um alento para os telespectado- res. Isto sobretudo com a súplica à “salvação em Cristo” alicerçada na narrativa fundamentalista e individualista que a normatiza. Foi também por meio da Tv que se projetaram outros líderes como R R Soares, e Edir Macedo, que na década seguinte contribuiriam para o despontar da busca de um novo adepto: as propos- tas de cura e de prosperidade passariam incorporar jovens de classe média. A partir dos anos 1990 veio a expansão do campo neopentecostal no Brasil, inclusive com capilaridade internacional, que pode ser medida pela rápida aqui- sição de rádios, jornais e canais e redes de TV, com a massificação de programas nos canais laicos, e a crescente presença nos espaços públicos, tanto os destinados ao lazer à cultura (praças, cinemas, teatros, estádios de futebol etc) como aqueles de arena do exercício do Poder Público (criação de uma “bancada evangélica” no Congresso Nacional e ampliação do número de deputados e vereadores nas unida- des federativas. De acordo com os dados disponíveis no IBGE (2010)1, os evangé- licos somam 42,3 milhões de fiéis, ou 22,2% da população brasileira. Percebe-se claramente que todo esse investimento germinou resultados muito satisfatórios. O pentecostalismo nasceu em fins do século XIX nos EUA, expandin- do-se para outros continentes, como já citei acima, influenciando, no Brasil, a criação da pioneira Assembleia de Deus. O movimento neopentecostal se inicia no Brasil nos anos 1970, período de criação da também pioneira Igreja Universal do Reino de Deus2, precedente à Igreja Internacional da Graça, Igreja Mundial do Poder de Deus e outras.

1 Cf. IBGE, 2010. Disponível em: https://censo2010.ibge.gov.br/apps/atlas/pdf/Pag_203_Religi%C3%A3o_Evang_miss%- C3%A3o_Evang_pentecostal_Evang_nao%20determinada_Diversidade%20cultural.pdf Acesso em 5 out 2019. 2 Lembro-me perfeitamente de ter avistado várias vezes o líder da IURD, Edir Macedo, em trajes sempre muito modestos, circulando na primeira sede da Igreja, na rua da Abolição, bairro de mesmo nome, um subúrbio da capital do Rio de Janeiro. 308 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Basicamente pode-se dizer, acompanhando a pesquisa de Gomes (2011) retratada no livro A era das catedrais: a autenticidade em exibição, que as diferenças mais perceptíveis entre um e outro escopo estaria na ênfase dada ao culto. A ênfase na “palavra de Deus”, com dedicação ao estudo e ensino, na flexibilidade da pregação, na exploração dos dons espirituais dos fiéis e na liberdade do espírito santo caberia às pentecostais tradicionais, enquanto que as neopentecostais enfatizariam o milagre, a teologia da prosperidade e focariam, mais do que as tradicionais, na arrecadação. Pedagogia e afrocentralidade Voltando à experiência do movimento negro junto aos terreiros nos anos 1980/90, de acordo com os militantes que se organizaram em torno do projeto Tradição dos Orixás, havia àquela altura vários episódios conhecidos de pes- soas que deixavam a sua religião herdada e se convertiam para o campo evan- gélico, tornando-se seus novos fiéis. Esses acontecimentos, no entanto, não foram os mais significativos para a decisão do grupo de estabelecer contatos mais amiúdes com lideranças religiosas, nos terreiros. A principal motivação foi convencê-las de que era necessário denunciar os ataques do fundamentalis- mo neopentecostal e salvaguardar os terreiros como patrimônio afro-brasileiro. Realizado o prognóstico oracular pela Iyalorixa Meninazinha do Ile Omolu Oxun, localizado em São João de Meriti, para que o Tradição dos Orixas progredisse, o grupo passou a visitar e mapear terreiros na Baixada Fluminense. Alguns desses terreiros foram pouco a pouco se tornando pontos de referência para reuniões do grupo de militantes. Nessas reuniões planeja- vam-se ações de salvaguarda, que incluíam desde denúncias a órgãos do Po- der Público, por meio do encaminhamento de requerimentos e de audiências realizadas com representantes dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciá- rio, até o “trabalho de conscientização”. Fruto inicial desse “trabalho de conscientização” foi a criação da Comis- são Executiva dos Encontros Regionais da Tradição dos Orixas, simplificada- mente denominada de “A Comissão”. Esta tinha como incumbência principal a definição das diretrizes a serem seguidas para a realização dos 10 Encontros Regionais, organizados em terreiros, a começar pelo Ilê de Omolu e Oxum, e o I Encontro da Tradição dos Orixás, realizado na Universidade Federal Flu- minense no ano do Centenário da Abolição. Nos três dias deste Encontro cir- cularam pouco mais de 2.000 inscritos de diferentes unidades da federação, contando com a presença de reconhecidas lideranças de outras esferas das lutas sociais a propósito do sindicalista e ambientalista Chico Mendes.

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É importante sobrelevar que as reuniões nos terreiros, e também os Encon- tros, representaram um dado novo, para o qual chamo a atenção, no que refere à criação de um ambiente de aprendizado tanto do movimento negro como das comunidades dos terreiros. Os dois segmentos foram aos poucos gerando uma interrelação nas esferas do político e do mítico. A cada reunião ou Encontro ia se ampliando essa interrelação, que acabava por estabelecer desafios para o alcance do que se tinha como objetivo comum. Militantes do movimento negro se viam impelidos a rever o paradigma da luta política que enxergava os Terreiros como patrimônio, mas não como espaços de aprendizado para o enfrentamento do racis- mo; iniciados na tradição se viam na condição não mais tão somente de zeladores de Axe, mas também no papel de autoridades civilizatórias. Nessa aliança, a militância atraída pelo trabalho envolvente do Tradição dos Orixás trouxe para o novo ambiente de “conscientização política” a literatura que lhe servia de instrumento de análise, planejamento, organização e execução de po- líticas. Neste particular, havia um embate teórico considerável entre os intelectuais que se ocupavam de estudar teorias revolucionárias, do leito marxista, e o grupo percursor da ação nos terreiros, já mais centrado na literatura que permitia a refle- xão mais aprofundada dos fundamentos ali praticados. Lia-se autores como Marco Aurélio Luz, Juana Elbein dos Santos, Raul Lodi, Roger Bastide entre outros. O saldo desse embate teórico teve como resultado o aquecimento do debate intelectual, abarcando indivíduos que ainda não conheciam esses entremeios, e, por conseguinte, a melhor fluidez no pensamento político e na formulação de narrativas para a valorização dos terreiros como instituição de direitos. Assim, é provável que o Projeto Tradição dos Orixás tenha cumprido as suas finalidades, alterando significativamente as percepções internas dos/as adeptos/as, no sentido da sua autoestima, bem como as percepções externas, no sentido de demonstrar a importância social e política dos terreiros para a sociedade brasileira. Últimas considerações Pode-se afirmar que com o Tradição dos Orixas a tradição afrocêntrica ganhou visibilidade em uma sociedade onde a tradição eurocêntrica é preva- lecente na memória oficial. Potencializou o papel cultural dos cultos afros, exortando fiéis a se explicitarem na cena pública e assumir o combate ao racismo religioso, ou ao que se convencionou mais recentemente qualificar como “intolerância religiosa”. Em encontro realizado no ano de 2016 pelos militantes remanescentes do Tradição dos Orixás nesses mais de 30 anos, algo pesou na avaliação da experiência recontada por meio de suas memórias.

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Ensina que

quando se descobre uma certa e possível especificidade do político, percebe-se também que essa especificidade não foi suficiente para proibir a presença do pedagógico nela. Quando se descobre por sua vez a especificidade do pedagógico, nota-se que não lhe é possível proibir a entrada do político (FREIRE; GADOTTI; GUIMARÃES, 1995 p.25).

Então, o que pesou na avaliação do grupo é que é necessário um ajuste fundamental no que se desdobrou daquela experiência: o construto político da ação não foi o bastante para o avanço pedagógico que se supunha haver alcança- do. De fato, a aliança tramada naquele tempo criou raízes que parecem imprová- veis retroceder. Militantes do movimento negro se tornaram autoridades civiliza- tórias nos terreiros, e nestes se viu soerguerem novas lideranças políticas. E de ambos os lados saíram novos intelectuais creditados na comunidade acadêmica. Entretanto, no olhar desse grupo, os Terreiros não se constituíram em efetivos e sistemáticos lócus pedagógicos de educação afrocentrada. , psiquiatra martiniquense, indica no seu clássico Os Con- denados da Terra que o esgotamento da ideologia do racismo exige uma rea- ção atualizada com a evolução dos meios utilizados para a sua perpetuação. Não basta, portanto, ter consciência de que se é vitimado pelo racismo e de que é necessário combater os racistas. Mais que a iniciativa individual ou coletiva de denunciar e exigir ser tolerado/a ou aceito/a, o grupo aqui referido acredita que é preciso descontextualizar o racismo para encontrar o que de fato o torna factível na sua duração. A partir de 2003, com a configuração de um novo caráter do Estado republicano no Brasil, mais afeito aos interesses dos setores social e cultural- mente marginalizados, o universo cultural religioso de matriz africana pas- sou a ter reconhecimento, tornando se objeto de políticas públicas efetivadas pelas instituições do Estado nacional. Até 2014 o Estado pautou a equidade étnico-racial em nossa sociedade na observância das diferentes contribuições civilizatórias que estruturam as relações entre diferentes. Todavia, o que se assisti exatamente no momento que vivemos é o re- crudescimento dos assassinatos que vitimizam sobretudo mulheres pretas e jovens pretas e pretos, com a autorização indireta ou esquivas do Estado. E o que parece ser a asseveração do sucesso questionável do “trabalho de cons- cientização” nos e com os terreiros é o fato de que parte significativa do “povo do santo” desfilou e ainda desfila apoios nas redes sociais ao atual projeto de poder governamental, que degola as conquistas até há pouco comemoradas. 311 Edelamare Melo (Organizadora)

Talvez os escritos de Fanon amparem as nossas reflexões sobre esse efeito con- trário não esperado pelo Tradição dos Orixás. Quem sabe a inoculação da subalter- nidade e do servilismo continue a ser a arma de guerra de dominação do colonizador, superior à espada e ao canhão, hábil em extrair do colonizado a sua dignidade humana, o seu sentimento de pertencer a uma história própria, a uma cultura própria, a uma tradição própria, enfim, a uma matriz civilizatória estruturada em valores próprios. Referências Bibliográficas Botelho, Denise; Nascimento, Wanderson Flor do. Educação e religiosidades afro-brasilei- ras: a experiência dos candomblés. In: Participação: a revista do decanato de extensão da Universidade de Brasília. Brasília: UnB, 2010, vol. 17, pp. 74-82. Fanon, F. (1968). Os Condenados da Terra. Rio de Janeiro, RJ: Editora Civilização Brasileira. Freire, Paulo; Gadotti, Moacir; Guimarães, Sérgio. Pedagogia: diálogo e conflito, 4. ed. – São Paulo: Cortez, 1995. Gomes, Edlaine de Campos. A era das catedrais: a autenticidade em exibição. Uma etnogra- fia. Rio de Janeiro: Garamond, 2011, 268pp. Lody, Raul. O povo do santo: religião, história e cultura dos orixás, voduns, inquices e cabo- clos. 2ª ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2006 Oliveira, L. C.; Gomes, E. C. Cultura, Memória e Poder: diálogos interdisciplinares. 1. ed. Rio de Janeiro: EDUERJ/FAPERJ, 2013. v. 01. 280p. Oliveira, L. C.; Gomes, E. C. O Tradição dos Orixás: valores civilizatórios afrocentrados. 1. ed. Rio de Rio de Janeiro: Mar de Ideias/IPEAFRO, 2019. v. 1. 204p. Paoli, Maria Célia. Memória, história e cidadania: o direito ao passado. In: São Paulo (ci- dade). Secretaria Municipal de Cultura. Departamento do Patrimônio Histórico. O direito à memória: patrimônio histórico e cidadania. São Paulo: DPH, 1992. p.25-28.

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DEPOIMENTO

Adna dos Santos (Mãe Bahiana)

Adna dos Santos, mais conhecida como Mãe Baiana, dirige o Terreiro de Candomblé Ylê Axé Oyá Bagan, localizado no Núcleo Rural Tamanduá, na Serrinha do Paranoá. O terreiro ficou conhecido por ter sido alvo de um incêndio criminoso em 2015, uma semana depois do Dia do Consciência Negra. Felizmente, o espaço foi reinaugurado pouco menos de um ano depois. Radicada em Brasília desde 1982, Mãe Baiana luta em prol da liberdade religiosa e da emancipação do povo afro-brasileiro.

O Racismo está na estrutura da sociedade. O povo negro ainda é marcado pelos efeitos do período colonial que ainda hoje impede que o povo negro tenha uma vida digna sem ter que resistir a todo tempo. Quando falamos dos efeitos do período colonial na vida da mulher negra, a marca é ainda mais evidente. Precisamos usar todos os lugares de fala que conquistamos para refletir sobre onde as mulheres negras estiveram em toda a sua construção. As mulheres negras ao longo da história, exerceram um duro papel enquanto trabalhadoras intermiten- tes, que labutaram sob o chicote de seus senhores, sendo estupradas, criando filhos que não eram seus e vendo os seus próprios serem vendidos como mercadorias. Para sobreviver a essa realidade violenta exigiu que fosse nutrida uma Força de sobrevivência, resistência que é transmitida por gerações, carregan- do um legado duro de perseverança, autossuficiência tenacidade e resistência. Diante da opressão histórica sofrida pelas mulheres, as mulheres negras sofrem uma opressão ainda maior devido a sua cor e a sua religião. Dentro do candomblé, como em outras religiões, as mulheres também historicamente lutam por uma participação mais efetiva. Como tantas outras expressões negras, as religiões afro-brasileiras são alvo de discriminação e de forte preconceito. Diariamente são noticiados ca- sos de intolerância religiosa que resultam em incêndios de casas, invasões e destruições de espaços sagrados. O candomblé resiste, principalmente nas periferias brasileiras, onde a maioria da população é negra e mestiça. Ele leva consigo uma especificida- de um tanto curiosa, são as mulheres, negras, que lideram os Ilês, são elas

315 Edelamare Melo (Organizadora) as referências religiosas, e por vezes políticas de suas comunidades. Essas Mulheres corajosas enfrentam o racismo religioso, e lidam com tantos ou- tros desafios impostos à mulher negra de terreiro. As responsabilidades com o Ilê, com os filhos e com a militância, o momento para cuidar dela mesma não existe, apenas se sobrar tempo, demonstram uma generosidade sem igual porque dedicam seu tempo, seu amor à sua missão. Foram as mulheres responsáveis pela formação das primeiras casas de candomblé no Brasil. Ocupando até hoje na maioria dos ilês, o mais alto posto na hierarquia do candomblé e foi dessa liberdade conquistada, e de suas vivências nos espaços públicos que as mulheres negras exerceram de liderança, por vezes nem experimentadas por homens. As religiões afro-brasileiras se transformaram em espaços de resistên- cia, preservação, empoderamento e libertação da mulher negra, por meio do conhecimento, constituído e incorporado, valorizando o arcabouço de saberes de cada uma delas, enquanto repertório para a formação da comunidade, res- peitando os conhecimentos ancestrais. No espaço dos terreiros as mulheres tem obtido forças para resistir a esse sistema que em sua estrutura impera o Racismo de todas as formas.

316 Mãe Bahiana diante do Incêndio do seu Terreiro Ylê Axé Oyá Bagan, em Brasília, em 27.11.2015. O fogo começou por volta das 5h30 do dia 27.5.2015 e destruiu o barracão da casa. Cinco pessoas dormiam na casa, mas ninguém ficou ferido. Depoimento de Mãe Bahiana: ““Eu levantei e o fogo já estava muito alto, tomando conta de tudo. Como estou arrumando tudo, lá dentro tinha muita louça, esteiras, as roupas dos santos, mas não tinha velas acesas porque eu coloquei em outro local”, disse ela.1

1 Notícia disponível em http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2015-11/terreiro-de-candomble-e-incendia- do-no-paranoa Edelamare Melo (Organizadora)

318 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

UNIVERSALIZAÇÃO DA NORMA MORAL ATRAVÉS DA REGRA JURÍDICA: a disciplina do racismo e intolerância religiosa pelo direito

Maria Auxiliadora Minahim1

1. Diferença e inclusão numa sociedade universalista Têm sido usuais há algumas décadas, declarações de respeito às dife- renças existentes entre os grupos humanos e a conclamação para aceitação dessa diversidade como recurso capaz de dar efetividade as direitos humanos e garantir a paz. Ocorre que, inobstante os discursos e tentativas legais de promover a inclusão de todos em uma sociedade pacífica e solidária, a discri- minação e os crimes de ódio ainda assombram por sua insubsistência. O foco desse trabalho reside na análise da efetividade da legislação nacional e estrangeira na prevenção dos crimes resultantes de preconceito de “raça, cor, etnia, religião e procedência nacional”, incluindo, hoje, a ho- mofobia. Tem-se em vista a possibilidade de instalação do multiculturalismo através da regra jurídica com o apoio da norma moral. Entende-se que o racismo, a exemplo de outras práticas discriminatórias, exercidas em razão de atributos externos, de costumes e de valores distintos des- preza a unidade da espécie humana, que partilha os mesmos atributos e angústias diante da finitude da vida. Podemos ser surpreendentemente diferentes, mas no fundo de nós existe o mesmo equivalente moral que traduzimos como dignidade humana, cuja concretização exige atenção constante. O reconhecimento da natu- reza universal da espécie depende, sobretudo, da aceitação mútua e do desenvol- vimento de relações simétricas entre as pessoas, independentemente da compre- ensão do outro como ser diferente daquele que o percebe. Os trabalhos de Lévinas e Paul Ricouer sobre a ética da alteridade podem ser um caminho que permita a aproximação do outro sem destruir sua identidade, ou seja, reconhecendo suas diferenças. É nessa senda da pluralidade que, como diz Ma- ria do Céu Patrão Neves (2017, p.83), se pode preservar cada pessoa, complemen- tando-se reciprocamente e, assim, superar a dicotomia sem suprimir a diversidade. No dizer de Habermas (2004, p.78), as diferenças pessoais, assim como o fato de cada pessoa ser singular e insubstituível, devem ser inclusivas, con-

1 Professora Titular de Direito Penal da Faculdade de Direito da UFBa. Mestre e Doutora em Direito Penal. 319 Edelamare Melo (Organizadora) cretizando-se no respeito às situações e aos projetos individuais de vida de todos os indivíduos. Essa atitude revela uma moral que “entrecruza individu- ação a uma universalização”. Afinal, pode-se indagar, retirando de cada um de nós a cor, a instrução, a idade, a nacionalidade, a profissão, restará sempre um mesmo núcleo co- mum à espécie frágil, que se realiza no outro e dele depende por sua inerente vulnerabilidade. O novo chamamento que se faz a cada um na construção de uma so- ciedade plural e igualitária convoca ao exercício da alteridade no sentido de estabelecer um compromisso com a reciprocidade e, como afirma Maria do Céu (2017, p.84), com a primordialidade dos deveres em relação aos direitos (afinal o outro antecede ao eu). Ademais, embora o estabelecimento de direi- tos tenha promovido uma sociedade mais equitativa, a autora lembra que é necessária a instauração de uma “proporcionalidade indireta entre deveres e direito”, o que pode mitigar o individualismo da sociedade contemporânea. A instalação da ética do outro, enfim, permitiria a concretização dos con- teúdos que vêm sendo afirmados nas Declarações Universais e legislações nacionais sobre os Direitos Humanos. 2. O racismo no mundo dos fenômenos Precede, à análise sobre a função e eficiência das norma moral e da norma jurídica, um exame sobre alguns dos termos que são objeto da lei, a exemplo de raça e racismo e seu consequente discriminatório. Afinal, o que se proíbe no mundo relacional? O racismo é identificado como qualquer ação, prática ou crença moti- vada pela ideologia que os humanos podem ser divididos em entidades bio- lógicas distintas e separadas designadas raça. Essa ideologia sustenta que há uma ligação causal entre características físicas e traços da personalidade, intelecto, moralidade e outros predicados culturais e comportamentais. Algu- mas raças seriam superiores às outras por suas características inatas. 2.1. Interesses e crenças que sustentam o racismo Há um conjunto de ideias distintas que pretendem justificar o racismo. Alguns afirmam que a divisão dos seres humanos em raças resulta de um pro- cesso de conteúdo meramente político-social do qual se destaca o interesse econômico na subjugação. Autores (ÉTIENNE BALIBAR, 2005, p. 11) defendem que esse fe- nômeno se revela através de práticas distintas, mas que, apesar das mani-

320 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. festações assumirem diversas formas (afirmar que uma determinada cultura é inferior, que certos grupos são inassimiláveis aos modelos institucionais de um estado ou que há muitos imigrantes de um determinado país ou região), há um núcleo comum a todas elas. Tal discurso tende a segregar, estigmatizar, ameaçar grupos humanos, engendrando a opressão, a hostilidade e descon- fiança mútuas. Nem todo ódio, nem toda violência, evidentemente constitui racismo. O termo se refere a fato que tem suas especificidades, não devendo ser tomado como resultado de pura estipulação social, visto que é caracte- rizado sempre por um paradigma de exclusão. Outros pesquisadores falam de diversas formas de manifestação do fenômeno racismo cultural, racismo diferencialista e até mesmo de racismo sem raça, a exemplo de Pierre-André Taguieff (2010, Passim) para ressaltar que há graves discriminações cujo nú- cleo não é biológico, mas que reside na diferença cultural. Étienne Balibar (2005, p. 13), filósofo francês, afirma que tal ideologia é um dado permanente cujo fortalecmento em certos períodos revela a inca- pacidade da humanidade de superar estruturas arcaicas da mentalidade cole- tiva. . Uma dessas formas de anacronia diz respeito ao medo da diferença e à angústia diante do outro que, por dissimilaridade, negaria o próprio eu. Não é incomum à convivência humana a dificuldade em aceitar a diversidade, o diferente perante o igual, como bem situa Maria do Céu Patrão Neves David Hume já afirmava que, embora não sejam as únicas, a semelhança e a con- tiguidade são duas características que mais contribuem expressivamente para a empatia. A preocupação com a forma que represente a similitude é tão conhecida que está presente até mesmo na criação de robôs aos quais se pretende dotar de aparência humana com o fim de facilitar a interação com as pessoas. Estudos realizados reve- lam que o fenômeno do antropomorfismo faz com que os humanos atribuam qualida- des de sua espécie a tais máquinas. A razão para que isso ocorra, segundo pesquisas, decorre da geração de uma forma de empatia, envolvendo uma percepção imaginada. Promover o sentimento contrário – extinguir o diferente -, também tem sido utilizado pela humanidade como recurso para tornar mais fácil a destrui- ção do inimigo, do indesejado. Dave Grossman (2009, Passim) assegura que é muito mais fácil matar alguém, se esse alguém tem uma aparência distinta da sua. Assim, se for possível convencer às tropas que o inimigo não é real- mente humano, mas sim uma forma inferior de vida sua destruição tende a ser facilitada. Os humanos, acrescenta, são essencialmente tribais e tendem a temer e a desvalorizar aqueles que não são membros da mesma “tribo”. Tal desvalorização desempenhou um papel importante na economia de alguns países na medida em que às raças consideradas inferiores eram atribui-

321 Edelamare Melo (Organizadora) das funções menos nobres, como o trabalho extenuante na lavoura de cana e de café no Brasil e nas plantatações de tabaco e algodão na América do Norte. As funções ligadas ao poder político e econômico, porém, eram reservadas para a raça dominante que gozava da proteção e garantias jurídicas. James O. Horton (s/p, s/d) pondera, aliás que a própria vinda de Colombo para a América era parte de uma aventura capitalista. Em verdade, lembra o autor, o descobridor não veio para colonizar, mas sim para encontrar uma rota mais curta e lucrativa para a extração de riquezas do novo continente. Da mesma forma, na América espanhola, a exploração e os saques de ouro e prata tornaram a Espanha o pais mais rico da Europa ao tempo em que se dizimavam tribos indígenas. O racismo, segundo o mesmo autor, foi o núlceo forte da construção do império das potências europeias no século dezoiito, com base numa ideia criada a partir da exacerbação das diferenças entre os europeus, os indianos e os africanos. Foi o racismo e a suposta inferioridade de alguns grupos que serviram de núcleo ao pensamento do nacional-socialismo e às ações mais abjetas que a humanidade testemunhou na modernidade. Muitas experiências feitas em prisioneiros em campos de concentração – utilizadas hoje pela medicina - são o resultado de ações dos nazis, a exemplo de agentes neurotóxicos, a cloquina antipalúdica, assim como das pesquisas sobre hipotermia, hipóxia, desidratação e diversas outras 2. 2.2. Sobre a expressão racismo e algumas manifestações históricas O fenômeno que hoje se designa como racismo data de muitos anos, pre- cedendo de há muito o surgimento da expressão racismo. De acordo ainda com Balibar (op. Cit, s/p) a expressão deriva de raça, termo em si mesmo con- troverso. Os primeiros usos feitos do termo datam dos anos trinta por autores alemães que fugiram de perseguições nazistas e se comunicavam em inglês3. Após a derrota dos alemães na Primeira Grande Guerra, o partido na- zista – vitorioso em 1933 - passou a explorar a arraigada postura antissemita no país e a desenvolver práticas sistemáticas de discriminação, perseguição e homicídios dos judeus não só na Alemanha, (AUDREY SMEDLE s/d), mas também nos territórios ocupados. Restam, todavia incertezas sobre o conteúdo da expressão como bem se revelou na Conferência em Durban na África do Sul sob os auspícios da Unesco

2 Es ético utilizar los descubrimientos científicos nazis para salvar vidas? Frank Swaine BBC Future Disponível: https://www.bbc.com/mundo/vert-fut-49240265. Acesso em: 17 ago. 2019 3 De acordo com Robert Miles. London, Routledge, 1989, p. 158, em 1928, na obra Race and Civilization, Friedrich Hertz ainda se valia da expressão ódio racial, mas, em 1933 Magnus Hirschfeld usou o termo racismo, distinguin- do-o de xenofobia. 322 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. em 2001 que tinha como objetivo definir uma plataforma de atuação contra os preconceitos de raça. No entanto, algumas delegações discutiram a assimilação do sionismo a uma ideologia racista, outros discutiram antissemitismo como uma forma moderna de antissionismo e outras delegações, ainda, reivindicaram para os negros as mesmas indenizações devidas ao judeus pela ação genocida dos na- zistas. Procurou-se também incluir a discriminação de castas praticada na Índia como manifestação de racismo. No entender acertado de Balibar (op. Cit, s/p), outros fenômenos se intercambiam com a segregação por motivo de raça, a exem- plo de nacionalismo, imperialismo e intolerância religiosa. A dificuldade de estabelecimento de um sentido comum para o ter- mo raça, revela que ele não passa, como querem muitos, de mera construção social e politica e, portanto, não é assunto relacionado à biologia. (Brian Duignan, 2019, s/p). Esta revelação tornou-se possível após os avanços pro- porcionados pelo sequenciamento do genoma humano quando se constatou que não há correlação entre a variação genômica humana, a ancestralidade biogeográfica e a aparência física das pessoas. As leis norte americanas são um perfeito exemplo dessa afirmação porque cada estado define quem é a pessoa negra valendo-se de diferentes critérios: na Virginia um afro descente deve ter um sexto de ancestralidade africana, na Flórida, um oitavo e, no Alabama, basta que se tenha um ancestral africano. Brian Duignan, op. cit., s/p Lévi-Strauss (1999. p. 98) a propósito da crença evolucionista, opinião afim do racismo biológico, afirma que ela ocorre, apenas porque o Ocidente vê a si mesmo como finalidade do desenvolvimento humano, e as demais cul- turas são avaliadas tendo como parâmetro seus próprios valores. Apesar de todas essas constatações, aquele que tem a aparência e o ethos distinto do que tem o poder, tem sido excluído e humilhado a despeito de todos os discursos sobre os direitos humanos. Há uma suposição de que basta a existência de leis que estabeleçam a igualdade entre todos para a ins- talação do universalismo da espécie. As normas jurídicas funcionam, de certa forma, como um álibi de intenções, que a prática desconfigura, na medida em que a discriminação e o preconceito predominam sobre as leis. 3. Direito e racismo A Constituição de Independência da Índia dispôs sobre a abolição da ‘intocabilidade’ e sua incriminação e também sobre discriminações positi- vas em favor das Scheduled Castes e das Scheduled Tribes (Scs & STs) que constituíam cerca de 23% da população estratificada da Índia. O sistema foi abolido legalmente em 1950, mas há resistência às tentativas de programas

323 Edelamare Melo (Organizadora) inclusivos do governo, como o da criação de cotas na universidade. (SWATI MATHUR E SUBODH GHILDIYAL, 2018). Nos Estados Unidos, o movimento em favor dos direitos civis mitigou o problema da segregação racial, revogando, por exemplo, as leis que limi- tavam o direito de voto das minorias. A despeito da Constituição e de outras providências legais, todavia as crenças e comportamentos de muitos america- nos permanecem racistas. As raças consideras inferiores são frequentemente feitas de bodes expiatórios em investigações sobre autoria de crimes. Pode-se afirmar que, a exemplo da Inglaterra, os Bancos de Dados Genéticos são, ba- sicamente, constituídos de DNA de imigrantes e minorias. Não bastaram os dados científicos nem declarações internacionais como manifesto de intenções em favor da igualdade de todos. Muitos países passaram a criminalizar as práticas discriminatórias em razão de diferenças. Na Costa Rica, busca-se aprovar Projeto de Lei Marco para prevenir e sancionar todas as formas de Discriminação, Racismo e Intolerância. O pro- jeto introduz una série de reformas no Código Penal, tendentes a tipificar os delitos de ódio quando se trata de homicídios ou lesões. Em 1972, foram criados diversos tipos penais na França para punir prá- ticas discriminatórias, como a recusa em alugar propriedade ou em contratar por motivos de raça ou religião. Não obstante, o país da igualdade, liberdade e fraternidade apresenta alto índice de intolerância longitudinal. Há um expressivo índice de rejeição a algumas etnias e religiões, com os seguintes números: 34 para os romenos ou ciganos, contra 61, para os muçulmanos e 78 para os judeus4. No Brasil, a Constituição de 1988 estabelece, no art. 5º, XLII que o ra- cismo é crime inafiançável e imprescritível, o que revela a intensidade da res- posta que o Estado reservou para a prática das ações que constituem racismo. Em 5 de janeiro de 1989, foi aprovada a Lei Nº 7.716 que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor5. A impressão de reprovação é ainda maior quando se sabe que o Supremo Tribunal Federal equiparou aos crimes previstos na Lei 7716/89 a injuria por conotação racial (artigo 140 §3º, do Código Penal) tornando o crime imprescritível e inafiançável. Valeu-se o Tribunal de interpretação já feita pelo STJ, que reconheceu não ser taxativo o rol dos crimes previstos na Lei nº 7.716/1989.

4 Vale lembrar que o índice varia de 0 a 100. (CNCDH 2017, s/p) conforme Les Essentiels du Rapport sur la lut- te contre le racisme 2017. Disponível em: Dihttps://www.cncdh.fr/sites/default/files/essentiels_du_rapport_racis- me_2017_-pour_impression_ok_1.pdf Acesso 15 set, 2019. 5 Posteriormente, foram introduzidas alterações pelas Leis n nº 9.459 de 13 de maio de 1997 e 12.288 de 2010, ampliando as hipóteses de incriminação. 324 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Ainda assim, as estatísticas de cor ou raça produzidas pelo IBGE mos- tram que, em nosso país, não há igualdade salarial entre os diversos grupos. Os brancos têm os maiores salários, sendo que a concentração dos menores salários (40%) ocorre entre as mulheres, os pretos e pardos e os jovens dos grupos vulneráveis. Da mesma forma, ocorre, ainda, uma expressiva desi- gualdade de acesso ao ensino superior. Quase a totalidade (98,8%) dos pre- sos em flagrante em Salvador são negros e pobres, ressalta pesquisa (midia// http.4p. com). Por sua vez, as agressões e destruições de imagens e símbolos dos terreiros de candomblé desnudam um sentimento de ódio e ignorância incompatível com os valores republicanos que se pretendem instalados. Os dados são apresentados como uma contraposição a afirmações tão fortes como a de Boaventura de Sousa Santos (2003, p. 56) quando afirma que, “(...) temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferio- riza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos desca- racteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades”. Apesar de se saber que o racismo é cientificamente falso, moralmente censurável, socialmente injusto e legalmente proibido, a discriminação per- siste como desafio. 4. Função das leis As leis não podem mudar as pessoas, mas têm um papel a cumprir na transformação de práticas não desejadas. Elas têm uma função importante na contra motivação da realização das condutas proibidas, revelando poder educativo, na medida em que expressam censura a comportamentos tão re- provados que chegam a ser previstos como crimes. É possível objetar que o direito não foi concebido para fins didáticos, sobretudo o direito penal, o que exacerbaria sua função simbólica. A consequência do excesso de simbolismo, por sua vez, pode implicar na falta de confiança da sociedade no sistema jurí- dico e, consequentemente, no seu enfraquecimento. Resultaria, dessa forma, em algumas leis que são feitas para valer e outras que são promulgadas para aplacar a expectativa de alguns grupos. O importante trabalho de Marcelo Neves (1994, p.32) sobre constitucio- nalização simbólica oferece elementos que permitem a identificação de normas destituídas de eficácia e de efetividade quando correlacionadas com um ambiente político-social. O cerne da legislação simbólica, todavia reside em sua finalidade já que serve a “políticas de caráter não especificamente normativo-jurídico”, (....) preponderando, sobre o jurídico, o caráter político-ideológico.

325 Edelamare Melo (Organizadora)

No caso específico da legislação contra descriminação no Brasil – e aparentemente em muitos outros países - a legislação álibi pretende dar a apa- rência de solução adequada a problemas sociais graves. Promete ser a respos- ta de um Estado atento a questões sociais relevantes, embora, como assevera Marcelo Neves (1994, pp. 38-39), essa realidade não possa ser alterada pela lei em razão de outras variáveis não normativas presentes no processo. Não se ignora que as leis, especialmente as leis penais, estão vinculadas de certa forma a efeitos simbólicos, porém deve-se estar alerto para o fato que o fenômeno do direito simbólico, se revela por uma oposição entre realidade e aparência, entre manifesto e latente, entre o que é verdadeiramente querido e o que é aplicado: “«Simbólico» se associa com engano, tanto no sentido transitivo como reflexivo” (HASSEMER, 1995, p. 28). Ocorre que somos educados a partir de uma perspectiva racista e cons- truímos instituições nas quais o preconceito está presente disfarçado em ra- cionalismos, mas quase sempre mantido fora do alcance dos olhares ou do conhecimento de outrem. Os órgãos de aplicação do direito, porém deixam escapar, talvez inconscientemente, pelo uso de próprios instrumentos ofereci- dos pelo direito, a indiferença diante do tratamento injusto dispensado àquele cuja aparência, costumes ou hábitos fundamentais são distintos. Ausência e não recebimento de denúncia, penas ínfimas e prescrição são recursos que revelam as estruturas arcaicas a que se refere Étienne Balibar, (supra) não superadas da mentalidade coletiva. 5. Considerações finais Retomam-se aqui as considerações já feitas no início desse trabalho, e à ideia de alteridade: ser o outro perante o igual que é distinto numa relação simétrica. O ideal da modernidade de emancipação do homem, sustentado pelos valores da liberdade, igualdade e fraternidade não se concretizou. Os massa- cres e extermínios, a crueldade e a exclusão, embora possam assumir formas distintas, são um recurso constante do dominador. O individualismo exa- cerbado é compreendido como forma de realização e de concretização da autonomia, o que fortalece a solidão e uma trajetória melancólica. Há uma fantasia de que cada um constitui um projeto livre de si mesmo, o que até pode incluir a aceitação do diferente enquanto não haja molestamento, ou seja, desde que “sua presença não seja intrusiva”. Dessa forma, se o outro se mantiver afastado, contido em seu próprio gueto social e cultural, sem amea- çar o sujeito hegemônico, é até possível ter o discurso da aceitação.

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O jogo de censura à discriminação torna mais difícil a realização do direito que se constrói, que se torna cada vez mais enfraquecido e puramente simbólico. Acolhe-se, por fim, com Lévinas e Ricouer que a ética da alteridade precede a qualquer esforço para a integração de todos em uma sociedade de iguais e que só será alcançado quando se tornar realidade a compreensão de que é na outra pessoa que o eu encontra seu verdadeiro sentido. Essa compre- ensão parece condicionar a instalação da sociedade fraterna e plural que as Leis e declarações demoram a conseguir. Referências Bibliográficas Azeredo S. Em: M. Ribeiro 2000. “Diversidade Racial, Étnica e Processos de Participação Política na América Latina”. http://www. presidencia.gov.br/seppir/ct/art_2.pdf. (1991).

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Foto do acervo do Terreiro Ylè Alábásé. Reprodução autorizada

328 Foto do acervo do Terreiro Ylè Alábásé. Reprodução autorizada Edelamare Melo (Organizadora)

330 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

O DIREITO PENAL DA IGUALDADE RACIAL, DA LIBERDADE RELIGIOSA E DO PATRIMÔNIO IMATERIAL DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS DE TERREIRO E DE QUILOMBO. A LEI 7716, E SUAS ALTERAÇÕES. PRECEDENTES E JURISPRUDÊNCIA DO STJ E DO STF1

Maria Auxiliadora Minahim2

Resumo O trabalho trata da discriminação racial no Brasil e da evolução do tra- tamento legislativo dado ao tema no Brasil, detendo-se na análise da Lei 7716 e das alterações que esta sofreu ao longo do tempo. Procura distinguir os tipos penais que se aproximam e interpretar seu alcance. Propõe reflexão sobre a extensão da legislação e sua correlação com o compromisso do estado brasi- leiro na afirmação da igualdade material. Palavras-chave: Ideais de Solidariedade, Discriminação Social, Direi- to Penal, Lei 7716. Ideais de fraternidade Por detrás das obrigações jurídicas de respeito ao outro em sua dignida- de, estão sem dúvida, os ideais de solidariedade. Os preconceitos que levam alguns a negar um espaço de convivência qualificado a todos resultam muitas vezes da recusa em aceitar as diferenças de etnia, crença ou ascendência que são distintos dos padrões tidos como ideais naquela sociedade específica. É importante convocar Maria do Céu Patrão Neves3 quando se trata de fa- lar da coexistência entre os seres humanos, e o destaque que a autora dá à questão da alteridade na relação entre as pessoas. Na linha do pensamento de Lévinas, a filosofa portuguesa, adverte para a importância do outro, igual ou diferente, na constituição de cada qual: nós nos fazemos, afirma, na relação com o outro. Nesse sentido, nem haveria como se falar em uma distinção absoluta entre o eu e o outro. Bom que se advirta que o conceito de outro não se refere a um outro especifico, mas a todos os outros.

1 Apresentação feita no Simpósio Racismo e Intolerância Religiosa, Procuradoria do Trabalho, Brasília, agosto de 2018. 2 Professora Titular de Direito Penal da Faculdade de Direito da UFBa. Mestre e Doutora em Direito Penal. 3 Alteridade e Direitos fundamentais: uma abordagem Ética versão de trabalho, conferencia proferida no I Congresso Internacional Direitos Fundamentais e Alteridade, Universidade Católica de Salvador. Disponível em: www.mpatraoneves.pt 331 Edelamare Melo (Organizadora)

A consciência de si, como conclui Bordin4 ao interpretar o filósofo fran- co-lituano, é o resultado da saída da própria individualidade da abertura para o outro. Ou, ainda, como diz Vaz5 o “homem se torna ele mesmo (ipse), na sua abertura constitutiva ao outro (alius vel aliud)”. Dessa forma, é exatamente na relação com o outro e com o que ele apre- senta de diferente que se pode alcançar outras dimensões além daquelas con- tidas no indivíduo, como se ele se tratasse apenas de um projeto de si mesmo. A busca pela convivência harmônica entre os diversos grupos humanos não é uma inquietação apenas da filosofia; ela tem sido objeto de preocupação de organizações internacionais e do Direito. Assim, em busca de assegurar a aproximação entre os diferentes, a Con- ferência Geral da UNESCO de 1995, conhecida como Declaração de Princípios sobre a Tolerância ressaltou o dever dos Estados membros de fomentar o respeito aos direitos humanos, “sem distinção fundada sobre a raça, o sexo, a língua, a origem nacional, a religião ou incapacidade e também combater a intolerância”6. A ideia de tolerância tem uma semelhança, uma aproximação, com a de alteridade, porque ela não significa indulgência, clemência ou misericórdia, ou uma atitude piedosa com o outro. Na verdade, representa a compreensão de to- dos os outros como iguais e interdependentes, sobretudo no que o outro me apre- senta de diferente, de desigual que merece ser respeitado exatamente como se encontra. Essa compreensão é necessária para uma sociedade plural e pacífica. O direito penal quer também participar da construção um mundo solidário, apesar de todos os equívocos e da violência com que costuma se abater sobre os indivíduos, sobretudo sobre os menos favorecidos. A pacificação social pela via da força parece contraditória, por isso, tem-se afirmado que a segurança, pela via penal, e a violência são “substancialmente a mesma coisa” afirma Zizek.7 Daí que se procure legitimar a intervenção penal pela proteção de bens jurídicos que são considerados essenciais para uma sociedade e pretender protegê-los contra ações de terceiros que possam lhes causar danos. O direito penal só se justifica, ao privar a liberdade de uma pessoa, na medida em que ele protege esses bens no interesse de todos – ao menos no plano teórico. Dentre estes, destacam-se aqueles bens que são o propósito da Lei 7.716/89 e do artigo 140 §3º do Código Penal, quais sejam: a honra subjetiva de uma pessoa, a dignidade e a igualdade substancial.

4 BORDIN, Luigi. Judaísmo e filosofia em Emmanuel Lévinas. À escuta de uma perene e antiga sabe-doria. UFRJ. Síntese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 25, n. 83, 1998, p. 555 5 VAZ, H. C. L. Antropologia Filosófica. Vol. II, São Paulo: Loyola, 2004, p. 144 6 Unesco. Declaração de Princípios sobre a Tolerância. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/ima- ges/0013/001315/131524porb.pdf. Acesso em: f 7 ZIZEK, Slavoj. A visão em paralaxe. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 17 332 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

1. A punição do racismo no brasil A ideia de proteger esses bens é muito antiga. Em Roma, já se consi- derava que as ofensas à dignidade humana atingiam a personalidade em seu tríplice aspecto: corpo, condição jurídica e honra. A preocupação antecipada dos romanos não impediu o mundo de testemunhar episódios escabrosos e uma prática cotidiana de desprezo pelas pessoas em razão da diferença de pele, religião ou origem. É possível afirmar que o racismo é uma ideologia que está sempre ligada ao colonialismo, à escravidão, ao totalitarismo políti- co, aos genocídios, aos crimes nazistas e aos regimes do apartheid. A punição do racismo é antiga no Brasil, porém, não tanto quanto deveria ter sido. Data mais exatamente de 1951 e consta da Lei conhecida como Afonso Arinos8, na qual foi considerada uma contravenção e, por isso mesmo, punida com penas de privação da liberdade de curta duração, variando de meses a um ano. A conduta consistia na prática de atos resultantes de preconceitos de raça ou de cor. Até chegarmos ao atual Estatuto da Igualdade Racial, Lei 12.288 de 2010, destinado a garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica. este país já testemunhou até mesmo penas para os escravos de natureza distinta daque- las destinadas aos homens livres. A Lei de 10 de junho de 1835, por exemplo. penalizava com morte sumária os escravos assassinos de seus senhores. No século passado, em 1963, ocorreu uma manifestação de caráter supra- nacional: a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial. Conclamou-se, nessa oportunidade, aos países a tomarem: “todas as medidas necessárias para eliminar rapidamente a discrimina- ção racial em todas as suas formas e manifestações, e a prevenir e combater doutrinas e práticas racistas e construir uma comunidade internacional livre de todas as formas de segregação racial e discriminação racial9”. (Adotada pela Resolução n.º 2.106-A da, em 21 de dezembro de 1965). Ainda com a lembrança do pesadelo de horrores da segunda guerra mundial, pretendeu-se, então, conclamar cada pessoa para a contemplação e respeito da diversidade e a possibilidade de enriquecimento recíproco propor- cionado pelas diferentes culturas.

8 Brasil, Presidência da República. Lei nº 1.390, de 3 de julho de 1951. Inclui entre as contravenções penais a prática de atos resultantes de preconceitos de raça ou de côr. Disponível em:https://www.jusbrasil.com.br/topi- cos/12138061/lei-n-1390-de-03-de-julho 9 UNESCO. Convenção da ONU sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial. Disponível em: unesdoc.unesco.org/images/0013/001393/139390por.pdf 333 Edelamare Melo (Organizadora)

No Brasil, a primeira Constituição a tratar do tema foi a de 1967 que já previa em seu artigo 150 §1: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção, de sexo, raça, trabalho, credo religioso e convicções políticas. O preconceito de raça será punido pela lei10” (BRASIL, 1967). É bem verdade, que a Constituição não se referiu ao Direito Penal como fez a carta magna que lhe sucedeu. A Constituição Federal de 198811, em seu art. 5º, inciso XLII, diz que: “A prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”. Com tal dispositivo, obrigou ao legislador ordinário a criar leis que punissem as ações que atentassem contra todas as formas de dis- criminação racial. Trata-se mandado de criminalização o que indica a reprovação pela ordem jurídica nacional de condutas atentatórias à igualdade entre as pessoas. A partir de então, houve uma preocupação crescente em criminalizar as condutas discriminatórias. Esse fato pode ser visto de três formas, de um lado como reflexo do repúdio da sociedade brasileira à distinção entre seres humanos e à consideração do outro ser inferior por ser diferente em suas características. De outro lado, a farta edição de leis pode também ser interpretada como ineficá- cia do direito para atingir os fins propostos na norma ou como incompetência do Estado brasileiro para fazer valer as proibições. Pode-se ainda interpretar o fato, como o uso puramente simbólico da lei para aplacar as aspirações de alguns gru- pos, sabendo-se de antemão de sua inefetividade para mudar o contexto social. 2. A legislação incriminadora no Brasil No Brasil, após a Convenção, foi aprovada a Lei Nº 7.716, de 5 de ja- neiro de 198912, que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. Posteriormente, foram introduzidas alterações pelas Leis n nº 9.459 de 13 de maio de 1997 e 12.288 de 2010. Esta última é conhecida, como já foi dito, como o Estatuto da Igualdade Racial. Ambas ampliaram o rol dos crimes constantes da Lei 7716 e aumen- taram a proteção contra a discriminação racial e religiosa. A Lei 945913 modifica o artigo 20 da Lei 7716 para nela incluir a expressão “discriminação, etnia, religião ou procedência nacional‎” e acrescenta parágrafo ao art. 140 do Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. A redação atual

10 BRASIL, 1967. Presidência da República Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos Constituição da República Federativa do Brasil De 1967. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao67.htm 11 Brasil, Presidência da República, Casa Civil, Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. www. planalto.gov.br 12 Brasil, Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos http://www.planalto.gov.br/cci- vil_03/LEIS/L7716.htm 13 Brasil, LEI 9459. Altera os arts. 1º e 20 da Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. www.planalto.gov.br/ccivil_03/ LEIS/L9459. 334 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. do artigo-Lei que dispõe sobre os crimes de racismo ficou como exposta: “Art. 1º: Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. Como se vê, o legislador fala em preconceito e discriminação, de forma que é importante distinguir uma expressão de outra. O preconceito é um senti- mento, ideia, opinião ou sentimento desfavorável formado sem conhecimento abalizado, ponderação ou razão. O preconceito racial consiste em sentimento, assimilado de forma acrítica em razão de desvios culturais ou “da generalização apressada ou imposta pelo meio, conduzindo geralmente à intolerância.”14 É possível afirmar que o preconceito não pode ser objeto de Lei, na medida em que esta não tem o poder, nem aptidão para mudar sentimentos, ou questões que dizem respeito à subjetividade da pessoa, a menos que estes se revelem em atos exteriores. O que a lei pode determinar é que alguém aja como se não tivesse tais afetos. A discriminação racial é o preconceito determinando atitudes, políticas, restringindo oportunidades e direitos no convívio social. A discriminação se concretiza no ato de estabelecer diferenças, de tratar de modo desigual às pessoas, em razão das suas características raciais, religiosas, atingindo o prin- cípio constitucional da igualdade. Há várias formas descritas na lei de manifestar racismo ou discrimi- nação. É importante destacar que algumas dessas condutas podem constituir outro crime ou, até mesmo, ser um indiferente penal. Para que sejam consi- deradas como um dos tipos da Lei 7716 e se a motivação for distinta daquela descrita nos artigos da lei, ou seja, se a ação não for praticada por discrimina- ção ou preconceito, pode não haver crime de racismo. Assim ocorre com o artigo quarto que contém o tipo cuja realização consiste em: “Negar ou obstar emprego em empresa privada . Pena: reclusão de dois a cinco anos”. Se o motivo da negativa for, por outra razão que não o racismo, a conduta será um indiferente penal. Da mesma forma acontece com seu parágrafo primeiro que comina pena idêntica àquele que: “por motivo de discriminação de raça ou de cor ou práticas resultantes do preconceito de descendência ou origem nacional ou étnica: I - deixar de conceder os equipamentos necessários ao empregado em igualdade de condi- ções com os demais trabalhadores”. Essa conduta, porém, pode vir a consistir um crime de perigo para a vida ou a saúde de outrem (artigo 132 do Código Penal Brasileiro) se a ação não houver

14 ANDREUCCI, Ricardo Antonio. Breves Considerações sobre Racismo e Intolerância Racial. http://www.revista- persona.com.ar/Persona70/70Andreucci.htm). 335 Edelamare Melo (Organizadora) sido fundada em preconceito. A pena, nesse caso, é muito mais baixa - três meses a um ano - porque a reprovação do comportamento é menor, embora aqui para a caracterização do delito, deva ter ocorrido um perigo concreto e demonstrado para a vida da vítima. Já o crime da Lei 7716 consumar-se-ia, aparentemente, com a simples abstenção da conduta: bastaria o ato de preterição do empregado para realizar o tipo. A redação do tipo não sugere, como no exemplo do Código Penal, que se trata de crime de perigo. Da recusa em fornecer os equipamentos podem resultar muitas consequências. É preciso registrar, todavia que, se antes mesmo que o empregado venha a realizar uma ação que possa causar danos ou perigo de dano a um bem jurídico de que seja portador, o equipamento lhe seja oferecido, não se deve cogitar de considerar a existência de crime. O bem jurídico, o valor tutelado na Lei é o direito à dignidade humana (art. 1º, III) e o direito à igualdade (art. 5º), ambos consignados na Constitui- ção de 1988. Outro dispositivo gerou certa complexidade na compreensão da Lei. Trata-se daquele introduzido pela Lei 9.459, a qual, além de inserir novos crimes na “Lei do Racismo”, também acresceu, ao artigo 140, do Código Pe- nal, o parágrafo terceiro, criando com isso a figura da injúria qualificada que recebeu a seguinte configuração típica: Art. 140 - Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro: [...... ] § 3º - Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião ou origem. Pena - reclusão de um a três anos e multa. Ocorre que, a mesma lei alterou o artigo 20 da Lei 7716 para acrescen- tar a seguinte conduta como sendo proibida com pena de reclusão de um a três anos e multa: “Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. O artigo 20 consiste em uma forma de crime de racismo que se realiza através de discriminação que diminua o valor de grupos relativamente a outros em razão de suas características antropológicas ou de sua cultura. Esse acréscimo obrigou que fosse feita a distinção entre o artigo 20 e o artigo 140 §3º do Código Penal já que ambos aparentemente se referem à mesma conduta. No entanto, a doutrina já assinala a diferença entre as duas figuras: a injúria racial contida no artigo 140, §3º, consiste em ofender a honra de alguém, pessoa determinada, se valendo de elementos referentes à raça, cor, etnia, religião ou origem; já o crime de racismo atinge uma coletividade indeterminada de indivíduos, implica conduta discriminatória a uma coletividade pelos motivos assinalados na Lei.

336 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

É importante repetir que todas as condutas previstas na Lei 7716 prati- cadas com a vontade de impor uma humilhação, um tratamento diferenciado em razão dos elementos nela descritos no artigo 1º, são formas de racismo e não apenas aquela descrita no artigo 20. A distinção para a qual se chamou atenção deve-se à semelhança, mas não identidade com a figura do artigo 140 §3º do Código Penal Brasileiro. A Lei refere-se também, no artigo 1º, à prática de discriminação em razão da procedência nacional. Pode-se entender que o dispositivo engloba pessoas de nacionalidade brasileira, mas que são filhas de estrangeiros. Isto porque, embora tenham nascido em território nacional, é possível que culti- vem laços com a comunidade de seus antepassados que podem ser objeto de tratamento desigual por terceiros. Assim, as colônias portuguesa, alemã, liba- nesa e japonesa, por exemplo, podem ser vítimas de agressão preconceituosa. Da mesma forma, o preconceito pode ser exercido contra grupos nacio- nais regionais. O Ministério Público Federal (MPF) já denunciou pessoas, em algumas ocasiões, em razão de discriminação contra nordestinos publicadas no “Facebook”. Num dos casos, é afirmado que a receita do Brasil seria mais expressiva se fosse cobrado imposto sobre jegues e burros do norte e nordeste do país onde existiam em abundância. No plano doutrinário, porém discute-se se a abrangência da expressão é su- ficientemente ampla, permitindo tal interpretação. Alamiro Velludo “et ali” enten- dem que não há dúvidas que este entendimento vige com relação ao artigo 140 §3º o qual dispõe sobre injúria em razão da origem e não sobre procedência nacional. Esta última expressão, mais propriamente, denota país de nascimento15. 3. Precedentes e jurisprudência do STJ e do STF, especialmente o hc146303 O papel do Ministério Público e o da magistratura são fundamentais para dar efetividade às leis e transformá-las em realidade. O texto legal lei não pode se resumir a refletir intenções, mas deve, sim, ser um caminho hábil a concretizar os ideais constitucionais. Por isso mesmo, é bom que se faça referência à ação do Juiz como intér- prete da norma no momento de sua aplicação e verdadeira concretização. Ape- sar de estar submetido a limites nesse papel, cabe-lhe esta função, já que toda norma carece de concreção de sentido, como bem coloca Ana Elisa Bechara16.

15 SALVADOR, Alamiro Velludo et alli. Legislação penal especial. Vol.2, 3ª edição, São Paulo: Saraiva, 2010. p.37. 16 BECHARA, ANA Elisa Liberatores Silva. Valor, Norma e Injusto Penal: Considerações sobre os elementos nor- mativos do tipo objetivo no direito Penal Contemporâneo, São Paulo, Tese Apresentada à USP, para obtenção do 337 Edelamare Melo (Organizadora)

As construções legais só se transformam em normas jurídicas “somente quando da construção valorativa realizada por meio da interpretação”. O Poder Judiciá- rio, ao menos nas denúncias recebidas, parece inclinado a julgar os artigos da Lei 7716 com severidade, do baixo índice de pessoas condenadas às penas privativas de liberdade em razão do cometimento de crime de racismo, Assim, ocorreu, em 2016, com a decisão do STJ17 que considera o crime do artigo 140 § 3º, mesmo estando situado fora da Lei que define os crimes de racismo, como sendo crime da natureza destes. As consequências desse julgado são muito importantes uma vez que os crimes previstos na Lei 7716 são considerados inafiançáveis e imprescritíveis e, portanto, são amplia- das as margens de intervenção do Estado na liberdade do cidadão. A impossibilidade de se livrar solto mediante o pagamento de fiança e a per- manência do direito de punir do Estado apesar do decurso de tempo são duas res- trições impostas aos autores de crimes que são considerados de extrema gravidade. O Direito Penal Internacional e a corte internacional de direitos humanos consideram determinados crimes como imprescritíveis, a exemplo da tortura e dos crimes contra a humanidade, como o genocídio, o extermínio, a escravidão, a deportação e qualquer outro ato desumano contra a população civil, ou a perse- guição por motivos religiosos, raciais ou políticos, quando esses atos ou persegui- ções ocorram em conexão com qualquer crime contra a paz. Como se sabe, a imprescritibilidade significa uma recusa do direito, em face do caráter do crime, em esquecer o fato, esquecimento este que sustenta a perda do direito de punir no direito penal. Assim, se a pena não é aplicada dentro de um certo período, entende-se que ela perde sua necessidade, seja porque a sociedade já está pacificada diante do fato, seja porque ela não serve para prevenir a ocorrência de outros crimes, ou, ainda, porque o autor já pode ser uma pessoa distinta daquela que praticou o ato. A decisão em estender até o Código Penal as restrições relativas à fiança e à imprescritibilidade revelam o acolhimento pelo direito de outros instrumentos na luta contra o racismo até porque, não seria função do Judiciário, teoricamente, e sim do legislador, afirmar a imprescritibilidade de crimes. No entanto, ao argumento de que o §3º do artigo 140 do código penal descreve ação que traduz preconceito de cor e que se trata de atitude que indica segregação e racismo, o STJ decidiu, por consequência, que era crime inafiançável e imprescritível, ainda que não esteja na lei que cuida da matéria, qual seja a Lei 771618. O réu pode, então, ser punido.

Título de Professor Titular, 2017, p. 308 17 STJ Agravo em Recurso Especial Nº 686.965 - Df (2015/0082290-3) Relator: Ministro Ericson Maranho (Desem- bargador Convocado Do Tj/Sp, Publicação DJ 18/06/2015 18 Nota explicativa: Tal decisão foi tomada no Agravo em Recurso Especial 686.965/DF, em razão do fato que um 338 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

O STF já se pronunciou também de forma clara e precisa a favor de condenação em caso de preconceito religioso. A decisão ocorreu no Recurso Ordinário em Habeas Corpus (n.146303)19, negando o trancamento de ação penal movida contra pastor que publicou na Internet vídeos e postagens que ofendiam autoridades públicas e seguidores de crenças religiosas diversas – católica, judaica, islâmica, espírita, wicca e umbandista, o qual também impu- ta fatos ofensivos aos seus devotos e sacerdotes. O advogado do pastor arguiu direito assegurado constitucionalmente ao livre exercício da religião, mas o Tribunal entendeu que suas palavras alimentavam um ódio incompatível com os princípios da sociedade democrática que se deseja instalada no Brasil. 4. Considerações finais O ideal da igualdade propagado pela revolução Francesa sofreu, e sofre, vulnerações frequentes apesar da ação de entidades supranacionais no sentido de sua afirmação. Esse movimento repercute na legislação interna dos Esta- dos que, sobretudo após a Segunda Grande Guerra, se tornaram sensíveis à estabilização da paridade entre todos os humanos. Por detrás dessa aspiração, pode-se dizer que reside a alteridade, como no pensamento de Lévinas. que se traduz “em movimento ‘para-o-outro’ exa- tamente no que o outro me apresenta de diferente, de desigual”. O filósofo francês sugere que “o eu” não existe senão graças a uma relação, um encontro com o outro. Nessa abertura em relação ao outro, é possível para “o eu” rom- per com seu isolamento e transcender as limitações. O Direito Penal Brasileiro, após a Constituição de 1988, criminalizou de forma mais rígida as ações de discriminação e ampliou, paulatinamente, o rol das condutas puníveis para incluir aquelas exercidas também em razão de etnia, reli- gião ou procedência nacional além de raça e cor inicialmente previstas. Não há um expressivo número de pessoas cumprindo pena privativa de li- berdade em razão de ações realizadas por motivo de preconceito, embora se possa encontrar decisões dos tribunais em favor do endurecimento da reação penal. O Direito Penal quer prestar também a sua contribuição para a cons- trução de um mundo no qual prevaleçam princípios eticamente idôneos para uma convivência harmoniosa entre os diferentes. Reconhece-se, todavia, que

juiz do DF decidiu que uma pessoa que publicou nota em seu blog na rede mundial de computadores contendo a expressão “negro de alma branca”, não se amoldava ao tipo penal previsto no art. 20, § 2º, da Lei 7.716/89, mas sim, ao tipo penal do art. 140, § 3º do Código Penal pessoa . O STJ decidiu então que o mesmo tratamento da Lei 7716 deveria ser dado ao delito de injúria racial. 19 Supremo Tribunal Federal. Recurso Ordinário em Habeas Corpus. Relator Atual: Min. Dias Toffoli. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=371511 339 Edelamare Melo (Organizadora) este é um recurso subsidiário na medida em que o respeito e consideração ao outro são atitudes que, mais facilmente, podem alcançar a conformidade entre as pessoas. Referências Bibliográficas Álvares, Silvio Carlos, MARCHERI Pedro Lima .A epistemologia do racismo no Brasil. Brasilia, Revista de informação legislativa, v. 52, n. 208, p. 149-166, out./dez. 2015 edição (2010)http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/517702/001055771.pdf

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Supremo Tribunal FederaL. Recurso Ordinário em Habeas Corpus. Relator Atual: Min. Dias

340 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Toffoli. Agravo em Recurso Especial Nº 686.965 - Df (2015/0082290-3) Relator: Ministro Ericson Maranho (Desembargador Convocado Do Tj/Sp, Publicação DJ 18/06/2015. Dispo- nível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=371511STJ. Acesso em:23/08/2018.

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Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

O RESGATE DOS QUILOMBOS NO CONSTITUCIONALISMO DEMOCRÁTICO LATINO-AMERICANO

Maria Cristina Vidotte Blanco Tarrega1

Agradecimentos às comunidades quilombolas que têm me ensinado muito sobre a vida e a existência digna. A história do afrodescendente nas Américas constitui um rastro de sofri- mento causado pela desumanização, pelo negar direitos, em razão de um processo escravocrata. O escravismo colonial foi determinante para construção e de toda a história da América. E a resistência negra é determinante na estruturação desse países, sobretudo a partir da revolução haitiana. Entretanto, isso é negado até mesmo pelo pensamento mais avançado no Brasil. Nega-se, na literatura especializada, a importância do negro na formação econômica e cultural do Brasil. Isso é denunciado por Ordep Serra, em Olhos negros do Brasil e por Jacob Gorender em Escravidão Reabilitada e em Es- cravismo Colonial. Há uma intencionalidade de ocultar as vias deixadas pelo escravismo na formação do país e os rastros dos homens e mulheres, sujeitos desse processo cruel construtor da aclamada democracia brasileira. Rastros forjados nos trilhos da his- tória cuja marca indelével é uma estrutura jurídica de dominação e ocultamentos. A escravidão no Brasil é a mais duradoura do continente. E dela resta- ram as resistências que nunca desapareceram do cenário brasileiro, sejam elas no campo cultural, no religioso ou nos quilombos. Os traços da resistência à escravização perduram no negro brasileiro, nos quilombos e fora deles. O re- conhecimento de direitos desses povos é consequência disso. Os quilombos, assim como os terreiros, as terras de santos, são a resistência viva. A nós, coube-nos tratar dos quilombos e seus sujeitos- as pessoas que mantém alerta a memória da resistência e o significado de sua luta até os dias atuais. Ele aparece tento no âmbito do direito como no da política, se é que se pode separá-los. E não é uma ocorrência exclusivamente brasileira. Politicamente,

1 Mestre e Doutora pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professora Titular na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás e Professora na Universidade de Ribeirão Preto. Coordenadora do Núcleo Emer- gente Comunidades Tradicionais. CNPq Bolsista Produtividade em Pesquisa CNPq. 343 Edelamare Melo (Organizadora) a ressiginificação do quilombo pelo reconhecimento de suas subjetividades e terri- torialidades específicas consigna-se nas constituições contemporâneas. No direito, reconhece-se em documentos jurídicos nacionais e interna- cionais. Identificam-se novos sujeitos de direito e institucionalizam-se políticas públicas. Há uma tentativa de reconciliação com o passado projetando um futuro diferente para os povos migrados a ferro da África subsaariana, em séculos atrás. É preciso refigurar o quilombo e refazer os rastros, o caminho inverso. A reconstrução dos rastros se dá para mostrar os rumos do futuro, relembrando o passado e atendendo a um processo de resistência e luta, colocando-o firmemente no presente. O “esquecimento por apagamento dos rastros” é um processo recorrente nos muitos campos sociais e culturais, sobretudo institucionais, entre os quais o jurídico e legitima a exclusão. A reconstituição dos rastros constitui uma função mimética de “refiguração”. A história se dá como reefetuação do passado. O rastro reefetua o passado no presente. Remontar o rastro é fazer o passado inteli- gível como persistindo no presente (RICOEUR, 1994: 244, T.III). Há, no caso dos afrodescendentes na América Latina, um apagamento da memória para ocultar o que a sociedade não quer ver, aquilo que “suja” sua história e portanto ocasiona o não direito. Não se enxerga o quilombo para se esquecer o erro, ou o que dele sobra na consciência coletiva, como marcas de preconceito e de negação. Reforça-se o equívoco da marginalidade dos negros e os mantêm fora do espaço da cidadania. Buscar o esquecido há de ser um apelo a lembrança, intensificando-a para impor o respeito e para resgatar a humanidade, conferindo aos sujeitos esquecidos a dignidade maculada no tempo e no contexto histórico. O revigo- rar dessa dignidade se dá nas mediações interpessoais e institucionais. Para o quilombo alcançar aquela dignidade, enquanto subjetividades emergentes, precisa se afirmar institucionalmente num campo em que se estruturam as ordens de reconhecimento. Essas ordens ainda não alcançam esses excluídos, porque eles e elas são excluídos dos sistemas. O constitu- cionalismo latino-americano tem dado início a um processo de lembranças e reconhecimentos; importante mas insuficiente. A ressignificação dos quilombolas e o seu resgate enquanto sujeitos de direitos está diretamente ligada à reorganização política de cunho popular na América Latina, que trouxe uma revisão dos modelos democráticos, em que se fortalece a participação popular e se identificam novas subjetividades. As várias constituições latino-americanas atuais promovem mudanças nas prá- ticas política e jurídica, sobretudo no tratamento dispensado aos sujeitos de direitos, identificando grupos vulneráveis.

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Nas duas últimas décadas do século XX, na América o horizonte cons- titucional e com ele os horizontes político e jurídico mudam. Das cartas políticas latinoamericanas contemporâneas que tratam da ques- tão do afrodescendente, destacamos a contribuição do Brasil, da Colômbia, da Nicaragua e do Equador. O texto constitucional colombiano de 1991 reconhe- ceu, no art. 7, a diversidade “étnica e cultural da nação”, estabelecendo o prazo de cinco anos para edição de lei conferindo às comunidades negras que tenham ocupado terras baldias nas zonas rurais ribeirinhas dos rios da Bacia do Pacífico, de acordo com as suas práticas tradicionais de produção, o direito à propriedade coletiva sobre as áreas que a referida lei demarcar (art. 55 dispositivo transitó- rio), o que foi regulamentado pelas Leis no 70/93 e 397/1997. A Constituição da Nicarágua de 1987 garantiu às denominadas comunidades da costa atlântica o direito a “preservar e desenvolver sua identidade cultural na unidade nacional, dotar-se de suas próprias formas de organização social e admi- nistrar seus assuntos locais conforme suas tradições”, reconhecendo-lhes as formas comunais de propriedade das terras, uso, gozo e desfrute das águas e bosques des- tas terras ( art. 89). Garantiu, ainda, o desenvolvimento de sua cultura e afirmando que seus valores enriquecem a cultura nacional, constituindo dever do Estado a criação de programas especiais para o exercício de seus direitos de livre expressão e “preservação de suas línguas, arte e cultura” (art. 90). Também assegurou-se-lhes o procedimento de titulação das terras por lei infraconstitucional, em 2003. A Constituição do Equador de 1988 reconheceu aos povos negros ou afroequatorianos o direito de conservar “a propriedade imprescritível das terras comunitárias, que serão inalienáveis, não-embargáveis e indivisíveis, ressalvada a faculdade do Estado para declarar sua utilidade pública”, man- tendo-se a posse das terras e obtendo-se sua “adjudicação gratuita, conforme a lei” ( arts. 84, itens 2 e 3 c/ art. 85). Nesse país, a ordem infraconstitucio- nal garantiu direitos aos afro-equatorianos. A Lei dos Direitos Coletivos dos Povos Negros ou Afro-equatorianos, de 2006, assegurou a preservação das expressões culturais e artísticas dos povos negros ( art. 3), o reconhecimento de direitos econômicos, sociais, culturais e políticos ( art. 9), a conservação da biodiversidade em benefício coletivo ( art. 11), a caça e pesca para sub- sistência com prioridade ante o aproveitamento comercial e industrial ( art. 12), os direitos sobre recursos genéticos e filogenéticos ( art. 14), a consulta sobre planos e programas de prospecção e exploração de recursos naturais que possam afetar referidas comunidades ambiental ou culturalmente (art. 15), a garantia do fortalecimento e organização, em áreas urbanas ou rurais, dos sistemas e práticas de medicina natural tradicional ( art. 18) e o respeito

345 Edelamare Melo (Organizadora) de formas próprias de organização e integração social afroequatorianas, tais como os palenques, comunas, comunidades urbanas e rurais, organizações de base e demais formas associativas que se determinem (art. 24). A Constituição Equatoriana de 2008 trouxe uma série de direitos coletivos aos povos afroequatorianos (assim como aos indígenas, aos montubios, às comu- nas), entre os quais a não discriminação étnica ou cultural, a propriedade impres- critível das terras comunitárias, nos termos da Constituição anterior. Garantiu ainda a manutenção da posse de suas terras e territórios ancestrais e a adjudicação gratuita, a participação no uso, usufruto, administração e conservação dos recursos renováveis que se achem em suas terras, a consulta prévia, livre e informada, de caráter obrigatório, dentro de prazo razoável, sobre planos e programas de pros- peção, exploração e comercialização de recursos não renováveis localizados em suas terras, a não translação de suas terras ancestrais, a participação na definição das políticas públicas a elas concernentes, bem como no desenho e decisão das prioridades nos planos e projetos do Estado, consulta antes da adoção de medida legislativa que possa afetar qualquer de seus direitos coletivos. Além disto, garan- tem-se a esses povos, no art. 58, os direitos coletivos estabelecidos em lei, pactos, convênios, declarações e demais instrumentos internacionais de direitos humanos” e a possibilidade de constituir circunscrições territoriais para a preservação de sua cultural, além das comunas como organização territorial( art. 60). O Brasil tratou da questão quilombola, diretamente, depois da promul- gação da Constituição de 1988, no artigo 68 do Ato das Disposições Consti- tucionais Transitórias (ADCT), e nos artigos 215 e 216 do próprio texto. O assunto foi regulamentado em Constituições Estaduais que reconhecem aos remanescentes dos quilombos a propriedade de suas terras. Assim as Constitui- ções do Pará (Art. 232), de Mato Grosso (Art. 251 e 33 do ADCT), da Bahia (Art. 51), do Maranhão (Art. 229 do ADCT) e de Goiás (Art. 16 do ADCT). O tratamento diferenciado da problemática quilombola na Constitui- ção Federal e nas estaduais evidencia as dificuldades do nosso ordenamento jurídico na concretização dos direitos coletivos dos quilombolas. Nas cons- tituições, as comunidades quilombolas, ora foram tratadas como sobras de um sistema de exploração, em outros momentos, como patrimônio cultural e histórico, guardando relação com a ideia de resquícios de um passado perdido e ainda em outra situação, como na Constituição Federal como uma comuni- dade social, mas neste caso, restringindo a garantia dos direitos dos quilom- bos à noção civilista de propriedade da terra. É de se observar que essa apreensão jurídico-política da realidade não instrumentaliza nem reafirma o sentido comunitário desse sujeito de direito.

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São necessárias mediações institucionais tais a constituir um sentido das co- munidades quilombolas que guarde relação com o modo de vida destes gru- pos, observando a sua situação como sujeitos coletivos de direitos Pondera-se, por fim, que o tratamento político normativo conferido às comunidades quilombolas, no plano de suas experiências, da ressignificação histórica, longe está de consagrar uma efetiva condição de existência jurídica no plano de igualdades. O constitucionalismo democrático significa importante avanço nesse sentido, mas fato de os quilombolas constarem do discurso norma- tivo não importa em que, nas relações mediadas institucionalmente, sobretudo no discurso do judiciário e nas política públicas, sejam afirmados e reconhecidos como sujeitos de direito e tenham possibilidade de existência coletiva conforme sua auto-atribuição e plena capacidade de realizá-la, nos seus muitos aspectos. Isso pode ser observado nas várias frentes de conflito enfrentadas por essas comunidades. Com relação ao reconhecimento estatal, notadamente com relação ao Incra. A Terra de direitos faz uma análise segundo a qual em 5 anos o orçamen- to para regularização dos territórios quilombolas caiu em 97%. Também analisa dados de certificação/titulação concluindo que nesse ritmo seriam mais de 900 anos para que todas as comunidades já certificadas recebessem seus títulos de propriedade. O próprio INCRA, no relatório disponibilizado na Internet informa que entre 2005 e 2017 foram conferidos 116 títulos apenas. Num contexto em que a propriedade privada tem uma função econômica/hegemônica por excelência a consequência é a vulnerabilidade dos quilombolas e o acirramento dos conflitos, pois a terra continua em disputa e o território pode ser afetado por isso. Com isso, nas relações sociais vemos a violência contra os quilombolas aumentar. Segundo o Caderno de Conflitos da Comissão Pastoral da Terra houve 90 ocorrências de áreas de conflitos quilombolas em 2017, 99 em 2016. Em 2017, registraram-se 22 assassinatos de quilombolas, em um núme- ro absoluto de 71 assassinatos por conflitos no campo. Em 2016, 7 quilom- bolas foram mortos de um total de 61. Em 2015, 1 quilombola de um total de 50 assassinatos. Há um crescimento da violência no campo, sendo muito mais expressivo contra quilombolas. As razões verificadas, em regra, são empreendimentos (Pequenas cen- trais hidrelétricas, MG, SP, PA, GO), especulação imobiliária, expansão da fronteira agrícola. É urgente a necessidade de empoderamento das comunidades, fazendo valer os seus direitos, como direito, à educação, à saúde, à inclusão digital. É pre- ciso sobretudo garantir a propriedade sobre suas terras, e os direitos referentes à autonomia sobre os seus territórios, como o direito de consulta.

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Referências Bibliográficas Almeida, Alfredo Wagner Berno de (2008), Terra de quilombo, terras indígenas, “babaçuais livres”, “castanhais do povo”, faixinais e fundos de pasto: terras tradicionalmente ocupa- das. Manaus: PGSCA-UFAM. [2.ª ed.].

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Gorender, Jacob. (2016)“O escravismo colonial”. São Paulo. Expressão Popular.

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Ricoeur, Paul (2007), A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora Unicamp.

______Tempo e Narrativa (1994), T III. Campinas: Ed.Papirus.

Serra, Ordep. (2014) “Os Olhos negros do Brasil.” Salvador. EDUFBA.

Tarrega, Maria Cristina Vidotte Blanco (2012), “A construção narrativa do conceito de sujei- to de direito e justiça” Revista da Faculdade de Direito da UFG, 35.

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Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Comunidade LGBTI+: mapeando intervenções em serviços públicos do Distrito Federal

Matheus da Silva Neves

Resumo Este artigo tem como objetivo investigar a realidade contextual em que ocorre serviços específicos para a população LGBT+, na rede pública do Dis- trito Federal. A partir do contato inicial com gestores administrativos, um ques- tionário foi desenvolvido, utilizando como base Intervention Mapping Appro- ach e o framework EPIS. Direcionado para os profissionais da rede que atuam como linha de frente do serviço, este instrumento investiga informações sobre o design da intervenção, teorias e métodos, recursos/barreiras, resultados e avaliação do processo. Compreender os mecanismos operantes da intervenção em interface com os determinantes da mudança social se mostra um exercício complexo, que demanda estratégias e adaptações aos contextos acessados. Os resultados preliminares apresentam uma pluralidade no desenvolvimento e ma- nutenção de intervenções disponíveis pelo Governo do Distrito Federal. Palavras-chave: Intervenção, LGBT+, Intervention Mapping Abstract This article aims to investigate the contextual reality in which specific ser- vices are available for the LGBT+ population, in the public network of the Federal District. From the initial contact with administrative managers, a questionnaire was developed, based on the Intervention Mapping Approach and the EPIS framework. Aimed at the professionals at the network who act as the front line of service, this instrument investigates information about the design of the intervention, theories and methods, resources/barriers, results and process evaluation. Understanding the operative mechanism of the interventions in interface with the determinants of so- cial change is a complex exercise that demand strategies and adaptations to the context accessed. The preliminary results presents a plurality in the development and maintenance of intervention available by the Federal District Government. Key-words: Intervention, LGBT+, Intervention Mapping.

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Institucionalização dos Direitos LGBT O processo de incorporação das políticas afirmativas no Brasil é fruto de constantes transformações e eventos estruturais, que se organizaram a partir dos anos 70 e 80, como parte de uma ampla redemocratização do país, após a época da ditadura (Green & Quinalha, 2014). Fazendo uma breve linha do tem- po, pela primeira vez, em 1995, o tema de discriminação sexual foi formalmen- te mencionado, em um foro da Nações Unidas, na Conferência de Beijing. Com a consolidação do debate no ambiente nacional, o Conselho Federal de Psico- logia determinou em 1999 que nenhum psicólogo poderia “exercer ações que favorecessem a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas” (Resolução CFP Nº 001/99). Nos anos 2000, o Governo Brasileiro, em con- sulta à sociedade civil organizada, levou o tema para a Conferência Regional das Américas, no Chile, onde todos os países do continente comprometeram-se com a temática de orientação sexual entres as formas agravadas de discrimina- ção, estimulando os Estados ao combate e à prevenção da violência. Em outubro de 2001, o Governo criou o Conselho Nacional de Com- bate à Discriminação (CNCD) e em 2002, uma segunda versão do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH II) contemplou uma seção que se de- dicava ao assunto, com quinze ações a serem adotadas pelo Governo Brasi- leiro, que priorizavam: o combate à discriminação por orientação sexual, sen- sibilização da sociedade para a garantia do direito à liberdade e à igualdade de gays, lésbicas, travestis, transexuais e bissexuais (Brasil, 2002). Em 2003, o CNCD congregou representantes de organizações da sociedade civil e dos movimentos GLS (Gays, Lésbicas e Simpatizantes) e foi instituída uma co- missão temática permanente para receber denúncias de violações de direitos humanos, baseadas em discriminação sexual. Concomitantemente, o CNCD criou um grupo de trabalho com um propósito de desenvolver o Programa Brasileiro de Combate à Violência e à Discriminação. Em conjunto com essas ações, em 2003, Conselho Nacional de Imigração editou uma resolução ad- ministrativa, que viabilizou o reconhecimento de união de pessoas do mesmo sexo, para os efeitos de concessão de visto. Em 2004, o Governo Federal do Brasil, por meio do Ministério da Saú- de, assumiu um compromisso com a sociedade, desenvolvendo o Programa de Combate à Violência e à Discriminação com GLBT (Gays, Lésbicas, Bis- sexuais e Transexuais) e Promoção de Cidadania Homossexual. Esse pacto social sinalizou o compromisso do país com a construção de uma cultura igualitária. As prerrogativas se pautaram na promoção de cidadania de pesso- as gays, lésbicas, travestis, transgêneros e bissexuais, a partir da equiparação 352 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. de direitos e combate à violência e discriminação homofóbicas. A ações esti- puladas pelo Programa (Brasil, 2004) foram: (a) apoio a projeto de fortalecimento de instituições públicas e não-go- vernamentais que atuavam na promoção da cidadania homossexual e/ ou combate à homofobia; (b) capacitação de profissionais e representantes do movimento homos- sexual que atuavam na defesa de direitos humanos; (c) disseminação de informações sobre sobre direitos, de promoção da autoestima homossexual; (d) incentivo à denúncia de violações dos direitos humanos do segmento. A existência e perpetuação dos serviços disponíveis para pessoas LGBT+ atualmente é reflexo de anos de luta e inserção nos âmbitos políticos. Porém, a desqualificação e subalternização de sujeitos LGBT+ pela opressão sistemática da matriz heteronomativa (Butler, 2003), nega o reconhecimento e direito à cidadania dos sujeitos diversos. A atuação dos movimentos sociais LGBTs têm reivindicado a afirmação dessas identidades subalternas, com o objetivo de valorizar o processo de reconhecimento da diferença (Irineu, 2014). A partir desse processo histórico, compreende-se parte do contexto em que se insere o objetivo deste trabalho. Mapeamento de Intervenções O processo de mapeamento de intervenções (Intervention Mapping Appro- ach) proporciona extrema riqueza de detalhes, o que incide diretamente na ela- boração de etapas cruciais do projeto; essa técnica apresenta uma abordagem de planejamento, que abarca a importância do desenvolvimento de intervenções que se fundamentam em teorias e evidências (Bartholomew et al., 2011; Kok, 2014). Este processo de mapeamento se caracteriza por três perspectivas: abordagem eco- lógica, participação dos sujeitos envolvidos e interessados (stakeholders) e o uso de teorias e evidências. Dentro destas perspectivas, existem etapas de planejamento que promovem uma estruturação metodológica para fomento e alcance dos objeti- vos propostos: avaliação de necessidades; matrizes de objetivo de mudanças; sele- ção de métodos baseados em teorias; incrementação do programa de intervenção; adoção, implementação e sustentabilidade do programa; avaliação da intervenção. A construção do questionário de coleta se pautou na adaptação destes aspectos. Toda intervenção se baseia em uma teoria, mesmo que de maneira infor- mal, isto é, pressupõe uma hipótese para a resolução de um problema (Moore et. al., 2013). O processo de descrição da teoria que embasa a intervenção possibilita maior percepção acerca dos fatores que influenciam sua aplica-

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ção. Segundo Green (2000), o uso de teorias assegura um acesso coeso aos determinantes de efetividade da intervenção, o que previne uma interpretação empobrecida do design e do processo de implementação. Essa investigação das estruturas fundamentais da intervenção permite uma leitura congruente de como os determinantes presentes impactam atores (pessoas envolvidas di- reta e indiretamente com o funcionamento do programa) que desenvolvem e recebem este conteúdo. Esse acesso viabiliza o aprimoramento em todos os níveis, o que certifica uma operacionalização sinérgica dos recursos disponí- veis diante das limitações e intempéries (Kok, Peters & Ruiter, 2017). Neste projeto, o pressuposto teórico que estrutura parte do planejamento da intervenção, se pauta na compreensão de gênero e sexualidade (Butler, 2003) como construção social mediada pela subjetividade do indivíduo. A pesquisa se norteia a partir do questionamento: “Como produzir uma intervenção para melhorar a qua- lidade de vida da população LGBT+, frente ao preconceito?”. A proposta deste artigo é fundamentar os aspectos operacionais da intervenção, a partir das informa- ções coletadas e qualificadas dos profissionais envolvidos na rede socioassistencial. A qualificação dessa avaliação possibilita a percepção das demandas sob perspectivas diferentes, o que é necessário no processo de implementa- ção, comparação de dados e enriquecimento da literatura. Existem, porém, caminhos a serem construídos para que a desenvolvimento da intervenção seja pautada em fatores contextuais da realidade do fenômeno. Não há somente uma forma de criar e realizar uma avaliação do processo de pesquisa; escolhas devem ser feitas a endereçar o contexto em que o objetivo e a metodologia se relacionam. A escolha de um método de avaliação de processo deve servir como instrumento para que o pesquisador consiga explicitar as escolhas de pesquisa e os métodos abordados para a resposta (Grant, A. et al., 2013). As etapas da pesquisa são monitoradas com o uso de um instrumento de aprimoramento de processo, o framework que se baseia em evidências, EPIS: Exploration, Preparation, Implementation, Sustainment (Aarons., Hurlburt, & Horwitz., 2011). Os frameworks são desenvolvidos para avaliações de pro- cesso e visam estruturar a complexidade para avançar a compreensão sobre como intervenções funcionam (Moore et. al., 2013). Desenvolvido e operacionalizado na área de saúde, as matrizes do EPIS fo- ram adaptadas em forma de questionamentos sobre a direção da pesquisa, o que possibilita um olhar metacognitivo sobre o processo. A escolha do EPIS possibilita uma orientação simultânea do processo de implementação e dos fatores estruturais da intervenção em si. Em outro estudo (Smith & Polaha, 2017), este método possi- bilitou a medição e antecipação de barreiras no processo de implementação.

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Na fase de Exploration e Preparation, a percepção dos recursos dis- poníveis e barreiras existentes no cenário atual impactam diretamente o de- senvolvimento do projeto. Operacionalizar essas estruturas como guias de produção, auxilia o aperfeiçoamento da pesquisa e proporciona autenticidade nas etapas propostas. É essencial para o planejamento de intervenções que os desenvolvedores identifiquem possíveis desafios que irão afetar a aplicação do programa, para adequação de fatores ineficazes e disfuncionais (Aarons et. al., 2011). Para estes autores, essa fase consiste na aproximação de parceiros internos e externos do serviço, ampliando as possibilidades de incorporar a intervenção aos programas vigentes. O objetivo deste artigo é investigar como acontece a prática de serviços disponíveis para sujeitos LGBT+ na rede institucional do Distrito Federal, a partir do relato de profissionais que atuam na linha de frente. Psicólogos, assistentes sociais e médicos compõem o grupo de participantes do questionário, já que a in- terface dessas áreas é essencial na percepção dos fenômenos de vulnerabilização do sujeito e assistência estatal (fatores que influenciam diretamente a dinâmica dos mecanismos da intervenção). Esse caráter multidisciplinar assegura uma per- cepção diversa da complexidade do sofrimento de sujeitos em atendimento, o que permite um tratamento de demanda mais específico e direto. A replicação dessa dinâmica enquanto componente da relação entre atores, objetos e contexto é um dos fatores de fortalecimento e robustez da intervenção. Método Participantes O critério para a seleção dos participantes se pautou na escolha de profissionais que atuam em serviços públicos disponíveis para população LGBT+. No total, houve a participação de 5 profissionais que atuavam em órgãos e departamentos vinculados ao Governo do Distrito Federal: CREAS da Diversidade (Centro de Referência Especializada em Assistência Social), Ambulatório Trans, Serviço Especializado em Abordagem Social (SEAS), Subsecretaria de Atividade Psicossocial da Defensoria do Distrito Federal (SUAP - DF) e o Centro de Saúde 06 - Adolescentro. Entre os serviços, par- ticiparam desta coleta às seguintes profissões: Assistente Social, Médico En- docrinologista, Educador Social, Psicólogo e Defensor Público. Para melhor compreensão dos contextos de trabalho pesquisados, far-se á uma breve des- crição das atividades dos órgãos nos quais estes profissionais atuam. O Centro de Referência Especializado em Assistência Social (CREAS) da Diversidade é uma unidade pública que oferta serviço especializado de pro-

355 Edelamare Melo (Organizadora) teção e atendimento a famílias e indivíduos (crianças, adolescentes, jovens, adultos, idosos, mulheres) em situação de ameaça ou violação de direitos, tais como: violência física, psicológica, sexual, tráfico de pessoas, atendimento da família em que o adolescente está cumprindo medidas socioeducativas, afasta- mento do convívio familiar devido à aplicação de medida de proteção; situação de rua, de risco pessoal e social associados ao uso de drogas, vivência de traba- lho infantil, discriminação em decorrência da orientação sexual e/ou raça/etnia. O Ambulatório Trans do Distrito Federal está localizado no Hospital Dia e presta atendimento à população travesti e transsexual de Brasília em suas necessidades específicas. A equipe multiprofissional fornece assistência em psicologia, psiquiatria, serviço social, endocrinologia e enfermagem. Os serviços mais comuns são os de acompanhamento hormonal de pessoas tra- vestis e transsexuais em transição. O Serviço Especializado em Abordagem Social (SEAS) tem como ob- jetivo assegurar trabalho social de abordagem e busca ativa que identifique nos territórios, a incidência de situações de risco pessoal e social, por viola- ção de direitos, como: trabalho infantil, exploração sexual de crianças e ado- lescentes, situação de rua, uso abusivo de drogas, dentre outras. Dentro deste serviço, há uma equipe especializada em abordagem social específica para minorias sexuais, composta por profissionais LGBT+. A Subsecretaria de Atividade Psicossocial (SUAP) integra a Defensoria Pública e tem o objetivo de aprimorar o atendimento destinado à garantia dos direitos da população em situação de vulnerabilidade social, assim como pro- mover a qualidade do serviço por meio do atendimento técnico, formado por psicólogos e assistentes sociais que prestam assistência integrada aos núcleos de atendimento e à sua população assistida. O Centro de Saúde 06 - Adolescentro produz trabalho em rede com ou- tros serviços de diversos níveis de atenção da Secretaria de Saúde, bem como o estabelecimento de parcerias com equipamentos sociais de outras secreta- rias da administração do Distrito Federal. O serviço presta atendimento indi- vidual e em grupo a adolescentes de 10 a 18 anos de idade nas modalidades: psicologia, neurologia, assistência social, terapia ocupacional, psiquiatria, nutrição, odontologia e ginecologia. Instrumento Foi estruturado um questionário que aborda aspectos contextuais da prática, que visa acessar dinâmicas relacionais entre o profissional, a insti- tuição e o serviço. O questionário apresenta uma seção sociodemográfica,

356 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. na qual o participante se identifica, informando a instituição proponente e há quanto tempo atua nessa área. O questionário foi revisado com pares em um teste-piloto, e adaptado antes de ser disponibilizado. A percepção do trabalhador sobre as condições e o funcionamento da própria rede, proporciona segurança no processo de ressignificação dos pres- supostos teóricos que materializam a intervenção. A proximidade com a rea- lidade social e burocrática desses profissionais permite a criação de caminhos mais acessíveis e eficazes, que não poderiam ser percebidos de outra forma. Desta forma, a interpretação desses atores sobre as necessidades da popula- ção LGBT+ propicia um contexto mais genuíno no processo de aperfeiçoa- mento dos mecanismos da intervenção. O questionário (Tabela 1) foi estruturado a partir das matrizes do EPIS (Aaron et. al., 2011) e de adaptações das perspectivas exploradas no Interven- tion Mapping (Bartholomew et. al., 2011), buscando relacionar as interfaces determinantes: profissionais (gestores e técnicos que atuam diretamente com o público-alvo), instituição e serviço. Dentro dessas interfaces relacionais, os objetivos buscam investigar os contextos que tangem o conhecimento e a operacionalização de métodos e teorias, desenho das intervenções, imple- mentação, resultados e avaliação do processo por parte dos profissionais.

PERGUNTAS OBJETIVOS Como você descreve a atuação do Obter uma descrição dos proce- seu trabalho? Quais serviços ofere- dimentos, protocolos e serviços cidos? oferecidos. Existe alguma base teórica/concei- Compreender o que estrutura con- tual que abarque as técnicas/direcio- ceitualmente a técnica utilizada nos namentos deste serviço? serviços. Quais barreiras/limitações você per- Acessar o contexto em que se pra- cebe no desenvolvimento do seu tra- ticam as intervenções oferecidas, balho? (condições físicas, pessoais, investigando possíveis barreiras. sociais, internas ou externas) Quais recursos você tem disponíveis? Como facilitam o desenvolvimento do seu traba- Acessar o contexto em que se pra- lho? (condições físicas, pessoais, sociais, ticam as intervenções oferecidas, internas ou externas, ex: material de artes, investigando possíveis recursos. computador, salas, pessoas, veículos, etc.)

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Quais impactos sociais você pode Aferir qual a percepção destes perceber a partir das intervenções profissionais sobre as intervenções realizadas no seu trabalho? (positi- oferecem e aplicam. vos e/ou negativos) O que você considera como neces- Quais alterações são necessárias, a sário para o aperfeiçoamento do seu partir da visão desses profissionais, trabalho? Quais dispositivos pode- para um bom funcionamento das riam ser agregados ou removidos? intervenções propostas O que você considera como neces- O que este profissional entende sário para atuação do profissional como necessário para uma atuação que lida com pessoas LGBT+? (qua- ética e de qualidade para profissio- lidades técnicas e pessoais) nais da área. Tabela 1. Questionário Online desenvolvido como produto do framework, para o mapeamento de atuação nos serviços disponíveis da rede do Distrito Federal. Procedimentos Os procedimentos metodológicos adotados neste artigo são: (1) estruturação dos objetivos de investigação; (2) acesso aos trabalhadores nos serviços disponíveis para sujeitos LGBTs+ no Distrito Federal; (3) co-construção de um questionário inspirado nos conceitos explora- dos da Intervention Mapping Approach (Bartholomew et al. 2011) e no framework EPIS (Aarons et. al., 2011); (4) divulgação do questionário nos serviços disponíveis; (5) construção de categorias temáticas; (6) análise e interpretação do conteúdo das categorias utilizando a me- todologia de Minayo (2007). Análise A análise de conteúdo de Minayo (2007), enquanto método, é um conjunto de técnicas que utiliza procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens. Na pré-análise, estes dados foram filtrados a partir das temáticas prévias de coleta (design, métodos e teorias, implementação, resultados e avaliação de processo), e possibilitaram uma primeira análise exploratória. Nesta etapa, foi re- alizada uma leitura vertical e horizontal das respostas para a percepção de dinâmicas relacionais entre o contexto e os elementos empíricos. A partir dessa leitura, reali- zou-se o agrupamento de temas específicos que surgiram como tendências, para a construção de categorias e interpretação do conteúdo. O último procedimento da aná- 358 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. lise foi a articulação dos conteúdos interpretados com a fundamentação teórica, para subsídio das argumentações críticas-reflexivas. Os temas foram avaliados em uma segunda instância, por colaboradores do grupo de pesquisa do Laboratório de Grupo, Família e Comunidade da Universidade de Brasília. Compreende-se a utilidade desta metodologia diante as especificidades da coleta e do número de participantes, o que demonstra ser eficaz nos processos descritivos-interpretativos. Resultados A partir do dados obtidos, em interface com o objetivo de mapear aspec- tos estruturais da relação entre profissionais, instituição e serviço, tendências foram identificadas e qualificadas em nove categorias que englobam os aspec- tos estruturais explorados pela Intervention Mapping Approach. Os trechos que narram as falas foram sinalizados de 1 à 5, em referência a cada participante. Essencialidade da Rede Em relação aos procedimentos e protocolos que substanciam o serviço, a partir das descrições utilizadas para explanar estes mecanismos, foi possível perceber uma tendência nos discursos dos profissionais: uma visão expandi- da e sistêmica das instituições. Os relatos contemplaram que os protocolos institucionais visam acolher a pessoa em vulnerabilidade, com o objetivo de vinculá-la aos serviços das redes. Isso se dá por meio de encaminhamentos, acesso a benefícios, entre outros, conforme os trechos abaixo ilustram:

[1]“Atender casos encaminhados pelos núcleos, que necessitem de acompanhamento psicossocial. [...] Realizar encaminhamen- tos de assistidos aos órgãos competentes para casos específicos [...]”. [3]“Vinculação ao serviço de Assistência Social como CREAS [...] através da vinculação, pode se pleitear auxílios vulnerabi- lidade, auxílio aluguel, intervenção junto a defensoria pública para troca do nome e processo transexualizador. ”; [5]“Atuação coletiva com foco na fiscalização e implementação de políticas públicas.”.

Visão e Postura de Acolhimento Expandida No processo de inserção das pessoas em vulnerabilidade, a partir de alguns relatos, observou-se uma postura de acolhimento para além do sujeito. Percebe-se no- vamente uma visão estendida das disposições do serviço para particularidades de cada pessoa, o que resulta em intervenções específicas alicerçadas em uma postura que se atenta às necessidades do usuário. Os trechos a seguir descrevem esta perspectiva:

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[1] “Auxiliar nas demandas jurídicas do assistido de forma ex- trajudicial[...]”; [2] “Atendimento extensivo a familiares quando existe a deman- da.”; [3] “[...] visando a fomentar a informação de direitos e cuidado com o outro.”; [4]“Garantia de direitos de forma extrajudicial para população em vul- nerabilidade social”.

Fundamentação Político-Legal Sobre as bases teóricas/conceituais que fundamentam as técnicas e prá- ticas, os serviços investigados relatam semelhanças. Observa-se que os dispo- sitivos que oferecem inserção na rede a partir de serviços psicossociais e ju- rídicos, relatam não possuir uma fundamentação teórica científica específica, porém, pautam suas ações nos princípios e disposições legais que amparam as políticas assistenciais:

[1] “Não existe uma base teórica.” [2] “Quanto à adolescência utiliza-se técnicas de manejo de gru- po e o acolhimento individual às demandas.”; [3]“Sim, o SUAS (Sistema Único de Assistência Social), através dele podemos direcionar cada caso.”; [4]“Leis, decretos de garantia de direitos da população vulne- rável”; [5]“A nossa atuação tem enfoque nos marcos legais e constitucional. Toda a atuação se desenvolve por intermédio de ferramentas jurídicas extrajudiciais/administrativas e judiciais.”.

Recursos Em relação a percepção de mecanismos que contribuem para o desen- volvimento e sustentação das intervenções, observa-se que os participantes relatam recursos materiais e subjetivos Os recursos materiais são ferramentas físicas e instrumentais que possuem uma funcionalidade e finalidade direta relacionada às demandas, como o objetos e cargos técnicos como pode ser observado nos trechos seguir:

[2] “[...] equipe multidisciplinar para atendimento[...]”; [3] “Temos uma van que nos auxilia no transporte no DF todo, temos o Creas da Diversidade que nos dá o suporte necessário e a sede do Instituto que é nossa base de trabalho além da coorde- nação e supervisão”. [4] “Estagiários de ensino superior dos cursos de psicologia e

360 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

serviço social que contribuem de maneira significativa para o desenvolvimento do trabalho.” [5] “[...] nosso corpo de apoio conta com uma assessora, uma analista e uma estagiária, que, concomitantemente, também auxiliam outros dois defensores do Núcleo de Direitos Humanos.”

Os recursos subjetivos podem ser ilustrados como habilidades e poten- cialidades não materiais, individuais e indissociáveis a especificidade de cada servidor, que podem se adaptar ao contexto, descritos no trecho a seguir:

[2] “São necessários [...], muita criatividade e, sobretudo persis- tência. Há ainda, muito investimento pessoal, com, por exemplo, a pesquisa sobre filmes e documentários em equipamentos pes- soais [...]” ; “[...] Para que aconteçam ações, estas dependem da iniciativa de pessoas sensíveis, que, muitas vezes, travam lutas até pessoais para elas aconteçam.”

Sucateamento Quando questionados sobre as limitações que impactam diretamente a im- plementação de suas intervenções, é possível compreender sobre suas falas, a percepção de mecanismos relacionais internos e externos ao serviço que afetam suas práticas. Este contexto pode ser evidenciado a partir de alguns trechos:

[2] “[...] pela falta de investimento que não se está tendo nos serviços públicos.; [3] “Falta de pessoal nas equipes dos equipamentos públicos para viabilizar algumas demandas [...]”; [4] “[...]infelizmente percebe-se que os serviços não recebem o investimento necessário para a atuação de total qualidade, infeliz- mente faltam diversos recursos para o funcionamento dos serviços. [...] reduzido pessoal para a quantidade de demanda de trabalho e também a estrutura física necessita melhorar (computador, móveis, salas).”; [5] “Os maiores entraves são as condições de estrutura (recursos hu- manos e estrutura física) e a falta de efetividade do poder público.”; “Seria necessário mais servidores e servidoras, além de melhores condições de trabalho. [...] seria indispensável o que o Núcleo de Direitos Humanos tivesse uma unidade de atendimento Psicossocial exclusiva.”.

Valores Morais A percepção dos valores morais associados às vivências sexuais não- normativas influencia diretamente a qualidade e eficácia dos objetivos que

361 Edelamare Melo (Organizadora) fomentam os atendimentos. Podemos observar que o preconceito é uma ver- tente central na compreensão das demandas e suas possíveis resoluções:

[2] “As maiores barreiras que se verificam referem-se ao momento de extremo conservadorismo e intolerância por que passamos no país…”; [4] “O preconceito do dia a dia e a precariedade dos serviços públicos.” (sobre a percepção dos impactos negativos).

Empobrecimento da Cultura Avaliativa A ausência de descrição de instrumentos avaliativos por parte dos partici- pantes não significa a total inexistência de medições do serviço, porém aponta pouca percepção e domínio de sua importância. As narrativas mostram que não há uma forma específica de avaliar os impactos, além da percepção singular dos profissionais para aperfeiçoamentos pontuais nos protocolos de atendimento:

[1] “Sistematizar sugestões de Psicólogos e Assistentes sociais para contribuir na melhoria do atendimento.”. [2] “Em nossa pobre cultura de avaliação não se produzem indicadores de monitoramento e avaliação. O serviço prescinde completamente a isso. E nem haveria tempo para a medição de impactos, sobretudo so- ciais, em ações que se iniciam agora. Os resultados [...] que se verificam é a satisfação das pessoas às abordagens inclusivas.”.

Empatia / Interesse O interesse e conforto pelo tema da diversidade, parece ser uma característi- ca central da postura esperada do profissional. Os relatos consideram que uma pos- tura sensível às diferenças é uma predisposição. Quando questionados sobre quais aspectos necessários pra se trabalhar com pessoas LGBT+, eles relatam:

[2]“Ser uma pessoa com um mínimo de resolução de sua própria sexualidade, que não se sinta agredido com a dos outros. Que se interesse em aprofundar/estudar as questões relativas à sexualidade e a gênero, sobretudo sobre o viés da riqueza da diversidade” [3]“Primeiramente olhar com olhar justo, sem preconceitos, sem julgamentos. A/O LGBTI é como qualquer outra pessoa.” [4] “Identificação com a temática [...]” [5] “[...]é indispensável empatia e comprometimento.”

Necessidade de Capacitação Os participantes descrevem a importância de uma capacitação técnica profissional para quem lida com sujeitos LGBT+, de maneira que a rede espe-

362 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. cializada possua profissionais sensibilizados e aptos tecnicamente. Os trechos a seguir ilustram essa carência no serviço:

[4] “[...] cursos de capacitação e especialização e condições para o desenvolvimento do trabalho de qualidade, com recurso ma- terial e pessoal.” [5] “[...] domínio técnico dos direitos das pessoas lgbt e dos me- canismos e ferramentas existentes na rede de apoio.”

A partir dessas categorias, a análise interpretativa dos dados evidencia fatores relacionais entre as tendências percebidas, a realidade contextual do serviço e a literatura já produzida. Discussão Sobre a diversidade da amostra, percebe-se que os diferentes níveis de gestão e distinções técnicas oferecem uma imagem ampliada do serviço. To- dos os dispositivos públicos relatados integram uma mesma rede socioassis- tencial do Distrito Federal, e ofertam serviços assistenciais, de saúde, judi- ciais e extrajudiciais. A percepção de similaridades contextuais dos serviços nos informa de uma necessidade estratégica do Intervention Mapping Appro- ach, para ilustrar possíveis gaps relacionais entre o desenvolvimento das in- tervenções e sua condução dentro dos setores, até o alcance ao público-alvo. A definição da ação em rede se consolidou na assistência social com a re- formulação da Política Nacional de Assistência Social (PNAS) e da Norma Ope- racional Básica (NOB), quando foi criado o Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Os eixos estruturantes do SUAS (Brasil, 2009) se pautam: na matricia- lidade sócio-familiar (centralização da família como núcleo de desenvolvimento social); descentralização político-administrativa e territorialização estabelecen- do novas bases para a relação entre Estado e sociedade civil; financiamento; controle social com participação popular e normas definidas para informação o monitoramento e a avaliação além de política de recursos humanos própria. No Distrito Federal, o serviço socioassistencial reflete aE ssencialidade da Rede. As intervenções em rede podem proporcionar um processo racional e mais efetivo às ações do Estado, na potencialização dos recursos existentes na comu- nidade, elemento crucial frente aos tempos de corte e austeridade fiscal. A partir do conceito de gestão em redes, preconizados na PNAS (Brasil, 2004) é possível assegurar a efetividade das políticas públicas, históricamente caracterizadas por ações setoriais, desarticuladas, centralizadoras e hierárquicas; essa perspectiva possibilita superar a fragmentação da atenção às necessidades sociais, parale- lismo de ações, centralização das decisões, informações e recursos (Vitoriano, 363 Edelamare Melo (Organizadora)

2011). O conceito de redes permite então, focalizar exatamente as relações entre pessoas e grupos nas quais valorações e percepções atuam. Nas redes os indiví- duos encontram-se envolvidos com outros em ação, mas também em avaliações, julgamentos e, até mesmo, estigmas (Hita & Duccini, 2008). A essencialidade do conceito de rede incide nos protocolos adotados na execução do serviços. Podemos perceber um aspecto que fomenta a quali- dade dos atendimentos a partir dessa essencialidade é a interdisciplinaridade multiprofissional dos serviços, que integram saberes técnicos diversos para a produção de interfaces processuais-metodológicas que possam qualificar e resolver demandas de forma conjunta. Este conceito advém dos cenários de saúde e organização hospitalar, como um recurso estruturante de uma mo- dalidade de trabalho, que se configura na relação recíproca entre interações técnicas e interpessoais dos agentes de áreas diferentes do trabalho (Peduzzi, 2001). Todos os entrevistados descrevem, em algum nível, a relação interins- titucional e multiprofissional de seus serviços, o que demonstra a adoção de componentes funcionais na criação de interfaces do conhecimento. Os critérios teóricos que estruturam a execução destes serviços, possuem Fundamentação Política-Legal nas diretrizes nacionais do Sistema Único de Assistência Social supracitadas. No processo de resolução de demandas, os ser- viços produzem encaminhamentos entre as instituições da rede para tratamento específico, mas consoante as disposições das entidades psicossociais. Ou seja, ao ser acolhido no serviço, a pessoa atendida passa a conhecer e integrar a rede sistêmica de dispositivos públicos, o que torna imprescindível a criação de diá- logos inter-institucionais entre gestores e diretrizes burocráticas para assegurar o acolhimento e resolução de problemas. O fortalecimento e constante atualiza- ção de informações pelas vias comunicacionais assegura funcionamento contí- nuo e eficaz destes serviços, o que pode prevenir direcionamento e permanência em espaços e processos burocráticos não resolutivos. Percebe-se, a partir das narrativas, que os profissionais que oferecem atendimento técnico especializado (Psicólogos, Assistentes Sociais e Médicos) se baseiam em “técnicas gerais” de manejo de grupo e acolhimento individual das demandas, sem denominação específica a ser descrita; também não houve relatos que descrevessem a instru- mentalização (protocolar ou metodológica) de embasamento empírico na esco- lha de decisões. Desta maneira, não significa que não há utilização de teorias es- pecíficas, mas, que estas não seriam generalizadas nos protocolos institucionais, e sim singulares as características individuais dos trabalhadores. Ainda sobre a resolução de demandas, observa-se que a Visão/Postura Ex- pandida de Acolhimento fomenta a noção de que outros fatores sistêmicos, para

364 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. além da relação serviço-usuário, podem influenciar na solução de demandas. Este aspecto permite aos profissionais um olhar expandido sobre mecanismos que im- pactam diretamente a eficácia de suas intervenções, já descrito na literatura como um recurso essencial dos trabalhos em rede (Sluzcki, 1997; Uber & Boeckl, 2014). A partir das narrativas, evidencia-se uma postura para além das obrigações preco- nizadas em cada serviço, o que demonstra que há intencionalidade na disposição oferecida no atendimento, como por exemplo, a preferência por caminhos inter- ventivos extrajudiciais que não demandem atraso burocrático, o que proporciona agilidade no serviço e evita o atraso do processo em instâncias jurídicas. Porém, esta postura depende ativamente da mediação entre condições físicas e subjetivas dos recursos disponíveis ao serviço e ao servidor. Para a implementação e execução dos programas, a criatividade e a persistência foram relatadas como facilitadoras das práticas diárias. Se percebe que o in- vestimento pessoal se torna parte do instrumento de aperfeiçoamento das in- tervenções, uma vez que as características individuais fomentam as direções adaptativas frente às especificidades do sistema público. Como substancial a estes recursos, os entrevistados relatam que a própria comunicação entre a rede é indispensável pro acontecimento dos programas, o que a reafirma a essencialidade sistêmica do serviço. O suporte institucional burocrático entre os membros e entidades da rede também acontece com compartilhamento de serviços (ações sociais conjuntas), de equipamentos (computador, van, salas) e de pessoas (reuniões entre departamentos para atualização de serviços). A prática de compartilhar recursos se mostra como uma estratégia que os depar- tamentos firmaram para sua própria manutenção, frente à austeridade fiscal. Em relação a essa escassez de recursos, as narrativas abordam um aspecto comum: o processo de sucateamento dos serviços pautados em políticas assis- tenciais. Este processo se mostra presente nos setores de educação, saúde e assis- tenciais, descrito na literatura (Behring, 2003; Correia, 2005; Bravo, 2006; Cas- tilho, Lemos & Gomes, 2017) como reflexo de políticas neoliberais, amparadas sobre o discurso da austeridade fiscal. A crise econômica possibilita a reafirmação hegemônica do mercado, na promoção de um estado mínimo que terceiriza seus serviços, a fim de reduzir os custos. Observa-se no teor das narrativas, que esta tendência de sucateamento atravessa os processos de implementação dos meca- nismos interventivos nos serviços de saúde, socioassistenciais e jurídicos. Este modelo de reforma estatal atinge diretamente as camadas da popu- lação que não possuem recursos financeiros para acesso e permanência nos serviços supracitados de forma privada, o que fomenta o aumento dos níveis de desigualdade no Brasil (Domingues, 2017). Ressalta-se que a diminuição

365 Edelamare Melo (Organizadora) dos recursos também impacta diretamente na qualidade do serviço, o que promove a popularização de discursos que invalidam as atuações de agentes estatais e suas instituições. Logo, a solução apresentada seria a terceirização do serviço por empresas privadas que obteriam “maior eficácia” na dissolu- ção de problemas, o que traz retorno a modelos filantrópicos e clientelistas, substanciados pela lógica do mercado (astilho, Lemos & Gomes, 2017), insu- ficientes na redução ativa da desigualdade social. Percebe-se que outro fator influencia ativamente a direção dos repasses financeiros, que permeia o micro e macro-cosmo político das decisões: os valores morais. A moralidade heteronomartiva fomenta espaços de signifi- cações que direcionam o olhar e capital estatal para longe das demandas de minorias sexuais. Discursos e comportamentos homofóbicos são reflexos de estruturas maiores que consolidam normas e expectativas culturais, estrutura- das sob a égide patriarcal heteronormativa (Rich, 1980; Warner, 1991; Butler, 2003). Essas prerrogativas sociais apresentam consequências similares na redução da qualidade de vida, marginalização, agressões físicas, violência psíquica, vulnerabilização social, susceptibilidade maior ao suicídio e uso abusivo de substâncias (citado por Da Silva, Lordello & Murta, no prelo). A perpetuação deste status quo mantém, essa população desassistida em vulnerabilidade. Ainda, com mudanças constantes de gestão institucional, as prio- ridades do serviço tendem a sofrer alterações, desde a suspensão até o encerra- mento de programas vigentes. Um dos relatos afirma que é necessário “enfren- tamento pessoal” à instituição, enquanto profissional, para que haja manutenção das políticas em vigor nos serviços. Compreende-se \ambivalência gerada a essa dependência central do capital público, o que restringe as possibilidades de ações efetivas de asseguramento de direitos e enfrentamento à discriminação sexual. O corte de verbas atuais e diminuição de investimentos em serviços socioassisten- ciais representa um perigo direto na contenção dos ciclos contínuos de miséria e violência em populações vulneráveis, especialmente minorias sexuais. Neste sentido, capacitar profissionais que lidem com a diversidade pro- move o desenvolvimento de recursos protetivos para esta comunidade, uma vez que estimula a aproximação e permanência de minorias sexuais aos ser- viços especializados. A preparação destes profissionais para a entrega de in- formações sensíveis, influencia potencialmente a qualidade do atendimento, o que promove mais segurança na performance técnica dos trabalhadores e na ativação de possíveis atores como recurso protetivo (Miller & Bayer, 2012). Um elemento central que pode ser desenvolvido na capacitação é a sen- sibilização do profissional e a fomentação de um interesse genuíno pela mu-

366 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. dança de paradigma, resultante do preconceito. É imprescindível que não haja espaço para instrumentalização da homofobia nos mecanismos institucionais. Desenvolver um ambiente seguro e inclusivo à diversidade de pensamentos precisa ser uma possibilidade dentro do serviço. Uma forma de assegurar autenticidade nesse processo é a participação direta ou indireta de pessoas LGBT+ no planejamento e execução da implementação, já descrito na litera- tura como eficaz em evitar adversidades contextuais na entrega da interven- ção (Bartos, Berger & Hergarty, 2014). Este aspecto pode ser ilustrado pelo relato de um profissional que narra a participação de sujeitos LGBT+ como facilitadora no processo de aborda- gem e atendimento de minorias sexuais em situação de rua:

[3] “Nossa equipe é formada por LGBTIS, com dois gays, duas trans e uma lésbica então a linguagem na abordagem e acolhi- mento facilita a interlocução e recepção. A vivência também conta bastante.”

A atuação legítima de profissionais LGBT+ na construção de diretri- zes de ação, que substanciam as tomadas de decisões, pode evitar a rigidez institucional relacionada as peculiaridades da vivência não-normativa, como por exemplo, a sistematização do uso do nome social nos formulários e no tratamento dos servidores ao público. Em meio às adversidades percebidas em todos os níveis sistêmicos, com- preende-se o porquê do empobrecimento da cultura de avaliação dos servi- ços. Na gestão de recursos, é incontestável que a realização de monitoramento e avaliação dos serviços formam um percurso de obrigatoriedades, e de ações que endereçam os objetivos definidos previamente, onde nem sempre há possibilidade de autonomia por parte da equipe ou gestores (Carvalho, et. al., 2012). Os relatos que descrevem a ausência desses indicadores, justificam a falta de tempo dentro dos serviços, o que alerta pra necessidade de instaurar mecanismos estratégicos para consolidar sistematização das avaliações. Neste sentido, a produção cientí- fica pode oferecer uma adaptação teórica para a ressignificação destas práticas,, uma vez que o conhecimento construído nas instituições de ensino devem ser testados e multiplicados em benefício da sociedade. Embora seja uma das prioridades preconizadas nas normas operacio- nais do SUAS e do SUS, supostamente há um empobrecimento desta cultura no Distrito Federal. No SUS, por exemplo, Paim (2003) reitera o movimento progressivo de iniciativas de avaliação em saúde no Brasil, nos últimos trinta anos, e que pode-se afirmar que o interesse pela avaliação não se restringe ao

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âmbito acadêmico. É preciso, então, que seja de interesse das esferas gover- namentais e da população a averiguação desses dados, por meio de estudos, para o subsídio de financiamentos e a responsabilização dos gestores regio- nais no processo de tomada de decisões administrativas. Logo, a dependência da avaliação apenas na ponta do serviço impede uma construção robusta e significativa de dados para estes aportes. A interface produzida pelas etapas de Exploration e Implementation, em conjunto com os conceitos abordados na Intervention Mapping Approa- ch, possibilitou uma interpretação dos contextos em que se desenvolvem às etapas cruciais de uma intervenção. Considerações Finais O processo de implementação é crucial na estabilização de um projeto, e possibilita um território “seguro” para que o processo de intervenção ocorra. Quando discute-se o desenvolvimento de uma intervenção complexa, o sucesso em conseguir estruturar a base do projeto em andamento influencia as escolhas temporais de custo e benefício; logo, possuir uma ferramenta de implementação bem articulada com o design do projeto é uma forma de otimizar seus aspectos operacionais e reduzir seus custos (Hoekstra et. al., 2014). Utilizar o EPIS como componente estruturante para guiar o processo de exploração e implementação, permite a percepção das potencialidades a serem desenvolvidas e a possíveis barreiras a serem trabalhadas. Ainda, de acordo com as teorias discutidas so- bre o embasamento de intervenções (Aaron et. al., 2011; Bartholomew et. al., 2011; Moore, et. al., 2013), compreender o funcionamento da intervenção, em interface com seus dispositivos e contextos operacionais (serviços, profissionais e instituições) reflete sua efetividade, de forma que controle das variáveis deter- minantes do processo conduz segurança nas etapas de implementação. Os diferentes níveis de gestão envolvidos nos serviços podem oferecer uma otimização do alcance e da qualidade do serviço. A partir das relações institucionais, podemos promover uma malha na rede de serviços que possa receber demandas que já estejam sobrecarregando os dispositivos existentes. Em junção, as instituições podem expressar um poder interventivo enorme, englobando interfaces de nível assistencial, psicológico e jurídico. Qualquer pessoa pode se tornar um recurso protetivo e fortalecedor para os que se encontram em vulnerabilidade. Nós, enquanto profissionais técnicos, podemos contribuir tecendo caminhos que possam ser trafegados por todos. Identificar especificidades que produzem sofrimento, qualificando em formato de demanda, pode ser um dos primeiros passos na promoção de saúde (Poleja-

368 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. ck e. cols. 2016). O fortalecimento de ações como essa dependem diretamente dos vínculos institucionais forjados a partir de conexões humanas, valorizando a ideia de sujeito-interventor como também ator que possui protagonismo. As ma- trizes dos serviços observados parecem se alinhar com as propostas elucidadas no Brasil Sem Homofobia (Brasil, 2004), supracitadas na introdução. Referências Bibliográficas Aarons, G. A., Hurlburt, M., & Horwitz, S. M. (2011). Advancing a conceptual model of evidence-based practice implementation in public service sectors. Administration and Policy in Mental Health and Mental Health Services Research, 38(1), 4–23.

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Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Do navio negreiro ao século XXI - provocações democráticas à política brasileira.

Melillo Dinis do Nascimento1

1. Introdução Construímos parte de nossa história a partir dos terríveis e dolorosos preconceitos, dos racismos, das discriminações e de seus reflexos nas rela- ções de trabalho, produção, consumo, cidadania e política. Não é possível pensar o Brasil, com toda a sua complexidade2, sem considerarmos o fato de que, em grande medida, somos o que somos em decorrência desses perma- nentes conflitos, lutas de classes e de grupos sociais, em que se consolidou o modo brasileiro de exploração e superação, fruto das nossas próprias relações de poder e dominação. Desde os navios negreiros que construimos a nossa luta contra o mundo da exclusão, da discriminação e do preconceito3.

1 Advogado em Brasília-DF (www.melillo.adv.br) e analista sênior do Inteligência Política (www.inteligênciapoli- tica.com.br) 2 Há um permanente desafio de compreender o fenômeno da complexidade para o pensamento político, cf. ZOLO, Danilo. Democracia y complejidad. Un enfoque realista. Buenos Aires: Nueva Visión, p. 231 e ss. Há uma comple- xidade epocal, sistêmica e epistêmica. Ela é gerada e gera as formas que se relacionam os elementos de um sistema social e político. Quando a quantidade dos mesmos aumenta, já não é possível relacionar cada um dos elementos no mesmo momento, com cada um dos outros elementos, nem ao mesmo tempo, com cada um dos outros, criando as- sim uma situação de complexidade que cresce em proporções geométricas. Luhmann (1998) sustenta (p. 47): “Com- plejidad en el sentido mencionado, significa coacción de la selección. Coacción de la selección significa contingen- cia, y contingencia significa riesgo. Cualquier estado complejo de cosas se basa en una selección de las relaciones entre los elementos, los cuales, a la vez, son utilizados para constituirse y conservarse. La selección sitúa y cualifica los elementos, aunque para éstos fueran posibles otras formas de relación. Designamos este ‘ser posible también de otro modo’ mediante un término cargado de tradición, que es el de contingencia. La contingencia advierte sobre la posibilidad de error aun en la mejor posibilidad relacional de los elementos”. Cf. LUHMANN, Niklas. Complejidad y modernidad: De la unidad a la diferencia. Madrid: Ed. Trotta, 1998. 3 Adoto aqui como premisssa o pensamento clássico de Florestan Fernandes. Apesar da grande tradição sociológica deste autor em seus textos, os temas que interessam para este artigo estão reunidos aqui: FERNANDES, Florestan. Significado do protesto negro. São Paulo: Cortez, 1989. Há uma especificidade na dimensão racial que não é en- globada pela problemática da classe, embora as duas devam caminhar juntas. São várias as dimensões de luta. Este pensamento geralmente é mal interpretado. Quando se destaca apenas um aspecto há um isolamento prejudicial à luta política. É apenas na conjugação que as especificidades podem ser defendidas. Nas palavras de Fernandes: “Muitos acham que o potencial do negro é melhor aproveitado quando ele se afirma só como raça. Mas se ele se afirmar somente como raça ele vai se isolar. O negro deve estar junto com os grupos que podem levar o protesto social até o fundo, pois se o negro estiver presente ele irá dinamizar o espaço político das classes trabalhadoras. É por isso que eu acho que é o momento de um lance entre raça e classe. Não para neutralizar o elemento raça, pois se neutralizar não haverá grupo humano que vá apresentar as reivindicações que são específicas da população negra. É imperativo que o negro entre como e enquanto negro, mas também substancialmente como negro que faz parte das classes despossuídas e das classes trabalhadoras e assim ele pode viver os dois papéis políticos simultaneamente e dar maior eficácia aos dois. Se ele tentar se isolar, ele vai falar sozinho, não aproveitando o espaço político que está 373 Edelamare Melo (Organizadora)

Todavia, não me presto, neste pequeno artigo, a uma regressão histórica nem a uma digressão sobre o presente. É muito e para atender as premissas deste simpósio4, penso em deixar com os historiadores o que é a história. Quero oferecer provocações democráticas ao futuro de nossa presença na so- ciedade brasileira. Mesmo que ainda estejamos, quase sempre, com muitos dos nossos depositados como carne no fundo deste navio que balança por mares nunca dantes navegados. 2. Virou A página virou. O capítulo acabou. Vivemos um outro livro. Provavel- mente é um novo livro eletrônico cujos personagens e conteúdos mudam a cada abertura do seu aplicativo de leitura. Quando não pulam constantemente de um aparelho de leitura para outro. Ou do computador para o celular. E vi- ce-versa. Estas expressões são importantes porque enfatizam o que temos no surgindo; se falar unicamente como classe ele não levantará as bandeiras que são essenciais, porque a desproporção que existe nos padrões de carreira entre brancos e negros é enorme. Ninguém pode negar isto. É preciso que o negro coloque seus problemas, porque na desigualdade existem os mais desiguais; e as desigualdades que afetam o negro o afetam em termos de classe mas também de raça” (FERNANDES, 1989, p. 74-75). Essa perspectiva talvez ajude a compreender porque, para o autor, afirmar-se politicamente somente pela raça, no Brasil, pressupõe uma utopia (cf. FERNANDES, 1989, p. 61). O protesto negro não deve isolar raça e classe, pois na sociedade brasileira as categorias raciais não contêm, em si e por si mesmas, uma potencialidade revolucionária: os estoques raciais perdem o seu potencial revolucionário e diluem seu significado político como limite histórico da descolonização e da revolução democrática quando desvinculados da estrutura de classes da sociedade brasileira, da marginalização secular que tem vitimado o negro nas várias etapas da revolução burguesa e da exploração capitalista direta (FERNANDES, 1989). Mas as limitações e os perigos do isolamento são também identificados da perspectiva das classes sociais. Ele aponta que é imperativo que a classe redefina sua órbita, tendo em vista a composição multirracial das populações em que são recrutados os trabalhadores – todos os trabalhadores possuem as mesmas exigências diante do capital, mas existem trabalhadores que possuem exigências diferenciais, e é imperativo que encontrem espaço dentro das reivindicações de classe e das lutas de classe (FERNANDES, 1989, p. 61-62). Em uma sociedade multirracial, na qual a morfologia da sociedade de classes ainda não fundiu todas as diferenças existentes entre os trabalhadores, a raça também é um fator revolucionário específico. Em suma, para Florestan Fernandes classe e raça se fortalecem reciprocamente, e combinam forças centrífugas à ordem existente. No seu projeto político viceja a ideia de jogar contra tal ordem (contra o capital) não só o dinamismo negador da classe, mas todos os dinamismos revolucionários possíveis, entre eles a raça. Talvez essa seja a dimensão essencial para captarmos a atualidade do seu pensamento, nas questões aqui propostas. Antes de tudo, é preciso enfatizar que os conflitos na sociedade brasileira devem ser evidenciados, e não poderemos fazer isso enquanto colocarmos como bem incontestável uma suposta paz e harmo- nia sociais. Os conflitos devem ser trazidos à tona porque é através deles que as camadas desfavorecidas podem expressar seu descontentamento, apontando os elementos estruturais que obstaculizam a sua classificação social como sujeitos portadores de direitos. Uma sociedade sem conflitos é, fundamentalmente, não uma sociedade harmô- nica, mas uma sociedade que reprime os anseios sociais das camadas desfavorecidas. Mas as reflexões de Florestan Fernandes nos ajudam a delinear ainda outro aspecto desses conflitos. Trata-se de uma perspectiva que preza pela interseccionalidade, pelo não exclusivismo no âmbito das lutas políticas. Ainda que num primeiro momento uma perspectiva como essa possa ser vista como desmerecendo as especificidades das questões em pugna – e já vimos que não é o caso – é preciso pensar que, numa conjuntura como a atual, em que a defesa da fragmentação das lutas tende a obedecer interesses voltados para a conservação do atual estado de coisas, a defesa da sua interpenetrabilida- de (não só em termos de raça e classe, mas também de gênero, orientação sexual, etnia etc.) adquire um verdadeiro caráter democrático – quiçá revolucionário, diria talvez Florestan Fernandes, sem temer assumir corajosa e esperan- çosamente a defesa dos interesses e valores das camadas desfavorecidas. 4 Que infelizmente não conta com todas as tradições gregas que originaram o συμπόσιον. 374 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. presente: imprevisibilidades! Para usar a imagem do título, estamos navegan- do por águas pouco ou nunca navegadas e sem as cartas náuticas necesssárias. Perdemos o rumo e não temos coesão! No Brasil, o pacto político que organizou o país não existe mais. Des- truiu-se por si próprio, envolto em uma série de espasmos que modificaram- no até ao ponto de desaparecer quase que completamente. Surgiu outro pacto: o PRESIDENCIALISMO DE COLISÃO! Como a realidade é complexa, especialmente a brasileira, a ideia é ex- plorar um pouco dois conceitos a partir de uma realidade do poder: a gover- nabilidade e a governança. O poder é sempre uma experiência de força. Mesmo nos modelos mais colaborativos, há, lá no fundo, um movimento permanente das forças que colaboram. Quando não há colaboração, há maior evidência das tensões e disputas das diferentes forças. O poder e seus atores ficam mais explícitos. As ideias de governança e governabilidade estão relacionadas com as grandes condições de organização dessas forças. Governança tem origem na expressão inglesa “governance”. Tem a ver com a capacidade de governar. Já “governabilidade” relaciona-se com as condições estrutu- rais de um modelo político. Governabilidade é como se exerce o poder em um dado momento histórico e em um território específico (sistema político, forma de governo, relações entre poderes, sistemas partidários etc.). Aqui estão os condicionantes do exercício da autoridade política. A governança vai qualificar o modo de uso dessa autoridade. É o momento da tomada de decisões e de se levar adiante as políticas pú- blicas em maior ou menor articulação com a política de um país. As decisões são tomadas, quase sempre, a partir de movimentos que po- dem ser paralelos, opostos ou isolados uns dos outros. De um lado, sempre há uma decisão política-técnica e administrativa, que parte das instituições e seus líderes. Do outro, há um conjunto de atores sociais que, intermediando interesses na forma de políticas, expressam a sua participação nas decisões, seja de forma organizada ou desorganizada. De um modo ou de outro, vão se construindo, por meios formais e informais, os padrões de articulação, disputa e cooperação entre atores sociais (e políticos) e arranjos institucionais que co- ordenam e regulam transações dentro e através das fronteiras do sistema econô- mico. Incluem-se aí, não apenas os mecanismos de agregação e articulação de interesses, como também redes sociais informais, hierarquias e associações de diversos tipos. Assim, a maior ou menor capacidade de governança dependeria, por um lado, da possibilidade de criação de canais eficientes de mobilização e envolvimento da comunidade na participação de políticas públicas e, por outro,

375 Edelamare Melo (Organizadora) da capacidade operacional da burocracia governamental, seja nas atividades de atuação direta, seja na sua capacidade efetiva de regulação. No Brasil, uma das “novas democracias”, que, nos anos 80, foram palcos de profundas reformas políticas democráticas sem a necessária contrapartida de inovação efetivas na área econômica e social, este quadro de relações entre a go- vernabilidade e a governança sempre se deu em meio as instabilidades destes Es- tados, decorrentes da incorporação das massas à dinâmica da composição política antes que se obtivesse estabilidade na institucionalidade das regras dessa mesma competição. Nosso país sempre tendeu à violação constantes das normas (im- punidade, corporativismo desregulado, criminalidade e insegurança, corrupção, extorsão de renda sob violência etc.) comprometendo a credibilidade da lei e ma- ximizando os efeitos perversos oriundos das próprias tentativas de formalização da intervenção estatal, numa situação de constante imprevisibilidade, de ausência de “regras do jogo” fixas e confiáveis. Todo este quadro nos trouxe até aqui. 3. O fim de uma época A maior probabilidade é que encerramos um momento histórico na política brasi- leira. Após 30 anos da redemocratização (1988), o ano de 2018 finalizou o pacto político denominado “Nova República”. O arranjo institucional que a caracterizava acabou. Isso se deve a uma série de fatores, incluindo uma maior fragmentação partidária e maior competitividade eleitoral. O Presidente Jair Bolsonaro quebrou o padrão de pelo menos 24 anos de polarização entre PT e PSDB nas eleições presidenciais. Poderia afirmar que isto se deu em conjunto com seu partido político, o PSL. Mas não seria preciso. O nome de seu partido, independentemente de seus quadros, não importou muito neste processo. Apenas foi a via para se atingir o percurso legal do sistema eleitoral brasileiro. Emergiu uma nova elite dirigente que não tem vergonha de mostrar a sua visão de mundo, muito provavelmente no formato de um misto de libera- lismo tropical e de um misto de atraso com conservadorismo5 e populismo6.

5 Estes conceitos na experiência brasileira, com um passado colonialista, patrimonialista, autoritário e escravocrata, assumem um sentido completamente diferente dos países centrais. No Brasil, a extrema-direita (o que chamo de atraso) e o neoconservadoris- mo emulam várias das características do pensamento conservador, mas sempre de uma maneira farsesca, as vezes quase cômica. Dos movimentos da Europa Oriental reproduzem a luta contra o comunismo e o antagonismo às minorias, mas num país que nunca teve um governo comunista, ou mesmo esteve sob a ameaça efetiva de um levante “vermelho”. Do debate norte-americano, com meio século de atraso, ressuscitam o discurso sobre a necessidade de combater os “ativismos”, que teriam hegemonizado as universidades por meio do “marxismo cultural” e seriam responsáveis pela degradação dos valores da “verdadeira” Nação brasileira. Por fim, mas com o sinal contrário em relação aos partidos da Europa Ocidental, seu nacionalismo populista é neo- liberal e cosmopolita, pretendendo preterir as indústrias e o emprego nacional pelo regresso as relações econômicas norte-sul, num papel de clara subserviência aos interesses dos EUA. Portanto, nem todo conservador pertence e se identifica com a extre- ma-direita, ainda que, em função da atual conjuntura política e econômica, tenham formado um grande bloco que veio a eleger esse projeto. Na minha visão, a manifestação do atraso brasileiro, ultraliberal, neopentecostal e militarista, sequer é compatível com o pensamento conservador. Ver CASTELLO-BRANCO, José Tomaz. Conservadorismo. In: João Cardoso Rosas e Ana Rita Ferreira (Orgs.). Ideologias políticas contemporâneas. Coimbra: Almedina, 2016. Também LÖWY, Michael. Conservadorismo e extrema-direita na Europa e no Brasil. Serv. Soc. Soc. 2015, nº.124, pp.652-664. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/sssoc/ n124/0101-6628-sssoc-124-0652.pdf. Acesso em 20 set. 2019. 6 LACLAU, Ernesto. La razón populista. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2005. 376 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

A burocracia de origem militar retornou ao quadro central do poder políti- co como uma força auxiliar do presidente nesse novo arranjo institucional, já que estão em última instância subordinados a ele. Mas, esse processo de politização dos militares não é isento de oposições entre os generais. Espe- cialmente quando se considera os que estão na ativa e os que, já reforma- dos, foram participar da gestão federal. E sem contar o distanciamento entre altos oficiais e parte da tropa, especialmente os de menor patente. Parcela significativa do mercado deu um ar de futuro ao velho liberalismo. E, numa reviravolta daquelas, reapareceram os temas morais como mobilizadores das classes médias urbanas. Então, mais que retrocessos, eu diria que este novo ciclo político, e de disputas, está começando. 3.1. O passado: o presidencialismo de coalizão Após a presença de Collor de Melo (PRN, 1990-1992 – impeachment com a assunção de Itamar Franco – PMDB – até 1994), houve a alternância dos dois partidos socialdemocratas (PSDB7, 1995-2002, e PT8, 2003-2016 com dois anos de governo do MDB por conta do processo de impeachment de Dilma Rousseff), cada qual com nuances mais próximas de posições denomi- nadas de centro-direita ou de centro-esquerda. Ao mesmo tempo, nesse período, por meio (i) da cooptação sistemá- tica de outros grupamentos políticos que estavam mais que disponíveis no mercado parlamentar e (ii) da captura organizada do Estado por interesses vários, consolidou-se o que se chamou de “presidencialismo de coalizão”. Para garantir a governança, a governabilidade adotou um modelo diferente. A expressão, cunhada por Sergio Abranches, significa que: “O Brasil é o úni-

7 O Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) surgiu em 1987 como uma opção de centro-esquerda, e, de acor- do com seus fundadores a agremiação nasceu alinhada com a ideologia socialdemocrata. Contudo, desde sua origem o partido apresentou duas diferenças fundamentais em relação aos clássicos partidos socialdemocratas europeus: (a) não tinha muitos vínculos com movimentos trabalhistas e (b) defendia um tipo de “liberalismo” de mercado. No decorrer de sua história, o partido muda da centroesquerda para a centrodireita demonstrando mais claramente sua verdadeira inclinação ideológica, fato que pode ser observado no posicionamento de sua bancada, no autoposiciona- mento e nas políticas que foram implementadas nos anos em que esteve à frente do executivo federal. A análise dos documentos do PSDB revela que a mudança do partido não foi de algo pragmático. O partido já apresentava simpatia às políticas prómercado em seus manifestos desde sua fundação. 8 A minha tese é que o Partido dos Trabalhadores (PT) cumpriu no Brasil de forma concentrada todas as três fases que caracterizaram os clássicos partidos socialdemocratas na Europa: (a) uma primeira apoiada nas lutas operárias, com forte conteúdo ideológico socialista e de oposição extraparlamentar privilegiando a ação direta, especialmente a grevista. Essa fase foi da fundação em 1980 até 1989. Uma segunda fase (b) é a da consolidação como partido institucional, sendo a principal força de oposição dentro do parlamento e com grande peso de deputados e de profis- sionais políticos. Ela ocorre durante uma década de fraca mobilização social, durante os dois governos FHC, entre 1990 e 2002. A terceira é (c) da ascensão ao poder, indo de 2002 até hoje, com a descaracterização do ideário “socia- lista” fundador em prol de um pragmatismo que levou a alianças com velhos adversários e a adoção de métodos de corrupção, além de uma política eleitoralmente bem sucedida de assistência social junto com uma aliança estratégica com o setor financeiro e o agronegócio. 377 Edelamare Melo (Organizadora) co país que, além de combinar a proporcionalidade, o multipartidarismo e o presidencialismo imperial, organiza o Executivo com base em grandes coali- zões. A esse traço peculiar da institucionalidade concreta brasileira chamarei, à falta de melhor nome, presidencialismo de coalizão”9. Esta nova classificação do presidencialismo brasileiro adveio de seu modo sui generis, pois, ao contrário do presidencialismo clássico norte-ame- ricano, foi praticado no Brasil um sistema com características próprias, que tinha como base o critério peculiar de o Poder Executivo buscar apoio do Legislativo para obter a realização de suas iniciativas. Após a promulgação da Constituição de 1988, o chamado “presidencialismo de coalizão” passou a ser amplamente empregado no cenário político brasileiro. Possuía o Poder Executivo prerrogativas de iniciativa legislativa, como as medidas provisó- rias e os pedidos de urgência, que sujeitavam os parlamentares a analisar e votar prioritariamente os projetos enviados por este poder. Mas, mesmo com esses mecanismos, dificilmente o governo conseguiu aprovar leis sem que desfrutasse de maioria expressiva entre os parlamentares. Isso fez com que acontecesse um esfarelamento das forças políticas nacionais. Os partidos desenvolveram um combate permanente por espaços, devorando-se entre eles por questões menores da política, sublinhando suas diferenças e intensificando o discurso demagógico para alcançar um apoio popular superficial e volátil, por meio de atos e discursos cada vez mais agu- dos acerca de qualquer tema com o apoio do marketing. Ao mesmo tempo, a disputa por verbas públicas criou uma fragmentação partidária e a criação de partidos políticos dos mais variados tipos. Nenhum dos novos partidos trouxe algo de novo à política na forma de uma proposta ideológica ou de um projeto nacional. Desta pobreza surgiu apenas mais miséria. O “presidencialismo de coalizão” deu origem a uma “parlamentariza- ção” do sistema presidencial nacional. A própria Constituição de 1988 já tra- zia esta estrutura de governabilidade em sua essência. A grande influência do Poder Legislativo na gerência do Estado cresceu no período. O Poder Execu- tivo, para poder realizar sua função de administrar o Estado, foi buscar apoio irrestrito dos parlamentares. Como forma de obter a coalizão com os partidos, utilizou-se da distribuição de cargos da Administração como ministérios, pre- sidências de empresas estatais, além das emendas de orçamento da União, onde eram passados recursos às entidades que os parlamentares indicavam.

9 ABRANCHES, Sérgio Henrique. Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro. Dados Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 31, n. 1, 1988, p. 5-34. Aqui, p. 21. Ver ECO, Umberto. Construir o inimigo e outros escritos ocasionais. Lisboa: Gradiva 378 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Portanto, o florescimento do presidencialismo de coalizão no cenário político nacional foi o palco ideal para o desvirtuamento de uma das bases fundantes do sistema presidencial, isto é, o “princípio da separação dos po- deres”. O “presidencialismo de coalizão”, viga mestra da política nacional no período pós-Constituição de 1988, acabou tendo como elementos fundamen- tais o “megapluripartidarismo” e a “infidelidade partidária”. No ciclo inaugural da redemocratização brasileira (entre 1984-1988), o Brasil passou de poucos partidos políticos registrados na Justiça Eleitoral para 35 partidos políticos em 2017 (dos quais, 22 partidos nacionais com representação no Congresso Nacional no ano de 2018), o que trouxe inúmeras críticas a sua representatividade e sua funcionalidade. Isso se ampliou com os frequentes casos de troca-troca de parti- dos, a existência das “legendas de aluguel”, o não seguimento de ideologias partidá- rias, a fragmentação do quadro partidário, dentre outros casos, fatos que demonstra- ram a fragilidade e a baixa credibilidade dos partidos políticos na sociedade brasileira. Do ponto de vista da gestão do poder e da relação entre Executivo e Legislativo, a governabilidade foi muito difícil, pois para o Executivo conse- guir o apoio político de partidos e submeter o parlamento às suas frequentes determinações, necessitava realizar uma coalizão de governo, que se tornava cada vez mais complexa e onerosa. Para que a coalizão ocorresse, na maioria das vezes, o chefe do Executivo sucumbia aos partidos, dando a estes, em troca de apoio político, cargos no Executivo. Quando não se conseguia por esses meios, utilizava-se o suborno. Nessa quadra, partidos (p. ex., o MDB – mais antigo e o PSD – mais re- cente) funcionaram como fiel da balança tanto no Congresso como nos principais estados da federação. O instrumento principal dessa coalização foi o compartilha- mento do poder político por meio da divisão do governo entre cúmplices, o que desencadeou mais um ciclo de crise face à corrupção (no modelo brasileiro). De fato, a corrupção, especialmente a corrupção pública, sempre existiu, permanece nos dias atuais, e continuará existindo, em qualquer sociedade e tipo de governo. Onde houver a combinação entre ser humano-poder-dinheiro, sem controle estarão presentes os elementos necessários para a corrupção, exatamen- te na interface entre as esferas pública e privada e no desequilíbrio entre tais elementos. Certo também é que seu sentido se altera com o passar do tempo. Há distintos contextos da corrupção pública. Em momentos, ela foi justificada pela adoção de um projeto político que necessitava de recursos para sua concretiza- ção. O tipo é (i) a corrupção para o poder. Em outro momento, (ii) a justificativa era apenas o enriquecimento pessoal, o rent seeking, o crescimento dos recursos de grupos ou corporações. O terceiro contexto era (iii) o da corrupção das prio-

379 Edelamare Melo (Organizadora) ridades. Neste caso, muito comum no Brasil, os recursos públicos foram gastos, com ou sem corrupção, privilegiando opções da máquina estatal que favoreciam apenas um grupo muito restrito, e não toda a população, ou as parcelas da popu- lação necessitadas das políticas públicas, como os mais empobrecidos. De todo modo, em alguns períodos, estes contextos estavam, cada um a seu modo, confundidos e unidos, ou separados e articulados, mas presentes no cotidiano das relações público-privadas. Havia, como há, ilhas onde a corrupção não estava (está) tão presente de uma forma sistêmica. Mas, no oceano da vida brasileira, havia (como há) sempre continentes inteiros em que a corrupção era ou é uma marca quase que indelével. Nos últimos dois anos (2016-2018) aumentou a crise da política brasilei- ra (impeachment em 2016) com (i) um executivo federal, com Michel Temer (MDB) Presidente, sem quase nenhuma consistência política em termos nacio- nais, mais empenhado em tentar escapar das várias denúncias, e (ii) a prisão de Lula (o personagem mais relevante na política brasileira deste período que se encerra – gostando-se ou não). Este quadro acirrou de forma muito polarizada a percepção da população acerca da realidade, o que permitiu o surgimento de um novo ciclo no modelo político brasileiro: o presidencialismo de colisão! 3.2. O presente: PRESIDENCIALISMO DE COLISÃO O novo modelo político brasileiro, que denomino de presidencialismo de colisão, coloca no centro das relações políticas a figura do “inimigo”. O cenário é de beligerância, conflito e guerra permanente. Quanto mais complexos são os desafios da gestão de um país, quanto mais a sua questão social e econômica é complexa, quanto mais a sua de- mocracia é instável, mais cuidado com o equilíbrio das forças e das relações institucionais e nacionais é necessário para o governante. Não dá para colocar tocar o terror do conflito todos os dias e em todas as direções. Bolsonaro, todavia, foi eleito numa onda de polarização, desencanto com a política e com os políticos, medo e tensão que se reproduziu no núcleo de seu governo e no modo de fazer política. Não é mais prioridade a coalizão. A colisão é a forma de enfrentar “tudo que está aí”. Na lógica do atual Presidente do Brasil, se o modelo de coalizão deu errado no passado, a única solução do presente é a colisão. 3.2.1. O inimigo como o centro da política Há um inimigo em cada esquina. O perigo ronda todos o tempo todo. É tempo de, sob a democracia brasileira, compreender que há uma lógica de

380 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. disputa permanente. Lá na sua origem, Bolsonaro desenvolveu esta percep- ção do mundo. Reduzido por muitos anos ao limbo do parlamento, só conse- guiu alguma proeminência quando participou de conflitos. Da mesma forma, parcelas significativas das forças políticas, a maio- ria subordinada à expressão “oposição”, passaram a adotar esta tática de guerra permanente contra quem não pensasse da mesma forma que os seus cânones. Em termos de partidos, o PT se transformou nesta máquina infernal de lutas internas para conduzir outras lutas externas. E isto nasceu sob a égide do “nós contra eles”! Piorou muito quando Lula saiu de São Paulo para Curitiba, sob a vara da Lava Jato. Em termos de personagens, exemplo consistente da verborragia militante e conflitante é Ciro Gomes, terceiro colocado nas últimas eleições presidenciais de 2018, que transformou expressões cabeludas em sua expressão da verdade. O inimigo se transformou no novo polo central da política brasileira. Não que o fenômeno seja apenas brasileiro. O termo “inimigo” não carece de precisão. Ele necessita mais é de contextualização. Os romanos o interpretavam como o “inimigo pessoal”. A hostilidade era contra a pessoa (o indivíduo) na política. No período da inquisição, onde a ideia de inimigo era motivada por uma visão de mundo em que o religioso e o estatal se confundiam com frequência, a seletividade do poder político era, sobremaneira, punitivo. Assim, os inimigos eram o estranho, o autor de delitos graves e o dissidente político. Vale res- saltar, que nesta época não era suficiente eliminá-los, era preciso extinguir a existência e demonstrar, como sempre, a magnitude do poder soberano10. Na modernidade, o Estado, como guardião da sociedade, deveria manter o controle por meio da vigilância, por meio de organização econômica e militar em torno de estruturas colonizadoras com a consequente privação das vítimas como pretexto para vigiar, disciplinar e neutralizar os “desfuncionados”. No Século XX, com o crescimento das experiências totalitárias, o inimigo transformou-se em uma estratégia de afirmação negativa, com a eliminação de milhões de seres humanos como consequência da “inimigação” de grupos e povos. No século XXI, a construção do inimigo político por meio do autorita- rismo tornou-se “cool”. O controle da política passou a funcionar com base em um autocontrole oferecido aos controladores. A liberdade deixou de ser privada e passou a ter uma redução significativa por ação dos próprios cida- dãos, que a entregou para as redes sociais e para o controle dos algoritmos. Para a política, a metamorfose desses tempos determinou a valorização do inimigo de uma outra forma.

10 Ver ECO, Umberto. Construir o inimigo e outros escritos ocasionais. Lisboa: Gradiva, 2011, p. 11-36. 381 Edelamare Melo (Organizadora)

Nesses tempos de autoverdade o inimigo é qualquer que não pense da mesma forma. Ou que não seja aquilo que chamamos de nossa autoverdade. E que nos seja diferente, por qualquer razão que se estabeleça como distinta e necessária para nos colocar na condição de antagônicos, que nos faz desuma- nos pela razão de desejarmos uma outra humanidade. Reduzimos o diálogo político ao tiroteio virtual quando não real, potencializado pelas redes (anti) sociais e mitigado pelo distanciamento da política com a sua capacidade de estabelecer soluções mínimas para a maior parte das populações. Bolsonaro foi o personagem para os tempos políticos brasileiros, como Trump o foi para os EUA, ou López Obrador para o México, para ficarmos apenas neste grande continente. São personagens distintos mas iguais na es- sência de suas relações políticas: há um permanente inimigo! 3.2.2. O governo da porteira para fora: o inimigo Houve um tempo do bate e assopra. Era assim a política. Agora é diferen- te. Apenas se bate. Sem distinção quando se trata das instituições. Sejam elas estatais ou sociais, a moda presente nas relações políticas é bater primeiro para bater depois. Pouco juízo harmônico resta e o estremecimento ronda a tudo e a todos. Basta pensar no permanente cabo de guerra entre o Executivo atual e o Congresso Nacional. Ou entre o Judiciário e os demais poderes, que deixou de ser “moderador” para se converter em um gerador de conflitos. O equívoco mais frequente deste estilo é imaginar que o poder decorre exclusivamente dos resul- tados eleitorais. Uma vez vitorioso tudo se pode fazer em nome de um movimen- to de um grupo em ação política nacional. Ledo engano. Resultado: incoerências, instabilidades e imprevisibilidades. Basta olhar para a economia e seus índices mais nervosos, como o dólar e a bolsa de valores, que se pode constatar o óbvio. Da mesma forma, os atores governamentais adotaram o estilo bate-bate estaca com a maioria dos atores sociais e políticos. Um exemplo foi o bode ex- piatório das universidades públicas. Muitas vezes o clima piora e o bate-cabeça governamental explicita decisões ou indecisões de métodos para atingir os mes- mos objetivos. Daí para uma mobilização nas ruas pode acender o fogo de uma oposição que ainda está anestesiada. A Venezuela, os países árabes, o prefeito de Nova York já estiveram na linha de tiro. O carnaval e suas danações, os temas da cintura para baixo, o revisionismo histórico (não houve ditadura cívico-militar, a escravidão ajudou muito a todos, especialmente os escravos), o globalismo e “o” Paulo Freire também já pautaram o modo do fazer político do atual governo. A questão, dada a superficialidade dos embates e sua pouca consistência social, é que resta evidenciado que as cortinas de fumaça são apenas cortinas.

382 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

3.2.3. O governo da porteira para dentro: o inimigo Estruturado para dar errado, o governo acabou por se transformar em ilhas dis- tanciadas, desarticuladas e em permanente disputa. Jair Bolsonaro tem dificuldades para trabalhar com equipes: desconfiança destrutiva, equipe com poucos nomes com reconhecida qualificação para os complexos desafios brasileiros, família do “barulho” na política (os filhos desempenhando um papel incomum na democracia brasileira), aliados determinados demais, submissão ao humor das redes sociais, áreas pirotécni- cas (como Relações Exteriores, Educação e Direitos Humanos) e pouca capacidade de articulação com os políticos tradicionais (o que muitos veem como uma vantagem), a não ser quando eles se adequam aos padrões preferidos pelo ethos palaciano. Nem os aliados do seu partido (o PSL) aguentam tanta tensão. O governo, para complicar, prefere uma comunicação horizontal com a população, sem muitos filtros, em especial pelo Twitter. Foi eleito com um conjunto de propostas desarticuladas. E, no governo, Bolsonaro não conseguiu ainda levar adiante projetos nacionais, exceto a proposta de reforma da previdência – o que é pouco ante ao grave quadro nacional. A dependência de atores folclóricos como Olavo de Carvalho, um “guia” de parcela inusitada de atores políticos, o modelo de lacração presente em quase todas as declarações, posteriormente mediadas pelo porta-voz, a vontade perma- nente do combate, e suas limitações mais instintivas fizeram do capitão um refém do seu próprio personagem no exercício do mandato presidencial. Jair tenta ser o Messias, seu segundo nome, com seguidores messiânicos tão imbuídos de con- frontos quanto de irracionalidade. Fortalece sua militância mas afasta os demais! Há ministérios em permanente guerra interna. Há grupo palacianos em total desa- cordo com os rumos e os métodos. Onde está localizada uma maior quantidade de racio- nalidade palaciana – a burocracia de origem militar – é alvo constante de uma artilharia conhecida como “fogo amigo” e adotou uma prática de silêncio eloquente. As demissões de cargos e de colaboradores são tão rápidas que os ascensoristas das repartições pú- blicas estão sem saber bem como cumprimentar as autoridades (em Brasília, quando a autoridade se transforma em ex-autoridade, há um código específico de tratamento, que mistura desdém com piedade por parte dos ascensoristas). Confusão e colisão. 4. A política da colisão A política da colisão é a antipolítica. Ao invés de cidadãos ou súditos o que temos é uma torcida desorganizada diante do poder. Presente nas redes virtuais, ela possui um único capitão quando se olha das arquibancadas: Jair Messias Bolsonaro! Ou a favor ou contra. Os jogadores mudam conforme o resultado do tiroteio, quando se olha a partir de dentro do campo. Um dia o presidente da Câmara dos Deputados é amigo e, no outro, é inimigo. Num

383 Edelamare Melo (Organizadora) dia o vice-presidente é um ganho para a gestão e no outro é o pior traidor. As vezes todas as possibilidades durante o mesmo dia. As instituições são desprezadas neste modelo. Elas são também inimigas. O conhecimento e a ciência são preteridas pela opinião do social influencer do Twitter e pela participação da tiazinha do WhatsApp. Isto sem contar com os milhões de perfis falsos que são acionados a serviço do “quanto pior melhor”. Isto se alastra em todos os sentidos e a partir de amplos campos sociais e políticos. Não dá para dizer que é algo inédito na história da política. O que mudou foi a velocidade, pois mudou o tempo. Vivemos uma metamorfose e não sabemos bem onde vamos parar. O Brasil também. Os países vizinhos nos acompanham com perplexidade, seja pelo nosso tamanho, seja por nossa histórica relação de codependência, seja ainda por que não nos cansamos de os espantar com as posições e situações mais inusitadas possíveis. Mas por aqui tais relações contaminaram os mais variados grupos. E ficamos girando em torno dos “mitos” políticos recentes (Lula e Bolsonaro) como se a impor- tância da política dependesse apenas dos personagens e não dos processos. Na vida real, em que se tem que lutar para pagar as contas, produzir, criar os filhos e, em suma, viver, as questões fundamentais não mudaram. Há graves problemas no Brasil. Os nossos conflitos são mais profundos que apenas a mudança ministerial. Há ainda uma ordem, mas há cada vez mais, de forma simultânea e arriscada, caos e violência. A tradição brasileira do Estado é de não lidar de forma democrática com os conflitos. Não foi assim no período colonial, nem no Império, muito menos na República. Em decorrência desse quadro é que podemos compreender a presença quase que permanente dos militares na política nacional, desde o início da República, como força nacional, repressora e aglutinadora. A desigualdade entre o institucional e o processo sócio-político, os vários interesses sociais presentes a partir dos mais variados e diversos atores, deram uma acelerada na fragmentação nacional nos últimos 20 anos. Perdemos o rumo e o prumo, mas ao mesmo tempo estamos em franco processo de desagregação nacional. Quando o governo central é a fonte principal da tempestade e o barco do país tem furos por todos os lados, navegar sempre é um risco extremo. Na altura desta análise, há uma conversa frequente entre formadores de opinião que o governo Bolsonaro pode não chegar ao fim se mantiver esta velocidade veloz rumo ao paredão da política. E estamos ainda no primeiro ano do novo governo. Há diversos cenários possíveis. O som e a fúria serão sempre a base desses cenários. Não me parece que tenhamos condição de exercer, como país, como governo, como classe política, como elite, como população e como brasileiros

384 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. o exercício da parcimônia, do consenso e do fundamental diálogo político entre diferentes. Receio que o diálogo esteja difícil até entre os iguais por estas bandas. Tem famílias que não se falam, por razões políticas, desde 2016. De toda sorte, a aposta de Jair Bolsonaro é por um populismo de comba- te (outro nome para presidencialismo de colisão). A mobilização das emoções é seu núcleo, mesmo que a principal delas esteja sob a sina da fúria, exposta diuturnamente nas redes sociais e da disputa política insana de todos contra todos. A paixão é a identificação afetiva de uma população contra as elites, seus costumes (“depravados”), seus padrões (“insensíveis”) e suas palavras (“superficiais”). As lealdades tradicionais estão se rompendo no Brasil e, na hora do cada um por si, o ódio pode ser tão transformador quanto perigoso. O populismo de combate necessita apenas do inimigo e não de um con- teúdo ideológico. Veste qualquer roupa pois vem das sombras da vida políti- ca nacional. Ao agrupar uma série de demandas heterogêneas dirigindo-as a um inimigo comum e mutável, apesar de ser uma operação eminentemente formal, seu sentido é o contrário da forma. É um movimento, insurgência e espírito contra os marcos constitucionais e legais até aqui conquistados. Não é apenas imprudência. É uma ação em movimento contra a democracia brasi- leira, que de tão frágil, como em qualquer país com o nosso indigente quadro social, varia de fins porque desconhece ou desrespeita os meios. Há aqui uma característica social que casa perfeitamente com o presiden- cialismo de colisão: a irresponsabilidade política. O povo deseja o “mito” po- lítico pois este o desonera da responsabilidade política. A crise econômica, a disfunção do sistema, a violência, o mal, a corrupção e todos os demais males que assolam o país são de responsabilidade do “políticos”. A comunidade políti- ca, vista do fundo do abismo, é sempre a culpada e deve apanhar mais que tudo e todos pois é corrupta, estéril e improdutiva. Os intelectuais e os profissionais transformaram, esta nação inzoneira, em um projeto “socialista”, seja lá o que isto significa. Basta o rótulo. Há um excesso de teoria conspiratória no ar que tem sempre um misto de narcisismo e desencontro lógico. No Brasil, os “Protocolos dos Sábios de Sião”11 acabam sempre no colo de Dom Sebastião12.

11 A obra Os Protocolos dos Sábios de Sião é a publicação anti-semita mais famosa e divulgada da época contempo- rânea. Suas mentiras sobre os judeus, embora repetidamente desmentidas por estudiosos e autoridades, continuam a circular hoje, principalmente na Internet. Os indivíduos e grupos que fazem uso dos Protocolos estão unidos por um mesmo propósito: disseminar o ódio contra os judeus. 12 D. Sebastião (1554-1578) transformou-se num mito após o seu desaparecimento na batalha de Alcácer Quibir, no norte de África. A sua morte abriu as portas à crise dinástica que vai colocar os reis de Espanha no trono português. À sua volta nasceu o mito do “Sebastianismo”, a esperança de que regressaria um dia, numa manhã de nevoeiro, para salvar o país de todos os seus problemas. No Brasil, este messianismo assumiu ares diversos e ainda hoje é parte da cultura popular. 385 Edelamare Melo (Organizadora)

5. Política no Século XXI – do fundo do navio para a luta social Durante séculos, os movimentos políticos dos indígenas, negros, quilombolas e religiosos de matriz africana, dentre outros, foram sempre excluídos dos processos centrais das relações do e no poder político. Em quase todos os instantes da história brasileira estiveram sob a égide do inimigo. Muito mais no campo penal que na esfera da política13, a construção do inimigo deu-se como processo relacionado com o poder punitivo do Estado. No caso desses grupos sociais, especialmente quando condicio- nados às figuras de classes, este modelo do campo penal foi transferido, quase que totalmente, para o campo da política reproduzindo o modo violento de contenção de interesses de poucos sobre a maioria, também conhecida como os “outros”. Tanto a esquerda brasileira como as demais correntes do pensamento político tenderam a considerar mais como objeto que como sujeito os “suspeitos” de sempre. A tendência mais progressista sempre considerou que a pauta racial no Brasil, por exemplo, era uma pauta fragmentária ou identitária. Contudo, grande parte desses grupos fragmentários (como os negros ou as mulheres), a despeito de sua majoritariedade numérica na sociedade brasileira, são menos representados em espaços de poder na hierarquia social por conta exatamente de um modelo de dominação em que eles, simbolicamente, são desvestidos de sua relevância dentro de um espectro social construído de forma a excluí-los das pautas gerais. Ora, ou as “pautas gerais” partem desses grupos, ou ape- nas transformamos o que é geral em fragmentário. E isto é apenas mais uma forma de captura do poder e de sua representação. O recorte étnico-racial ou de gênero, ainda nesta reflexão sobre a política a partir de um espaço social, constituem-se como disputa política e, simultaneamente, disputa simbólica. Não obstante este fato, se vamos mesmo construir a apropriação das relações de poder e de luta, de representação fatual e simbólica, temos que mudar o sentido do poder. Se adotarmos apenas o realismo político e uma imagem de cima para baixo do mundo, vamos mascarar os movimentos reais do desenvolvimento social mas também dos seres humanos. Aliás, se começamos pensando apenas sobre o “poder”, tal qual o conhecemos, vamos nos encerrar inevitavelmente no paradoxo do poder nossas relações humanas. Daí o desafio de responder ao que está além da política e das relações de poder. O que está além das relações de poder é, dentro dos marcos históricos, a liberdade. E uma política só pode ser libertadora se ela for capaz, também, de nos libertar da identidade14. A identidade, de todos nós e também a dos indígenas, negros, quilombolas e religiosos de matriz africana, entre tantos outros, é tam-

13 Cf. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007. O inimigo, no campo penal, é uma construção tendencialmente estrutural dos discursos legitimadores do poder punitivo. 14 Cf. RIBEIRO, Renato Janine. A sociedade contra o social. O alto custo da vida pública no Brasil (Ensaios). São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 43. 386 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. bém uma identidade da dor. E a dor nos aprisiona tanto quanto os grilhões. Ela impede que enfrentemos a liberdade e nos expressemos em uma linguagem que possamos ter a adesão e a presença de outros grupos às nossas demandas, que devem ser delas, não pela imposição, mas pelo convencimento democrático, antes que resultado apenas de uma força. O processo só pode ser centrífugo no campo da política se incluirmos aqueles que tanto nos excluíram. Há uma multidão e uma multiplicidade de temas a construir. Não apenas os nossos. Não apenas os deles. Mas isto tem que partir, metodologicamente, de nos- sas proposições. Na história temos casos assim, como nas lutas do Congresso Na- cional Africano (CNA), desde o século passado na África do Sul, que de uma luta por identidade se transformou em um partido político de massas que, apesar dos seus erros históricos, representou avanços históricos naquele país e no mundo. O debate metodológico e estratégico, neste campo e no atual estágio, pres- supõe uma consideração acerca de dois projetos táticos: O “consenso sobreposto”, de origem rawlsiano, e a “interseccionalidade”, com origem no neofeminismo. O “consenso sobreposto”, que tem a função de tornar a noção de sociedade bem ordenada mais realista e condizente, está relacionado com o ponto de interseção no qual diferentes grupos sociais compreendem ter algo em “comum” no que se refere às diferentes agendas políticas. Cuida dos fatos históricos e sociais apresentados nas so- ciedades democráticas pelo pluralismo razoável (diversidade de opiniões dos cidadãos com relação às escolhas políticas, religiosas e morais). Independente dessa diversida- de, a concepção política, que tem por base os elementos constitucionais essenciais, pode ser possível, se for atingido um ponto de vista comum entre todos. É condição necessária à consolidação dos princípios de justiça que fundariam um “novo” con- trato social. O neocontratualismo rawlsiano pressupõe um ponto de tangência no que se refere aos diferentes interesses e agendas políticas dos grupos sociais e, ou, ainda, movimentos sociais organizados politicamente15. Noutro sentido, o conceito de “interseccionalidade” elaborado por Kimber- le Crenshaw, no início dos anos de 199016, cuja preocupação é entrelaçar distintas formas de diferenciações sociais (e de desigualdades). Nesse contexto mais que uma “agência interseccional” na política, temos que construir, como rumo e fator de coesão, uma “agenda interseccional” que possa servir de base e de horizonte. Assim, temas como “raça”, gênero e classe não serão vistos como facetas que existem em isolamento umas das outras, pois o caráter de articulação constituirá as próprias categorias. Elas existiriam em relações íntimas, recíprocas e contra-

15 Cf. RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2016 16 CRENSHAW, Kimberle. Documento para o encontro de especialistas de em aspectos de discriminação racial baseado no gênero. In: Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 1, n. 1, p. 171-188, maio 2002. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ref/v10n1/11636.pdf. Acesso em: 20 set. 2019. 387 Edelamare Melo (Organizadora) ditórias, mas dentro do mesmo panorama de transformação social e política que tanto exigimos como parte de nosso futuro. E da política. 6. Conclusão Navegar dentro de um barco em que somos apenas escravos não nos con- duz ao caminho da liberdade. Nesses primeiros 11 meses de governo Bolsonaro, com seu presidencialismo de colisão, talvez seja uma forma de instituir outra matriz política. Ela irá mudando aos poucos para se constituir numa outra forma de fazer a política no Brasil. Há uma estratégia deliberada. Diante das táticas infa- mes dos que estão nos governos, quase todos, resta-nos a estratégia da diginidade. Caberá agora enfrentar, com diálogo e esperança, a travessia na imen- sidão do oceano ou no deserto de ideias, projetos e políticas que se devoram. Nossos companheiros de jornada já estão martirizados pelos escombros do país que não fomos e não seremos. Somos nós mesmos que teremos que assu- mir o timão e aprender que navegar é preciso, viver não é preciso.

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Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Boca Preta

Milsoul Santos

Boca Preta. Mais um na dividida. Marcado na entrada, marcado na saída. Cercado. O campo minado. O cara mal nasceu e já tem que tá preparado para tudo. Pobre. Endividado. Desde sempre coagido a sentir-se derrotado. Guri com face de adulto, mais um maloqueiro criado pelo mundo. Inocente criança esperança. Futuro do país. Boleiro, ponta de lança. Dentro de casa, tudo o contrariava; seu pai só bebia; sua mãe só fumava. Neste caso, lição de moral é impossível. E Boca Preta refletia: - Não faça o que eu faço, é? Faça o que digo? Na ideia errada, deu de fumar na lata e ficava pior quando a onda passava. Depen- dente. Nem foi matriculado na escola do mundão, onde, quem tá certo, tá errado. Aos 15 anos, a dele era meter. - Sexo é na chapa! Hum; vai se foder! DST, sua marca juvenil. Cancro Mole, HPV, Gonorreia; aí, já viu! - Vou dar um tempo. Preciso me encontrar. Tô sentindo um vazio. Algo quer me sufocar. Tá por fora a vida que tô levando. E sua mente, então, o interrompe questionando: Cê quer o quê? Parou de chapação, mas, e a vida; e os corres; cadê resolução? - Anos passaram, já tenho 23. Que porra é essa? Onde foi que eu errei? - Optou pelo caminho mais duro. Deu de correr atrás na fase de adulto. Emprego não rola, sem experiência e pra não dizer Preto, sem “boa aparência”. -Tô perdido. Tenho que sair disso. Ser um cara decente, um cara de compromisso. - Nunca é tarde, mas cê ta atrasado, e se ligue; a corda ainda só quebra do lado mais afro. - Basta! Não vai ficar de graça, vou arranjar uma quadrada e fazer nome na praça. Dirija o carro. Você é meu refém. Se procurar gracinha, play -boi, te corto em cem.

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Cash, é dinheiro no caixa eletrônico. E vamos logo com a senha, qu eu já tô no pânico. Retire a grana. Agora é sair fora. Vou poupar a sua vida e curtir até umas horas. Aqui tá bom, a pista tá escura. Foi só ele descer e surgiu uma viatura. - Mãos ao alto! Bacorejaram o cara, acharam o pacote com a grana e a quadrada. -1000, 2000, 2500, 3500, a gente racha as notas e dá fim ao elemento. Feito um gato, Boca Preta deu um pinote, se escondeu no mato, escapando por muita sorte. Dormiu na mata. Voltou todo machucado e ficou dentro de casa, uns meses, assustado. Depois, determinado e com toda a disposição, abandonou as drogas e deu sequência na função. Botou a cara devagar, vol- tou a estudar, descolou uns bicos, começou a trabalhar, concluiu o segundo grau, passou no vestibular. Seu pai morreu e sua mãe parou de fumar. Nêgo raçudo. Duro de matar. Foi preciso 18 anos para fazer o jogo virar. Hoje, Boca Preta é um grande espelho lá na comunidade e ganha a vida como professor de história numa Universidade. Boca Preta venceu na dividida. Marcado na entrada, marcado na saída. Viva!!!

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Edelamare Melo (Organizadora)

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Das trevas à luz: entre a proibição e a crítica

Michel Gherman1 Rosiane Rodrigues de Almeida2 Marcos Fábio Rezende Correia3

Sobre o relançamento do livro “Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios?” de Edir Macedo

Muitas pessoas estão hoje nas mãos dos espíritos demoníacos devido a impaciência. Deixaram de esperar em Deus a solução para seus problemas e acabaram sendo dominados por exus, ca- boclos, pretos-velhos, etc. [...] É aí que entra a Umbanda, Quim- banda, Candomblé e as religiões e práticas espíritas de um modo geral, que são os principais canais de atuação dos demônios, principalmente em nossa pátria. (MACEDO, 2013, p. 42).

A epígrafe que serve de abertura a este texto é um excerto da obra de autoria de Edir Macedo, “Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios?”, lançado em 1987 e re- lançado em 2005. Ao tratar do referido livro, o premiado jornalista Aydano André Motta, diz que este “tratado de terror discriminatório serviu de alicerce a maior igreja neopen- tecostal do Brasil, atualmente espalhada por todos os continentes, que inspira seus ritos justamente nos protocolos comuns a terreiros da fé afro-brasileira”. A reportagem, vei- culada no site Colabora em 2017, informa que todas as 157 páginas do livro do chefe da Igreja Universal do Reino de Deus se constituem como um libelo racista e difamatório às tradições afro-brasileiras, uma vez que as afirmações feitas por Edir Macedo baseiam-se

em pretensas referências científicas (“Os maiores médicos do Rio de Janeiro já chegaram à conclusão de que o espiritismo é a maior fábrica de loucos que existe”, “Os demônios também se alojam no sistema nervoso do homem, daí poderem dominá-lo completamen- te”), e ameaças à vida (“… todas as pessoas que vivem querendo morrer são endemoninhadas”), até mergulhar em metáfora apo-

1 Professor Doutor em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, pesquisador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos (NIEJ/UFRJ) 2 Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense, Bolsista CA- PES, pesquisadora do Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos (INEAC/UFF) 3 Mestre em Desenvolvimento e Gestão Social pela Escola de Administração da UFBA e pesquisador do Núcleo Interdisci- plinar de Estudos e Pesquisa Onilê da Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia (EAUFBA) 395 Edelamare Melo (Organizadora)

calíptica: “Essa religião, tão popular no Brasil, é uma fábrica de loucos e uma agência onde se tira o passaporte para a morte e uma viagem para o inferno”. (Aydano, 2017) - Grifos nossos

Do ponto de vista sócio-antropológico, para dimensionar o impacto provo- cado pelo livro “Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios?” na formação ide- ológica do movimento neopentecostal (Freston, 1994; Oro, 1997; Mariano, 1999; Almeida, 2015; Leandro e Sanfilipo, 2018) brasileiro, trona-se necessário estabe- lecer contrastes considerando outras obras, cujo objetivo e teor estejam alinhadas ao referido livro, ainda que em contextos históricos e sociais distintos. Neste sen- tido, para que possamos estabelecer contrastes entre sociedades, momentos histó- ricos ou, como exigido neste caso, entre obras literárias, passaremos a elencar as características fundamentais do referido livro para que possamos identificar uma obra que, colocada em contraste, se torne passível de comparação. Como principais atributos do livro de Edir Macedo podemos apontar que: a) O objetivo do O livro “Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios?” é o de estabelecer bases diferenciadas para a sociedade brasileira, através de uma religiosidade maniqueísta, estabelecida por uma visão particular do seu autor. Esta visão particular se dá para além da forma heterodoxa de prática da doutrina cristã (Oro, 1997; Mariano, 1999). Como é de conhecimento público, Edir Ma- cedo tem declarados objetivos de controlar a política no país. Tanto que em 2011 realizou o lançamento do livro intitulado “Plano de Deus: os cristãos e a política” que conclama os evangélicos a elegerem apenas políticos de suas igrejas; b) “Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios?” vendeu mais de quatro milhões de exemplares e já se encontra em sua 15ª edição (Dias e Campos, 2012). Estes dados, no entanto, podem ser lidos como minorados, uma vez que, conforme assevera Marques (2015), não é possível obter

informações precisas acerca de quando a obra foi lançada, pois no livro editado em 2013, que foi utilizado diretamente na pes- quisa, consta o Copiright 2000, porém no Processo número 2005.33.00.022891-3, consta que a obra circula desde os anos 80. Possivelmente a obra atual seja uma nova versão com novo ISBN, ou então, a obra circulava sem esse registro, antes de 2000; ou ain- da, poderia ter sido iniciada como folder ou folheto, e depois se expandindo, embora no processo seja questionado e utilizado exa- tamente o mesmo título do livro (Marques, 2015:37)

c) O livro refere-se a uma parcela minoritária da sociedade brasileira, a saber, aos praticantes das tradições afro-brasileiras – Umbanda, Candom- blé, Quimbanda -, cuja estimativa do Censo de 2000 é de 0,3% da população

396 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. brasileira (Prandi, 2004). Notadamente, no contexto sócio-histórico do país, esses segmentos são vistos como perseguidos e marginalizados, sendo por es- tes mesmos motivos, alvos preferenciais das políticas reparatórias do Estado; d) O referido livro vem sendo acusado de incitar a intolerância religio- sa por pesquisadores e estudiosos do tema (Dias e Campos, 2012; Marques, 2015) e de promover a discriminação aos praticantes dos segmentos afro-bra- sileiros no país (Leandro e Sanfilippo, 2018); e) O livro de Edir Macedo, fundante da doutrina neopentecostal no país (Dias e Campos, 2012; Leandro e Sanfilippo, 2018), tem o intuito de desqualificar as práticas das tradições afro-brasileiras, com o sentido de associá-las ao mal – termo que é usado por Edir Macedo como sinônimo para demônios e diabos - tornando-as portadoras de todos os acontecimentos indesejáveis da vida social dos indivíduos; f) A proibição judicial de que o referido livro fosse editado, recomen- dada pelo Ministério Público Federal em 2005, não impossibilitou a sua cir- culação – uma vez que a obra tem circulado livremente pela rede mundial de computadores em formato de e-book, assim como sua edição impressa ven- dida em sites que comercializam literatura como a Amazon e Estante Virtual

Telas capturadas em 22/08/2019, às 20:50h nos seguintes endereços ele- trônicos:https://www.amazon.com.br/Orix%C3%A1s-caboclos-guias-deuses- dem%C3%B4nios-ebook/dp/B07C7WKHSN e https://www.estantevirtual.com. br/livros/edir-macedo/orixas-caboclos-e-guias-deuses-ou-demonios/486327204 397 Edelamare Melo (Organizadora)

Apesar de resumidas neste texto, podemos entender que as características do livro “Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios?” informam uma obra de cunho discriminatório, cujo alvo concentra-se em uma parcela minoritária e historicamente em situação de vulnerabilidade no país. O objetivo do referido livro, conforme apon- tado pelos pesquisadores, é o de não apenas desqualificar as tradições de matrizes afro constituídas em solo brasileiro, mas está em associá-las ao mal, tornando-as culpadas pelos acontecimentos nefastos ocorridos na vida dos indivíduos. A proposta do livro aponta não só para o combate intelectual às tradições afro-brasileiras, mas ao seu ex- termínio físico, histórico e cultural. Igualmente, destacamos que a referida obra é en- tendida por diversos autores como a base da doutrina neopentecostal - segmento acu- sado de perpetrar agressões aos adeptos das tradições afro-brasileiras, além de ataques a seus territórios (Silva, 2007; Miranda, 2011; Almeida, 2015, Miranda et al, 2019). Racismo e Intolerância Religiosa: as duas faces da mesma moeda Em 2001, a Organização das Nações Unidas, ao realizar a Conferência Mundial Contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata (Conferência de Durban), afirmou que

“racismo e discriminação racial, constituem graves violações de todos os direitos humanos e obstáculos ao pleno gozo destes direitos, e negam a verdade patente de que todos os seres huma- nos nascem livres e iguais em dignidade e direitos, constituem um obstáculo para relações amistosas e pacíficas entre povos e nações, e figuram entre as causas básicas de muitos conflitos internos e internacionais, incluindo conflitos armados e o con- sequente deslocamento forçado das populações” (Declaração e Programa de Ação de Durban do Ministério da Cultura, 2001)4

Devidos aos compromissos assumidos pelo Estado brasileiro na referi- da Conferência, em 2007 o Governo Federal editou o Decreto 6040/2007 que definiu a intolerância religiosa perpetrada às tradições afro-brasileiras como:

“expressão que não dá conta do grau de violência que incide so- bre os territórios de tradições de matriz africana. Esta violência constitui a face mais perversa do racismo, por ser a negação de qualquer valoração positiva às tradições africanas, daí serem de- monizadas e/ou reduzidas em sua dimensão real” (PNPCT, 2007).

Portanto, a) o Estado brasileiro reconhece que a intolerância religiosa pra- ticada contra as tradições afro-brasileiras é a “face mais cruel do racismo”, e b) o Estado brasileiro, signatário da Organização das Nações Unidas, deve cumprir

4 http://www.unfpa.org.br/Arquivos/declaracao_durban.pdf Acesso em 26/08/2019. 398 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. o Programa de Ação da Declaração de Durban no sentido de exterminar toda e qualquer prática racista ou de discriminação racial. Neste ponto, ressaltamos também que, devido a sua prática racista contra as tradições afro-brasileiras, a TV Record e a TV Mulher, ambas de propriedade de Edir Macedo, foram condenadas em abril de 2018 pela Sexta Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3), a concederem direito de resposta às tradições de matriz africana. Neste contexto, em que racismo e projeto fundamentalista se articulam, é que é possível comparar o livro “Orixás, caboclos e guias: anjos ou demônios” com outra obra, também identificada por diversos autores como racista, cuja edi- ção tem sido objeto de preocupação de historiadores, antropólogos e políticos ao redor do mundo. Trata-se de “Mein Kampf” (em português, Minha luta) de Adolf Hitler, publicado em 1925/27, na Alemanha. Conforme é de conhecimento e senso comum, o livro de Hitler é um libelo ao racismo e serviu como divulgação do seu autor para implantar o pensamento nazista na Alemanha do entre-guerras. Combatido e proibido em vários países do mundo, “Minha luta” voltou ao cenário mundial em 2015, ano em que a obra se tornou de domínio público. Apesar do livro de Edir Macedo ser uma publicação referente a um contexto nacional distinto (o cenário brasileiro), assim como o Minha luta, em relação ao contexto alemão, as ideias do fundador do neopentecostalismo (Mariano, 2004) se espraiaram com velocidade por toda América latina, de formas, ainda que distintas, seguindo o modelo em que o livro de Hitler foi recebido pelo continente europeu, na primeira metade do século passado. En- tender esta similaridade só é possível quando percebemos que, assim como “Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios?”

“Mein Kampf, (Minha Luta), 1925-1927¹, obra escrita por Adolf Hitler, pretendia oferecer ao povo alemão não uma palavra de or- dem eleitoral, mas uma “nova concepção filosófica de importância fundamental”, uma nova concepção do mundo que, como uma ver- dadeira religião, em dogmas precisos, destinava-se a tornar para o povo “as leis básicas de sua comunidade”. (Hitler apud Chevalier, 2001:393)” (Caetano, 2010:1).

Seguindo o caminho condenatório e de projeto de extermínio de um povo ‘in- ferior’, em sua luta por pureza racial, Hitler descreve o povo judeu como “Os “fla- gelos de Deus” que não passam de parasitas que ardilosamente imitam as bases do trabalho espiritual dos hospedeiros (que se tornam mestiços), empregam falsa cren- ça religiosa, conquistam simpatia e proliferam suas mentiras” (Caetano, 2010:9). Neste ponto, tanto a obra de Edir Macedo quanto a de Adolf Hitler dialogam e se assemelham com um nível ímpar de morbidez. Os inimigos dos brasileiros (as divin- 399 Edelamare Melo (Organizadora) dades afro-brasileiras) precisam ser combatidos e proscritos, da mesma forma que os judeus (os “flagelos de Deus”) para que os problemas sejam solucionados. As semelhanças entre as duas obras não param por aí. Elas promovem um sentimento nefasto de superioridade entre aqueles que se identificam com as obras, independente dos seus contextos históricos e sociais, porque, confor- me explica o antropólogo Michel Gherman, coordenador do Núcleo Interdisci- plinar de Estudos Judaicos da Universidade Federal Fluminense, oferecem para seus leitores uma ideia de mundo “simples, irrefletida, que retira do indivíduo a responsabilidade de seus atos como a causa dos efeitos da vida social, trans- ferindo a culpa para o ‘outro’ aquele que deve ser eliminado”. Neste contexto, os problemas da vida cotidiana (que tanto podem ser doenças e separações amorosas realizadas maleficamente por algum “encosto”) como os processos de empobrecimento financeiro de uma determinada parcela da sociedade (cau- sada por um pretenso domínio econômico do mundo pelos judeus) devem ser repelidos, combatidos e exterminados para que ‘magicamente’ desapareçam. Os efeitos causados por esses discursos são mundialmente conhecidos, devido ao Holocausto de mais de 30 milhões de pessoas em todo o mundo, na primeira metade do século passado. Contemporaneamente no Brasil, a expo- nencial onda de ataques aos terreiros das tradições afro-brasileiras, as violên- cias físicas e simbólicas e os assassinatos de seus adeptos, tem sido objeto de atenção das autoridades que assistem, entre perplexas e assustadas, o apareci- mento do braço armado do neopentecostalismo no fenômeno nacionalmente conhecido como “traficantes evangélicos” (Vital da Cunha, 2014) que têm fechado, destruído e aterrorizado os adeptos das tradições afro-brasileiras. Ressaltamos que, não por acaso, “os traficantes evangélicos” iniciaram sua cruzada nas favelas e periferias do estado do Rio de Janeiro – sede da Igreja Universal do Reino de Deus e da TV Record, ambas comandadas por Edir Macedo – para outros estados da federação (Minas Gerais, Brasília e Pará) conforme notícias veiculadas pela imprensa. Nestes termos, as ‘lutas’ de Adolf Hitler e Edir Macedo são similares, uma vez que identificam o ‘inimigo’ numa minoria vulnerável da sociedade, tornando-a a causa de males sociais. Tanto um quanto outro, propõe que seus leitores utilizem a superioridade (racial-religiosa) para eliminarem seus opo- nentes. No entanto, conforme assevera Dias e Campos (2012), a mensagem do livro de Edir Macedo neste sentido é mais subjetiva e elaborada, uma vez que sugestiona o extermínio a entidades espirituais ao invés de ordenar a eli- minação de uma raça ou grupo étnico específico:

400 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

“Amigo leitor, comece hoje mesmo a exercer a autoridade que Jesus lhe confere. Não abra mão de seus direitos; não deixe de lado o que o Senhor lhe concedeu; agarre-se com unhas e dentes às bênçãos de Jesus e ‘pise na cabeça dos exus’ e CIA Ilimitada! (MACEDO, 2000:129 – grifos nossos)”

Conforme podemos perceber, a mensagem de Edir Macedo é um tanto mais sofisticada que a de Hitler, que diz que o extermínio de um povo mais fraco se constitui em algo francamente natural, uma vez que sua proposta “não se apoia na ligação de elementos superiores, mas na vitória incondicio- nal dos primeiros. O papel do mais forte é dominar. Não se deve misturar com o mais fraco, sacrificando assim a grandeza própria” (Hitler, 1983:185). O que fazer diante de obras racistas, que incitam a violência contra populações reconhecidamente minoritárias e vulneráveis, num contexto de instabilidade política e econômica? Após a Segunda Guerra Mundial o livro de Adolf Hitler foi proibido em quase todos os países do mundo, voltando à cena em 2015, quando se tornou de domínio público. No Brasil, antes de se tornar de domínio público (a legislação alemã determina que qualquer obra se torne de domínio público após 70 anos da morte do autor) o juiz Alberto Salomão, da 33ª vara criminal do Rio de Ja- neiro, determinou a proibição de ‘venda, impressão ou divulgação’ da obra do líder nazista. A decisão do magistrado, amparada na robusta legislação infra- constitucional brasileira, tem reconhecidamente o mérito de dificultar o acesso de leitores a um libelo racista, que alicerça a ideologia de extermínio de uma determinada população – no caso o povo judeu. Por certo que, aparentemente, esta é a decisão mais acertada a ser tomada pelo setor da magistratura brasileira comprometida com o Estado Democrático de Direito e que esteja alinhada à le- gislação internacional (Declaração dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, Pacto de San Jose da Costa Rica, etc). O mesmo procedimento (de proibição judicial) tem sido observado em relação ao tratamento recebido pelo livro de Edir Macedo. Em 2005, os procu- radores da República Sidney Madruga e Cláudio Gusmão, do Ministério Públi- co Federal da Bahia, consideraram que a obra, além de preconceituosa e discri- minatória, “dedica quase que a totalidade de suas páginas a promover ofensas às religiões afro-brasileiras”. Segundo o MPF, trechos da publicação tratam as religiões de origem africana como “seitas demoníacas”, “modo pelo qual o demônio age na Terra” ou “canais de atuação dos demônios”. Os procuradores afirmam que o bispo responsabiliza a Umbanda, o Candomblé e a Quimbanda

401 Edelamare Melo (Organizadora)

“pela destruição do ser humano” e pelo uso de entorpecentes5. O debate voltou a reacender com a notícia de que Edir Macedo irá relançar o seu livro. Nestes termos, verificamos que a proibição dos livros se torna bandeira de luta daqueles que pretendem cumprir as determinações legais e retirar de circulação obras tão nefastas à convivência pacífica entre diferentes segmen- tos da sociedade. No entanto, percebemos que: a) Ainda que tenham sido proibidos, “Minha luta” e “Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios” jamais deixaram de ser lidos e comercializados; b) Os dois livros são considerados Best-sellers, devido a grande circula- ção e comercialização. O livro de Edir Macedo é vendido em igrejas, ofertado gratuitamente aos seus seguidores e, assim como o de Adolf Hitler, encontra- do com enorme facilidade na rede mundial de computadores; c) Tanto um quanto outro se constituem em fontes históricas e socioló- gicas de mudanças – nefastas, assustadoras – nas respectivas sociedades que, ainda que em contextos muito diferentes, sentiram (e sentem) os efeitos do pensamento racista, e do poder de destruição que a ideia de eliminação de um determinado grupo – acusado de ser o causador de mazelas - possui. É neste sentido que devem servir de fonte de consulta ao pensamento científico; d) A proibição de obras – ainda que de cunho racista e de extermínio de populações – abre espaço para o debate, oportunista, entre os limites da liberdade de expressão e o controle de pensamento (censura); Cenários e possibilidades No Brasil, devido à permeabilidade que o pensamento racista, com tra- ços nazifascistas, tem contemporaneamente alterado as relações sociais no país, as populações historicamente vulneráveis e marginalizadas (Das e Po- ole, 2008) tem se percebido diante de dilemas e desafios extremamente no- vos para sua realidade social. Neste sentido, a necessidade de sobrevivência (física) desses grupos, atrelada a garantias de direitos, tem se conformado de maneiras polissêmicas e nem sempre coesas, no cenário nacional. É neste contexto, que o Coletivo de Entidades Negras mobilizou um abaixo-assinado que, com o acolhimento de mais de 25 mil assinaturas, exige judicialmente a proibição da edição, venda e circulação da obra “Orixás, caboclos e guias: anjos ou demônios”, de Edir Macedo. Em nosso entendimento, a livre cir- culação desta obra fere de morte os princípios de dignidade das tradições afro-brasileiras em território nacional, porque as coloca não só em condições

5 Ver: https://www.conjur.com.br/2005-nov-09/mpf_tenta_suspender_venda_livro_edir_macedo, Acesso em 21/08/2019. 402 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. de desvantagem sócio-histórica, mas porque seus territórios e adeptos já con- figuram como preferenciais aos ataques, agressões físicas e morais, além de serem mortos por professarem suas crenças e praticarem suas liturgias. No entanto, as comunidades tradicionais de matrizes africanas, sejam do Candomblé, da Umbanda, Quimbanda, Batuque, Xangô, Tambor de Minas, Canjerê, Toré, Candomblé de Caboclo, Babaçue, etc. são reconhecidas no cená- rio nacional como tradições que, além de mantenedoras das memórias (Candau, 2011) dos africanos e seus descendentes – que chegaram aqui desde o século XVI como prisioneiros de guerras, cuja mão de obra especializada (agricultura, pecuária, mineração, medicina) não apenas sustentou por 380 anos o sistema econômico escravagista, mas civilizou o Brasil (Querino, 1918) – como práticas pacíficas que jamais tiveram o sentido de impor à força seus modos de vida. Ao contrário, essas comunidades sempre apostaram no conhecimento científico e no diálogo com os mais diversos segmentos da sociedade para que o Brasil se conformasse como um Estado-nação plural e diversamente colorido. No entanto, diante dos desafios e adversidades que nossas comunidades têm enfrentado, nos colocamos como mediadores de uma demanda social que visa o estabelecimento da liberdade e dos preceitos democráticos que ainda orientam o Estado brasileiro. É com intuito de honrar a memória dos ante- passados, que indicamos, que dada a impossibilidade efetiva da proibição de edição e circulação do livro “Orixás, caboclos e guias: anjos ou demônios”, uma vez que seu acesso é facilitado pela rede mundial de computadores e por sua edição ser realizada sob a editora de propriedade de seu autor, sugerimos que a obra seja - conforme vem sendo orientada pela comunidade científica internacional ao livro “Minha luta”, de Adolf Hitler - obrigada a possuir em todas as suas edições (impressas, e-book, ou disponibilizadas gratuitamente em sites e blogs) crítica comentada por especialistas no tema das tradições afro-brasileiras, indicados por este Coletivo. Nestes termos, apresentamos o abaixo-assinado (total das assinaturas em pen drive), assim como o material de consulta utilizado para a elaboração deste documento. Referências Bibliográficas Almeida, Rosiane Rodrigues. Quem foi que falou em igualdade? Autografia: Rio de Janeiro, 2015

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Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

tempo da delicadeza

Geovana Pires

Meu filho, tá vendo aquele senhor descendo a montanha? Sua barba é uma grande nuvem desenhando a estrada da vida e sua artimanha. Subiu as cordilheiras e lá do alto nos olhou profundo e segredou ser o pai do mundo. Não anda rápido e tampouco devagar. Vai no sobe e desce da vida sem nunca descansar. Anda somente pra frente e nunca olha pra trás. O que passou passou, assim é desde quando era rapaz. E como um cavaleiro andante segue embalando o dia e carregando a noite, muito mais jovem que antes. Quem é esse velhinho, mamãe? Ele teve muuuuitos filhos. Sua companheira é a paciência com quem gerou os séculos admirando os crepúsculos. Com a calma que emana criou os anos e também as semanas. Esculpiu as horas, os minutos e segundos.

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Mamãe, quero saber mais, com tantos filhos que teve quem são seus pais? Filho, sua pergunta prospera, esse senhor é filho do céu com a terra. Não sei sua idade, mas sei que por causa dele vou te amar por toda a eternidade. Ele é o rei, um deus. Mamãe, eu sei que você me ama, mas afinal, como ele se chama? Filho meu, Tempo é o seu nome! E com toda delicadeza fará de você um belo homem.

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Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

RACISMO DIGITAL

Paola Cantarini Willis S. Guerra Filho

Resumo A inteligência artificial vem sendo utilizada cada vez mais na solução de casos jurídicos. Mas, quem vigia, controla e se responsabiliza pelos algoritmos no caso de respostas racistas, machistas, sexistas ou discriminatórias? Sabe-se que a discriminação socioeconômica, racial ou de gênero vem ocorrendo de forma muito frequente na utilização do sistema da inteligência artificial. As tecnologias digitais de comunicação e a ideologia do Vale do Silício são racializadas, pois reforçam a produção de um imaginário social racista. Trata-se, pois, em um pri- meiro momento, de investigar a dimensão ética e moral da automação e digitali- zação, envolvendo a incorporação aos sistemas inteligentes de valores humanos (machine ethics), o uso indiscriminado e a mercantilização, sem responsabilidade e sem controle de nossos dados pessoais por empresas como Google e Facebook, a concretização do direito a dados pessoais como direito humano e direito funda- mental, a correlação de tal temática, com o uso discriminatório, racista ou sexistas em casos jurídicos decididos por meio da inteligência artificial, envolvendo dados obtidos por meio da mídia digital. As mídias integram o Direito, pois também o constroem, porquanto são meios de comunicação privilegiados na sociedade contemporânea, sendo sua linguagem mais amplamente divulgada, e o Direito é linguagem, com função similar. Em um segundo momento, busca-se verificar se estaríamos diante de um ponto de mutação, de uma nova virada autopoiética, em um momento de ponto crítico na forma de produção do Direito e de como este é interpretado e aplicado. Questiona-se: o desenvolvimento indiscriminado e sem controle, totalmente desvinculado de uma fundamentação superior, ética e moral do Direito em sua aplicação por meio da inteligência artificial, pode indicar o fim da humanidade? Teria chegado de fato o fim da história e a morte do homem? Trata-se do império da máquina que se aproxima, tal como vislumbrado em obras de ficção científica? E no caso de um dano a um ser humano produzido por inte- ligência artificial quem se responsabiliza? As máquinas podem ser consideradas aptas a serem sujeitos de direitos, com direitos e deveres, possuem aptidão para capacidade jurídica, a qual por sua vez pressupõe uma consciência individual au-

411 Edelamare Melo (Organizadora) tônoma? O Direito sendo a expressão da “humanitas” pode ser aplicado de forma legítima por meio da inteligência artificial, a qual por não possuir sentimentos, intuição e emoções, tampouco possui consciência e alma, limitando-se a uma aplicação fria e seca da legislação? Por derradeiro, visa-se analisar as representa- ções midiáticas e políticas das principais plataformas digitais envoltas a questões do racismo e da intolerância, envolvendo pessoas afrodescendentes, e sua poste- rior utilização pela inteligência artificial, e de como impactam o Direito, já que a realidade impacta e também produz o Direito. Segundo Niklas Luhmann (“A realidade dos meios de comunicação”) a nossa realidade na sociedade é criada pelos meios de comunicação. Introdução Verifica-se no Direito o predomínio da técnica e do pensamento meramente científico e cartesiano, positivista, e de um modo geral a robotização e a meca- nização do pensamento. Isso desconsiderando-se outros aspectos fundamentais na tomada de decisões judiciais, principalmente nos denominados “hard cases”, aqueles envolvendo colisões entre direitos fundamentais. Daí se conclui a insufi- ciência, para uma solução adequada, no sentido de proteção da dignidade da pes- soa humana, de uma simples fórmula matemática algorítmica, como na proposta de Robert Alexy. Desconsidera-se com isso que o Direito e a Ciência, e o Direito enquanto Ciência possuem uma história, e que a própria cientificidade do Direito depende também do elemento empírico, da experiência (Pontes de Miranda, Mi- guel Reale), e logo, novamente, da história, reduzindo-se a realidade jurídica a fórmulas matemáticas, ou seja, a um simulacro. Revela-se aqui uma crise de paradigmas no Direito e a necessidade de uma transmutação, a fim de encontrarmos alternativas a uma possível morte do homem e da história, pela perda da autopoiese (Luhmann), sendo esta uma condição da nossa possibilidade de existência, ante a nossa substituição por máquinas e robôs. Isto porque, na natureza tudo o que não é mais relevante e não tem função acaba sofrendo mutações ou é descartado com o tempo. Resta a questão: com a utilização em larga escala e de forma progressi- va da inteligência artificial, é o fim do homem e da história? Chegamos ao que Nietzsche denomina de “demasiado humano”? Estaríamos diante da supera- ção definitiva da era do carbono, e com esta da extinção da forma humana e do início da era do silício, de onde virá uma nova forma, tal como preceituam Michel Foucault e Gilles Deleuze? Trata-se da era do “phylum maquínico”, termo forjado por Gilles Deleuze e Felix Guattari, mencionando o silício no agenciamento contemporâneo homem-natureza.

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O motor de diversas aplicações via inteligência artificial funciona ba- sicamente da seguinte forma: o motor de tal programa é um algoritmo, um conjunto de instruções que se aplica a um conjunto de dados. Dependendo de quem construa esses modelos de algoritmos, e dos dados coletados que os alimentam, o resultado será um ou outro. Neste sentido importante estudo de Virginia Eubanks, professora de Ciências Políticas da Universidade de Al- bany, autora do livro “Automating inequality”, investiga como as ferramentas tecnológicas perfilam, controlam e punem os pobres. Na mesma linha de ra- ciocínio crítico, pesquisa da lavra de professores da Universidade de Boston demonstra que os sistemas de aprendizado das máquinas (machine learning) têm vieses sexistas, pois na fonte de dados mais comum, a internet, já há di- versas associações de conceitos que induzem ou ensinam as máquinas a esta- belecer certas correlações como verdadeiras, sem uma mediação de seu con- teúdo, como, por exemplo, a relação “dona de casa =mulher, gênio =homem”. Em razão de diversos algoritmos racistas e discriminatórios tem-se de- senvolvido algumas iniciativas de auditoria de algoritmos e plataformas digi- tais, bem como a construção de data sets, visando uma espécie de controle ou regulação da utilização e resultado dos algoritmos. Outro caso emblemático é o “Tay”, um bot criado em 2016 pela Micro- soft para interagir e aprender com as pessoas no Twitter, transformando-se, no prazo de apenas 24 horas, em um defensor do nazismo e de Hitler, sendo tirado do ar, logo após pela empresa. Por sua vez, um dos aplicativos da Google, o Google fotos, em 2015 foi objeto de diversas notícias, onde se afirmou que a inteligência artificial do aplicativo classificaria nas opções de busca pela palavra “gorila” diversas pessoas negras. O Poder Judiciário de diversos países vem se “beneficiando” do uso de um sistemas de algoritmos matemáticos, como o Estado de Wisconsin nos EUA, para determinar o grau de periculosidade de criminosos, relacionado à possível redução de penas. Tais problemáticas foram objeto do documentário no Netflix “Making a Murderer”, mostrando a condenação de um inocente, tendo sido a sentença calculada com a ajuda de um algoritmo matemático. Verifica-se ainda a utilização em todo os EUA do “Compas”, um questioná- rio que avalia a potencialidade ou probabilidade de uma pessoa cometer um crime futuramente, já tendo sido advertido pela Suprema Corte de Wisconsin que o Compas pode dar uma pontuação maior para minorias étnicas. O racismo está longe de acabar e vai continuar no futuro (Mbembe, “Po- líticas da inimizade”, p. 95), como destaca Mbembe, apontando, na esteira de

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Foucault, para um novo tipo de racismo, o nanorracismo, talvez de alguma forma similar às mencionadas microagressões raciais, quando as agressões racistas es- tão limitadas a uma pessoa, a um determinado local, ao privado, garantindo certo anonimato por parte do agressor (Chester Pierce, 1970). Para Mbembe, é “uma forma de narcoterapia de ave de rapina, feita de remendos, com um poderoso bico adunco e afiado – a naftalina que caracteriza os tempos de dormência e de parali- sia flácida, quando se perdeu toda a elasticidade (...)”. E continua:

Por nanorracismo entenda-se esta forma narcótica do precon- ceito em relação à cor expressa nos gestos anódinos do dia-a- dia, por isto ou por aquilo, aparentemente inconscientes, numa brincadeira, numa alusão ou numa insinuação, num lapso, numa anedota, num subentendido (...), num desejo obscuro de estig- matizar, e sobretudo, de violentar, ferir e humilhar, contaminar o que não é considerado como sendo dos nossos (...). a época do nanorracismo é efetivamente a do racismo abismal, do racismo de navalha enferrujada, (...) (Ibidem, p. 98 e ss.).

Achille Mbembe comenta acerca da relação entre capitalismo e colo- nialismo, bem como sobre a existência atualmente do necropoder, quando a morte tende a tornar-se cada vez mais espectral, enquanto vivemos cada vez mais uma vida supérflua, ao valer menos até do que uma mercadoria, apon- tando o racismo como o motor do necropoder, reduzindo-se o valor da vida, e de outro lado criando o hábito da perda. Em suas palavras:

(...) longe de levar a uma globalização da democracia, a corrida para as terras novas desembocou numa nova lei (nomos) da ter- ra, cuja principal característica é a de tornar guerra e raça dois sacramentos privilegiados da história. A consagração da guerra e da raça nos altos-fornos do colonialismo tornou-as simulta- neamente o antídoto e o veneno da modernidade, o seu duplo pharmakon (Achille Mbembe, “Políticas da inimizade”, Lisboa: Antígona Editores, 2017, 1ª. impressão, p.14; p. 65).

Já fora noticiada a existência do primeiro robô juiz do mundo na Estô- nia, o qual irá julgar causas de menor valor econômico. Está também em an- damento o projeto “Cérebro humano”, ou “Human Brain Project”, um projeto de pesquisa, com recursos de fundos europeus, visando recriar até 2024 um cérebro humano graças a um supercomputador. No Brasil já há proposta de criação de um Centro e Solução de Conflitos sem a participação de advogados pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, com o objetivo de funcionar via internet e com o auxílio de inteligência artificial.

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O Parlamento da Inglaterra por meio do Comitê de Ciência e Tecno- logia abriu inquérito para examinar o uso crescente de algoritmos (e inteli- gência artificial) na tomada de decisões públicas e privadas, visando analisar como estes são formulados, as possíveis correções e principalmente o impac- to sobre as pessoas quanto sua compreensão,, sugestão e-ou indução na to- mada de decisões. Alguns denominam este fenômeno como “Machine bias”, “Algorithm bias” ou simplesmente, Bias. É o viés tendencioso. A remoção de tal viés tendencioso em algoritmos não é trivial e é um campo de pesquisa em andamento. No inquérito em curso na Inglaterra, destacou-se que o uso de algoritmos no setor público poder levar a policiamento discriminatório e mo- nitoramento indiscriminado, bem como a ações de agências de inteligência, influência comportamental e invasões em larga escala de privacidade A rápida evolução tecnológica e a globalização criaram novos desafios com relação à proteção de dados pessoais, os quais vem sendo utilizados numa escala sem precedentes por empresas privadas e públicas. A LGPD brasileira e a GDPR da União Europeia ressaltam o direito das pessoas solicitarem a re- visão de decisões automatizadas que afetem de alguma forma os seus direitos, criando-se o direito à revisão de decisões automatizadas. A Alemanha possui algumas peculiaridades que se chocam com a diretiva da EU em temas de proteção de dados, destacando-se decisões do Tribunal Federal de Justiça em 1983, sobre os direitos ao livre desenvolvimento de personalidade e autode- terminação informacional, em 2008, sobre privacidade digital e em 2010 (Tri- bunal Constitucional Federal Alemão., BvR 256/08, Julgado em 02/03/2010, disponível em http://www.bverfg.de/e/rs20100302_1bvr025608en.html). A Alemanha considera que a proteção aos dados pessoais e o direito à privacidade, são projeções da personalidade do indivíduo, nos termos do art. 2 I da Lei Fundamental Alemã. Destaca-se como um dos marcos referenciais na proteção de dados pessoais o julgamento da “Lei de Recenseamento de População, Profissão, Moradia e Trabalho”, pelo Tribunal Constitucional Ale- mão em 1983, reconhecendo o direito subjetivo fundamental de proteção de dados pessoais, relacionado ao direito à autodeterminação informativa. O Regulamento 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho re- lativo à proteção das pessoas (não coletivas) quanto ao tratamento de dados, revogando a Diretiva 95/46/CE prevê tal direito como direito fundamental (item 1: “a proteção das pessoas singulares relativamente ao tratamento de dados pessoais é um direito fundamental”) e faz ressalva acerca da necessida- de de aplicação do princípio da proporcionalidade ao ressalvar que o direito à proteção de dados pessoais não é absoluto, devendo ser equilibrado com

415 Edelamare Melo (Organizadora) outros direitos fundamentais, com o princípio da proporcionalidade (item4). A Diretiva 95/46/CE visa harmonizar a defesa dos direitos e das liberdades fundamentais em relação às atividades de tratamento de dados, assegurar a livre circulação e dados pessoais entre Estados-Membros. Por sua vez a Diretiva 2002/58/CE estabelece no art. 6º que os dados de trá- fego tratados e armazenados pelo provedor de uma rede pública de comunicações ou de um serviço de comunicações eletrônicas publicamente disponíveis deveriam ser eliminados ou tornados anônimos quando deixassem de ser necessários para efeitos da transmissão da comunicação. Haveria tal possibilidade quando houvesse necessidade de proteção da segurança nacional, da defesa, da segurança pública, da prevenção, da investigação, da detecção e a repressão de infrações penais, em consonância com o art. 52 da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia. O denominado e conhecido “Troley problem” demonstra a existência de questões morais e éticas da mais alta importância envoltas com a impossibilidade de uma automatização absoluta da Justiça, vez que esta sem a presença do elemento humano, já virou outra coisa. O MIT Media Lab estudando tais temáticas desenvol- veu a “Moral Machine”, plataforma para coletar dados relativos a decisões morais pelos seres humanos (moralmachine.mmit.edu). Um artigo publicado na Revista “Nature” traz alguns resultados de tal pesquisa, destacando-se a conclusão de que em países com alto grau de desigualdade econômica há uma tendência a tratar de forma bastante desigual as pessoas de acordo com seu status social. O Direito depende para sua evolução e reconstrução “in fieri”, da “poie- sis”, sendo tal característica marcante dos seres humanos como seres biológicos, depende da criatividade, e da sensibilidade dos que se relacionam com o Direito. Portanto, o Direito, apesar da predominância de sua compreensão e aplica- ção de forma cartesiana, técnica, limitado a ser concebido apenas como ciência técnica, afasta-se cada vez mais da “poiesis”, da poética, da sensibilidade, da criação, ocorrendo atualmente, em grande parte, apenas uma eterna repetição do igual, do mesmo, “ad nauseam”, nada se cria, e tudo se copia, ainda mais no universo jurídico, cada vez fazemos menos ciência do Direito. Cada vez mais se utiliza da linguagem automatizada e da aplicação da inteligência artificial no Di- reito, sem que estejam suficientemente analisados os impactos e as consequências possivelmente danosas mencionados anteriormente. Sabe-se que os algoritmos trabalham com probabilidades e não com certe- zas, mas tal fato muitas vezes é desprezado ou subvalorizado pelos aplicadores do Direito na busca de uma razão geométrica na interpretação e concreção do Direito. Em um caso noticiado nos EUA foi detectado que há já algoritmos, com base nos quais a inteligência artificial atua e toma decisões, racistas ou dis-

416 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. criminatórias. Isto ocorre por captarem dados que circulam na sociedade em nossos sistemas de informações e de comunicações, reproduzindo a existên- cia do racismo estrutural em nossa sociedade, e contaminando com tais dados os algoritmos utilizados por inteligência artificial para a tomada de decisões de suma importância e relevância, como as que vêm cada vez mais sendo adotadas no âmbito do Poder Judiciário. Considerando-se o Direito enquanto Ciência, tal forma de tomada de decisão pela inteligência artificial nos parece que seria uma espécie de retorno ao entendimento de que as ciências, baseadas na observação de regularidades na ocorrência de fatos, permitindo elaborar leis mecanicistas gerais explicati- vas da realidade. Contudo, deve-se estar atento que tais fatos eram recortados do conjunto da realidade, para assim dar-se a eles um tratamento analítico, mas limitados e reduzidos à uma determinada localização espaço-temporal. Trata-se de um tipo de aplicação próprio da física mecanicista-newto- niana, superada atualmente pela física quântica e relativista, a demonstrar a fragilidade de sua construção teórica e aplicação, utilizando-se de observa- ções obtidas em escala limitada, como a que se observa na utilização de um banco de dados, sabe-se lá construído por quem, na construção de uma deci- são jurídica por meio de inteligência artificial, ainda mais na seara do Direito, por desconsiderar que o Direito e as ciências no geral possuem história. Vislumbra-se ainda outras problemáticas: a inteligência artificial, por não possuir uma consciência e uma alma, não tendo possibilidade do mara- vilhar-se e do assombrar-se, limitada à uma perspectiva inodora, inorgânica e mecanicista da vida, contrária pois das ações tipicamente humanas, seria indicada e apta a tomar decisões que envolvem não apenas o lado racional da inteligência, mas sobretudo o imaginário, o imaginal (Henry Corbin), a sensibilidade, as emoções e as intuições? Característico deste tipo de forma de “conhecimento” típico da ciência, utilizando-se de signos nos cálculos matemáticos de que se vale, típico de nossa sociedade da informação, onde se produz cada vez mais informação e em uma relação inversamente proporcional, cada vez menos conhecimen- to reflexivo, pois seriam estes antagônicos. Há o aperfeiçoamento deuma racionalidade meramente técnica, vazia, segundo Husserl, sem a produção de saber conteúdo cognitivo algum (Tese de Doutorado em Comunicação e Semiótica. Willis S. Guerra Filho. “Quantum critic e transmutação: Etiologia da presente crise semiótica e perspectivas de superação”). A partir, principalmente, de Newton, o padrão de ciência que vai desqualifi- car como ciência o que até então não havia muito de diferença em termos de ciên-

417 Edelamare Melo (Organizadora) cia. Começa tal processo na verdade desde a química, no século XVIII, como bem relata Isabelle Stengers (“A invenção da Ciência”). Daí a alquimia era química, e não há separação entre o sujeito e o objeto do estudo, do conhecimento. O Sujeito está envolvido na sua própria transformação nos seus estudos, típica conclusão da alquimia, a pedra filosofal buscada, seria a própria transformação pessoal durante tal processo. Não havia distinção até o surgimento da química entre as ciências herméticas e as ciências alquímicas. Antigamente, portanto, o objetivo da ciência não era um objetivo econômico, utilitário como vem a se transformar após Newton. A informática e a inteligência artificial na utilização de algoritmos para a produção de decisões judiciais baseiam-se na matemática, ou seja, na lógica simbólica, diferente da lógica aristotélica. A inteligência artificial é um sim- bolismo, um pensamento abstrato. Sob o ponto de vista do formalismo não há tanta diferença entre o Direito e a Matemática, pois ambos são formalismos, números e normas, ambos são fórmulas. Há uma fratura, com a divisão das culturas das ciências e das humani- dades, promovendo uma desumanização das ciências naturais e matemáticas e também uma atrofia do lado das humanidades, de um tipo de raciocínio lógico-matemático que poderia em muito contribuir. Há uma dupla atrofia, portanto. Promovendo o que é denominado já na década de 30 por Husserl em seu livro sobre a “Crise da civilização europeia”, das matrizes europeias ou seja, do modo ocidental de estudar a realidade, intervindo nesta realidade, de forma diversa do que era postulado pela alquimia, antes da transformação da ciência em algo utilitário. Husserl assim já antecipando até mesmo as conclusões de Heidegger, seu aluno, apontando para o problema no cerne do pensamento matemático tendo efeitos catastróficos do ponto de vista político e social (Grande Guerra Mundial). Isto porque a ciência ao se utilizar da lógica matemática e do sim- bolismo e da abstração típicos da matemática, se descola do mundo da vida, do mundo vivido, da vivência mundana, e pois, de nos seres humanos. Tal conhecimento proveniente da ciência moderna, ao se descolar do mundo da vida, do verdadeiro solo que justificaria toda a construção do conhecimento, acaba se tornando um conhecimento alienado, estranho. Trata-se do que se denomina de ciência como religião, de uma religião científica, assumindo como verdade as fases do desenvolvimento da realida- de, tal como se situa o pensamento e proposta epistemológica de A. Conte, e seu positivismo. Neste sentido, a terceira fase a fase científica é tida como a derradeira e definitiva, correspondendo a ideia de progresso. Contudo a cren- ça na ciência promove uma crença na descrença. Uma espécie de fundamen-

418 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. talismo na ciência. Cria-se uma espécie de alergia, e se torna o humano ainda mais indefeso e frágil, com a postura individualista e defensiva. Devemos então promover a reconciliação das ciências e das religiões, na busca de mais convergências do que diferenças. Referências Bibliográficas Bernardes, Célia Regina Ody (2013). Racismo de Estado: uma reflexão a partir da crítica da razão governamental de Michel Foucault. Curitiba: Juruá.

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History, Mixture, Modernity: Religious Pluralism in Guinea-Bissau Today

Ramon Sarró and Miguel de Barros

Introduction: the complexity of the field This chapter has the humble intention of being a tool for researchers, reviewing some of the work done on religion in Guinea-Bissau, finding some historical continuities, and suggesting lines of research.1 Perhaps more ambitiously, it also wants to suggest that Guinea-Bissau offers a paradigmatic case to study the cultural and historical logics underneath religious encounters. Let us start by questioning a tenet in social sciences: that cultural complexity is a characteristic of globalized urban settings. Some of the most innovative authors on cultural complexity (Hannerz 1992) or super-diversity (Vertovec 2006) seem to take for granted that multiculturalism is mostly a consequence of social change (produced by globalization and migration). Following them, many scholars and students today have a tendency to assume that traditional, non-urban settings cannot be culturally complex. Yet, the fact is that rural societies actually are extremely complex and multi-varied, as a genealogy of anthropological work has cogently established (Smith 1974; Burnham 1996) and our fieldwork confirmed. This cultural complexity of the rural regions has many religious manifestations, and can embody many of the sociocultural changes which have affected Guinean society since the onset of the current chains of crises post-1998. Guinea-Bissau offers very good examples of this rural complexity. In some southern regions we have lived in villages in which people speaking Kriol, Nalu, Balanta, Beafada, Fulfulde and Susu cohabit and in which many of their inhabitants speak fluently several of these languages. In Entxale, a bigger but still rural village of 5,000 inhabitants in the east of the country, we counted eight different languages. This linguistic diversity is accompanied by

1 The authors thank the Fundação Para a Ciência e a Tecnologia, who funded the project “The Prophetess and the Rice Farmer: Transformations in Religion, Gender and Agriculture in Guinea-Bissau (2011-2014)” (of which R. Sarró is the PI and M. de Barros an external advisor). This made it possible for them to conduct interviews together and to meet several times both in Guinea-Bissau and in Lisbon. The article also draws from research conducted by R. Sarró with the project’s researcher Marina P. Temudo in rural Guinea-Bissau. We thank Marina for sharing her research and her data with us, and for her insightful comments to an early draft. Ambra Formenti made useful com- ments too. Most especially, we thank Toby Green for the invitation and feedback. 423 Edelamare Melo (Organizadora) an ethnic and a religious one. In Entxale there is one mosque, one Catholic church, one Protestant temple, many neo-Pentecostal young people who so far have no temple and pray elsewhere, and many balobas (Kriol for traditional shrines). Till recently, there were also members of the Kyang-yang prophetic movement. This pluralism, common to many Bissau-Guinean villages, could make of Guinea-Bissau a model for scholars to understand the inner workings of religious pluralism in the complex world of today. Religion in Guinea-Bissau: an encounter of frontiers Like much of the Upper Guinea Coast, the region today comprising the territory of Guinea-Bissau was in the past the scene of a meeting between three religious frontiers. First of all, the African internal frontier, to use Kopytoff’s category (1987), i.e., the reproduction, through segmentation and expansion, of indigenous groups, often accompanied by the expansion of their religious universes. The occupation of the land by the agriculturalist or agro-pastoralist groups of Guinea-Bissau (Balanta, Fulup, Nalu, Tenda, Mandjaco, Mancanha, Banhuns, etc.) has followed a frontier model, perfectly studied by Eve Crowley (Crowley 1994, 2000). This expansion was accompanied by notions of spiritual contracts discussed in the next section. The ritual workings and cosmological contexts of “animistic” societies have been well studied by a legion of anthropologists (for Mandjaco, see Gable 1990; Carvalho 1999; Teixeira 2001; Constantine 2006; for the Bijagó, see Henry 1994; Pussetti 2000; for the Fulup or Jola, see Journet-Diallo 2007; for Nalu see Temudo 2012). Secondly, the Muslim frontier spreading westbound since the 13th Century through a combination of the military enlargement of Muslim empires and individual traders and clerics, some acting peacefully, some using violent jihads (see Gaillard 1994 for a relatively recent jihad among the Beafada). Particularly important for the understanding of the territory of what is today Guinea-Bissau was the empire of Gabu (Caroço 1954; Lopes 1999; Costa Dias 2004), and its internal fights between Mandingoes and Fulbe stretching back to the 18th century. These came to a head in the 19th century, with the collapse of Kaabu at the Battle of Kansala in 1867 following attacks by the Fulani theocracy of the Fuuta Djalon in neighbouring Guinea. Such historical conflicts are an important context to the unstable relationship between Mandinga and, Fulbe actors in the public sphere of Guinea-Bissau, especially as regards the control of Islam. The Muslim centers such as Fuuta Toro or Fuuta Djallon, or later the Islamized Gabu, managed to control some coastal groups, such as the Nalu, whose rulers were subjected to the Fuuta Djallon during much of the second

424 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. half of the 19th century (Sampil 1969). However, as far as coastal groups and Islam were concerned, the Nalu were more the exception than the rule. In most of the places in coastal Guinea-Bissau, the Muslim frontier did not reach the coast, even if individual Muslims were reported in early sources (Horta 2004), testifying to a very old co-existence of Muslim and non-Muslim agents even in the urban centers, largely inhabited by Catholics and Jews. The third relevant frontier is the Christian Atlantic frontier, as old as the history of the arrival of the Portuguese in the mid-15th Century, when Catholicism began to be institutionally established. Both individual frontiersmen and Portuguese institutions collaborated in the making of a Christian community that established itself in coastal centres such as Farim, Geba, Bolama or Cacheu, home to the oldest Catholic church in Guinea-Bissau (Vicente 1993). A Christian Creole society, a sort of embryo of the colonial society, emerged in these sites, monitoring the Atlantic trade and entering, often through the mediation of Cape- Verdian agents (Djaló 2013:149), into commercial connections with hinterland groups (Brooks 2003; Havik 2004). This proto-colonial society prefigured also a set of relations between Creoles and natives that, much later, would be legally enforced with the rise of colonial legal structures.2 Despite the fact that most early sources on the history of the “Guinea of Cape Verde” (as this part of the Upper Guinea Coast was referred to) was Catholic in authorship and intention (for a thorough analysis, see Horta 2011), the literature on the establishment of a Catholic community in what is now Guinea-Bissau remains scattered across archives and colonial journals (see Vicente, nd, for a very good bibliography). Apart from the detailed historical survey by Father Rema (Rema 1982), there has been no other systematic work on the structure and transformations of the Catholic communities in pre-colonial times, colonial days or the postcolony. This is problematic, given the central place of religious practice in Guinea-Bissau, and the role of Catholicism in the formal colonial period; for such reasons, understanding contemporary conjunctures must engage with the religious dimension. As far as the postcolonial dimension of Catholicism is concerned, Koudawo (2001) offered a very good exception. Building upon previous work by de Fonseca (1993), Koudawo undertook a thoughtful synthetic analysis of the different phases Catholicism went through since Independence (when it was abhorred for its colonial past and foreignness) to a relative revival during

2 The making of a Creole, originally Portuguese, community has too often taken for granted, wrongly, that, given the Ca- tholic hegemony of Portuguese culture, this equals the making of a Christian community. This has invisible-ized the very important Jewish diaspora along the Lusophone Upper Guinea Coast (Mark and Horta 201; Green 2012). 425 Edelamare Melo (Organizadora) the liberal opening of the 1990s, and to the solid implementation (indeed a fully-fledged “indigenization” with the nomination of a native Bishop and priests) in the aftermaths of the civil war of 1998-99.3 It would be necessary to have an update to that seminal analysis. The importance of Catholicism in the making of the Creole community has been object of scholarly research (Brooks 2003; Havik 2005; Nafafé 2005, 2007; Sweet 2007) and is perhaps most visible in the Creole concept for person: pekadur (literally, “sinner”), today used by all Bissau-Guineans, Christian or not. Yet there was nevertheless a surprisingly limited pastoral activity in colonial, Catholic-driven Guinea-Bissau (Gonçalves 1960, vol. 2: 12-13; Trajano Filho 2004; Djaló 2013: 148-152). There were isolated missions in rural areas, as well as many individual converts among different ethnic groups, but overall, and beyond the Papel areas close to Bissau, the rural mission in Guinea-Bissau had little impact compared to the successful Muslim implementation in the hinterland or to the making of robust Catholic communities in neighbouring countries. This historical context of the Christian Atlantic frontier is therefore important in understanding the religious composition of the country today. The religious ecosystem of Guinea-Bissau has always been quite respectful towards “animistic” groups left unconverted by both Muslims and Christians. Why? While explanations based on “resistance” come easily to our mind (to explain, e. gr., the relative non-conversion of Balanta to Islam or Christianity), we think that religious transformation has to be explained in a more holistic, regional model and without falling into too heroic views of cultural resistance. It is not only the resistance of local groups to Christianity or to Islam that needs to be explained, but also the resistance of Muslim and Christian actors towards entering certain zones. For instance, Djaló discusses the explicit instructions early Catholic agents had not to leave the urban centers (2013: 148). A holistic, regional model, combined with a careful analysis of sources along the lines suggested by Djaló, would probably help us understand the advantages, for all the actors involved, of keeping different cosmological enclaves coexisting. This might explain why in certain zones some members of the local community converted to a world religion, while others did not. The above-mentioned Balanta are a case in point. Despite the resistance model often imposed upon them, the fact is that many Balanta did convert to

3 Because of its mediatory role (Infanda 2009), the civil war proved a true coming-of-age for the Catholic Church in the post-colony. Furthermore, it allowed religions to be present in the public, political sphere and consolidated ecumenical initiatives that, up to that moment, had kept a very low profile (Augel 1996). 426 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Islam, becoming the subgroup known as Balanta Mane. The Balanta Mane abandoned many customs and adopted Mandinga ways of life, and their language is now substantially different from both Balanta Nhakra and Balanta Kuntoe, the two main languages spoken by their animistic neighbours. Like those, the Balanta Mane live in the region of Oio, which has been a kind of “buffer zone” between the Muslim internal frontier (populated mostly by Mandinga and Fulani) and the Coastal Christian one. The Balanta, being mostly animistic, have been object of both Christian proselytizing (quite successfully; the current Bishop of Bissau is a Balanta Kuntoe) and Muslim efforts in the same vein (which has been very successful in the past among the Balanta Mane, and is being quite successful today among the Balanta Nhakra). In Guinea-Bissau in general, Christians rarely attempted to convert in Muslim areas,4 and Muslims proselytizers were rarely active in Christian centers except as traders, but the buffer zone of Oio along the Geba river and other interstitial frontiers were reservoirs for agents of both religions where to look for in their search for converts.5 The existence of the buffer area of Oio (and other similar ones in the country) makes us think of an important element in the religious geography and political culture of Guinea-Bissau: the importance of mediation, negotiation and religious compromise. The Upper Guinea Coast has too often been analyzed in terms of polarities (coast-hinterland, landlord-stranger, youths-elders, raider-refugee, animistic-world religious, male domain-female domain, etc.), In reality, these oppositions are ideal types, and many possible negotiations occur in between the two poles of each continuum. Guinea- Bissau has been quite a good example of successful opposition management, creating a hyper-complex cultural grid full of mediations and negotiations. Thus, to give just a few examples, today’s bishop of Bissau, Mgr. José Câmnate na Bissing (ordained Bishop in 2000), is a Balanta Kuntoe, a group strongly perceived in the Bissau-Guinean public sphere as being animistic. The leader of the National Islamic Council is a Mandinga learned man who, despite his important role in the Muslim community, goes by the Christian name of Armando, because he grew up in a Catholic home and is proud of the name given by his adopting family. The recently deceased ex-President Kumba Yala was a Balanta man who always wore the red bonnet (a symbol

4 This could be nuanced by arguing that Protestant churches did try to convert Muslims already in colonial times, as proved in the thorough and graphic article on communication, media and propaganda by Gonçalves (1966). Howe- ver, their success was, we suspect, minimal. 5 The “fascination” for Islamic mores among animistic Balanta of Oio was a matter that worried Governor Sarmento Rodrigues, who, being well aware of the geographical distribution of religions in the Province he was ruling, also noted the alliance that Christianity should establish with the animistic coastal dwellers (Rodrigues 1948). 427 Edelamare Melo (Organizadora) of animistic tradition), even after he converted to Islam, thus allowing his presence and discourse to bridge two different publics (in his last years, incidentally, he partially reconverted to traditional religion and boasted of new spiritual contracts). This spirit of compromise underlies the co-existence and, if we may use a Portuguese concept often invoked in Guinea-Bissau, convivência (co- living). This can take two forms: religious syncretism or compartmentalized respect for the other’s religion. Thus, when Muslim people invite Christian friends to a baptism, a funeral or a weeding, they provide alcohol for their guests. Muslims do not drink, but they know that their guests may want to do so, and they want them to be happy. Convivência means that all points of view must be given expression. When, in 1999, the Bishop of Bissau, Septtimio Arturo Ferrazzetta, passed away, there were three funerals: a Catholic one, a Muslim one, and an animistic one.6 This spirit of convivência, present both in the cosmopolitan praças and in remote hamlets, lies underneath the ecumenical dialogues that have been so important in the management of political crises over the last 15 years. Perhaps the most visible example is the relationship between the Catholic father David Ciocco and the imam of Mansoa (the capital of Oio), Abubacar Djaló. Fifteen years ago, when the latter, upon returning from Qur’anic learning in Egypt, founded a Mosque in Mansoa, he invited Father David to place the first stone. Later the two signed an agreement so that the Catholic station “Sol Mansi” (founded by Father David in 2001) and the Muslim Qur’anic station of Mansoa (“Recom”) would work together, the former hosting Muslim programmes, the latter hosting Catholic ones, and the two sending ecumenical messages to the mixed public of Mansoa.7 But let us not be too romantic about convivência. It is in itself another ideal type, with its exceptions in everyday life, where clashes of religion do occur. It is alright, for example, for Muslims to do proselytism in the Eastern frontiers of the country (or in buffer zones such as Oio), but if they try to enter regions historically associated with either Christianity or animism, such as the coast or the islands, they may find themselves with a real or symbolic confrontation, and therefore will have to use their own real or symbolic

6 Ordained in 1977, Ferrazzetta was the first bishop of Bissau. After his death, Guinea-Bissau had two dioceses: Bissau and Bafata. Ferrazzetta was a significant mediator in the armed conflict and an initiator of the ecumenical spirit continued by his successors. 7 The importance of radio channels in the making of ecumenical religious publics in Guinea-Bissau is an underde- veloped area of research (already discussed by Gonçalves in colonial days, see Gonçalves 1961:27-32 and 1966). One of the authors (de Barros) has already started a contemporary systematic survey; future publications will follow. 428 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. violence, such as iconoclasm (destruction of sacred objects, sacred forests and shrines). There have been some recent examples of this on the coast and on the Bijagó islands. But iconoclasm may backfire. Just look at what happened in January 2009 in between the islands of Pecixe and Jeta, when a Muslim Mandinga man was preaching among the largely animistic Mandjaco. A boat departed from the port of Pecixe with the intention to take the Muslim cleric and his followers to Jeta to continue their proselytism. Yet, in the middle of the way, the boat, probably overloaded, sunk, and more than 70 people died. The tragedy was later interpreted by animistic people as an example of the superiority of the local spirit over the Muslims trying to penetrate their territory. The land of spirits has to be trodden carefully. This kind of events and beliefs reinforce the geo-spiritual divide and collaborate to the tenacity of traditional religions in many parts of Guinea-Bissau. Contract, prayer, and negotiations A contrast that often crops up in conversations and interviews with Bissau-Guineans is the distinction between religions of contract and those of prayer. Animistic societies share a cosmological matrix according to which the community is based on oaths and “spirit contracts.” Spirits (irans, in Kriol) are the real owners of the place (tchon, a concept of particularly strong religious and political relevance in Guinea-Bissau). In order for humans to inhabit a place, a contract between the spirit and the first arrival must be “signed”. This gives ritual and political seniority to first arrivals, who thus become the owners of the place (donos do tchon). Late arrivals (hóspedes) will need their authorization to settle and to have access to land (Temudo 2012). However, if the first arrivals do not keep renewing the contract with the iran, through periodic libations and sacrifices, the nourishing territory may turn into wasteland. Islam and Christianity, in opposition, meet in prayer. Indeed, Guinea-Bissau might offer a paradigm in which to study the social-glue aspect of prayer, a concept used as a metonym for “religion”. It is not unusual in Guinea-Bissau to hear expressions like “I am going to the prayer” as synonyms of either “I am going to the Mosque” or “I am going to the Christian meeting”. Moreover, the expression “the people of the prayer” is used to refer to the religious and human sameness underlying Christians and Muslims. This centrality of idioms around “prayer” highlights the community-making aspect of this religious practice. At the discursive level, praying constitutes a common index for people to perceive themselves as equals (“the people of the prayer”), even if they belong to different world religions.

429 Edelamare Melo (Organizadora)

At the practical level, some religious celebrations (important Muslim and Christian feasts) often bring people together in big ecumenical prayers. With prayer such a key defining aspect of people’s lives, understanding the fabric of the contemporary country and how religion might be related to political projects of stabilization is extremely important. Prayer is thus a very strong centripetal gluing force, but it can also become a centrifugal drive of exclusion. Individuals or groups who do not belong to the “people of the prayer” category are more and more ostracized and excluded from the public sphere. This exclusion and marginality generates reactions, such as the mimetic Kyang-yang prophetic movement discussed below, but it can also create resentment. It also creates tensions between Muslim and Christian proselytizers in their competition to convert “pagan” people. Religions of prayer abhor notions of spirit contract. In Christian theology, in particular, you can have a contractual relationship with the Devil (the “Faustian” contract) but certainly not with God. In both Muslim and Christian theology, God is beyond practical obligations towards humans, and cannot be forced to abide to legalistic forms of contract. However, the strict opposition between “prayer” and “contract” may be another one of those ideal typical ones that work very well at the level of representations, but that in practice are divided in many in-between solutions and situations. Many of the Muslim practices associated with mouros (the Kriol word for what in many parts of West Africa, including eastern Guinea-Bissau, is referred to as marabouts) can be seen as a mixture of contract and prayer, and although mouros are criticized by reformist Muslim leaders, they are so important in the Bissau-Guinean public sphere (as well as in the diaspora) that their existence, even if contested by some reformist ulema, is part and parcel of the religious convivência, and not very aggressively tackled by anyone. The same can be said of Catholicism, a religion based on prayer, but whose practices are often subjected to the logics of contract, promises and torna-boka, as Bissau-Guineans refer to the rituals one must perform in a shrine in order to return a favour of the spirit of the place. Sometimes, even migrants who live in Europe, who may be Muslim or Christian, must make a journey back to the most remote village in hinterland Guinea-Bissau to perform a torna-boka. Islamic trends: old and new The history and workings of the expansion of Islam, sometimes referred to as “the threat of Islam” in colonial sources (e.gr. Franklin 1956), in Guinea-Bissau has been a topic of scholarship by colonial administrators (Rodrigues 1948; Teixeira

430 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. da Motta 1954; Brito 1957; Gonçalves 1958, 1961, 1962; Carreira 1966), as well as by recent historians (Bowman-Hawking 1980) and anthropologists (Gaillard 1994, 2000; Johnson 2000; Costa Dias 2009). Nevertheless, despite some efforts by recent scholars, ethnographic work is still needed to assess the relevance of Islam in today’s public sphere.8 The available literature shows that the making of a Muslim community in Guinea-Bissau has been extremely turbulent and fragmented since the days of precolonial empires such as Mande, Gabu or the two Fuutas and their fights (both internal and among each other), right through to today’s controversies within the umma. It also shows that between the letter of the Qur’an and everyday practices there have been many possible compromises, negotiations and processes of cultural osmoses and symbioses, which, in their turn, have produced many reformist Muslim movements. This is true of most of West Africa; but perhaps due to its ethnic pluralism and to the tenacity of traditional religions, as well as to the ability of inhabitants to adopt multiple identities and make fluid alliances, Guinea- Bissau might offer a paradigmatic case in which to study the cultural logics beneath Muslim incorporation, expansion, and internal debates. The entanglement between Islam and the anti-colonial struggle has been tackled by Garcia (2000, 2004), and its relevance to understanding later post-colonial politics by Gaillard (2002) and Cardoso (2004). Much like Christianity, Islam, Cardoso argues, was regarded with suspicion by the first independent governments, largely because of its “verticality” (to use Cabral’s formulation) and its association with colonialism (see chapter by Green, this volume). Religion was perceived as a hindrance for the making of the homem novo of the revolutionary future. In the 1990s, religion, like associations and civil society in general (Barros 2012), started to have a much more accepted presence in the public sphere. This was accentuated after the conflict of 1998/99, when both Islam and Christianity became engaged in the political landscape. Cardoso argues that, although the situation at the time he was writing was not quite the same as that of Senegal (overt symbiosis between political parties and Sufi brotherhoods), Guinea-Bissau might be going in that direction, with similar symbioses between Islamic trends and political attitudes. Ten years after Cardoso’s article, and basing ourselves on our field research among Muslim agents and associations in pre-electoral Bissau in December 2013, we are inclined to believe that the convergence between political leaders and Muslim publics he anticipated is becoming more and more likely.

8 For some exceptions, see the recent MA thesis on early marriage among Muslim women (Borges 2009) or the UNICEF report (Einarsdóttir et al. 2010) on the problem of the “talibé children”, i.e. young boys sent to undertake Qur’anic training to Senegal, where they are forced to beg, a big concern in both Guinea-Bissau and Senegal. 431 Edelamare Melo (Organizadora)

Today there coexist in Guinea-Bissau different understandings of Islam. We have verified the existence of the following key categories: mainstream Sunni Muslims; Sunnis belonging to the Sufi brotherhoods Qadiriyya, Tijaniyya and Muridiyya (this last one mostly composed of Senegalese settlers, since this brotherhood is very important in Senegal);Sunnis belonging to the reformist movement Wahabiyya; Sunnis belonging to the Ahmadiyya (even if the initial foreign introducers of this movement were expelled from the country by Kumba Yala in 2001, following misunderstandings with the National Islamic Council); Sunnis belonging to the Tablighi Jamaat (a movement particularly attractive to young people); and, beyond the Sunni sphere, of Shi’a Muslims. The latter are probably recent arrivals, but they must be taken into consideration. Worries about Shi’a presence and actions have been firmly voiced by Sunni ulema of different trends. The arrival of Wahabiyya and Shi’a over the last decade is attributed, by many of our interviewees and by the media,9 to the proximity of the Republic of Guinea. A large number of Guinean Muslims have entered Guinea-Bissau since the Mandinga Alpha Conde took presidential office in 2010. Conde is a Muslim, but the Fulani of Guinea have been massively prosecuted since the beginning of his rule, which many Guineans describe as a “Mandingo- ization” of their country. Many Guinean Fulani, including wealthy traders and some politicians, have established themselves in Guinea-Bissau, making alliances with religious (and, probably, political) agents. When discussing new Islamic forms in the field, a notion that normally emerges is that traditional Islam used to be much more tolerant to local non- Muslim practices than the new forms of today. This is probably the case, though we should not romanticize past forms of Islam or fall into the problematic explanation that forms of “Black Islam” were closer to African beliefs than to the orthodox Muslim belief. The arrival of Islam in the past was also, on many occasions, violent to local socio-cosmological understandings, and “orthodoxy” is too theological a concept to have sociological value anyway. Probably, a lot of devotees who practiced so-called African (or Black) forms of Islam would argue, if asked, that they were perfectly abiding to Muslim orthodoxy. And who would we be to dispute that?10 Age is a particularly interesting aspect of the debate. Some of our interlocutors argued that established forms of Islam in Guinea-Bissau had

9 See, for instance, the 2012 entry “Muçulmanos guineenses que praticam o islão segundo regras xiitas preocupam chefes religiosos” in the blog “Ditadura do Consenso” (http://ditaduradoconsenso.blogspot.pt/2012/07/muculma- nos-guineenses-que-praticam-o.html) (retrieved 11 April 2014). 10 The clash between different modes of Islamic training is the object of an insightful article by Eduardo Costa Dias (2005), astutely avoiding a facile divide between “Black Islam” and “orthodox Islam.” 432 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. one very important thing in common: the gerontocratic order. According to them, in the past it was as difficult and long for an animistic young child to become a proper elder in the local community as it was for a Muslim Fulani or Mandinga to become a properly learned Muslim elder. Both processes of maturation were, indeed, time consuming (for the confluence between Islamic and traditional systems of religious training in West Africa, see Brenner 2000). Newer forms of Islam, in contrast, try to bypass the “in-between” status of many young Bissau-Guineans, prisoners in age-and-learning systems in which they are no longer children nor not yet adults, by promising that anyone can be learned and empowered, even if they were a young man or woman. According to these interviewees, thus, one of the elements that makes these new religious movements so fascinating for Bissau-Guinean youths is that they address the main problem youth face in Africa today, namely how to become an elder and to be responsible for their own agency. They offer, to put it this way, a right-now and ready-made modern adulthood. But this view is contested by some other interviewees. Some of our more “traditional” young Muslim ones insisted that newer forms of Islam, such as Shi’a and Tablighi Jamaat, are not really addressing young people’s problems. Rather, they are successful at manipulating youths’ desires and expectations. These interviewees argue that the relationship between youths and elders (and between men and women) is very fluid in traditional forms of Islam, and abusive gerontocracy does not really exist: all Muslim are equal before God, irrespective of their age or sex. Youths of today, holders of this view insist, are being manipulated by external agents willing to create division in Guinea-Bissau by playing with youths’ aspirations. This may be truth at some level (depending on how we define “manipulation”), but it should not mean that youths have no agency whatsoever in their conversion. They may be “manipulated” at some point, but they may also be “manipulating” the situation to their advantage. Perhaps the success of some forms of religions depends on their becoming an all-win equation, in which everybody is happy with what they are getting out of the global situation… In any case, the diversity of forms of Islam is striking and is a constant topic of theological discussion among Muslims and of social views about Islam in general. While this is probably the case for any Muslim context, it is rather extreme in Guinea- Bissau. The Islamic community is today so strongly divided that it boasts two Islamic councils: the National Islamic Council and the Superior Islamic Council, divided along ethnic and political lines (the former being composed mainly of Mandingoes and the second of Fulani, increasingly incorporating exiled Guineans). The division is

433 Edelamare Melo (Organizadora) so acute that last year the two councils celebrated the tabaski (the West African name for the annual Eid-al-Ahda feast) in different days, following different readings of the liturgical calendar. These are divisions which have thus all followed on from the emergence of Islam into the public sphere since 1998, and the intersection of religious and political changes in the whole sub-region. Religion, modernity, and connection Perhaps because it has been such a marginal, out-of-the-way place where for too long modernity has been beyond the reach of many of its citizens, Guinea- Bissau has been object of some of the most innovative works on the fascination for modernity among young Africans (Gable 1992; Bordonaro 2010). In this final part of our chapter, we seek to show how many of the religious transformations the country has experienced in the last 30 years can be seen as indigenous ways to appropriate what people perceive as a modernity from which they feel excluded and to make alliances with broader worlds, an “extroversive” attitude that has characterized the local worlds of Guinea- Bissau since their early days. Perhaps the most paradigmatic example of this religious appropriation of modernity is the prophetic movement Kyang-yang (Cardoso 1992; Caellewart 2000; Temudo 2008; de Jong and Reis 2010). The Kyang-yang (a word meaning “shadows” in Balanta) is a religious movement that affected almost exclusively the rural Balanta. It emerged in 1984 when a woman, Ntombikte (later known as Maria), claimed to have received commandments by God. She had thousands of followers, who under her initial guidance (later under the guidance of other Kyang- yang prophets, including Ntombikte’s brother) abandoned traditional religion and converted to what, from an external point of view, was a syncretistic form of monotheism. They mixed Muslim and Christian symbols and rituals and gave a centrality to idioms of “prayer”. They also materialized their religion and beliefs through sculptures and drawings. It is striking, when analyzing this imaginative material culture, to notice how important modernity was for adepts to Kyang- yang. It was as though Balanta farmers, aware of their marginalization from the Bissau-Guinean public and political spheres (particularly acute in the early years of the 1980s, after Nino’s coup d’état), attempted, through conversion, to join the modern world they were explicitly expelled from. Through their exuberant religious imagination, they built or designed hospitals, schools, modern homes, and religious buildings similar to either a mosque or a Christian temple. The movement was highly mimetic, but it had real effects on people’s lives. The Kyang-yang gradually died out. Today it is composed of isolated individuals living in Balanta villages, who sometimes gather in small groups

434 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. to pray, but more and more rarely so. There have been little or no conversions over the last decade. Its gradual disappearance has been replaced, as far as young Balanta people are concerned, by two new religious arrivals in the villages: Pentecostalism and Islam, even in regions previously known for their fierce opposition to Islam. These two religions are seen today (and, unlike Kyang-yang, not only for Balanta) as local mechanisms to reach modernity and to be connected to a wider world, effecting, probably, a much more real and less imaginative connection than that earlier expressed by Kyang-yang prophets. In March 2011, one single man, Maulama, a Balanta Nhakra who had studied in Morocco, where he converted to Islam, brought Islam into his village (in the region of Oio) and converted hundreds (some say thousands) of young people to Islam. Several villages decided, collectively, to convert so as to have access to “hospitals, wells, and schools”, to cite verbatim the three things their dwellers mentioned in interviews as the main advantages of conversion (in the hope that development agencies from other Muslim countries would help them obtain them). The rise of new forms of Evangelism and Pentecostalism in Guiné-Bissau is a recent boom (linked to the expansion of Brazilian churches), but it builds upon a deeply established Protestant community that, although very small till recently, should not be neglected (for its history, see Brierley 1955; Gonçalves 1961, 1966; Santos 1968; Wallis 1997; Costa Dias 1999; Lima 2007). Neo-Pentecostalism often functions to promote forms of “development” and to provide an anchorage for young people to feel that they belong to wide networks and possibilities, being very efficient at combining religious with other social services.11 In the island of Formosa, for instance, the Evangelical headquarters includes a pharmacy. Evangelists also rely on the power of the radio, and in particular it may be worth singling out the Radio Luz. This radio was born in the 1998-99 civil war environment. It was during the war that the Brazilian Pastor Cláudio Silva (from the Assembly of God), then in Cape Verde, had a dream in which God commanded him to go to war-torn Guinea- Bissau to undertake evangelical work there. TV channels, especially “Record TV” (belonging to the Universal Church of the Kingdom of God), is also a prominent element of evangelical action. Evangelist churches arriving from Brazil have in their favour the fascination that Bissau-Guineans feel towards things Brazilian: the culture, the people, the music, the tastes, and even the characteristic Brazilian accent and way of speaking Portuguese. Brazil, a country Africans perceive as being much

11 The huge literature on (neo-) Pentecostalism in Africa is often based on a clear-cut distinction between Pentecostal and non-Pentecostal forms of evangelical Christianity. However, in the field the line gets very blurred. Many Bis- sau-Guineans we interviewed did not even know whether their church was Pentecostal, Evangelical, or mainstream Protestant. 435 Edelamare Melo (Organizadora) more developed than their own, is, in itself, a symbolic mediator that allows for Christianity to arrive to ex-Portuguese Africa without any colonialist connotation. Brazilian religious expansion is not only a “South-South” phenomenon, but one that gives hopes to Africans that they can reach their own way of being in the “developed” side of the world. These waves of modernization through religion (the semi-extinct Kyang-yang, Pentecostalism, and Islam) have some common trends, which an help us to assess how the country can move towards integrating this modernity with the need to find a stable political settlement. First of all, they all share the notion that religion brings connection. Non-Muslim and non-Christian people know that their world religious neighbors belong to complex networks linking them to each other and to wider international circuits. Being modern is being connected to this network and, through this connection, able to gain access to development, wealth, and improvement of life quality. Secondly, we find in these religious dynamics reconfigurations ofage and gender. Young people may find it easier to express and effect revolt against their elders if they feel God is on their side. The three religious examples have produced breaks with tradition and with kin obligations. Women, too, may find in religion ways to organize themselves against traditionalist male hegemony. Since its arrival in 2010, the Brazilian-initiated Evangelist organization Filhas da Sara (Sarah’s daughters) is rooting itself in the Bissau-Guinean society and providing women with a relatively autonomous sphere within Christian religious culture.12 Last, but not least, religion is part and parcel of the reconfiguration of alliance and relatedness we witness in Guinea-Bissau today. New idioms of love, of individual autonomy and of nuclear family are emerging, and religion plays a very important role in encouraging young people to look for their partners and breaking with traditional structures of kinship and alliance. Christian and Muslim proselytizers are very successful at mobilizing this need for individual autonomy in a world of equal citizens, but given the peculiar tenacity of traditional religions in Guinea-Bissau, sometimes the dynamics are reverted. Thus, in the largely animist Papel and Bijago regions, when people convert to Christianity (and sometimes to Islam) but their move is felt as unsuccessful, they may have to pay huge amounts of money and sacrifices to ask for forgiveness and to be reconverted and reincorporated in their communities. Conclusion Guinea-Bissau, a small country at the edge of a big continent and of an even bigger ocean, boasts many different religious traditions and many different

12 http://ministeriofilhasdesara.blogspot.pt/p/guine-bissau.html (retrieved 10April 2014) 436 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. compromises. Sociologists are often puzzled to find that people, when asked about their religion in questionnaires, do not write down “Muslim”, “Christian” or “animist”, but rather “mixed”.13 What might a “mixed religion” be like? What do people really mean? This must be ethnographically studied, but the use of the concept, in itself, tells us a lot about the lived-world of contemporary Bissau- Guineans. Their spiritual landscape offers a rich variety of discourses and practices, and history has taught them that it is best to keep options open. Their success, as individuals and as groups, depends on tapping from different sources and on making simultaneous alliances (in some parts of Guinea-Bissau it is very common to find people who send one child to the Mosque and another one to the Catholic church, thus maximizing their and their group’s alliances). Managing multiple identities and mastering the arts of ambiguity has long been part and parcel of being a person on the often turbulent frontiers of the Upper Guinea Coast. Historical work is necessary to analyze the depth of the different traditions, the connotations some groups have inherited, the representations different religions have had in different times, and the compromises made at specific moments. Sociological and anthropological work is equally necessary to better understand how this historical legacy is incorporated, what the cultural logics of religious change and mixture are, and how the cunning ability of actors to negotiate and to find resourceful mediations works. In the conclusion of O Mestiço e o Poder, Tcherno Djaló warns against the potential polarization between a Luso-ized elite and a Muslim one, and reminds that only a properly democratic institutional setting will prevent this from becoming a political problem for the country (Djaló 2013: 273-74). Democracy is indeed necessary, but in any case Bissau-Guineans have sufficiently demonstrated that they do not sit well in strict polarities, be they racial, political or religious: they are very good at managing ambiguity and mediation and at offering imaginative solutions. In the making of the modern global world, Bissau-Guineans are better regarded as actors than as outcomes. Their own willingness to remain actors is what lies underneath their skillful management of alliances and extraversions and what gives rise to the religious inventiveness of this apparently marginal, but in reality very central part of the Atlantic world. Referências Bibliográficas Augel, Johannes. 1996. “Pensar o futuro – religiões na Guiné-Bissau: papel, aspiraçóes, pers- pectivas”. in Johannes Augel and Carlos Cardoso (eds). Transição democrática na Guiné Bissau e outros ensaios. Bissau: INEP. 203-214.

13 Bissau-Guinean sociologists with whom we have informally discussed the “mixed religion” common answer include Mamadu Jau, whose critical insights and support to the FCT project we thank here. 437 Edelamare Melo (Organizadora)

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ÓDIO > PERDÃO > AMOR = Cidadania

Ruth Grinberg e Natalia Gedanken

Inicialmente gostaríamos de convidá-los a fazer uma pausa para uma atividade bem simples: Respirar. “Vamos juntos respirar com a Natureza?”. Assim, poderão relaxar e abrir um espaço para receber a minha mensagem. A história da humanidade contada e estudada nos livros e nas escolas, fala so- bre como uma pessoa, ou um povo, alcançou o poder e subjugou a outros, sentindo- se no direito de matar, estuprar, tomar propriedades e impor sua cultura e seus cos- tumes. Nossa história, normalmente, realça os vencedores e ignora os perdedores. O povo judeu que perdeu muitas lutas, foi escravizado e subjugado nos últimos milênios. Assim foi, até a criação do Estado de Israel, que serviu para os acolher e dignificar. Somos um povo com tradição, cultura, costumes e leis. Acreditamos que nossas leis foram dadas por D’us. Não queremos dizer com isso, que o povo judeu seja mais ou menos importante que os outros povos. A grande maioria do nosso povo conclama a paz, a evolução e a dissemi- nação da educação e da cultura. É o povo do Oriente Médio que mais prêmios Nobel recebeu (25%). Impressiona o tanto de pesquisa científica, de informática e avanços tecnológicos que vem realizando nos seus quase 70 anos de existência. A maioria dos povos tem como base a situação geográfica que vivem. O Estado de Israel, diferentemente, é um país que surgiu baseado na espiritualidade que integra crenças, valores e costumes respeitados por gerações. É impressio- nante como o povo judeu, com tudo o que passou e tem passado, se mantém liga- do a sua herança religiosa e cultural, mesmo estando espalhado pelo mundo todo. São inúmeras as perseguições e tentativas – quase bem-sucedidas – de nos exterminar. Não conseguiram. E por que? Por ser o povo escolhido? Acho que é o que vocês devem estar se perguntando agora... A resposta é.... não! Eu vou contar o segredo... é a relação de amor, amizade e conhecimento his- tórico do nosso povo. É a capacidade de se ir além das mágoas, do ódio e dos ressentimentos. É a capacidade de Perdão. A pior DOR que o povo judeu já passou, todos sabem, foi o Holocausto, ocorrido durante a II Guerra Mundial. Além dos campos de trabalhos força- dos, haviam os campos de extermínio. O mal maior de todos os tempos foi um médico alemão, coronel da SS – a tropa de elite nazista –, chamado Josef Mengele, um pesquisador e torturador.

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Os poupados da morte imediata por ele eram enviados para o “zooló- gico” assim chamado os barracões onde ficavam as cobaias humanas de seus experimentos. Apelidado de “anjo da morte”, suas experiências eram feitas especialmente com gêmeos. Como foi possível tanta maldade? Vou contar uma das histórias de Mengele. Eva kor Eva e sua irmã gêmea, Miriam, foram submetidas aos experimentos de Mengele, quando eram prisioneiras no campo de concentração de Auschwitz na Polônia. Ela teve de enfrentar momentos muito difíceis e dolorosos. Elas foram submetidas a vários experimentos e testes genéticos. Eva nos conta que foi separada da irmã e levada para um laboratório. Depois de torturada ela teve febre, inchaço nas pernas e nos braços e manchas vermelhas em todo o corpo. Então, Josef Mengele disse que ela teria duas semanas de vida. Mas, por algum milagre ela sobreviveu e foi devolvida a um galpão, onde reencon- trou sua irmã. Ela tinha que sobreviver para garantir a vida de sua irmã.

“Se eu tivesse falecido, Miriam seria morta com uma injeção no coração. Mengele teria feito uma autópsia comparativa”, expli- cou, detalhando os planos do agente alemão”, diz Eva.

Esta poderia ser apenas uma história do passado. Porém, hoje, mais do que nunca, a cultura do ódio virou uma moda e um modelo de cidadania. Hoje tanto nos meios de comunicação (jornais, rádio e TV), nas redes sociais (WhatsApp, Twiter, Facebook) vem incentivando cada vez mais a maldade humana. O que mais se lê e se escuta são sobre as situações alarmantes e cru- éis que estão ocorrendo: crimes dos mais diversos, assédios, raptos e torturas. Alguma coisa diferente da época do nazismo? Tenho minhas dúvidas... Atualmente está em voga ser ruidoso, mal-educado, pérfido, agressivo, descuidado, bruto, mal-humorado, impaciente, ranzinza... Não é à toa que a moda atual busca calças rasgadas e até mesmo roupas com simbologia na- zista ou de guerrilha. Elas falam por si só. Hoje o chique é ser assim. Todos os tipos de mercadorias com fotos de vítimas de campos de concentração e imagens que exaltam Hitler agora são facilmente encontrados em lojas on-li- ne. Já existe uma tendência de moda, chamada “nazista chique”, que ganha popularidade em todo o mundo.

Se o uso do simbolismo nazista na moda se manifestasse em ca- sos isolados, haveria apenas um pequeno motivo de preocupação.

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Mas quando essa tendência é apoiada ou encoberta por gigantes como a Amazon, a maior plataforma de vendas on-line do mundo, não podemos permanecer indiferentes. Desde decoração de casa a roupas e acessórios, o site popular está infestado de produtos que mostram vítimas do Holocausto indo para as câmaras de gás e imagens que glorificam o Terceiro Reich. Essa tendência vem para nos abalar até a compreensão da urgência e pertinência de unir nossas forças. Ao nos tornarmos um povo unificado, seremos capazes não apenas de evitar banalizar as atrocidades do passado, mas também de impedir que a história se repita Dr. Rav Michael Laitman

O Perdão Após a guerra, a trajetória de Eva Kor foi muita ativa. Gerenciava suas páginas no Facebook e no Twitter, viajava pelo mundo fazendo palestras e documentários, escrevia livros. Dois anos após a morte de sua irmã, fundou o museu CANDLES, dedicado à história dos experimentos nazistas com crian- ças, a recordação e a reconciliação. Após a morte de Miriam, Eva iniciou o caminho para a libertação, o perdão e a cura. Em abril de 2015, viajou para a Alemanha para ser testemunha no julgamen- to do ex-nazista, Oskar Groening. Durante o processo, ela se aproximou do homem e o abraçou. Eva explica que percebeu que tinha o PODER de PERDOAR e PO- DERIA USÁ-LO COMO QUISESSE. O PERDÃO a tornou mais forte, ajudou-a a apagar lembranças terríveis e a se LIBERTAR DE SEU PASSADO TRÁGICO. O bem e o mal sempre coexistiram dentro de nós. O mal, na visão judaica, é a chance para crescer, evoluir e conseguir elevar a alma, desenvolver nossa capaci- dade criativa e as habilidades de nos relacionarmos como seres vivos. Ele até tem nome próprio: IÊTZER ARÁ. Para podermos lidar com o mal que existe em nós, precisamos conhecer a nossa própria história de vida, de nossa família e do povo ao qual pertencemos. Esse é o primeiro passo para que possamos ir além destes senti- mentos que contaminam as relações pessoais, familiares e profissionais. O mundo em que estamos vivendo neste momento, está constantemente sendo bombardeado por notícias, imagens e fatos de morte, agressividade, de desespero e acabam levando à desesperança e descrédito no ser humano. Poderia parecer natural se não fosse tão cruel. Nunca houve tantas tentativas de suicídio (“Setembro Amarelo”), casos de anorexia, bulimia etc. O que mais temos ouvido com relação aos jovens de todos os lugares é a falta de esperança e o descrédito nos seres humanos: “já que está tudo es- tragado, podre mesmo, vamos lá, que eu ajudo a estragar mais”, acredito que

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é isso que devem pensar. Com isso, os ataques às escolas, templos, pontos de ônibus, táxis, caminhando nas ruas, em qualquer lugar... “esse ódio que tenho dentro de mim não aguento mais e tenho que colocar para fora! ” Esse ódio é um desesperado pedido de ajuda para que se faça alguma coisa. Além disso, vejam o quanto estamos passando por crises ecológicas! To- dos deveriam perceber o que está acontecendo na natureza. Vamos continuar nos comportando como criancinhas e viver da misericórdia dela? Ou vamos assumir a responsabilidade sobre nossas vidas e o planeta, nossa casa em que vivemos. Não dá mais para acharmos que o que ocorre num país não repercute nos outros. Estamos todos entrelaçados na teia da vida planetária. A guerra na Síria, por exemplo, levou-os à uma fuga em massa, causando drásticas con- sequências em diversos países. Sabemos com isso que hoje não há mais ven- cedor; que por isso devemos nos cuidar e tentar transformar as ideias do mal. O único escudo para a nossa sobrevivência é nossa unidade. Como está escrito: “A principal defesa contra a calamidade é o amor e a unidade. Quando há amor, união e amizade, nenhuma calamidade pode vir sobre eles” (Maor Vashemesh). Como poderemos transformar toda essa maldade? O que posso fazer é recodificar minhas ideias e percepções sobre os fatos. As boas forças são re- veladas e você as deve usar para se transformar dentro delas. Só depende das nossas ações. Como então transformo coisas ruins em boas? Através da restrição. Todos nós temos capacidade e competência de con- trolar nossos atos e com isso sublimar nossas emoções. É fundamental acreditar na força de nossa intenção e termos clareza e fé. Então, somente com a bondade poderemos fazer um mundo melhor. Repetimos, para isso, precisamos conter a nossa parte malvada e transformar, ou despertar a força positiva, a força su- perior, o amor. O que está sendo revelado agora é para nosso puro polimento. Precisamos aprender a construir, inspirar e reviver relacionamentos amo- rosos, elevando-nos acima do egoísmo. Precisamos aprender a entender nossa natureza humana egoísta e por que não podemos tolerar um ao outro. Os que desejam se submeter a esse processo precisam de um grupo onde os participantes mostrem uns aos outros o quanto tentam superar seus próprios desejos em benefício dos parceiros. O amor é como um animal e deve ser cons- tantemente alimentado. Elevar-se acima do egoísmo abre novos horizontes de acordo com o princípio: “o amor cobrirá todas as transgressões”. Um novo es- tudo sugere um método para parar o sofrimento: simplesmente não pensar em nós mesmos, mas nos outros. Este é o caminho para ser feliz de acordo com a sabedoria da Cabalá. Quando nos unimos acima dos conflitos e das diferenças de opinião, uma força positiva se espalha no mundo e pode fazer maravilhas.

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“Se uma pessoa pega um feixe de juncos, não pode quebrá-los todos de uma só vez. Mas, tomado um de cada vez, até um bebê os quebrará. (Midrash Tanhuma, Nitzavim, Capítulo 1). Entendem a importância da UNIÃO? AMOR Então D’us, como posso estar consigo, falar, interagir, me sentir amada e prote- gida e mesmo confiar em Ti e também querer lhe proteger e berrar aos quatro ventos o quanto O amo, O respeito e O quero! Eu acredito na humanidade, no bem e no bom, ENFIM busco sempre o melhor DO SER HUMANO. (Eva é um exemplo)

Reconheço o ódio. Realizo o Perdão. Busco a aceitação e o amor.

Para concluirmos vamos compartilhar um texto que nos nos chamou atenção sobre o AMOR, em tempos de tantas manifestações de ódio e intolerância, que vem do povo Na’vi, nativo de Pandora, no filme AVATAR. Ao em vez de dizer “eu te amo”, diziam: “eu vejo você”. Ver o outro é reconhecê-lo como semelhante, é ir além da superfície e mergulhar no SER. Significa ver o outro mais do que fisica- mente. Significa ver um olhar amoroso dentro do outro, com compreensão, acolhi- mento e com toda a nossa vulnerabilidade, humanidade e divindade em comum.

Eu vejo a sua dor. Eu vejo os seus potenciais. Eu vejo você e aceito tudo o que eu vejo, mesmo aquilo que não me agrada, mesmo aquilo que não se encaixa nos meus padrões. Eu vejo a sua Luz. Eu o vejo sem lhe julgar, sem lhe culpar. Eu vejo você além de quaisquer expectativas e projeções, pois elas podem prejudicá -lo e esconder sua identidade mais profunda. Eu vejo você em todas as suas dimensões e na riqueza de todas as suas experiências. Eu vejo você, é minha maneira de recebê-lo incondicionalmente e, ao fazê-lo, eu permito que você se veja e perceba como você é. Eu vejo você, significa deixar-se irradiar, sem filtros, sem más- caras e sem medos.

Quando digo “Eu Vejo Você”, estou dizendo que estou deixando de lado o meu julgamento, os meus preconceitos para enxergar você de verdade, inteiramente, como você realmente é e aceito você exatamente do jeito que é. Eu vejo você porque eu também consigo me ver. Eu o respeito, eu o valorizo, você é importante para mim. Toda minha atenção está com você. Eu

449 Edelamare Melo (Organizadora) vejo você e me permito descobrir suas necessidades, vislumbrar os seus e os meus medos, me aprofundar nos seus e nos meus erros e aceitá-los. Eu aceito você como você é, e você faz parte de mim. AME AO PRÓXIMO COMO A TI MESMO! O princípio judaico pri- mordial e se integra também em outras crenças. ESTES SENTIMENTOS, ATITUDES, CONHECIMENTOS DO BEM PODERÃO ALAVANCAR RESULTADOS POSITIVOS NO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DA PAZ, RESPEITO E CIDADANIA. O Ari, o Cabalista que descreveu toda a estrutura da realidade espiritual em deta- lhes, resumiu da seguinte forma: “O homem é um pequeno mundo; o mundo é um grande homem”. Em outras palavras, o mundo inteiro é o reflexo do mundo interior do homem, reflete as consequências das qualidades internas do homem. Se aprendermos a perceber a realidade corretamente, encontraremos a conexão entre o que acontece no mundo e o que acontece dentro de nós. Assim, mudando o homem, podemos mudar o mundo. E, agora, uma simples atividade: Desenhem uma flor. Qualquer tipo de flor. Peguem uma folha do bloco de anotações e desenhem uma flor ... tirem agora a folha desenhada do bloco e entreguem à pessoa que está sentada à sua frente. Fácil, né? Pois é. Apesar de estarmos todos chafurdados em ambientes que estimulam a violência, o apontar de dedos críticos e até de armas, cabe a cada um de nós buscar grupos, amigos e sociedades, preocupados com a conexão social, a igualdade e a reciprocidade onde se possa encontrar pessoas que nos pos- sibilitem desenvolver a amorosidade, difundir e nos permitir SER para que tenhamos força propagar a essência melhor da Humanidade. Muito já foi feito. Muitos grupos existem. Agora, mais do que nunca, o que precisamos é nos juntar, unir, CONECTAR! AME AO PRÓXIMO COMO A TI MESMO!

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As infiéis: Criminalização das mulheres na primeira metade do século XX no Brasil

​Thaís Dumêt Faria*

Sumário: 1 Introdução – 2 As vítimas da herança – 3 Mães e pais higi- ênicos: o controle da mulher, da sexualidade e da família - 3.1 As aberrações sexuais da mulher – 4 As Perigosas Damas do Brasil - 4.1 O perigo da beleza: as prostitutas do novo século! - 5 Conclusão – 6 Referências. Resumo: Este artigo pretende realizar um estudo sobre as relações entre os comportamentos sexuais das mulheres e as políticas criminais para contenção do delito empregadas no início do século XX no Brasil. Nesse período, os teóricos discutiam a criminologia positivista, que tentava determinar os “estigmas atávi- cos”, ou seja, as características dos “criminosos”. No estudo da mulher crimi- nosa, os chamados “desvios sexuais” eram os mais ressaltados como perigosos, não à toa as prostitutas eram consideradas o grupo mais perigoso das mulheres, seguidas pelas lésbicas ou bissexuais. Nesse sentido, pretendemos iniciar uma reflexão de como as mulheres foram vistas, no início do século XX, e como essa tentativa de classificação da mulher criminosa colaborou para a formação de es- tereótipos existentes nos dias atuais e que justificam um tratamento diferenciado social ou penal para determinados grupos de mulheres. Palavras-chave: criminologia - criminologia brasileira - antropologia criminal - controle social - genero. The unfaithful: Criminalization of women in the first half of the 20th century in Brazil. Contents: 1 Introduction – 2 Inheritance’s victims – 3 Hygienic’s parents: the control of the woman’s sexuality and the family – 3.1 Woman sexual aberrations – 4 Dangerous ladies of Brazil – 4.1 The danger of beauty: the prostitutes of the new century! – 5 Conclusion – 6 References. Abstract: This article intends to conduct a study about the relationship between the sexual behavior of women and the criminal policies to arrest women in the early twentieth century in Brazil. During this period, the positivist criminology theorists argued, trying to determine the “atavistic stigmata”, ie the characteristics of the “criminals”. In the study of female criminals, the so-called “sexual deviancy” was highlighted as the most dangerous, not for nothing the

453 Edelamare Melo (Organizadora) prostitutes were considered the most dangerous group of women, followed by lesbian or bisexual. We intend to launch a reflection of how the women were seen at the beginning of the twentieth century, and how this attempt at classification of criminal women contributed to the formation of stereotypes exist today and which justify a different treatment for certain social or criminal women’s groups. Keywords: criminology - Brazilian criminology - criminal anthropology - social control - gender. Las infieles: Criminalización de las mujeres en la primera mitad del siglo XX en Brasil. Contenido: 1 Introducción – 2 Las victimas de la herencia – 3 Madres y padres higiénicos: el control de la mujer, de la sexualidad y de la familia - 3.1 Las aberraciones sexuales de la mujer – 4 Las peligrosas damas de Brasil - 4.1 ¡El peligro de la belleza: las prostitutas del nuevo siglo! - 5 Conclusión – 6 Referencias. Resumen: Este artículo pretende realizar un estudio sobre las relaciones entre los comportamientos sexuales de las mujeres y las políticas criminales para la contención del delito utilizadas en el inicio del siglo XX en Brasil. En eso periodo, los teóricos discutían la criminología positivista, que intentaba determinar los “estigmas atávicos”, o sea, las características de los “criminosos”. En lo estudio de la mujer criminosa, los llamados “desvíos sexuales” eran los más resaltados como peligrosos, por eso las prostitutas eran consideradas el grupo más peligroso de mujeres, seguidas por las lesbianas o bisexuales. En eso sentido, pretendemos iniciar una reflexión de como las mujeres fueron vistas, en el inicio del siglo XX, y como esa tentativa de clasificación de la mujer criminosa colaboró para la formación de los estereotipos existentes en los días actuales y que justifican un tratamiento distinto social o penal para determinados grupos de mujeres. Palabras clave: criminología - criminología brasileña - antropología criminal - control social - género. 1. Introdução Esse artigo pretende realizar um estudo sobre as relações entre os com- portamentos sexuais das mulheres e as políticas criminais para contenção do delito empregadas no início do século XX no Brasil. Nesse período, os teóri- cos discutiam a criminologia positivista, que tentava determinar os “estigmas atávicos”, ou seja, as características dos “criminosos”, com o intuito de pre- venir o crime e fortalecer o desenvolvimento e reprodução dos seres huma- nos considerados “evoluídos”. No estudo da mulher criminosa, os chamados

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“desvios sexuais” eram os mais ressaltados como perigosos, não à toa as pros- titutas eram consideradas o grupo mais perigoso das mulheres, seguidas pelas lésbicas ou bissexuais. Nesse sentido, pretendemos iniciar uma reflexão de como as mulheres foram vistas, no início do século XX, e como a tentativa de classificação da mulher criminosa colaborou para a formação de estereótipos existentes nos dias atuais e que justificam um tratamento diferenciado social ou penal para determinados grupos de mulheres. 2. As vítimas da herança1 O início do século XX foi marcado por políticas eugênicas e higienis- tas na busca de uma sociedade evoluída. A medicalização das relações foi um processo com significativas decorrências para a história da construção social do Brasil e teve repercussão nas regras de procriação e, portanto, no papel da mulher, considerado central, porque responsável pela transmissão da con- formação hereditária das gerações futuras (STEPAN, 2005, p. 116). A virada do século requereu uma mudança de comportamento e valores em busca da proteção da “raça” e da construção de um país higienicamente adequado. Se o foco era a “limpeza” racial, as ações foram voltadas para a valori- zação do casamento higiênico e da garantia da reprodução entre pessoas incluí- das no grupo das “evoluídas”, buscando formas de diminuir e/ou eliminar a re- produção entre pessoas com “pechas” de inferioridade ou com doenças e outros males. Dessa forma, casamentos que, até o século XIX, eram frequentes, como entre pessoas com diferenças de idade muito grande ou parentes, passaram a ser evitados a todo o custo sob o argumento de garantir uma prole saudável. O médico Leonidio Ribeiro (1929, p. 23) defendeu o exame para verificação do amadurecimento dos noivos para a procriação. Segundo ele, “Para atender ao ponto de vista eugênico, melhor será que o casamento se faça tendo em vista não só a perfeita saúde como o completo desenvolvimento físico de ambos os cônjuges, especialmente no que toca ao aparelho reprodutor”. Como se vê, a discussão não girou somente em torno da idade, mas das relações de consan- güinidade, que eram consideradas passíveis de gerarem filhos com problemas hereditários. De acordo com COSTA (2004, p. 218):

Compatível com a ética religiosa e social da Colônia, esta con- cepção de casamento entrou em desuso no séc. XIX. O casal ajustado à defesa da propriedade revelou-se canhestro na pro- teção da infância. As preliminares do bom casamento mudaram de tom. As razões higiênicas desarticularam as razões familiares

1 Denominação utilizada na revista Gazeta Médica da Bahia. 455 Edelamare Melo (Organizadora)

e impuseram novas regras ao contrato conjugal. O compromis- so essencial do casal era com os filhos. Não se tratava mais de amar o pai sobre todas as coisas, e sim a raça e o Estado como a si mesmo.

As regras da ciência foram responsáveis por uma mudança de compor- tamento social fundamental para a compreensão da nova configuração familiar que agora defendia a “qualidade” da prole e, por conseguinte, o papel da mulher na geração “higienica”. “Os eugenistas pensavam a reprodução não como uma atividade individual, consequencia da sexualidade humana, mas como responsa- bilidade coletiva que levava à produção de boa ou má hereditariedade” (STEPAN, 2005, p. 115). Foi discutido pelos médicos e juristas, de maneira intensa, a neces- sidade de um exame pré-nupcial para detectar, não apenas doenças físicas, mas outros sinais de degeneração que pudessem ser transmitidos hereditariamente. Muito médicos defendiam arduamente a instituição do exame como possibilidade importante de ajudar a uma geração higiênica. Porto-Carrero (2929, p. 16) afirmava que “sob o ponto de vista eugênico, seria ideal que só pudessem casar-se indivíduos completamente hygidos e em condições de procriar filhos physica e psychicamente perfeitos” e continuava “o interesse da especie esta acima do interesse da sociedade contemporânea e muito acima do interesse do individuo, que nada mais é do que a célula periodicamente re- novável do grande organismo da especie”. A utilização dos testes pré nupciais acabou se mostrando ineficaz na prática, porque:

a classe média encontrou meios convenientes de comprar tais certi- ficados, enquanto os pobres, com quem os eugenistas mais se preo- cupavam, apenas ficavam ainda mais desencorajados a regularizar suas uniões. Assim, corria-se o risco de que os testes pré-nupciais encorajassem a imoralidade, em vez de práticas eugenicas (STE- PAN, 2005, p. 133).

A eugenia via a fertilidade feminina como um recurso crucial da na- ção, reforçando o confinamento das mulheres a papéis reprodutivos (STE- PAN, 2005, p. 131). Nesse caminho, o padrão de homem e mulher passou a ser ligado aos papeis de pai e mãe, os únicos que faziam sentido à existência humana naquele período (virada do século XIX-XX). Iniciou-se, então, um processo de valorização do pai e da mãe e de desvalorização e até criminali- zação dos homens e mulheres que não cumpriam esses papéis. No caso dos homens, os libertinos, celibatários e homossexuais foram estigmatizados por serem antissociais. Os libertinos eram recriminados por

456 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. deixarem-se levar pelos vícios e pela vida livre, o que por um lado ajudava na propagação das doenças venéreas que assolavam o período e por outro não reproduziam e, quando o faziam, não cumpriam com o seu papel de pai. Os celibatários também eram considerados “indesejáveis” porque muitas vezes se entregavam às prostitutas e, ou não casavam ou, quando decidiam, já esta- vam velhos demais para uma procriação considerada saudável. No entanto, eram os homossexuais os mais rechaçados e punidos so- cialmente. É interessante notar que quase sempre os argumentos para essa “condenação pública” entravam no campo da moral subjetiva. Enquanto no caso dos libertinos e celibatários os motivos estavam claros, no caso dos ho- mossexuais as explicações para essa condenação maior só se explicava com argumentos vagos e que inferiam, sobretudo na educação das famílias, a “cul- pa” pela existência do homossexualismo crescente. Ou seja, mais um argu- mento para o fortalecimento da família e a atenção na educação dos filhos. Segundo Costa (2004, p. 248):

É notável como, na abordagem do homossexualismo, os mé- dicos limitavam-se a dizer que sentiam repugnância pelos ba- gaxas ou a compará-los à putrefação que por vezes é preciso manear para fertilizar a terra onde vai cair a boa semente. Des- crevia-se o tipo físico do homossexual; sua classe social; seus costumes mundanos; sua situação econômica; seus vícios e prá- ticas sexuais sórdidas, etc. Mas todas as hipóteses etiológicas e terapêuticas sobre este tema médico resumiam-se, grosso modo, à crítica aos hábitos de educação da infância e à forma como se exercia a prostituição no Brasil.

Assim, para além do fato de não procriarem, como os libertinos e ce- libatários, os homossexuais eram considerados “frutos repugnantes” de uma família anti-higiênica. No caso as mulheres, o papel de mãe passou a ser cada vez mais des- tacado, como forma de garantir a mulher na sua função de “cuidadora” e responsável por zelar pelo futuro da sua família. Dessa forma, as que não cumpriam esse papel eram “rechaçadas” e, algumas vezes, criminalizadas. E as que não possuíam um perfil médico adequado, ou seja, “higiênico”, incen- tivadas, em muitas situações, a não procriar. Um bom exemplo é o discurso do médico Perrussi (1950, p. 91):

Pois bem: comparadas com a mulher ideal, à qual daremos o valor 100, por isso que possui o máximo de todas as qualidades, veremos que nem todas as mulheres se aproximam igualmente

457 Edelamare Melo (Organizadora)

desta cifra que representa a cúspide. Há muitas mulheres que valem 90 (infelizmente poucas), muitas outras valem 70 ou 80 e outras ainda apenas atingem 60 ou 50% daquele valor máxi- mo, e, finalmente, constituem legião aquelas a que só se podem assinar valores de 20 a 30...Compreenderão agora nossas leito- ras por que muitas mulheres vivem aparentemente felizes e sem anormalidades apesar de não terem filhos. Explica-se: por pos- suírem valores biológicos bem distantes da mulher ideal, pouco importa à Natureza que não cumpram estritamente suas leis.

A reprodução era tarefa das mulheres higienicamente adequadas. As ações do movimento eugênico no Brasil, nesse período, não foram no sentido de esterilizar mulheres (apesar de terem existido ações nesse sentido), mas de cons- cientizar a população para a reprodução de biotipos ideais. A atuação da igreja católica foi uma das forças principais para que não houvesse, no Brasil, uma po- lítica eugênica “dura” e negativa, no sentido de implementação de mecanismos artificiais para a não reprodução de determinados grupos. “Essas fantasias de transmutação humana nos lembram que a eugenia era, acima de tudo, um movi- mento estético-biológico preocupado com beleza e feiúra, pureza e contamina- ção, conforme estas se representavam na raça” (STEPAN, 2005, p. 149). Às mulheres era dada então, a responsabilidade na procriação ade- quada e higiênica. No entanto, nem todas possuíam condições ou vontade de terem como função cuidar do marido e dos filhos. A essas mulheres recaía a “culpa” pela não evolução da raça no país. Em finais do século XIX, as mulheres das classes mais abastadas ti- nham acesso à cultura e costumes europeus e a um ideal de mulher orientado para a reprodução e para a família. Às mulheres pobres lhes restavam poucas opções de sobrevivência: serviços domésticos, pequenos comércios – quitan- deiras, etc -, artesanato, costureiras, lavadeiras, cartomantes, feiticeiras, co- ristas, dançarinas, cantoras, atrizes e prostitutas, quase todas essas ocupações eram subjulgadas pela sociedade (ENGEL, 2004, p. 24 e 25). Muitas mulheres ingressaram como operárias em fábricas de diversas naturezas, representando um total de 19,18% do operariado carioca no ano de 1906 (15.913 mulheres). Ou seja, as mulheres, sobretudo as das camadas mais pobres, estavam “sain- do” de casa, buscando trabalho, questionando a realidade, organizando-se em movimentos e começando a “incomodar” os homens nos espaços públicos. Não se pode deixar de mencionar um movimento que foi muito importante para a inserção das lutas das mulheres no cenário nacional que foi o sufra- gista. Em 1910, a sufragista Deolinda Daltro, fundou o Partido Republicano Feminino, com o objetivo de ressuscitar no Congresso Nacional o debate so-

458 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. bre o voto da mulher e, em 1917, a mulher brasileira passou a ser aceita no Serviço Público do Brasil, o que pode ter marcado a aceitação da mulher no mercado de trabalho, ainda que de forma insipiente. Era, definitivamente a hora de buscar formas de conter essa mudança no cenário feminino. Nesse contexto, de esperanças e contradições, o Brasil segue em busca do seu projeto de evolução social e, para isso, a ciência torna-se uma grande aliada, ao fortalecer a ideia de inferioridade racial, do movimento higienista e eugênico e, é claro, da inferioridade da mulher perante o homem e do seu papel “natural” e social ideal. A busca da mulher por um espaço público e por sua autonomia é freiada a todo custo por argumentos científicos fortes e legitimados. Mas será que a mulher foi realmente “freiada”? Na gama de justificativas para classificar os seres humanos, as mulheres faziam parte do grupo “cientificamente” inferior. Muitos estudos foram feitos para comprovar as diferenças evolutivas entre homens e mulheres. Um dos estudos que chama atenção é a obra de Livio de Castro, A Mulher e a Socioge- nia, publicada em 1887 no Brasil que, através de estudos muito similares aos da Escola Positivista, atesta a inferioridade da mulher. Defendeu, inclusive, que as mulheres não poderiam ser professoras, porquanto tinham o mesmo desenvolvimento cerebral que uma criança. Nos seus estudos sobre os crânios e o funcionamento do organismo de homens e mulheres concluiu que:

Histórica ou prehistoricamente, nos ultimos tempos da vida intra -ulterina, dos primeiros aos últimos tempos da vida extra-ulterina, a mulher é menos cérebro do que o homem, ha no homem mais men- talidade do que na mulher. Mas, ao lado dessa afirmação scientifica ha uma afirmação popular que, por se prestar a equívocos, merece um exame. Segundo a crença geral a mulher é mais coração...A mu- lher não tem o coração mais terno, não é mais sensível. A mulher tem menos desenvolvido o poder de dominar-se, mas não tem mais desenvolvido o poder de sentir (CASTRO, 1887, p. 15 e 21).

Discutiu também o papel de objeto que as mulheres teriam perante o homem, segundo CASTRO (1887, p. 56), “A mulher é apenas um utensílio, e quando seu possuidor é bastante rico para não resentir-se da perda de tal proprie- dade, ella vale quasi nada, não merece atenção”. Estudos frenológicos2 também

2 Fundada no século XVIII pelo médico vienense Franz Joseph Gall (1758-1828). “A segunda metade do século XIX marcou o apogeu da craniologia e da frenologia, no Brasil, como práticas científicas que, entre outros pontos, pre- tendiam explicar diferenças étnicas e de gênero em termos de grau de inteligência; além de aptidão para atividades específicas, saúde física e mental e até mesmo a personalidade dos indivíduos”. “A frenologia pautava-se no estudo detalhado das características cranianas e das circunvoluções cerebrais dos indivíduos. Essa prática notabilizou-se pela análise de cérebros de indivíduos considerados ‘geniais’, possuidores de ‘dons naturais’, e de pessoas com 459 Edelamare Melo (Organizadora) foram feitos no cérebro da mulher, para provar que teria uma massa menor que a do homem e, por isso, seriam menos inteligentes. Broca, craniologista e médico, estudou cérebros na segunda metade do século XIX e, numa análise comparativa, verificou que o cérebro das mulheres teria em média 181 gramas a menos que o masculino (14%). No entanto, suas conclusões foram questionadas, mostrando que Broca não havia levado em conta elementos fundamentais para essa medição como a estatura, constituição física e idade de homens e mulheres pesquisados. Ou seja, a teoria da capacidade craniana foi contestada, através também de outros argumentos científicos, mas nem por isso deixou de ser utilizada por uma gama de teóricos como prova da inferioridade feminina (JAY GOULD, 2003). As mulheres, consideradas inferiores e menos capazes, não eram considera- das grandes ameaças sociais, ou pelo menos eram vistas como mais facilmente conti- das e “domadas” que os homens. No entanto, crimes e criminosas surgiram ao longo da história que fomentaram o debate com relação à existência de criminosas natas, às causas da criminalidade feminina, aos crimes típicos de mulheres e, sobretudo aos es- tigmas atávicos que, reunidos, identificariam a mulher delinquente. Da mesma forma que com os homens, buscou-se definir grupo e categorias de mulheres que oferece- riam perigo social e, portanto deveriam ser contidas. Essas características são ainda hoje responsáveis por uma herança preconceituosa não só contra as mulheres, mas contra determinados comportamentos ligados, sobretudo à sexualidade feminina. 3. Mães e pais higiênicos: o controle da mulher, da sexualidade e da família. Num período de busca pelo avanço do país, os argumentos higienistas e eugenistas de “limpeza racial” foram condutores de reformas sociais profun- das e importantes para se entender o papel que a mulher passou a representar do início do século XX no país. Algumas autoras chamam esse período de “processo de construção da domesticidade feminina” (RAGO, 1985), que teve reflexos profundos nas políticas públicas, incluindo a trabalhista e a penal. No campo do trabalho, as mulheres iniciaram a saída do âmbito domés- tico no processo de industrialização, tornando mais relevante o seu trabalho na esfera pública em meados do século XIX. É importante lembrar que o trabalho feminino não se aprentava somente nas fábricas, mas em outros serviços, como domésticas, comércio ambulante, costura e, muitas vezes, a prostituição3. Sobre

comportamento tido como desviante (prostitutas, assassinos, homossexuais etc.) (SÁ, SANTOS, RODRIGUES- CARVALHO e SILVA, 2008, p. 119). 3 Mais sobre o tema PENA, Maria Valéria. Mulheres e trabalhadoras. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981; FRANCO, Maria Sylvia Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros, 1969. 460 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. esse processo de “saída” das mulheres, há uma discussão sobre o efeito das me- didas tomadas, com apoio da ciência e do poder público, para o retorno dessas mulheres ao lar, como o fortalecimento do papel da amamentação e da esposa, como veremos em seguida. Apesar de não ser o objeto direto desse estudo, parece importante demonstrar que, apesar das medidas, as mulheres permaneceram no mercado de trabalho, contrariando muitas discussões sobre um “retorno” femi- nino ao lar. ABRAMO (2007), em sua tese de doutorado, discute esse período e, demonstra, com base no Censo industrial, das primeiras décadas do século XX, e em outros dados relevantes, que, não só as mulheres não saíram do mercado de trabalho, como houve um leve aumento na sua participação. De fato, houve um movimento de expulsão das mulheres das fábricas, mas elas continuaram em um número considerável, além de ocuparem outros espaços de trabalho, que, fre- quentemente, não eram considerados no momento de um levantamento sensitário (RAGO, 2007). Ou seja, o retorno das mulheres ao lar e sua expulsão das indús- trias, pode ser mais um argumento simbólico importante para fortalecer a tese da mulher “mãe” e “esposa” do que uma realidade histórica. No campo da sexualidade, procurava-se fortalecer o papel de mãe das mulheres como o mais importante e essencial para o desenvolvimento das famílias. Era esse a função a ser preservada na mulher. Já não era mais inte- ressante apenas a procriação, mas a representação da mãe cuidadora, presente na vida da família e na educação dos filhos. “A maternidade é o imperativo fundamental da natureza”, dizia o médico Perrusi (1950, p. 88). A saída das mulheres de suas casas representava uma “ameaça” ao “bem estar social”. Porto-Carrero (1929, p. 17) afirma:

É facto evidente que a moral moderna, baseada sobre a organiza- ção tradicional da família, afrouxa pouco a pouco. Emancipação da mulher, cooperação desta no trabalho fora do lar, divorcio, vida cada vez mais externa, educação dos filhos e educandá- rios, desde as curtas edades do jardim de infância – tudo está a demonstrar que o lar perde pouco e pouco a sua razão de ser; que a família se torna conceito cada vez mais abstracto; que o casamento, cada vez mais fácil de contrahir e de desfazer tende a uma formula menos fechada, se não será o amor livre, será o amor mais livre do que hoje.

“As mulheres deixariam de ser mães dedicadas e esposas carinhosas, se trabalhassem fora do lar; além do que um bom número delas deixaria de se interessar pelo casamento e pela maternidade” (RAGO, 2007, p. 585). O dis- curso médico era de que a mulher “ideal” seria “cobrada” pela natureza para

461 Edelamare Melo (Organizadora) realizar a sua função de procriar, já para as mulheres que não tinham as carac- terísticas desejadas, esse “instinto” não era tão evidente. As mulheres eram, então, classificadas sob o argumento eugênico e sob a justificativa de preser- var a prole. A maternidade passou a ser função “sagrada” da mulher e, com a justificativa de proteger a prole, os médicos lançaram mão da necessidade de amamentação para ampliar a ligação entre a mulher e a família, ou seja, era só dela a responsabilidade por manter saudáveis os seus filhos. Argumentos foram utilizados, provando que o aleitamento “mercenário”4, muito comum no século XIX, era prejudicial às crianças e aumentava a mortalidade infantil, além de proliferar doenças. A vida e morte das crianças passavam para mão exclusiva da mulher e para a sua capacidade de amamentar. No dizer de Rago (1997, p. 78), “O discurso masculino e moralizador dos médicos e sanitaris- tas procura persuadir cientificamente a mulher, tanto da classe alta como das camadas baixas, de sua tarefa natural de criação e de educação dos filhos”. A figura da mãe, valorizada pela medicalização, passou a representar o ideal de mulher, e, junto à necessidade da amamentação veio a do controle da vida social e da sexualidade da mulher. Para ser uma boa mãe era preciso amamentar o maior tempo possível, permanecer perto e acompanhar a educação dos filhos e, claro, ter a sua sexualidade controlada para se aproximar à figura de “santa”, tão desejada e buscada para as mulheres. De acordo com Costa (2004, p. 263):

Sem poderem entregar os filhos às escravas, como na Colônia, as mulheres viram-se contraditoriamente estimuladas e impedidas de usufruírem da sexualidade. Os higienistas ensinavam-lhes que ti- nham o direito de gozar, mas não lhe deixavam tempo para o gozo. Preocupados em salvar as crianças, a família e o Estado colocavam- nas numa posição sexualmente paradoxal. Procuraram, então, abrir válvulas de escape à insatisfação feminina, sem contudo abortarem seus projetos familiares e populacionistas. Serviram-se novamente da amamentação. Porém, desta vez, mostrando como a mulher po- dia gozar sexualmente amamentando.

Pode-se perceber como esse processo de controle do corpo e do prazer da mulher, ligando-o ao exercício do aleitamento, tentava deslocar o prazer da mulher para o prazer da mãe. O controle sobre o prazer da mulher era também discutido pelos mé- dicos que identificavam os principais transtornos femininos, dentre os quais estavam a masturbação e a homossexualidade ou como era chamada a inver-

4 Aleitamento, comum no final do século XIX, feito, geralmente por escravas ou serviçais da elite. Quase sempre, as amas de leite eram mulheres negras. 462 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. são sexual feminina. Vale ressaltar que esse processo de domesticação da mu- lher não se deu sem questionamentos contrários. As feministas, dentre elas as anarquistas, apontavam a necessidade do trabalho para a formação da mulher. Segundo Rago (2007, p. 590):

Cautelosas, as feministas, que iniciaram a divulgação de seus ide- ais na revista A Mensageira, publicada em São Paulo entre 1897 e 1900, ou posteriormente, na Revista Feminina, entre 1914 e 1936, defendiam um discurso contrário, apontando para os benefícios do trabalho feminino fora do lar: uma mulher profissionalmente ativa e politicamente participante, comprometida com os problemas da pátria, que debatia questões nacionais, certamente teria melhores condições de desenvolver seu lado materno.

No entanto, apesar de questionamentos sobre a participação ou não da mulher no mercado de trabalho, a figura da mãe continuava fortalecida e con- siderada como prioritária. Ações eram tomadas para fortalecer a maternidade higiênica e, portanto, combater às “degeneradas”. 3.1. As aberrações sexuais da mulher A sexualidade da mulher passou a ser estudada e cuidada para que o comportamento ideal e higiênico fosse mantido. Para isso, dever-se-ia banir as práticas sexuais “degeneradoras” para as mulheres e, mais uma vez, a medicina contribuiu para “comprovar” os malefícios e os estigmas atávicos ligados aos comportamentos sexuais indesejáveis. A prática da masturbação era impedida de diversas formas, sobretudo entre as jovens. As famílias aumentavam a vigi- lância e as mantinham ocupadas, a fim de que não houvesse tempo ou oportu- nidade para essa prática. Segundo o médico Perrusi (1950, p. 245):

A masturbação feminina é a principal causadora de todas as anormalidades que se observam no ato sexual das esposas, e que são a frieza, a lentidão, a falta de libido (total ou parcial), in- cômodos e incompatibilidades diversos, etc. E as repercussões psicológicas individuais e matrimoniais que têm esses defeitos costumam ser reconhecidamente graves.

No entanto, não há dúvidas que a homossexualidade era considerada a maior aberração sexual feminina, ligada, inclusive à periculosidade no âmbi- to criminal, como um dos estigmas atávicos da mulher mais decisivos para o comportamento criminoso, como veremos. Dizia-se que a prática da homos- sexualidade feminina era mais presente que a da masculina, no entanto, que a maior parte dos casos, era fruto da repressão sexual e ausência de contato 463 Edelamare Melo (Organizadora) com os homens. Essas situações eram facilmente “curáveis” pelo casamento. Restava, então, um menor número de mulheres, mas que eram preocupantes, sobretudo as que possuíam características masculinas, chamadas de ativas. Ainda de acordo com o médico Perrusi (1950, p. 246): De ambas as formas de aberração sexual é mais grave a primeira ou ho- mossexualismo feminino ativo. Essas mulheres parecem verdadeiros estados de degeneração do instinto, enquanto as outras, as passivas, são quase sempre simplesmente viciosas ou libidinosas mais suscetíveis de voltar à normalida- de, tendo sido levadas ao vício vítimas quase sempre do temperamento sexual exagerado que apresentam. A proximidade entre o comportamento homossexual e o criminoso era estudado por muitos teóricos no início do século XX no Brasil. Em realidade, o comportamento sexual fora dos padrões era tido como fruto de neuroses e, como o indivíduo neurótico era propenso ao crime, homossexuais ou “porta- doras” de outras “aberrações” sexuais também o eram. “A estrutura neurótica desses indivíduos os impele a rebelar-se contra a moral constituída e rejeitar os princípios legais. O lesbismo constitui manifestação ou sintoma de neurose e, portanto, sua verdadeira causa é psicogenética. Inúmeros crimes originam- se do homossexualismo feminino, não só direta como indiretamente” (DOU- RADO, 1967, p. 58 e 80). Estácio de Lima, na sua obra Inversão Sexual Feminina (1934), clas- sifica e define as formas de homossexualismo de mulheres e faz um estudo de caso sobre Vivi (figura ao lado), uma lésbica, com perfil masculino, amante de uma prostituta. O médico acompanhou Vivi por muitos anos, tentando compreender seu passado e as possíveis razões para a sua inversão. Nesse processo, Estácio de Lima fez diversos exames corporais, buscando caracte- rísticas físicas (atávicas) para a lesbiandade, que chamava “bárbara anoma- lia” (p. 42). Razões eram buscadas para explicar tal comportamento e, sempre que possível era ressaltado o sofrimento vivido por essas mulheres, talvez no intuito de desencorajar outros comportamentos similares. Num depoimento colhido por Dourado (1967, p. 87), a mulher afirma:

Atuo sempre de forma ativa em relação às minhas conquistas. Na fantasia, considero-me homem que está apaixonado por uma mulher, loura, de preferência, nua e sensual. Perdida neste mun- do imaginário de mulheres, masturbo-me, quando só, masturbo- me como se homem fosse. Contudo, sei que sou mulher, mas de vida sexual doentia. Isso me inspira horror e medo. Odeio-me. Escondo sempre o meu grande segredo, que se converte em cru- ciante autotortura. 464 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Dessa forma, comportamento considerados “desajustados” eram ligados à criminalidade e tinham por base os argumentos da ciência para comprovar os malefícios à sociedade. Os conselhos e teorias dos médicos sobre higienismo e eugenia não eram os únicos utilizados para “disciplinar” as mulheres. A crimi- nologia, então reconhecida como ciência, em finais do século XIX, contribuiu sobremaneira para a determinação dos padrões de comportamento aceitáveis e forneceu justificativas para a segregação de boa parte da população “não higiê- nica”, através de argumentos que eram fornecidos à política criminal, e que, no Brasil, foram muito bem aceitos no início do século XX. 4. As Perigosas Damas do Brasil De uma forma diferente do homem, a mulher também foi alvo dos estu- dos da teoria positivista. Lombroso em seu livro The Female Offender (1980) classificou a mulher criminosa em: criminosas natas, criminosas ocasionais, criminosas de paixão, suicidas, prostitutas nadas prostitutas ocasionais, ofen- soras histéricas, mulheres criminosas lunáticas, epilépticas e moralmente in- sanas. Pesquisas foram feitas com mulheres presas na Itália e foram identifi- cados sinais específicos que variavam a depender do crime cometido. Da mesma forma que com os homens, Lombroso mediu os crânios, estudou características faciais, os cérebros de mulheres presas (parte na prisão Piedmontese em Turim -52- e outra parte -234- na Casa Feminina de Correição, que recebia mu- lheres de várias províncias, sobretudo do sul da Itália) e também de 150 prostitutas, tipo considerado especialmente perigoso, como veremos adiante (LOMBROSO; FERRERO, 1980, p. 103). Após os exames do crânio, Lombroso concluiu que as criminosas natas se aproximam mais fisicamente do homem do que da mulher nor- mal, com exceção das prostitutas, que, apesar de se aproximarem mais da mulher normal, possuem mais traços característicos de atavismo que as criminosas natas. No entanto, conclui também que a mulher criminosa nata é muito mais rara que o homem criminoso nato. “All the same, it is incontestable that female offenders seem almost normal when compared to the male criminal, with his wealth of ano- malous features” (LOMBROSO; FERRERO, 1980, p. 104). Porém, apesar de ser mais rara que o homem, a criminosa nata supera-o em matéria de crueldade ao cometer seus crimes (LOMBROSO; FERRERO, 1980, p. 182). No entanto, apesar de ter estudado diversas características, na conclusão dos seus estudos, Lombroso tem dificuldades em determinar àquelas inerentes à criminosa. Um dos poucos argumentos unânimes, entre Lombroso e outros estudiosos é o de que a diferença entre a mulher criminosa e a mulher comum é muito menor do que entre o homem criminoso e o comum (LOMBROSO;

465 Edelamare Melo (Organizadora)

FERRERO, 1980, p. 74). Mas, seguindo os resultados das pesquisas, Lombroso indica algumas direções: a estatura e comprimento dos membros são menores nas criminosas, o peso das prostitutas e das criminosas é maior proporcional- mente à altura quando comparadas às mulheres normais, normalmente possuem cabelos e olhos negros, assimetria craniana, estrabismo, mandíbula acentuada, fisionomia masculina e viril, anomalia nos dentes, clitóris, pequenos e grandes lábios vaginais grandes, além da sexualidade exacerbada e dotada de perversão, caracterizadas normalmente pela prática da masturbação e do lesbianismo. De acordo com Lombroso, se a mulher tivesse 04 ou mais dessas caracte- rísticas seria o que ele chamava de tipo completo, o tipo intermediário possuiria ao menos 03 dessas características e uma mulher comum teria no máximo duas dessas anomalias (LOMBROSO; FERRERO, 1980, p. 103). Ressalte-se, no entanto, que a depender do estigma, bastava um para que a mulher fosse consi- derada depravada e perigosa, como era o caso do lesbianismo. O interessante é notar que, como alguns desses sinais seriam deter- minantes da beleza ou feiúra (conceitos sociais), há uma diferença entre as prostitutas e as criminosas. As prostitutas, apesar de possuírem mais caracte- rísticas de degenerescência, possuem aquelas que não implicam na perda da beleza, ao contrário da mulher criminosa nata (LOMBROSO; FERRERO, 1980). Ou seja, apesar de Lombroso pretender objetivar os sinais de degene- rescência da mulher, a criminalidade feminina continuou a ser mais difícil de ser identificada que no caso do homem. Uma forma de justificar esse fato foi afirmar que apenas o tipo nato da mulher teria características a serem iden- tificadas, as outras criminosas eram iguais à mulher normal. Além disso, o número de mulheres criminosas natas era bem menor que o dos homens, em virtude da menor “inclinação congênita para o crime” da mulher. Outro ponto que merece ser ressaltado é de que muitos crimes pratica- dos por mulheres requerem uma beleza e sedução para serem cometidos, já que se relacionam com homens, como era o caso do adultério, vigarismo, ca- lúnia, etc. Nesse ponto, é possível perceber uma das maiores diferenças entre homens e mulheres criminosos: a beleza. Outro tipo de criminosa é o opos- to da considerada mulher atraente, seria aquela com características físicas e comportamentais masculinas. Ela seria perigosa então pela sua semelhança com o homem ou por ter rompido com o padrão de comportamento tradicio- nal feminino. Vê-se que o chamado “desvio sexual”, seja ele quando a mu- lher apresentava comportamento masculino ou quando tinha uma erotização exarcebada para os padrões sociais, representava um sinal de periculosidade. Normalmente os homens perigosos tinham uma aparência não atra- ente, não à toa Lavater (1741-1801), nos seus estudos sobre a fisionomia,

466 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. tentava identificar traços físicos que pudessem distinguir o homem normal do criminoso, antecipando o que Lombroso (1835-1909) definiu como Crimino- so Nato5. Com base em características somáticas, identificou o que chamou de “homem de maldade natural”. Através das suas pesquisas, associava a beleza à bondade e a feiúra à maldade. Com esse pressuposto defendeu o julgamen- to pela aparência (SHECAIRA, 2004, p.78) adotado por alguns juízes. Um deles, conhecido como Marquês de Moscardi, no século XVIII, é indicado como um dos precursores dessa forma de julgar, tendo concluído numa sen- tença: “ouvidas as testemunhas de acusação e de defesa e visto o rosto e a ca- beça do acusado, condeno-o” (PABLOS DE MOLINA, 1992, p.105). Foi ele quem criou o Édito de Valério - quando se tem dúvida entre dois presumidos culpados, condena-se o mais feio (SHECAIRA, 2004, p. 79). Nas mulheres, a beleza também teve um papel relevante na construção dos estigmas criminosos. No caso dos crimes ligados à sexualidade, como a prostituição, a beleza era considerada definidora para medir a periculosidade da mulher, em outros casos a aparência física era utilizada para minimizar situações em que a mulher era autora de crimes. Como as questões da sexua- lidade eram ligadas diretamente à periculosidade, as prostitutas eram um dos principais alvos para a políticas criminais e higienistas, consideradas, muitas vezes, uma categoria a parte das mulheres “normais”. No estudo da mulher criminosa, a beleza e a sedução eram constan- temente evocadas para justificar a periculosidade e a capacidade de cometer determinados delitos. Ou seja, no caso das mulheres, a depender do crime, associava-se a beleza ao perigo, uma vez que as mulheres mais atraentes te- riam uma capacidade muito maior de ludibriar e enganar pessoas. As prosti- tutas eram consideradas parte de um grupo com o maior índice de criminosas, muito estudadas pelos teóricos da época e muito temidas por grande parte da sociedade, sobretudo pelo seu poder de “enganação” e sedução. Portanto, dentre as mulheres “perigosas”, sem dúvida as prostitutas fo- ram os maiores alvos das políticas criminais e das ações de segregação, sejam oficiais, através de operações policiais e higiênicas, sejam sociais e morais. 4.1. O perigo da beleza: as prostitutas do novo século! Na discussão sobre o perigo da mulher atraente e bela a figura da prosti- tuta era sempre ressaltada e estudada pelos teóricos criminais. O interessante é notar que as prostitutas eram normalmente estudadas como uma categoria a parte das mulheres. Lombroso, por exemplo, pesquisava a presença dos estigmas atávicos em grupos de mulheres e em grupos e prostitutas e sempre

5 Expressão sugerida por Ferri. 467 Edelamare Melo (Organizadora) encontrava os maiores índices no segundo. Não levava em consideração, no entanto, assim como não o fez no estudo do homem criminoso, a carga de estigmas preconceituosos, a exclusão social que eram vítimas as prostitutas e sobretudo a possibilidade da existência de outros comportamentos, inclusive sexuais que não seguissem os padrões estabelecidos para as mulheres. Segun- do Araújo (2007, p. 45):

Das leis do Estado e da Igreja, com freqüência bastante duras, à vigilância inquieta de pais, irmãos, tios, tutores, e à coerção in- formal, mas forte, de velhos costumes misóginos, tudo confluía para o mesmo objetivo: abafar a sexualidade feminina que, ao rebentar as amarras, ameaçava o equilíbrio doméstico, a segu- rança do grupo social e a própria ordem das instituições civis e eclesiásticas.

A mulher tinha um conjunto de regras a serem seguidas para obede- cer aos padrões principalmente de esposa e mãe. Nesse sentido, a prostituta era vista como uma grande ameaça social porquanto disseminava um modelo de liberdade e sexualidade que deveriam ser eliminados para evitar a repeti- ção por outras mulheres. De acordo com Costa (2004, p. 265):

A corrupção da moral feminina pela mulher perdida fazia-se, em primeiro lugar, pela exibição de seu comportamento sexual- mente descontrolado. Mantendo relações sexuais por dinheiro e entregando-se à masturbação, à sodomia, e práticas antinaturais do gênero, a perdida era um manual vivo da forma anti-higiênica de ser mulher.

A questão da criminalidade feminina era tão ligada à prostituição que, sobretudo durante a virada do século XIX para o XX o controle penal era voltado com muito mais ênfase para esse grupo de mulheres, restando para as demais o controle social e familiar. No Brasil, a partir da década de 30, esse controle pode ser confirmado pela nova legislação penal e pelas características das internas que freqüen- taram o primeiro cárcere de mulheres. De acordo com o Código Penal de 40, estabeleceu-se o delito de Vadiagem, art. 59 “Entregar-se alguém habi- tualmente à ociosidade sendo válido para o trabalho sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover à própria subsistência mediante ocupação ilícita”. A pena prevista era de detenção de 15 dias a 3 meses. Em realidade, apesar da prostituição não ser considerada crime, não era uma atividade lícita, razão pela qual era dada a legitimidade ao Estado de prender as mulheres que estivesses exercendo a prostituição em razão do

468 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. delito de vadiagem. Nas décadas de 30 e 40 foi intenso, no Brasil, o combate à prostituição e a defesa dos ideais femininos. Outro crime que vale a pena ser citado é o de Contágio Venéreo que se consuma “com o simples fato da expo- sição a perigo de contágio”. Pena de detenção de 3 meses a um ano ou multa. Não restam dúvidas da relação desse crime com a atividade de prostituição, por essa razão, esses dois crimes foram os grandes responsáveis pela entrada de mulheres, a maioria prostitutas, na penitenciária recém-inaugurada. Segundo Lemos de Brito, o ideólogo por excelência da prisão femini- na (LIMA, 1983, p. 31), no relatório do Conselho Penitenciário e da Inspeto- ria Geral Penitenciária (1942):

A campanha contra os antros de prostituição levado a cabo pelo Chefe de Polícia com apreciável energia (...) acabando por criar a necessidade de se por à disposição dessa alta autoridade um local em que recolhessem as recalcitrantes ou aquelas que não tivessem para onde ir, voltando o coronel Etchegoyen suas vistas para a Penitenciária de Mulheres recém inaugurada em Bangu.

5. Conclusão Este artigo pretendeu demonstrar como as teorias da Escola Positivista e as ligadas aos movimentos eugêncos e higienistas contribuiram para a formação de estereótipos nas mulheres que definiram os comportamentos considerados “ideais” e “aceitos”. Não restam dúvidas que esses argumentos, vindo da “ciência” toma- ram força suficiente para justificar a segregação de mulheres que não obedeciam aos padrões de esposa, mãe, heterossexual, comportada, recatada e outros sinais favoráveis à “boa” mulher. Nesse sentido, mecanismos sociais, políticos e criminais são criados no sentido de proteger o desenvolvimento saudável e a evolução do ser humano, através da procriação dos grupos considerados superiores. O processo de tentativa de evolução social criou um sistema de opressão da mulher, sobretudo ligado a sua sexualidade, para mantê-la como mãe e esposa. É fundamental conhecer o processo de construção das relações sociais para que se possa compreender a origem da estigmatização e, através dela, do preconceito, segregação e violência a que são submetidas muitas mulheres nos dias atuais. Te- mas discutidos pela ciência no início do século XX, como raça, orientação sexual, comportamento feminino, são temas atuais que ainda requerem um grande esfor- ço social para serem desconstruídos como categorias que inferiorizam ou tornam mulheres mais perigosas. Nesse sentido, o objetivo do presente artigo é contribuir a uma análise do processo de estigmatização das mulheres para auxiliar na cons- trução de possíveis caminhos rumo a uma sociedade sem categorização de seres humanos como justificativa para sua segregação e violência.

469 Edelamare Melo (Organizadora)

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Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Relações e Conflitos Etno-raciais. Africanidade, Religiosidade. Direitos Fundamentais e Cultura. Igualdade Racial e Liberdade Religiosa. Ponto e Contraponto.

Willis Santiago Guerra Filho*

1. Relações e conflitos etno-raciais. Começando com a noção de “raça”, penso que ela incorre no que po- demos chamar o equívoco do “biologismo”, o que a tornaria uma noção em si mesma, racista, por derivar de uma concepção equivocada sobre o que sejamos, os humanos, enquanto inseridos numa pluralidade de raças, como os animais. É que entendo não sermos apenas animais – e ao dizer isso des- sa maneira percebo que já estaria nos pondo acima dos animais, não sendo o que gostaria exatamente de comunicar (meu saudoso amigo e mestre Ni- klas Luhmann tem uma conhecida formulação sobre a improbabilidade da comunicação, que eu já tendo a considerar impossível, mais que apenas im- provável), pois não somos tampouco “apenas apenas animais”, na medida em somos, de certa forma, também menos que animais, quando deixamos de sê-los, propriamente, “apenas”. Isso porque somos menos adaptados que os animais, menos inseridos em nosso ambiente, mais frágeis, por neo-natos, nascidos prematuramente e prematuros permanecemos ao longo de toda a vida, na imensa maioria dos casos, especialmente na(s) chamada(s) socieda- de(s) moderna(s) – o plural vai entre aspas por entendermos, com o referido autor, da perspectiva por ele proposta, ser ela uma só e única sociedade, a sociedade mundial -,1 que como o qualificativo de “moderna” mesmo indica, nela vem enfatizado o que é novo, imaturo. Em suma, somos seres deslocados, pois ex-(s)istimos, sabendo da precarie- dade de nossa situação na vida, nascidos cedo e cedo também podendo perecer. So- mos seres incertos de si, por cientes de si, que nos sentimos, como nenhum outro, ameaçados e, já por isso, nos tornamos, também como nenhum outro, extremamente ameaçadores. Nossa sobrevivência, então, depende mais do que a de nenhum outro ser da proximidade e apoio de outros, até para nos tornarmos propriamente huma-

1 Cf. Luhmann, “Die Weltgesellschaft”, in: Archiv für Rechts- und Sozialphilosophie, n. 57, Stuttgart: Steiner, 1971. 473 Edelamare Melo (Organizadora) nos: o que há em nosso “equipamento” biológico é a potencialidade para assim nos tornarmos, humanizarmo-nos sendo humanizados. Daí a importância das etnias. E se são elas que nos protegem e nos fornecem o que fundamentalmente somos, a língua que falamos é em que e o que somos – “minha pátria é minha língua”, disse o poeta, e pátria aqui é, antes de tudo, mátria, matriz étnica. Os conflitos ditos raciais, então, terminam sendo, mais propriamente, conflitos étnicos, culturais, entre seres huma- nos que se sentem ameaçados pelos modos diversos como outros seres humanos se protegem, pelo simples fato de se protegerem de outros modos, de falarem de outro modo, de invocarem proteção de outro modo e abençoarem-se de outro modo. E isso se torna particularmente incômodo, ameaçador, para seres humanos que deixaram de confiar em bênçãos e invocações, como são ou somos esses que, ao se considerarem modernos, com uma concepção de história linear, voltada apenas para o futuro, des- prezando o passado, a ancestralidade e os ancestrais, acham que só devem (e podem) confiar em si, por já serem o máximo ao ser humano, embora também percebendo que não é, pois ser é ser para sempre e necessariamente, não apenas ex-(s)istir, con- tingentemente. Daí que se sentem mais ameaçados, e procurando justificar tal ame- aça, que resulta sendo eles mesmos, pelo seu modo de ser, portanto que está neles mesmos, e não podendo reconhecer ou aceitar isso, vão procurar atribuí-la a outros, aos diferentes de si, passando a se iludirem com aparências que não reconhecem como tais, a exemplo da cor da pele e outros sinais externos, superficiais, sobretudo quando sua exuberância evidencia sua pobreza ontológica, existencial. 2. Africanidade, religiosidade. Somos todos, então, uma só raça, e ela é originária da África. Então, original e originariamente somos todos africanos e entendo que, também, religiosos. Isto porque, para mim, religioso é todo esforço humano para dar sentido à sua existência, essa ex-(s)istência que nos caracteriza como seres incompletos, incertos e inseguros de si, por se saber inacabado, podendo súbita e inesperadamente se acabar, sem che- gar ao acabamento, completar-se, ser. E aqui há novamente uma tensão, um conflito em potencial, que facilmente se torna real, atual, efetivo, entre um modo antigo, arcaico, primevo, original, da origem, que é representado muito bem, provavelmente da melhor forma, pela africanidade, por um lado, e de outro por essa ideologia, essa religiosidade, que é inconsciente de si, chamada modernidade, esta que é uma época, um tempo, em que outras épocas e o próprio tempo vêm a ser negados, pois só re- conhece a validade do tempo futuro, para frente, e horizontalmente, negando assim o que está atrás, e anteriormente, como também o que esteja acima, ou abaixo, que não seja humano, pois humano seria o que se põe acima de tudo e de todos os entes, visíveis e invisíveis, sendo eles todos tidos como ultrapassados.

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E é este ser assim tão confiante de si e do que tem sido capaz de fazer que agora, com estes feitos, ameaça com a destruição total, seja de maneira lenta, seja de algum modo mais abrupto e repentino, a existência e a perma- nência de si mesmo, be como de todos os demais, pois se trata da destruição de todo o planeta... Forçoso é então reconhecer que entramos num desvio da história e estamos perdidos, perigosamente perdidos, enquanto civilização e etnia oci- dental, que na verdade é aquela mundial da modernidade, esteja onde estiver no planeta, na América do Norte, Europa ou Japão, como está na Av. Paulista e outras vias, de São Paulo e do Brasil. E quando estamos perdidos, como sabemos, o melhor que fazemos é tentar retornar para o ponto em que nos ex- traviamos, sendo que para mim este ponto está ali onde se deu o encontro da Civilização Greco-Romana - cuja religiosidade, politeísta, vale lembrar, era muito similar àquela africana, encontrando-se todas em torno Mediterrâneo – com o monoteísmo judaico-cristão, havendo de ambas as partes um impulso ao universalismo, sendo aquele da razão e do domínio político, de um lado, e do outro o universalismo cristã da crença em uma verdade pessoalmente revelada. É aqui que surge essa associação, de um lado, entre um modo impe- rial de reger e governar, jurídico e político, e de outro lado, a que se afirmará como uma religião verdadeira, por ser a religião da verdade, que tendo sido negada por três séculos como verdadeira religião pelo poder imperial que determinara a morte de seu Deus, quando finalmente foram acatados os argu- mentos jurídicos de seus defensores, ditos apologetas, para que fosse conside- rada religião lícita, em setenta anos passou, de proibida a obrigatória, ao ser abraçada pelo imperador, tornando, de apostólica, militante em favor de sua mensagem, também romana e católica (da palavra grega para “universal”).2

2 Aqui vale lembrar o quanto expõe Pierre Legendre, em O Amor do Censor. Ensaio sobre a ordem dogmática, trad. Alduízio Menezes e Potiguara Mendes da Silveira Jr., Rio de Janeiro: Aoutra (Colégio Freudiano)/Forense Uni- versitária, 1983, p. 56 ss., ao indicar o lugar fundador da elaboração do direito canônico por Graciano, em meados do século XII, em decorrência da chamada “Reforma Gregoriana”, iniciada na virada do século VI para o VII por Gregório I, ao apresentar as formulações iniciais que criariam a infalibilidade papal e a supremacia da Igreja Católica, e completada, por assim dizer, por Gregório VII, em meados do século XI (seu pontificado vai de 1073 a 1085), o qual estabeleceu o poder dos papas sobre o poder temporal, realizando assim o que de maneira muito fundamentada se considera a primeira grande revolução europeia, por conta do enfrentamento gerado contra o poder fragmentado, local, dos reis, exercido juridicamente através de práticas que remontavam ao passado pagão, bárbaro-germânico, como as ordálias (palavra derivada do germânico Gottesurtheile, ou “julgamento de Deus”). Em decorrência da reforma, todos os homens ficaram submissos ao papa, o qual tinha o poder sobre qualquer ser viven- te, representando a palavra de Deus, enquanto seu “vice-rei” (vicarius). Os papas passavam a ser inferiores apenas ao próprio Deus, uma vez vencida por Gregório VII a “querela das investiduras”, que opôs o Papa ao Imperador do Sacro-Império Romano-Germânico, pelo juramento de fidelidade do Imperador Henrique IV da Germânia em Canossa. A Igreja Católica ganhava então um poder ilimitado, centralizando-o e prefigurando assim o poder estatal moderno – cf. Harold J. Berman, Law and Revolution: The Formation of the Western Legal Tradition, Cambridge, Mass./London,: Harvard University Press, 1983. Entende-se assim melhor acerto do quanto expõe Pierre Legendre, 475 Edelamare Melo (Organizadora)

Ora, esta religião do Deus único – apesar de também trino ou trinitário – e da verdade única – ainda que obtida ao modo judicativo, judicial,3 por meios também trinos ou triádicos de teses, às quais se contrapõem antíteses para que se chegue a sínteses que serão novas teses e assim por diante – se apresen- tará e representará também como religião única, negando a religiosidade de todas as outras, assim como antes a sua fora negada – negação da negação, antítese, para nova síntese -, verdade a se impor a qualquer um que esteja no uso e gozo de suas faculdades racionais, sendo estes os que, inclusive, mere- cerão ser considerados, propriamente, humanos, o “animale rationale”. Ora, mas não podemos ser tidos como “apenas” animale, como vimos acima, nem tampouco deveríamos ser tidos como apenas rationale –4 nisso, as máquinas dotadas da chamada inteligência artificial estão se destacando cada vez mais, a ponto de superar seus criadores, já estando no limiar em que se criarão a si mesmas. Ocorre que animais e máquinas são desprovidas de religiosidade, estando aqui um traço que nos distingue, a um só tempo, de ambos, o que já seria suficiente para invalidar a definição latina, por redutora, proveniente de tradução igualmente redutora da passagem aristotélica que em grego cons- ta como zoon (politikon) logon (ekhón): o que vive socialmente possuído e possuindo a palavra (que lavra e o cultiva, cultuando para colher os frutos - legéin). Penso, então, que se quisermos manter a nossa humanidade temos de cuidar da religiosidade e em matéria de religiosidade temos de afastar essa obsessão com a verdade, sobretudo se concebida ao modo racional mecânico, maquínico, de maquinação, seca, quando somos humanos, palavra que evoca o húmus, o úmido, a umidade: somos seres úmidos, “umidescentes”, sensí- veis, afetáveis, afetivos – e, às vezes, lamentavelmente, também, afetados. Em texto intitulado “O Sagrado Selvagem”, publicado em obra homôni- ma,5 o cientista social francês que preconizava (e praticava) a poesia como mé-

quando referindo a obra de Graciano (adiante novamente abordada, nas notas 15 e 16), destaca que “na mais monu- mental, na mais complexa e na mais compreensiva divisão das ciências, o Direito canônico pode ocupar indiferen- temente uma das dezesseis partes onde se acham contidas todas as ciências, absolutamente todas (...) uma ciência tão natural quanto o inventário dos vegetais, (que) escamoteia aquilo de que precisamente os juristas dão conta: que existe um saber sagrado, privilegiado e separado dos outros, em relação como o Pra-cima onde reside a Potência; só nesse lugar aí é que se domina afinal e se justifica a Natureza. (...) Daí podem ser percebidos os limites mágicos, que delimitam o traçado obrigatório por onde transita o discurso” (grifos do A., ob. cit., p. 56). 3 Cf. Legendre, ob. loc. ult. cit.: “O fato é que a Escolástica não operava de um modo puramente dedutivo, porém mais sutilmente, seguindo a arte do juiz, os desvios do procedimento judiciário (...)”. 4 A propósito, cf. Martin Heidegger, Sobre o “humanismo”. Carta a Jean Beaufret, 2ª. ed. rev., trad. Rubens Eduardo Frias, São Paulo: Centauro - 2005, p. 21, disponível em https://professorsauloalmeida.files.wordpress.com/2015/08/ cartas-sobre-o-humanismo-heidegger.pdf). 5 Trad. Rita de Cássia Amaral, São Paulo: Cia. Das Letras, 2006. Também publicado em Cadernos de Campo, São Paulo: USP, disponível in: http://www.revistas.usp.br/cadernosdecampo/article/view/40311/43196. 476 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. todo,6 Roger Bastide, outro dentre diversos que estiveram no Brasil pesquisando e lecionando, principia fazendo alusão ao dito de Nietzsche, sobre a morte de Deus, como sendo já praticamente o mesmo daquele que à época (o texto é oriundo de uma palestra proferida em 1973) se associava a Michel Foucault, so- bre a morte do Homem, quando a voga estruturalista fazia eco a pronunciamen- tos como o de Heidegger, em sua célebre carta a Jean Beaufret, asseverando o despropósito e a impertinência do humanismo. Que o anúncio da morte de Deus (e da religião) correspondesse ao anúncio também da morte do Homem (e do humanismo), para Roger Bastide, seria “lógico, já que o homem só se constitui como homem através de sua relação com os Deuses”. E, de fato, é o que constatamos, se recorremos ao que nos ensina a an- tropologia, uma ciência, derivada da filosofia moderna – logo, pós-cristã, isto é, posterior e condicionada ao advento da subjetividade humana, referida ao Deus interiorizado e encarnado do cristianismo -, que tem como pressuposto fundamental a unidade do gênero humano, para sair em busca de regularida- des incidindo sempre que estejamos diante dele, ou seja, de formas de se ser humano, como nós, ainda que se pareçam tão diversas. Em todas as formas de organização social – e o humano só se manifesta e prospera em alguma delas – tem-se a presença do que para os seus compo- nentes seria sagrado, índice de uma presença não-humana, a ser reverenciada, como divindade. Na esteira de René Girard, autor de “A Violência e o Sagrado” - tal como Michel Serres em “O Incandescente” e, de uma outra perspectiva, Lévinas, em obra cujo título já indica a distinção proposta: “Do sagrado ao santo” -, é preciso distinguir, no que é tido como divino e sagrado, a sacrali- dade e a santidade. O sacro é, literalmente, o excluído, o separado, mantido de fora do que é comum, profano – isto é, restrito aos que têm acesso ao lugar em que, secretamente, se pratica ritos iniciáticos -, e uma tal segregação pressupõe o emprego de violência, física ou simbólica, para que se verifique, bem como se mantenha. É um índice da presença de uma insanidade, ameaçadora, posto que pelo que se considera sagrado se está disposto a matar e morrer. O santo, a santidade, como a própria etimologia sugere, ao contrário, é decorrente da sanidade, de uma compreensão sã e salutar, salvadora, capaz de desativar os dispositivos mortíferos que agem, sobre e através de nós, humanos. Do que se trata, então, é de buscar uma compreensão do ser que somos, enquanto humanos, em sua correlação com a religião, como também com o

6 “A propósito da poesia como método sociológico”, publicado originalmente em 08.02.1946, no Diário de São Paulo, depois em Cadernos, São Paulo: Centro de Estudos Rurais e Urbanos, n. 10, 1977, p. 75 – 82, disponível in: https://projetobrasilfranca.files.wordpress.com/2010/07/metodopoetico.pdf 477 Edelamare Melo (Organizadora) direito e com a política, entendidos como meios com que estabelecemos, com proibições e sanções – portanto, com ameaças de exercício da violência -, nosso relacionamento pacífico uns com os outros, tendo como garantia uma referência externa e superior, sobreposta aos que se conflitam, em si e entre si. Uma primeira indicação (a fim de evitar a armadilha que representam os conceitos, algo explicitado por Hans Blumenberg,7 mas como a própria palavra alemã para “conceito” deixa transparecer, “Begriff”, de “greiffen, agarrar, “indi- cação” há de ser entendida, em termos que se pretende mais precisos, no sentido em que Heidegger se referia a “formale Anzeige”, no início de sua longa carreira filosófica,8 tomando de empréstimo e ampliando noção devida a seu Mestre, Ed- mund Husserl, referida na “Abertura” da “Primeira Investigação (Lógica)” “ín- dices” (Anzeigen) significativos, para distingui-los das significações já prontas e acabadas), ou “pista” a ser seguida, aqui fornecida a título de mera sugestão, sobre um modo de ser do humano, ou como nele podemos perceber, fenomeno- logicamente, e com uma conotação claramente jurídica, é a de que o ser huma- no é o ser responsável. Com essa indicação marca-se bem a sua – aliás, nossa - diferença em relação a seres que nos são tão próximos, como são os animais. O ser animal reage, ao invés de responder, donde não lhes podermos atribuir responsabilidade por seus atos, embora seja comum que lhes infrinjamos puni- ções, praticando uma espécie de “imputação objetiva”, para coibir ações suas que repudiamos. Essa nossa característica embrica-se inextrincavelmente com aquela outra, a liberdade, pois se nossas ações não são meras reações é porque

7 Teoria da não conceitualidade, trad. Luis Costa Lima, Belo Horizonte: EDUFMG, 2013, p. 49. 8 Jesús Adrián Escudero, tradutor espanhol da proposta de pesquisa feita por Heidegger a Natorp - “Interpretacio- nes fenomenológicas sobre Aristóteles. Indicación de la situación hermenéutica [Informe Natorp]”, Madrid: Trotta, 2002 -, opta por termo equivalente ao nosso “anúncio” e o italiano, tal como o fizemos, por “indicação”, enquanto na literatura nacional se encontra também a tradução de Anzeige por “indício”, não havendo propriamente um erro nessas opções, pois na palavra original estão contidas essas outras, e não só: notificação, inclusive no sentido mesmo jurídico, policial, é também uma tradução possível. E se “anúncio” é mais literal, em termos semânticos, e nisso se encontra a um só tempo uma vantagem e uma desvantagem, “indício” preserva, como “indicação”, a mesma etimo- logia do original, com a desvantagem de, na primeira palavra aludida, se ter uma alusão ao indiciário, em matéria probatória, sendo nossa opção, também por isso, pela segunda. Com apoio em Friedrich-Wilhelm von Herrmann, em “A idéia de fenomenologia em Heidegger e Husserl”, in Phainomenon. Revista de Fenomenologia, Lisboa: Curso de Filosofia da Universidade de Lisboa, n. 7, 2003 (cap. III de Id., Hermeneutik und Reflexion, 2000), pode-se iden- tificar no emprego da indicação formal, ainda que a noção seja oriunda de Husserl, o que caracterizaria a diferença da abordagem fenomenológica de cunho reflexivo, transcendental, propugnada por este último, e aquela de seu discípulo, de cunho hermenêutico, que permaneceria fenomenológica ao compartilhar o “princípio dos princípios”, de “voltar às coisas mesmas”, livres dos modos como elas são conceitual ou preconceituosamente capturadas, seja por teorias, científicas ou filosóficas, seja pelo senso comum, respectivamente. Em Husserl, ter-se-ia grosso modo, um constante “voltar-se para dentro”, para a consciência, transcendental, a fim de fazer essa experiência de como se- riam, ou se dariam, as “coisas mesmas”, enquanto em Heidegger ter-se-ia uma abertura para captá-las na experiência existencial, fora (eks), a caminho (unterwegs), servindo-se para isso das referidas indicações como acenos (Winke), “marcas no caminho” (Wegmarken), que vai se fazendo, muitas vezes desobstruindo, pela desconstrução (Abbau) dos que já se instalaram, evitando nosso acesso à “coisa”, mesma. 478 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. são praticadas de um modo – por vezes mais, outras vezes menos – deliberado, sendo essa faculdade deliberativa própria de um ser reflexivo, devotado ao pen- samento. Aqui cabe destacar a relação que guarda a responsabilidade-liberdade em que habita o ser humano com a sua natureza extraordinária. E extraordinário entendido primeiramente de maneira neutra, literal, como o que está fora de or- dem, sendo isso assombroso, tanto no sentido de terrificante, pois é assustador ter a consciência de que dependemos de nossas deliberações para termos êxito na “luta pela existência”, como também no sentido positivo, de ser maravilhoso, tomar consciência da existência. Daí podermos concluir que, também literalmen- te, só o ser humano existe, por estar (“sistere”) fora (“ex”) de uma ordem natural, em que os outros seres simplesmente estão, por ser onde sobrevivem, mas não vivem nem morrem, propriamente, apenas começam e terminam, por não se sa- berem mortais. Acometidos dessa solidão existencial, uma resposta tipicamente humana está em supor a existência ainda maior de outros seres, míticos, divinos, que no animismo, tão comum e mitopoeticamente espontâneo entre os povos pri- mevos, tribais, são associados a animais, plantas, pedras e tudo o que compõe um mundo percebido como tão vivo quanto si mesmos, em quem, sob esse aspecto, se reconhece uma superioridade em relação aos humanos, ao se mostrarem segu- ros de si, de seu ser. De fato, não é nada fácil lidar com a instabilidade de ser que é própria do ser humano, o ser que, a rigor, não é, não tem um ser, fixo, donde se explica a criação de uma ordenação humana para nos fixar o ser, assujeitando- nos, tornando-nos o sujeito que somos, sendo semelhantes ao(s) que nos cria(m), pela fala que nos transmitem e nos permite construir o mundo em que habitamos, assim econômica como ética, jurídica e politicamente. Eis o caráter extraordinário da vida humana, dotada de subjetividade (espíri- to, mente, consciência ou como se queira denominá-la), na qual se revelam ideias a respeito do universo “lá fora”, bem como sobre a (ou as) divindade(s) que nos transcende(m), como ainda, reflexivamente, sobre si mesma, em si e em outros. Tal extraordinariedade é que nos atribui, propriamente, a responsabilidade, no sentido de que podemos assumi-la ou não, pela liberdade co(r)respondente, imanente deste modo de ser que somos. De antemão, no entanto, assombra-nos a possibilidade de estarmos pondo a perder uma oportunidade absolutamente excepcional – e isso, tanto individual como coletivamente, em escala mundial, inclusive – quando nos conduzimos sem sequer nos preocuparmos com o significado que pode ter isso de sermos dotados de consciência e da correlata reponsabili(ber)dade. Referido, assim, ao que entendemos ser a relação co-institutiva entre a fa- bulação mitopoética, a religiosidade, o direito, a política e o humano, então do que se trata é de verificar em que medida um componente jurídico-político, junto ao

479 Edelamare Melo (Organizadora) mítico-religioso, faz-se presente para fixar, em uma ordem, tudo o que cria esse ser criador que somos os humanos, a começar pela própria linguagem, que se origina, originando-nos, necessariamente revestida de formalidades, segundo nos propõe Rossenstock-Huessy, em sua obra sobre a origem da linguagem, com o caráter sa- cramental que antes destacara Johann Georg Hamann – uma fonte pouco conside- rada das reflexões bem mais notórias de autores contemporâneos como Walter Ben- jamin e seu seguidor Giorgio Agamben -, pois exige já um contexto adequado para que surja, que há de se conceber como devocional, reverente, ritualístico, mimético, por mítico-religioso. Em um tal contexto é que, por razões fáceis de se perceber, inserir-se-ia, para se manter e superar as adversidades, o ser que se extravia da or- dem natural, buscando reencontrar-se, pensando reencontrá-la, criando, sem se dar conta, outras ordens, “co-naturais”, animistas, ou sobrenaturais, transcendentes. Assim, a política, com o direito, compõem a argamassa que cimenta nossas relações uns com os outros, através da linguagem, em que ele se ex- pressa e ajuda a fixar, sendo que nessa composição também se faz necessário o fluido da religião, entendida muito simplesmente, de maneira indissociável das práticas mágicas, com seus mitos e sua encenação, os ritos, como o faz Marcel Mauss,9 enquanto um conjunto de crenças, cristalizadas em dogmas, dogmas estes que também podem se revestir de conotação jurídica, donde ser na teolo- gia e na jurisprudência, entendida como a ciência jurídica em sentido estrito, onde se verifica a permanência de uma estrutura dogmática de conhecimento, ou seja, de uma especulação racional sobre tais dogmas. Que não nos repugne, neste contexto, a possibilidade de nos defrontarmos com um novo humanismo, que entretanto não poderá incorrer em equívocos típicos dos puros humanis- mos, ao elegerem o homem e suas capacidades como a medida com a qual se avaliaria tudo o que nos diz respeito, tanto no campo do conhecimento, da teo- ria, em que imperariam as ciências, como naquele da ação, da prática, em que uma moral universalista e laica haveria de pautar nossa conduta, com pouca consideração para com situações particulares, singulares, e também para com as crenças que nos constituem, mesmo que sejam crenças ateístas. Direito e política de um lado, magia e religião de outro, portanto, es- tabelecem uma relação de simbiose, presente quando da afirmação pioneira do humanismo pelo romano Cícero, e retomada no Renascimento, a qual se pretendeu romper, com o humanismo da modernidade, eivado de formalismo, sem se perceber que o lugar deixado vazio, ao lado do Direito, termina sendo ocupado por o que se vai chamar então de ideologia, para designar esse con-

9 Cf., v.g., Oeuvres, vol. 2, Paris: Ed. de Minuit, 1968, p. 647. 480 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. junto de crenças, em amparadas em especulações racionais que não mais se apresentam como teológicas ou metafísicas, por não mais serem tidas como crenças, e sim como conhecimentos científicos, de acordo com o credo positi- vista. E no entanto, mesmo nesse contexto de desmistificação de tudo, inclusi- ve da relação entre Direito, política e religião – sem que na época, em geral, se percebesse o quanto se devia, para que se chegasse a tal ponto, ao desenvolvi- mento da religiosidade judaico-cristã -, chama a atenção um posicionamento como aquele de Jean-Marie Guyau (1854 – 1888), em sua “Crítica da Ideia de Sanção”, de 1883,10 pela consciência demonstrada do caráter inextrincável daquela relação, entre Direito – logo, também a política - magia e religião. Para ele, em se tratando das sanções religiosas,11 tem-se o exemplo mais próprio de sanção, palavra que etimologicamente remete à consagração, ao que é sagrado, e também à santificação, ao santo, devendo remeter, de acordo com a ideia que para ele então se fazia da santidade, tida como divindade ide- al, a uma espécie de renúncia, de desprendimento supremo, donde só se poder explicar a violência contida nas sanções, religiosas ou não, em se fazendo, como propusemos no início, sua referência ao sagrado – essas colocações vêm iluminadas em um conjunto de obras recentes, de inspiração assumida- mente foucaultiana, da lavra do filósofo italiano Giorgio Agamben, retoman- do a figura do homo sacer, do direito penal romano, como um modelo para se pensar a situação em que nos encontramos nas atuais sociedades, em que o poder se exerce de maneira biopolítica, ou seja, cada vez mais sobre o que denomina vida nua (no que se pode ver uma alusão à “vida fática” do Dasein heideggeriano, cheia de consequências, como se verá a seguir), a qual se pode entender como a vida do ser humano em quem não mais se reconhece uma pessoa, com a dignidade que lhe é própria. As religiões, assim como o Direito e a magia, enquanto impõem por meios que são políticos certa regra de conduta, a obediência a certos ritos e a fé em determinados dogmas, têm todas a necessidades de uma sanção para confirmar seus preceitos. Todas elas, para Guyau,12 são unânimes ao invocar a sanção mais temível que se possa imaginar, isto é, elas prometem castigos eternos e fazem ameaças que ultrapassam aquilo que a imaginação do homem mais furioso pode sonhar em infligir a seu mais mortal inimigo. Nesse, como em muitos outros pontos, as religiões, segundo ele, estariam em pleno desa- cordo com o espírito dos “tempos modernos”, mas considera estranho pensar

10 Ed. bras. trad. Regina Schöpke et al, São Paulo: Martins Fontes, 2007. 11 Ob. cit ., p. 27 . 12 V. id. ib., p. 77 ss. 481 Edelamare Melo (Organizadora) que ainda são seguidas por multidões, inclusive de filósofos, ainda imagi- nando Deus como a mais terrível das potências, a concluir daí que, quando está irritado, ele deve infligir o mais terrível dos castigos. Desconsidera-se, assim, que Deus, esse supremo ideal, deveria ser simplesmente incapaz de fazer mal a alguém e, com ainda mais razão, de devolver o mal pelo mal. Precisamente por se conceber Deus onipotente – em sintonia com uma li- nhagem de pensamento que deriva da teologia metafísica tardo-medieval de franciscanos como Duns Scot e Guilherme de Ockham, a já então chamada via moderna, que repercute em filósofos tidos como maximamente modernos, a exemplo de Leibniz e Kant -, portanto como o máximo de potência, Ele só poderia infligir o mínimo de dor; isso porque, quanto maior é a força de que se dispõe, menos se tem necessidade de despendê-la para obter determinado efeito (princípio da economia ou parcimônia, também conhecido como “na- valha de Ockham”). Como, além disso, vê-se n´Ele a suprema bondade, é impossível imaginá-Lo infligindo até mesmo esse mínimo de dor. É preciso que o pai celestial ao menos tenha, sobre os pais deste mundo, a superioridade de não açoitar seus filhos. Enfim, como Ele é, hipoteticamente, a soberana inteligência, por onisciente, não podemos acreditar que faça nada sem razão (princípio da razão suficiente, de Leibniz); ora, por que razão Ele faria sofrer inutilmente um culpado, já que isso não pode alterar o que foi feito, o passa- do? E, de todo modo, o ocorrido não se deu com a Sua concordância? Deus está acima de qualquer ultraje e não precisa se defender, não deve nada a ninguém (nullius debitor est) e Ele não tem, portanto, de ferir. Daí se entende a afirmação de Slavoj Žižek, em seu grande livro sobre Hegel, “Menos que Nada”, de que o primeiro mandamento, “Não Matarás”, tem como primeiro destinatário o próprio Deus. As religiões são sempre levadas a representar o homem mau como um titã empenhado numa luta contra o Deus em exercício do poder; uma vez que Zeus/Júpiter saia vencedor é muito natural que, daqui por diante, ele tome suas precauções e esmague seu adversário sob uma montanha. Mas é fazer uma estranha ideia de Deus imaginar que ele possa lutar materialmente com os culpados, sem perder Sua majestade e Sua santidade. A partir do momento em que a Lei moral personificada empreende uma luta física com os culpados, ela perde precisamente seu caráter de lei, rebaixa-se ao nível deles, decai. Um Deus não pode lutar com um homem: Ele expõe-se a ser jogado por terra, como foi o anjo por Jacó [Gênesis]. Ou Deus, essa lei viva, é a onipotência, e então não podemos verdadeiramente ofendê-lo, mas ele também não nos deve punir, ou então nós podemos alguma coisa contra Ele, e Ele não é a

482 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. onipotência, não é absoluto, não é (esse) Deus. “No fundo, mesmo na moral kantiana, a sanção é apenas um expediente supremo para justificar racional e materialmente a lei formal de sacrifício, a lei moral. Acrescenta-se a sanção à lei para legitimá-la”.13 Caso se queira encerrar a escalada de violência que vem se mostrando ser a da humanidade, coibindo as ações por meio da sanção sacrificial, originalmente voltada para – e devotada a - satisfazer divindades em quem projetamos o ódio que nos é próprio, ter-se-ia que retribuir o mal com o bem, com o amor, fraterno, como apregoa Guyau em texto que resume suas ideias sobre o assunto, significativamente intitulado “Sanção de amor e de fraternidade”.14 Ora, embora ele apenas insinue, talvez para não despertar o desagrado de seus pares, em época de descrédito do que se pudesse consi- derar religioso, não seria essa justamente a proposta do cristianismo? Hoje em dia, no entanto, consideremos não ser de se dar crédito a preten- sões, já de partida falsas (ou fracas), quando sugerem um acesso privilegiado à verdade, logo, à (única) resposta certa para questões complexas como as que temos de lidar na atualidade, donde a necessidade de se assumir um ponto de vis- ta epistemologicamente democrático, radicalmente democrático, praticando uma abertura como aquela que se encontra entre cultores das artes e do mistério.15 Isso significa que temos de promover (e nos envolvermos) em amplos de- bates e acirrados embates, incluindo o maior número possível de posições, mes- mo aquelas acima descritas como fracas, de forma que sem um viés ideológico excludente possamos reunir aspectos de cada uma, a serem avaliados como cor- retos, por critérios previamente estipulados, mas também sempre revisáveis, com vistas à construção de respostas apropriadas a tais questões. Com tal conclusão, somos remetidos ao nosso próximo item, onde abordaremos o que se pode con- siderar como requisitos para que os debates e embates aqui referidos possam se desenvolver de modo satisfatório: direitos fundamentais e cultura. 3. Direitos fundamentais e cultura. Começando pela “cultura”, literal e etimologicamente, em certo senti- do,remete a esse ambiente úmido, ao húmus, de onde brotamos, sendo o hú- mus da cultura donde emerge o humano: a capacidade simbolizadora presente na linguagem, em suas mais diversas formas (sendo o direito uma delas), enquanto produtora (e produto) do esforço de produção de um sentido para

13 Guyau, ob. cit., p. 89 e 90 14 Ib., pp. 82 ss. 15 Sobre a importância de tal aproximação entre a criatividade artística e a radicalização da democracia v. a densa carta de Toni Negri para Giorgio Agamben, de 07.12.1988, in: https://www.alfabeta2.it/2014/10/26/sublime/. 483 Edelamare Melo (Organizadora) a existência desse ser em aberto, livre, que somos. Trata-se, assim do solo em que nos assentamos, que cultivamos, ou deveríamos, por ser onde somos cultivados. Há, no entanto, um outro sentido, menos evidente, menos conhe- cido, e que quero relembrar, vindo do direito, e também da religião, por ser o direito canônico, da origem deste, na obra magna de Graciano, do século XII, o Decretum Gratiani, também conhecido como Concordia discordantium ca- nonum ou Concordantia discordantium canonum,16 produzido naquela matriz romano-cristã, dita católica, ou seja, universal, apostólica, ou seja, militante, proselitista e elitista. Trata-se da definição de um ilícito, um pecado, um cri- me, a ser perseguido para punir a quem, ao invés de se dedicar ao culto, ao culto verdadeiro, católico, da verdade, revelada e anunciada, na boa nova, a novidade, o evangelho,17 praticavam o que ali se designa, pejorativamente, como “cultura”,18 os “pagãos”, ou seja, literalmente, aqueles dos campos e florestas, similar àquela que foi chamada, pelos portugueses, quando a encon- traram na África, de “feitiço”, o culto dos deuses fetiches, cultura proibida.19 Bem, o direito à cultura há então de ser visto como um direito funda- mental que praticamente se confunde, pelo que temos exposto até aqui, com o direito a ser humano, um ser de cultura, cultos e culturas, um ser cultural, “culturado”, das mais diversas formas nas quais este ser plástico que somos vamos nos tornando, nos fazendo e refazendo, neste esforço de sermos, di-

16 Ilustração de página da obra original de Graciano (aprox. 1150), prefigurando a Arbor scientiae (A árvore da ciên- cia), de Raimundo Lúlio, um século depois (1272), em que postula a existência de princípios científicos gerais nos quais se englobam os saberes particulares, fonte de inspiração para Leibniz em sua influente metafísica, fundante da filosofia em língua alemã, especialmente em sua tese de doutoramento em direito, a Nova Methodus discendae docendaeque jurisprudentiae (1617), onde se pode encontrar talvez a fonte mais remota do atual pensamento gene- ralizado por algoritmos da cibernética. https://en.wikipedia.org/wiki/File:Treegratian.jpg 17 Note-se bem como se conectam a ideologia ou religião da modernidade, assim como seu correlato gnosiológico, a ciência, com esta da novidade. 18 E ainda hoje reverbera a cisão entre religião e cultura, pois como me foi relatado por um pesquisador de literatura africana, Ubiratã de Souza, quando ele esteve em Moçambique pesquisando para o seu doutoramento, teve dificul- dade em se fazer entender com aqueles que lá lhe perguntavam por sua religião e sendo ele adepto do candomblé dizia ser a mesma que a deles, mas para eles a suas práticas religiosas denominavam “cultura”, preservando o termo “religião” para aquelas, que até, em geral, também dispunham, institucionais, como as cristãs, muçulmana etc. 19 Pierre Legendre, em O Amor do Censor, cit., p. 70, destaca que na obra de Graciano “a ciência selvagem, no- meadamente citada sob a qualificação de cultura, se encontra radicalmente desintegradas por meio das doutrinas que elucidam os procedimentos da excomunhão e da penitência. (...) Da Escolástica que gira em torno deste eixo e segundo seu regime, podemos dizer isto: que ela abre o discurso universal das ciências, (...)”. Adiante, p. 103, o A. refere em que consiste a “cultura” para Graciano: seguir os augúrios e interrogar o movimento das estrelas, tal como se encontra na Causa 26, questão 2, cânon 9 – uma ciência sacrílega, portanto. E isso o faz apresentando o caso do padre adivinho, ensandecido em sua arte e em virtude disso excomungado. “Ciência do pagão”, comenta Legendre, na p. 239, “a cultura resume todas essas práticas (dos saberes malditos), associadas ao pecado fálico”, e transcreve a referida passagem do Decretum, se reportando a S. Jerônimo, para quem se deve guardar o seguinte: “o fornicador comete o pecado em seu corpo, não somente em seu próprio corpo, transformado no templo de Deus, mas também naquele outro corpo que chamamos Igreja, corpo do Cristo. Assim, aquele que se houver maculado sexualmente torna-se criminoso para a Igreja inteira, visto que por um único membro (o membro impuro), a mácula espalha-se na integralidade do corpo”. 484 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. recionando-se por alguma referência, uma orientação sobre o que pode nos acontecer, o que acontece. Agora, os direitos fundamentais precisam ser compreendidos como direitos que não são apenas direitos subjetivos, direitos dos sujeitos, desses assujeitados a alguma forma de poder que os co(i)nstitui de determinado, mas assim, também, e anteriormente, em todos os sentidos, tanto cronológico como ontológico, essencial, como direitos dotados também de uma dimensão objetiva. Nesta dimensão os direitos fundamentais se projetam para moldar as estruturas de poder, a fim de que se amoldem ao respeito do ser, humano, e outros, para que assim faça com que melhor nos desenvolvamos, experi- mentando a nossa necessária e intrínseca liberdade, dentre as quais se destaca a liberdade religiosa – por muitos tida como o primeiro direito humano e fundamental a se afirmar historicamente -, a liberdade de culto, de cultura. Daí decorre a copreensão de que não adianta haver direitos assegurados em tratados internacionais, constituições e leis se não houverem, nesta dimensão objetiva, instituições devidamente estruturadas para fazer valer e respeitar tais direitos, reconhecidas como instituições que só se justificam se estiverem a serviço de tais direitos e de seus titulares, que somos nós, os seres ameaça- dos por definição, que por isso se tornam ameaças também – e isso sobretudo quando não se reconhecem a igualdade, no que é fundamental, daqueles que são aparentemente diversos, e que esta diversidade não só é inevitável como é favorável à continuidade do nosso desenvolvimento, seres que estão, ou estamos, por definição, sempre em desenvolvimento, em desdobramento, em transformação em outro, em outros. 4. Igualdade racial e liberdade religiosa Pelo que já dito aqui até o momento, neste ponto podemos ser mais bre- ves, sustentando que a igualdade racial precisa ser, simplesmente, reconhecida como um fato: há uma só raça humana, a raça humana, e deste ponto de vista somos iguais, ou, se quisermos empregar termos biológicos, já que a noção é biológica,podemos dizer que entre todos os humanos há uma tal proximidade genética, de genótipos, que torna toda a diferença de fenótipos, de aparência, por mais diversa que pareça, meramente isso, aparências, enganosas. Já a liberdade religiosa é uma expressão um tanto pleonástica, pois a religião é uma expressão maior, primeira, da liberdade, dessa característica humana tão peculiar, tão singular, dos seres singulares, singularíssimos que somos, e nos assustamos com isso. Desse susto surgem as religiões, como surgiu a filosofia (na versão desta origem indicada nas obras de seus dois

485 Edelamare Melo (Organizadora) pilares maiores, a saber, aquelas de Platão e de Aristóteles), esta religião da máxima liberdade, a liberdade da religião, ou das religiões, sobretudo se en- tendidas como a fixação de dogmas a serem relidos - donde a derivação de religio de relegere, um tanto forçada, quando religio para os antigos romanos significava o cuidado e a solicitude que se tria uns para com os outros, cujo exemplo maior se encontrava entre os que compunham uma legião para o enfrentamento de vida ou morte nos combates.20 5. Ponto e contraponto Ponto e contraponto, dois pontos: proporcionalidade. A diversidade hu- mana gera inevitavelmente a multiplicidade de pontos de vista e também dos cor- relatos contrapontos. Isso precisa ser valorizados, como dizíamos, mas também precisa ser dosado, pois os atritos decorrem dos choques entre esses diversos pon- tos de vista, que podem estar todos invocando apoio no direito e também invocan- do direitos. E se por um lado tais atritos são necessários e podem ser benéficos, pois como todo atrito impulsionam, movimentam, diversificam ou acrescentam, por outro lado, se os atritos não se mantiverem dentro de certos limites, podem ser destrutivos, inclusive do próprio atrito e dos que nele estão envolvidos, a todos – primeiramente, aos perdedores do conflito, mas também os vencedores perdem, sem que percebam, ao menos de imediato. Sim, porque em um conflito envolvendo direitos fundamentais, que são direitos de proteção da humanidade, da dignidade humana, se algum deles preva- lecer ao ponto de destruir o outro e aos que nele estão amparados para continuar exercendo e desenvolvendo sua humanidade, aos que vencem tais conflitos dessa maneira se tornam desumanos, são diminuídos e sua humanidade, nela regridem, porque agridem a do outro e a humanidade é uma qualidade genérica, de todos e todas. É para nos orientar na descoberta da solução que melhor preserve os direi- tos todos envolvidos em um conflito entre eles que venho defendendo o emprego, de modo que foi pioneiro aqui entre nós, há trinta anos – portanto, desde que en-

20 Cf. Peter Sloterdijk, Du musst dei Leben ändern, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2009, p. 140. Vale lembrar um dos sentidos que autores latinos mais antigos, como Sérvio Sulpício, atribuíam à palavra religio, fazendo-a derivar de relinquere, isto é, deixar, abandonar, relegar - cf. Giovanni Filoramo/Carlo Prandi, As Ciências das Religiões, São Paulo: Paulus, 1999, p. 255. Os demais sentidos etimológicos aventados além de “reler”, ou seja, “observar conscienciosamente”, respeitar a “palavra de(os) Deus(es)”, seriam “religar”, quer dizer, “vincular-se a Deus(es) ou a eles retornar quando os pontífices (literalmente, os fazedores de pontes) firmavam os laços que amarrava a ponte que unia o solo profano ao sagrado, e “re-eleger”, isto é, “converter-se a um novo discernimento”, os quais são associados a Virgílio, Lactâncio e Agostinho, respectivamente, sendo também este último que irá, neste sentido, postular por uma vera religio, a cristã. Em Tomás de Aquino, religio será entendida em um sentido mais próximo a este último, mas com uma conotação menos intelectual e mais emocional, de adoração - cf. Matthias Lutz-Ba- chmann, “Religião depois da Crítica à Religião”, in: Impulso. Revista de Ciências Sociais e Humanas, v. XIV, n. 34, Piracicaba: UNIMEP, 2003, p. 14 e seg. 486 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. trou em vigor nossa atual Constituição da República -, do princípio constitucional da proporcionalidade, que hoje ainda é muito mal compreendido, por ter sido distorcido, a começar pelo Supremo Tribunal Federal, quando se trata de uma garantia fundamental, garantia das garantias dos direitos fundamentais – consa- grando ele próprio, portanto, um direito fundamental. Como já vimos defendendo há algum tempo, a definição de uma ordem jurídica como a instituída em nossa atual Constituição Federal, em termos de um “Estado Democrático de Direito”, traz em si, como fórmula política,21 a repre- sentação do quanto uma Constituição expressa a ideologia com base em que se pretende organizar a convivência política em um dado país.22 Tal representação coloca a Constituição como um vetor de orientação para a interpretação de suas normas e, através delas, de todo o ordenamento jurídico. Vale também lembrar, com Peter Häberle, que a Constituição num Estado Democrático de Direito não estrutura apenas o Estado em sentido estrito, mas também o espaço público e o privado, constituindo, assim, a sociedade como entidade maior. 23 Para resolver o grande dilema que aflige os que operam com o Direito no âmbito do Estado Democrático contemporâneo, representado pela atualidade de conflitos entre princípios e direitos dotados de fundamentalidade, aos quais se deve igual obediência, por ser a mesma a posição que ocupam na hierarquia normativa, já desde o estudo pioneiro entre nós,24 consideramos incontornável o recurso a um “princípio dos princípios”, que em paráfrase a Edmund Husserl qualificamos assim, por representar algo assim como “a principialidade dos prin- cípios”, enquanto decorrente de sua relatividade mútua. Trata-se do princípio da proporcionalidade (Grundsatz der Verhältnismäβigkeit), tal como concebido no campo jurídico na tradição germânica, como um princípio, também, de “relati- vidade” (verhältnismäβig), o qual determina a busca de uma “solução de com- promisso”, respeitando-se mais, em determinada situação, um dos princípios em conflito, e procurando desrespeitar o mínimo ao(s) outro(s), sem jamais lhe(s) faltar minimamente com o respeito, isto é, ferindo-lhes o “núcleo essencial”, onde se encontra entronizado o valor da dignidade humana, princípio fundamental e “axial” do contemporâneo Estado Democrático. O princípio da proporcionali- dade, embora não esteja explicitado de forma individualizada em nosso ordena-

21 Willis Santiago Guerra Filho, Processo Constitucional e Direitos Fundamentais, São Paulo: Instituto Brasileiro de Direito Constitucional/Celso Bastos Ed., 1999, p. 23 ss.; 7ª. ed., São Paulo: SRS, 2017, p. 44 ss., 89 ss. 22 Pablo Lucas Verdú, Curso de derecho político, vol. 2, Madrid: Tecnos, 1977, p. 532. 23 Peter Häberle, El Estado constitucional, Buenos Aires: Editorial Ástrea de Alfredo y Ricardo Depalma, 2007, § 2.º p. 84; § 54, p. 272. 24 Willis Santiago Guerra Filho, Ensaios de Teoria Constitucional, Fortaleza: Imprensa Universitária da UFC, 1989, pp. 69 ss.; 2ª. ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, pp. 65 ss. 487 Edelamare Melo (Organizadora) mento jurídico, assim como o da dignidade da pessoa humana (art. 1o., inc. III, CR), é uma exigência inafastável da própria fórmula política adotada por nosso constituinte, a do “Estado Democrático de Direito”, pois sem a sua utilização não se concebe como bem realizar o mandamento básico dessa fórmula, de respeito simultâneo dos interesses individuais, coletivos e públicos. Em sendo assim, tem- se que o compromisso básico do Estado Democrático de Direito repousaria na harmonização de interesses que se situam em três esferas fundamentais: a esfera pública, ocupada pelo Estado, a esfera privada, em que se situa o indivíduo, e um segmento intermediário, a esfera coletiva, em que se tem os interesses de indiví- duos enquanto membros de determinados grupos, formados para a consecução de objetivos econômicos, políticos, culturais ou outros. É cediço que o Estado de Direito tem como viga-mestre o princípio da legalidade. O princípio da legalidade o entendemos, na perspectiva aqui exposta, como condicionado por aquele da proporcionalidade, a fim de que não viole o prin- cípio da dignidade humana, pondo-se a serviço do Estado de Direito e, ao mesmo tempo, tanto da isonomia como da segurança jurídica, em seu aspecto formal, e também, em seu aspecto substancial, servindo ao Princípio Democrático, à morali- dade pública e à liberdade, ao determinar que se equacione, de maneira ponderada, a gravidade dos fatos a serem apenados e a severidade das penas ou consequências, para que subtraiam ou restrinjam direitos fundamentais, sem fulminar a dignidade humana do prejudicado, mas sempre em defesa de bens dignos de uma proteção com tal magnitude, como são aqueles de interesse público e da coletividade.25 O melhor entendimento do princípio da proporcionalidade decorre de sua aplicação a casos concretos de colisão entre princípios e direitos funda- mentais, em situações reais, portanto, mas de antemão vale adiantar que com esta aplicação do que se trata é de preservar a dignidade humana, que está entronizada no núcleo essencial intangível de todos os direitos (e garantias) fundamentais, como é aquele direito a exercer plenamente o quanto requer uma crença religiosa, quando tal direito é ameaçado ou afrontado por quem faz isso, ainda que invocando outros direitos, religiosos ou não, de forma abusiva. Referências Bibliográficas Bastide, Roger. “A propósito da poesia como método sociológico” ( publicado originalmente em 08.02.1946, no Diário de São Paulo), in: Cadernos, São Paulo: Centro de Estudos Rurais e Urbanos, n. 10, 1977, p. 75 – 82, disponível in: https://projetobrasilfranca.files.wordpress. com/2010/07/metodopoetico.pdf.

25 Cf. Willis Santiago Guerra Filho, “Princípio da Proporcionalidade e Teoria do Direito”, in: Eros Roberto Grau e Willis Santiago Guerra Filho (orgs.), Direito Constitucional. Estudos em Homenagem a Paulo Bonavides, São Paulo, Malheiros, 2001, p. 269. 488 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

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489 Edelamare Melo (Organizadora)

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Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Apêndice

PROJETO UBUNTU NO QUILOMBO do GROTÃO: ARTICULAÇÃO INSTITUCIONAL PARA A PROMOÇÃO DO TRABALHO DECENTE E PRODUÇÃO DE ALIMENTOS LIVRES DE AGROTÓXICOS.

Vinicius Gomes de Aguiar Dernival Venâncio Ramos Junior Cecília Amália Cunha Santos Kênia Gonçalves Costa

Introdução O projeto Ubuntu é uma proposta de promoção do trabalho decente que tem se dado na comunidade quilombola Grotão, viabilizado pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) de Araguaína, pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Comissão Pastoral da Terra (CPT) Araguaia-Tocantins, com a execução técnica do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (SE- NAR) – Administração Regional do Tocantins. Segundo o Plano Nacional de Trabalho Decente (PNTD), torna-se necessário que o Estado brasileiro crie condições para que as relações de trabalho viabilizem “a superação da pobreza, a redução das desigualdades sociais, a garantia da governabili- dade democrática e o desenvolvimento sustentável” (BRASIL, 2010, p. 4). Neste mes- mo documento é analisado inclusive o entendimento da OIT, que se baseia em quatro pontos básicos: ater às normas de trabalho; promover emprego de qualidade; garantir da proteção social; e viabilizar o diálogo social (BRASIL, 2010). Naturalmente o projeto Ubuntu não consegue executar todas os pontos apontados pela OIT, uma vez que não se trata de uma ação de geração de emprego formal envolvendo empregador e empregado, mas busca fortalecer a comunidade do quilombo Grotão no que tange a geração de renda (pois tra- ta-se de uma comunidade em que os homens eram contratados por sistemas de diárias e empreitas, com baixa remuneração e eventualmente realizando jornadas exaustivas), redução do êxodo de quilombolas para as cidades mais próximas, elevação da autonomia das comunidade em relação às práticas pro- 493 Edelamare Melo (Organizadora) dutivas, a retomada de práticas tradicionais quilombolas que estavam enfra- quecidas, apoio ao quilombo na luta pelo seu território, dentre outras ações. O objetivo deste artigo é apresentar a experiencia de articulação insti- tucional para viabilizar a produção de alimentos sem uso de insumos quími- cos, propiciando oportunidade de trabalho decente no Quilombo do Grotão, bem como descrever os desafios enfrentados e os resultados alcançados. Localização do Quilombo Grotão A Comunidade Quilombola Grotão está localizada no Município de Fi- ladélfia (Figura 01), nas proximidades do povoado de Bielândia. O território tem como limite, à esquerda o Rio João Aires e, à direita, o ribeirão Gamelei- ra. Apesar da divisa com dois cursos de água, a comunidade nota o decrésci- mo periódico do nível dos mananciais. Esse problema pode estar relacionado à retirada da vegetação para a formação de fazendas a partir de 1970 e mais recentemente às grandes plantações de eucalipto (Eucalyptus globulus Labill) instaladas nas fronteiras do território (MATOS, 2018). A água passa a ser um problema recorrente, referido durante a presença de pesquisadores em campo. Dezenove famílias vivem atualmente de área disponibilizada à comu- nidade (cerca de 20 alqueires). O laudo antropológico, solicitado pelo Minis- tério Público Federal (ALMEIDA, 2011), identificou uma área de dois mil e duzentos hectares como território ancestral. Esse dado se ajusta aos limites descritos e registrados pelas narrativas orais e pela cartografia social em ela- boração por pesquisadores do NEUZA-UFT/CPT. Planejamento do Projeto Ubuntu Inicialmente, um representante da CPT em contato com a Dra. Cecília Amá- lia (Procuradora do MPT), foram no território da comunidade quilombola Grotão e levantaram as demandas por práticas produtivas, segurança alimentar e trabalho digno que poderiam ser aplicadas. Após diversos diálogos, o projeto foi definido contendo um sistema de irrigação, perfuração de poço artesiano e instalação de uma caixa de água de 10.000 (dez mil) litros, além das cadeias produtivas de hor- ticultura, avicultura de corte/postura, piscicultura, feijão e mandioca. Com a intenção de promover a manutenção dos quilombolas na insta- lação e no aprendizado das novas práticas produtivas, além da dedicação das famílias na execução da produção, o projeto viabilizou o pagamento de uma bolsa de R$ 500,00 (quinhentos reais) mensais para 19 (dezenove) famílias do projeto, que possui duração de 11 meses. Para que o projeto obtivesse melhor desempenho, o MPT, CPT e Senar planejaram capacitar a comunidade quilombola, por meio da troca de experiên- 494 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. cias e aprendizado relacionado as técnicas de gestão e de produção. Dentre os cursos proposto estão os de: gestão e gerenciamento de empresas rurais, voltado para o empreendedorismo rural; mulheres em campo, destinado ao empreende- dorismo e gestão rural aplicado para as mulheres da comunidade; associativis- mo e cooperativismo, que capacitou a comunidade a melhor organizar a associa- ção já existente no quilombo; além dos específicos das cadeias produtivas, que possui a proposta de viabilizar o uso de técnicas eficientes de produção.

Figura 01. Mapa de localização do quilombo Grotão, em Filadéfia (TO).

Implantação do Ubuntu no Quilombo Grotão Já na inauguração do projeto Ubuntu (Figura 2), em meados do mês de abril de 2019, a comunidade em conjunto com os técnicos do Senar, apresen- taram primeiros resultados com uma quantidade significativa de verduras da horticultura ainda em estágio inicial, assim como á área destinada a mandioca nas proximidades da casa de Dona Aparecida (liderança do quilombo Grotão) e as primeiras aves que já estavam instaladas no aviário. 495 Edelamare Melo (Organizadora)

Figura 2. Dona Aparecida falando na inauguração do projeto Ubuntu, no quilombo Grotão.

O canteiro de Horticultura instalado no quilombo foi de base orgânica, utilizando sementes adquiridas pelo Senar, especialmente de alface, rúcula, coentro, cebola, couve e cenoura, que utilizam a irrigação por micro aspersão em uma área de aproximadamente 5000 (cinco mil) m², sem a utilização de agrotóxicos (Figura 3). Já no aviário foram colocados frangos e galinhas, tanto para corte (produção de carne), quanto para postura (produção de ovos), em um sistema semi-intensivo (Figura 4). Na inauguração havia aves tipo cai- pira melhorado em uma área de 200 (duzentos) m2, sendo 30 (trinta) m2 de cobertura, com capacidade para 100 frangos de corte e 50 galinhas de postura.

Figura 3. Canteiro de produção de Coentro Figura 4. Aves no aviário do Projeto Ubuntu no na área de horticultura do Projeto Ubuntu no quilombo Grotão. quilombo Grotão. Primeira Experiência dos Quilombolas na Feira em Araguaína Em meados do mês de Maio de 2019 a produção realizada pela comu- nidade em conjunto com o Senar, especialmente de hortaliças (Figura 5 e 6), já estavam no ponto de colheita. Como a entidade que responsável pelo o apoio técnico no quilombo não se planejou para a parte de comercialização dos produtos, o MPT e a CPT convidaram o NEUZA (Núcleo de Pesquisa e Extensão em Saberes e Práticas Agroecológicas) do campus de Araguaína da Universidade Federal do Tocantins (UFT), para ajudar nesta etapa do projeto Ubuntu e executar um projeto de mitigação das possíveis novas demandas. 496 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Figura 5. Hortaliças do Projeto Ubuntu no qui- Figura 6. Cenouras do Projeto Ubuntu no quilom- lombo Grotão no ponto de colheita. bo Grotão ainda em desenvolvimento. Desde o ano de 2018 o NEUZA-UFT realiza trabalhos de pesquisa e extensão no quilombo Grotão relacionado as práticas agroecológicas em con- junto com a CPT, através de um projeto financiado pelo CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico). Com isso, aprovei- tando o diálogo já existente entre o núcleo da UFT e a comunidade, a ação de venda dos produtos do Projeto Ubuntu começou a ser organizada. Nesta etapa, a Dra. Cecília Amália conseguiu, junto a prefeitura de Ara- guaína, um local para instalar a banca dos quilombolas na feira do mercado central de Araguaína, durante a tarde de sexta e no sábado pela manhã, assim como um veículo com motorista para transportar a produção e os vendedores quilombolas do território para a feira (Figura 7). O NEUZA-UFT se mobilizou para divulgar a chegada dos quilombolas na feira, conseguir caixas de madeiras e isopor para acomodar os produtos, além de uma cotação de preço dos pro- dutos semelhantes aos do Projeto Ubuntu comercializado por outros feirantes.

Figura 7. Lavagem e organização de hortaliças do Projeto Ubunto no quilombo Grotão. 497 Edelamare Melo (Organizadora)

Como a comunidade havia uma grande quantidade de hortaliças produ- zidas, os pesquisadores do NEUZA-UFT conseguiram um outro veículo para trazer mais verduras. Logo, na tarde de sexta-feira (primeira experiência de venda dos produtos da comunidade quilombola), os vendedores do quilombo iniciaram a comercialização de seus produtos com o apoio de um servidor do MPT, o profissional da área agronômica do Senar que atuava no sistema pro- dutivo e alguns pesquisadores do NEUZA-UFT (Figuras 8 e 9). No sábado pela manhã a CPT nos informou que toda produção disponibilizada para venda havia sido vendida. Em conversa entre os vendedores quilombolas, CPT e NEUZA-UFT ficou acordado que no dia seguinte, a partir de busca de nova remessa no período da tarde do sábado, a produção seria oferecida em uma outra feira cidade, localizada na região denominada de Entroncamento. O funcionário da Prefeitura de Araguaína, que disponibilizou o espaço na feira do mercado central de Araguaína, se dispôs a fornecer um espaço na outra feira. Em seguida, os pesquisadores do NEUZA -UFT conduziram os membros da comunidade, juntamente com o material de apoio (caixas, mesas, cadeiras, banners) até a sede da CPT em Araguaína (Figura 10 e 11).

Figura 8. Raquel, quilombola e filha da liderança Figura 9. Servidor do MPT auxiliando os vendedores da comunidade, trabalhando na feira. quilombolas na feira do mercado central de Araguaína.

Figura 10. Saída dos vendedores Figura 11. Chegada dos vendedores quilombolas quilombolas da feira. na sede da CPT em Araguaína.

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Após iniciar no sábado a tarde a divulgação pelas redes sociais da nova etapa de venda do dia seguinte (domingo de manhã), às 18h pesquisadores do NEUZA-UFT e o técnico do Senar, juntamente com alguns quilombolas, retornaram à comunidade para buscar a nova remessa de mercadoria. No domingo pela manhã, os pesquisadores do NEUZA-UFT haviam le- vado uma tenda, juntamente com um jogo de mesa de plástico fornecida pela CPT para organizar o espaço de venda (Figura 12). Como todos os produtos foram vendidos antes das 11:00h (onze horas) da manhã, o NEUZA-UFT pro- moveu a entrega simbólica do “Troféu Caixa Vazia” para a comunidade por entender que a comunidade quilombola, acostumada às práticas tradicionais rurais se esforçou para aprender um sistema produtivo diferente, com espé- cies distintas das existentes em seu território, deslocou-se para a cidade de Araguaína e conseguiu obter sucesso em uma atividade completamente nova, a venda de produtos em uma feira (Figura 13).

Figura 12. Instalação da banca do Projeto Ubun- Figura 13. Entrega do “Troféu Caixa Vazia” para tu na feira do Entroncamento. os vendedores quilombolas do Grotão. Outras Etapas de Produção do Projeto Ubuntu Após a primeira etapa de vendas do projeto Ubuntu, a comunidade deci- diu manter as viagens semanalmente para Araguaína com o objetivo de manter as vendas na feira do Mercado Central durante a tarde de sexta e a manhã de sábado. Nos domingos subsequentes, diferente do realizado no primeiro evento de feira do Projeto Ubuntu, a comunidade escolheu ficar no quilombo devido ao cansaço acumulado nas feiras de sexta e sábado, além de domingo também ser o dia da semana em que a comunidade se dedica as práticas religiosas. Com o avanço da produção, novas demandas para feira surgiram. Com isso a comunidade passou a buscar na sua tradição, práticas e elementos que os auxiliassem na resolução dos problemas. Um desafio percebido pela comunidade foi a redução no uso de mate- riais sintéticos para amarrar os molhos de verdura (principalmente cebola,

499 Edelamare Melo (Organizadora) couve e cheiro verde). Isso induziu a comunidade retomar o uso de Imbira (fibra retirada da palha das palmeiras de Buriti), que é um material abundante na vegetação local e possui muito resistência para amarrar os produtos (Figu- ra 14 e 15). Com a manipulação dessa palha foi também retomada a produção de trançados, especialmente relacionado a cestarias (Figura 16), em função da exposição dos produtos comercializados pela comunidade na feira.

Figura 14. Imbira sendo manipulada utilização Figura 15. Cebolas expostas na feira e amarra- nas hortaliças. das com Imbira. Além desses elementos, pelo fato da comunidade eventualmente levar para a feira produtos da sociobiodiversidade quilombola, importantes para a soberania alimentar do Grotão, como a melancia comumente chamada de Jandaia, o frango caipira, a mandioca e o limão conhecido regionalmente como Galego. Outro elemento de grande relevância da produção tradicional quilombola é a produção de farinha de mandioca que estava limitada devido às más condições da casa de farinha. Com o projeto o Ubuntu a produção de mandioca se amplia, inclusive com espécies fornecidas pela Embrapa, além de viabilizar a aquisição de maquinários, como o triturador e o forno, o que permitiu potencializar a produção e da comercialização de farinha, tanto no território como nas localidades vizinhas.

Figura 16. Cesta com cajuí, limão galego e Figura 17. Melancia jandaia exposta na feira do frango caipira. mercado central em Araguaína.

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Durante o planejamento do projeto, a Dra. Cecília Amália e o agente pastoral Evandro Rodrigues dos Anjos foram informados de que um elemento importante da prática alimentar dos quilombolas é o pescado. Como os cursos d’água local, segundo relatos das pessoas da comunidade, tem perdido quantidade e qualidade, os peixes deixaram de ser abundantes. Logo, a comunidade demandou a construção de tanques de psicultura para a retomada dessa proteína em sua dieta alimentar. Em setembro de 2019 um tanque de psicultura já estava construído com mais de 1.800 (mil e oitocentos) alevinos de Tilápia, assim como um filtro de limpeza de água que se dá com o uso de alfaces d’água, ou seja, sem o uso de insumos químicos (Figuras 18 e 19). Desde o primeiro evento de venda na feira em Araguaína, um dos gran- des desafios para o sucesso da comercialização dos produtos foi o transporte, tanto dos vendedores quilombolas, quanto dos produtos do projeto. Sendo assim, o MPT em conjunto com a OIT, viabilizou recursos financeiros para a aquisição de um veículo (Figura 20) com capacidade de carga e deslocamento em estradas arenosas, entregue em meados de setembro de 2019.

Figuras 18. Filtro de água da cadeia produtiva de Figura 19. Tanque de psicultura. psicultura.

Figura 20. Comunidade quilombola Grotão recebendo o veículo em setembro de 2019.

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Considerações finais Este texto apresentou a experiencia de articulação institucional entre MPT, CPT, OIT, SENAR e NEUZA-UFT na viabilização da produção de ali- mentos sem uso de insumos químicos, propiciando oportunidade de trabalho decente no Quilombo do Grotão, bem como descreveu os desafios enfrenta- dos e alguns resultados alcançados. O projeto Ubuntu tem permitido articular trabalho decente, produção sem agrotóxicos, fortalecimento da relação com os produtos da sociobiodi- versidade do território, bem como a comercialização de alimentos saudáveis nas cidades próximas ao quilombo. Os desafios enfrentados têm sido superados pela articulação institu- cional e pela capacidade de organização e resiliência da comunidade. Referências Bibliográficas Almeida, Roberto Alves. Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária –

Incra Coordenação Geral de Regularização de Territórios Quilombolas – DFQ Superinten- dência Regional do INCRA em Tocantins – SR 26, 2011.

Brasil. Ministério do Trabalho e Emprego. Plano Nacional de Trabalho Decente. Brasília, 2010. Dispo- nível em: Hiperlink, www.mte.gov.br/antd/programa_ nacional.asp. Acesso em: 02 dez. 2010.

Matos, M. Políticas de desenvolvimento e povos tradicionais na Amazônia - um estudo sobre a Comunidade Remanescente de quilombo Grotão quanta aos impactos da chegada do Euca- lipto. Araguaína: PPGULT (Dissertação de Mestrado), 2017.

Senar. Serviço nacional de aprendizagem rural – administração regional do Tocantins. Proje- to de desenvolvimento do quilombo Grotão. Palmas, 2019.

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Foto: Projeto GEOAFRO-CIGA-UnB, População Quilombola, Queimada Nova, Piauí, 2006

MANIFESTO: POR UM BRASIL AFRICANO MAIS JUSTO! II COLÓQUIO GEOPOLÍTICA & CARTOGRAFIA DA DIÁSPORA- ÁFRICA -AMÉRICA -BRASIL

No dia 23 de agosto passado, Dia Internacional da Memória do Tráfico de Escravos e sua Abolição (Unesco), instituições universitárias, organismos do setor decisório nacional e estadual, professores e estudantes, juntamente com entidades representativas da sociedade civil organizada, participaram do II Colóquio Geopolítica & Cartografia da Diáspora África – América – Brasil, em Brasília, na Universidade de Brasília, promovido pelo Projeto Geografia Afrobrasileira: educação & planejamento do Território (GEOAFROBrasil) e o Centro de Cartografia Aplicada & informação Geográfica (CIGA-UnB), cujo objetivo principal foi tratar das questões fundamentais da Geopolítica do Brasil Africano excluído secularmente, ou seja, dos povos e territórios que existiram, resistiram e se mantêm sobreviventes com suas matrizes, mas de uma maneira marginal, “invisível” e sem lugar definido no Brasil Oficial. Neste sentido, concordamos e tornamos público que não podemos mais nos calarmos diante de tantos fatos oriundos do “racismo estrutural e institucio- nal” que acomete o nosso país. Importante lembrar que o Brasil constitui, na atualidade, a mais relevante unidade política com registros das referências do continente africano “fora” da África. O desenvolvimento das grandes re- giões com atividades econômicas coloniais que foram estruturadas na força de trabalho e nas tecnologias oriundas do continente africano, ao longo dos 505 Edelamare Melo (Organizadora) séculos XVI-XIX, é revelador da “presença ampla” da África na formação e expansão territorial do Brasil. Apesar desse contexto historiográfico, cons- tatamos ao longo do século XX e neste início do século XXI, um conjunto de distorções, preconceitos e invisibilidades relacionadas às matrizes afro- brasileiras, no sentido largo, sobretudo no processo educacional e nas ações de ordenamento do território pelo Estado, ou seja, há um comprometimento estrutural no exercício da cidadania dos (as) brasileiros (as) de referência afri- cana, excluídos de participar da “geopolítica oficial” do país. Neste sentido, as Reuniões Técnicas ocorridas neste II Colóquio, apontaram contextos e di- reções que merecem a atenção e providências junto ao setor decisório público nas suas diferentes esferas, assim como pelo setor privado e os seguimentos organizados da sociedade brasileira. São as seguintes: I. Referente ao Estado Democrático de Direito: A existência e a manuten- ção do racismo estrutural do Estado brasileiro é o entrave fundamental para a ineficácia das políticas públicas no ordenamento do território nacional permea- do por variadas incongruências e incompatibilidades, por exemplo: a segregação sócio espaciais nas grandes cidades do país, onde está a maioria significativa da população afrobrasileira é o fato geográfico mais evidente do aprofundamento das desigualdades; na saúde (o preconceito e a negligência crescente nos aten- dimentos acometem principalmente a população negra do país); a inexistência das referências africanas e afrobrasileiras na historiografia oficial no processo educacional (em todos os níveis, ou seja, fundamental, médio e superior); na re- solução das demandas emergenciais dos territórios tradicionais (quilombos rurais e urbanos e terreiros religiosos, sobretudo); na revisão dos conceitos e práticas da segurança da sociedade brasileira (o extermínio da população jovem negra é uma fato incontestável) e nas oportunidades de trabalho e emprego (a maioria significativa dos desempregados da nação são pardos), ou seja, a manutenção deste quadro sócio-político-territorial de mentalidade colonial no país é assegurar às situações cotidianas a manutenção dos conflitos, marginalizações, exclusões e falta de informação, tendo como agravante maior o aprofundando do preconceito e do desconhecimento do Brasil Africano real; II. O Ordenamento do Território Brasileiro e a Exclusão Secular: Que os setores da governança do país tratem das questões estruturais dos territórios e povos de matriz africana como política de Estado e não de Governo; é neces- sário que a União, Estados, Municípios e o Distrito Federal criem mecanismos reais de respeito, reconhecimento e regularização fundiária dos territórios étnicos (quilombos e terreiros religiosos); se faz necessário uma revisão do modelo ins- titucional de condução dos processos de reconhecimento e titulação que ocorrem

506 Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo. atualmente em distintos ministérios do governo federal, ou seja, um modelo dis- persivo e desagregador que inviabiliza a eficácia nos processos e pode ser alte- rado com prioridade jurídica e política. Os terreiros religiosos de matriz africana e os quilombos contemporâneos podem e devem ser vistos como soluções para as demandas do Estado e não como problemas. Neste sentido, é imprescindível o fortalecimento do Comitê Gestor da Agenda Social Quilombola; III. A Cartografia Pendente e as Bases de Dados Precárias: Não é mais cabível ao Brasil não ter uma Cartografia Oficial com os registros espaciais dos Territórios Quilombolas, assim como dos Terreiros Religiosos de Matriz Africana, como ferramentas estruturais para dar suporte às políticas públicas necessárias e pendentes. A omissão destes instrumentos técnicos para a gestão governamental cria maiores possibilidades dos conflitos territoriais e tensões sociais para os agentes e atores envolvidos nos processos. A ausência de uma política e uma agência cartográfica da União, assim como, as dificuldades operacionais e institucionais para a eficácia da INDE Brasil (Infraestrutura de Dados Espaciais) são componentes estratégicos que contribuem para a grave inexistência da cartografia dos territórios tradicionais secularmente invisíveis; IV. A Educação Precária das Matrizes Africanas no Brasil: O desconhe- cimento da legislação e das políticas públicas para a promoção da igualdade racial por parte dos gestores e professores (as) das escolas de Educação Básica e Fundamental é um fato que compromete a promoção de mudanças no país mais africano do planeta fora da África, assim como, a ausência de reconhecimento da produção intelectual negra e a baixa representatividade da sua população em car- gos da governança em todos os níveis são contextos reais de comprometimento no processo educacional. A articulação institucional e política para a implemen- tação do Artigo 26 da LDB em relação à divulgação das experiências exitosas e destinação das verbas para a formação dos professores é uma pista concreta para auxiliar na alteração deste quadro de abandono secular. Do ponto de vista estra- tégico é fundamental uma efetiva representatividade da questão étnico-racial no quadro docente, nos currículos e na gestão das instituições de ensino; V. A Ignorância Geográfica do Povo Brasileiro: A carga horária reduzi- da, as precariedades das condições de trabalho, a insuficiente formação con- tinuada e um processo crescente de banalização dos conceitos geográficos e ferramentas da Geografia são indicadores de um processo de “ignorância geográfica” na cidadania dos (as) brasileiros (as) em curso. A Geografia dos Povos Originários e de Matrizes Africanas no Brasil é uma pendência desde que a educação da Geografia foi implementada no Império e depois na Repú- blica, ou seja, a Geografia Brasileira tem esta “dívida” secular!

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Temos como premissa que as informações por si só não significam co- nhecimento. Entretanto, com o auxílio da ciência e da tecnologia, estas podem proporcionar elementos que subsidiem e modifiquem a adoção de medidas concretas para alteração das situações emergenciais do “racismo estrutural e institucional” praticado há cinco séculos no “Brasil Africano”. Brasília, 23 de agosto de 2019. Instituições Participantes e Apoiadoras do Evento: Projeto GEOAFROBrasil, CIGA-GEA-UnB, UFRJ, MNU, UFAL, UFRB, UNIDESC, BNCC, ICS-UnB, NEAB-UnB, Instituto Baobás, OIT -Brasil, Instituto Geodireito, SEJUS-GDF, Quarteto Consultoria, UFT, IFB, TV-UnB, CET-UnB.

Palestrantes, Colaboradores e Homenageados: Profa. Maria Auxiliadora Lopes, Sra. Adna Santos (Mãe Baiana), Ana Ga- briela, Bárbara Arato, Decano Carlos Moura, Sra. Carolina Nascimento, Profa. Dra. Clara Suassuna, Dr. Carlos Madson, Prof. Dr. Cleison Ferreira, Bach. Diego Santos, Bach. Edicleide Honório, Msc. Fernanda Góes, Msc. Gabriela Ortiz, Pro- fa. Dra. Glória Moura, Msc. Guilhermino Rocha, Gustavo Tolentino, João Ema- nuel, Msc. Juliana Nynes, Sr. Juvenal Araújo, Leandro Araújo, Dr. Luís Ugeda, Prof. Dr. Luiz Felipe de Alencastro, Msc. Marjorie Chaves, Profa. Dra. Mônica Lima, Prof. Dr. Neio Campos, Msc. Pâmela Morales, Mãe Railda de Oxum, Prof. Dr. Rafael Sanzio dos Anjos, Profa. Dra. Regina Maniçoba, Profa. Dra. Renísia Garcia, Richard Ceschini, Profa. Dra. Rita Dias, Prof. Msc. Rodrigo Vilela, Profa. Dra. Valéria Carvalho, Profa. Dra. Vanda Machado.

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Participantes Inscritos no Evento Thea Weber Garcia, Letícia Ramos Dias, Évellin Lima de Mesquita, Adriany De Ávila Melo Sampaio, Lara Marques da Silva, Eduarda Leopol- dina de Souza da Rocha, Lucas Bento da Silva, Lara Ferreira Nunes, Juarez Ribeiro, Kaíc Fernando Ferreira Lopes, Raquel Almeida Mendes, Isabelle Alline Lopes Picelli, Anderson Rodrigues Ribeiro, Márcia Carolina Silva, Márcio Rodrigues, Jonnathan Ribeiro dos Santos, Marcela Antonieta Souza da Silva, Adryelle Braga Arouche Medeiros, Júlia Neves da Silva, Ana Ra- quel Soares Da Costa Assunção, Jonathan Gonçalves Dutra de Souza, Bruna Alves Lorena da Silva, Deborah da Costa Fontenelle, Anderson Evangelista Da Silva Rodrigues, Deborah Silva Santos, Gédéon Chabi Chadrac Mathias, Maryella Gonçalves Sobrinho, Fernanda Lopes Machado, Rosalvo Ivarra Ortiz, Lidiane Souza Leão, Jonnathan Ribeiro dos Santos, Julia Dalla Cos- ta, Lorrane Ribeiro de Souza, Eduardo Gonçalves Jordão, Márcia Verssiane Gusmão Fagundes, Ruan Italo de Araujo Guajajara, Joyce de Almeida Bor- ges, Lilia Nogueira, Rosângela Azevedo Corrêa, Thaynara Godoi Dos Santos, Gersiney Pablo Santos, Gédéon Chabi Chadrac Mathias, Thaíse Torres, Nai- lah Neves Veleci, Hellen Cristine da Silva Costa, Maíra de Deus Brito, Gloria Moura, Vânia da Costa Amaral, Bárbara Melo, Francisco Phelipe Cunha Paz, Lara Ferreira Nunes, Geruza Santos Guimarães Carvalho, Leandro Venân- cio Lopes, Késsia Oliveira da Silva, Flávia Mara Henriques Gomes, Suzana dos Santos Barbosa, Denise da Costa Eleuterio, Iranilde Tavares da Câmara, Ana Luísa Coelho, Moema Carvalho Lima, Denise Soares Oliveira, Vitória Beatriz Santos Rodrigues, Patricia Moreira, Lícia Nunes de oliveira, Kley- son dos Santos Silva, Felipe do Couto Torres, Gilmar Elias Rodrigues Da Silva, Aisha Diéne, Jéssica Lawane Sousa Rodrigues, Augusto César Silva FIlgueiras, Maysa Monteiro Camelo, Daniel Felipe dos Santos, Eduarda Mar- ques Alves Andrade, Marcela Maranhão dos Santos, Tito Abayomi de Souza Leitão, Marina Medeiros Ferreira, Matheus Rodrigues dos Santos, Alexandre Teixeira Marques, Alberto Roberto Costa Ágatha Santos Camelo, Matheus Oliveira Barbosa, Jordhanna Neris Sampaio Cavalcante, Beatriz Magalhães Santos, Beatriz Amorim de Barros, Vinícius Yann Gomes Rocha, Vania da Costa Amaral, Guilherme Lambais, Josinelma Ferreira Rolande Bogéa, Caro- lina Conceição Nascimento, Aghata Ingridi de Sousa Sampaio, Paulo Eduar- do Lannes Souza, Andrea Von Rakowitsch Siqueira Tillmann, Giovana Maria Gonçalves Abdel Hamid, Wilson Carlos Jardim Vieira Júnior, Yuri Luciano Santos, Rosemberg Ferracini, Rodrigo Matos de Souza, Eva Maria Lucumi, Luis Augusto Ferreira Saraiva, Rodrigo Saouza de Freitas, Layanne Costa do 509 Edelamare Melo (Organizadora)

Nascimento, Gustavo Silveira Tolentino, Alexandre Bruno Barzani Santos, Linconl Agudo Oliveira Benito, Regina Coelly, Ronaldo Amaral, Ruth Za- mira Herrera Rincon, Ingrid Duarte Oliveira, Thales Felipe de Araújo, Thales Felipe de Araújo, Ingrid Duarte Oliveira, Akacyara Barbosa Oliveira, Ro- sânia do Nascimento, Ana Carolina Santos de Jesus Claro, Márcia Cristina Pacito Fonseca Almeida, Leila Lopes, Ana Paula Gomes Matias, Isabel Thais Eirado Martins, Laercio Bernardes Dos Reis, Ivana Medeiros Pacheco Ca- valcante, Graziela do Lago, Flora Campos Barros, Galdeci, Isadora Harvey, Sabrina Cristina Queiroz Silva, Jeancarlo Macgregory Pereira Mourao, Os- valdo Araujo Pena, Joicy Keilly Ferreira da Silva, Juliana Oliveira, Henrique Rodrigues Torres, Rita de Cassia Farias Vasconcelos, Paulo Henrique Alves Da Fonseca, Joice Moura, Dyana Helena de Souza, Luiz Felipe Rodrigues Carvalho, Edileuza Penha de Souza, Wallace Vieira da Silva, Lariadney Alves da Silva, Artur Artin Artinian Depanian, Marina Bezzi, Livia Guilardi, Raul Brochado Maravalhas, Tiago Cantalice da Silva Trindade, Jessika Larissa Sousa Lima, Karla Roberta Bezerra da Silva, Karla Roberta Bezerra da Silva, Larissa Ferreira de Paiva, Sabrina Costa de Sousa, Pedro Henrique Marinho Carvalho, Lucas Bento Da Silva, Emilia Stenzel, Brunno Coene De Souza, Davi Silva Melo, Marcella de Oliveira Moura, Ana Claudia Sacchi Baldo, Marcelo Jungmann Pinto, Jackson Bitencourt, Maria Auxiliadora Lopes, Ed- nólia Dias De Andrade, Marcela Burger Sotto-Maior, Alexandre Ferreira da Silva, Flávio Terra.

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