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TELENOVELA: ARTE DO COTIDIANO

Telenovela brasileira traz os problemas político-sociais do cotidiano para a tribuna dos debates da coletividade

A telenovela brasileira é um produto da percepção, compreensão e capacidade de cada vez mais distante do modelo tradicio- mobilização de grupos, na defesa de direitos nal de telenovela do qual se originou. Esse e interesses comuns. Aos poucos se acen- modelo tradicional, que se mantém predo- tuam nas tramas a convivência do bem e do minante na produção de diversos países, mal, as manipulações dos grupos no poder, oscila entre a soap opera americana e o dra- resultando na impunidade e no rompimento malhão edulcorado das produções mexica- do sistema tradicional de distribuição de nas, com marcada tendência de reafirmar prêmios e castigos. estereótipos e esquemas maniqueístas. Assim, se o gênero como tal pode ser Segue reproduzindo estruturas do conto ma- considerado alienante como a maioria dos ravilhoso e reiterando mitos rnilenares no produtos da indústria cultural ou até o seu imaginário de milhões de pessoas às véspe- expoente maior, essa tendência de rompi- ras do terceiro milênio. mento do modelo clássico, por parte de al- No Brasil, a telenovela tem procurado gumas brasileiras, imprime ao dialogar com duas tendências. De um lado, produto uma marca de qualidade e já cons- a posição de que não é por obra do destino, titui uma acumulação quantitativamente ex- da justiça de Deus ou dos homens que se al- pressiva para se pensar em considerá-la um cança o bem-estar, que se muda a condição subgênero, um gênero maior, um gênero à social dos excluídos; ou de que as pessoas parte ou uma escola que renova o gênero. comuns se libertam da miséria e da explora- Essa questão está entre as muitas a serem ção. Por outro, a tendência de que o conso- estudadas e apenas tangenciam nossas preo- lo de se ser bom para um dia, não se sabe cupações, na medida em que nosso propósi- quando ou como, ser recompensado, apenas to é trabalhar no espaço desenhado pela es- serve de didática ficcional para a resigna- pecificidade das telenovelas brasileiras de ção; a passividade e a esperança sem luta são bandeiras da eterna permanência na condição de oprimido. Para esse fazer que se vem construin- do, a realidade é um espaço de conflitos, de embates e as mudanças sociais dependem 90 Telenovela: arte do cotidiano autores empenhados na ruptura, que reve- mais abrangente e concreto na sua convi- zam no preenchimento do horário nobre da vência com a prostituição, o homossexualis- rede de maior prestígio, maior poder e mo, a droga, a pedofilia (preferência sexual maior audiência do país, e que são disputa- por crianças), o crime, a violência urbana, dos "a peso de ouro pela concorrência", se- com os bolsões de miséria que proliferam gundo declarações dos próprios autores. sob a forma de favelas dominadas por trafi- As telenovelas selecionadas neste tra- cantes que submetem trabalhadores e indu- balho são assinadas por roteiristas que per- zem jovens e crianças ao vício e à crimina- tencem a essa categoria, embora com pesos lidade, num ambiente onde as instituições diferentes por abranger as últimas telenove- não funcionam e a sociedade não se sente las da emissora no horário das 20h30: A pró- responsável. xima vítima, de Sflvio de Abreu; Explode Temas como esses fazem parte da tra- coração, de Glória Perez; , de ma de A próxima vítima que não se limita a Benedito Ruy Barbosa; e a minissérie OJim apontar, mas faz aflorar os problemas no do mundo 1, de Dias Gomes. Também estare- contexto de vida de cada um, com a carga mos dirigindo nosso olhar para as subse- social e a dimensão humana que Ihes são qüentes telenovelas do horário: , inerentes. Aquilo que é simplificado para de Agnaldo Silva; Por amor, de Manuel tornar a realidade concreta mais cômoda, Carlos; e Torre de Babel, de Sílvio de Abreu. readquire, com os recursos dramatúrgicos Uma primeira aproximação já confir- da telenovela, a complexidade real e é desse ma a tendência de rompimento progressivo modo, sacudindo o telespectador a partir de do modelo clássico, inaugurada com Beto seu envolvimento na trama, que a ficção lhe Rockfeller (1968-69). Nas quatro telenove- devolve a realidade. Incorporadas à trama las destacadas, é claro o propósito de agen- central ou às tramas paralelas, inseridas na dar temas do cotidiano para debate. As história portanto, temos em Explode cora- questões propostas dizem respeito a assun- ção3 O agendamento de temas como o da di- tos até há pouco considerados tabus, razão versidade cultural (ciganos), das crianças porque ou eram ignorados ou eram tratados desaparecidas, tráfico de menores, comér- de forma preconceituosa, reforçando um cio de órgãos humanos, avanço tecnológico moralismo sustentado pela opinião e pelo (informática), corrupção, marketing políti- estereótipo e por isso mesmo ratificadores co, homossexualismo, discriminação/valo- da intolerância e da discriminaçãoz. Ou, rização do idoso, preconceito que inclui a quando lembrados, serviam mais para com- rejeição de um relacionamento amoroso au- por uma diversidade social de tipos do que têntico por diferença de idade, quando a para problematizar a sua real situação. mulher é mais velha que o homem. Essas telenovelas mostram que a vida Essas questões desenvolvidas, discuti- cotidiana vai sendo incorporada de modo das ao longo dos seis meses de vida da per-

1. Lembramos que O$m do mundo guarda peculiaridades que a distinguem das demais (por exemplo, ser fechada e ter 35 ca- pítulos, o que a aproxima da minissérie), mas atende a três critérios por nós estabelecidos: emissora, horário e petiodo de exibição (1995- 1997). Ver sobre minissérie: PALLOTTINI, Renata. Minissérie ou telenovela. Comunicação & Educação. São Paulo: CCA-ECA-USPIModerna,n. 7, set./dez. 1996. p.7 1-74. 2. Nesse sentido, a telenovela brasileira avança n2o só em relação ao gênero telenovela, com? também em relação a outros gêneros como o jomalístico, quando as próprias revistas informativas do tipo VEJA e ZSTOE pautam matérias, de capa in- clusive, em razão da telenovela que lhe oferece o gancho. 3. Ver entrevista de Glória Perez no Programa Aquela Mulher, de Maríiia Gabriela, GNT, 1996. Comunicação & Educação, São Paulo, [ 131: 89 a 102, set./dez. 1998 91

A dramaturga Glória Perez com as Mães da Cinelândia, no Rio; pesquisa para a telenovela Exploclr c.oraçn^o. sonagem (em tempo real), implicam uma in- Essa opção da autora, louvável na in- corporação do problema, pela via ficcional, tenção, não se mostrou, do ponto de vista ao cotidiano real do telespectador por igual ficcional, uma experiência bem-sucedida. A período, o que, se não opera mudanças, pelo realidade incorporada diretamente acabou menos o induz a refletir sobre elas. Não se por empobrecer a verdade por pelo menos trata pois de apenas apontar e denunciar pro- duas razões: excesso de reiteração dos ape- blemas, mas de demonstrar como eles estão los, que os banalizou, e incapacidade de re- presentes e afetam a vida das pessoas. Essa presentação por parte das mães, que não telenovela afetou e acabou por ser penetrada conseguiram expressar sua dor na situação pela realidade concreta. A campanha ficcio- artificial de gravação. Do ponto de vista da na1 desenvolvida para localizar a criança de- campanha - incorporada e ampliada pela saparecida na novela, se ampliou para incor- mídia e pela sociedade - os resultados ultra- porar as crianças desaparecidas do Rio de passaram a expectativa do público. Não só Janeiro e depois de São Paulo, onde se criou grande parte dos desaparecidos voltaram o Movimento das Mães da Praça da Sé, se- para suas mães como muito se esclareceu guindo o exemplo do já existente Movimento sobre as razões dos desaparecimentos, em das Mães da Candelária, que representaram grande parte por desestruturação da família, a si próprias em cenas nas quais eram entre- conflitos familiares, maus tratos. Também vistadas e faziam, ao vivo, seus apelos para se desfez o mito do roubo de crianças para localização dos filhos. venda de órgãos. 92 Telenovela: arte do cotidiano

FICÇÃO PAUTADA PELA REALIDADE co, através da ficção, um rosto, uma identi- dade, uma história. Saem das sombras da Com relação a Ofim do mundo4, pode- marginalidade para um reconhecimento co- mos dizer que o autor elabora uma síntese mo excluídos, despossuídos buscando terras da realidade brasileira onde os problemas ociosas para ocupar com suas famílias e de- vão do descaso com a saúde à inoperância las tirar o sustento. Naturalmente, a ousadia das instituições, submetidas ao poder eco- do autor gerou polêmica e conseguiu desa- nômico dos coronéis locais, passando pela gradar a todas as partes envolvidas: latifun- droga, pelo crime, pelo preconceito, pela diários, MST, Congresso Nacional, cada impunidade, pela imprensa sensacionalista qual insatisfeito com o tratamento que lhe e corrupta, pelas negociatas, pela subser- foi dado, além de se sentirem pressionados, viência aos norte-americanos, pela luxúria e dada a repercussão desencadeada pela tele- pelo estupro, entre outros; em meio à igno- novela que pautou e ainda seguiu pautando rância e à crença em profecias de ilumina- (depois que terminou) o debate nacional. dos, enquanto os aproveitadores de plantão As pressões agiram sobre o Congresso saqueiam o bolso dos pobres ou se apro- na votação do Imposto Temtorial Rural - priam dos bens dos parceiros sociais. ITR, fazendo incidir maior taxa sobre terras improdutivas, na aprovação do Rito Sumá- A ficção, nesse caso, trata de pro- rio (que torna mais ágil o processo de desa- blemas da nossa realidade cotidiana con- propriação), que por sua vez agem no senti- creta, propiciando uma visão ampla de do de apontar para a urgência de uma verda- um real nem sempre percebido no seu deira reforma agrária. Ficou evidente a tru- conjunto, de um país desgovernado e culência com que os grandes proprietários submetido aos desmandos dos grupos rurais revidam à ocupação de suas terras que detêm o poder economico e político, consideradas improdutivas e que ocupações definem a ética e a moral conforme a cir- pacíficas (mas nem tanto) só ocorrem quan- cunstância e expropriam o cidadão co- do a desapropriação é desejada pelo pro- mum de seus direitos. prietário e o assentamento dos sem-terra contribui para apressá-la. O rei do gado traz para o horário nobre Essas considerações servem para ilus- a questão agrária e o Movimento dos Sem- trar rapidamente um modo de interação en- Terra - MST. O invasor de propriedades ru- tre os cotidianos da ficção e da realidade rais, tomado notícia por massacres que na concreta e o verdadeiro dialogismo que se mídia viravam conflitos em regiões quase processa entre ficção e realidade, numa per- sempre distantes dos grandes centros, entra manente e recíproca realimentação, diluin- na casa de milhões de brasileiros como o tra- do progressivamente os limites entre ambas. balhador rural desempregado. Vítimas da O rei do gado nos alerta para a importância mecanização da agricultura, muitos deles da telenovela e para o seu poder de interfe- ex-pequenos proprietários, perderam sua ter- rir na realidade. Não é sem razão que esses ra por falta de apoio do governo e de uma autores sofrem pressões de todos os lados, política agrária de fixação do homem ao estão conscientes de sua responsabilidade campo. Eles adquirem para o grande públi- social e após seis meses de trabalho exaus- 4. Ver, sobre o assunto, artigo O jm do mundo: ordem e ruptura, apresentado por n6s no XIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. INTERCOM. GT- Ficção televisiva. Realizado em Londrina, PR, de 04 a 07/09/96. (rnimeo). Comunicaçáo & Educação, São Paulo, (13): 89 a 102, set./dez. 1998 tivo e grande tensão ficam no estaleiro por ser essa a intenção do autor ao incorporar o igual lapso de tempo para se recomporem, cotidiano do sem-terra nessa busca de solu- isso quando não sofrem sérias avarias no fi- ção para seus problemas, num momento nal ou durante sua alucinante viagem. particularmente importante de sua organiza- ção como movimento. Sílvio de Abreu afirma que o autor Os sem-terra se mantiveram com tanto de telenovela não é repórter5 e ninguém espaço na imprensa durante a exibição da te- discute essa verdade. Todavia, O rei gado lenovela como no apogeu do massacre de exerceu de tal forma essa função que Eldorado de Carajás. A telenovela realimen- muitas vezes o telespectador teve dificul- tou essa presença na mídia contra a tendência dade de saber se as aqões dos sem-terra do esgotamento, da superação como recriadas na trama ou referidas no diálo- tema de interesse nacional6. Ainda precisa- go dos personagens precediam ou suce- mos avaliar o grau de interferência da teleno- diam o noticiário da imprensa, do mesmo vela na realidade, embora já se saiba que ela modo que as falas do senador Roberto interfere: se não por outras razões, porque no Caxias (), com sua defesa futuro se saberá, pela acumulação histórica da mudança do ITR e da aprovação do da imprensa, que o tema sem-terra ocupou Rito Sumário, se eram anteriores ou pos- grande espaço do cotidiano dos jornais e re- teriores ao noticiário sobre o assunto. vistas informativas neste período da história. Mas, há ainda muito que se pensar, inclusive Também após a aprovação, seria difí- sobre o episódio da participação de senado- cil identificar quem primeiro comemorou os res da República (Eduardo Suplicy e resultados como passos importantes em di- Benedita da Silva) no velório ficcional do se- reção à reforma agrária, tal a simultaneida- nador Roberto Caxias, na telenovela portan- de entre os acontecimentos na ficção e na to, e os mesmos senadores presentes no veló- realidade. Os conflitos envolvendo a mar- rio real do senador , na semana cha e a ocupação de fazendas pelos sem-ter- seguinte ao término da novela, mostrado pe- ra, que se processavam no desenrolar da lo Jornal Nacional que também destacou, novela, eram incorporados aos diálogos, entre as bandeiras colocadas sobre o esquife, passando às vezes por notícias ouvidas pelo a bandeira dos sem-terra. É ainda na sequên- rádio ou sabidas através do MST. As mortes cia desses acontecimentos que o mesmo se- isoladas e os massacres apareciam imediata- nador visita o Ponta1 do Paranapanema, é mente e, mesmo quando em fragmentos, re- hospedado no acampamento dos sem-terra, metiam para episódios semelhantes anterio- onde pernoitou numa das barracas. res, conectando entre si fatos da história real Por outro lado, à intensa interação dia- de um movimento legítimo, pacífico e cora- lógica que se estabeleceu entre o cotidiano de joso, que paga com a vida a ousadia de lutar O rei do gado e o da realidade concreta no por um direito que o descaso e a indiferen- mais autêntico sentido bakhtiniano, acres- ça transformam em delito punido com a centa-se o diálogo intertextual, no sentido morte sumária. Independente dos interesses mais tradicional de interlocução, de fala e ré- ideológicos dos setores envolvidos, parece plica, que se processou a partir de artigo do

5. Declaração do Autor em Colóquio na Faculdade de Educação da USP, em 30110196. 6. Estamos pesquisando jornais e revistas informativas com esse propósito. Telenovela: arte do cotidiano senador Darcy Ribeiro no jornal7 sobre a te- que o próprio uso a transformou. O resultado lenovela e a resposta de Benedito Ruy dessa mescla traduz o esnobismo caipira e Barbosa a Darcy Ribeiro em falas de perso- denuncia a vocação do país para imitar o co- nagens dentro da telenovela, como homena- lonizador, negando sua própria cultura e ele- gem à compreensão de seu propósito mani- gendo aquela do dominador como a de pres- festa pelo senador. O artigo já estava anotado tígio por ser a linguagem do poder. A nossa para análise quando a morte de Darcy história mostra a sucessão de influências cul- Ribeiro levou o autor a fazer declarações so- turais hegemônicas nos diferentes momentos bre o assunto* e o que era ainda uma hipóte- de nossa formação a começar pela Europa se transforma-se em certeza com a revelação ( e França), se deslocando, com in- comovida de Benedito Ruy Barbosa. tensidade progressiva, para a da América do Colada ao modelo do folhetim, elegen- Norte. O Brasil real também fala uma língua do como tema predominante o preconceito, eivada de americanismos, cujas marcas se A indomada traz para o horário nobre a co- inscrevem em lojas, danceterias, academias, média. Trabalha a discriminação com os tra- hotéis, centros de estética, bares, cafés, res- ços exagerados da caricatura para provocar o taurantes, comidas, para não falar em produ- riso mais que para denunciar os preconcei- tos, modos e hábitos de vida. Na telenovela, tos. O sentido mais crítico se manifesta na essa intenção de ridicularizar a importação esfera da política local. O prefeito é perma- de cultura se evidencia na fala da persona- nentemente exposto ao ridículo na prática da gem Lúcia Helena () que, megalomania administrativa. Decorrente de tendo passado longos anos estudando na uma visão da política como exercício de um Inglaterra, ao contrário de seus conterrâneos poder absoluto, o prefeito de Greenville, Ypi- de Greenville, não utiliza uma só palavra ou ranga Pitiguary (Paulo Betti) ora aponta pa- expressão da língua inglesa. A ficção explo- ra o estilo de políticos brasileiros (mortos, vi- ra o ridículo e provoca o riso de uma situação vos e em atividade) ora para modelos históri- em tudo análoga à realidade lingüística do cos como Luiz XIV, o Rei Sol da França, que Brasil pós-modemo e globalizado. se considerava o próprio Estado (~'Ètait A telenovela Por amor mantém-se bem c'est moi). Seu sogro, Pitúgoras (Ary Fon- mais próxima do melodrama. Mesmo assim toura), garante seus desmandos com o poder não se reduz a ele, pois o autor dispersa nos do mandato popular de deputado federal po- diálogos os temas do nosso cotidiano real co- tencializado pelo da cormpção. Do ponto de mo se os personagens da história assistissem vista da crítica do cotidiano brasileiro, o au- aos mesmos telejornais que nós e lessem os tor consegue melhor resultado no trabalho mesmos jornais e revistas. Foram comenta- com a linguagem híbrida, resultante da fusão dos, por exemplo, o desabamento do Palace da linguagem regional do nordeste com a lín- 11, no , construído pela empre- gua inglesa e a norma padrão do português. sa do deputado Sérgio Naya; o repatriamento Orgulhosos de seguirem a tradição britânica da advogada Jorgina de Freitas, das fraudes que está na origem da cidade, os herdeiros da Previdência Social; a recente epidemia de cuidam de preservar a antiga cultura, sobre- dengue; a prevenção da AIDS e o problema tudo através da linguagem oral, sem perceber do aborto. Incorporados à trama, como pro-

7. FOLHA DE S. PAULO, 20/01/96, 1.2 - Opinião. 8. TV CULTURA. Programa Roda Viva, de 17/02/96, 22h30. Comunicação 62 Educação, Sao Paulo, (131: 89 a 102, set./dez. 1998 95

A carreata dos Sem-Terra avança para mais uma ocupaçáo. liderada por Regino (Jackson Antunes) e Jncirtr (). blema central de um dos núcleos (o pobre), o cia nas telenovelas e na ficção em geral, e até alcoolismo foi trazido à discussão com realis- em comerciais, as personagens passam da mo, seriedade e respeito. Também se desti- mesa à rua sem a natural preocupação coti- nou, nesse mesmo núcleo, algum espaço para diana de escovar os dentes. Essa ausência o tema do aborto, tendo prevalecido a visão acabava incomodando, por violar uma norma conservadora, embora se deva registrar a ad- elementar de preservação da saúde. Manuel vertência sobre as condições perigosas em Carlos ou a produção de Por amor corrigiu a que ele se realiza, enquanto prática ilegal da falha pondo uma personagem no banheiro medicina. Numa trama secundária, o homos- escovando os dentes na frente do namorado e sexualismo masculino tardiamente assumido dos milhões de telespectadores. Um bom co- pelo homem maduro, bem-sucedido familiar meço, marcado com um certo exagero e com e socialmente. A tranqüilidade com que o au- uma escovação bem distante das recomenda- tor trata a questão se expressa na fala da mu- das pelos dentistas e pelas campanhas que se lher após a separação: parece o$m de um lon- faz em escolas. Como todo ato inaugural, ex- go velório, Malmente vou poder descansar. cessivo na demonstração e pouco cuidado na Ainda nessa telenovela, fomos sur- execução. Considerando o caráter ficcional preendidos com uma correção. Sem referên- do produto, nem precisaria tanto. Talvez uma Telenovela: arte do cotidiano mera insinuação, sugestão ou alusão verbal bólico. Aí as pessoas se sentem enferruja- seriam já de grande alcance educativo. Vale das, aprisionadas por suas próprias imper- comemorar a mensagem educativa e o acrés- feições, "gente que ficou presa nas ferra- cimo de verossimilhança com o cotidiano vi- gens", na visão de Denise Saraceni, direto- vido do telespectador. ra da telenovela, que lembra as perguntas Torre de Babel, de Síivio de Abreu, fundamentais colocadas pelas personagens: chocou os telespectadores em seu primeiro "O que é importante para ser feliz no mun- capítulo ao oferecer de uma só vez todos os do de hoje? Que tipo de ser humano sobre- conflitos da história. Em lugar da usual vive à pobreza material e espiritual?'. apresentação de personagens, trouxe já exa- A telenovela se inaugura com uma ex- cerbados os seus dramas. Um duplo assassi- plosão de violência generalizada, que prende nato, a crise do toxicômano de família rica. no mesmo universo o fausto e a miséria e ex- Um casal homossexual feminino de classe põe desnudada uma sociedade que o cultivo média alta sofrendo discriminação e precon- e a exacerbação da desigualdade transfor- ceito. O casal rico vivendo na maturidade a mou num barril de pólvora prestes a explo- consciência do casamento falido, a angústia dir, como explodiu sua metáfora, o shopping de ter um filho dependente de drogas perse- Tropical Tower - a Torre de Babel. Não há guido por agentes do tráfico, o afastamento como ficar indiferente a essa provocação do dos netos por desentendimentos entre o fi- autor: é unânime o mal-estar do público, lho mais velho, inconseqüente e imaturo, e particularmente pela ausência, nesta fase, de a nora caprichosa e fútil. um núcleo mais distenso para permitir um A miséria do ferro-velho onde Agenor pouco de relaxamento ao telespectador. da Silva (Juca de Oliveira), um homem ru- Esta falta tomou tensa a telenovela e de e alcoolizado, trabalha e vive com dois assustou a audiência, que não reconheceu filhos solteiros (Gustinho e Boneca - Oscar nela a receita tradicional, particularmente Magrini e Emani Moraes) grosseiros, in- depois da açucarada Por amor. O impacto fantis e pouco escolarizados; o agregado fez recuar o telespectador, como demons- Jamanta (Cacá Carvalho) de aparência e tram os 35 pontos de audiência registrados comportamento estranhos, misto de bobo e na primeira semana. Ousadia do autor como ingênuo que pode se tomar agressivo a ponto de partida da história, mas uma possi- qualquer momento; e a neta jovem e boni- bilidade real de tratamento direto dessas te- ta, manca de uma perna, Shirley (Karina máticas. Barun). Um cenário perfeito no qual apare- ce, para presentificar o comportamento da A pedagogia dos meios, e em particular mãe, móvel e vítima do crime, outra neta, da telenovela, vem preparando gradual- Sandra (Adriana Esteves), que não mora mente a discussão. Trazê-la para o pri- ali, mas aparece para exibir sua vulgaridade meiro plano, para a trama central da his- e obter favores do agregado com jogos de tória, é um passo a mais no processo de sedução. O contraste entre a figura incômo- mudança da telenovela brasileira interes- da de Jamanta e o frescor da jovem se insi- sada em interferir diretamente nos meca- nuando lembram personagens e cenas de nismos de compreensão do homem, da so- Nélson Rodrigues, o que já bastaria para ciedade que produz a violência urbana, sensibilizar o estômago de boa parte da au- despertando em cada um de nós o desejo diência. O ferro-velho é um ambiente sim- de transformá-la. Comunicação 82 Educação, São Paulo, [ 131: 89 a 102, set./dez. 1998 97

A história mostra como a violência se de- e uma repercussão endógena, isto é, dentro senvolve em função das influências do meio do seu próprio meio. No primeiro modo es- em que se vive. A tese de Sílvio de Abreu a tariam os jornais, as revistas informativas, ser desenvolvida ao longo da história vem outras emissoras de TV e o rádio; no segun- interpretada pelo sociólogo Paul Singer, em do, a programação da emissora de TV que participação especial, no primeiro capítulo: exibe a telenovela, que a recupera sob a for- "Quando a sociedade é desorganizada e in- ma de subproduto, como é o caso do Vídeo justa, não adianta os mais ricos se fecharem Show da TV Globo, ou a retoma em progra- em condomínios e os marginais serem trata- mas de auditório, em programas de humor dos num sistema penitenciário falido. É ilu- sob a forma de sátira ou paródia, em progra- sório achar que exista segurança possível. mas de entrevistas, programas do tipo infor- Mais cedo ou mais tarde, qualquer um pode mativo como telejornais e de reportagem. Os ser atingido ". programas de auditório dão oportunidade a Retroagindo ao passado mais recente, entrevistas com atores que falam sobre o podemos identificar nos autores embriões personagem e sua relação com a história. que vão se desenvolvendo no curso de suas No que se refere às revistas informati- obras. No caso de Sílvio de Abreu, A próxi- va@,grandes matérias, inclusive matérias de ma vítima - inaugurando o gênero policial, capa são pautadas pela telenovela na primei- violência urbana e temas polêmicos - pre- ra semana de exibição, que podem remeter parou o avanço de Torre de Babel; Benedito explicitamente à origem da opção temática, Ruy Barbosa, com Tião Galinha - explora- como a edição de 26/02/97 da revista do e aviltado que sonhava com uns poucos ISTOÉ, que parte da telenovela A Indomada metros de terra - de , vai ser reto- e da personagem Scarlet (Luiza Thomé) pa- mado como o sem-terra de O rei do gado, ra discutir, sob o título Louco Desejo, como problema também lembrado em obra ante- vivem as pessoas viciadas em sexo ou de rior, Pantanal (Rede Manchete). modo implícito como a matéria de capa da mesma revista O Jim do mundo, edição de 08/05/96, semana em se iniciava a minissé- rie com o mesmo nome. Durante o período de exibição, jornais e revistas diversas abri- Do ponto de vista do que chamamos de ram espaço para discutir a proximidade do acumulação histórica da imprensa e da tele- ano 2000 e sua relação com o apocalipse, in- novela agendando o noticiário da mídia, com clusive entrevistando atores para colher opi- os temas que ela elege para discussão, iden- niões sobre o assunto, ou passando em revis- tificamos múltiplas formas de irradiação ta as profecias que não se cumpriram nos com intensidade e alcance variáveis. Entre momentos esperados e as que projetam para elas, podemos destacar dois grandes modos momentos futuros o grande final. Essa reite- básicos: no sentido da horizontalidade e da ração temática no lançamento das telenove- verticalidade. No primeiro caso a relação é las é uma constante, pois ela constitui um intermídia e no segundo intramídia, ou uma gancho natural, que permanece durante a repercussão exógena, para além do seu meio exibição e retoma, depois de terminada a te-

9. Nossa preocupação em observar a capacidade da telenovela de agenda os meios (interferência da ficção na realidade) le- va-nos a excluir toda publicação especializada em televisão, icomo é o caso dos cadernos de jornais e revistas do tipo Amiga, Contigo etc. 98 Telenovela: arte do cotidiano lenovela, como que para avaliar os efeitos te, o texto esclarece: Finalmente! Débora por ela produzidos. Esse é o caso de matéria Rodrigues. A sem-terra mais bonita do de capa da revista ISTOÉ, edição de Brasil. No outdoor, junto com a foto, a frase: 17/07/96 (posterior ao final de Explode co- Não é mulhel; é um latifúndio. A obviedade ração): O novo membro da famzlia - o com- da relação temática, telenoveldsem-terra~la- putador invade os lares da classe média bra- tifúndio dispensa comentários. sileira - (com um CD ROM de brinde), O tema dos emergentes (pessoas que apontando, entre os quatro computadores ganharam muito dinheiro e buscam poder so- mais vendidos no Brasil, o Itautec-Infoway cial) reiterado na novela Por amor é matéria que, todos se lembram, permitiu o encontro de capa da revista ISTOÉ, de 10 de dezembro virtual de dois casais na telenovela Explode de 97, com foto de Vera Loyola com um ca- coração, de Glória Perez, cujos romances se chorrinho nos braços, numa clara relação de concretizaram no real da ficção. Também identidade com a Meg (Françoise Fourton), pelo caminho virtual se chega à descoberta e personagem de Agnaldo Silva. Na telenove- denúncia do esquema de compção em torno la, Vera e mais três amigas tiveram uma par- da campanha política do protagonista da his- ticipação especial representando elas mes- tória, Júlio Falcão (Édson Celulari). Nesse mas, durante a feijoada-aniversário de Meg. caso, a pesquisa avalia os efeitos da teleno- Durante a exibição de Por amor, a vela (sem referir-se a ela) como agente difu- Folha de S. Paulo realizou pesquisa com os sor e reforçador de comportamentos, favore- leitores para avaliar a preferência para solu- cendo hábitos e promovendo vendas. ção do Caso Marcelinho, o filho de Helena A revista Playboy elege pra suas capas () trocado com o de sua filha e páginas centrais imagens ligadas à teleno- Eduarda (Gabriela Duarte) na maternidade. vela O rei do gado. Aproveitando o saber (fi- Quando a Globo já anunciava a nova novela gurativo e temático) presente na memória na- Torre de Babel, fazendo circular material de cional, a edição de março de 1997 traz Leila divulgação, a Revista da Folha10 se antecipa Lopes, que viveu a personagem Suzane, na- e, em sua edição de 8 de fevereiro de 1998, morada de Ralf (Oscar Magrini), com o títu- focaliza o casamento entre mulheres em ma- lo: Leila Lopes: Nua, a Suzane de O rei do téria de capa Eu gosto de mulher e anuncia gado. Nos outdoors espalhados pela cidade, que pesquisa Datafolha revela que beijo en- ao lado da foto da atriz, outra referência à te- tre mulheres choca menos que uma cena ro- lenovela vinha expressa no texto: A essa, mântica de dois homens. A revista Cláudia11 nem o senador Caxias resiste, numa clara de junho dedica várias páginas ao tema, sob alusão à resistência do personagem Roberto o título Amor entre mulheres. A matéria, Caxias (Carlos Vereza) ao assédio de sua fiel com chamada de capa Como vivem e se sen- e dedicada companheira de solidão em tem as mulheres que amam outras mulheres, Brasilia, Chiquita (Gisele Sumar). Na edição inclui um box para responder à pergunta: de outubro (do mesmo ano), a fotografada Como elas fazem sexo? pela revista é Débora Rodrigues, uma rnili- A Veja São Paulo, de 17 de junho, de- tantelsimpatizante do MST. Na capa ocupada dica sua matéria de capa ao pão: O pão nos- pela foto onde aparece vestida sumariamen- so, trazendo um guia dos melhores pães da

10. A TV Folha, já em 08/03/98 antecipava principais assuntos a serem discutidos em Torre de Babel, que começaria a ser gravada em São Paulo. 11. Revista CLÁUDIA, n.6, ano 73, junho 98. São Paulo: Abril. p. 170-175. Comunicação & Educação, São Paulo, [ 1 cidade e das melhores padarias. Para os que ção e complexidade, como também no mo- não sabem, uma das personagens de Torre do de construção gradual e reiterada que se de Babe1 é Edmundo Falcão (Victor Fasa- processa ao longo de seus aproximados seis no), proprietário de padarias, que pôs lite- meses de duração. ralmente a mão na massa, enfurecido com Assim, do mesmo modo que nos os empregados que descuidaram da qualida- exemplos, essa potencialidade do gênero de do pão, motivo da não inclusão de seus pode ser aproveitada para acrescentar co- produtos na lista dos melhores de São nhecimento e atuar na direção do movimen- Paulo. Isso ocorreu em capítulo durante a to de mudança social, embora seu uso pre- semana em cujo final saiu a revista. dominante seja para reiterar a manutenção Esses modos de reiteração apontam das condições existentes. Todavia, mesmo a telenovela como um referente - a partir não sendo muitas as telenovelas que acres- do qual uma coleção de temas é posta a centam ao entretenimento uma proposta circular no universo da população e, por mais séria, elas demarcam uma progressão, isso mesmo, já se tornaram familiares - o renovam o gênero e formam um telespecta- que favorece sua retomada em outros uni- dor sempre mais atento, crítico e exigente. versos de discurso além do ficcional. A telenovela instaura referentes figurativos O amplo potencial educativo da tele- a partir dos quais, teoricamente, milhões novela, de que falamos, vem despertando de telespectadores estariam em condições interesse de segmentos que tradicional- mínimas para se interessarem por assun- mente a rejeitavam como a Igreja Ca- tos relacionados a esses universos ou pe- tólica, que aspira incluí-la na programa- los desdobramentos desses assuntos, ção de seu canal brasileiro Rede Vida. quando tratados tematicamente. A teleno- vela, ao construir um campo de significa- dos, difunde um saber concreto que Trata-se, em última instância, do uso ideo- precede e prepara para a apreensão e lógico do gênero, historicamente a serviço compreensão do saber conceitual ou abs- da permanência, num movimento que busca trato. Como diz Benedito Ruy Barbosa, questionar os valores tradicionais e romper sua telenovela passou para o telespecta- a imobilidade social. E, ninguém melhor pa- dor muitos conceitos entre os quais o de ra fazê-lo do que a telenovela, considerada a terra devoluta. Do mesmo modo julgamos maior tribuna do país. Não só a maior, mas que, depois de A próxima vítima, o con- a que mais interfere no cotidiano dos brasi- ceito de homossexual, se não mudou, pe- leiros que, se não param para assistir a ela, lo menos deixou de ser apenas sinônimo esperam ansiosos para saber do que se tra- de vício ou perversão. Não fosse assim tou no capítulo do dia. Do Congresso teria havido uma profunda rejeição - ma- Nacional ao lavrador sem-terra, passando nifesta inclusive pela queda de audiência pela Associação dos Produtores de Couro, - de um personagem duplamente exposto que se insurgiu contra ela e a TV Globo por- ao preconceito: por ser não só homosse- que a marca RG (no caso da novela O rei do xual, mas homossexual e negro. gado), impressa na boiada do horário nobre, Esse caráter educativo da telenovela estava em lugar inadequado, desinformando tem apoio não só na possibilidade de tratar relativamente a um aspecto técnico. A mar- figurativamente os conceitos na sua abstra- ca, segundo a entidade, deveria estar em ex- Telenovela: arte do cotidiano

tremidades do corpo do animal para não da- Alfabetização, ficou solta, deslocada pela nificar o couro. O exemplo confirma a aten- falta de ancoragem em um contexto apro- ção geral e demonstra a vigilância crítica a priado. Esses exemplos podem encontrar que está submetida a telenovela e o rigor seu contraponto nas críticas às instituições técnico-científico cobrado no trato de pe- elaboradas em OJim do mundo, quando elas quenos detalhes. Desse modo está indicada procediam de dentro da própria instituição uma das possíveis pistas para o saber-fazer presente no cotidiano da cidade, envolvendo telenovela brasileira, a de que toda a socie- os profissionais, os usuários das instituições dade, se sentindo no direito de exercer sobre e a população como um todo (Prefeitura, ela uma atividade crítica, contribui signifi- Hospital Psiquiátrico, Pronto Socorro, De- cativamente para o seu aprimoramento e é legacia, Igreja etc.). Outra observação diz co-responsável pelo padrão de qualidade respeito não só à não rejeição dos pobres em que ela alcançou, tomando-se produto de O rei do gado, como à simpatia que eles grife de categoria internacional. conseguiram despertar no público. Sua inte- gração na trama central tomou absoluta- mente verossímeis as discussões inseridas CINZEL DO ARTISTA no seu cotidiano de dificuldades, como par- Mas, nem só de êxitos vive a telenove- te mesmo da construção da vida no acampa- la, não basta dialogar simplesmente com a mento: a precariedade, a escassez, a luta te- realidade. A realidade, para retomar da fic- naz pela sobrevivência e pela inclusão so- ção contextualizada e com contomos de cial. As denúncias do grupo soaram sempre verdade, deve ser trabalhada com o cinzel verdadeiras porque nascidas de prática, do artista. É só como ato de criação que a te- construídas a partir de uma prática, fruto da lenovela pode superar a alienação e sua fun- experiência da privação, do sofrimento e da ção de mero entretenimento. Não basta indiferença pela sua desigualdade. Suas as- agregar falas críticas aos diálogos dos per- pirações e sua luta soaram legítimas porque sonagens sobre problemas que não estão en- ditadas pelas condições concretas de sua volvidos na trama. Em Renascer (de Bene- existência, reconstruídas com a sensibilida- dito Ruy Barbosa) criticou-se a assistência de e talento do autor e vivenciadas pelo te- médica - um dos filhos do Coronel Leôncio lespectador na audiêncialconvivência diária. (Antônio Fagundes), médico com diploma Uma das marcas da telenovela é o seu cassado, pensa em exercer a medicina na re- caráter polêmico, o que a inclui entre os dis- gião. Os diálogos soaram falsos, artificiais. cursos democráticos. Com tendência dialó- O mesmo ocorre em relação à política, que gica, em sintonia com as preferências do a introdução de um aparelho de TV na fa- público por depender dos índices de audiên- zenda justifica, dando oportunidade a uma cia, ela considera a crítica e, em certa medi- longa crítica à corrupção, que resultou num da, a incorpora. Entre as críticas à novela de discurso estereotipado e vazio. Também em Benedito Ruy Barbosa, não incorporadas, O rei do gado, os longos discursos do sena- podemos destacar a de que o autor abando- dor cansaram o grande público e uma con- nou a certa altura da história a questão do versa entre Bruno Mezenga (Antônio sem-terra, outra, a de que não apontou a di- Fagundes), seu filho Marcos (Fábio Assun- reção de onde proveio a bala que matou o ção) e Zé do Araguaia (Stênio Garcia), so- senador Roberto Caxias. Todavia, a questão bre educação e o Sistema de agrária em geral e a urgência da reforma Comunicação & Educação, São Paulo, (131: 89 a 102, set./dez. 1998 101 agrária foram intensificadas num certo mo- mento e trazidas para o primeiro plano, fi- cando para um plano secundário o cotidiano do sem-terra. Também porque deixar claro a procedência da .bala, identificando o culpa- do, seria ficcionalizar um aspecto importan- te da realidade que ele tentava mostrar, e que é o da impunidade dos atos praticados pelos detentores do poder. Como no jorna- lismo, sobretudo o telejomalismo, nesses casos não há assassinos, mas conflitos, am- bigüidade, balas perdidas, modo convencio- nal de proteger patrocinadores de homicí- dios, massacres e extermínios. O não-apon- tar reproduz uma realidade na qual só se aponta quando o culpado é o excluído. De qualquer modo, trata-se de uma op- ção do autor e de sua liberdade de construir seu mundo ficcional sem compromissos que não sejam os ditados pelas próprias normas que regem a ficção. A arte e a subversão de- correntes dependem do talento do autor em produzir uma obra de ficção para ser lida se- gundo os protocolos da ficçãol2, na qual a realidade transformada seia de tal modo ilu- minada que a refração produzida resulte nu- O senador Roberto C

12. Ver ECO, U. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. Telenovela: arte do cotidiano

Resumo: Nosso objetivo é refletir sobre a Abstract: Our goal is to reflect on the constitu- constituição da telenovela brasileira como es- tion of the Brazilian soap opera (telenovela) as paço de diálogo entre ficção e realidade, on- a dialogic space between fiction and reality, a de a construção do cotidiano representado place where the construction of the day-to- incorpora os temas da realidade concreta, pa- day life that is represented incorporates the ra discuti-los, dar-lhes centralidade e colocá- themes of concrete reality. We are aiming at 10s na ordem do dia das discussões da socie- discussing them, giving them a central focus dade. Funcionando como uma pauta para a and putting them in the order of the day of so- mídia, alimentação para as conversas infor- ciety's discussions. Working as an agenda for mais da vida cotidiana, propõem um debate the media, fuel for every day informal conver- de amplitude nacional, que ultrapassa as es- sation, this proposes a nationwide debate that feras convencionais e, de certo modo, restitui surpasses the conventional spheres and, in a ao cidadão comum a possibilidade de opinar way, gives back the common citizen the possi- sobre questões de interesse da polis. Enq- bility of giving an opinion on the matters that uanto o telejornal se mantém como espaço interest the polis. While the newscast is main- do relato informativo, como síntese de acon- tained as an informative reporting space, as a tecimentos, rápido e perecível, a telenovela - summary of the happenings that is quick and produto ficcional de longa duração - vai se perishable, the soap opera - a long-duration assumindo, pelo fazer específico de certos fictional product - is being taken on, due to autores, como o espelho que reflete e refrata the specific doing of certain authors, as a mir- a realidade em movimento, graças mesmo ao ror that reflects and refracts reality in move- descompromisso que a caracteriza enquanto ment thanks to the lack of commitment that gênero. characterizes it as genre.

Palavras-chave: telenovela, cotidiano, telejor- Key words: telenovela, day-to-day, newscast, nal, jornalismo, realidade journalism, reality