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Exemplar encartado no jornal A União apenas para assinantes. Nas bancas e representantes, R$ 6,00 Conheça ahistória por trás de um dos filmes mais badalados acompanhou seis atores paraibanos ao Festival de Cannes de 2019, das gravações no interior do aemoção RN que União A Jornal Ano LXX -Nº LXX Ano 4 Suplemento Junho -2019Junho literário do literário R$ 6,00 R$

6editorial

Viva o cinema! Em meio a poemas, livros, Vencedor do final de agosto no Brasil, Ba- análises e contos, o cinema curau já conquistou, até aqui, ganha destaque nesta edi- Prêmio do Juri um lugar de destaque na ção por um motivo simples: em Cannes, história do cinema nacional. Bacurau, o novo filme do per- Mais do que isso: é uma inje- nambucano Kleber Mendon- 'Bacurau' é ção de ânimo nas artes parai- ça Filho, codirigido por Ju- banas, afinal ocast paraibano liano Dornellas, venceu uma uma injeção se destaca por número e ta- das competições de maior de ânimo lento em meio a um elenco prestígio no mundo da séti- majestoso por natureza. ma arte, o Prêmio do Juri do para as artes Essa participação acaba Festival de Cannes. E a Paraí- por coroar o grande mo- ba está nele, muitíssimo bem na Paraíba, mento em que vive o cine- representada, tanto na frente cujo cinema ma paraibano, que neste quanto por trás das câmeras. ano de 2019 completa 100 A reportagem que você completa, em anos, como atesta o ideali- lê a seguir é um passeio pe- zador do Festival Aruanda, los bastidores da produção, 2019, 100 anos o professor Lúcio Vilar, em conduzido tanto por Juliano, um texto que sobrevoa a que atendeu a reportagem, produção atual. quanto por Thardelly Lima, De quebra, a professora Suzy Lopes, Buda Lira, In- Vitória Lima nos honra com grid Trigueiro, Danny Bar- um olhar social sobre a obra bosa e Jamila Costa, e pelo próximo à divisa entre a de Kleber Mendonça Filho, cineasta Ian Abé, que aca- Paraíba e o Rio Grande do fechando com chave de ouro bou por fazer sua estreia Norte, até a emocionante a trinca cinematográfica do como continuísta na produ- passagem do elenco pelo ba- Correio das Artes deste mês. ção pernambucana. dalado Tapete Vermelho na O grupo narra as impres- Riviera Francesa. O editor sões do set, localizado bem Previsto para estrear no [email protected]

6 índice , 14 @ 20 2 24 D 39 áfrica poesia 'a peste' clássico Adelto Gonçalves revela Tomando como base o Escritora Raquel Naveira João Batista de Brito peculiaridades de livro que livro 'Dedal de Areia', traça um paralelo entre as analisa 'Desencanto', de disseca as personagens o professor e poeta obras de Alberto Camus David Lean, considerado que povoam a obra Hideberto Barbosa Filho e Antonin Artaud e a um dos cem melhores da escritora Paulina analisa a poética de atuação de Rubens Alves filmes britânicos de todos Chiziane. Antônio Brasileiro. Correia. os tempos.

SECRETARIA DE ESTADO DA COMUNICAÇÃO INSTITUCIONAL Empresa Paraibana de Comunicação S.A. Naná Garcez de Castro Dória DIRETORA PRESIDENTE Albiege Léa Fernandes Maria Eduarda dos Santos Figueiredo DIRETORA DE MÍDIA IMPRESSA DIRETORA DE RÁDIO E TV Correio das Artes Uma publicação da EPC BR-101 Km 3 - CEP 58.082-010 Distrito Industrial - João Pessoa/PB

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dor do festival internacional de Bordeux, na França. “Vocês são os atores de Bacurau, não são?”, quis saber o francês, que recebeu Bacurau de volta um espantado “oui” de Thardelly e um convite de Buda voa longe para sentar-se à mesa. Apesar de já ter passado por Atores paraibanos revelam os bastidores do filme Pernambuco, onde integrou o júri de uma das edições do Festi- brasileiro mais importante de 2019 e a emoção de val Janela Internacional de Cine- vê-lo no Festival de Cannes, de onde o longa saiu ma, Reneaud não fala português, consagrado com o Prêmio do Juri nem tão pouco os brasileiros fa- lam francês. “Inglês?’, sugeriu o c

André Cananéa [email protected]

m um café, em Cannes, um crítico de cinema francês re- conheceu alguns dos atores que deram brilho ao filme Ba- curau. Ele fora exibido dias antes, durante a avant-premiére do longa-metragem de Kleber Mendonça Filho e Juliano E Dornelles, em um dos mais importantes festivais de cine- Aponte o leitor de ma do mundo. Os atores eram os paraibanos Buda Lira, QR Code do seu Suzy Lopes e Thardelly Lima, além do pernambucano Ru- smartphone e assista bens Santos, que foram abordados por Nate Reneaud, cura- ao teaser de ‘Bacurau’

fotos: Victor Jucá

Tony Jr (Thardelly Lima), Sandra (Jamila Costa), Luciene (Suzy Lopes) e Claudio (Buda Lira): viagens de João Pessoa a Parelhas e envolvimento com a comunidade no set de ‘Bacurau’

| João Pessoa, junho de 2019 4 Correio das Artes – A UNIÃO c

foto: Victor Jucá c crítico. “No english”, rebateu o bem-humorado Thardelly. Foi então que todo mundo sacou um aplicativo de tradução do celular para que eles pudessem trocar uma meia-dúzia de palavras, sem muito sucesso. Mas se nos bastidores, Re- neaud e parte do elenco não conseguiram se entender, na projeção do filme, a comunicação foi plena e total. “Você e Juliano conseguiram captar algo que ressoará muito fortemente com o contexto atual”, assinalou o crítico francês em carta a Kléber Mendonça, compartilhada pelo próprio autor com o Correio das Artes. “Essa é uma nova abor- dagem da ficção científica e da sobrevivência, enraizada no con- Fazendo história: Danny Barbosa, texto brasileiro. ‘Bacurau’ não é primeira atriz trangênero da Paraíba a estrelar um longa- esmagado pelo modelo america- metragem e a pisar no Tapete no ou de Hollywood. Se eu tives- Vermelho do Festival de Cannes se que ir mais longe, eu diria que é um filme profundamente bra- sileiro de resistência cultural”, A Paraíba forneceu leiros mais importantes dos últi- acrescentou mais adiante. mos tempos. E olha que ele ainda Dali a alguns dias, Bacurau seis atores, um nem estreou! sairia consagrado do Festival de Descrito como uma mistura Cannes com o prestigiado Prê- continuísta e música de faroeste e ficção científica mio do Juri. O filme brasileiro, e previsto para chegar às telas rodado no Seridó do Rio Grande nacionais no dia 29 de agos- do Norte, quase na divisa com a de Geraldo Vandré to, o filme começa com a mor- Paraíba, e com nada menos que te de Dona Carmelita (vivida seis atores e um continuísta do para a trilha sonora pela cantora Lia de Itamaracá). Estado, além de música de Geral- Dias depois dos moradores da do Vandré na trilha sonora, ago- do filme que levou pequena (e fictícia) Bacurau da- ra integra uma seleta galeria que rem adeus a essa espécie de ma- conta com filmes como O Sétimo o Prêmio do Juri do triarca da comunidade, a tran- Selo (1957), de Ingmar Bergman; quilidade da cidade é abalada A Aventura (1960), de Michelan- com estranhos acontecimentos, gelo Antonioni e Z (1969), de Festival de Cannes que não são revelados, afinal a Costa-Gavras, e entra para a his- surpresa faz parte da experiên- tória como um dos filmes brasi- deste ano cia de assistir ao longa. c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, junho de 2019 | 5 c Filmado no primeiro semes- essa preocupação da codireção. o elenco também contou com In- tre de 2018 no distrito de Barra, As coisas simplesmente se de- grid Trigueiro, Danny Barbosa e a cerca de uma hora de Parelhas, senvolveram naturalmente as- Jamila Costa. no Rio Grande do Norte, a pro- sim, no nascimento da ideia, no Desde de 2003, quando Juliano posta de Bacurau já conta com desenvolvimento do roteiro e, passou a acompanhar as seleções dez anos. “O embrião da ideia por fim, na filmagem e na mon- de elenco nos diversos filmes em surgiu em 2009. Durante esse pe- tagem. Trabalhamos em todas que atuou, ele afirma que é re- ríodo, fizemos muita coisa juntos essas etapas juntos, desde 2009, e corrente a expressiva presença e algumas separados, mas Bacu- foi muito bom”. de atores e atrizes paraibanos. rau sempre esteve presente nas “Sempre observei uma relação nossas conversas”, revela Julia- curiosa de naturalidade e fami- no Dornelles, mencionando seu liaridade com a câmera e a lin- parceiro de direção, Kleber Men- guagem cinematográfica desse donça Filho. “a paraíba tem povo incrível que vem de lá, algo Juliano conta que, nesses dez relação natural que começou como uma suspeita anos, foram necessários alguns mas que hoje posso dizer que é períodos em que os dois se en- com o cinema” uma constatação”, comenta. contraram com a produtora Emi- A vitória de Bacurau em Can- O diretor prossegue: “Acho lie Lesclaux e focaram apenas no nes não é só dos realizadores, que a Paraíba tem uma tradição projeto, para captar recursos e mas de toda a equipe, incluin- muito bonita e inusitada em es- correr atrás de editais, dentro e do seis atores paraibanos que tar sempre produzindo talentos forado Brasil. Até que, em 2017, emprestaram brilho e talento ao nordestinos para o cinema, des- o trio fez um mergulho intensi- longa-metragem de Kleber Men- de Marcélia Cartaxo no clássico vo de oito meses para dar forma donça Filho e Juliano Dornelles. absoluto A Hora da Estrela até à versão final do roteiro de Bacu- Além de Buda, Thardelly e Suzy, nosso Bacurau, que será lançado c rau. “Foi preciso esse tempo para as ideias amadurecerem e chega- rem ao roteiro bem solidificadas. Não considero esses nove anos uma demora. Levantamos o or- çamento e escrevemos um rotei- ro forte. O filme levou o tempo que precisava para acontecer do jeito que eu, Kleber e Emilie con- siderávamos ideal”, avalia. Bacurau, portanto, surgiu quando Kleber lançou Recife Frio (2009), seu elogiado curta-me- tragem do qual Juliano é pro- dutor. De lá para cá, os dois tem trabalhado juntos em diversos projetos, incluindo os dois fil- mes que catapultaram interna- cionalmente o nome de Kleber Mendonça Filho: O Som ao Redor (2012) e Aquarius (2016). Em am- bos, Juliano atuou como diretor de arte. Agora, seu nome brilha, ombro a ombro, com o do amigo de longa data. “Acredito que não exista uma razão determinada para essa codireção”, respondeu Juliano ao ser questionado pela repor- tagem sobre o motivo de haver dois diretores no longa. “Bacurau é resultado de um desejo antigo que eu e Kleber temos de traba- lhar o filme de gênero. O projeto nasceu de um incômodo com- partilhado, de uma observação conjunta de certos aspectos do comportamento humano. Nunca nem pensamos nesse filme com

| João Pessoa, junho de 2019 6 Correio das Artes – A UNIÃO c esse ano. Não acredito em coin- experiência magnífica”, resume nossa casa. E a produção não fa- cidências. Acho que isso deve- Juliano. zia distinção entre ‘estrelas’, por -se à forma do nordestino se A distribuição dos persona- assim dizer, e o elenco de apoio. relacionar com a vida, querendo gens, assim como o ecletismo Tratava todo mundo muito igual, sempre fazer muito com o pouco de tipos que compõem o rol, são como se fosse um só corpo”, que as circunstâncias oferecem”. destacados pelo elenco paraiba- acrescenta o ator. A seleção para Bacurau to- no. “Cada personagem tem seu Ao todo, a produção envolveu mou cerca de dois anos e levou momento dentro da história”, cerca de 800 pessoas, entre equi- o produtor de elenco Marcelo sublinha Ingrid. “A história é pe técnica, atores e figurantes, Caetano a uma extensa pesqui- composta por vários núcleos de escalados entre os moradores da sa por várias partes do país, de personagens e a medida que a própria Barra e Parelhas. O mer- onde teria arregimentado apro- história anda, esses personagens cadinho de Luciene, personagem ximadamente 500 atores. Dessa vão se destacando. Isso foi algo de Suzy Lopes, é o mercadinho peneira, sobraram 60, dos quais muito bem distribuído. Confesso que serve ao povoado. “Quando 35 foram, efetivamente, enviados que não tinha muita noção des- a gente estava gravando, o mer- para o set de filmagem. Em João sa distribuição ao ler o roteiro”, cadinho parava. Quando acaba- Pessoa, os testes aconteceram na acrescenta Suzy. va, ele voltava a atender os mora- Universidade Federal da Paraí- Repleto de atores de Pernam- dores”, descreve a atriz. ba, sob a supervisão de Marcelo buco, Ceará, Bahia e Alagoas, “Era um clima de festa, clima e seu assistente, Kelner Macêdo. além de Estados do Sudeste, de família”, descreve Buda. “Nós Depois dessa primeira fase, os Bacurau conta no elenco com a estávamos gravando com os mo- selecionados foram convidados a veterana atriz Sonia Braga (que radores da cidade e eles tinham bater um papo com os diretores, havia feito Aquarius com Kleber) um senso de compromisso, de que vieram até João Pessoa para e atores estrangeiros, como o ale- responsabilidade, muito grande realizar as entrevistas. “Foi uma mão Udo Kier (o Papa Inocêncio com aquele trabalho”. VIII da série Os Borgias, além de Sem poder revelar muito, In- ter feito vários filmes de Lars grid Trigueiro se limita a dizer Von Trier) e a franco-americana foto: Victor Jucá que o núcleo dela é o de “entre- Alli Willow, radicada há cinco tenimento”. “Eu faço o papel de anos no Rio de Janeiro. Deisy, uma mulher de personali- “Apesar dos estrangeiros, é dade forte e muito corajosa, que um elenco muito brasileiro. Num propicia ‘diversão’ para cidade e dos ensaios, eu disse a Kleber que tem uma importância muito que fiquei muito impressionada grande na virada do filme”, des- com a paleta de cores que tem no creve. elenco: gente branca, negra, gen- Jamila, no papel de Sandra, te sem cor, com vários biótipos, também integra o chamado “nú- gordo, magro, alto, baixo... e ele cleo da diversão”. “Foi muito me disse que foi algo proposital, muito enriquecedor e desafiador, pensado mesmo, afinal o Brasil é é só isso que eu posso dizer da isso”, comenta Suzy. personagem”, responde, entre ri- sos, a atriz nascida em Goiânia (GO) e criada em João Pessoa. Buda Lira também não dá Comunidade se muitos detalhes do persona- envolveu com a gem, Claudio, marido de Ne- linha (Fabiola Lipe). Thardelly produção Lima faz Tony Jr, todos mora- A agenda de trabalho dos ato- dores de Bacurau. res era feita de acordo com as A vida na cidade, no entanto, gravações do núcleo de cada per- não começa sem que Darlene sonagem. Os seis atores se reve- (Danny Barbosa) saiba primei- zavam para viajar de João Pessoa ro. “Ela tem um bar na entrada para Parelhas e, de lá, para Barra. da cidade e todo mundo que “Barra é uma rua só”, descreve chega é percebido primeiro Suzy Lopes. ela. Darlene é uma espécie de Juliano, Emilie e Kleber E lá, a comunidade abraçou sentinela da cidade”, sintetiza (em pé): embrião de com carinho a produção, como Danny, orgulhosa de ter sido ‘Bacurau’ surgiu em 2009 e de lá para cá, atestam os paraibanos. “Tanto a primeira transexual paraiba- o trio produziu dois o pessoal de Parelhas, quanto na a participar de dois longas- clássicos modernos: de Barra, tem um coração muito -metragens (o primeiro foi Seu ‘O Som ao Redor’ e Amor de Volta (Mesmo que Ele ‘Aquarius’ bom”, afirma Buda Lira. “A gente sentia como se estivéssemos na Não Queira), de Bertrand Lira). c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, junho de 2019 | 7 c Cannes: na Alli Willow, que lhe cedeu um por trás das câmeras lugar no apartamento em que ‘vaquinha’ ficou, fazendo a paraibana eco- nomizar os custos com hospeda- Diretor de ‘Cova e vestido gem. Além do mais, a atriz não emprestado teve problemas para se virar na A Paraíba não comparece apenas na A ida dos seis atores paraiba- França, afinal era a única do gru- frente das câmeras. Por trás delas, há nos ao Festival de Cannes, por po paraibano que falava francês. um profissional de Campina Grande si só, já daria um filme, misto Aliás, Jamila, por pouco, não fundamental para a concretização de comédia e drama. Quando viajava. Ela já havia se confor- de 'Bacurau' nas telas. Diretor de saiu o anúncio que Bacarau havia mado que não estaria no Pallet filmes como Cova Aberta, produtor e sido selecionado para o evento, no momento histórico em que roteirista, Ian Abé é um dos expoentes o elenco só tinha de concreto a diretores e elenco chegam juntos do audiovisual na Paraíba. Além de possibilidade do convite para a ao tapete vermelho para a avant- liderar seus próprios projetos, atuou badalada pré-estreia do filme. -premiére do filme. “Fiz as con- nos bastidores de longas-metragens Tudo o mais – passagens, hospe- tas e não dava para bancar essa paraibanos elogiados, como Batguano dagem, alimentação e traslado -, viagem. Me conformei”, recor- e Desvio de Conduta. Em ambos, foi teria que ser por conta própria. da. Faltando uma semana para assistente de direção e em Bacurau, “A gente teve que raspar as eco- a viagem, duas amigas caíram estreou como continuísta. nomias, fazer empréstimos, con- em campo e organizaram uma O continuísta é uma espécie de seguir apoio. Até o smoking que campanha, coletando doações coração do set de filmagens. É tipo um a gente usou lá, na noite, teve através das redes sociais. Pron- assessor da direção, ao mesmo tempo apoio da Thelma Noivas”, recor- to! Em poucos dias, levantaram em que garante que não haja falha da Buda Lira. o dinheiro suficiente para a atriz de continuidade entre uma cena e Buda, aliás, foi um dos ato- fazer sua primeira viagem inter- outra, como um jarro, que está em um res que entrou no “racha” de nacional. momento e desaparece no seguinte, uma casa em Vallauris, locali- Mas ainda faltava algo fun- além de tomar nota dos mínimos zada entre Cannes e Antibes, damental para a noite de gala: detalhes, trabalho que irá ajudar alugada pelo grupo através do o vestido. Dentro desse movi- bastante na pós-produção, sobretudo Airbnb. “Era a república da mento, uma amiga de Jamilla na montagem do filme. PB-PE-CE”, brinca Ingrid Tri- falou que conhecia a estilista “É um trabalho complexo”, resume Ian. gueiro. “Ficaram na casa eu, Adriana Cruz, que poderia ter “Havia vários detalhes que precisavam Fabíola Liper (de Fortaleza), Ru- um vestido para emprestar. E se conectar pela continuidade. Por bens Santos e (o assistente de tinha. “Ela marcou um dia e eu direção) Luciano Campelo (am- fui lá, experimentei o vestido e bos de Recife), além de Buda e deu certinho, estava todo ajusta- Thardeelly”, recorda. Mais na do. Tudo foi se organizando com frente, a casa também receberia uma rapidez incrível. Eu só te- Suzy Lopes, já que as reservas nho a agradecer as pessoas que dinheiro guardado, Danny ain- que ela tinha em um hotel aca- contribuíram para essa viagem”, da fez um empréstimo para po- baram dando errado. responde. der passar a semana na França. Mas nem todos ficaram juntos. Além de juntar o salário de “Vou passar um tempo pagando Jamila, por exemplo, acabou sen- professora da Rede Municipal essa conta, mas não me arrepen- do acolhida pela franco-america- de Ensino, uns cachês e algum do de jeito nenhum, porque foi um momento único na minha

foto: arquivo Pessoal vida. Afinal eu não sei se terei outra oportunidade de voltar a Ca n nes”. Se não voltar, ela diz, já valeu à pena ter sido a primeira tran- sexual brasileira a pisar no “Red Carpet”, como ela diz. “Foi um momento único na história de uma trans negra, pobre, nor- destina, paraibana, brasileira. E eu estava lá, onde gente famosa costuma pisar e desfilar todo seu glamour! Eu fui desfilar o Buda, Thardelly, Jamilla, glamour da minha história e da Ingrid, Suzy e Danny no história das pessoas que estão Pallet: elenco assistiu ao comigo até hoje. Desfilar a nos- filme em Cannes sa resistência. Meu glamour foi esse”, afirma. c

| João Pessoa, junho de 2019 8 Correio das Artes – A UNIÃO por trás das câmeras de Bacurau foi anunciada com a execução de ‘Requiem para Ma- traga’, música de um velho con- Aberta’ estreou como continuísta terrâneo do elenco paraibano,

foto: arquivo Pessoal Geraldo Vandré, e, segundo o exemplo, uma cena filmada hoje que que próprio Kleber Medonça va- só seria retomada uns 15 dias depois. zou em uma rede social, está na E era meu papel não deixar as coisas trilha sonora do filme. do roteiro se perderem, tentar manter “Essa música é especial, pois a essência desse roteiro, o conceito faz parte da trilha sonora de um da história. Além disso, também não dos filmes mais incríveis já feitos deixar as falas se perderem e ainda no Brasil, A Hora e a Vez de Augus- entender o que os diretores queriam, to Matraga (1965), de Roberto San- dando suporte a eles. E também tos”, declara Juliano, recordando anotar todas as informações do set”, que exibiu o filme inúmeras ve- descreve. zes quando integrava o cineclu- O continuísta paraibano passou dois be da Universidade Federal de meses entre Barra e Parelhas. Entre Pernambuco (UFPE), em Recife. março e maio, viajava uma hora para “Essa música, em particular, é ir e outra para voltar e ficava em torno uma das minha peças preferidas. de 12 horas no set de filmagens, seis Ela tem uma atmosfera perfeita dias por semana. “Foi cansativo, mas para o momento em que toca em recompensador. Para mim, o segredo Bacurau. Ela trouxe mais força de trabalhar em cinema é trabalhar e emoção para a cena, pareceu em áreas que você gosta. Como a funcionar muito bem e ficamos função de continuísta é muito ligada muito felizes com essa escolha”, aos diretores, então foi muito bom ver comenta o dirtor, sem revelar de- Kleber e Juliano trabalhando juntos, talhes da cena. como também foi bom estar perto do “Quando tocou aquela música elenco. E o elenco nordestino tem uma do Vandré, eu me segurei para peculiaridade: deixa o set caloroso; não chorar”, revela Suzy Lopes. tem abraço, empatia, preocupação “Aí entramos (na sala onde seria com o outro”, recorda. exibido o filme)! O público havia entrado antes da equipe, então quando entramos no pallet, o pú- blico nos recebeu aplaudindo,

foto: reprodução internet e de pé. Não tem palavras para CLÁSSICO descrever isso”, acrescenta. O elenco é unanime ao se re- DE Vandré ferir a pré-estreia de Bacurau em Cannes como um momento úni- NA TRILHA co na vida e na carreira deles. Há todo um protocolo a ser “A gente assistia (ao filme) segu- seguido até o glamuroso Tapete rando um na mão do outro. Foi Vermelho. Antes de chegar lá, muito lindo”, prossegue Suzy, o cast teve que se reunir em um que sentou-se entre Thardelly e barco luxuoso (Cannes é um bal- Alli. “Foi um turbilhão”, sinteti- neário, banhado pelo Mar Me- za Ingrid, antes de descrever: “A diterrâneo), onde são servidos coisa já começa pela recepção no quitutes e champanhe à altura barco. É onde cai a ficha: puxa, a e por onde circulam convidados gente está aqui mesmo! Quando do naipe de Walter Salles (diretor eu cheguei ao Tapete Vermelho, de Abril Despedaçado). De lá, os parecia que eu iria entrar em atores saem em limusines para cena no teatro, aquele nervosis- o Tapete Vermelho, onde um ba- mo, aquela ansiedade. E ver tudo talhão de fotógrafos do mundo pronto, depois do que nós viven- inteiro aguarda o elenco e os di- ciamos, do roteiro que estuda- retores do filme. mos, é outra coisa, totalmente A chegada ao Pallet dos atores diferente. Muito impactante”.I

Homenagem: ‘Bacurau’ tem música de Vandré André Cananéa é jornalista, com mais de 20 anos de atuação na imprensa que foi utilizada em filme escrita. Integrou os cadernos de cultura do Correio da Paraíba, O Norte de Roberto Santos e por 15 anos, editou o Vida e Arte do Jornal da Paraíba. Atualmente é o editor do Correio das Artes. Mora em João Pessoa.

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, junho de 2019 | 9 ções. No entanto, sua localização estra- 6 artigo tégica atrai a cobiça dos especuladores A cidade cresce e vai mudando seus rumos, suas ênfases, suas preferên- cias, suas escolhas. Um exemplo disso é a praia de Boa Viagem, antigo point de sofisticação e turismo, agora proibi- da para banhistas, por estar poluída e infestada por tubarões. No plano hu- A distopia mano, esses predadores também estão presentes sob a forma de ladrões, trafi- cantes e assaltantes. Para dar conta de- das periferias les são contratadas milícias, que “cui- dam” da segurança dos imóveis e das urbanas brasileiras pessoas que ainda moram ali. Fazem a ronda diária, São os donos do pedaço. Para Olga Tavares, que desenvolve Esses milicianos sentem-se um pouco projeto cultural no Porto do Capim donos das casas que vigiam e as usam como melhor lhes convém. Outro filme dessa safra é Aquarius, Vitória Lima (2016) do mesmo diretor e roteirista de Especial para o Correio das Artes O Som ao Redor. O filme foi bastante premiado no Festival de Cannes, re- presentou o Brasil naquele festival. O e antes a literatura e o cinema brasileiros concentravam seu edifício que o título menciona fica na foco de atenção no homem do campo e seus problemas, como praia do Pina, bairro contíguo à praia a seca, a falta de incentivo e proteção por parte dos governos, de Boa Viagem e vai ser demolido. hoje temos uma atenção voltada para os problemas dos mora- Todos os moradores abandonam seus S dores dos grandes e médios centros urbanos. apartamentos. Só Clara, teima em per- O Nordeste também desviou seus olhos dos problemas manecer no prédio, apesar das amea- persistentes no campo, como a seca, a fome e a pobreza gene- ças e desconfortos que passa a sofrer. ralizada. Não é que esses problemas tenham sido soluciona- Clara sabe o que quer e não arreda o pé dos, apenas houve uma mudança de foco. Alguns diretores do apartamento onde mora há décadas. de cinema nordestinos, dentre esses está o pernambucano Lá estão suas memórias mais caras: o Kleber Mendonça Filho, que entrou para a história do cine- casamento, os filhos que lá foram cria- ma brasileiro com o filme O Som ao Redor (2013). A Abracine dos e onde viveu toda a sua juventude incluiu-o dentre os 100 melhores filmes brasileiros de todos os e maturidade. Mas o prédio está doen- tempos. O filme trata da violência latente numa comunidade te, infestado de cupins e Clara recebe da zona residencial de Setúbal, no Recife (PE). Retrata um cli- um dia um presente estranho de seus ma de tensão crescente que só se dissolve quando acontece a opositores: um pacote cheio de cupins, tragédia final, que é anunciada desde o início do filme e só se que ela, guerreira que é, vai devolvê-lo resolve quando é consumada. Quentin Tarantino foi o grande aos que o endereçaram a ela, mesmo inspirador de Kleber Mendonça, diretor e roteirista do filme. que anonimamente. Aliás, a partir daí, A Paraíba foi convidada a participar da produção e mandou os cupins assumem um significado três representantes da nossa melhor safra de atores: W.J. So- simbólico no filme: eles representam a lha e Sebastião Formiga, além força destrutiva da sociedade capitalis- do veteraníssimo Fernando ta que não respeita ninguém que se in- Teixeira, atores de prestígio, terponha no caminho do lucro que de- tarimbados e de grande pre- seja atingir. O filme foi premiadíssimo sença cênica. Os três se saíram nos festivais brasileiros e estrangeiros, Kleber muito bem nos seus respec- principalmente devido a sua direção e Mendonça Filho, tivos papeis e garantiram a roteiro e à magistral interpretação de diretor de ‘O Som ao Redor’ e dramaticidade do filme. Pela Sônia Braga, a Clara do filme. Aqua- ‘Aquarius’: foco imponência de suas constru- rius foi a Cannes no mesmo período do nos problemas ções, dá para perceber impeachment da presidenta Dilma e o dos moradores que Setúbal fora, no fato teve grande repercussão por oca- dos centros urbanos. passado, um bairro sião da premiação, quando os artistas florescente da apareceram todos juntos para cumpri- cidade do Re- mentarem o público, juntamente com cife, mas que o diretor/roteirista Kleber Mendonça agora dá sinais Filho, sendo calorosamente aclamados de decadência, pela plateia. sendo palco de Outro movimento que abalou o Re-

foto: reprodução internet várias demoli- cife foi o “ocupa Estelita”, quando a c

| João Pessoa, junho de 2019 10 Correio das Artes – A UNIÃO foto: divulgação segurança das pessoas. Aqui na nossa cidade estamos assistindo a uma luta semelhan- te na comunidade do Porto do Capim, uma comunidade tra- dicional da cidade. E começa o movimento: o IPHAEP embarga o projeto da Prefeitura, que quer construir o parque “ecológico” Sanhauá na área e, para construí- -lo, tem de desalojar as pessoas que moram lá desde o tempo do prefeito Damásio Franco (1966- 1971). A PMJP ignora o embargo do IPHAEP (notícia dos jornais do dia 1º de junho) e sai demolin- Sônia Bragra em cena do do casas à revelia da instituição c filme ‘Aquarius’: cupins como cidade se mobilizou para defender o metáfora da força destrutiva que, por direito, deve defender conjunto de edifícios no porto de Re- da sociedade capitalista que os moradores da área. Contu- cife que abrigaram armazéns, perto não respeita ninguém do, ao que tudo indica, a preço da antiga rodoviária da cidade. Mas a de hoje, terça-feira, 4 de junho, o especulação imobiliária acabou ven- IPHAEP já suspendeu o embar- cendo o movimento de resistência. É go das obras do Porto do Capim, uma área muito próxima ao centro da A jovem desenvolve uma doença que agora vive seus últimos dias cidade, muito valorizada para que se psicossomática que ataca sua pele enquanto comunidade. Na CMJP, permitisse que fosse ocupada por um tornando-a áspera, coberta com os vereadores Sandra Marrocos e grupo de românticos que não visas- uma casca enegrecida e dura. Sua Tibério Limeira levantaram suas sem, primordialmente o lucro. pele reflete a degradação que so- vozes em favor dos moradores do Novamente, o tema do deslocamen- fre a cidade, que muda de cara Porto do Capim e, na Assembleia to dos moradores das grandes cidades, para agradar os visitantes, em Legislativa, a deputada Estela Be- tangidos pela especulação imobiliária, detrimento dos quereres dos seus zerra manifestou-se no mesmo que quer retirá-los de suas moradas habitantes. Um Rio de Janeiro, tom que os vereadores. porque agora outros interesses, que muito diferente daquele que ficou Novos filmes devem vir por aí. não o lucro, norteiam os novos pro- conhecida como a Cidade Ma- Poema até já temos: Políbio Alves prietários dos imóveis. Na opinião dos ravilhosa, é esta do século XXI, é o autor do poema “Varadouro”, especuladores, esses imóveis envelhe- cheia de mazelas e conflitos. que pode sedimentar um movi- ceram e estão atrapalhando a expansão A doença da jovem defensora, mento em favor do Porto do Ca- das cidades. Não adianta os antigos semelhante aos cupins de Aqua- pim. moradores se apegarem aos antigos la- rius, funciona como uma metáfo- E todo mundo está feliz? As res. São outros os interesses que regem ra: ela adoece porque não pode fa- pessoas receberam uma compen- o mercado imobiliário e apegos de or- zer frente à violência que ameaça sação justa pela perda dos seus dem sentimental não contam. as pessoas cujos interesses ela se bens? Já estão alojados com suas Outro filme que gira em torno do propusera a defender. A doença famílias em residências decentes mesmo tema é Mormaço (2019), da di- da sociedade manifesta-se no seu e do seu agrado? retora carioca Marina Provenzzano. corpo e, claro, ela perde, desiste, Uma cidade, para crescer, tem O cenário muda para o Rio de Janeiro, entrega-se à doença. As forças são de se desumanizar? na época em que a cidade se prepa- muito desiguais: o capital e a po- Tem de chutar seus morado- rava para abrigar os Jogos Olímpicos lítica, contra os interesses de uma res para longe, fora de suas casas de 2016. Era preciso maquiar a cidade, comunidade periférica que está para depois derrubá-las? apagar todos os vestígios de pobreza, impedindo o progresso da cida- Não entendo que tenha de ser para impressionar os visitantes es- de. Depois é que o Brasil ficou sa- assim. Talvez eu seja muito ro- trangeiros. O Rio tem que vestir sua bendo da corrupção e dos gastos mântica e só consiga olhar para melhor roupa, parecer limpo, rico, exorbitantes que prevaleceram o mundo sob a perspectiva do próspero. Então, é preciso afastar dos na época dos Jogos Olímpicos do humano. olhos dos visitantes as comunidades Rio de Janeiro. Das obras super- Para mim, o homem e a mu- pobres, mesmo que seus moradores faturadas e mal-acabadas, como a lher continuam sendo a medida não queiram sair dos lugares onde passarela da Avenida Niemeyer, de tudo e tudo deve ser investido se encontram. Começa então a luta. que ainda está a por em risco a em seu benefício.E Uma jovem defensora pública, a dra. Ana, toma para si a defesa dos mora- Vitória Lima é professora aposentada da UFPB, por onde se formou em Letras, dores do lugar, mas ela não aguenta e da UEPB, com Mestrados na Universidade de Denver (Colorado, EUA) e na a pressão. Todos os dias, derruba-se Universidade de Birmingham (Reino Unido), onde estudou a obra de Shakespeare. uma casa e as máquinas fazem parte Tem dois livros de poemas, ‘Anos Bissextos’ (A União, 1997) e ‘Fúcsia’ (Linha D’Água, 2007) e é colunista do Jornal A União. Nasceu em Recife (PE) e mora em do cenário de violência e desolação. João Pessoa (PB).

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, junho de 2019 | 11 Eliezer Filho, grande vencedor da mostra Sob o Céu Nordestino com CINEMA PARAIBANO ‘Beiço de Estrada’. Outro dado relevante é que, além desses filmes, uma nova Cem anos depois... leva se aguarda para o segundo Por Lúcio Vilar chamou a atenção da crítica cine- semestre deste ano. Entre estes, Especial para o Correio das Artes matográfica presente. o documentário em longa-metra- Ao enfatizar a excelente quali- gem ‘Jackson – Na Batida do Pan- Uma feliz coincidência deverá dade dos filmes lançados, o críti- deiro’, de Marcus Vilar e Cacá Tei- marcar o centenário do cinema co Luiz Zanin Orichio sentenciou xeira que deverá ter sua primeira paraibano (1919-2019), a ser ce- que o novo cinema da Paraíba exibição pública por ocasião das lebrado neste segundo semestre “nasce ousado e criativo”, o que comemorações do centenário de e cuja programação terá seu ápi- coloca o Estado no “radar da pro- nascimento do ‘rei do ritmo’ no ce em palco especial no 14º Fest dução nacional”. Já a revista Carta próximo mês de agosto. Some-se Aruanda do Audiovisual Brasilei- Capital2, com reportagem de pá- ainda a tudo isso a vitoriosa par- ro, de 5 a 11 de dezembro na rede gina inteira intitulada ‘O Cinema ceria do cineasta pernambuca- Cinépolis (Manaíra Shopping). como música’, focou no que classi- no Kleber Mendonça com atores Uma cinematografia fundada no ficou como “supersafra de filmes paraibanos desde seu celebrado código narrativo documental, em regionais”, na opinião do repórter ‘O Som ao Redor’ (2013), seguido fins da década de 1910, teve sua li- e crítico Jotabê Medeiros, para por ‘Aquarius’ (2016) e ‘Bacurau’ nha do tempo carimbada através quem tal formato teria turbinado que, esse ano, ganhou o Prêmio da busca e captura do real, numa os debates do festival, um tradi- do Júri no Festival de Cannes com ânsia quase obsessiva em dar con- cional “foco de resistência cine- participação de seis atores/atrizes ta do entorno que o cercava. matog rá fica”. paraibanos. Fato é que enquanto ‘surtos’ Entre os filmes exibidos na E assim, mais que uma coinci- regionais, a exemplo do vizinho referida mostra está o longa- dência feliz, celebrar o centená- estado pernambucano, produzi- -metragem documental ‘O Seu rio do cinema em solo paraibano ram em larga escala os chama- Amor de Volta (Mesmo Que Ele com esse ‘boom’ da produção em dos filmes ‘posados’ (de ficção), Não Queira)’, de Bertrand Lira, longa-metragem, é a certeza de Walfredo Rodriguez - o ‘primeiro contemplado com um troféu da que, se havia uma pedra no meio cineasta’ paraibano - abraçou a crítica especializada, ainda que do caminho, isto é, nossa dificul- idéia de documentar a realida- não estivesse na competitiva, por dade crônica de transitarmos na de através do gênero Cinejornal. decisão de seu diretor. Foi exigên- seara ficcional ao longo de todo Logo em seguida, nos anos vinte, cia de ninguém menos que o en- o século XX, tal entrave não há iria dirigir os documentários em saísta, ator e docente aposentado mais. Fomos testemunha ocular, longa-metragem Carnaval Parai- da ECA-USP, Jean-Claude Bernar- enquanto curador da mostra Sob bano e Pernambucano (1923) e Sob o det. Provocado pela qualidade e a o Céu Nordestino, da virada de Céu Nordestino (1929), mais o curta diversidade de temas e estilos da página histórica verificada neste Reminiscências de 30 (1931). Esta- nova cinematografia paraibana, particular. va fincado nosso DNA, de matriz foi acompanhado pelos críticos É bem verdade que seguire- documental, a ser retomado pelas Maria do Rosário Caetano e Luiz mos “com o documentário na mãos de João Córdula (Cinema Zanin Orichio, justificando-se a veia”, como sempre advogou o Educativo Paraibano/1956) e Lin- premiação especial em razão do mestre Vladimir Carvalho, mas duarte Noronha, com ‘Aruanda’ filme - que mescla o real e o - fic com ousadia na renovação de lin- (1960). Seguiria ‘entranhado’ nas cional - “harmonizar, com afeto e guagem do gênero, explorando gerações seguintes ao longo de ironia, os nossos demônios inter- até as últimas conseqüências a li- toda a segunda metade do século nos”. nha tênue que separa as fronteiras passado. Com premiações em festivais do real e do ficcional, como o fez, Cem anos depois e a coinci- brasileiros e internacionais, reite- com maestria, Bertrand Lira. dência em questão está no que rem-se os filmes “Estrangeiro”, de Entretanto, inauguramos o foi apontado por resenha publi- Edson Lemos, e “Rebento”, de An- domínio da narrativa ficcional cada no jornal Estadão1 onde se dré Morais como mais um indica- em verso e prosa, abrindo novas nomeou de ‘primavera do cinema tivo para medir a densidade desse possibilidades e perspectivas de paraibano’ o que foi conferido conjunto de seis obras que inclui consolidação desse patamar. Este, na mostra Sob o Céu Nordestino ainda o primeiro longa-metragem sim, é o dado mais simbólico do (Fest Aruanda/2018). Sem pre- de Torquato Joel (‘Ambiente Fa- salto de qualidade experimenta- cedentes na história local, seis miliar’), diretor já consagrado na do e o que, certamente, ainda será longas-metragens foram finaliza- trincheira curta-metragista desde objeto de muitos olhares e leitu- dos e exibidos no evento, o que os anos 1990; a narrativa libertária ras de pesquisadores e críticos. mobilizou o público que lotou de Tavinho Teixeira e Mariah Tei- Quanto ao público, este aplaude e as sessões durante cinco noites e xeira em ‘Sol Alegria’ e o acerto de pede bis. Viva o Centenário do Cinema Paraibano! 1 O novo cinema da Paraíba nasce ousado e criativo. Luiz Zanin Orichio. CADERNO 2, C3, edição de 18 de Dezembro de 2018 do jornal O Estado de São Paulo. (*) Professor (Demid-UFPB), 2 O Cinema como música. Jotabê Medeiros. Carta Capital, edição de 19 de documentarista e produtor-executivo Dezembro de 2018/Nº 1034. do Fest-Aruanda.

| João Pessoa, junho de 2019 12 Correio das Artes – A UNIÃO 6 artigo

haver discordâncias. Mas que é estranho, é. Principalmente quando se vê que a Bíblia dedica mais espaço a personagens muito menos importantes. Como o próprio Pila- José, tos, por exemplo. Como as irmãs de Lázaro e a Madalena, tão controversa. Atualmente, percebe-se, fala-se mais so- o marido bre José nas igrejas e templos. Aos contem- porâneos causa estranheza e até espanto seu silêncio, sua resignação, sua aceitação Francisco Gil Messias e sua discrição, realidades tão distantes do [email protected] homem pós-moderno, louco por protago- nismo, qualquer que seja, até o pobremente produzido pelas “selfies” vaidosas. Vê-se á um certo José que sempre me impressio- que aflora cada vez mais uma curiosidade nou. Pouco se fala sobre ele diante do muito sobre José, esse homem quase anônimo e que, penso eu, dever-se-ia falar. Esse é um aparentemente tão pouco valorizado. Faz daqueles mistérios que cercam a chamada sentido. Esse é um personagem muito rico, H história sagrada, a história do cristianismo e do ponto de vista tanto humano como reli- seus personagens. Um mistério, como mui- gioso, que certamente muito tem a revelar tos, envolto em silêncio, manto adequado e e a ensinar. talvez necessário a todo mistério que se pre- E quantos Josés há no mundo! Silenciosos ze. Refiro-me ao carpinteiro José, esposo de Josés. Outro dia, tive minha atenção volta- Maria, mãe de Jesus. da para um desses Josés contemporâneos. A história se sabe. E é sumariamente con- Homem quase anônimo, tal como o carpin- tada: Maria, jovem virgem judia, estava pro- teiro de Nazaré. Caladamente casado com metida em casamento a José, modesto car- mulher célebre. E, ao que tudo indica, feliz pinteiro, homem bom, honesto e trabalhador. no seu anonimato. É o José marido de Adé- Uma união conjugal como outra qualquer lia Prado, a poeta mineira que conhecemos naquele tempo e naquele lugar, a pequena e amamos. Nome ilustre de nossas letras. Nazaré, na Galileia, domínio romano. En- Cortejada pela mídia como uma atriz de no- tão um anjo aparece em sonho ao noivo e vela, assediada pelos fãs, convidada cons- lhe diz que Maria conceberá um filho por tantemente para dar entrevistas, para falar intervenção divina e que ele não deve repu- nas universidades. Uma verdadeira mulher diá-la, pois essa é a vontade do Senhor. Ao do mundo. E no entanto tão de sua casa, de contrário do que seria de se esperar, numa sua Divinópolis entre as montanhas, ela sociedade rude, machista e patriarcal, José própria discreta por natureza e por opção, silenciosamente aceita o desígnio dos céus, dentro do possível. E ao seu lado, silencio- casa-se com aquela que lhe estava prometi- so, aceitando com resignação e orgulho o da e torna-se o pai humano de Jesus, filho sucesso e a notoriedade da companheira, o de Deus, o próprio Deus feito carne entre os José que lhe coube, aquele que ela escolheu, homens. Torna-se pai de um filho que, a ri- quase adivinhando o parceiro com que po- gor, não era seu. Fora isto, na Bíblia pouco dia contar em todas as circunstâncias. ou nada falar-se-á sobre José, esse persona- Ninguém fala sobre o José de Adélia. É gem fundamental da fé cristã, sem o qual provável que ele prefira assim. Do mesmo não ter-se-ia formado a sagrada família, nú- modo que, acredito, preferiria o outro José, cleo familiar indispensável à narrativa que o de Maria. Deixemos, pois, em paz esses embasa a crença de milhões de cristãos, no misteriosos Josés, aparentemente talvez mundo inteiro. menores para os holofotes do mundo mas E Pergunta legítima que se impõe: como grandes em seu transcendente fascínio. pode se falar tão pouco sobre alguém tão importante? O silêncio que cobre José foi deliberado, por alguma misteriosa razão? Ou simplesmente não havia mesmo o que se falar sobre um personagem por si só silen- Francisco Gil Messias é Procurador Federal cioso, discreto, que nada fez além de cum- aposentado. Publicou três livros: ‘Olhares’ e ‘A Medida do Possível’, ambos de de poemas, e prir seu papel de pai e marido provedor, até ‘Um dedo de prosa’, coletânea de crônicas. É a morte precoce, como era comum naquela colaborador habitual do Correio das Artes. Nasceu época? Não sei. Até entre os teólogos parece e vive em João Pessoa (PB)

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, junho de 2019 | 13 fOTOS: REPRODUÇÃO INTERNET 6 letras Paulina Chiziane, autora Adelto Gonçalves que toda mulher deveria conhecer Especial para o Correio das Artes

I na obra de Paulina Chiziane”, de exemplo do que já fizera em Dicionário de Personagens da Obra António Manuel Ferreira, profes- de José Saramago (Blumenau-SC: Editora da Fundação Universi- sor associado com agregação do dade Regional de Blumenau – EdiFurb, 2012), levantamento de Departamento de Línguas e Cul- 354 protagonistas que perpassam os romances e peças teatrais turas da Universidade de Aveiro. A do Prêmio Nobel de Literatura de 1998, feito a partir de pes- Ao final, o livro traz ainda uma quisa que durou 15 anos e contou com a colaboração de mais fortuna crítica de textos acadêmi- de oito dezenas de seus alunos, a professora, contista, ensaísta cos dedicados à obra da autora mo- e crítica Salma Ferraz acaba de lançar Dicionário de Personagens çambicana. da Obra de Paulina Chiziane (São Paulo: Todas as Musas, 2019), Como Paulina Quiziane é auto- publicado com recursos do Ministério da Cultura, através da ra de mais de dez livros publicados Lei de Incentivo à Cultura. em Portugal e Moçambique, in- A obra é resultado de um trabalho coletivo que durou cinco cluindo obras em co-autoria (dois anos e foi realizado por uma equipe coordenada pela professo- volumes de ensaios e um livro de ra Salma Ferraz, incluindo 53 alunos de graduação em Letras poemas), as autoras decidiram da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com o au- concentrar os estudos nos cinco ro- xílio de duas alunas da Pós-Graduação em Literatura Brasileira mances da escritora: Balada de Amor da mesma UFSC, Patrícia Leonor Martins e Márcia Mendonça ao Vento (1990), Ventos do Apocalipse Alves Vieira. Como diz na apresentação que escreveu para este (1993), Sétimo Juramento (2000), Ni- livro, Tania Macedo, professora titular de Literaturas Africa- ketche: Uma História de Poligamia nas de Língua Portuguesa e diretora do Centro de Estudos (2002) e O Alegre Canto da Perdiz Africanos da Universidade de São Paulo (USP), este trabalho (2008), além dos personagens dos constitui uma espécie de “mapa” da escrita da autora moçam- contos “As andorinhas” (2013) e bicana Paulina Chiziane (1955) que vai muito além daquilo que “As mãos dos pretos” do livro As o título da obra deixa entrever. Cicatrizes do Amor, este último in- Além de relacionar personagens que aparecem em vários cluído também na Antologia do livros de Paulina, o Dicionário traz uma fortuna crítica e uma Conto Moçambicano, organizado por biografia da autora, bem Nelson Saúte (2007). como duas entrevistas con- cedidas por ela para órgãos II Salma Ferraz e de imprensa do Brasil e do Para quem não sabe, é preciso a capa do livro, um “mapa” exterior e dois ensaios de es- que se diga que Paulina, entre as que permeia a pecialistas. Um dos respon- escritoras de todo o mundo, é uma obra da autora sáveis por um desses ensaios das vozes mais fortes e lúcidas em moçambicana é este articulista, autor de “O favor da emancipação feminina, Paulina Chiziane feminismo negro de Pauli- pois denuncia com todas as letras (no alto) na Chiziane”, originalmente “as ideologias ditadas pelo poder publicado em Passagens Para sob a máscara da criação divina o Índico: Encontros Brasileiros que permitem ao homem ser go- com a Literatura Moçambicana, vernador dos destinos da mulher”. de Rita Chaves e Tania Ma- No artigo “Eu, mulher... por uma cedo, organizadoras (Mapu- nova visão do mundo”, que serve to: Marimbique Conteúdos e de apresentação para este livro, a Publicações, 2012, pp. 33-41). escritora conta que foi a condição O outro ensaio é “Adão e Eva social da mulher que a inspirou a c

| João Pessoa, junho de 2019 14 Correio das Artes – A UNIÃO c escrever seus contos e romances. recebeu o Prêmio José Craveirinha bolsista da Fundación Carolina na Ela conta que, quando come- de 2003. Tanto que, entre todos Universidad Autónoma de Madri çou a escrever, muitas pessoas a os verbetes, é o que mais espaço (2009). Fez pós-doutoramento na consideraram uma mulher frus- ocupa no livro (cinco páginas). O Universidade Federal de Minas trada, desesperada, destituída de nome verdadeiro de Rami é Rosa Gerais (UFMG) em 2013. Dirige o razão. “Foi um momento terrível Maria, uma mulher do Sul, bela e Núcleo de Estudos Comparados para mim. Mas, por outro lado, inteligente, que durante a juventu- entre Teologia e Literatura (Nutel) estas atitudes tiveram um efeito de havia sido disputada por vários da UFSC. positivo porque forçaram-me a de- homens, mas que se casou com É autora de O Quinto Evangelista: monstrar pela prática que as mu- Tony que, seguindo a tradição lo- O Desevangelho Segundo José Sara- lheres podem escrever e escrever cal, sempre teve muitas mulheres, mago (Brasília: UNB, 1988); Maria bem”. Aliás, como este articulista ainda que a esposa sempre lhe ti- Madalena: Das Páginas da Bíblia para já escreveu há tempos, a literatura vesse sido fiel. a Ficção, org. (Maringá-PR: Eduem, produzida por mulheres mostra Neste livro, aliás, o leitor pode 2011); As Malasartes de Lúcifer: Tex- outros ângulos que os escritores encontrar o ponto central da lite- tos Críticos de Teologia e Literatura, homens não conseguem ver. ratura questionadora do mundo org. (Londrina-PR: Editora da Uni- Nascida em Manjacaze, na pro- produzida por Paulina. Aqui se versidade Estadual de Londrina, víncia de Gaza, região Sul de Mo- pode ler o seguinte: “Até na Bíblia 2012); As Faces de Deus na Obra de çambique, Paulina viveu no campo a mulher não presta. Os santos, em um Ateu: José Saramago (Blumenau- até os sete anos de idade, quando suas pregações antigas, dizem que -PR: EdiFurb, 2012); Dicionário Ma- se mudou para os subúrbios da ci- a mulher nada vale, a mulher é um chista: Três Mil Anos de Frases Creti- dade de Maputo, onde frequentou animal nutridor de maldade, fonte nas Contra as Mulheres (São Paulo: estudos superiores de Linguística de todas as discussões, querelas e Jardim dos Livros, 2013); Sobre o na Universidade Eduardo Mondla- injustiças. É verdade. Se podemos Vampirismo: de Drácula a Crepúsculo: ne, sem concluí-los. Nasceu numa ser trocadas, vendidas, torturadas, a Saga do Vampiro na Cultura Ociden- família de protestantes onde se mortas, escravizadas, encurraladas tal, org. (São Bernardo do Campo- falava as línguas chope e ronga. em haréns como gado, é porque -SP: Todas as Musas, 2017); e Teolo- Aprendeu a língua portuguesa não fazemos falta nenhuma. Mas gia do Riso: Humor e Mau Humor no na escola de uma missão católica. se não fazemos falta nenhuma, Cristianismo, org. (João Pessoa-PB: Participou ativamente da política por que é que Deus nos colocou no Eduepb, 2017), entre outras obras. à época da independência de seu mundo? E esse Deus, se existe, por Patrícia Leonor Martins, gra- país como membro da Frente de Li- que nos deixa sofrer assim? (...)”. duada em Letras pela UFSC (2005), bertação de Moçambique (Frelimo), tem mestrado em Literatura (2017) tendo sido eleita em 1994. Depois, IV e é doutoranda em Literatura na trocou a vida partidária para se Com mais de uma dezena de UFSC. Foi professora nas discipli- dedicar à escrita e ao trabalho na livros publicados, Salma Ferraz, nas de Comunicação e Expressão e Cruz Vermelha. Hoje, vive em professora titular da UFSC em Metodologia Científica do Instituto Matola, cidade próxima a Maputo, Florianópolis, é graduada em Le- Federal de Educação, Ciência e Tec- onde escreveu sua obra debaixo de tras pelas Faculdades Integradas nologia de Santa Catarina (IFSC), estrondos e ameaças de morte por Hebraico-Brasileira Renascença de 2011 a 2013. Pesquisadora do causa de confrontos entre tropas de São Paulo (1987), com mestra- Nutel e bolsista do programa da governamentais e rebeldes. do (1995) e doutorado (2002) pela Coordenação de Aperfeiçoamento Em Balada de Amor ao Vento, seu Universidade Estadual Paulista de Pessoal de Nível Superior (Ca- primeiro romance, Paulina recu- Júlio Mesquita Filho (Unesp). Foi pes), elabora estudo sobre a diabo pera a história dos povos rongas e enquanto personagem na literatura chopes, que ouviu em sua infância, russa. principalmente pela voz de sua SERVIÇO Márcia Mendonça Alves Vieira, avó. A narrativa ocorre exatamen- Dicionário de personagens graduada em Letras pela UFSC, é te nessa região, a de Gaza, consi- da obra de Paulina Chiziane, mestranda na mesma universida- derada a mais machista do Mo- de. Pesquisadora das obras e das vi- çambique, onde a mulher, além de de Salma Ferraz, Patrícia Leonor das de Friederich Nietzsche, Walter cozinhar e lavar, para servir uma Martins e Márcia Mendonça refeição ao marido tem de fazê-lo Alves Vieira. São Paulo: Benjamin e Martim Heidegger, é de joelhos. Por isso, pode-se dizer Editora Todas as Musas, 1ª revisora crítica e textual da Revista que a literatura que Paulina pro- ed., 320 págs., 2019. E-mail: UOX, do curso de Letras do Centro duz traz o olhar do feminismo ne- [email protected] Site: de Comunicação e Expressão da gro, que é diferente do feminismo www.todasasmusas.org UFSC. Tem contos e poemas publi- E branco, especialmente o europeu, cados na Revista Mafuá (2016). porque muito mais trágico. Adelto Gonçalves é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de III Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, Entre as centenas de persona- 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o perfil perdido (Lisboa, gens da obra Paulina, uma das Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo/ mais carismáticas é Rami, narra- Academia Brasileira de Letras, 2012), Direito e Justiça em terras d´el-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2015) e Os vira-latas da dora e protagonista de Niketche: madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, Letra Uma História de Poligamia, livro que Selvagem, 2015), entre outros. E-mail: [email protected]

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, junho de 2019 | 15 6 história Brasil Holandês

José Maria Tavares de Andrade proibição de acesso à escrita no Especial para o Correio das Artes novo mundo, como desta mes- ma ausência de uso do alfabeto e consequência de ausência de período de dominação holandesa (1630 a 1654), documentação histórica portu- no Nordeste brasileiro, representa grande exceção guesa. no contexto colonial sobre distintos aspectos. Este Recupera-se na leitura de ar- quarto de século representa uma exceção, como quivos holandeses, fontes es- O critas não apenas em holandês, uma espécie de “ilha de escrita”, excepcional pe- ríodo de história (sic) susceptível de ser estudado como também em língua tupi, conforme fontes escritas disponíveis. São 25 anos textos escritos por autóctones. acompanhados de uso de escrita, exceção, portan- Reabilita-se na História da Ciên- to, no imenso mar do analfabetismo da popula- cia, o papel pioneiro do Instituto ção, tanto de obscurantismo, intolerância e mesmo Arqueológico, Histórico e Geo- gráfico Pernambucano (IAHGP), posteriormente, e tardiamente, Maurício de Nassau, assumido pela academia. Trata- retratado pelo pintor -se do fazer e o contar a História Johan Maurits: conde brasileira entre colonizadores e foi de grande estímulo colonizados, evocando-se tam- rodução internet rodução ao desenvolvimento p da ciência e das artes bém a questão metodológica da no Nordeste interdisciplinaridade na História da Ciência. A Revolução de 1817, fotos: re fotos: que completou 200 anos, apare- ce como um divisor de águas em sua interpretação, assumidas, en- tão, pelo IAHGP. Em termos de História da Ciência entre a Europa e o Bra- sil constatamos que a Ciência moderna nascia na Europa pela sua emancipação das instâncias hierárquicas e dogmáticas da Igreja Católica, enquanto em Pernambuco, esta primeira Aca- demia nascia com a colaboração e participação direta de clérigos e instituições católicas. O papel da Maçonaria na renovação das ideias pode ser lembrado, por exemplo, na figura de Frei Ca- neca e na criação do Areópago de Itambé. Quanto aos motivos da ocu- pação holandesa no Nordeste alguns são ligados à situação trágica da Holanda, atacada en- tão pela Espanha, além de uma cobrança da dívida externa, pelo financiamento holandês para a produção de açúcar, não pago. Nesta “ilha” do Brasil holan- c

| João Pessoa, junho de 2019 16 Correio das Artes – A UNIÃO c dês constatamos a dimensão de tolerância que era uma caracte- rística da sociedade holandesa, inclusive a liberdade religiosa. Finalmente, lembramos que o governo de Maurício de Nassau foi de grande estímulo ao desen- volvimento da ciência e das ar- tes. Importante acervo de Nas- sau foi levado para a Europa, encontrando-se algumas peças em museus holandeses, alemães e no Louvre (França). Lemos a reedição em fac-si- milar, CEPE, Recife, 1977, dos Nº 29 e 30 da Revista do Insti- tuto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, Três heróis de frente Typographia Industrial, Recife, da restauração 1884, respectivamente 204 e 173 pernambucana contra os pp. Como estudávamos na esco- holandeses: André Vidal de Negreiros, Henrique la primária, tratava-se da restau- Dias e Antônio Felipe ração pernambucana, com seus Camarão heróis da frente (portuguesa, in- dígena e africana) André Vidal de Negreiros, Henrique Dias e Antônio Felipe Camarão contra os holandeses. lectuais pernambucanos neces- temologia da Complexidade no Este indígena, Antônio Fili- sitam afirmar suas posições bem reconhecimento de multidimen- pe Camarão, foi escolarizado e distintas das anunciadas no Sul sionalidades da realidade. Neste educado pelos religiosos, sabia do país e sobretudo por outros sentido a Academia moderna ou muito bem escrever, inclusive destes Institutos. Ciência de hoje tem todo interes- em sua língua tupi, conhecendo Quanto à História local X His- se de reconhecer a complexidade inclusive o latim. Segundo sua tória da Ciência destaco apenas de contextos visados pelas pes- biografia ele evitava sempre falar dois aspectos: o fazer e o contar quisas brasileiras pré-universitá- em português alegando seu “’so- a História e a questão metodoló- rias – mas que já fazia o IAHGP. taque tupi e exigindo intérprete”. gica da interdisciplinaridade na Uma última observação é Nesta pesquisa em arquivos da História da Ciência. comparativa em termos de His- Holanda, feitas por José Hygino A Revolução de 1817, como tória da Ciência entre Pernam- Duarte Pereira, aparece referên- sabemos, visava a independên- buco e na Europa. Ali a Ciência cia aos escritos de Camarão de cia do julgo insuportável dos moderna nascia pela emancipa- grande valor histórico e linguísti- portugueses, depois de uma ção das instâncias hierárquicas co. Lembro que outros índios da grande seca no ano anterior. As e dogmáticas da Igreja Católica, Paraíba e Rio Grande do Norte, divergências de interesses políti- mas ao contrário, em Pernam- aliados aos holandeses, também cos e ideológicos (inclusive com buco, esta primeira Academia redigiram preciosas cartas. São as ideias da Revolução France- nascia com a colaboração e parti- raros os textos em tupi da costa, sa) não poderiam ser resolvidas cipação direta de clérigos e insti- além dos catecismos redigidos por generalizações racionais ou tuições católicas. Se bem que vale pelos jesuítas – preciosa e rara científicas, Pernambuco defendia lembrar que Arruda Câmara, que fonte de estudos linguísticos. seus interesses e interpretações fundou o clandestino e maçônico A iniciativa de criação do Ins- de sua História. Areópago de Itambé, além de sa- tituto Arqueológico e Geográfico Não é por acaso que o Institu- cerdote era maçom. Pernambucano (IAHGP), início to Arqueológico e Geográfico se Quanto a esta colaboração da de 1862, pode ser entendida por tornou também Histórico. En- Igreja na fundação do IAHGP um lado como resposta às críti- quanto esta forma de Academia lembro apenas que ele funcio- cas feitas pelo Imperador Pedro ampliava seu âmbito ou dimen- nou no Convento do Carmo e na II, dois anos antes, ali mesmo sões a serem pesquisadas no Biblioteca Pública Provincial do em Recife, sobre a indiferença contexto na História da Ciência Mosteiro de São Francisco. Dian- dos intelectuais locais quanto ao a tendência clássica era o contrá- te do obscurantismo colonial estudo do passado de Pernam- rio: tendência de especialização, eram as instituições religiosas buco. Por outro lado, reconhece- de visões disciplinares estreitas, que detinham o uso da escrita, mos o contexto polêmico quanto reducionistas de causalidades viabilizando o surgimento da às interpretações da significação simples e lineares, isto até as Academia. Esta pesquisa de do- da Revolução de 1817. Os inte- conquistas recentes de uma Epis- cumentos históricos, sobre o Bra- c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, junho de 2019 | 17 No grupo de c sil Holandês, realizada na Holanda, em toda a Europa, assim “A maior holandeses que se estabeleceu no 1884-86, é mérito de José Hygino Duarte parte dos judeus, que se achavam Nordeste, havia judeus Pereira (1847-1901) e é igualmente méri- no Brasil, eram portugueses, ten- portugueses que to do IAHGP. do emigrados de Portugal para haviam imigrado para Trata-se de um exemplo pioneiro de Holanda” (p. 25) [...] Basta um a Holanda, fugindo de perseguições e financiamento de projeto de pesquisa fato para pôr em relevo o atra- intolerância pública, pela prioridade de seu objeti- so de Portugal e o espírito pro- vo. O relatório desta pesquisa ocupa as gressivo da Holanda, que pode páginas 7 a 110 da citada publicação. A reivindicar para si a honra de ter Revista do IAHGP foi fundada no início dado as primeiras lições de liber- de 1862 tendo como presidente eleito o dade política a toda Europa”. monsenhor Francisco Muniz Tavares e Quanto à atitude dos holan- tendo como sócio o famoso pesquisa- deses diante dos Índios, em que dor da cultura local Pereira da Costa. elas se diferenciavam dos portu- Este é o autor de: Anais pernambucanos gueses? Por um lado, comprova- (10 volumes), A Confederação do Equa- -se uma atitude dos holandeses, dor (1876), Dicionário biográfico de pernam- não só de tolerância, pois havia bucanos célebres (1882), Enciclopédia brasi- uma política protetora e pater- leira (1889), Folclore pernambucano (1909) nalista com os Índios, que não e Vocabulário pernambucano (1936), além eram escravizados, e por outro da obra, recentemente publicada pela lado os autóctones inspiravam Massangana, Arredores do Recife. medo, considerando-se como Tínhamos como explicação corrente “péssimos inimigos”, compro- que os judeus haviam financiado o cul- metendo a segurança da colônia. tivo de cana e produção de açúcar, mas Os holandeses não escravizaram que não pagaram digamos primeira os Índios nem os obrigavam ao dívida externa e a ocupação seria a for- trabalho. Alguns Índios acompa- ma de pagamento desta grande dívida. nharam os holandeses de volta à José Hygino Duarte Pereira dá conta de Europa. motivos outros da ocupação holandesa Finalmente lembramos o acer- ligados à situação trágica da Holanda, vo de obras de arte de Maurício atacada então pela Espanha. Provinciais de Nassau. Visitando-se museus ricas e florescentes em quarenta anos na Holanda, ainda hoje podemos sofriam a miséria, o despotismo e a in- ver quadros desta época. Ele le- tolerância religiosa. Inclusive sabemos vou consigo boa parte de qua- que muitos judeus portugueses imigra- dros, móveis de madeira de lei e ram para a Holanda escapando da per- mapas que não foram destruídos seguição e da intolerância e que vieram pela guerra de reconquista. Mas- com os holandeses (protestantes) para o sau vendeu parte de seu acervo Nordeste brasileiro e muitos deles se re- e doou a França vários quadros fugiaram no Sertão, trocando de nomes de pintores que trouxera da Ho- e de hábitos para escaparem. landa – como Frans Post. Parte A partir da primeira Constituição do acervo do Brasil holandês foi brasileira (ver art. 5 ° e 179, § 5°) ficou doado à França, em 1679, presen- o preceito da liberdade religiosa: “cada te a Luiz XIV. I um poderá conservar livremente sua religião, e ninguém será perseguido ou sujeito a inquisições por motivos religio- José Maria Tavares de Andrade é sos.” A tolerância era uma característica antropólogo, pesquisador da Universidade de da sociedade holandesa tendo por con- Strasbourg (França), onde reside, tendo muitos ta disto atraído judeus perseguidos em livros publicados (ver em amazon.com.br).

| João Pessoa, junho de 2019 18 Correio das Artes – A UNIÃO POESIA Juca Pontes

Palhaço : Universo dos versos No coração Vale um ponto Entre a criança e o verso do palhaço outro tanto borda o poeta mora o sorriso seu universo. do mundo. valem os dois mais que um: ao palhaço Querrenca duas vezes o infinito. io v ingos sá ingos m ilustração: do ilustração:

Juca Pontes nasceu em Campina Grande, em 1958. Há 40 anos reside em João Pessoa. Poeta, editor, jornalista, programador visual e produtor cultural, é diretor da Forma Editorial, co-realizador, ao lado da produtora Anastácia Alencar, da Festa do Livro In- ternacional da Paraíba – FLIT Conde/PB e um dos fundadores da confraria Sol das Le- tras, que realiza, há mais de 5 anos, o Pôr do sol literário, em parceria com a Academia Paraibana de Letras. Livros publicados: Laçado corpo, com desenhos de Chico Dantas (A União, 1984), Ranhuras do corpo, com ilustrações de Flávio Tavares (Grafset, 1987), Ciclo vegetal (Forma/JB, 2013), Vida e poesia de Augusto dos Anjos – para crianças, jovens e adultos, com quadrinhos assinados por Lelo Alves (MVC, 2014) e “Mar do olhar”, com desenhos de Flávio Tavares (MVC/Forma/JB, 2017).

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, junho de 2019 | 19 6 convivência crítica Hildeberto Barbosa Filho [email protected] Antonio Brasileiro e a espuma das coisas

e é no poema que a poesia se realiza mais intensa- veis que lastreiam os sentimen- mente, convém compreender que, além da combinató- tos humanos e às dimensões ria que preside a utilização das palavras em seu corpo ocultas e avessas, presentes em material, isto é, gráfico e acústico, é também no poe- cada coisa e em cada fenômeno S ma que se cristalizam os sinais do mundo, os indícios do real. O detalhe, a filigrana, emotivos de suas ressonâncias e significações. Arte- o rarefeito, até mesmo o trivial fato de linguagem, o poema, no entanto, se permite e suas ínfimas nomenclaturas, gravar e repercutir as dores do mundo, as experiên- surgem na medida cadenciada cias sensíveis do coração humano, na perspectiva da de cada verso, na surpreenden- verdade, da beleza e do encantamento. te rutilância de cada imagem, na Os poemas de Antonio Brasileiro, reunidos em inesperada costura do fio idea- Dedal de Areia (Rio de Janeiro, Garamond: 2006), cor- tivo. Pois, à maneira pessoana respondem ao ideário dessas considerações, princi- e ao modo eliotiano, a poesia de palmente no que concernem ao equilíbrio intrínseco Antonio Brasileiro é uma poesia entre conteúdo e forma, entre palavra e pensamento, que pensa: pensa, sentindo; sen- entre palavra e emoção. Quer seja nos poemas mais te, pensando. curtos da primeira e terceira partes da coletânea, quer O que se desfaz e não obstante seja na segunda, composta pelo poema longo, “O ca- permanece; o elemento insusten- valeiro”, em seus 27 movimentos . tável, porém, que alicerça; o que Há, assim, em sua dicção lírica, uma linha de pro- não tem durabilidade e é eterno; porcionalidade demarcando a voz poética entre a enfim, tudo o que pode se - con delicadeza ou a leveza dos vocábulos e o fundo exis- substanciar no emblema desta tencial e perceptivo que alicerça sua visão de mun- metáfora – “a espuma das coi- do. À coloquialidade, responsável pelo tom não raro sas” – como que se move inter- conversacional do verso, ligam-se, em certo sentido, namente na melodia dos versos, o rimo da mentalização aforismática e alguns inter- corporificando possivelmente valos de distância crítica por onde escorrem as gotas um dos vetores temáticos mais sutis de uma velada ironia. agudos e recorrentes de sua ex- Se a matéria sensível, se o complexo emocional, se o pressão poética. imperativo das ocorrências existenciais não escapam No poema “Como aqueles ao apelo do tecido verbal e, mais particularmente, à títiros bucólicos” (p.15) a enun- configuração metafórica, não transbordam, todavia, ciação verbal traz à tona a ideia de seus limites combinatórios, ajustados que estão às do “imenso/silenciar dos que sa- exigências da gramática estética que regra a arquite- bem ser/tudo/o passar/das coisas tura do poema. esquecidas de passar”. No texto A poesia, portanto, deste poeta de Feira de Santana seguinte (p. 16), titulado com a (BA), inscreve-se na casa do poema, tocada sobretu- metáfora emblemática atrás refe- do pelo olhar emotivo, atento às nuances imperceptí- rida, o eu poético, num diálogo c

| João Pessoa, junho de 2019 20 Correio das Artes – A UNIÃO 6 convivência crítica c consigo mesmo, enuncia: “Sos- fotos: reprodução internet sega, peito meu, és só a espuma/ das coisas vãs gozadas uma a uma”. Mais à frente, no poema “Cais” (p. 20), ainda sob o pris- ma dialógico e coloquial, tão ca- racterístico deste discurso, a fala lírica assim o conclui:

“A estrada é uma só estrada, meu filho. E abandonados estamos no imenso cais. nenhum barco vem ou vai”.

À página 36, no texto meta- linguístico “Escrevo-te”, a perti- nente e sugestiva reflexão acerca da própria poesia:

“{...} Que é a poesia senão o não sabermos de nós mesmos, o incorrigível jamais nos co- nhecermos”.

A propósito, o motivo da poe- sia, em seus percursos sinuosos, sobremaneira nos embates que enfrenta no mundo contemporâ- neo, é motivo nuclear no poema “O cavaleiro” (p. 43-72). O poe- ta apresenta-se, aqui, como um Quixote em diálogo com seu es- cudeiro, perfazendo o caminho da linguagem e da vida e, como todo autêntico poeta, cuidando das palavras em sua energia re- novadora e em suas prefigura- ções utópicas, ao mesmo tempo em que descortina, impulsio- nado pela fantasia criadora, os Antonio Brasileiro e a abismos e as luzes da beleza. capa de ‘Dedal de Areia’: equilíbrio intrínseco entre O à vontade do estilo se exer- está em tudo”. Está, por exem- conteúdo e forma, entre cita mais livremente na última plo, como sugere o poeta, em palavra e emoção. seção do livro. Apalpar as ofertas sua enunciação lírica, nos versos do cotidiano e usufruir de um finais da página 92, na “inglória doce namoro com a banalidade de sabermos que não há//fora de parece imprimir a nota central nós nada que não/se perde ou dos poemas que a compõem. O acaba”. tom é todo lúdico, a perspectiva, Lendo e relendo os poemas sem a afetação de falsas esperan- de Antonio Brasileiro, vivo que distingue o poema da fabri- ças, como que coloca a poesia no aquela espécie de assombro, ex- cação literária”. O que também contato direto e corpóreo com os perimentado por Octavio Paz ocorre, quando da leitura de ou- insumos da vida, com as peque- diante da poesia de E.E. Cum- tros poetas baianos, a exemplo nas rotinas, desfazendo os este- mings, isto é, a constatação da de um Ruy Espinheira Filho, de reótipos da suposta gravidade “rara aliança entre invenção um Floriswaldo Matos, de um que sustenta a pompa de certas verbal e fatalidade passional Roberval Pereyr, entre outros.I teorias. Talvez Manuel Bandeira se esconda nas entrelinhas de Hildeberto Barbosa Filho é poeta, crítico de literatura e professor da certos poemas: afinal, “a poesia Universidade Federal da Paraíba. Mora em João Pessoa (PB).

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, junho de 2019 | 21 POE Luís Estrela de Matos

ilustração: domingos sávio Os devires nos dançam Dez leis para ser feliz Me chega um e-mail quase transbordante De uma amiga feliz E fico atônito pois Seja de cury(osos) ou de coelhos alquimistas Ou de Gandhis fim de tarde A verdade é que sou assim, Sem felicidades e sem rumores Apenas interminável Não sei ser eficiente, inteligente e moralmente Saudável Em dez lições,

Nem alegre nem triste Talvez nem poeta Seja Este que escreve

Apenas um estar no mundo Com uma pré-disposição e Alguns dispositivos que acontecem Em mim No meio de rizomas e platôs E eu comungando da comida E SENDO alface quando alface me vê E estando pepino quando pepino engulo E bonequinhos e suas falas invisíveis No meio de diálogos tão imaginários porque fortemente reais Dos tantos quereres do único filho que tenho E vejo filmes e leio livros e sinto coisas E sou Kurosawa e Livro do Desassossego e sou coisa palpável Maleável ou dura como aço bem temperado ou um ferro lá românico em igreja esquecida Sem estrutura numa calada aldeia Sem prisão do extinto Portugal Sem função E não sei o que é ser feliz pois não procuro Sem salários por receber A tal da lagoa azul Que ele fosse essa alegria Ou o monte Kilimanjaro Mais clandestina Nem Ottawa ou Nova York De uma vida nômade e Apenas lembro enquanto tópico proibida que já amei muito De um pensamento tuareg E isso era infinito e que estou na finitude Onde o corpo pudesse Do que experimentei SER, E não tenho mais fórmulas para viver Isto Não sei o que fazer deste corpo Sem Talvez uma fantasia maior Órgãos

| João Pessoa, junho de 2019 22 Correio das Artes – A UNIÃO SIA Luís Estrela de Matos Pequeno lago no nepal Nas bordas da lógica A fantasia se reflete Enquanto caos original

Solipsismo ou Kafka joga pião? Quando acabarmos de rir o que iremos fazer? para onde ir?

Luís Estrela de Matos é poeta, contista e pro- fessor universitário. Colabora em veículos midiáticos e revistas virtuais do Brasil e do exterior. Mora em Aracaju (SE).

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, junho de 2019 | 23 ilustração: Tonio 6 ensaio

A peste: Camus, Artaud e Rubens

Raquel Naveira Especial para o Correio das Artes

nteressante a teia de pensamentos e tex- solidariedade, ternura, a resistência atra- tos que vai se formando entre leitores e vés da arte, o amor ao próximo. Rieux é o escritores. Li o artigo de Vera Lúcia Oli- símbolo do médico que vence o anjo ex- veira, psicanalista e professora radicada terminador, o médico da esperança. I em Brasília, no Jornal de Letras (RJ), in- Isso me remeteu imediatamente ao en- titulado “A peste e A Peste de Camus”. saio O Teatro e a Peste, de Antonin Artaud Trata-se de uma resenha do romance A (1896-1948), o encenador francês, poeta, Peste, do escritor franco-argelino, Albert dramaturgo de aspirações anarquistas, o Camus (1913-1960). Um dia, na pequena bruxo, o louco, o esqueleto vivo, o profe- cidade de Óran, aparece um rato morto ta excêntrico. Sentia-se desconectado de na escada do consultório do Dr. Bernard suas origens, oprimido por forças malig- Rieux. Era o primeiro sinal da peste, que nas e anuladoras. Nesse estado, entre vi- se alastrou, ceifando vidas, trazendo à sões de sangue e horror, conta-nos sobre tona o melhor e o pior do ser humano: a chegada, no começo de maio de 1720, pavor, medo, indiferença, paralisia, fuga, de um navio a Marselha, recheado dos c

| João Pessoa, junho de 2019 24 Correio das Artes – A UNIÃO c ratos da peste, um vírus vindo tramas de Shakespeare. ao seu médico, Dr. Frediêre, em do Oriente. Sob a ação do flagelo, Aprofundei-me nesses estu- terrível sofrimento, foi encontra- a ordem desmorona. É como se dos sobre Artaud, sobre sua ati- do morto em seu quarto de hos- a doença fosse um instrumento vidade intelectual frenética. Ele, pício. Deixou roteiros, ensaios, direto da materialização de uma de pouco convívio social, arra- peças e uma ópera. E também entidade, de uma força inteligen- sado depois de uma paixão frus- um material vocal, em que seus te a que chamamos de fatalidade. trada, cada vez mais dependente gritos batem, cavam, espetam, Vêm a fadiga atroz, o estômago de ópio para aplacar as dores na tremem, em surpreendentes embrulhado, o pulso fraco, a lín- cabeça e nos ombros, viajou para exercícios teatrais. gua grossa, os bubões na virilha o México, numa busca esotérica, Veio lá de entre os morros de e nas axilas, através dos quais o de contato com as cerimônias sa- Aquidauana (MS), o ator que organismo descarrega sua podri- gradas dos índios Tarahumaras. melhor representou Artaud no dão interior. São como estranhe- Era uma tentativa de encontrar teatro: Rubens Alves Correia zas, mistérios, contradições pro- respostas para seus tormentos. (1931-1996). Rubens foi intérprete vocando rupturas e espasmos. Ficou fascinado pelo sol do Méxi- magistral. Em 1986, concebeu o Acendem-se fogueiras para quei- co, pela imagem cênica do impe- monólogo-espetáculo chamado mar os cadáveres. E é aí, segundo rador asteca Montezuma. Acre- Os Inumeráveis Momentos do Ser, Artaud, que o teatro se instala. ditava ser incrível para o teatro no porão do teatro Ipanema, no O teatro leva a atos absurdos. o tema da conquista do México Rio de Janeiro. Foi uma monta- A situação do pestífero é idêntica pelos espanhóis. gem marcante que lhe rendeu à do ator penetrado e transfor- Inspirada nessa ideia, escrevi inúmeros prêmios. Desenvolveu mado por seus sentimentos, per- os vinte primeiros cantos da co- o personagem com toda a alta seguindo a sua sensibilidade, em letânea Stella Maia e Outros Poe- carga dramática, prevista no tea- meio a um público de mortos e de mas (Campo Grande/MS: UCDB, tro da crueldade. alienados. A ação do teatro e da 2001). “Stella Maia” é a estrela de Rubens de fato encarnou Ar- peste estão no plano de uma ver- fogo iluminando o México. Uma taud. Eram ele e seu duplo. Pe- dadeira epidemia. O ator trágico mulher-sol adornada de plumas, netrou no domínio da dor, da permanece num círculo puro e colares de pedra, braceletes me- sombra, do nada. Gemia e con- fechado. Há semelhança entre a tálicos, segurando um girassol torcia-se no palco, explodindo peste que mata sem destruir os amarelo. É a estrela das civiliza- angústia. Caminhava pelo misti- órgãos e o teatro que, sem matar, ções perdidas dos astecas e dos cismo com poesia e fulgor. Esbu- provoca no ânimo dos indiví- maias. Era no México que vivia galhava os olhos. A boca, como duos e do povo, profundas alte- o espírito do Jaguar, sobre o vale um rasgo na face, tinha ânsia de rações. Como a peste, o teatro é onde hoje jaz a raça índia. Era ali beijos que não vieram nunca. um delírio comunicativo. que os deuses exigiam ofertas de Rubens amava a terra verme- Há no teatro, como na pes- corações humanos com suas bo- lha de Aquidauana assim como te, algo de vitorioso e vingati- cas de pedra. O imperador Mon- Artaud amava as montanhas do vo ao mesmo tempo. Acontece tezuma bem que pressentiu na México. Rubens desenhava tem- um imenso expurgo. Há um fumaça do incenso e nas luzes na pestades com as mãos como se incêndio espontâneo. Uma li- névoa, os navios de asas brancas fosse Van Gogh suicidado. Ru- quidação. Assim como a peste, que se aproximavam como fan- bens ficava possuído, rodeado de o teatro refaz o elo entre o que tasmas sobre o mar, trazendo o corvos, sufocado por espíritos. é e o que não é. O teatro nos extermínio. Veio então a terrível Rubens via valor na loucura e desperta, comove, nos restitui aliada: a peste, a varíola, com dava forma à ameaça que era Ar- conflitos adormecidos, trava seu manto púrpura, passando taud. Rubens, ator cheio de com- batalhas de símbolos poéticos, por cima de toda uma população paixão pelo homem e pelo gênio signos de forças maduras. Uma ameríndia. incompreendido, fingiu que era verdadeira peça de teatro per- Artaud desejava lavar a sua Artaud. Fingidor. turba os sentidos, libera o in- alma. Não creu que isso fosse Vera Lúcia, como me fez cami- consciente, leva a uma revolta, possível com o legado cristão nhar em lembranças o seu artigo! impõe à coletividade reunida que recebera: o sangue do Cor- O teatro e a peste são benfazejos uma atitude heroica e difícil. O deiro. Recorreu então às bebe- porque fazem cair as máscaras teatro é como a peste: revela e ragens dos cactos do deserto e põem a descoberto o quanto exterioriza um fundo de cruel- mexicano. De volta à França, somos pobres, miseráveis e nus. dade latente em nós. É o triunfo debilitado, entre eletrochoques Nossa sede de teatro só será sa- de forças negras que uma força e cartas lúcidas e desesperadas ciada no Juízo Final.I maior leva à extinção. O teatro existe para vazar abscessos. É uma epidemia salvadora. É Raquel Naveira é escritora, nascida em Campo Grande (MS). É professora uma crise que se resolve pela universitária, crítica literária, Mestre em Comunicação e Letras pela morte, pela cura ou pela extre- Universidade Presbiteriana Mackenzie (São Paulo), autora de vários livros de ma purificação. É a catarse que poemas, ensaios, romance e infantojuvenis. Pertence à Academia Sul-Mato- Grossense de Letras (onde exerce atualmente o cargo de vice-presidente), atingimos, por exemplo, assis- à Academia Cristã de Letras de São Paulo e ao PEN Clube do Brasil. Reside tindo às tragédias gregas e às atualmente em Campo Grande (MS).

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, junho de 2019 | 25 6 resenha

Foram as deixas necessárias A filosofia para que Paulo Tarso resolvesse fazer o doutorado, pela Unicamp, deleuziana em sobre as relações entre a obra Grande Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, e a filosofia do francês Gilles Deleuze. Não só isso, como enfatiza Paulo: “Mas Sertão: Veredas o que me coagiu, me forçou, me levou a pensar de verdade nesta ideia foi a leitura de Proust e os Signos, do Deleuze, um dos livros Linaldo Guedes que mais me impressionaram na [email protected] vida. Fiquei impactado e vi, ali, um caminho, um intercessor para ler Guimarães Rosa em boa compa n h ia”. erta vez um professor de Teoria Literária na Unicamp A ideia de encontrar elos entre (SP), conhecido como Haquira, informalmente pega a filosofia de Deleuze e a obra de Paulo Tarso Cabral de Medeiros dizendo algo assim: Rosa não foi fácil de ser execu- Você quer ter uma experiência de vida única, insubsti- tada. No início, Paulo Tarso não C tuível, intransferível? Leia o Grande Sertão: Veredas! “Já sabia no que isso iria dar. Relia tinha lido no mestrado e já tinha ficado deslumbrado, e relia Grande Sertão e ficava em claro, mas guardei a genial recomendação”, conta Pau- êxtase, maravilhado, e lia mui- lo. Depois, numa caminhada pelo calçadão do Cabo ta filosofia. “Trabalhava muito, Branco, em João Pessoa, olhando o mar azul e infini- morava sozinho, me alimentava to com seu orientador, Luiz Orlandi, este acena assim: mal. Levava sempre um livro e “Por que você não pega Grande Sertão? Veja quantos aquelas canetas coloridas, sen- conceitos do Deleuze estão lá...” tava num daqueles fiteiros na praia, tomava cerveja e grifava. Isto, todos os dias, por cerca de fotos: divulgação dois anos”, revela. Sim, Michel Focault já dis- se uma vez que o século seria deleuziano. Mas até Rosa seria também? Nascido em 1925 e fa- lecido em 1995, Gilles Deleuze Paulo Tarso e a capa foi influenciado por Nietzsche, do livro ‘Travessuras do Desejo em Grande Henri Bergson e Spinoza, entre Sertão: Veredas’, que outros. Para ele, filosofia é a cria- acaba de sair pela ção de conceitos. Sua filosofia é Arribaçã: ideias do considerada, por alguns, como filósofo francês são aplicas sobre a obra a filosofia do desejo. Guimarães de Guimarães Rosa Rosa nasceu em 1908 e morreu em 1967. É considerado pela crí- tica o autor mais inventivo da li- teratura nacional na prosa e não seria exagero considerá-lo um Ja- mes Joyce dos trópicos, com seu realismo mágico, regionalismo, liberdade de invenções linguís- ticas e neologismos – tudo isso presente em Grande Sertão: Vere- das, afora a intrigante história de Riobaldo e Diadorim. Paulo Tarso transformou sua tese de doutorado no livro Traves- suras do Desejo em Grande Sertão: c

| João Pessoa, junho de 2019 26 Correio das Artes – A UNIÃO foto: reprodução internet c Veredas (Arribaçã Editora, 2019). No livro, como na tese, Paulo vai além do encantamento pela poe- sia contida na obra de Guimarães Rosa. Muito mais. Sobre o método empregado na construção da tese, Paulo Tarso revela que sente-se parte daqueles intelectuais que estão convencidos que, na história das ideias, existe um antes e um de- pois dos acontecimentos de 1968 por toda a parte. “De repente, me sentia livre e me agarrei a frases de Deleu- ze, do tipo ‘Não há nada a com- preender, nada a interpretar’. Os conceitos são como sons, como cores, como intensidades que te convém ou não, são como anéis partidos que você conecta ou desconecta ao sabor das suas es- tratégias, das suas premências teóricas, aos seus desejos. Faça o que o seu desejo quiser, ele diz, mas passe antes pelos estágios de conhecimento que Nietzsche bem definiu como sendo o “es- tágio camelo”, a acumulação trá- gica do saber; depois o “estágio leão”, a revolta e a liberação deste peso acumulado nas costas, até chegar ao “estágio-criança”, ou “devir-criança”, aquele no qual você cria brincando e brinca criando...”, teoriza Paulo. Pergunto-lhe a quais conclu- Gilles Deleuze foi sões chegou após a finalização influenciado por do seu trabalho. Paulo cita a clás- um precioso aliado teórico nes- Nietzsche, Henri sica frase de Sócrates, “Só sei que Bergson e Spinoza te trabalho, sem que tivéssemos e para muitos, nada sei”, e que é necessário ler nos conhecido antes. O generoso seu pensamento e reler os grandes autores, sem- prefácio dele dá mostras de sua é considerado “a pre. “Que o pensamento em arte imensa erudição e sensibilidade. filosofia do desejo” e em filosofia é belo e trágico, que Como tal, dialoga com a Linguís- é prazeroso e dói, que tudo pulsa tica e a Filosofia por caminhos e que só a cultura pode nos tirar que algumas vezes nem consigo da barbárie, do horror cotidiano, alcançar”, afirma. dos conservadorismos reativos, E continua: “Sei que estamos dos fluxos fascistas em nós e nos juntos nesta amigável polêmica, podres poderes, nos fazer resis- acreditando que a ideia de lite- tir a opressões, e essencialmente ratura como representação, mi- Afinal, para Deleuze, Lite- afirmar a vida”, completa. mese, transposição simbólica do ratura é invenção de mundos real, nos dá pouco, muito pouco possíveis, criação de seres de Pipoca moderna sobre a obra literária, embora se sensação. “Daí que, nesta trilha, O livro tem prefácio de João possa tirar bons proveitos desta segundo Hansen, as formas sin- Adolfo Hansen, professor da herança crítica, como espero ter gulares de Rosa sejam seu proje- USP, que entende que Paulo lê a mostrado ao longo do livro. Daí to político de dar forma ao infor- literatura de Rosa como encena- que esta destruição das formas me. Eu concordo. Mas há aí uma ção de atos de fingimento. Ao co- lineares do realismo, deste efei- estória curiosa, que talvez valha mentar essa assertiva, Paulo des- to fictício que dissolve as repre- a pena contar: depois de ter ad- taca que Hansen é um profundo sentações para efetuar o vir-a- mirado e elogiado meu trabalho estudioso da linguagem, com -ser- das sensações desemboque ele disse: ‘você não acharia mais um “espantoso” livro chamado nesta ‘encenação de atos de fin- apropriado citar ´Pipoca Moder- o O, sobre Guimarães Rosa. “Foi gimento’ que você fala”. na´, de Caetano Veloso,, ao invés c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, junho de 2019 | 27 c da canção de Chico Buarque e ponto central de articulação do explicaria estas noções com fa- Cristóvão Bastos?’. Perguntei se enredo; como, se ele próprio não cilidade. Mas seriam noções su- era uma leve provocação, e ele sabe se houve, houve? Não hou- ficientemente explicativas para disse que sim, que eu ficasse à ve? Uma metamorfose sim, uma me dar o que nos arrebata e nos vontade...”, relata. (Em tempo: no potência de vir-a-ser, contida ultrapassa em Grande Sertão: Ve- livro, Paulo Tarso cita a canção nas dobras e redobras de todo redas?” ‘Todo o sentimento’, de Chico acontecimento pode ser um ca- Buarque e Cristovão Bastos. minho menos simplificador. Emboscada “Fiquei pensando nela um Imagino que assim se usa De- Luiz Orlandi fala de embosca- bom tempo. É claro que ‘Pipoca leuze como ele provavelmente das roseanas. Paulo Tarso obser- Moderna’, com sua criatividade, gostaria”, provoca. va que Orlandi é um dos raros sua forma híbrida, sua surpresa, Analisar uma obra tão com- professores de filosofia que - fa sua mescla de tradição e inven- plexa como Grande Sertão à luz zem pensar (ao invés de repetir ção tem tudo a ver com a grande da filosofia não é tarefa fácil, o já dito, o já escrito) e estimula obra de Rosa. Mas a canção do repetimos. Principalmente, se provocando. “Emboscada, pra Chico Buarque, na pungente in- tomar Grande Sertão como uma mim, foi me meter com esses dois terpretação de Zizi Possi, me fa- obra cuja memória é móvel de gênios da linguagem e do pensa- zia chorar, e eu entrevia algo ali, aprendizagem. “Daí em dian- mento, tendo de caminhar muito muito, muito do que se passava te, boa parte do Deleuze jorra e no estágio-camelo, tentando de- entre Riobaldo e Diadorim. Dei- é possível assim estabelecer um cifrar, entender, digerir e fixar a xei assim”, acrescenta. encontro feliz. Daí os conceitos plêiade de conceitos criados por deleuzeanos de signo, estratifi- Deleuze, Guattari, Foucault, um Pura poesia cação, multiplicidade, devir, e certo Freud, um certo Lacan, etc. O que seria mais original e tantos outros vão se anelando O próprio Deleuze dizia que pre- arrebatador na obra de Rosa? aos devires do próprio narrador, feria ter como alunos e leitores “Tudo”, resume Paulo. Na sua bastando apenas o enorme esfor- justamente os não-estudantes- avaliação, um livro que come- ço de aproximá-los para fazer ver -de-filosofia, pois que naqueles ça com uma palavra chamada a força da literatura e da filosofia seus desejos se mobilizavam. Se “nonada” e termina com o sím- quando se encontram”, teoriza. você bobear você estanca, se pa- bolo matemático do infinito, só Paulo ainda questiona: “Por ralisa, se consome em tecnicali- pode ser pura poesia, lirismo exemplo: fala-se demais na vio- dades próprias da Disciplina e aí surpreendendo e arrebatando o lência, no universo da jagun- sua sensibilidade, suas emoções, leitor, e fazendo-o pensar, já que çagem e do coronelismo para suas percepções e afetos podem contém variados processos de compreender (?!?) Grande Sertão. te atrofiar, correndo o risco de mutação, de multiplicidade, de Ora, um bom livro de Sociologia meramente ‘repetirrepetir’ qual- assujeitamento, enfim. quer definição contida na imen- “Gosto de lembrar o momento, sa bateria conceitual que outrora ainda meio no começo do livro, eventualmente sentia ao ler e ou- no qual Diadorim aponta para Sobre Paulo Tarso vir estes criadores”. Riobaldo, um passarinho na ár- Paulo Tarso revela que uma vore, e fala da beleza das suas Paulo Tarso Cabral de coisa que lhe dói na tese foi não cores, da sua tenra e terna alti- Medeiros é professor do ter dedicado, quem sabe um capí- vez, da sua elegância e destreza, Departamento de Ciências tulo, às mulheres no Grande Ser- quando o jagunço-narrador, diz Sociais, do Programas de Pós- tão. “Mutema, Nhorinhá, há uma algo como: ‘Eita, e eu que achava Graduação em Sociologia e do ternura e uma sutileza imensa que passarinho era só pra caçar, Programa de Pós-Graduação em de Riobaldo aí, há as putas que matar e depois comer!’. E assim Filosofia da Universidade Federal as tropas de jagunços visitam vai Riobaldo, olhando aquele ja- da Paraíba (UFPB). Graduado quando podem. Aqui Riobaldo gunço que admira, sente e bota em Ciências Sociais, Mestre em exerce sua multiplicidade-jagun- beleza na natureza, assim vai se Teoria Literária e Doutor em ço sem qualquer estranhamento, fixando no narrador este signo, Filosofia, todos pela UNICAMP está bem estratificado. No mais, este enigma: Diadorim? Diado- / SP, é autor de “A Aventura da se eu pudesse resumir este livro rim? O que é? E eu? Fui? Sou?”, Jovem Guarda” (Brasiliense) em uma só ideia eu diria: nós so- comenta. e “Mutações do sensível - mos múltiplos mas dispomos de Fascina também, segundo ele, rock, rebeldia e MPB pós-68” poucas formas sociais para exer- o fato do narrador, ao contrário (Manufatura), além de colaborar cermos intensamente estas mul- da ânsia totalizante de tantas em algumas coletâneas e de tiplicidades”, finaliza.I leituras apressadas e redutoras, publicar vários artigos em jornais estar quase sempre em estado de e revistas acadêmicas. interrogação. Foi? Não foi? Sei? Não sei? O senhor me organi- za? “Não se pode desprezar esta Linaldo Guedes é jornalista e poeta. Publicou 11 livros, sendo quatro de poemas. superfície estruturante da pro- Entre eles, “Os zumbis também escutam blues” e “Metáforas para um duelo no sa. Nem o pacto com o demo é sertão”. É repórter do Correio das Artes e mestre em Ciências da Religião.

| João Pessoa, junho de 2019 28 Correio das Artes – A UNIÃO 6 artigo

habitados de gestos como os de Ângela, que ajudam a construir uma nova paisagem humana, pois como resultado de seu es- Em busca forço na sala de aula, muitos de seus ex-alunos tornaram-se de leitores ausentes professores, assumiram cargos relevantes na vida pública, até mesmo chegando ao cargo máxi- ilustração: Tonio José Nunes mo de governador, e o que é mais Especial para o Correio das Artes importante: tomaram gosto pela arte, valorizando o livro. Quando vejo jovens em livra- Paraíba é pródiga em escri- rias, manuseando obras de arte, A tores e eventos culturais. ao seu modo comentando um Isso ninguém pode negar. Ca- livro, o contentamento se espa- fés culturais e poéticos surgem lha na minha alma. Igualmente povoando a cidade, pois são emociona quando vejo, em casa, ambientes harmoniosos de con- meus netos, ainda no nascedou- vivência com as artes. Rara a ro das descobertas do mundo semana quando não se tenha das letras, fuxicando na biblio- lançamento de livros, inclusive teca. Indagando-me sobre qual simultaneamente. É salutar ver a história é contada em determi- obras literárias ao alcance de lei- nado livro, então, recordo que na tores, algumas de grande valor idade deles tinha poucos livros estético e outras nem tanto, mas em casa e não havia ninguém que compõem a paisagem de para me orientar. Enriquece-me nossa cultura. o ânimo de escritor vendo-os ali, O escritor precisa ir atrás de escutando a mãe fazendo a leitu- leitores ausentes, numa busca ra para eles. que começa em casa, com os fi- Quando criança, na escassez lhos, quando pequenos, e depois de livros e sem quem me ensi- com os netos, suscitando o gosto nasse, eram os contadores de pela leitura. É um processo que histórias que preenchiam esse deve envolver atores em diferen- vazio. Como tenho saudades tes níveis. A divulgação sistemá- ao lembrar-me de Seu Gabriel e tica é ingrediente salutar, como Dona Mocinha, casal que de tem- também percorrer escolas, deba- pos em tempos apareciam em Ta- ter e interpretar texto nas salas puio, em Serraria, vindos da re- de aula. Levar o livro às praças, a gião do Curimataú. Gostávamos todos os recantos, é um caminho de ouvi-los narrando histórias de para criar novos leitores. reis e rainhas que nem sabiam Conduzida pelo sentimento se existiram. Contava para nós o de que a leitura é a matriz de crita. Com seu gesto, de forma que faziam os príncipes valentes toda a transformação intelectual persistente, a professora alicer- que enfrentavam dragões e guer- humana, quando dava aulas de çou o edifício da sabedoria entre reiros ferozes para defender as Português, na antiga Escola Téc- jovens que ela talvez nem saiba belas princesas. Histórias que se nica Federal, a professora Ângela por onde andam. Mas, certa- misturavam com as façanhas de Bezerra de Castro levou às salas mente, serão consumidores de cangaceiros que habitaram pelo de aulas obras de autores parai- livros, e se lembram dos ensina- esturricado Sertão do Nordeste, banos, fazendo conhecidos ainda mentos da mestra. que chegavam até nós por meio mais cronistas que, diariamente, Neste recanto aspergido pela dos folhetos de feira. ocupavam as páginas de jornal. brisa do mar, têm surgido pon- Fomos leitores destes contado- Da sala de aula, onde era fei- tos que tornam a arte visível, res de histórias, que me fizeram ta a análise do texto, a obra era ambientes harmoniosamente criar apego pela leitura.E debatida. Os alunos saiam para as páginas dos jornais e busca- José Nunes, natural de Serraria (PB), 65 anos, casado, atua na imprensa desde vam, nos livros, o lenitivo para 1978, publicou livros de crônicas, biografias e poesia. Sócio efetivo do IHGP. É a alma, e dos livros para a es- Diácono Permanente na Arquidiocese da Paraíba.

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, junho de 2019 | 29 6 scholia Milton Marques Júnior [email protected] O Latim Vive

incansável tradutor português Frede- leitura de textos latinos em prosa e em rico Lourenço - Ilíada, Odisseia, Novo verso (p. 11)”. Testamento e terminando o Velho Testa- Não tenho dúvidas de que se trata, mento, já tendo publicado o primeiro realmente, de uma nova gramática, de O volume sobre os profetas - nos brinda um novo método, com informações com a Nova Gramática do Latim, pu- importantes, muitas ditas de modo blicada, neste ano de 2019, pela Edi- simples, mas que são sonegadas por tora Quetzal de Lisboa. A gramática outros estudiosos. chegou-me quentinha às mãos pela O que podemos destacar neste livro gentileza de Eduardo Pazera Junior, de Frederico Lourenço é a sua preocu- professor de Geografia aposentado da pação didática e, sobretudo, sem rebus- UFPB e estudioso das Letras Clássicas. camento, sem a poeira que prejudica a Um grande presente, sem sombra de informação, de que ele fala no Pream- dúvidas. bulum. Queremos crer que se trata do Com uma proposta de ensinar o professor preocupado com o dia-a-dia latim de modo diferente das gramáti- da sala de aula e com a aflição legítima cas tradicionais, Frederico Lourenço de saber como veicular a informação Capa da ‘Nova compõe o seu trabalho estruturado em até os alunos, de forma que ela se torne Gramática do sólidas bases da linguística histórica, conhecimento. Latim’, que acaba fazendo as conexões necessárias entre Por isto mesmo, se a proposta dos de ser lançada pela o sânscrito, o grego e o latim, e ofe- estudos latinos, já há algum tempo, é, editora portuguesa Quetzal r e c e n do informações valiosíssimas conhecendo a morfossintaxe da lín- ao estudioso da língua de gua, evitar a repetição desnecessária, Virgílio, que, normalmen- Frederico Lourenço a põe em prática, te, não são encontradas mostrando, por exemplo, que se a con- em outros compêndios jugação verbal pode apresentar algu- semelhantes. Em suas mas complicações mínimas no infectum próprias palavras, no (aspecto verbal da ação inconclusa), Preambulum, podemos todos contornáveis com o aprendiza- ler o seguinte: do da morfologia verbal, no perfectum (aspecto verbal da ação concluída), há “Este livro preten- uma regularidade sonolenta que atin- de oferecer a todas ge, inclusive, os verbos irregulares, estas pessoas (os não havendo, portanto, necessidade de interessados em sa- esmiuçar paradigmas. ber latim) uma gra- Se o estudante aprendeu o que é o mática nova, cujo radical ou o tema do verbo, como num objetivo é siste- jogo de Lego, ele apenas os substitui, matizar de forma pois os sufixos modo-temporais e as de- desempoeirada sinências número-pessoais são sempre os tópicos es- as mesmas. Basta prestar atenção às senciais para a DNPs exclusivas do presente perfectum c

| João Pessoa, junho de 2019 30 Correio das Artes – A UNIÃO 6 scholia

foto: reprodução internet c do indicativo (pretérito perfeito do indicativo). Como são exclusivas, só aplicam nesse tempo, o mais é repetição. Por outro lado, é importante ouvirmos alguém de seu quilate dizer o que muitos se recusam a pronunciar, porque, de certo modo, guarda-se uma aura sa- grada em relação ao latim ou ao grego, imaginando-se ou pas- sando a falsa ideia de que todos falavam e os escritores escreviam sempre de uma forma escorrei- ta. Isto é visível com relação ao ablativo singular da terceira decli- nação, que, em muitas palavras se faz em -i, igual ao dativo, em lugar de ser em -e, a desinência regular. Não só existe a variação em determinadas palavras, como alguns escritores faziam a con- fusão, usando um em lugar de outro, às vezes conscientemente, por questão métrica, já que o -ī é longo e o -ĕ é breve. O mesmo se dá com algumas sílabas verbais, que sofrem estas oscilações na Frederico Lourenço compôs e livro poesia de grandes poetas, como estruturado em sólidas Catulo e Ovídio. bases da linguística Muitos dos problemas do no- histórica, fazendo minativo da terceira declinação conexões entre o sânscrito, o grego e o seriam sanados se os professores latim se preocupassem a mostrar um fato corriqueiro no latim, o rota- cismo do fonema -s, que permiti- ria ao estudante fazer o caminho 1) A inclusão da segunda pes- um livro para iniciantes, mas inverso do genitivo ao nominativo, soa do singular do presente do infi- para iniciados. Em muitos dos de Veneris, para Venus. Na expli- nitivo infectum, na entrada lexical momentos, quem não tem qual- cação da transformação do -s em do verbo, diferentemente do que quer conhecimento do latim ou -r, o rotacismo, o professor faz, pensa Frederico Lourenco, tem a não aprendeu a morfologia da naturalmente, a ponte para a lín- utilidade de fazer o estudante de língua portuguesa terá muitas gua portuguesa e mostra o quan- latim reconhecer, de imediato, a dificuldades para entender o que to isto é comum, por exemplo, conjugação verbal. está sendo proposto. no grupo -sm: cisma/cirma; esmo/ 2) Na quarta declinação, espe- Esclareço, no entanto, que ne- ermo; mesmo/mermo; lesma/lerma; rei que ele dissesse que muitas nhuma das considerações que gosma/gorma; asma/arma; carisma/ palavras são deverbais, prove- faço diminui a excelência de sua carirma. nientes do supino, sendo, por- gramática, vendo como a mais Ressalto também a discussão tanto, palavras de radical dinâ- completa em língua portuguesa que Frederico traz à tona do -ĕ da mico – usus, factus, casus, actus, e sem minúcias rebarbativas. terceira conjugação. Como defi- tactus... –, daí que a maioria dos Enfim, como mais uma prova ni-lo? Vogal de ligação, vogal te- substantivos dessa declinação é de que o latim está vivo, sim se- mática ou seria preferível e bem masculina, significando o ato de, nhor!, e bem de saúde, esta gra- útil, principalmente a quem tra- a ação de. mática não pode faltar na biblio- balha com metrificação, lembrar 3) Embora reconheça a dife- teca do estudioso de latim, seja I que se trata de uma vogal breve? rença e a excelência de sua gra- ele estudante ou professor. São coisas assim, que faltam às mática, em relação a outras que outras gramáticas. conheço, tenho dúvidas que al- guém que ignore os rudimentos Gostaria, no entanto, de fazer Milton Marques Júnior é professor algumas considerações, que, con- da língua latina possa acompa- da Universidade Federal da Paraíba sidero úteis no ensino do latim. nhá-la sozinho. Não se trata de (UFPB). Mora em João Pessoa (PB).

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, junho de 2019 | 31 6 ensaio ilustração: domingos sávio

Não era bem isso o que cha- mávamos quintal na casa de O carnaval de meu avô materno no Recife, a casa da Rua da União que cele- brei num poema. (...) Minha avó estimulava as minhas veleida- des de hortelã: “Plante estes tali- nhos de bredo, que quando eles Manuel derem folha eu lhe compro”. E eu plantava e ela comprava o bredo, e com esse dinheiro com- prava eu flecha e papel de seda para fabricar meus papagaios... Bandeira Essa atividade não me fez agri- cultor nem negociante, mas as horas que eu passava no quintal André Cervinskis eram de treino para a poesia. Especial para o Correio das Artes Na rua, com os meninos da mi- nha idade eu brincava ginasti- camente, turbulentamente; no anuel Carneiro de Souza Bandeira nasceu no dia 19 de quintal sonhava na intimidade abril de 1886, na cidade do Recife, filho de uma dona de de mim mesmo. Aquele quintal casa e de um engenheiro. Em 1890, sua família transfe- era o meu pequeno mundo den- riu-se para Petrópolis, no Rio de Janeiro. Quando tinha tro do grande mundo da vida... M seis anos, a família regressou ao Recife, onde ele perma- (BANDEIRA, 1997, p. 220) neceria por mais quatro anos. Em um lugar encantado, que era a casa de seu avô, ele idealizou o seu locus ima- As figuras populares da terra ginário, refúgio poético (Pasárgada), onde até o quintal natal, as cantigas de roda, as ruas transformou-se no seu pequeno mundo dentro do grande com nomes líricos vão invadindo mundo da vida: a vida do poeta e construindo o c

| João Pessoa, junho de 2019 32 Correio das Artes – A UNIÃO c que ele chamava de “minha mi- do Recife”, verdadeiro hino de mexericos,/ namoros, risadas tologia”. Personagens familiares amor às coisas da terra e da sua (BANDEIRA, 1993, p. 134) como o avô, a avó, Dona Aninha infância, somos remetidos a ou- Viegas, Totônio Rodrigues, a tro tempo e espaço; espaço esse Na realidade, esse lugar idí- preta Tomásia, velha cozinhei- próprio de um Recife que já não lico, de passado e de presente, ra da casa, Rosa, a babá que lhe mais existe, intensamente mar- nasce da convivência de Ban- narrava histórias, o pai, de quem cado pela oralidade. Espaço esse deira com as crianças, os velhos herdou o nome e que contava ca- que o autor transpõe para os lei- e os populares da sua infân- sos, recitava versos, alimentaram tores, quando descreve nomes de cia. Nesse sentido, o Recife foi ainda mais essa mitologia, en- ruas e bairros que marcaram sua ambiente fundamental para a contrando terreno fértil na alma infância: formação de sua percepção de do menino sensível e curioso. mundo e de poeta: Dessa forma, recordará, em seu Rua da União.../ como eram testamento literário (Itinerário de lindos os nomes das ruas da mi- Dos seis aos dez anos, nes- Pasárgada), toda a convivência nha infância/ Rua do Sol/ (tenho ses quatro anos de residência com os parentes e outros de sua medo que hoje se chame do Dr. no Recife, com pequenos vera- infância, que tanto o influencia- Fulano de Tal)/ Atrás da casa fi- neios nos arredores - Montei- cava a Rua da Saudade.../ onde ro, Sertãozinho de Caxangá, ram nesse modo singular de per- se ia fumar escondido/ Do lado Boa Viagem, Usina do Cabo -, ceber o jeito de ser do brasileiro: de lá era o cais da Rua da Au- construiu-se a minha mitologia, rora.../... onde se ia pescar escon- e digo mitologia porque seus Na “Evocação do Recife”, já dido (BANDEIRA, 1993, p. 134) tipos, um Totônio Rodrigues, havia mencionado o nome de uma d. Aninha Viegas, a preta Totônio Rodrigues, que “era Valorizando o imaginário po- Tomásia, velha cozinheira da muito velho e botava um pince- casa de meu avô costa Ribeiro, -nez na ponta do nariz”. Esse To- pular de quando era menino, têm para mim a mesma consis- tônio era sobrinho de meu avô e o autor torna a palavra, antes tência heróica dos poemas ho- me parecia muitíssimo mais ve- oral e espontânea, em matriz méricos. A Rua da União, com lho do que ele. Não sei se foi isso do texto escrito. Com isso, há a quatro quarteirões adjacentes ou a maneira de usar o pince-nez sacralização da letra, palavra es- limitados pelas ruas da Aurora, ou o jeito de falar que o marcou crita que nasce da falada. Isso é da Saudade, Formosa e prince- tão profundamente na minha verificável ao reproduzirem-se sa Isabel, foi a minha Tróada; a memória. Tomásia era a velha falas de personagens nos ver- preta cozinheira da casa da Rua casa de meu avô, a capital desse sos: “Uma pessoa grande dizia:/ da União. Tinha sido escrava país fabuloso. Quando compa- do meu avô e fora por ele al- Fogo em Santo Antônio !? Outra ro esses quatro anos de minha forriada. Naquela cozinha, com contrariava; São José!/ Totônio meninice a quaisquer outros seu vasto fogão de tijolo, o seu Rodrigues achava sempre que quatro anos de minha vida de enorme pilão, e que pelas festas era São José” (BANDEIRA, 1993, adulto, fico espantado do vazio de Santo Antônio, São João e p. 134). A memória, também, destes últimos em cotejo com a São Pedro resplandecia quente- como lugar de ausência, portan- densidade daquela quadra dis- mente com as grandes tachas de to: um fogo que houve em Santo tante (BANDEIRA, 1997, p. 297) cobre areadas até o vermelho, Antônio, mas não há mais. Com Tomásia, pequena, franzina e Esse primeiro período da sua isso, Bandeira empreende a res- de poucas falas, mandava sem infância, passado em Recife, Rio, significação de todo um conhe- contraste e me inspirava um São Paulo e Petrópolis, onde des- cimento acumulado pelo povo sagrado respeito com suas duas pertou para a vida consciente, vai simples que o rodeia. Um saber únicas respostas a todas as mi- formar, na memória do poeta, nhas perguntas: “hum” e ‘hum- cumulativo que o grupo (comu- um conteúdo inesgotável de emo- -hum”, que eu interpretava por nidade), como grupo tem de si ções, não obstante serem vagas, mas “sim” e “não”. Rosa era a mula- próprio, e que emprega na lin- que o fizeram descobrir o segredo ta clara e quase bonita que nos guagem, segundo regras temáti- da poesia, como declara logo na servia de ama-seca. Nela minha cas ou formuladas (ZUMTHOR, abertura de seu Itinerário de Pa- mãe descansava, porque a sabia 1997, p. 264). Dessa maneira, len- de toda a confiança. Rosa fazia- sárgada (1957): -nos obedecer e amar sem estar- do os versos de Bandeira, ime- dalhaço nem sentimentalismo. diatamente, criam-se, em nossas Sou natural do Recife, mas na Quando estávamos à noitinha mentes, imagens das brincadei- verdade nasci para a vida cons- no mais aceso das rodas de ras da infância, do jeito simples ciente em Petrópolis, pois de Pe- brinquedo, era hora de dormir, de viver daquela província: trópolis datam as minhas mais vinha ela e dizia peremptória: velhas reminiscências. Procurei “leite e cama”. E íamos como A Rua da União onde eu fixá-las no poema “Infância”. carneirinhos para o leite e para brincava de chicote queimado [...] O que há de especial nessas a cama. Mas havia, antes do e partia as vidraças/ [de Dona reminiscências (e em outras dos sono, as “histórias” que rosa sa- Aninha Viegas/ Totônio Rodri- anos seguintes, reminiscências bia contar tão bem... (BANDEI- gues era muito velho e botava do Rio, de São Paulo, até 1892, RA, 1997, p. 340) o pincenê na ponta do nariz/ De- quando voltei a Pernambuco, pois do jantar as famílias toma- onde fiquei até os dez anos) é Assim, ao lermos “Evocação vam as calçadas com cadeiras, que, não obstante serem tão va- c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, junho de 2019 | 33 c gas, encerram em mim um con- Na casa de laranjeiras, onde da própria revista dirigida por teúdo inesgotável de emoção. A moramos os seis anos que cur- Monteiro Lobato, transcrita a certa altura da vida vim a iden- sei o Externato do Ginásio na- seguir: tificar essa emoção particular cional, hoje Pedro II, nunca fal- com outra – a de natureza artís- tava o pão, mas a luta era dura. Com Carnaval recebi o meu tica. Desde esse momento, pos- E eu desde logo tomei parte batismo de fogo. Certa revista so dizer que havia descoberto dela, como intermediário entre deu sobre ele uma nota curta, o segredo da poesia, o segredo minha mãe e os fornecedores – mais ou menos nestes termos: do meu itinerário em poesia. vendeiros, açougueiro, quitan- “O Sr. Manuel Bandeira inicia Verifiquei ainda que o conteú- deiro, padeiro. Nunca brinquei seu livro com o seguinte verso: do emocional daquelas remi- com os moleques de rua, mas “Quero beber! cantar asneiras...’ niscências da primeira menini- impregnei-me a fundo do realis- Pois conseguiu plenamente o ce era o mesmo de certos raros mo da gente do povo. Jamais me que desejava”. Na Revista do momentos em minha vida de esqueci das palavras com que Brasil, ao tempo dirigida por adulto: num e noutro caso al- certo caixeiro de venda portu- Monteiro Lobato, apareceu este guma coisa que resiste à análi- guês deu notícias de um compa- comentário: “Carnaval – Ma- se da inteligência e da memória nheiro que não era visto há al- nuel Bandeira – Rio, 1919. É este consciente, e que me enche de gum tempo: “O seu Alberto está um folhetinho de versos como sobressalto ou me força a uma com os pulmões podres”. Essa os outros. Bem como os outros atitude de apaixonada escuta influência da fala popular con- não: porque não há em todos be- (BANDEIRA, 1997, p. 295) trabalançava a da minha forma- lezas como estas, de um subje- ção no Ginásio, onde em maté- tivismo complicado que, noutro ria de linguagem eu me deixava tempo, se chamava tolice”. [...] Detentor de um longo per- assessorar por um colega Sousa curso literário, Manuel Bandeira Houve, de fato, quem gostasse. da Silveira, naquele tempo todo Muita gente. João Ribeiro e Oiti- continuaria a se aproximar do voltado para a lição dos clássi- cica dispensaram ao folhetinho mundo das letras no Recife, aos cos portugueses (BANDEIRA, a mesma boa acolhida dada à seis anos de idade, como revela- 1997, p. 297-298) Cinza das Horas. O primeiro ria o próprio autor em Itinerário escreveu no Imparcial de 15 de de Pasárgada, considerada como A partir da publicação de seu dezembro: “A Muda do Sr. Ma- suas memórias poéticas, na qual segundo livro, Carnaval, em 1919, nuel Bandeira é sóbria, oracular procede a uma revisão de seu Bandeira faz contato com o gru- e quase taciturna, de poucas pa- próprio trajeto artístico: po modernista de São Pulo, res- lavras, mas por vezes sublimes ponsável pela eclosão da Sema- e profundas. Neste novo livro... há desenvolturas de espírito e O meu mais antigo sinal de na de Arte Moderna, três anos angústias de coração que bem interesse pela poesia escrita mais tarde. Em 1921, os artistas definem o temperamento pode- data dos oito ou nove anos. Lem- paulistas foram ao Rio de Janei- rosamente versátil do poeta. To- bro-me de por esse tempo andar ro, numa tentativa de estender o das as delicadezas da arte, sem procurando no Jornal do Recife movimento modernista à capital dano da suavidade da inspira- a poesia que diariamente vinha federal, e, naquela ocasião, Ban- ção, o domínio da idéia e das na primeira página. E até recor- deira conheceu Mário de Andra- palavras enfim, o savoir-faire, do de dois nomes que freqüen- de de quem seria amigo por toda as qualidades de verdadeiro es- temente apareciam assinando a vida. critor aqui se apresentam com esses versos – Áurea Pires e Carnaval foi, nas palavras do exclusivo brilho... Tudo é esme- Henrique Soído. Lembro-me próprio autor, “um livro sem rado lavor: bastaria uma só das ainda muito bem da estranheza, composições do Carnaval para do mal-estar que me dava quan- unidade”;plural, portanto, para o qual convergiriam alguns poe- dizer como é numeroso o ritmo do a poesia era soneto e eu, até dos seus versos e como é consu- mas parnasianos, como se cons- então só afeito ao ritmo quadra- mada a Arete com que os com- do, me sentia desagradavelmen- tata em seu próprio depoimento: põe (BANDEIRA, 1997, p. 321 – te suspenso ao terceiro verso do negrito nosso) primeiro terceto. A aceitação No pretexto de que no car- da forma soneto foi em minha naval todas as fantasias se per- Conforme um dos principais poesia a minha primeira vitória mitem, admiti na coletânea uns contra as forças do hábito (BAN- fundos de gaveta, três ou qua- críticos de Manuel Bandeira, DEIRA, 1997, p. 297) tro sonetos que não passam de Giovanni Pontiero, esse livro já pastiches parnasianas “A ceia”, aparece com uma melhor defi- A observação do cotidiano “Menino”, “A morte de Pã” e nição estética por parte do autor; mesmo “Verdes mares”, que veio, também, de sua convivên- isso é, Bandeira já desponta nes- até o Pedro Dantas, meu fã n.º cia com as figuras do povo do sa obra com características mais 1, considera imprestável, e isto soltas, propenso ao modernismo, Rio de Janeiro. Vivendo com ao lado das alfinetadas dos “Sa- com temas de humor: seus pais na capital federal de pos” (BANDEIRA, 1997, p. 319) então, a cidade, ainda repleta O segundo livro de poemas de ambientes informais, no al- A crítica recebeu bem o Car- de Bandeira, Carnaval (1919), vorecer do século vinte, conta- naval, segundo as palavras do mostra maior unidade de temas gia a criança Bandeira com suas próprio autor, não obstante al- e tratamento. Aproximadamen- idiossincrasias: gumas surpresas, como a crítica te um terço dos poemas desta c

| João Pessoa, junho de 2019 34 Correio das Artes – A UNIÃO c coletânea relaciona-se com o tí- mam os franceses a consoante quem me arranjou editor para tulo. [...] O humor que prevalece que precede a vogal tônica da meu volume Poesias (BANDEI- em todos os poemas discutidos rima), mas nunca tendo ela sido RA, 1997, p. 320) é, não obstante, de profunda usada em língua portuguesa, tristeza. As cenas de Carnaval, achou o poeta que devia alertar Poema derivado de histórias de bandeira, são preparadas o leitor daquela inovação e pôs e canções infantis do Nordeste, para perturbar o leitor, com sua sob o título dos poemas a de- “Os sapos” é um dos textos de atmosfera propositada de obsti- claração entre asas: “obrigado nação, arrojado prazer e sinis- à consoante de apoio”. Goulart Bandeira em que o aproveita- tras sugestões de remorso e cul- não se magoou com minha brin- mento das manifestações cultu- pa. Esses sonetos, como quais- cadeira e sete anos depois foi rais populares é acintosamente quer outros da coleção, demons- explicitado, corroborando a pers- tram que os poemas de Carnaval pectiva de que, dentre dos traços ainda representam os estágios modernistas que mais o marca- transitórios nos escritos de Ban- ram, a oralidade popular tenha deira. A influência parnasiana sido sua característica mais mar- ainda está em evidência, embo- REFERÊNCIAS ra o poeta já se afaste de uma cante. Sobre esse poema, nos es- forma de expressão estática e BANDEIRA, Manuel. Estrela clarece Pontiero: impassível e comece a utilizar da vida inteira. 34.ª Ed., Rio efeitos auditivos e visuais, como de Janeiro: José Olympio, Composto quatro anos antes explicado pelos simbolistas 1993 da inauguração oficial do mo- franceses.[...] Há exemplos sufi- BANDEIRA, Manuel. Seleta vimento modernista, “Os Sa- cientes em Carnaval de poemas em Prosa e Verso. Liv. José pos” é a melhor evidência que que já seguem L’arlchumie Du Olympio Editora/INL, RJ, possuímos da progressão inde- verbe, de Rimbaud, e Sorceleterie pendente de Bandeira rumo à 1971 evocatoire, de Baudelaire (BAN- rejeição da tirania parnasiana ______. Crônicas da DEIRA, 1986, p. 63; 71;74;75) sobre a poesia e literatura em província do Brasil. São geral, e sua sátira representa Paulo: CosacNaif, 2006. Não obstante a diversidade uma batalha solitária em favor que informa a obra, O Carnaval ______. Seleta de prosa. da liberdade artística. A ima- foi aclamado fortemente pela Rio de Janeiro: 4.ª Ed., Nova gem dos sapos é brilhantemente vanguarda modernista, liderada Fronteira, 1997. apropriada, com sua sugestão por Mário e Oswald de Andrade. CERVINSKIS, André. Manuel de obesidade, pompa e coaxar Futuramente, graças à presen- Bandeira, poeta até o fim. aperfeiçoado, senil, envaideci- ça do poema “Os sapos”, uma 2.ª Edição, Olinda: Livro do com a própria importância das críticas mais contundentes, Rápido, 2006. e trocando, solenemente as fór- em nossa jornada literária, aos ______. A Identidade do mulas bem trabalhadas sobre a parnasianos; esse livro levaria Brasil em Manuel Bandeira. poética, repousadas em termos Bandeira a conseguir o reconhe- Olinda: Livro Rápido, 2008. arcaicos – as várias espécies cimento por parte de seus pares ______. O Poeta e a Cidade. protestando a superioridade in- modernistas de São Paulo. Esse Recife: Tarcísio Pereira, contestável de seus respectivos poema/crítica poético seria lido 2018. dogmas: “frumento sem joio”, por Ronald de Carvalho, na Se- ______. Encantamento de “lavor de joalheiro”. Roucos e mana de 1922, tornando-se sím- Pasárgada. Recife: Babecco, brigões, os sapos involuntaria- mente traem a irônica insensa- bolo do novo, do que estava por 2018. tez de seu credo, que sacrifica vir. Como nos confessa Bandeira PONTIERO, Giovanni. a autêntica voz da poesia, pela em seu Itinerário: Manuel Bandeira (Visão salvação das rígidas teorias Geral de sua Obra). Rio (PONTIERO, 1986, p. 79) E A propósito desta sátira, devo de Janeiro: José Olímpio dizer que a dirigi mais contra Editora, 1986. certos ridículos do pós-parna- ZUMTHOR, Paul. Introdução sianismo. É verdade que nos á Poesia Oral. São Paulo: Ed. versos: A grande arte é como/ Lavor de joalheiro, parodiei o HUCITEC, 1997. Bilac de “Profissão de Fé” (“Imi- ______. Performance, to o ourives quando escrevo...”). Recepção, Leitura. Trad.: Duas carapuças havia, endere- Gerusa Pires Ferreira & Sueli çadas uma ao Hermes Fontes, Fenericli. São Paulo: Ed. outra ao Goulart e Andrade. O HUCITEC, 2000. poeta das apoteoses, no prefácio ao livro, chamara a atenção do público para o fato e não haver nos seus versos rimas de pala- André Caldas Cervinskis é descendente de lituanos e nasceu em Recife, em 1975. vras cognatas; Goulart de An- É formado em Comunicação Social e Letras (2003 e 2018 - UFPE) e tem mestrado em Lingüística (PROLING – UFPB, 2009). Atualmente estudante de doutorado em drade publicara uns poemas em Literatura e Interculturalidade (UEPB – Campina Grande). Jornalista, produtor que adotara a rima francesa com cultural e revisor de texto. Escreve há mais de 20 anos, tendo, entre ganho consoante de apoio (assim cha- diversos prêmios nacionais e internacionais.

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, junho de 2019 | 35 6 conto

ilustração: domingos sávio Seu Terêncio e a pós-modernidade

Márcio J. S. Lima Especial para o Correio das Artes

despertador marca sete horas da manhã, seu Terêncio acorda ainda ébrio, depois de uma longa noite de sono. Vai ao banheiro e se olha no espelho. Observa seu rosto e só agora dá-se conta como envelheceu nos últimos anos. Sua pele está flácida, sua barba está branca, seus cabe- O los grisalhos e sua face completamente enrugada. Aos setenta e quatro anos, seu Terêncio já sente a perspectiva da morte. Subitamente sua consciência é envolta por pensamentos, lembran- ças e axiomas que denotam o teor agonizante de sua lucubração. Questões de natureza existenciais permeiam a cabeça de seu Terêncio, que continua olhando atônito o espelho a se perguntar: – Quem sou eu? – Como vim parar aqui? – Para onde vou? É só então que o nosso protagonista percebe que está tomado pela angústia. Em sua mente, a angústia se solidifica, toma forma, torna-se volúvel. É como se seu Terêncio começasse a despertar de um sonho perfeito, brilhante, voluptuoso e se deparasse com o real, com o que está presente e está por vir, com o mundo da vida... c

| João Pessoa, junho de 2019 36 Correio das Artes – A UNIÃO c Ele começa a lembrar como de uma mulher que foi assaltada demais, uma vez que os bens de era a vida há 52 anos, quando e não tinha nenhum pertence de consumo estão muito distantes estava na fina flor da idade. Seu valor para os criminosos leva- de sua realidade. Eles, então, Terêncio tinha uma vida pela rem. Como castigo, os três rapa- criam uma identidade falsa e ilu- frente. Seu futuro se resumia a zes, entre eles um menor de ida- sória onde acreditam piamente uma metanarrativa, pois, acre- de, jogaram gasolina e atearam estar inseridos no processo – ra- ditava ele, que com o passar fogo na mulher que foi completa- ciocina o velho Terêncio. dos anos todos os seus objetivos mente queimada ainda viva. Seu Terêncio cogita sobre a po- iriam naturalmente se concreti- A banalidade da vida chegou lítica e percebe que esta também zar. Cursar faculdade, conseguir até os criminosos que ceifaram foi afetada pelos “novos tempos”. um bom emprego, casar-se, cons- um ser vivente por não conse- O Estado agora é permeado pela tituir família, criar os netos e ser guirem o “lucro” almejado; che- corrupção, os políticos visam feliz para sempre. gou ao apresentador que viu em atender benefícios próprios e os Porém, só agora seu Terêncio tal notícia uma forma de con- órgãos públicos, ao que parece, percebe que os tempos toma- quistar audiência e chegou até foram transformados em orga- ram outros rumos. O agora se o próprio velho Terêncio, que nismos particulares a serviço tornou fragmentado, uma era agora não vê problema algum de seus diretores. Na época do de incerteza, não há mais ga- em almoçar assistindo sangue sufrágio, os homens da política rantia de nada. Apenas agora e corpos de pessoas mortas com saem dos armários, transfor- seu Terêncio percebe que, por requintes de crueldades. mam-se em seres caridosos, res- conta da competitividade e exi- Só agora seu Terêncio com- ponsáveis, éticos e dedicados. gências do mercado, chegou a preende a crise de identidade Entretanto, ao vencerem o perder vários empregos. que perpassa sua época. As pes- pleito, voltam a tratar dos seus Aquilo que ele havia aprendi- soas se apresentam socialmente “negócios particulares” investin- do na faculdade com o passar dos de formas variadas. Seu Terên- do neles o dinheiro público arre- anos havia se tornado obsoleto. cio lembra que sua vizinha, de cadado pela alta e abusiva carga O conhecimento e a informação dia é uma executiva de grande tributária existente no país. Na se tornaram uma constante si- porte, mas à noite transforma-se insatisfação, agonizando sobre as multânea. Nada é mais perma- em gótica e vira a madrugada veias abertas da sociedade, proli- nente, tudo se dissolve. Inclusive visitando cemitérios. Isso sem feraram-se diversos movimentos as relações amorosas. falar no seu síndico, que é auto- sociais: sem terra, sem teto, eco- Nosso protagonista cai em si ritário e moralista, mas no final logistas, ambientalistas, GLBT, e percebe que o amor há muito de semana é a estrela das boa- multiculturalistas, feministas... se tornou líquido. Não há mais tes gays, com seus espetáculos Os protestos são inevitáveis, mas eternidade nas relações pois, como transformista. As identi- a classe política os ignora. analisando seu passado, seu Te- dades, por muitas vezes, tam- A própria religião tradicional rêncio se dá conta de que a pes- bém são definidas pelo que você se vê em crise, pois agora surge soa que ele achou que iria ficar veste, pela alimentação que você uma infinidade de seitas com lí- para sempre ao seu lado, sua consome, pelo tipo de música ou deres, santos e deuses particu- parceira e sua amante, hoje não leitura que você gosta. lares. Em cada esquina há uma está por perto. E cadê os seus Seu Terêncio se pega a pensar igreja, em cada cidade há um filhos, os seus netos? Onde eles como o processo de globalização templo, são várias as denomi- estão? A relação com a família transformou o espaço geográfi- nações religiosas provenientes também é líquida. co em um lugar grande e curto do cristianismo (principalmen- Como um flash de luz, seu ao mesmo tempo. Grande por te), do budismo, do hinduísmo Terêncio reflete sobre os valores que hoje ele está no Brasil, mas e do islamismo. morais. Esta engenhosa criação em poucas horas pode estar fa- A mídia é tomada pela religio- humana agora também está ex- cilmente na Europa ou na Ásia. sidade que é amplamente divul- traviada. O que determina os va- Pode ficar lá, trabalhar lá, morar gada na televisão, no rádio, na lores nestes novos tempos é uni- lá, mas nunca vai ser de lá, sua internet... A fé novamente virou camente a relação de interesses. identidade é daqui, lá ele terá um comércio. A prosperidade é O Imperativo Categórico kantiano uma falsa identidade ou uma vendida em programas de TV. há muito foi superado, pensa seu identidade ilusória. Todos querem enriquecer, mas Terêncio. Não há mais princípio O contrário também é verda- para isso, precisam ter fé e in- ético nas relações sociais que não deiro, nem todos têm condições vestir. Se você tem fé em Deus, seja determinado por interesses, de viajar para outros continen- contribua com a igreja que ele te sejam eles de cunho econômico, tes. Nem todos têm acesso às dará em dobro! político ou metafísico. maravilhas tecnológicas pro- O problema é que o retorno Esta máxima é comprovada duzidas pelos países desenvol- parece só acontecer no bolso pelo nosso protagonista, quando vidos, nem todos têm acesso à dos líderes que assim pregam. ele lembra que ontem almoçou informação, à alimentação e às O pobre fica ainda mais pobre assistindo a um programa sen- vestimentas utilizadas nos paí- e o líder religioso fica ainda sacionalista cujo apresentador ses de ponta. Para estes, a globa- mais rico. É uma divisão inver- mostrava o corpo carbonizado lização tornou o mundo grande samente proporcional. E a des- c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, junho de 2019 | 37 ladas. Mas também, fazer o que? Vivemos a era da incerteza! Há também uma produção extremamente exagerada dos valores. Estes por muitas vezes, são a causa do absurdo da tran- sitoriedade. É nesta concepção que seu Terêncio percebe que os valores não são mais aquilo que pareciam ser. Os valores agora são determinados pela lógica do mercado. É o capitalismo quem dita as regras do jogo. O bem ou o mal, o certo ou o errado, o bom ou o ruim, o verdadeiro ou o fal- so só aparecem no contexto da necessidade ou conveniência do capital. Se gerar lucro, pode! Se não gerar lucro, não pode! Pois é errado, é feio, é desonesto. Seu Terêncio conclui que esta forma peculiar de pensar já é notória na política, na religião, na famí- lia e na sociedade. Aquilo que havia sido prome- tido nos tempos áureos de juven- tude, agora havia fracassado. So- mente hoje nosso miserável Te- rêncio se dá conta de que a pro- teção, a esperança, a rotina diária e o discurso de que a razão iria salvar tudo e todos fracassou. A fragmentação é a ideia mais real nos neurônios de seu Terêncio. Ao jogar água em seu rosto enrugado, ele percebe que durante toda sua vida havia na cabeça a falsa crença em uma vida maravilhosa, em um mun- do extraordinário e em um es- paço fantástico. É tomado pela angústia e marcado pela incerteza que seu c culpa? Se Deus não te abençoou cartas. São os meios de comuni- Terêncio acaba de lavar o ros- é porque você ainda não tem fé cação responsáveis pela dissemi- to, enxuga-o e sai. Outro dia se suficiente para isso. nação da notícia e da informação. inicia. Um dia talvez igual ao O pobre Terêncio sabe que Aliás, a informação virou a base anterior, mas diferente em seus este é o tempo das incertezas, de tudo. A ciência, a tecnologia, detalhes. Um dia em que o velho a própria mecânica quântica já a filosofia, a linguística todos se Terêncio tomou conhecimento mostrou, provou e comprovou voltaram para a informação. O da sua real condição e aceitou isso. Não há mais a crença de- problema é que nem sempre as passivamente a sua natureza. senfreada que tivemos tempos informações que nos chegam são Agora ele segue atentamente o atrás na razão. Em nosso tempo totalmente falsas ou verdadeiras. desenvolver da sua história e, de nada mais é permanente, tudo é Elas podem ser criadas, legiti- alguma forma, parece (só pare- transitório, o espaço é vazio e lu- madas, deturpadas ou manipu- ce) está mais certo de si. I gar algum é melhor que o outro. Tudo está contaminado, tudo Márcio J. S. Lima, geminiano apaixonado por leitura e escrita, nasceu está transpirando novidades. em Brasília (DF), mas logo cedo se tornou paraibano e hoje mora em João Em poucos segundos o agora se Pessoa. Graduado em História e Filosofia, possui Pós-graduação em História torna antigo. do Brasil, Mestrado e Doutorado em Filosofia. Suas leituras e estudos A informação é transmitida transitam entre a Filosofia, a História e a Literatura. Além de escrever contos e poemas, realiza pesquisas sobre o pensamento de Nietzsche, a em tempo real, não há mais no- relação entre Filosofia e Literatura, Modernidade e Pós-modernidade. É tícias atrasadas. A televisão, o autor das obras: O Mundo Recôndito das Sociedades Secretas (História), rádio e a internet agora dão as Ecos do Caos (Poemas) e A Guerra e Eu (Romance).

| João Pessoa, junho de 2019 38 Correio das Artes – A UNIÃO 6 imagens amadas João Batista de Brito [email protected]

O delicado , Desencanto

embrado quase sempre pelos seus épicos, como casa inglesa, bem casada e mãe de dois filhos, A Ponte do Rio Kwai (1957), Lawrence da Arábia que se apaixona fora do casamento. Na verdade, (1962) e Doutor Jivago (1965), hoje em dia nin- quem conta a estória é ela mesma, e a conta ao L guém tem dúvidas de que David Lean (1908- marido, do começo ao fim, nos mínimos deta- 1991) é um dos maiores cineastas do Século XX lhes, sem contudo abrir a boca. Faz isso mental- e, se for o caso, de todos os tempos e lugares. mente, sentada diante do cônjuge que, distraído, Bem menos conhecido é o Lean pré-super- resolve palavras cruzadas. E aí, claro, a câmera produções, o diretor de começo de carreira, providencialmente substitui as palavras dela mais modesto, mais subjetivo e mais britânico, por imagens, de tal forma que, com ela, teste- que adaptou Charles Dickens duas vezes (Gran- munhamos todo o seu encanto e todo o seu de- des Esperanças, 1946, e Oliver Twist, 1948) e que sencanto. trabalhou com o escritor Noel Coward em fil- A narração consiste numa sucessão de quin- mes “domésticos”, intimistas e extremamente tas-feiras, o dia em que Laura Jessen, residente líricos. em Ketchworth, toma o trem e vai à cidade vizi- Adaptado de uma peça de Coward, um des- nha, Milford, para fazer alguma compra, trocar ses “domésticos” é Desencanto (Brief Encounter) livros na biblioteca pública ou pegar um cine- que, em 1945, ele rodou para os Estúdios Eagle- minha. É na Estação de Milford que lhe cai um -Lyon, com Celia Johnson e Trevor Howard nos cisco no olho e ela, na cantina da estação, recebe papéis principais. a ajuda de um senhor que, por acaso, é médico. Quase todo narrado em ´monólogo interior´, o Na próxima quinta, por acaso, se cruzam filme conta a estória de uma simplória dona de numa calçada qualquer, se cumprimentam e seguem, sós, cada um para seus respectivos afa- Fotos: reprodução internet zeres. O acaso, porém, lhes reserva um outro encontro: na quinta-feira seguinte, Laura Jessen está lanchando num restaurante da cidade, o Kardomah, quando o Dr Alec Harvey entra – não há mesas vagas, e assim, ele senta com ela e, inevitavelmente, entabulam uma conversa. E é aí que ela aprende que ele, residente na cidade vizinha, Churleigh, vem a Milford justamente toda quinta-feira,

David Lean dirigiu atender no Hospital local. Do épicos como papo casual surge um convite ‘Lawrence da Arábia’ para ir ao cinema e... e ‘Doutor Jivago’, O caso se formulará umas mas também filmes “domésticos”, como quintas-feiras adiante quan- ‘Desencanto’ do, na lanchonete da estação, c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, junho de 2019 | 39 6 imagens amadas c Alec pede a Laura para vê-la na próxima quinta. E a partir daí o acaso cede seu lugar ao desejo. Aqui vale lembrar esta cena sin- tomática, em que ele, falando de sua vocação profissional, enume- ra uma série de nomes de doen- ças pulmonares, enquanto ela o escuta, encantada, e isto ao som da trilha do “Segundo concer- to para piano”, de Rachmanin- off, sorrateiramente introduzida na conversa. Excelente exemplo de função fática da linguagem.

“Você de repente me pareceu Na lista dos cem uma criança”, diz Laura a Alec, só por educação é um recuo; não melhores filmes e nesse instante ele tem a certeza encontrá-lo em frente ao Hospital britânicos de de que ela consentirá encontrá-lo e lamentar é um avanço... todos os tempos, ‘Desencanto’ ocupa na quinta-feira próxima e, possi- O filme é muito rico e permi- o privilegiado velmente, nas outras. te muitas leituras. Por exemplo, segundo lugar Mas, atenção, bem antes disso, uma delas já está na dolorosa uma formulação do caso amoro- ironia do título original escolhi- so já aparecera para o especta- do, Brief Encounter, quando, para dor, de modo sutil e cifrado, no o casal envolvido, o caso foi tudo início do filme. Fred, o esposo menos um ´breve encontro´. A de Laura, está no seu confortável propósito, o título da peça de Co- estória é um dos personagens. gabinete caseiro, como de hábito, ward era ainda mais ambíguo, Neste caso o ponto de vista se diz resolvendo suas palavras cruza- Still Life, expressão que podia ser limitado, uma vez que o persona- das, enquanto ela repousa numa lida duplamente como ´vida para- gem não é Deus, mas um mero poltrona a seu lado. Ele lhe pede da´ e ´ainda vida´. mortal, como nós mesmos, e, as- uma ajuda com a palavra cruza- A título de análise, aqui me sim sendo, só pode narrar o que da que está resolvendo. Trata-se reporto à questão do emprego do testemunhou. de um verso de Keats em que fal- ponto de vista, modernamente Desencanto começa e termi- ta um termo. “Quando contem- chamado de ´focalização´. na em ponto de vista onisciente, plo, no rosto estrelado da noite, Como se sabe, em qualquer porém, estas duas partes do fil- grandes símbolos nebulosos de narrativa, existem, a rigor, três me, a inicial e a final, são curtas. um alto...” Laura recorda o verso tipos de focalização, a saber, o No meio delas, fica a longa parte e responde com o termo faltoso: ponto de vista onisciente, o ponto intermediária, toda ela narrada “romance”. Ou seja, “romance” de vista limitado, e um terceiro pela protagonista Laura. O pro- é o que falta nas palavras cru- ponto de vista, modernamen- blema é que Laura narra o que zadas do marido, e o que sobra te chamado de paraléptico. No viu... e o que não pôde ter visto. na vida secreta da esposa que, primeiro caso, quem narra a es- Exemplo: na cena do apartamen- justamente a partir daí, começa tória é uma espécie de instância to do colega de Alec, quando o a desabafar a sua estória. abstrata que pode ser igualada casal é descoberto e Laura foge Não cabe recompor aqui a es- a Deus, já que ela sabe tudo so- por uma saída traseira, e corre tória inteira, mas cabe dizer que, bre os personagens e a estória e para a rua, debaixo de chuva e com ou sem a ajuda do acaso, com nos conta tudo o que quer contar, pranto, ela não viu o que se pas- visíveis e incômodos recuos e ao mesmo tempo em que sonega sou entre Alec e o amigo, (pode avanços, o envolvimento do casal o que quer sonegar. O normal é até ter imaginado, mas, a rigor, vai crescendo a cada quinta-feira, que essa instância abstrata (que não viu) e, no entanto, toda a cena até chegar a um ponto em que, não deve ser confundida com o nos é mostrada, fazendo parte do para o bem ou para o mal, preci- cineasta) nos forneça informação já referido acima ´monólogo in- sa ser resolvido. Exemplo: aceitar diegética aos poucos, sempre so- terior´ da protagonista - seu de- encontrar Alec na próxima quin- negando partes, até que no final, sabafo mental ao marido. É essa ta é um avanço; no mesmo dia se o espectador venha a saber tudo ingerência da onisciência dentro deparar com o filho acidentado que aconteceu. O segundo caso de um ponto de vista limitado é um recuo; decidir rever Alec, acontece quando o narrador da que se chama de “paralepse”, ou c

| João Pessoa, junho de 2019 40 Correio das Artes – A UNIÃO 6 imagens amadas c ponto de vista paraléptico. Cabe acrescentar que o ponto de vista paraléptico, já existente na litera- tura, foi assumido pelo cinema como um procedimento regular, que dribla a verossimilhança para conseguir o efeito desejado de forma mais efetiva do que o faria o realismo stricto sensu. Em Desencanto o seu emprego é ge- nial. Consideremos a cena da des- pedida do casal, na lanchonete da estação, para nós mostrada duas vezes, primeiramente em ponto de vista onisciente, e no quase desenlace, do ponto de vis- Nos bastidores de ta limitado de Laura. São duas tiva. Se servir um depoimento ‘Desencanto’, Celia Johnson, David Lean cenas aparentemente iguais, mas pessoal: assistindo a uma apre- e Trevor Howard: só aparentemente. Na primeira, sentação da Orquestra Sinfônica diretor quase por exemplo, não sabemos o que da Paraíba em que o Concerto de destruiu as cópias do aconteceu a Laura, na passagem Rachmaninoff foi executado pela filme após a primeira exibição pública do trem expresso; na segunda, exímia pianista Juliana Stein- testemunhamos sua tentativa bach, confesso que revi o filme de suicídio. Se a primeira cena é de Lean por inteiro, mental- semanticamente vazia (nós não mente, como se estivesse sendo conhecemos ainda o drama de exibido diante dos meus olhos. Laura), a segunda é um pique Inescapavelmente, redigi crôni- subplot da dona da lanchonete dramático de alta tensão. Com a ca sobre o assunto que intitulei: com o guarda da estação. É que discreta ironia de que, quem sa- “Por causa de Rachmaninoff”. o filme está concebido e montado bia mais (a focalização oniscien- Se me for permitido conceber na tradição documental do cine- te) sonega informação diegética, um terceiro narrador, este seria a ma inglês, cinema onde o grande ao passo que, quem sabia menos fotografia. Prestem atenção, por documentarista John Grierson (a focalização limitada) a fornece. exemplo, ao escurecimento da (1898-1972) foi mestre, e onde es- Se é a voz de Laura quem nos imagem, em torno do rosto de paço houve igualmente para um conta a estória, não posso deixar Laura, toda vez que os seus clo- brasileiro, o nosso Alberto Caval- de acrescentar que essa estória ses se pretendem mais subjetivos. canti. Parece-nos que todo esse tem um segundo narrador: a Ou ao declive do cenário, na cena subplot vulgar é para nos lem- música, o belíssimo “Concer- da tentativa de suicídio, quando brar que estamos lidando com to número dois para piano” de a sala da cantina se inclina para gente de carne e osso, e não com Rachmaninoff, tão ubíquo e tão um lado (com a inclinação da câ- heróis. Por outro lado, não seria penetrante que, para o especta- mera, naturalmente), de forma a demais considerar, nessa inter- dor, resulta inseparável do dra- “jogar” Laura para fora, em dire- calação de comédia e tragédia, ma da protagonista. Antes de ção aos trilhos do trem expresso, um ingrediente shakespeariano iniciar sua narração monologal, que deverão esmagá-la. Aliás, o – basta lembrar, em Romeu e Julie- no gabinete do esposo, Laura aproveitamento das imagens dos ta, a linguagem sublime do casal liga o rádio e, sem coincidência, trens é um item à parte. Diegeti- trágico versus a linguagem chula é Rachmaninoff que está tocan- camente são os fatores que ligam da aia de Julieta, ou, em Otelo, o do. Assim, a música começa ho- e/ou separam o casal, mas acima mundo elevado de Desdêmona e modiegética, até se tornar a tri- disso, desempenham o papel de seu amado versus o mundo bai- lha dolorosa que acompanhará comentários existenciais, como xo e vil de Iago – e a convivência Laura nos seus momentos mais está em uma cena ontológica: a espaço-temporal das duas coisas. tristes. Tudo isso feito de uma do beijo na estação, entrecortado No filme, uma ironia a mais está maneira tal que as nuances mu- pelo trem que corta a noite, como no inverso posicionamento tími- sicais ecoam as nuances emocio- se indiciando paixão e perigo. co do par plot/subplot: enquanto nais da protagonista de forma Um elemento que pode in- aquele “decai”, este, ao contrário, harmônica e extremamente efe- quietar o espectador é o cômico “sobe” até um final feliz. c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, junho de 2019 | 41 6 imagens amadas c Incrível é que, depois da pri- encontro secreto do casal é in- mulheres apaixonadas fora do meira sessão pública de Desen- terrompido no apartamento do casamento. Temos isso em Casa- canto, David Lean tenha querido amigo de Alec. blanca, Os Brutos Também Amam, destruir as cópias do filme, e só Não tenho idade para ter vis- Chá e Simpatia, Um Dia Muito Es- não o fez porque foi impedido to Desencanto em tela de cinema, pecial, e tantos outros filmes, ditos pelos produtores e amigos. Foi mas, mesmo assim, me considero ou não “românticos”, mas, penso, numa dessas sessões-cobaia que o seu curador local. Descobri-o Desencanto sustenta esse diálogo ocorrem antes da distribuição lá pelos anos oitenta, quando foi com o romance clássico de forma nacional. Durante a sessão, em editado em VHS. Desde então, impecável. (De alguma maneira, dado momento, uma espectadora tenho feito sua divulgação e hoje o “trem” de Laura é o “trem” de gaiata emitiu um riso maldoso, muitos cinéfilos pessoenses ad- Karenina). que fez a plateia estourar na risa- mitem que conhecem o filme de Vejam que, a rigor, Desencanto da. Arrasado, Lean retirou-se da Lean por minha causa. é a estória de um casal, porém, sala, achando que errara a mão Na verdade, tenho dúvidas se como já dito, contada pela mu- na direção. Não ficou para cons- houve exibição comercial de De- lher – e em nenhum momento tatar que, depois desse incidente, sencanto nos cinemas da cidade. pelo homem, embora este esteja a sessão correu normal e até cho- Creio que não, pois mesmo es- tão apaixonado quanto – com o ro houve. pectadores com mais idade que adicional de que a ela é dado o No geral, a recepção ao filme eu não me dão notícia disso. Sei, maior tempo de tela e os closes foi boa e hoje Desencanto está co- porém, que ele foi exibido no mais significativos, dos quais locado pela crítica inglesa entre primeiro cineclube da cidade, o destaco três: (1) no trem, nos pri- os cem melhores filmes britâni- “Cineclube de João Pessoa”. Da meiros momentos da projeção, cos de todos os tempos, no pri- programação de abertura, em com Laura se expressando des- vilegiado segundo lugar. Com 1951, fazia parte o filme de Lean, favoravelmente em relação a sua o passar dos anos, o filme foi se conforme está registrado no livro inconveniente companheira de tornando tão popular que, hoje, Cinema na/da Paraíba, do historia- viagem, que havia pouco estra- na Carnforth Railway Station dor Wills Leal. gara um momento precioso do (local de filmagem das cenas na Por que gosto tanto de De- casal: a despedida. (2) na estação, Estação) se conserva, tal e qual, sencanto? A qualidade artísti- no momento suicida em que corta a mesma cantina onde Laura e ca bastaria para responder a a noite o Trem Expresso, “aquele Alec se conheceram e se apai- pergunta, mas, se porventura que não para”; (3) no gabinete do xonaram, com o nome chamati- não bastasse, confesso que me marido Fred, com Laura na imi- vo de “The Brief Encounter Re- agrada dar-me conta de que ele nência de lhe narrar uma longa freshment Room”. pertence a uma certa linhagem estória, impossível de ser a ele O que não impede que tenha de filmes de algum modo de- narrada, e por isso mesmo, nar- havido – digamos - desafetos. rivados dos grandes romances rada a si mesma, com toda a dor Um deles é o diretor Billy Wil- do Século XIX, especialmente que esse gesto implica. Quanta der que no seu O Pecado Mora ao aqueles romances que ficciona- delicadeza. Lado (1955) ridicularizou aberta- lizaram a situação diegética que Li uma vez, não sei mais onde, mente uma das melhores coisas resumo na expressão “mulheres um comentário sobre a obra de no filme: o uso da trilha sonora apaixonadas fora do casamen- David Lean onde o filme aqui do “Segundo concerto para pia- to”. Situação que está em, por discutido era referido como “o no”, de Rachmaninoff em filmes exemplo, Ana Karenina, Madame delicado Desencanto”. Não lem- supostamente melodramáticos. Bovary, O Primo Basílio, A Letra bro o nome do autor do comentá- Isto como se o próprio Lean não Escarlate, Dom Casmurro, etc. rio, mas mesmo assim, lhe peço tivesse marcado sua crítica ao Como se sabe, o Século XIX licença para usar a feliz expres- puro melodrama: lembrar como consistiu no auge da arte do ro- são como título para este ensaio- Laura e Alec se retiram de uma mance, o qual sofreu um declínio -depoimento.I certa sessão de cinema porque crítico depois da desconstrução não suportam o tom meloso de que lhe impôs Joyce, com o seu um filme a que vão assistir, inti- Ulisses, em 1922. Arte então nova, tulado ‘Flames of Passion’ (‘Cha- o cinema retomava a tradição das mas de Paixão’). Curiosamente, grandes narrativas e, em termos mais tarde, Wilder conceberia de consumo popular, “substi- todo o enredo do seu ótimo Se tuía” a romancística do passa- João Batista de Brito é escritor e Meu Apartamento Falasse (1960) do, trazendo, no bojo, a situação crítico de cinema e literatura. Mora a partir daquela cena em que o diegética acima referida, a das em João Pessoa (PB).

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