A Política Nuclear Soviética: da Segunda Guerra Mundial ao SALT I

Helena dos Anjos Xavier Rodrigo dos Santos Cassel1

RESUMO: O presente artigo objetiva analisar a política nuclear soviética no período que concerne desde as primeiras iniciativas de pesquisa sobre fissão atômica levadas a cabo pela União Soviética – institucionalmente, a partir de 1942 – até 1972, quando da ocorrência da primeira rodada das Conversações sobre Limites para Armas Estratégicas (SALT I). No trabalho, são apresentados momentos importantes para a doutrina nuclear soviética, tais como o estabelecimento do primeiro programa de pesquisa na área, os primeiros testes nucleares realizados, o desenvolvimento da bomba de hidrogênio, a morte de Stalin em 1953, e a consequente reorganização do aparato burocrático encarregado do programa nuclear. Paralelamente, visa-se à apresentação dos condicionantes que levaram a União Soviética a desenvolver um programa nuclear próprio, ressaltando a necessidade de solidificar e proteger o Estado contra a ameaça imediata representada pelos Estados Unidos. PALAVRAS-CHAVE: Bomba Atômica. União Soviética. Guerra Fria. Programa Nuclear.

1 Graduandos do 6º semestre de Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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1 Introdução

A nível estatal, a política nuclear da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), previamente à deflagração da Segunda Guerra Mundial, era pequena ou inexistente. Apenas alguns acadêmicos e físicos, de maneira indepen- dente, desenvolviam pesquisas relacionadas à temática da fissão nuclear. Com o escalonamento do conflito, no entanto, e frente a um cenário no qual as nações ocidentais já empenhavam esforços para o desenvolvimento de tal tecnologia, a URSS, liderada à época por Stalin, passara a estabelecer postos dedicados à pesquisa nuclear. Mesmo assim, foi apenas após os bombardeios de Hiroshima e Nagasaki por parte dos Estados Unidos da América (EUA) que os soviéticos observaram o fato de que, no pós-guerra, as bombas atômicas desempenhariam um papel central no (des)equilíbrio da balança de poder internacional, tornando-se prioritário, a partir de então, o estabelecimento de um programa nuclear nacional robusto. Embora tenham iniciado o pós-guerra em grande desvantagem em relação aos EUA, logo os soviéticos foram capazes de organizar as estruturas internas para o seu projeto de construção da bomba atômica. Assim, em 1949, somente quatro anos após o término da guerra, a URSS já realizava o seu primeiro teste nuclear, obtendo sucesso. A partir disso, diversos outros testes foram levados a cabo, e os esforços relacionados à tecnologia atômica já vislumbravam a bomba de hidrogênio. Conforme será evidenciado posteriormente, no entanto, com a morte de Stalin, em 1953, houve uma reorganização burocrática no comando do projeto nuclear soviético, o que gerou um modesto esvaziamento durante um período de dois anos. Com a posse de Efim Slavsky no Ministério de Construção de Máquinas Médias, órgão encarregado do programa nuclear, a produção voltaria, e, até 1986, seria verificada uma expansão anualmente constante do arsenal soviético. O presente artigo, portanto, além de explorar em detalhes o contexto acima descrito, também visa à elucidação dos motivos pelos quais a União Soviética opta pelo desenvolvimento do referido programa nuclear robusto, isto é, um programa que fosse capaz de se equiparar – ou, até, sobrepassar – ao estadunidense. Para tanto, há de se entender o contexto histórico no qual tal fenômeno estava inserido: nomeadamente, a Guerra Fria, momento no qual dois sistemas econômico-sociais disputavam influência global. Nesse ínterim, o desenvolvimento de uma doutrina

9 REVISTA PERSPECTIVA nuclear soviética estava relacionado à necessidade de proteger a nação de forças externas, as quais buscavam não somente o monopólio de poder internacional à época, mas também a destruição das bases ideológicas sobre as quais o Estado e a sociedade soviéticos estavam assentados. Para tanto, o texto está estruturado em três eixos de desenvolvimento. O primeiro busca descrever as primeiras iniciativas soviéticas acerca da pesquisa no campo nuclear, evidenciando como o Ocidente influenciou tal dinâmica e apontando os fatores internos que restringiam uma produção nuclear soviética em larga escala até então. Posteriormente, o artigo apresenta o contexto do imediato pós-Segunda Guerra Mundial, quando Stalin opta pelo total desenvolvimento de um programa nuclear robusto. Por fim, visa-se ao entendimento das razões pelas quais a União Soviética embarcou em tal programa, apontando, também, os efeitos de tal movimento para a política externa do país na segunda metade do século XX.

2 Primeiros Esforços Soviéticos na Pesquisa Nuclear

Ao início da Segunda Guerra Mundial, em 1939, físicos de ambas as partes em conflito – do Eixo e dos Aliados – já possuíam conhecimento acerca da possi- bilidade de utilizar a tecnologia de fissão nuclear como uma arma de guerra. Ainda era desconhecida, no entanto, a forma específica de execução de um ataque nuclear. Com a preocupação de que a Alemanha nazista já estaria a desenvolver tal tecno- logia para fins ofensivos, tanto os Estados Unidos quanto o Reino Unido passaram a ambicionar, internamente, programas nucleares próprios (HERRERA, 2006). Foi apenas após o ataque japonês a Pearl Harbor (1941), contudo, que os EUA iniciaram um processo de investimento maciço na área. Os britânicos, por sua vez, embora possuíssem, à época, uma intensidade de pesquisa nuclear que suplantava a estadunidense, logo ficou claro que o esforço industrial demandado para o desenvolvimento prático da nova tecnologia seria incompatível com a sua economia restrita em tempos de guerra. Como resultado, em 1942, inicia-se um esforço conjunto – contando, também, com a contribuição do Canadá – para a produção de explosivos baseados na tecnologia de fissão nuclear, com a preocu- pação de o fazer antes da Alemanha. A iniciativa, denominada Projeto Manhattan, obteve o seu primeiro explosivo detonado em 1945, no Novo México, sendo este

10 A Política Nuclear Sóviética: Da Segunda Guerra Mundial ao SALT I o primeiro teste nuclear da humanidade – denominado Experiência Trinity. Os incidentes de Hiroshima e Nagasaki viriam a ocorrer um mês depois, também em 1945 (GROVES, 1983). Ao observar o conjunto de Estados envolvidos no Projeto Manhattan, desprende-se a conclusão de que houve uma intenção estadunidense e britânica de alienar a União Soviética (URSS) – o outro ator no comando dos Aliados – das novas tecnologias nucleares sendo desenvolvidas à época. Os soviéticos, entretanto, possuíam acesso a relatórios de inteligência que descreviam avanços tecnológicos na área, os quais eram disponibilizados por espiões do país infiltrados no Projeto Manhattan. Stalin, por outro lado, centrado nos esforços imediatos da guerra, ainda permanecia cético quanto à inteligência coletada, reconhecendo que os relatórios acerca da bomba atômica possuíam desvios propagandísticos e alegando que a URSS não estaria prestes a desenvolver tal forma de “superbomba”. (CHIKOV, 1991, p. 43). Somado a isso, se Stalin já se demonstrava relativamente alheio às discussões sobre o poder nuclear, o escalonamento da guerra, agora atingindo diretamente o espaço soviético, viria a intensificar tal disposição. Nomeadamente, em 22 de junho de 1941, quando da deflagração da Operação Barbarossa – invasão da União Soviética pelas nações do Eixo –, os soviéticos passam a se empenhar em combater a ofensiva nazista em seu território. Como um resultado imediato, quais- quer pesquisas no campo da fissão nuclear foram desmobilizadas até o final do referido ano, de maneira que diversos físicos e químicos, anteriormente dedicados à pesquisa nuclear, tiveram seu foco realocado para funções relacionadas à guerra convencional (COCHRAN; NORRIS; BUKHARIN, 1995). Em 1942, embora já com o fracasso da Alemanha na Operação Barbarossa, a Frente Oriental da Segunda Guerra Mundial continuava operante, e assim se manteria até a derrota do Eixo em 1945. O desenvolvimento da atividade acadê- mica soviética, no entanto, mesmo que enfraquecido, viria a demonstrar sinais de retomada rapidamente. Assim, já em 1942 – nem um ano após o término da invasão nazista – pesquisadores da URSS passaram a notar que estava havendo um esvaziamento na divulgação científica sobre o tema da fissão nuclear por parte de alemães, britânicos e estadunidenses, fato que os colocou em alerta para a

11 REVISTA PERSPECTIVA possibilidade de tais Estados estarem perseguindo programas nucleares de maneira velada. Dentre tais acadêmicos, destaca-se Georgy Flyorov, físico soviético que escreveu uma carta para Stalin, alertando-o sobre os fatos referidos acima e clamando pelo desenvolvimento nacional de uma bomba de urânio (HOLLOWAY, 1994). Já com a inteligência propiciada pelos espiões infiltrados no Projeto Manhattan e com a suspeita dos acadêmicos sobre a possibilidade do desenvolvimento de programas secretos no Ocidente, o fator que viria a representar o ponto de inflexão para as autoridades soviéticas no que tange à bomba atômica seria evidenciado em abril de 1942. Na ocasião, um assistente de Sergei Kaftanov – presidente do Conselho Técnico-Científico da URSS – recebera um caderno capturado de um oficial alemão; nele, havia uma lista de materiais necessários para a confecção da bomba. Como conclusão, Kaftanov passou ao Comitê de Defesa do Estado (Gosu- darstvenny Komitet Oborony - GKO, presidido por Stalin) a inteligência que apontava para o interesse alemão em sistemas nucleares ofensivos (HOLLOWAY, 1994). Cochran, Norris e Bukharin (1995) apontam que, a partir disso, Kaftanov enviou uma carta ao GKO recomendando a criação de um centro de pesquisa nuclear; tal recomendação teria sido aceita por Stalin em julho, ainda em 1942. Iniciam-se, portanto, os esforços para a institucionalização de uma pesquisa estatal sobre fissão nuclear, a qual seria dirigida pelo físico soviético . Concretizada em fevereiro de 1943, tal iniciativa de pesquisa ainda representava um momento de modéstia do programa nuclear soviético.

3 O Pós-Segunda Guerra Mundial e o Projeto da Bomba Atômica

Como visto acima, quando do final da Segunda Guerra Mundial (1945), os soviéticos possuíam um sério, porém modesto, projeto de pesquisa nuclear. Mesmo tendo conhecimento do sucesso da Experiência Trinity (julho de 1945), ou seja, que os Estados Unidos haviam realizado o primeiro teste com a bomba atômica, a equipe de Kurchatov não sentira a necessidade de intensificar o programa. Os bombardeios a Hiroshima e Nagasaki (agosto de 1945), no entanto, causaram impacto nos soviéticos, cuja liderança, agora, estava convencida de que a bomba atômica desempenharia um papel central nas disputas de poder do pós-guerra.

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Segundo registros históricos, logo em seguida a tais acontecimentos, Stalin teria reunido Kurchatov e Boris Vannikov, Comissário de Munições, no Kremlin e demandado-os a fabricação da bomba atômica “no menor tempo possível”, infor- mando-os de que Hiroshima havia “balançado o mundo e destruído a balança de poder”. (HALLOWAY, 1994, p. 132). Nesse sentido, no imediato pós-guerra, para o líder da URSS, o “esforço de quatro anos de guerra pareceu desperdiçado e o fugaz sentimento de vitória tornou-se ameaçado, haja vista a emergência de um novo fator determinante na política mundial”. (COCHRAN; NORRIS; BUKHARIN, 1995, p. 25). Em última instância, a situação corrente – apenas os Estados Unidos como possuidores da bomba – era intolerável. A única opção, dessa forma, era o desenvol- vimento de um programa rápido e massivo, com alto investimento estatal. Assim, apenas dez dias após Nagasaki, em 20 de agosto de 1945, o GKO adotou uma decisão que estabelecia um Comitê Especial para “resolver o problema nuclear” soviético. Lavrenti P. Beria, chefe da polícia secreta, tornou-se o diretor do comitê, o qual passou a empreender pesquisa e produção em larga escala logo após o seu estabelecimento. Em 1947, iniciou-se a construção de um local para o teste da bomba atômica, sendo escolhido um território no Cazaquistão. Em 1949, toda a infraestrutura para a realização do teste já estava em ordem. Em agosto do mesmo ano, o primeiro teste ocorria com sucesso. Após, até 1953, uma série de outros testes foram levados a cabo. Se, na primeira tentativa, a tecnologia utilizada na bomba era quase idêntica ao projeto estadunidense, já em 1951 “as bombas projetadas pelos soviéticos eram duas vezes mais poderosas e muito mais leves do que o ‘estilo estadunidense’ de design”. (COCHRAN; NORRIS; BUKHARIN, 1995, p. 29). Com tais etapas ultrapassadas, os soviéticos, agora, logravam atingir o próximo patamar: desenvolver e testar uma bomba de hidrogênio, isto é, uma bomba que operasse por meio da fusão nuclear. Ao contrário do contexto da bomba de fissão nuclear, no qual a URSS adentrara a corrida armamentista em desvantagem, as pesquisas sobre a bomba de hidrogênio avançavam simultaneamente para os sovi- éticos e para os estadunidenses. Na verdade, de acordo com cientistas e oficiais da

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URSS2, em mais um teste, a União Soviética teria detonado a primeira bomba de hidrogênio do mundo, encerrando o que era chamado de “segundo monopólio” dos Estados Unidos (HEWLETT; HOLL, 1989). Um fato, no entanto, viria a causar amplas mudanças no programa nuclear soviético: a morte de Stalin (1953). Com isso, alterações burocráticas afetaram a raiz da iniciativa, abrindo um processo de reorganização estrutural. A primeira e mais significativa mudança, para além da ausência do próprio Stalin, foi a prisão e o assassinato do ex-dirigente Lavrenti Beria. Na visão da equipe engajada no desenvolvimento do programa nuclear, o afastamento de ambos havia deixado a iniciativa “verdadeiramente órfã”. O sucessor de Stalin, Georgi Malenkov, por exemplo, não possuía conhecimento acerca da bomba de hidrogênio soviética. Kurchatov e Vyacheslav Malyshev – substituto de Beria apontado pelo próprio Malenkov – tiveram a tarefa de repassá-lo todas as informações essenciais (GOLO- VANOV, 1990). De acordo com Cochran, Norris e Bukharin (1995), isso seria uma fiel representação de que a era de gerenciamento do programa de maneira centralizadora e por parte do alto escalão do partido estava sendo substituída por outra que concedesse maior independência ao Ministério de Construção de Máquinas Médias, responsável pelo programa nuclear. Em seguida, Malenkov e, consequentemente, Malyshev seriam forçados a renunciar seus cargos (1955). Malenkov logo fora substituído por Nikita Khrushchev. A situação do ministro responsável pelo programa nuclear soviético, por outro lado, tornou-se extremamente inconstante. Em um período de dois anos, houve três autoridades à frente da iniciativa (Zaveniagin, de 1955 a 1956, Boris Vannikov, por alguns meses de 1957, e M.G. Pervukhin, de maio a julho de 1957). A situação somente seria normalizada quando da posse de Efim Slavsky, que traria consigo a era de estabilidade de volta, permanecendo no cargo até 1986. Nos quase trintas anos à frente do ministério – e a quase totalidade da Guerra Fria – Slavsky manteve um crescimento constante dos arsenais nucleares soviéticos, com o pico de 45.000 ogivas em 1986 (COCHRAN; NORRIS; BUKHARIN, 1995).

2 No contexto da corrida armamentista e das disputas da Guerra Fria, analistas estadunidenses desconsideraram o teste termonuclear soviético de 12 de agosto de 1953 como a primeira bomba de hidrogênio a ser testada, devido a especificidades técnicas relacionadas à alegação de que grande parte da explosão teria sido gerada pela fissão de camadas de urânio (COCHRAN; NORRIS; BUKHARIN, 1995, p. 29).

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4 Os Efeitos da Tecnologia Nuclear nas Relações Soviéticas Durante a Guerra Fria

Entende-se o desenvolvimento de programas de energia nuclear e, conse- quentemente, seu aperfeiçoamento na constituição de armas desse tipo, como um fenômeno revolucionário na política internacional (BELL, 2016). Como visto anteriormente, a utilização desse tipo de tecnologia foi fundamental, no final da Segunda Guerra Mundial em 1945, para a projeção de forças dos Estados Unidos da América, ao pautar um novo tipo de relação no Sistema Internacional, permeada pela ameaça da guerra nuclear. Sobretudo, como foi indicado anteriormente, identifica-se no ato estaduni- dense de utilização desse novo tipo de arma, com tamanho poderio de destruição, uma clara estratégia de demonstração de suas capacidades de extermínio nos conflitos futuros. Não se pode esquecer, nesse sentido, a divergência ideológica que existia entre os Estados Unidos e, até então, sua aliada no conflito, União Soviética. Como visto posteriormente, com o desfecho da Segunda Guerra, os soviéticos passariam a ser vistos como os novos inimigos norte-americanos, colocando-os no centro alvo do poderio militar desenvolvido até então, incluindo ogivas nucleares de poder de destruição semelhante ou até maior daquelas usadas em Hiroshima e Nagasaki. Conforme Brites (2012), o governo estadunidense inclusive elaborou diversos planos de ataque nuclear à União Soviética pós-Segunda Guerra Mundial. Entre eles, a autora cita o Totality (1945), Charioteer (1948) e o Fletwood (1948), os quais giravam em torno da utilização de cerca de 300 ogivas a serem lançadas em centros estratégicos e vitais do Estado soviético, tais como instalações industriais e administrativas. Portanto, o projeto nuclear desenvolvido pela União Soviética deve ser compreendido nesse contexto e, acima de tudo, enquadrado nas diretrizes de política externa as quais guiavam o Estado desde sua constituição. Deve-se evidenciar aqui, a título de exemplo, a política defendida por Stalin desde sua posse em relação ao “Socialismo num só país”. O líder soviético entendeu, ao formular tal plano de ação, que, para a finalidade de manter viva a filosofia ideológica que dera base conceitual ao movimento revolucionário soviético, era preciso defender e, sobretudo,

15 REVISTA PERSPECTIVA consolidar sua maior referência de sucesso, a União Soviética (MCDERMOTT, 2006; BRITES, 2012). O entendimento dessa lógica é de suma importância para entender a política externa do Estado soviético e, nesse contexto, suas motivações para a constituição e o desenvolvimento de armamento nuclear – visto o sentimento de constante ameaça declarado pelos dirigentes do governo dos Estados Unidos e seus aliados, principalmente em relação à expansão da ideologia revolucionária e seu núcleo, a União Soviética. Conforme Brites (2012), essa estratégia defensiva, logo, visa a garantir a proteção do modelo político, econômico e social inaugurado pela Revo- lução de Outubro. Ainda, defender o estabelecimento dos valores os quais serviram de guia para a formação do projeto revolucionário, adverso à ordem capitalista estabelecida anteriormente. Assim, frente ao sucesso do projeto nuclear soviético – cujo primeiro teste se deu em 1949 –, pode-se observar as bases clássicas características do período denominado Guerra Fria. Entende-se aqui a existência de duas superpotências de poderio nuclear, de bases ideológicas divergentes e conflitantes, as quais estabe- lecem durante o conflito, dois polos de poder antagônicos. Denota-se ainda um cenário de competição internacional, liderado pelos Estados Unidos (BRITES, 2012), em busca da autoafirmação de seu modelo econômico e do isolamento de sua adversária, a União Soviética. Assim, percebe-se que, durante a segunda metade do século XX, todas as relações desenvolvidas no Sistema Internacional eram permeadas pela bipolaridade estabelecida com as duas superpotências e objetivo de conflito entre essas. A tecnologia nuclear, nesse sentido, coloca-se numa posição central enquanto característica do embate descrito. Segundo Holloway (2010), esse tipo de arma- mento militar foi tão fundamental para a história da Guerra Fria que seria até difícil separar o conflito e a existência desse tipo de poderio nuclear. Entende-se, por essa sentença, que as relações dos dois polos de poder do período eram interpostas pela tensão da utilização dessas armas, visto suas capacidades de destruição em massa. O termo cunhado que engloba essa definição é o da “dissuasão nuclear”, ou seja, caracteriza o fato de que União Soviética e Estados Unidos reconhecem o poderio nuclear um do outro e não tomam iniciativas de ataque direto pela existência da

16 A Política Nuclear Sóviética: Da Segunda Guerra Mundial ao SALT I possibilidade de retaliação em mesmo ou maior nível. Nesse sentido, tanto quanto o conflito ideológico e suas repercussões na periferia do sistema, a existência do arsenal nuclear é basilar para entender as relações externas da União Soviética durante o período. Atribui-se, enfim, tal status de importância sistêmica à União Soviética graças a política externa elaborada e conduzida por Stalin, a qual colocou o Estado revo- lucionário no patamar de superpotência e estabeleceu um equilíbrio de forças em relação aos norte-americanos, pelo menos quando se falando do território europeu (BRITES, 2012). Observa-se tal fato essencialmente através do estabelecimento e expansão sobre as zonas de influência no leste do continente. No entanto, o reconhecimento desse equilíbrio no teatro europeu e as ameaças de guerra nuclear e destruição mútua através dos poderios militares, não impediram as duas superpotências de participar – limitadamente – de conflitos na periferia do sistema para defender seus modelos políticos (HALLIDAY, 1994). Observa-se essa situação na Guerra da Coreia (1950-1953) e na Guerra do Vietnã (1955-1975), nas quais Estados Unidos e União Soviética se envolveram através do envio de armas e soldados para os conflitos. Dessa maneira, ainda poderiam defender seus modelos ideológicos antagônicos em guerras limitadas e sem a grande ameaça de utilização da tecnologia nuclear. Foi com a morte de Stalin, em 1953, que passou-se a observar na União Soviética uma verdadeira ênfase em relação ao desenvolvimento de seu arsenal nuclear (HOLLOWAY, 2010). Seu sucessor, Khrushchev, desenvolveu uma nova estratégia na qual o armamento nuclear constituía importância central na posição soviética em relação à Guerra Fria, baseada no uso preemptivo do teatro nuclear, de modo que a defesa tenha se tornado apenas um conceito de nível tático (BATTI- LEGA, 2004). Ainda durante a liderança de Khrushchev deu-se um dos maiores momentos de tensão e proximidade de deflagração de uma guerra de proporções nucleares – a Crise dos Mísseis de Cuba, em 1962. A problemática dessa situação gira em torno da instalação de mísseis balísticos soviéticos no território cubano – com objetivo de proteger o regime comunista cubano, ameaçado pelos estadunidenses – e da

17 REVISTA PERSPECTIVA represália do governo norte-americano em relação a essa atitude, visto a presença massiva de armamentos a 145 km de sua costa (HOLLOWAY, 2010). Percebe-se, nesse sentido, que embora houvesse um poder coercitivo e dissuasório entre as duas superpotências – o que poderia limitar, num primeiro momento, as possibilidades de uma guerra nuclear –, a ameaça da destruição mútua e da guerra nuclear era uma constante estratégia utilizada como forma de barganha nos conflitos envolvendo União Soviética e Estados Unidos. Segundo Holloway (2010), ainda, ao se aumentarem as tensões nucleares, tal qual aconteceu na Crise dos Mísseis, tanto um acidente quanto uma ação não autorizada, por exemplo, poderiam levar ao perigo de perder o controle da situação e deflagrar um conflito de grandes proporções. Foi somente a partir da administração de Brejnev, depois da queda de Khrushchev, que passaram a se observar indícios da tentativa de coexistência pacífica com a outra superpotência. Conforme Brites (2012), houve foco no aprimoramento das relações de cooperação com o Terceiro Mundo e os governos de esquerda que chegavam ao poder. Ainda, de acordo com a autora, identifica-se uma preocupação em intensificar a articulação entre os países que faziam parte do Pacto de Varsóvia e do COMECOM (na zona de influência soviética). Em relação aos programas nucleares, a liderança de Brejnev entendeu que a utilidade de tais armamentos havia sido superestimada, bem como reconheceu que a quantidade presente no arsenal norte-americano poderia levar a “perdas irreparáveis” (BATTILEGA, 2004). Assim, conforme o autor, juntamente às delimitações de estratégias para consolidar uma política permanente de paz com os estadunidenses, procurou-se, para fins de defesa, o delineamento de um plano sob uma nova perspectiva de conflito, considerando-se ainda as novas tecnologias submarinas e aéreas que estavam sendo desenvolvidas. Nesse contexto, identificam-se os esforços do Estado soviético liderado por Brejnev no estabelecimento da coexistência pacífica com os norte-americanos, visando ao “desarmamento nuclear, à proibição de testes nucleares e à manutenção da paz”. (BRITES, 2012, p. 60). Assim, anteviu-se o período da Détente, marcado pela diminuição dos conflitos e das tensões entre os polos antagônicos do Sistema Internacional. Para tanto, a autora evidencia três principais tratativas as quais

18 A Política Nuclear Sóviética: Da Segunda Guerra Mundial ao SALT I tangenciam esse objetivo soviético sendo eles o Tratado de Moscou, o Tratado de Não-Proliferação e o SALT I. Logo, como apontado em Brites (2012), o primeiro tratava-se do banimento da realização de testes nucleares no território soviético. O segundo, o qual entrou em vigor apenas em 1970, fazia referência a não proliferação de armas de tipo nuclear, ou seja, aqueles detentores dessa tecnologia seriam proibidos de transferir o conhecimento para aqueles que ainda não houvessem desenvolvido um programa nuclear, a fim de não auxiliá-los. Por fim, o SALT I (Strategic Arms Limitation Talks I), relaciona-se às conversas envolvendo União Soviética e Estados Unidos para a realização de um acordo que abordasse a limitação do uso de armas estratégicas entre as duas superpotências. Enfim, essas iniciativas assinalam, como mencionado anteriormente, o período da Détente e a diminuição dos conflitos entre as superpotências durante determinado período da Guerra Fria. A partir disso, denota-se uma diretriz muito importante da política externa soviética a qual se refere à coexistência pacífica. Como se observa ao longo dessa seção, grande parte do envolvimento soviético no teatro de disputas internacionais e, para a finalidade da presente reflexão, a constituição de seu programa nuclear, estão ligados à estrita reação ou defesa de sua filosofia política de modelo de Estado e modo de produção frente à ameaça ocidental. Logo, a partir da Détente identifica-se a pró-atividade do governo soviético em exercer a coexistência pacífica com os mesmos objetivos que guiam suas atividades no Sistema Internacional: a proteção de seu Estado, cerne da Revolução.

5 Considerações Finais

Com o final da Segunda Guerra Mundial houve a reorganização do Sistema Internacional em torno do embate ideológico entre Estados Unidos e União Soviética. Desse modo, pode-se observar que todas as relações dadas a partir do final do conflito, são permeadas pela dinâmica de hostilidades estabelecida entre as duas superpotências. Essa situação remonta os encaminhamentos para o final do conflito mundial, visto a apresentação norte-americana, durante um ataque à Hiroshima e Nagazaki, no Japão, de sua nova arma de destruição em massa: a bomba atômica. Sobretudo,

19 REVISTA PERSPECTIVA deve-se entender essa situação no contexto de uma ameaça ao Estado soviético que, com as tratativas do final do conflito, deixava de ser um aliado estadunidense e passava, declaradamente, a posto de inimigo. Assim, a partir da presente reflexão, cujo objetivo é pensar abrangentemente a política externa soviética e seu programa nuclear, destacam-se três pontos essenciais para o entendimento do problema proposto – a partir da definição do uso instrumental da política nuclear a fim de promover as diretrizes guias do Estado soviético. A evidência de um princípio norteador da política soviética desde sua formação, qual seja a proteção do Estado como símbolo do sucesso revolucionário e da implementação do socialismo. Na conjuntura posta, logo, é possível entender o posterior desenvolvimento do programa nuclear soviético através do destaque desse traço marcante da política externa. Nessa situação, o desenvolvimento do poderio militar soviético constituiu um posicionamento reativo e defensivo em relação às ameaças ocidentais. Nesse sentido, deve-se compreender, ainda, a União Soviética como o núcleo da Revolução socialista e, portanto, sua consolidação, fortalecimento e, nesse momento, defesa; atravessam a barreira da simples proteção da existência de um Estado. Conclui-se, nesse sentido, que o Estado soviético é a base da ideologia e do sucesso do modo de produção socialista em seus desdobramentos econômicos, políticos e sociais, os quais são objetos de proteção de sua política externa. Ainda, percebe-se, através do sucesso da constituição do programa nuclear soviético, a inauguração de um novo tipo de relação no Sistema Internacional, entreposta pelo conflito Leste-Oeste, junto a uma ordem determinada pela capa- cidade de destruição proveniente desse tipo de armamento. A Guerra Fria, como foi visto, constitui-se essencialmente em torno das capacidades dissuasórias das superpotências nucleares – as quais compõem dois polos antagônicos de poder –, de modo que o conflito nunca se dê diretamente entre elas, embora sejam permeados pelos antagonismos ideológico dos dois sistemas em competição. Deve-se ressaltar, por fim, outra diretriz marcante da política externa sovié- tica, a qual só pode se desdobrar a partir da segunda metade da década de 1960, à beira de uma quase guerra nuclear. A coexistência pacífica havia pautado a atuação externa soviética em conjunto com a reação e defesa às ameaças ocidentais, de modo

20 A Política Nuclear Sóviética: Da Segunda Guerra Mundial ao SALT I que se entenda tais princípios norteadores como complementares. Nesse sentido, observa-se, nos anos que antecederam o período de Détente, a pró-atividade dos líderes soviéticos em defender a manutenção da paz com os Estados Unidos da América, o que se refletiu principalmente na sua política militar e nuclear – através da limitação e da não proliferação.

Soviet Nuclear Policy: from the Second World War to SALT I

ABSTRACT:The present article aims at analyzing Soviet nuclear policy in the period since the first atomic fission research initiatives carried out by the – institutionally, from 1942 – until 1972, when the first round of Strategic Arms Limitation Talks (SALT I) took place. In this study, relevant moments for the Soviet nuclear doctrine are presented, such as the establishment of the first research program in the field, the first nuclear tests carried out, the development of the hydrogen bomb, the death of Stalin in 1953, and the consequent reorganization of the bureaucratic apparatus in charge of the nuclear program. At the same time, it aims at presenting the conditions that led the Soviet Union to develop its own nuclear program, stressing the need to solidify and protect the State against the immediate threat posed by the . KEYWORDS: Atomic Bomb. Soviet Union. Cold War. Nuclear Program.

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