Abdias Nascimento
Total Page:16
File Type:pdf, Size:1020Kb
Repertório, Salvador, nº 17, p.190-194, 2011.2 ABDIAS NASCIMENTO: UMA UTOPIA POSSÍVEL Um artista cuja história revela um agente produtor de sentidos que desloca e desinterioriza o sujeito frente ao espelho do seu tempo. Ângelo Flávio1 Artista de múltiplos talentos, ator, diretor, dra- Nascido na Cidade de Franca, interior de São maturgo, artista plástico e ensaísta, Abdias Nasci- Paulo, no dia 14 de março de 1914, Abdias Nasci- mento (1914-2011) foi senador, secretário de es- mento, filho do sapateiro senhor José Ferreira do tado, Professor Emérito da Universidade de NY Nascimento e da cozinheira dona Georgina Fer- e Doutor Honoris Causa pelas Universidades de reira do Nascimento (D. Josina), veio ao mundo Brasília, Rio de Janeiro e Federal da Bahia. Dedicou em uma época tumultuada, como ele mesmo dizia: toda a sua existência à luta anti-racista no mundo. “Havia ainda o rescaldo das lutas abolicionistas, e a grande Homem de postura cívica e cidadã na participação massa de africanos escravizados não tinha tido tempo de da vida político-cultural do que temos hoje como tomar pé de suas próprias vidas”2. Brasil. A cultura brasileira e, especificamente a Aos 16 anos, em 1930, mente a idade e alista-se afro-brasileira no contínuo processo de afirmação no exército para sair da cidade de Franca rumo à da sua identidade frente à cultura globalizada deve Capital de São Paulo. Na Revolução de 1932, passa a este homem honrarias incontestes pelo poder de a frequentar as reuniões da frente negra, “foi nesse ter questionado o imperativo das representações principio de militância orgânica que pude começar a sentir simbólicas da nação brasileira canonizado no ideá- e a entender o orgulho coletivo, porque o orgulho individual, rio do colonizador macho-branco-europeu. 2 SEMOG, Elé. Abdias Nascimento: o griô e as muralhas. p. 1 Ator e bacharel em direção teatral. 190 30. Repertório, Salvador, nº 17, p.190-194, 2011.2 que também é necessário, eu já tinha”3 lembrava-se. Na prática, o conceito intrinsecamente político da afirmação e do mesma década lutou contra a ditadura no seio do resgate da cultura-africana brasileira, com a atuação política Estado Novo, organizou o Congresso Afro-campi- ostensiva”5, relata Elisa Larkin, sua esposa. neiro e viajou para o Peru, com o grupo de poetas O TEN não se restringia somente ao palco, mas e artistas a Santa Rosa Hermandad. Por esta oca- se propunha a “trabalhar pela valorização do negro no sião, ficou chocado, ao ver o ator Hugo D’Evieri Brasil através da educação, da cultura e da arte”, como pintado de negro na peça O Imperador Jones de Eu- definia Abdias, promovendo, assim, mecanismos gene O’Neill e, diante disso, retorna ao Brasil, com de interferências político-sociais, que partiam des- o propósito de criação de um Teatro Negro. de o ‘Curso de Alfabetização e Iniciação Cultural’ Fundou o Teatro Experimental do Negro às ações como o Concurso da Rainha das Mulatas (TEN) em 1944, juntamente com Lea Garcia, Ruth e Bonecas de Pixe nas décadas de 40 e 50, a Con- de Souza, Aguinaldo de Oliveira, Claudiano Filho, venção Nacional do Negro (1945) na qual lança Mercedes Batista, Solano Trindade, Arlinda Sera- o seu Manifesto à Nação Brasileira propondo a cri- fim, Haroldo Costa entre outros, mas antes havia minalização do preconceito racial no país para ser fundado o Teatro do Sentenciado na Carandiru, encaminhado para a Constituinte de 1946, a Con- penitenciária de São Paulo, “lá nós construíamos o Pal- ferencia Nacional do Negro (1949), o I Congresso co, fazíamos o Vestuário. Éramos só homens e fazíamos as do Negro Brasileiro (1950), Competição Plástica vestimentas de mulheres, tinha até uma Carmem Miranda Cristo Negro (1955), a Semana do Negro (1955) e que também fazia um Lampião4”, recordando as pe- a Edição da Revista Quilombo, em 1961, entre ou- ças teatrais durante a ocasião em que fora preso tras atividades. “O TEN nunca foi só um grupo de por infração disciplinar no exército: “Foi uma reação Teatro, era uma verdadeira frente de luta”6, revela. extraordinária a receptividade, a reação dos presos, todos A partir do Golpe de 1964, a censura impediu ali sentadinhos assistindo ao teatro...”, conclui. Levou a continuidade das atividades do TEN e, com a re- quase três anos preso, até que o Supremo Tribunal pressão política, as estratégias de ação da entidade Federal, tardiamente, soltou-o por não encontrar ficaram restritas. Em 1968, com a intensa repres- provas, e por entender que Abdias não poderia são instituída pelo AI-5, foi obrigado a deixar o permanecer em uma penitenciária uma vez que país acusado de fazer ligação entre o movimento fora julgado por um tribunal militar. negro e os grupos de esquerda. “Bom, o concreto nosso é a estréia. Queremos estrear O exílio dá inicio a outra fase na vida de Abdias, no Teatro Municipal”, dizia Abdias, juntamente com agora, em uma luta internacional organizada e Pan- uma comissão, ao presidente Getúlio Vargas em africanista. Suas contribuições sempre propuseram 1945. Havia para o grupo uma espécie de simbo- uma discussão sobre os modelos sócio-racial- ibe- lismo adentrar num espaço onde os negros não ro-latino. Recebido nos EUA, pelo Sr Bobby Sale, entravam nem como artistas e nem como platéia, presidente dos Panteras Negras, Abdias também apenas como faxineiros. “E ele, para a minha surpre- manteve contato direto com o poeta Amiri Baraka sa, não só apoiou a ideia, como mandou que se reservasse a e Stokely Carmichael, criador conceitual do Black data que eu escolhesse para a estréia do Teatro Negro”. As- Power. Para ele, a militância pró-causa negra eram sim, no dia 8 de maio de 1945 - momento em que as mesmas, a diferença se dava pela liberdade de o mundo vivia a tensão da segunda guerra mundial expressão conquistada nos Estados Unidos para com as forças nazistas – o TEN estreava o seu pri- lutar sem “a mordaça da democracia racial de esquerda ou meiro espetáculo no Teatro Municipal, do Rio de de direita no Brasil”. Janeiro. A experiência desenvolvida com o TEN, aqui “O Teatro Experimental do Negro foi o primeiro ele- no Brasil, rendeu-lhe o convite como professor mento do movimento afro-brasileiro a ligar, na teoria e na 5 NASCIMNETO, Elisa Larkin. Pan-africanismo na Améri- 3 Idem. p. 78. ca do sul. Rio de Janeiro: Editora Vozes/Ipeafro. 4 Ibidem. p.116. 6 SEMOG, Elé. Abdias Nascimneto: o griô e as muralhas. p. 128 191 Repertório, Salvador, nº 17, p.190-194, 2011.2 visitante na Yale School of Drama e a Wesleyan PRÊMIOS E ORDEM DO MÉRITO10 University, em Middletown, Connecticut. A Uni- versidade do Estado de Nova York, em Búfalo, Em 2001, o Centro Schomburg de Pesquisa convidou-o como professor associado, no Depar- das Culturas Negras, Biblioteca Pública Municipal tamento de Estudos Porto-Riquenhos e, após dois de Nova York em Harlem, entrega-lhe o Prêmio anos, foi promovido a professor catedrático. Tam- da Herança Africana Mundial. Recebe o prêmio bém foi professor no Departamento de Línguas UNESCO na categoria “Direitos Humanos e Cul- e Literaturas Africanas da Universidade Obafemi tura” (2001) e o Prêmio Comemorativo da ONU Awolowo, Ilé-Ifé, Nigéria (1976-77). por Serviços Relevantes em Direitos Humanos A contínua denúncia sobre o racismo no Brasil (2003). feita por Abdias fora do país gerava certo senti- No Ano Internacional de Celebração da Luta mento de ira e constrangimento para os dirigentes contra a Escravidão e de sua Abolição (2004), a brasileiros, “na ânsia de tornar invisíveis, inverossímeis e UNESCO cria o prêmio único Toussaint Louver- extemporâneos as denúncias sobre o cotidiano de opressão, ture para reconhecer dois intelectuais ativistas, Ab- pobreza e exclusão impostas aos afro-brasileiros por séculos dias Nascimento e Aimé Cesaire, que dedicaram a fio, empenhou-se de todas as formas a tentativa de calar o suas vidas à luta contra o racismo e a discriminação professor Abdias Nascimento”7, depõe seu biográfo e racial. amigo Elé Semog. Em 2006, o Presidente do Brasil, Luiz Inácio Eleito vice-presidente do II Congresso de Cul- Lula da Silva, condecora Abdias Nascimento com tura Negra das Américas, no Panamá (1980), che- a Ordem do Rio Branco no grau de Comendador. gou ao Brasil em 1981 com a missão de organizá- Em 2007, o Ministério da Cultura lhe outorga a lo. Fundou o IPEAFRO – Instituto de Pesquisas Grã-Cruz da Ordem do Mérito Cultural; em 2009 e Estudos Afro-Brasileiros (1982), exerceu seu recebe do Ministério do Trabalho a Grã Cruz da primeiro mandato como Deputado Federal (1983- Ordem do Mérito do Trabalho. Todos os três são 1986) e Senador (1997-2000), voltando-se para as as mais altas honrarias do Governo Federado do causas anti-racistas. Em 1999, assumiu a nova Se- Brasil em suas respectivas áreas. cretaria de Direitos Humanos e Cidadania do Go- O Conselho Nacional de Prevenção da Discri- verno do Estado do Rio de Janeiro. minação, do Governo Federal do México, outorga- “Eu tinha um contato direto com a pobreza, morando lhe prêmio em reconhecimento à sua contribuição na pobre Penha daquela época, mas foi o Abdias que me destacada à prevenção da discriminação racial na ensinou a compreender as causas daquela pobreza.8” Au- América Latina (2008). gusto Boal . É Doutor Honoris Causa pela Universidade do Abdias do Nascimento se despediu do Ayê rumo Estado do Rio de Janeiro; Universidade Federal da ao Órum no dia 24 de maio deste ano de 2011. Bahia; Universidade de Brasília; Universidade do Aqui deixou um exemplo de vida dedicada à eman- Estado da Bahia; Universidade Obafemi Awolowo, cipação de um país em desenvolvimento, uma obra Ilé-Ifé, Nigéria.