Revista Graduando nº1 jul./dez. 2010

GRACILIANO RAMOS: O ESCRITOR E O HOMEM

Eliseu Ferreira da Silva G r a d u a n d o do curso de Letras Vernáculas (UEFS ) [email protected]; [email protected]

Resumo : A literatura regionalista ou modernismo de 30 teve seu auge com o advento do romance nordestino, caracterizando -se por adotar uma visão crítica das relações sociais, voltada para os problemas do trabalhador rural, a seca e a miséria, ressal- tando o homem hostilizado pelo ambiente, pela terra, pela cida- de, o homem consumido pelos problemas impostos pelo meio. Um dos autores revelados nessa época, exímio observador psicológico do homem, bem como da sociedade, foi Graciliano Ramos que, mesmo sendo tratado por muitos críticos como um escritor amargo, rude, demonstra o contrário, compaixão, amor, amizade ao narrar os causos de Alexandre com muito bom - humor. Palavras - Chave: Graciliano Ramos- Alexandre e outros heróis - Causos- Solidão-Fan tasia

Abstr act : Regionalist Literature or 1930´s Modernism reached its apogee with the introduction of the Northeastern Novel, adopt- ing a critical view of social relationships, addressing to the problems of peasants, draught, misery and their struggle against adversities of the environment, of living in the country and of living in the city. One of the authors emerging from that literary movement, an acute observer of man´s psyche as well as of society, Graciliano Ramos, although taken by some critics as a bitter rude Writer, when narrating the stories of Alexandre in such a light mood, demonstrates the opposite: compassion, love, friendship. Keywords: Graciliano Ramos- Alexandre and others heroes - stories- Solitude-Fantasy

J 139 ISSN 2236-3335 Revista Graduando nº1 jul./dez. 2010

INTRODUÇÃO

Segundo escritos da época (décadas de 1930 e 1940), o romance, mais do que a poesia e o conto, predominou na Lite- ratura Brasileira, enverendando -se principalmente pelo regiona- lismo e pela abordagem psicológica. Os integrantes da segunda geração modernista, ou modernismo de 1930, não chegaram a causar impacto, dado o relevo social que a revolução ocorrida em outubro daquele ano tinha causado no país. Os abalos so- fridos pelo povo na década de 1930 – a crise econômica pro- vocada pela quebra da bolsa de valores de Nova Iorque, a cri- se cafeeira, a Revolução de 1930 e o declínio no Nordeste – condicionaram a literatura a um novo estilo ficcional, percepti- velmente mais adulto, mais amadurecido, mais moderno, que seria marcado pela rusticidade, por uma linguagem mais brasi- leira com enfoque direto nos fatos, por uma retomada do plano naturalista, principalmente no propósito de uma narrativa docu- mental . A ficção de 1930 tem seu auge com o advento do roman- ce nordestino, que correspondeu como nenhum outro aos de- sejos de liberdade temática e rigor estilístico, caracterizando -se por adotar uma visão crítica das relações sociais, voltada para os problemas do trabalhador rural, para a seca e para a misé- ria, ressaltando o homem hostilizado pelo ambiente, pela terra, pela cidade, o homem consumido pelos problemas que o meio lhe impõe.

GRACILIANO RAMOS: O HOMEM POR TRÁS DO ESCRITOR

O crítico Álvaro Lins, em seu Jornal de Crítica (1943 , p. 73), ao relatar o ano literário de 1941, discorre sobre Graciliano Ramos e o lançamento da segunda edição de Angústia, comen- tando que a obra representa um caso de estudo crítico muito difícil para aqueles do tempo de Ramos. E afirma:

logo os seus romances nos tentam a confundir, em análises convergentes, a sua figura de escritor e a sua figura de homem. Existem homens que explicam as su- as obras, como há obras que explicam os seus auto- J 140 Revista Graduando nº1 jul./dez. 2010

res. No caso do Sr. Graciliano Ramos, é a obra que explica o homem. Quero dizer: o homem interior, o ho- mem psicológico

De todos os escritores nordestinos que se revelaram por volta da década de 1930, Graciliano Ramos talvez tenha si- do o que soube exprimir, com mais sutileza, a difícil realidade do homem nordestino sem se deixar seduzir pelo imaginoso da região, fazendo com que o psicológico prevalecesse sobre o social. O que Graciliano Ramos investiga é o homem vivendo o drama irreproduzível de seu destino, o homem universal. Para Antonio Candido (1996, p. 9), todo grande escritor é dotado de pelo menos uma dessas três preocupações: ‚o senso psicológi- co, o senso sociológico e o senso estético. Na obra de Gracili- ano Ramos esses trê s aspec tos se fundem, se confundem e se completam, alcançando raro equilíbrio‛. Transcreve-se a seguir uma carta de Graciliano Ramos endereçada a Marili Ramos, por oportunidade de um conto que essa lhe enviara - intitulado Mariana -, na qual se pode perce- ber toda a personalidade desse grande escritor.

Rio, 23 de Novembro de 1949. Marili: mando -lhe alguns números do jornal que publicou o seu conto. Retardei a publicação: andei muito ocupa- do e estive alguns dias de cama, a cabeça rebentada, sem poder ler. Quando me levantei, pedi a Ricardo que datilografasse a M a ri a n a e d ei -a ao Álvaro Lins. Não q u i s m et ê -la numa revista: estas revistinhas vagabun- das inutilizam um principiante. M a ri a n a saiu num suple- mento que a recomenda. Veja a companhia. Há uns cretinos, mas há sujeitos importantes. Adiante. Aqui em casa gostaram muito do conto, foram excessivos, não vou tão longe. Acheio -o apresentável, mas, em vez de el o g i á -lo, acho melhor exibir os defeitos dele. Julgo que você entrou num mau caminho. Expôs uma criatura simples, que lava roupa e faz renda, com as complica- ções interiores de menina habituada aos romances e ao colégio. As caboclas da nossa terra são meio selva- gens, quase inteiramente selvagens. Como pode você adivinhar o que se passa na alma delas? Você não bate bilros nem lava roupa. Só conseguimos deitar no papel os nossos sentimentos, a nossa vida. A rt e é sangue, é carne. (grifo nosso) Além disso, não há na- J 141 Revista Graduando nº1 jul./dez. 2010

da. As nossas personagens são pedaços de nós mes- mos, só podemos expor o que somos. E você não é Mariana, não é da classe dela. Fique na sua classe, a p res en t e -se como é, nua, sem ocultar nada. Arte é isso. A técnica é necessária, é claro. Mas se lhe faltar à técnica seja ao menos sincera. Diga o que é, mostre o que é. Você tem experiência e está na idade de co- meçar. A literatura é uma horrível profissão, em que só podemos principiar tarde; indispensável muita observa- ção. Precocidade em literatura é impossível: isto não é música, não temos gênios de dez anos. Você teve um colégio, trabalhou, observou, deve ter se amolado em excesso. Por que não se fixa aí, não tenta um livro sério, onde ponha as suas ilusões e os seus desenga- n o s ? E m M a ri a n a você mostrou umas coisinhas suas. M a s — rep i t o —você não é Mariana. E - com o perdão da p a l a v ra - essas mijadas curtas não adiantam. Revele -s e toda. A sua personagem deve ser você mesma. Adeus, querida Marili. Muitos abraços para você Graciliano. Vo- cê com certeza acha difícil ler isto. Estou escrevendo sentado num banco, no fundo da livraria, muita gente em redor me chateando. (RAMOS, 1982)

Pode-se notar na carta enviada à irmã que a rigidez, a sisudez, o rigor, talvez frutos da experiência de onze meses como preso político, tenham moldado o homem Graciliano Ra- mos. Percebe-se isso na forma como ele demonstra as obser- vações que sua irmã deveria fazer em respeito ao conto: ‚só conseguimos deitar no papel os nossos sentimentos, a nossa vida. Arte é sangue, é carne‛ (grifos meus). Para Graciliano, escrever não é qualquer coisa, é colocar a vida no papel, é trabalho e tem que ser sincero. Não basta ter só a técnica, es- ta sem a sinceridade não é nada. Graciliano Ramos teve uma vida agitada, passou por experiências que o marcaram profun- damente, como a prisão por perseguição política e, para muitos, ele era considerado um homem amargo, pessimista, franco, quase rude, e é essa dureza da alma que se tenta desmistifi- car em relação à obra Alexandre e outros heróis. Osman Lins ( apud VASCONCELOS, 1997, p.1) diz que o li- vro Alexandre e outros heróis representa, dentro da obra de Graciliano Ramos, ‚uma espécie de pausa, de recreio, que se concede este escritor severo, sofrido, tão exigente em relação J 142 Revista Graduando nº1 jul./dez. 2010

à forma e tão penetrado do sentido trágico da existência‛. O autor de romances e memórias como: Caetés; São Bernardo; Angústia; Viventes das ; Linhas tortas; ; Infância; Insônia; Memórias do cárcere, entre outras obras, também escreveu para crianças, e seu livro de contos Alexan- dre e outros Heróis, ou causos pertencentes ao folclore nor- destino, é considerado por muitos estudiosos como secundário em sua obra. Desprezado pelo cânone literário e pela pesquisa crítico - literária, esses contos precisam de uma investigação que pro- cure demonstrar todo o seu potencial, a sua atualidade, além de jogar uma luz sobre Graciliano Ramos, o seu fazer literário, suas narrativas e o burlesco que circunda as histórias fantasi- osas de Alexandre, a cultura popular e o folclore nordestino. O conto popular é rico em ensinamentos e experiências, que são passados de pessoa a pessoa, de geração a geração, de uma forma agradável, prazerosa e não utilitarista, além de nos pos- sibilitar compreender a vida, o ser humano e respeitar as di- versas culturas presentes no mundo, e é isso que nos faz A- lexandre ao narrar as suas histórias. Segundo Vasconcelos (1997. p. 5): ‚O amor, força capaz de romper a solidão, e integrar o homem na comunhão com o próximo, não foi um elemento conhecido pelos personagens do autor de Insônia”. Afirmação essa, sempre feita pelos estudio- sos da obra de Graciliano Ramos, que não encontra ressonân- cia na leitura de Alexandre e outros heróis. Graciliano Ramos preocupou-se muito em narrar a partir de observações da rea- lidade e dos olhares dele próprio. Para Sonia Brayner (1978), é famosa a afirmação de Graciliano Ramos a respeito de uma es- crita pontuada pelo autobiográfico: ‚Nunca pude sair de mim mesmo. Só posso escrever o que sou. E se as personagens se comportam de modos diferentes é porque não sou um só‛. O livro de Graciliano Ramos, Alexandre e outros heróis, publicado pela primeira vez em 1938, narra as aventuras de A- lexandre, um contador de histórias que, ‚fumando um cigarro de palha muito grande, discorria sobre acontecimentos da mo- cidade‛. São quatorze histórias narradas por ele, a maioria rela- ta feitos que envolvem suas capacidades físicas e intelectuais J 143 Revista Graduando nº1 jul./dez. 2010 ou sua relação com animais e objetos excepcionais. As histó- rias são contadas em sua casa, na presença de cinco pesso- as: sua esposa Cesária, o cego Firmino, o curandeiro mestre Gaudêncio, o cantador Libório, a afilhada de Alexandre e tam- bém a benzedeira Das Dores. As histórias são ambientadas no nordeste do país, no meio rural, num tempo passado em que ele e sua família ‚vivia de grande‛ e eram estimados pelos polí- ticos e vaqueiros da região. Esse passado contrasta com a realidade na qual estão as personagens no momento das narrativas. Alexandre possui ‚uma casa pequena, meia dúzia de vacas no curral, um chi- queiro de cabras e roça de milho na vazante do rio‛ (RAMOS, 1997, p. 9) . Um recorte necessário para entender as estórias de Alexandre e sua relação com o autor Graciliano Ramos são as mentiras, aquelas contadas em nossos relacionamentos pes- soais: de maridos às esposas, empregados aos patrões, filhos aos pais, entre amigos e vizinhos e entre compadres e coma- dres, como é o caso de Alexandre. A prática da mentira representada por Alexandre, como já dito, são as chamadas ‚mentiras de pescador‛, contadas com o objetivo de prender a atenção da platéia. Nessas mentiras a verossimilhança não é pretendida e, normalmente, elas ocorrem em situações em que não há aparentemente uma hierarquia en- tre os seus ouvintes, e nem há normas sociais sendo desres- peitadas, provocando em nós o riso, este que é um elemento distante da obra de Graciliano Ramos. Segundo Vasconcelos (1997, p. 6), Poucas vezes se pode rir de seus escritos, e quando isso acontece, é o homem Graciliano que se vê expos- to ao ridículo, que serve de chacota para que os ou- tros riam dele. Sabemos que há um traço observável, que se reitera ao longo de sua obra, esse traço se chama angústia.

Todos nós conhecemos o Graciliano Ramos observador do homem e da sociedade brasileira (o qual não deixa de dar uma cutucada na sociedade com esses causos), o crítico literário (vide a carta à irmã Marili), o Graciliano que foge aos relatos pessoais e, segundo Vasconcelos (1997, p. 9),

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do testemunho para aparecer meio despojado, engraça- do, inverossímil, ‘mentiroso’ nas histórias contadas não para revelar seu lado sisudo, pessimista, biográfico, mas para divertir. A vertente do autor quase desco- nhecida que deixa de lado a observação contínua da realidade e do ‘homem subterrâneo, ’[a frase utilizada pelo autor Antonio Candido e que aparece no próprio artigo é Bichos do subterrâneo] para deixar vir a tona o riso, a gargalhada solta, as histórias (im) possíveis de A l ex a n d re.

As personagens desse livro são pessoas que acreditam em um futuro melhor, mas também são pessoas marcadas, so- fridas, e que já tiveram bons tempos, como conta Alexandre na história de quando voltava da casa de seu sogro a cavalo, com os arreios (Cesária diz que foram os de ouro, e Alexandre intervém dizendo que foram os de prata) de prata e foi picado por uma cobra cascavel de dois metros e meio, o cego Firmino desconfiou do tamanho, mas se deu por vencido quando Cesá- ria foi buscar seu guiso. Como ela não o encontrou, Firmino aceitou apenas seu testemunho como prova. Na verdade, a co- bra mordeu o estribo, que era de prata, e depois de alguns dias, quando Alexandre quis montar com a mesma sela, seu empregado disse que não conseguia retirá -la do chão, pois es- tava presa. Alexandre foi até o local e encontrou o estribo in- chado, vazando prata. O que aconteceu foi que a cobra picou o estribo e ele inchou devido ao veneno. Alexandre ganhou muito dinheiro vendendo prata até o veneno ficar velho e per- der seu efeito. Vejamos como se deu o causo:

[...] um mês depois, com a força da lua o estribo incha- va como incham todas as mordeduras de cobras. Era por isso que ele estava tão crescido e tão pesado. Mandei chamar um mestre na rua e, com martelo e es- copro, retiramos do estribo, cinco arrobas de prata, antes que o metal desinchasse. Isto se repetiu durante alguns anos: todos os meses o estribo inchava, incha- va, e, conforme a força da lua, eu tirava dele três, quatro, cinco arrobas de prata. Seu Libório cantador, mestre Gaudêncio curandeiro, o cego preto Firmino e Das Dores levantaram -s e a d m ira - d o s . J 145 Revista Graduando nº1 jul./dez. 2010

— O senhor deve ter ganho uma fortuna, seu Alexandre, exclamou o cantador. — Um pouco, seu Libório, sempre arranjei algum dinheiro graças a Deus. (RAMOS, 2006, p.49)

Graciliano Ramos estreou como romancista em 1933, com Caetés , uma narrativa da vida provinciana de Palmeira dos Ín- dios, um exercício de técnica literária com características natu- ralistas, como severamente o autor reconhecia. O segundo ro- mance, São Bernardo (1934), é verdadeira obra -prima da litera- tura brasileira. Nessa obra, Graciliano apresenta uma notável evolução de técnica e de estilo e um significativo aprofunda- mento na análise psicológica das personagens, em que o resul- tado é a criação de Paulo Honório, um dos mais marcantes personagens da literatura brasileira. Daí seguiu Angústia (1936), em que o romancista acentua a preocupação psicológica, ser- vindo-se de avançados recursos expressivos. Só para ficarmos nestes três exemplos, em Caétes, São Bernardo e Angustia, encontramos personagens com suas vi - das secas (grifo meu) desanimadas, embrutecidas, sofridas, destruídas, que serviram de inspiração para o ato de contar, a exemplo de João Valério e seu amor por Luisa, e os Caetés. Neste livro, segundo Viana (1981, p.14),

O uso de adjetivos, cuidadosamente selecionados, re- sulta numa comicidade rara em Graciliano Ramos. Tal- vez não seja exagero imaginar que ele, tão exigente e tão econômico com as palavras, deve ter se divertido usando, numa única página, adjetivos como ‘ingente, infausta, sumos, impudicos, libidinosos, ingrato, aprazí- vel [...] e substantivos como ‘infortúnio, brio, celerado, amante, matrona, urbe [...]. O exagero proposital parece indicar distanciamento que deve ter, da realidade, o indivíduo que pratica um ato dessa natureza. É o ridículo da situação aparecendo, na mesma proporção, no ridículo da linguagem

Já em São Bernardo te m-se a exploração psicológica de Paulo Honório – que permite conhecer o processo vivido pela personagem de tomada de consciência sobre si mesma e sobre o mundo que criou, e isso não se dá isoladamente, mas é am- J 146 Revista Graduando nº1 jul./dez. 2010

parado pelo enfoque político -sociológico do autor. Graciliano Ramos se propõe, no romance, a contar a vida de Paulo Honó- rio de guia de cego a proprietário da fazenda São Bernardo, vida dura, vida agreste. Já em Luís da Silva, em Os Cae tés , há a sondagem do mundo interior do ser humano, que se realiza plenamente no romance. Luís da Silva é um funcionário público e escritor frustrado, que vive pobremente, é incapaz de sair da mediocridade em que vive e sente raiva de todos à sua volta, principalmente de Julio Tavares, um homem rico e irresponsável que seduz sua noiva e depois a abandona. E o romance An- gústia, construído com longos monólogos, de modo complexo, é uma das mais significativas obras de análise psicológica do mo- dernismo. Os personagens acima descritos buscam, no tecido que narra as suas histórias, o conhecimento pessoal deles próprios, do mundo e dos mecanismos que fazem movê -lo. São padrões sociais, opressores e políticos que, por terem sido vítimas, fo- ram incapazes de se mostrarem, de se abrirem para o mundo, como foram capazes os personagens de Alexandre e outros heróis. Por isso, esta obra se torna ímpar dentro da produção de Graciliano Ramos, por ter sido aquela que abriu as portas para a possibilidade de voar nas asas da fantasia, ampliar os horizontes de sonhos possíveis através de histórias e sonhar, mesmo quando não restava nada a esses personagens, a não ser o funesto mundo daqueles que habitam o Nordeste e gas- tam suas vidas esperando por melhorias políticas, sociais e hu- manas. Por isso, optam por devanear, evadirem, encantarem - se, maravilharem-se por um tempo em que ‚a vida foi vivida com muitas posses, tempo de fartura e bonan- ça‛ (VASCONCELOS, 1997, p. 11). Os causos vivenciados por Alexandre na mocidade, ‚um homem cheio de conversas, meio caçador e meio vaquei- ro‛ (RAMOS, 2006, p. 11), homem de posses miúdas, eram ‘adivinhados’ pela esposa Cesária. Sentado no banco do alpen- dre com seu olhar torto, senta -se uma platéia ilustríssima: seu Libório, cantador de emboladas; mestre Gaudêncio, curandeiro; Firmino, cego preto e a afilhada de Cesária e benzedeira de mau olhado, Das Dores. O público é limitado, assim como são J 147 Revista Graduando nº1 jul./dez. 2010 limitadas as posses dos ouvintes. Nas histórias que Alexandre conta, sempre complementa- das pela esposa Cesária quando a ‚memória falha‛, não temos um olhar voltado para a verossimilhança dos fatos, para a rea- lidade como ela se apresenta, isto é, os personagens estão en- volvidos num mundo real, de miséria total, afastados do conví- vio da cidade e do mundo capitalista e produtivo, não têm pos- ses materiais, o querer, o ter e o possuir. Para Vasconcelos (1997, p.11 -12),

Desprovidos de recursos, fincados no sertão nordesti- no, numa penúria total, esse grupo excluído, não obs- tante elegerá uma outra forma de inserção, de contato com o mundo: conviver e suportá -lo pelo poder da i- maginação, pelo ato de contar

As histórias de Alexandre funcionam como uma espé- cie de ‚recreio‛, num mundo encantado onde, por ter usa- do tão abertamente sua imaginação e de seu poder de fantasia, por não ter testemunhado a realidade e a vivência humana - tal como aparecem em muitas das suas obras, através dos seus personagens -, o autor de Memórias do cárcere se torna outro, diferente, sendo o próprio, mas re- velando-se múltiplo. As histórias que Alexandre conta es- tão à margem, são diferentes das histórias tristes e amar- gas contadas pelo menino Graciliano em I nfância. Com aque- las, poucas pessoas se identificarão e raros são os seus leito- res. Saindo das narrativas de outros escritos, em que se evi- dencia um auto -retrato, um testemunho de si mesmo, mais às vezes dos homens, e das relações sociais que os oprimem e marcam a convivência humana, Alexandre e outros heróis é um livro que ameniza o sentido trágico da existência, que perpas- sou vida/obra de Graciliano Ramos. Compostas por quatorze histórias ficcionais, as narrativas de Alexandre têm em comum a inverossimilhança, o distanciamento do real, embora sejam calçadas nele e em um nível de miséria só visto em Vidas se- cas. “O que diferencia é a busca do sonho, do desejo, da von- J 148 Revista Graduando nº1 jul./dez. 2010

tade de se libertarem desse mundo que esse grupo de viven- tes está a procurar.‛ (VASCONCELOS, 1997, p. 14). A chamada para a viagem a esse mundo fantasioso, ima- ginativo, aparece no início do livro, antes até da apresentação de Alexandre e Cesária: ‚as histórias de Alexandre não são originais: pertencem ao folclore do Nordeste, e é possível que algumas tenham sido escritas‛. A partir daí, desse aviso, não propriamente no livro, percebe -se sua importância, visto o nar- rador falar que agora a imaginação e a oralidade entrarão em cena. É o convívio imaginativo, com o mundo real, que faz res- surgir mais um escrito de Graciliano Ramos, e sem a e scrita enquanto angústia, labuta, como disse Álvaro Lins. Nas Histó- rias de Alexandre , temos apenas causos contados pelo autor/ narrador a seus heróis/ouvintes, num esforço de Alexandre de recordar o passado, grandioso, aventureiro, experimentado por ele, em que ele ‚só diz o que aconteceu‛, e vai referendar a verossimilhança na palavra escrita, ‚é possível, que algumas tenham sido escritas‛.

O AMOR E A CUMPLICIDADE ENTRE ALEXANDRE E CESÁRIA

Diversos críticos têm apontado como uma das qualidades de Graciliano a marca profunda e presente da solidão. Sinal es- te que o autor fez questão de pontuar em seus personagens. Até mesmo a solidão de Vidas secas, que já se tornara visível ainda na estruturação do romance, ou seja, dos capítulos e personagens produzidos separadamente e em tempos diferen- tes. Para Nelly Novaes Coelho (apud VASCONCELOS, 1997, p. 40), a solidão e a incompreensibilidade presentes nas persona- gens gracilianas advêm, segundo a crítica, porque Graciliano Ramos ‚não acreditava na única força que pode ajudar o ho- mem a romper a Solidão e a integrá -lo na comunhão com o próximo. Graciliano não devia acreditar na possibilidade de o amor existir.‛ Além desse ponto descrito pela escritora há outros que formam uma espécie de barreira entre a obra supracitada e as outras obras de Graciliano, como: a hierarquização cultural, so- cial (os que têm e os que nada têm; os que possuem a cultura J 149 Revista Graduando nº1 jul./dez. 2010 do saber, literária, e os que têm a cultura oral, falada; o patri- arcado e, do outro lado, a massa anônima; o mundo adulto e o mundo da criança e todos os empecilhos ao amor fraternal, re- ferendado por duas esferas sociais: a igreja e a escola).

CONCLUSÃO

No mundo civilizado, organizado, urbano, solitário e egoís- ta, Alexandre ergue outro mundo, no qual todos se conhecem, todos se respeitam e se cumprimentam numa cordialidade ím- par. A distância, a mudez, a indiferença são elementos desco- nhecidos dessas pessoas que se reúnem numa comunhão, to- dos os domingos, como numa missa, para ouvirem a palavra sagrada, a de Alexandre, a qual é um evangelho para seu Li- bório Cantador. A palavra é porta de acesso à comunhão, à amizade, a esse amor mais sincero – ‚esse casal admirável não brigava, não discutia. Alexandre estava sempre de acordo com Cesária, Cesária estava sempre de acordo com Alexan- dre‛ (RAMOS, 2006, p. 11).

REFERÊNCIAS

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CANDIDO, Antonio. Os Bichos do subterrâneo. In: Tese e antíte- se . São Paulo: Cia Ed. Nacional, 1964. p. 96 -118.

CANDIDO, Antonio. Graciliano Ramos. 4. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1996. (Nossos Clássicos)

LINS, Álvaro. Jornal de Crítica , 2ª série. Rio de Janeiro: José Olympio, 1943.

RAMOS, Graciliano. Alexandre e outros heróis. 49. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

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RAMOS, Graciliano. Seleção de textos, notas, estudos biográfi- co, histórico e crítico e exercícios por Vivina de Assis Viana. São Paulo: Abril Educação, 1981. (Coleção Literatura Comentada)

RAMOS, Graciliano. Car tas . Rio de Janeiro: Record, 1982.

VASCONCELOS, Francisco Fábio Pinheiro de. Hora do recreio: o mundo encantado de Alexandre e (seus) outros heróis. 1997. 120 p. Dissertação (Mestrado em Letras e Linguística) – Instituto de Letras, Universidade Federal da , Salvador.

NOTAS

1 Há um desconhecimento total desta obra, tanto por parte dos leitores de Graciliano, bem como, pelos estudantes dos cursos de letras. Isto pode ser verificado pedindo -se aos referidos leitores uma lista dos livros já lidos do aludido escritor, e perceber-se-á a supressão desse livro. Por parte dos críticos, poucos são os artigos conhecidos entre nós sobre esse livro. A ausência de referências é quase total. Ricardo Ramos no seu livro Graciliano: retrato fragmentado , nos diz: "ao escrever Histórias de Alexandre, muito a sua maneira, ficava repetindo que era um livro menor [assim como também dizia sobre a permanência de sua obra, ‘Não vale nada, a rigor, já desapareceu’]; simples aproveitamento de temas folclóricos, insignificantes. De tanto ouvir aquilo, o inadvertido Aurélio Buarque um dia concordou: ‘Francamente , homem, não se compara mesmo, aos seus romances ’. Foi o suficiente. Sempre que se referia a Alexandre, ele acrescentava: – Aurélio não gosta‛.

2 Histórias de Alexandre, em que se ressalta o tema da malan- dragem, em versão satírica, popular e nordestina, já foi associ- ada, erroneamente , à figura de Getulio Vargas, o presidente malandro. Essa associação se deve à tentativa de alguns ensa- ístas de aproximar o escritor com o estado Novo. Ricardo Ra- mos, filho do escritor, assim se posiciona sobre essa aproxima- ção: "como explicar que a figura de Alexandre, em todos os J 151 Revista Graduando nº1 jul./dez. 2010 seus traços característicos, se mantenha viva até hoje no televisionado programa de humorista famoso? [Refere -se Ri- cardo ao programa de Chico Anísio, e ao personagem Panta- leão] Pela sua verdade folclórica, ou pela evocação de um Getúlio há tanto desaparecido? Convenientemente, esquecem de mencionar as obras Vidas Secas, Infância , ou A terra dos meninos pelados, escritas no período. In: RAMOS, Ricardo. GRACILIANO: retrato fragmentado. São Paulo: Siciliano, 1992, p. 218-219. Talvez essa associação infundada se deva ao fato de ter Graciliano Ramos colaborado na Revista Cultura política, ter sido inspetor de ensino e também ter escrito algumas crônicas e contos na revista luso -brasileira Atlântico, revista subordinada ao Departamento de Imprensa e Propaganda do Estado Novo. Para nós essa tentativa de ligar o escritor ao Estado Novo além de infeliz é pueril, um grande desrespeito à figura do mestre do escritor que certa vez disse: "se não me censurarem, público até no Diário Oficial".

3 RAMOS, Graciliano. Alexandre e outros heróis. 49. ed. Rio de Janeiro: Record, 2006 – Epígrafe.

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