Telenovela: Arte Do Cotidiano
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TELENOVELA: ARTE DO COTIDIANO Telenovela brasileira traz os problemas político-sociais do cotidiano para a tribuna dos debates da coletividade A telenovela brasileira é um produto da percepção, compreensão e capacidade de cada vez mais distante do modelo tradicio- mobilização de grupos, na defesa de direitos nal de telenovela do qual se originou. Esse e interesses comuns. Aos poucos se acen- modelo tradicional, que se mantém predo- tuam nas tramas a convivência do bem e do minante na produção de diversos países, mal, as manipulações dos grupos no poder, oscila entre a soap opera americana e o dra- resultando na impunidade e no rompimento malhão edulcorado das produções mexica- do sistema tradicional de distribuição de nas, com marcada tendência de reafirmar prêmios e castigos. estereótipos e esquemas maniqueístas. Assim, se o gênero como tal pode ser Segue reproduzindo estruturas do conto ma- considerado alienante como a maioria dos ravilhoso e reiterando mitos rnilenares no produtos da indústria cultural ou até o seu imaginário de milhões de pessoas às véspe- expoente maior, essa tendência de rompi- ras do terceiro milênio. mento do modelo clássico, por parte de al- No Brasil, a telenovela tem procurado gumas telenovelas brasileiras, imprime ao dialogar com duas tendências. De um lado, produto uma marca de qualidade e já cons- a posição de que não é por obra do destino, titui uma acumulação quantitativamente ex- da justiça de Deus ou dos homens que se al- pressiva para se pensar em considerá-la um cança o bem-estar, que se muda a condição subgênero, um gênero maior, um gênero à social dos excluídos; ou de que as pessoas parte ou uma escola que renova o gênero. comuns se libertam da miséria e da explora- Essa questão está entre as muitas a serem ção. Por outro, a tendência de que o conso- estudadas e apenas tangenciam nossas preo- lo de se ser bom para um dia, não se sabe cupações, na medida em que nosso propósi- quando ou como, ser recompensado, apenas to é trabalhar no espaço desenhado pela es- serve de didática ficcional para a resigna- pecificidade das telenovelas brasileiras de ção; a passividade e a esperança sem luta são bandeiras da eterna permanência na condição de oprimido. Para esse fazer que se vem construin- do, a realidade é um espaço de conflitos, de embates e as mudanças sociais dependem 90 Telenovela: arte do cotidiano autores empenhados na ruptura, que reve- mais abrangente e concreto na sua convi- zam no preenchimento do horário nobre da vência com a prostituição, o homossexualis- rede de maior prestígio, maior poder e mo, a droga, a pedofilia (preferência sexual maior audiência do país, e que são disputa- por crianças), o crime, a violência urbana, dos "a peso de ouro pela concorrência", se- com os bolsões de miséria que proliferam gundo declarações dos próprios autores. sob a forma de favelas dominadas por trafi- As telenovelas selecionadas neste tra- cantes que submetem trabalhadores e indu- balho são assinadas por roteiristas que per- zem jovens e crianças ao vício e à crimina- tencem a essa categoria, embora com pesos lidade, num ambiente onde as instituições diferentes por abranger as últimas telenove- não funcionam e a sociedade não se sente las da emissora no horário das 20h30: A pró- responsável. xima vítima, de Sflvio de Abreu; Explode Temas como esses fazem parte da tra- coração, de Glória Perez; O rei do gado, de ma de A próxima vítima que não se limita a Benedito Ruy Barbosa; e a minissérie OJim apontar, mas faz aflorar os problemas no do mundo 1, de Dias Gomes. Também estare- contexto de vida de cada um, com a carga mos dirigindo nosso olhar para as subse- social e a dimensão humana que Ihes são qüentes telenovelas do horário: A indomada, inerentes. Aquilo que é simplificado para de Agnaldo Silva; Por amor, de Manuel tornar a realidade concreta mais cômoda, Carlos; e Torre de Babel, de Sílvio de Abreu. readquire, com os recursos dramatúrgicos Uma primeira aproximação já confir- da telenovela, a complexidade real e é desse ma a tendência de rompimento progressivo modo, sacudindo o telespectador a partir de do modelo clássico, inaugurada com Beto seu envolvimento na trama, que a ficção lhe Rockfeller (1968-69). Nas quatro telenove- devolve a realidade. Incorporadas à trama las destacadas, é claro o propósito de agen- central ou às tramas paralelas, inseridas na dar temas do cotidiano para debate. As história portanto, temos em Explode cora- questões propostas dizem respeito a assun- ção3 O agendamento de temas como o da di- tos até há pouco considerados tabus, razão versidade cultural (ciganos), das crianças porque ou eram ignorados ou eram tratados desaparecidas, tráfico de menores, comér- de forma preconceituosa, reforçando um cio de órgãos humanos, avanço tecnológico moralismo sustentado pela opinião e pelo (informática), corrupção, marketing políti- estereótipo e por isso mesmo ratificadores co, homossexualismo, discriminação/valo- da intolerância e da discriminaçãoz. Ou, rização do idoso, preconceito que inclui a quando lembrados, serviam mais para com- rejeição de um relacionamento amoroso au- por uma diversidade social de tipos do que têntico por diferença de idade, quando a para problematizar a sua real situação. mulher é mais velha que o homem. Essas telenovelas mostram que a vida Essas questões desenvolvidas, discuti- cotidiana vai sendo incorporada de modo das ao longo dos seis meses de vida da per- 1. Lembramos que O$m do mundo guarda peculiaridades que a distinguem das demais (por exemplo, ser fechada e ter 35 ca- pítulos, o que a aproxima da minissérie), mas atende a três critérios por nós estabelecidos: emissora, horário e petiodo de exibição (1995- 1997). Ver sobre minissérie: PALLOTTINI, Renata. Minissérie ou telenovela. Comunicação & Educação. São Paulo: CCA-ECA-USPIModerna,n. 7, set./dez. 1996. p.7 1-74. 2. Nesse sentido, a telenovela brasileira avança n2o só em relação ao gênero telenovela, com? também em relação a outros gêneros como o jomalístico, quando as próprias revistas informativas do tipo VEJA e ZSTOE pautam matérias, de capa in- clusive, em razão da telenovela que lhe oferece o gancho. 3. Ver entrevista de Glória Perez no Programa Aquela Mulher, de Maríiia Gabriela, GNT, 1996. Comunicação & Educação, São Paulo, [ 131: 89 a 102, set./dez. 1998 91 A dramaturga Glória Perez com as Mães da Cinelândia, no Rio; pesquisa para a telenovela Exploclr c.oraçn^o. sonagem (em tempo real), implicam uma in- Essa opção da autora, louvável na in- corporação do problema, pela via ficcional, tenção, não se mostrou, do ponto de vista ao cotidiano real do telespectador por igual ficcional, uma experiência bem-sucedida. A período, o que, se não opera mudanças, pelo realidade incorporada diretamente acabou menos o induz a refletir sobre elas. Não se por empobrecer a verdade por pelo menos trata pois de apenas apontar e denunciar pro- duas razões: excesso de reiteração dos ape- blemas, mas de demonstrar como eles estão los, que os banalizou, e incapacidade de re- presentes e afetam a vida das pessoas. Essa presentação por parte das mães, que não telenovela afetou e acabou por ser penetrada conseguiram expressar sua dor na situação pela realidade concreta. A campanha ficcio- artificial de gravação. Do ponto de vista da na1 desenvolvida para localizar a criança de- campanha - incorporada e ampliada pela saparecida na novela, se ampliou para incor- mídia e pela sociedade - os resultados ultra- porar as crianças desaparecidas do Rio de passaram a expectativa do público. Não só Janeiro e depois de São Paulo, onde se criou grande parte dos desaparecidos voltaram o Movimento das Mães da Praça da Sé, se- para suas mães como muito se esclareceu guindo o exemplo do já existente Movimento sobre as razões dos desaparecimentos, em das Mães da Candelária, que representaram grande parte por desestruturação da família, a si próprias em cenas nas quais eram entre- conflitos familiares, maus tratos. Também vistadas e faziam, ao vivo, seus apelos para se desfez o mito do roubo de crianças para localização dos filhos. venda de órgãos. 92 Telenovela: arte do cotidiano FICÇÃO PAUTADA PELA REALIDADE co, através da ficção, um rosto, uma identi- dade, uma história. Saem das sombras da Com relação a Ofim do mundo4, pode- marginalidade para um reconhecimento co- mos dizer que o autor elabora uma síntese mo excluídos, despossuídos buscando terras da realidade brasileira onde os problemas ociosas para ocupar com suas famílias e de- vão do descaso com a saúde à inoperância las tirar o sustento. Naturalmente, a ousadia das instituições, submetidas ao poder eco- do autor gerou polêmica e conseguiu desa- nômico dos coronéis locais, passando pela gradar a todas as partes envolvidas: latifun- droga, pelo crime, pelo preconceito, pela diários, MST, Congresso Nacional, cada impunidade, pela imprensa sensacionalista qual insatisfeito com o tratamento que lhe e corrupta, pelas negociatas, pela subser- foi dado, além de se sentirem pressionados, viência aos norte-americanos, pela luxúria e dada a repercussão desencadeada pela tele- pelo estupro, entre outros; em meio à igno- novela que pautou e ainda seguiu pautando rância e à crença em profecias de ilumina- (depois que terminou) o debate nacional. dos, enquanto os aproveitadores de plantão As pressões agiram sobre o Congresso saqueiam o bolso dos pobres ou se apro- na votação do Imposto Temtorial Rural - priam dos bens dos parceiros sociais. ITR, fazendo incidir maior taxa sobre terras improdutivas, na aprovação do Rito Sumá- A ficção, nesse caso, trata de pro- rio (que torna mais ágil o processo de desa- blemas da nossa realidade cotidiana con- propriação), que por sua vez agem no senti- creta, propiciando uma visão ampla de do de apontar para a urgência de uma verda- um real nem sempre percebido no seu deira reforma agrária.