BÁRBARA SILVA VIACAVA

ANÁLISE DO DISCURSO DAS PERSONAGENS FEMININAS NA TELENOVELA A FORÇA DO QUERER

Novo Hamburgo 2018

BÁRBARA SILVA VIACAVA

ANÁLISE DO DISCURSO DAS PERSONAGENS FEMININAS NA TELENOVELA A FORÇA DO QUERER

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em Jornalismo pela Universidade Feevale.

Orientador: Me. Rosana Vaz Silveira

Novo Hamburgo 2018

BÁRBARA SILVA VIACAVA

Trabalho de conclusão do curso Jornalismo, com título: “ANÁLISE DO DISCURSO DAS PERSONAGENS FEMININAS NA TELENOVELA A FORÇA DO QUERER”, submetido ao corpo docente da Universidade Feevale, como requisito necessário para obtenção do Grau de Bacharel em Jornalismo.

Aprovado por:

______Prof. Me. Rosana Vaz Silveira Professora Orientadora

______Prof. Me. Mônica Campana Banca examinadora

______Prof. Dra. Vanessa Valiati Banca examinadora

Dedicatória Dedico este trabalho à minha filha Sol, que me mostra todos os dias como o mundo é um bom lugar para se viver, e que a curiosidade, os questionamentos, a empatia e o amor são importantes para uma vida mais justa.

AGRADECIMENTOS

Agradeço aos meus pais, Paulo Alex Castro Viacava e Carmen Silva Viacava, por me proporcionarem a oportunidade de estudar, por acreditarem no meu potencial e por me ajudarem com tudo. Minha professora, orientadora e amiga Rosana Vaz Silveira, pelas dicas, conversas e apoio no período da faculdade.

RESUMO

O presente trabalho objetiva-se a analisar o discurso utilizado entre a personagem Ivana com outras personagens femininas na telenovela A Força do Querer, por considerar um tema importante e de relevância social. Entende-se que a telenovela é um fenômeno contemporâneo que influencia diretamente na vida de quem a vê. Por isso, essa pesquisa é considerada importante, e também porque se acredita que através dessa análise pode-se repensar e colaborar para uma mudança na forma como as mulheres são retratadas nos meios de comunicação. Foram analisados o discurso entre a relação das personagens femininas apresentadas nas cenas, através da aplicação de termos do movimento feminista contemporâneo. O método utilizado é qualitativo e através de uma pesquisa exploratória, será apresentado um estudo de caso sobre a telenovela A Força do Querer, produzida pela Rede Globo. O estudo oportunizou reconhecer discursos machistas na concepção do roteiro das falas das personagens, assim como a falta de sororidade e empatia entre as mulheres. Sendo assim, se faz necessário um repensar do discurso feminino para os roteiros de telenovela, para que a televisão assuma também o compromisso de contribuir a serviço do bem-estar social. Palavras-chave: Feminismo; telenovela; televisão; análise de discurso.

ABSTRACT

This research aims to analyze how is the relationship between the character Ivana and other women in the soap opera A Força do Querer, because it is an important and socially relevant issue. It is understood that the soap opera is a contemporary phenomenon that influences the lives of those who see. That is why it is important, and also because it is believed that by the analysis it is possible to rethink the way that women are portrayed on the media. For this, it was analyzed several aspects of the relationship of the female characters shown in the scenes, through the observation of contemporary feminist terms. The method used is qualitative and through an exploratory research, a case study will be presented on the soap opera “A Força do Querer”, produced by Rede Globo. The study made it possible to recognize chauvinism discourses in the conception of the script of the speeches of the characters, as well as the lack of sorority and empathy among the women. Thus, it is necessary to rethink the feminine discourse for soap opera scripts, so that television also assumes the commitment to contribute to the service of social welfare. Keywords: Feminism; soap opera; television; discourse analysis.

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ...... 8 2 O FEMINISMO ...... 13 2.1 A LUTA DAS MULHERES ...... 13 2.2 FEMINISMO CONTEMPORÂNEO ...... 19 3 TELEVISÃO E TELENOVELA ...... 28 3.1 A HISTÓRIA DA TELEVISÃO NO BRASIL ...... 28 3.2 PERSUASÃO TELEVISIVA ...... 31 3.3 AS TELENOVELAS ...... 35 4 ANÁLISE DO DISCURSO ...... 42 4.1 ESTUDO DE CASO ...... 47 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 54 REFERÊNCIAS ...... 58 APÊNDICE 1 – CENA DO CAPÍTULO 14 DA NOVELA “A FORÇA DO QUERER” 61 APÊNDICE 2 – CENA DO CAPÍTULO 101 e 102 DA NOVELA “A FORÇA DO QUERER” ...... 63 APÊNDICE 3 – CENA DO CAPÍTULO 126 e 127 DA NOVELA “A FORÇA DO QUERER” ...... 65

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1 INTRODUÇÃO

A presente pesquisa estuda a representação das mulheres mostradas na televisão e faz uma análise da comunicação voltada para as telenovelas. Nela, são abordadas as formas como as mulheres são representadas dentro desse produto midiático e como essa representação pode influenciar no cotidiano feminino. A importância em estudar o produto midiático, que é a telenovela, se deve ao fato de ser um dos programas mais populares da televisão brasileira. Essa afirmação é justificada pelos números apresentados pela Rede Globo, que divulgou uma pesquisa feita em 2017 pela comsCore1 (FALCHETI, 2017), empresa estadunidese que realiza análises para medir o que é relevante para a audiência das empresas. Esse estudo mostrou que naquele ano 98 milhões de pessoas assistiram à programas televisivos da emissora durante um dia, e 190 milhões em um mês, revelando que 95% das pessoas com televisão em casa no Brasil assistem a alguma programação da Globo. Além disso, 14 milhões de pessoas são atingidas diariamente através das plataformas da emissora. Além disso, pode-se perceber que o movimento feminista tem se tornado um assunto latente na sociedade, sendo tratado em livros, em sites e exaustivamente nas redes sociais. Por se tratar de uma pauta relacionada com questões de comportamento e um conteúdo extremamente ideológico, percebe-se que se configura como um assunto em potencial para a realização dessa pesquisa, pois acredita-se que a forma como a mulher é representada na telenovela caracteriza o comportamento da mulher na sociedade, desde seus relacionamentos entre si refletindo também nas relações com os homens. Então, o problema de pesquisa encontrado é: quais aspectos do discurso são utilizados e quais conceitos do feminismo são encontrados dentro das falas das personagens da telenovela A Força do Querer? Portanto, objetivo geral da pesquisa foi analisar o discurso utilizado entre a personagem Ivana com outras personagens femininas na telenovela A Força do Querer, e os objetivos específicos foram estudar o contexto histórico do feminismo e da relação entre as mulheres, estudar a história das telenovelas, analisar o discurso utilizado pela personagem Ivana e outras personagens femininas nas cenas da novela A Força do Querer e analisar como se dá a construção de fala entre as personagens.

1 FALCHETI, Fabrício. Globo lança campanha sobre alcance de 100 milhões de brasileiros todos os dias e explica conta. Uol. 23 out. 2017. Disponível em: . Acesso em: 14 abr. 2018. 9

Visto que a televisão está presente na maior parte das casas dos brasileiros, considera- se de extrema relevância o conteúdo disparado por ela, sendo também a telenovela um meio de entretenimento capaz de influenciar as pessoas e ditar padrões – muitas vezes sem que o público perceba e faça uma análise crítica do que é visto – optou-se por analisar o relacionamento entre as mulheres e como se apresenta de fato dentro desse produto midiático. Comumente se percebe que os programas televisivos tendem as priorizar cenas em que as mulheres estão em situação de disputa entre elas ou em situação de submissão ao homem. Então, pretende-se analisar de que forma a relação entre as mulheres é mostrada e como a televisão as representa. Uma das hipóteses constatadas é a de que a telenovela retratata um tipo de comportamento de mulheres de forma abusiva, misógina, sem sororidade, fazendo com que isso estimule a visão machista na sociedade. Mas também há a hipótese de que a telenovela retrate uma relação positiva entre as mulheres, estimulando um bom relacionamento entre o gênero. A análise recai diante de algumas cenas da telenovela A Força do Querer (2017), da Rede Globo, que foi escrita po Glória Perez. A escolha da novela se deu pela grande repercussão que ela obteve, principalmente por trazer um personagem transexual na trama, que sempre foi tratado da maneira mais feminina possível pelos seus pais, e em um momento da história ela assume para eles que não sente que aquele corpo realmente a represente. Muitos comentários foram feitos pelos telespectadores na novela, de forma mais evidente nas redes sociais e mídias online, nos casos mais polêmicos, mas também muitos episódios que ocorreram acabaram passando em branco pelo público e merecem ser analisados. Outro aspecto importante é que a telenovela selecionada foi escrita por uma mulher, Gloria Perez, reconhecida no Brasil por diversas telenovelas de assuntos delicados e polêmicos, como O Clone (2002) e Caminho das Índias (2010). A autora passou por um caso pessoal de feminicídio dentro de sua família, quando perdeu a filha, Daniella Perez, no ano de 1992. A garota, que tinha 22 anos, estava interpretando a personagem Yasmin na telenovela De Corpo e Alma, também de autoria de sua mãe. Nela, sua personagem se envolvia momentaneamente com Bira, interpretado pelo ator Guilherme Pádua, que cometeu o crime e matou Daniella Perez. Por se tratar de uma autora mulher e por ela já ter passado por um caso de feminicídio próximo, considera-se ainda mais importante essa pesquisa, visto que, se há reprodução do machismo dentro das cenas, ela está sendo feita por uma mulher que já sofreu de perto suas consequências.

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Para analisar esses comportamentos, será aplicada a análise de discurso de Charaudeau (2004) identificando as falas e os gestos das personagens a partir das visadas discursivas, ou seja, o que está implícito ou explícito na relação entre as mulheres nas cenas selecionadas. Após a interpretação desses discursos, os mesmos serão comparados com os conceitos feministas – empoderamento, sororidade, machismo, patriarcado, mansplaining, misoginia, manterrupting, bropriating, gaslighting e slut-shaming – que são explicados no decorrer da pesquisa. Para observar as influências dessas cenas, serão apresentados alguns textos de blogs independentes que desenvolvem a pauta sobre o relacionamento entre as mulheres, como blog da Universidade Livre Feminista (2012) e o “Eu, Tu, Elas” (2017), além de sites com bibliografias e conteúdos sobre o tema, como a Biblioteca Feminista (2018) e a Editora Viva La Vulva (2018). Contudo, o embasamento teórico é determinado pelos conceitos de feminismo de Simone de Beauvoir (1970) e Betty Friedan (1971), contemplando a história do feminismo e do comportamento das relações entre homens e mulheres, e também de Marcia Tiburi (2018) e Rebeca Solnit (2017), que abordam o feminismo contemporâneo. Para atender a teoria televisiva e do produto midiático telenovela, serão apresentados principalmente os conceitos dos autores Maria Luiza Baptista (1996), Samira Campedelli (1987), Sérgio Mattos (2002) e Anna Maria Balogh (2002). A presente pesquisa justifica-se por se tratar de um tema relevante socialmente, principalmente para o gênero feminino. Até hoje as mulheres continuam sofrendo com a violência física e psicológica, vinda tanto dos homens quanto das próprias mulheres. Sabe-se que todo tipo de violência pode levar a sérias consequências na vida, como a depressão e a ansiedade, e por isso busca-se erradicá-la. Como pesquisadora, acredita-se poder colaborar para um estudo desse cenário, dentro da comunicação, área de estudo deste trabalho. Ao encontro disso, em 2017 um estudo da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad), divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE (2017)2, mostrou que mais de 90% dos domicílios de todo o país têm televisão. Percebe-se então que esse é o produto midiático que mais atinge os brasileiros, indiferentemente do gênero, raça ou classe social dos indivíduos.

2 IBGE. Características gerais dos domicílios e dos moradores 2017. 2017. Disponível em: . Acesso em: 14 abr. 2018. 11

Através dela as pessoas buscam informações e conteúdo, formando suas personalidades e suas opiniões sobre diferentes assuntos. As telenovelas também atingem grande parte da população brasileira e muitas pessoas utilizam esse momento para relaxar e descansar. Porém, o inconsciente delas também se forma através dos conceitos e preconceitos expostos na televisão, e acaba-se por reproduzir na vida aquilo que se vê nas telenovelas. Da mesma forma, a novela também é uma encenação do cotidiano e reproduz aquilo que a sociedade coloca em pauta, algumas vezes assuntos polêmicos, outras vezes temas já conhecidos há muito tempo. Diante das contribuições teóricas, a pesquisa pode colaborar com a investigação de como a relação entre as mulheres se dá dentro das telenovelas brasileiras, expondo se os casos estudados revelam atitudes que promovam o machismo. Caso a percepção seja de que as relações entre as mulheres apresentada nas telenovelas influenciam de forma a estimular o machismo no cotidiano, imagina-se que, enquanto profissional do jornalismo, há a possibilidade de modificar-se essa realidade, tanto no quesito particular da telenovela, quanto se expandindo para outros produtos midiáticos ou meios de comunicação. Estuda-se, confronta-se, enfrenta-se e muda-se a visão da sociedade sobre a forma como as mulheres se relacionam uma com a outra. A pesquisa foi desenvolvida em três etapas: feminismo, televisão e análise de discurso. No capítulo sobre feminismo estudou-se a primeira, segunda e terceira onda do feminismo, bem como o feminismo contemporâneo, além de trazer dados sobre a violência contra as mulheres. No capítulo sobre a televisão estudou-se a história da televisão e da telenovela, a persuasão que a novela tem sobre a vida dos telespectadores e também a Rede Globo, emissora televisiva escolhida para a análise ser realizada. E, por último, no capítulo sobre análise do discurso estudou-se a complexidade da análise, o contexto no qual um discurso está inserido e outros aspectos que fazem parte da análise do discurso, como o lugar de palavra, as máscaras sociais e o tempo e lugar inserido. Para a realização desta pesquisa alguns processos investigativos foram feitos no corpus, a telenovela “A Força do Querer” (2017). A pesquisa foi exploratória, trazendo informações precisas, com uma coleta de dados bibliográfica e através de estudos de caso. Além disso, também usou-se a pesquisa descritiva, fazendo uma análise e descrição do corpus, buscando descrever as características das telenovelas e seus personagens, entendendo- a como um fenômeno contemporâneo que influencia diretamente na vida de quem a vê. 12

Como explica Yin (2001), "Um estudo de caso é uma investigação empírica que investiga um fenômeno contemporâneo dentro de seu contexto da vida real, especialmente quando os limites entre o fenômeno e o contexto não estão claramente definidos". Para que o projeto não fique tendencioso, podendo-se escolher alguma atriz da novela que seja coadjuvante e tenha vivenciado a rivalidade em apenas uma ocasião específica, será analisada uma personagem marcante da telenovela, Ivana, que no decorrer da trama mostrou- se como um homem transexual. Além disso, analisaremos suas relações com outras mulheres e relações com os homens. A forma como as conversas se dão no decorrer dos capítulos, a posição corporal e as reações dos personagens serão observadas, descritas e interpretadas. Então, foram selecionadas três cenas com grande repercussão na mídia, consideradas polêmicas e importantes para o decorrer da trama, na primeira Ivana fala para sua prima Simone, pela primeira vez, sobre o desconforto de estar em um corpo de mulher, na segunda cena ela explica para Simone sobre o que é uma pessoa transgênero e assume que é uma, e na terceira cena ela conta para os seus pais e irmão que ela se sente como um homem, não como uma mulher. Dentro dessas três cenas, o discurso utilizado foi analisado, através da análise das máscaras sociais assumidas pelos personagens, do tempo e lugar que a cena estava inserida, na inteção de fala, no lugar de palavra, e também encaixando conceitos do feminismo, como empoderamento, sororidade, mansplaining, misoginia, manterrupting. Os resultados serão expostos de maneira qualitativa, entendendo o comportamento dos personagens e coletando dados através da análise de discurso, gestos, falas, reações corporais. Com esses resultados será possível identificar a maneira como as telenovelas costumam retratar a relação entre as mulheres.

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2 O FEMINISMO

Como a pesquisa realizada estrutura-se na figura da mulher e na forma como ela é retratada nas telenovelas, percebe-se como necessário trazer um pouco da história do movimento feminista, que passou por três fases, chamadas também de “ondas feministas”. Entendendo um pouco desse contexto histórico podem-se perceber algumas conquistas que as mulheres já obtiveram, e também alguns aspectos pelos quais elas ainda lutam. Há mais de duzentos anos o movimento feminista existe e é reconhecido pela sociedade, porém, no decorrer dos anos, esse movimento passou por diversas mudanças e diferentes fases conforme o contexto histórico no qual estava inserido naquele momento. Para entender um pouco mais sobre o tema, passamos pelas diferentes ondas do feminismo, pelas conquistas que ele trouxe para a as mulheres e pelo feminismo contemporâneo e suas lutas. As principais autoras trazidas neste capítulo são Simone de Beauvoir (1970), Betty Friedan (1971) e Márcia Tiburi (2018).

2.1 A LUTA DAS MULHERES

O termo feminismo tornou-se polêmico nos últimos anos, interpretado de uma forma diferente por cada pessoa. Segundo o dicionário online Priberam (2018, s/p), feminismo (do francês, féminisme) é o “movimento ideológico que preconiza a ampliação legal dos direitos civis e políticos da mulher ou a igualdade dos direitos dela aos do homem”. Toda mulher que busca entender o feminismo, principalmente em relação à cultura ocidental, pode perceber que está diante de uma luta por espaço social desde os tempos mais remotos. Aprofundar-se em temas como a igualdade salarial entre os gêneros, a união entre as mulheres, a busca pela erradicação na opressão feminina dada pela sociedade percebe-se com um fato urgente, visto que muitas mulheres não se reconhecem inseridas no contexto no qual nos encontramos hoje.

O feminismo não é apenas um conceito, no sentido de uma abstração teórica, muito menos um sistema de pensamento, nem somente o nome próprio que se dá a uma prática. O feminismo é mais do que um conceito. É um complexo operador ético- político, analítico, crítico e desconstrutivas e serve como lente de aumento que põe foco sobre as relações humanas e sobre os aspectos ocultados nessas relações. Nesse sentido, o feminismo não é um conteúdo específico organizado em sistema, mas tão somente um meio. Nem é apenas um viés de análise, mas a potência de um corte crítico em relação ao continuo histórico do patriarcado. (TIBURI, 2018, p. 71).

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Segundo o blog da Universidade Livre Feminista (2012), a luta das mulheres e o feminismo iniciaram-se há mais de 200 anos, tendo seu marco histórico na Revolução Francesa. Em 29 de outubro de 1771 a “Declaração dos Direitos da Mulher” foi publicada, sendo o primeiro documento da Revolução Francesa que menciona a igualdade jurídica entre mulheres e homens, porém, ela foi rejeitada e esquecida até 1986. Em 26 de novembro de 1792 “A Reivindicação dos Direitos das Mulheres”, da filósofa Mary Wollstonecraft, também contesta a diferença entre os homens e mulheres, que só existia devido à falta de educação para o gênero feminino. No Brasil, o livro “Direito das Mulheres e Injustiça dos Homens”, publicado em 5 de janeiro de 1832 e escrito por Nísia Floresta, é considerado o momento no qual o feminismo brasileiro nasceu. Considera-se importante a abordagem de alguns marcos históricos feministas tendo em vista que não se trata de modismos ou correntes, mas um movimento social de consciência diante dos direitos humanos. A sinalização dos indícios que apontam as tentativas dessa conscientização se denominou de “ondas feministas”, divididas em três momentos. A primeira onda do feminismo ocorreu durante o século XIX e grande parte do século XX e nela as mulheres buscavam a igualdade com os direitos dos homens, principalmente em relação aos votos. Esse era um movimento defendido pelas mulheres brancas, intelectualizadas e de classe média. Essas mulheres eram esposas, viúvas e solteiras que buscavam o entendimento de sua condição enquanto ser humano em uma sociedade que não permitia sua inserção enquanto cidadã. Os direitos concedidos às mulheres era inferior em relação aos homens, pois não se permitia o estudo e se depositava um status de dona de casa. As mais pobres, que trabalhavam para ter o que comer, ganhavam menos que os homens em serviços com as mesmas atribuições. Outra situação identificada na primeira onda se referia ao casamento, porque elas compreendiam que as relações eram assimétricas, que havia uma espécie de prostituição legalizada e até uma semelhança com a escravidão, pois as mulheres estariam sempre a disposição dos homens, tanto para fazer as coisas na casa quanto para servi-los sexualmente. Então, essas foram as três reivindicações da primeira onda: direitos iguais perante a lei, acesso a educação e a quebra de tabu no casamento. (ESTEVES, 2018). Já a segunda onda começa na década de 1960 e dura até o fim da década de 1980. Nesse momento muitos dos direitos legais reivindicados pelas mulheres da primeira onda já foram conquistados, porém percebeu-se que na prática essa igualdade não ocorria. Portanto, nessa segunda onda as mulheres buscam entender o motivo de isso não ocorrer na prática e de elas continuarem submissas ou tratadas como inferiores aos homens. Essa reflexão parte da dúvida sobre o que é a feminilidade, o que é ser mulher. As pensadoras da época perceberam 15 que a figura da mulher esperada e projetada pela sociedade não trazia a felicidade que as propagandas buscavam mostrar, muitas vezes adoecendo as mulheres, porque as reduzia a uma vida doméstica. Friedan (1971) disserta sobre a culpa que as mulheres traziam por não sentir a misteriosa realização ao encerar o chão da cozinha, envergonhando-se e não tendo forças para confessar essa insatisfação e, portanto, não sabendo que outras mulheres sentiam a mesma coisa. Percebe-se então que essa ideia construída do gênero feminino buscava tirar as mulheres da vida pública, mantendo-as apenas na vida privada. Durante essa segunda onda (1960) ocorre nos EUA um movimento de contra-cultura, hippie e pacifista. Muitas mulheres que participam desse movimento percebem que as suas questões não eram relevadas, mas consideradas secundárias. Então a ativista Carol Hanisch forma um movimento só de mulheres, o “Feminismo Radical”, porque entende que os homens todos se beneficiam do sistema patriarcal e portanto não conseguem ter empatia com as mulheres. A partir dessas perspectivas as mulheres passam a se reunir para falar da vida, desabafar e conversar sobre as opressões vividas no dia a dia. O slogan “O pessoal é político” é criado por Hanisch e adotado durante essa segunda onda, estimulando as mulheres a pensarem no que era necessário compreender aspectos da vida pessoal como políticos, das quais refletem estruturas de poder baseadas no patriarcado, e que as violências sofridas dentro de casa não eram apenas um problema privado, mesmo acontecendo no espaço doméstico e em suas relações conjugais. (ESTEVES, 2018). Simone de Beauvoir (1970) foi uma das teóricas mais marcantes para o feminismo, possivelmente porque foi incentivada pelo seu marido, o já reconhecido filósofo Jean-Paul Sartre, conquistou um espaço importante no campo intelectual, contribuindo para a continuidade sobre os estudos feministas. No seu livro O Segundo Sexo ela aborda muito a forma como a mulher é tratada como o “Outro” sexo, percebendo a supremacia masculina e a submissão feminina, inclusive nos estudos que envolvam a análise de ambos.

Uma vida é uma relação com o mundo; é escolhendo-se através do mundo que o indivíduo se define; é para o mundo que nos devemos voltar a fim de responder às questões que nos preocupam. Em particular, a psicanálise malogra em explicar por que a mulher é o Outro, pois o próprio Freud admite que o prestígio do pênis explica-se pela soberania do pai e confessa que ignora a origem da supremacia do macho. (BEAUVOIR, 1970, p. 69).

A autora Betty Friedan (1971) escreveu sobre a mística feminina e a forma como a sociedade cobrava as mulheres, esperando que elas estivessem felizes e realizadas fazendo as tarefas de casa, cuidando dos filhos e servindo os maridos. 16

Os decoradores planejavam cozinhas com murais de mosaico e quadros originais, pois a cozinha transformara-se no centro da vida feminina. Costurar em casa tornou- se uma indústria milionária. A maioria das mulheres só saía para fazer compras, levar as crianças de um local para o outro, ou comparecer a compromissos sociais com o marido. (FRIEDAN, 1971, p. 19).

Como explica a autora, a vida da mulher passou a resumir-se em sua casa, na cozinha e nos alimentos para cozinhar, nos produtos de limpeza que seriam melhores para limpar a sala, em manter a cama arrumada e a casa organizada. As mulheres só saíam de casa para realizar tarefas referentes a ela ou aos filhos: “Uma jovem recusou uma vaga de ciência no John Hopkins para trabalhar no escritório de uma imobiliária. Sua ambição era a de toda jovem americana - casar, ter quatro filhos e viver numa bonita casa, num bairro agradável.” (FRIEDAN, 1971, p. 19). Porém, o desejo de uma vida organizada pelo marido foi uma imposição social, certamente definida pelos homens detentores de poder econômico e político. Tiburi (2018) comenta que essa concessão imposta à mulher foi idealizada para tornar as mulheres mais frágeis e dependentes. Sendo assim, as meninas da época eram persuadidas a sentirem-se realizadas com tarefas de casa – consideradas como “coisas de mulher” – e não acreditavam que a ciência era o lugar adequado para elas. Os seus desejos resumiam-se a situações familiares, como o casamento, os filhos, uma família saudável e feliz. As responsabilidades emocionais dessa família eram frequentemente depositadas nas mulheres, e se algo ia mal, elas tornavam-se culpadas e incapazes, não só perante a sociedade, como também perante seu próprio senso crítico. Já as responsabilidades financeiras eram depositadas nos homens, que passavam grande parte do tempo fora de casa trabalhando.

A dona de casa americana, libertada pela ciência dos perigos do parto, das doenças de suas avós e das tarefas domésticas, era sadia, bonita, educada e dedicava-se exclusivamente ao marido, aos filhos e ao lar, encontrando assim sua verdadeira realização feminina. Dona de casa e mãe, era respeitada como companheira no mesmo plano que o marido. Tinha liberdade de escolher automóveis, roupas, utensílios, supermercados e possuía tudo o que a mulher jamais sonhou. Nos quinze anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, esta mística de realização feminina tornou-se o centro querido e intocável da cultura americana contemporânea. (Friedan, 1971, p. 19).

Por fim, a terceira onda do feminismo começou a se desenvolver no meio da década de 1980, porém é reconhecida a partir de 1990. Durante esse período as feministas passaram a enxergar o movimento com um olhar mais crítico, o que permitiu o surgimento de algumas 17 ideias novas, que não haviam sido apresentadas nos outros movimentos. Portanto, essa onda complementa alguns aspectos da segunda, além de responder a outros que considera como falhos. Nele, percebe-se que cada mulher tem demandas e necessidades específicas, e por isso buscou-se erradicar os padrões considerados essenciais da feminilidade e preocupa-se em entender o que é bom para cada mulher. Nessa onda também acontecem outros recortes de lutas sociais, como o movimento feminista negro, no qual as feministas negras buscam espaço nesse cenário para lutar por considerações do grupo após perceberem que a luta feminista vinha muito do padrão branco e classe média. Os recortes que mais se destacam são os de classe, raça e sexualidade, aparecendo também o feminismo LGBT, para mulheres lésbicas, mulheres transexuais e homens transexuais. Todas essas ramificações do feminismo buscam também se destacar e trazer as diferentes condições como mulher, buscando espaço e direitos igualitários. Esse processo também ficou conhecido como “feminismo da diferença”, que argumentava a diferença entre os sexos de forma significativa.

Com o declínio da Mística Feminina, as mulheres invadiram o mercado de trabalho. O percentual de mulheres com empregos nos Estados Unidos subiu de 31,8%, após a Segunda Guerra Mundial, para 53,4%, em 1984. Entre aquelas de idade entre vinte e cinco e cinqüenta e quatro anos, dois terços trabalhavam fora. Na Suécia, 77% das mulheres têm empregos, como o fazem 55% das francesas. Em 1986, 63% das mulheres britânicas tinham trabalho remunerado. (WOLF, 1992, p. 26).

Portanto, percebe-se que o direito ao voto era apenas o início de uma grande luta, e, quando as mulheres conquistaram esse direito, a maioria branca, privilegiada por participar de cargos de poder e intelectualizada, passou a lutar por outras vertentes que não eram igualitárias até então. No Brasil, as mulheres conquistaram direito de acesso ao Ensino Superior (19 de abril de 1879), a Nova Zelândia se torna o primeiro país a aprovar o voto feminino (7 de março de 1893), no Brasil, em 1934 as mulheres passam a ter seu direito de voto. As mulheres conquistaram mais espaço na política, uma maior proximidade ao salário equiparado com o dos homens, passou a ter o direito de praticar esportes que não eram “compatíveis” com as condições femininas (como, por exemplo, luta, futebol de salão, beisebol e halterofilismo). No entanto, vemos que ainda existe a desigualdade de gênero e muitas mulheres lutam para que ela termine. Simone de Beauvoir (1970) mostra que não existe uma explicação plausível para a essa desigualdade, que muitas vezes é dada por uma desigualdade numérica, onde a maioria impõe sua lei à minoria. No caso da expressão 18

“minorias”, está relacionado àqueles que não detêm dos mesmos privilégios que a maioria, este último representado pelos homens branco de classe média e alta. Adichie (2015) comenta que homens e mulheres são diferentes porque têm hormônios em quantidades diferentes, bem como orgãos sexuais e atributos biológicos, tanto que as mulheres podem engravidar e os homens não. Ela ainda diz que existem mais mulheres do que homens no mundo, porém, os cargos de poder e prestígio são ocupados de forma predominante pelos homens. A busca pela cidadania inicia a frente feminista para o direito ao voto, porém isso ocorreu juntamente com o movimento pós-escravagista, incutido pelos homens negros. No entanto, ao tentar fazer uma aliança, a bancada branca estrategicamente determinou que não poderia liberar os direitos para as duas classes, estimulando uma luta de defesa do direito de voto das mulheres brancas contra o direito de voto dos homens negros.

A necessidade de derrotar a continuidade da opressão econômica da era pós-guerra não foi a única razão para que o povo negro pedisse de forma urgente o voto. A desavergonhada violência – perpetuada pela multidões encorajadas por aqueles que pensavam ganhar a partir do trabalho dos escravos – iria continuar inquestionavelmente a menos que o povo negro alcançasse poder político. (DAVIS, 1982, p. 60).

Nesses dois séculos desde o início do movimento feminista muitos aspectos mudaram. Atualmente a luta pelos direitos iguais na sociedade realizada pelas mulheres busca reconhecimento por sua intelectualidade, por suas habilidades e por sua inserção em espaços percebidos como práticas masculinas, por exemplo: futebol, literatura, engenharia etc. Nas décadas de 50 e 60, como explica Betty Friedan (1971), as mulheres que não se sentiam realizadas por estar em casa limpando, cozinhando e cuidando dos filhos, não eram compreendidas. Há também um indício de que esse momento no qual a sociedade vive hoje poderá ser considerado a quarta onda do movimento feminista, sobre o qual falaremos no item 2.3. Apesar de o movimento feminista ter mais de 200 anos, ainda hoje expressões e atitudes clássicas de comparação entre os gêneros são referidas no cotidiano, como, por exemplo: um tipo específico de vestimenta pode insinuar sensualidade aos olhos masculinos (“mulher fácil”), ou uma atitude amorosa de uma mulher pode ser entendida como fragilidade (“sexo frágil”). Assim observa-se que a partir dos estudos de arquétipos, mitos e estereótipos, diversos aspectos sociais podem estar enraizados ou implícitos tanto nos homens quanto nas mulheres. Isso acarreta na superioridade masculina frente às tomadas de decisões e espaços de 19 fala, podendo diminuir a interação feminina nas mais diversas situações sociais. E esses comportamentos, por serem praticados livremente no cotidiano, comprometem o entendimento de que essas atitudes são conservadoras e misóginas. Além disso, esses estereótipos se tornam pauta na publicidade, no cinema e nas telenovelas. Como cita Maciel (2017), é praticamente impossível conhecer algum ouvido feminino que tenha escapado de frases como “amizade de mulher é falsa”, “você está linda, melhor que suas amigas”, ou “mulher se veste para competir com outras mulheres”, comentários esses que são repetidos exaustivamente no cinema, na publicidade, nas novelas e nas rodas de conversa, incentivando gerações de mulheres a se lançarem em uma rede de discórdia. Ainda segundo Maciel (2017), esse ato só serve para incentivar a busca por um padrão inatingível, que está sempre maximizando as exigências e que pode levar mulheres a problemas psicológicos e ao sentimento de incapacidade. Por ser um movimento social, o feminismo é muito mais abordado e falado em blogs e sites do que na mídia convencional, como televisão, rádio ou jornal impresso. Portanto, utilizam-se muitas fontes e informações da imprensa livre neste projeto.

2.2 FEMINISMO CONTEMPORÂNEO

Tendo passado por essas três ondas feministas, chegamos ao século XXI. As mulheres contemporâneas ainda consideram que há aspectos para se discutir e situações que as mantém inferiores aos homens, e por isso veem como válida a ideia de manter o feminismo como ativo.

É mais do que curioso analisar onde, como e quando as mulheres trabalham. Desde que nasce, não é um exagero dizer, uma menina está condenada a um tipo de trabalho que se parece muito com a servidão que, em tudo, é diferente do trabalho remunerado ou do trabalho que se pode escolher dependendo da classe social à qual se pertence. Em muitos contextos, lugares, países e culturas, meninas e jovens, adultas e idosas trabalharão para seu pai, os irmãos, para o marido, para os filhos. Serão apenas por serem mulheres, condenadas ao trabalho braçal dentro de casa, a serviço de outros que não podem ou não querem trabalhar como elas. (TIBURI, 2018, p. 14).

E por ser tratada de forma diferente do homem dentro de casa, ao trabalhar fora de casa o trabalho dela também passa a ser mais extenso que o dos homens, pois, de uma maneira geral, eles não fazem o serviço de casa, diferente das mulheres, que acumulam o trabalho remunerado com o trabalho do lar. E, por não serem remuneradas no trabalho de 20 casa, tornam-se escravas do lar, ficando sem tempo para desenvolver outros aspectos da própria vida, como comenta Tiburi (2018), sem comentar a escravidão emocional e psicológica que essa situação traz para a vida dessas mulheres. Percebe-se historicamente que a violência doméstica sempre se fez muito presente nos lares, com o homem utilizando a sua força física para ameaçar as mulheres e fazê-las sentir medo. Ainda hoje a violência doméstica se mostra presente em muitos lares brasileiros, porém hoje o assunto é mais retratado, tanto na mídia quanto na sociedade.

Não havia no Brasil até 2004 um projeto de lei em tramitação no Poder Legislativo que tratasse da violência doméstica e familiar contra as mulheres de maneira ampla e integral, a exemplo do Projeto de Lei no 4.599/2004, que deu origem à Lei no 11.340/2006, conhecida por Lei Maria da Penha. Esta lei reforçou uma abordagem feminista da criminalização e propôs, em simultâneo, um tratamento multidisciplinar, estabelecendo medidas protetivas e preventivas - além das criminais - para o enfrentamento da violência doméstica. (MELLO, 2016, p. 99).

A partir da Lei Maria da Penha, muitos outros aspectos da violência passaram a ser discutidos e colocados em pauta. Mello (2016) comenta que o debate estimulado a partir da lei trouxe emergência para o tema que antes era pouco tratado pelo Poder Judiciário, abrindo a possibilidade para que a sociedade brasileira e o Poder Público discutissem os mecanismos mais eficazes de combater a violência contra a mulher. Além disso, eles encontraram na expressão “violência doméstica e familiar contra a mulher” uma forma de desmarcar o espaço onde a violência ocorre, deixando explícitos o sujeito ativo e o sujeito passivo da relação violenta. Também tratando de aspectos jurídicos, os termos feminicídio e femicídio passaram a ser mais conhecidos e discutidos, conforme Mello (2016, pág 123), principalmente depois de 2010, quando a Organização das Nações Unidas divulgou um relatório que mostrava que cerca de 70% das mulheres brasileiras sofria algum tipo de violência doméstica vinda de seus parceiros, sejam passados ou atuais. Além disso, a autora também comenta as estatísticas da UNDOC, que mostra que cerca de 84 mil mulheres foram vítimas de homicídio no mundo no ano de 2010.

É um fato que a violência contra as mulheres é uma constante cultural e continua a crescer em todas as sociedades. A violência doméstica sempre foi assunto levantado pelas mulheres que fazer sua politização defendendo-se da violência que vem dos homens, dentro e fora de casa. (TIBURI, 2018, p. 106).

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Miller (1999) traz um relato de uma mulher que sofreu com violência psicológica, que conta que viveu com um homem que a isolava, destruía sua autoestima e a mantinha dependente dele. Dessa forma, ele a controlava através da manipulação. A moça ainda conta que sofria e chorava, como muitas outras mulheres, porém acreditava que essa era a reação natural de todos os maridos.

Há uma diferença entre um casamento ruim e um casamento abusivo. Embora todo casamento no qual ocorra o abuso seja obviamente ruim, nem todo casamento ruim é abusivo. Um casamento pode ser ruim por causa da incompatibilidade, da traição, da imaturidade ou de quaisquer fatores que o tribunal considere motivo para conceder o divórcio. Um casamento abusivo é aquele no qual um dos parceiros utiliza o seu poder - seja por meio da força ou da manipulação mais sutil - para controlar o outro. (MILLER, 1999, p. 26).

No Brasil, segundo a pesquisa “Mapa da violência 2015: homicídio de mulheres no Brasil”3, o país tem taxa de 4,8 homicídios para cada cem mil mulheres, sendo a quinta maior taxa do mundo, conforme dados da Organização Mundial da Saúde.

A questão da violência doméstica é até hoje uma das principais bandeiras dos movimentos feministas. A violência contra as mulheres é, principalmente, violência doméstica, mas não só. A desigualdade do trabalho doméstico, o papel da maternidade e toda uma lógica do próprio casamento como submissão da mulher ao homem têm muito de um tipo de violência, que é a simbólica. (TIBURI, 2018, p. 106).

Contudo, apesar da violência física seguir como uma das principais lutas das feministas, o abuso não-físico também passou a ter muita visibilidade e vem sendo cada vez mais abordado, pois a área da psicologia percebeu que o abuso psicológico pode influenciar tanto quanto o físico na vida das pessoas. Miller (1999) explica que muitas vezes há a ausência de violência física, porém a violência não física se apresenta de formas muito sutis, inclusive sendo quase impossível detectá-la. Alguns exemplos são o abuso emocional, psicológico, social e econômico. Porém as consequências são muito graves, tornando as mulheres depressivas, com crise de ansiedade ou transtornos psicológicos.

Homens psicologicamente abusivos mantêm a mulher prisioneira - não com as barras das penitenciárias ou as paredes da cela de reféns, nem mesmo com o transe

3 WAISELFISZ, Julio. Mapa da violência 2015 – homicídio de mulheres no Brasil. Disponível em: . Acesso em: 12 set. 2018.

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hipnótico dos membros das seitas. Acorrentam-na com aquilo que muitos chamam de impotência aprendida - um estado mental no qual a mulher é incapaz de resistir à pressão manipuladora do homem - e outros consideram apenas puro medo. (MILLER, 1999, p. 48).

A violência psicológica vem sendo tratada com mais importância, fazendo com que todos se conscientizem a respeito da necessidade de abordar tal tema, e, além disso, de erradicar esse problema na sociedade, mesmo que talvez esse seja uma meta utópica.

Mesmo os profissionais, que se opõe à teoria da impotência aprendida, admitem que a mulher vítima de abusos psicológicos geralmente entra numa depressão clínica que provoca sintomas semelhantes: perda de iniciativa, resignação, incapacidade para lidar com as tarefas mais simples do dia-a-dia. (MILLER, 1995, p. 48) .

Evans (2015, p. 53) cita algumas situações pela qual a parceira de um agressor verbal pode passar: dúvidas sobre a espontaneidade, perda de entusiasmo, estado permanente de atenção, preocupação de ter algo errado, autoanálise constante, perda de autoconfiança, entre outras.

Como a parceira não entende os motivos do companheiro, ela “vive na esperança”, se apega àqueles momentos em que tudo parece normal e acredita que na hora certa não haverá tantos transtornos. E ela pode ficar ainda mais esperançosa se o companheiro disser que a ama ou fizer algum gesto que dê a entender isso. Muitas parceiras dizem que seus companheiros eventualmente compravam presentes para elas, compartilhavam certas preocupações pessoais e faziam elogios à sua aparência ou a uma refeição bem preparada. Nessas ocasiões, sua expectativa crescia; elas esqueciam o passado e renovavam suas esperanças no futuro. A esperança as mantinha no relacionamento abusivo. E o relacionamento abusivo aumentava a confusão delas. (EVANS, 2015, p. 54).

Há alguns indícios de que o momento do feminismo inserido na sociedade de hoje possa vir a ser considerado como a quarta onda do movimento feminista, complementando as três ondas já citadas anteriormente. Atualmente há uma série de outros direitos que as mulheres buscam, como o respeito ao corpo feminino, o direito da liberdade sexual, o reconhecimento no trabalho e das tarefas diárias e a erradicação das classificações do que é masculino ou feminino.

Essa separação entre público e privado coloca homens e mulheres (e escravos e animais) em mundos separados. Essa separação rege o pensamento e as práticas ético-políticas da história humana. Público e privado correspondem a mundos habitados por homens e mulheres (e escravos e animais). Essa estrutura da vida social e política grega sedimentou-se e continua como uma base inconsciente em nossa época. (TIBURI, 2018, p. 105). 23

Existem hoje alguns termos que são clássicos da luta feminista contemporânea, não encontrados em teóricos do século passado, como Simone de Beauvoir e Betty Friedan. A palavra empoderamento é o ato ou efeito de dar ou adquirir poder ou mais poder, usada pelas feministas para trazer força e importância para outras mulheres. Algumas frases na qual essa expressão se encaixa são: “As mulheres precisam se empoderar para se tornarem iguais aos homens”, “Essa mulher é empoderada, pois batalha por aquilo que quer”. Uma mulher empoderada, para quem faz parte do movimento feminista, é uma mulher que sente-se forte e que não depende de um homem para realizar alguma atividade. Tiburi (2018) traz a seguinte equação política: que de um lado há as mulheres e a violência doméstica, e de outro lado há os homens e o poder público. Entretanto, ela deixa claro que a violência sofrida pelas mulheres é exercida pelos homens, mas não somente por eles, incluindo uma sociedade inteira que produz esses homens como seres privilegiados, que comparando com outros seres que não são homens, não têm privilégios. Nas literaturas mais recentes do feminismo também se vê muito a palavra sororidade, que, conforme o dicionário Priberam (2018, s/n), é a relação de união entre as mulheres, de afeição ou de amizade, semelhante à que idealmente haveria entre irmãs, e também a união de mulheres com o mesmo fim. Usada geralmente para referir-se a forma como uma mulher deve sentir-se em relação à outra, não como rivais, mas como irmãs. Mais simples e mais comum que os outros, machismo também é uma palavra recente, e, ainda conforme o dicionário Priberam (2018, s/n), é a ideologia segundo a qual o homem domina socialmente a mulher. Mesmo que a palavra não fosse usada nas três ondas do feminismo citadas anteriormente, pelo seu significado pode-se dizer que é basicamente o que fundou a luta feminista.

O machismo é o isso do patriarcado que o feminismo vem perturbar. O machismo é um modo de ser que privilegia os “machos” enquanto subestima todos os demais. Ele é totalitário e insidioso, está na macroestrutura e na microestrutura cotidiana. Está na objetividade e na subjetividade, isto é, mesmo que seja uma ordem externa ao nosso desejo, foi e é introjetado por muitas pessoas, inclusive mulheres. E, porque o machismo faz parte de um modo orgânico de pensar, de sentir e de agir, é tão difícil modificá-lo. (TIBURI, 2018, p. 63).

Patriarcado, segundo Solnit (2017), pode significar tanto a dominação masculina como as sociedades obcecadas com a sucessão patrilinear, que exige um controle rigoroso sobre a sexualidade feminina. E, ainda segundo a autora, o patriarcado criou, em diversas 24

épocas e lugares, versões de mulheres que eram dependentes, improdutivas, restritas ao lar e com pouco acesso ao estudo. Outra autora que escreve sobre o tema, Tiburi (2018), trata o patriarcado como uma forma de poder, que traz ideias prontas inquestionáveis, naturalizando cartazes e deixando de questionar dogmas e leis, causando muita violência física, sofrimento e culpa. Tudo isso administrado por quem tem o interesse de manter seus privilégios, seja de gênero, sexual, de raça, classe, idade. Ela explica que o feminismo vem para furar essa bolha.

Patriarcado é um nome estranho para muitas pessoas que consideram natural a ordem social existente. Ele representa a estrutura que organiza a sociedade, favorecendo uns e obrigando outros a se submeterem ao grande favorecido que ele é, sob pena de violência e morte. É claro que qualquer sistema de privilégios é feito para que uns usufruam deles enquanto outros devem trabalhar para que o sistema seja mantido. (TIBURI, 2018, p. 59).

Alguns termos usados na contemporaneidade são misturas de palavras em inglês, o que, muitas vezes, dificulta na compreensão das mesmas. Mansplaining foi um termo cunhado por uma das autoras estudadas para esta pesquisa, Rebecca Solnit, no livro “Os homens explicam tudo para mim”, e quer dizer juntamente isso, quando o homem quer explicar tudo para uma mulher, como se ela não tivesse a capacidade de entender sozinha. Ela é a junção das palavras man (do inglês, homem) e explaining (do inglês, explicando). Algumas mulheres já buscam transformar essa palavra na junção em português, que seria homem + explicação, e ficaria omiexplicando. A ideia de trazer para o português é em tornar o feminismo mais acessível, que não inclua apenas as mulheres que sabem inglês. A aversão às mulheres é chamada de misoginia. Solnit (2017) comenta sobre os homens misóginos, dizendo que alguns misóginos reclamam que as mulheres são fardos imóveis, mas em grande parte foi a misoginia que levou as mulheres a serem assim, restritas ao lar e com acesso limitado ao ensino, emprego e profissionalização.

A misoginia é o discurso de ódio especializado em construir uma imagem visual e verbal das mulheres como seres pertencentes ao campo do negativo. A violência física também é linguagem. Atos de violência, seja verbal ou física, seja espancamento ou estupro, são de uma lógica diabólica que transforma em negativo tudo aquilo que visa destruir. (TIBURI, 2018, p. 39).

Tiburi (2018, p. 39) ainda comenta que o que ela chama de negativo diz respeito ao que está fora do poder, pois a misoginia associa as mulheres à loucura, à histeria, à natureza, e 25 usa o discurso de que a mulher tem uma predisposição a inconfiabilidade, mas na verdade isso também foi criado pelo patriarcado, para que a relação das mulheres entre si seja abalada. Outros termos que vêm de misturas de palavras em inglês são explicados pelo blog “Eu, Tu, Elas” (2017), com um dicionário feminista colaborativo e editado com o surgimento de novos conceitos. Quando uma mulher tenta desenvolver uma ideia em uma discussão, mas é constantemente cortada e interrompida por homens, isso é chamado de manterrupting, da união das palavras man (do inglês, homem) e interrupting (do inglês, interrompendo). Solnit (2017) diz que muitas vezes a simples possibilidade de falar, ser ouvida e acreditada é parte essencial do pertencimento de uma sociedade. Ainda na mesma lógica de trazer as palavras para a língua portuguesa, manterrupting ficaria ominterrompe. Quando um homem ganha crédito por uma ideia que originalmente era de uma mulher, deu-se o nome de Bropriating. Ele vem dos termos bro (gíria em inglês que significa irmão) e apropriating (do inglês, apropriação). Quando uma pessoa, geralmente em uma relação amorosa, faz a outra acreditar que é psicologicamente instável e aos poucos a mesma vai acreditando nisso, chama-se gaslighting, e considera-se que isso pode realmente ferir o sua integridade psíquica. A palavra vem do termo em inglês gaslight, que significa a luz do gás, que é algo inconstante. E, por fim, slut-shaming, que significa, literalmente, ‘perseguição de vadia’ e é a ação de diminuir uma mulher e fazê-la se sentir culpada pelos seus comportamentos sexuais. Após esse breve relato da história do movimento feminista e do feminismo na contemporaneidade, pode-se questionar os motivos de ainda hoje existir movimentos feministas, mas grande parte disso justifica-se nos dados. Uma pesquisa realizada pelo site G1 em 2017 mostrou que houve mais de quatro mil homicídios dolosos contra mulheres, tendo um aumento de 6,5% em relação ao ano de 2016. Sob outra perspectiva, o site ressalta que uma mulher é assassinada a cada duas horas no Brasil, ou doze mulheres por dia. Conforme os Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública (SOARES, 2017.), o Brasil registrou um estupro a cada 11 minutos no ano de 2015, sendo que eles consideram que apenas 10% do total dos casos seja realmente registrado. Além disso, 15,7% dos acusados por estupro foram presos, conforme dados obtidos pelo G1 no ano de 2017. Segundo a pesquisa Relógios da Violência, do Instituto Maria da Penha, uma mulher é vítima de violência física a cada 7 segundos. E no ano de 2013, a cada dia 13 mulheres morreram como vítimas de feminicídio, sendo que 30% foram mortas pelos seus cônjuges ou 26 ex, conforme o Mapa da Violência de 2015. Se comparado a última década, esse dado comprova o aumento de 21% das mortes de mulheres. Já no recorte do feminismo negro, que tem batalhas diferentes do feminismo branco, apesar de todas classificarem-se de uma só forma, os dados mostram que o assassinato de mulheres negras aumentou em 54%, e o de mulheres brancas diminuiu 9,8%, segundo o Mapa da Violência de 2015. Já na pesquisa “Percepção da sociedade sobre violência e assassinatos de mulheres”, realizada pelo Data Popular e Instituto Patrícia Galvão (GALVÃO, 2013), os dados mostram que 54% das pessoas conhecem uma mulher que já foi agredida por seu parceiro, independente de classe econômica. Mas, de encontro a essa informação, o levantamento também prova que 85% da população acredita que mulheres que denunciam os seus parceiros correm mais riscos de sofrer assassinato, que também aparece como uma das principais razões para que a mulher não se separe do agressor, junto com a vergonha. Metade da população acredita que punição dada pela Justiça não reduz a violência contra a mulher. Porém, a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM), que é o órgão responsável pela Central de Atendiento à Mulher, não realiza a disponibilização dos dados brutos e abertos do serviço que eles realizam. Considera-se que esse poderia ser uma fonte importante de informações e seria capaz de alimentar pesquisas, divulgar dados e gerar campanhas que pudessem futuramente reduzir os números citados. Tiburi (2018, p. 55) comenta que “lutar por direitos não significa lutar pelos próprios direitos em um sentido individual. A noção de direito implica sempre em sociedade”. Portanto, os direitos reivindicados durante as lutas feministas foram pensados sempre nas mulheres como um coletivo. Evidentemente seus recortes (como mulheres negras ou de classe baixa) foram respeitados, mas as ondas feministas buscavam trazer direitos para as mulheres como um todo, não apenas para um nicho específico. Atualmente se fala muito no patriarcado e seus malefícios, como a cultura de estupro e a objetificação da mulher. Na vida profissional, o feminismo busca maior reconhecimento para as mulheres e salários iguais aos dos homens ao exercerem a mesma função.

As mulheres terão de pagar caro também na vida profissional apenas por serem mulheres, não apenas no lugar de trabalhadoras, mas no de “carne” - ao qual foram destinadas desde muitos séculos. O que podemos chamar de “cultura do assédio”, no trabalho ou nas ruas - ou na família, ambiente em que acontece a imensa maioria dos estupros e abusos sexuais-, relaciona-se à condição subalterna das mulheres que - por não poderem competir com os homens e porque não são consideradas seres iguais em direitos - devem servir caladas à violência de taras verbais e físicas. (TIBURI, 2018, p. 61). 27

Além da relação das mulheres com o trabalho, a luta feminista contemporânea busca uma relação mais igualitária das mulheres com os homens dentro do relacionamento, minimizando o machismo e empoderando as mulheres. Muitas vezes a sociedade romantiza algumas situações recorrentes dentro de casa e em situações familiares, não dando a devida importância para algum fato que pode afetar na vida feminina. Discursos religiosos e fundamentados em pré-conceitos sociais são alguns exemplos.

Essa condição feminina depende de um discurso, de uma espécie de texto que é dito diariamente ou de um subtexto que permanece secreto. O romantismo nas relações familiares, que são muitas vezes as mais cruéis, servem para garantir a função do casamento e da maternidade. As virtudes cristãs das mulheres, tais como a capacidade de cuidar e a compaixão, a compreensão e a atenção ao outro, bem como a feminilidade na forma de delicadeza, da sensualidade e da paciência, tudo isso serve como texto para ocultar o subtexto do machismo que nos informa “para que serve” uma mulher. E elas servem. (TIBURI, 2018, p. 65).

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3 TELEVISÃO E TELENOVELA

Presente na maior parte dos lares brasileiros, a televisão é um meio que grande parte da população usa tanto para a informação quanto para o entretenimento. Ela existe desde 1950 no Brasil e no decorrer dos anos teve algumas mudanças, seja nas emissoras – algumas que nasceram e morreram e outras que permanecem até hoje e são referência para os telespectaadores, no formato televisivo, na maneira de informar uma notícia e de criar uma novela, ou até mesmo na criação de canais fechados, sendo que antes só existiam os canais abertos. Por influenciar de maneira significativa na vida daqueles que a assistem, ela foi o meio escolhido para a realização da análise desta pesquisa. Dentro dela, a telenovela foi o objeto, por se tratar de um momento de entretenimento no qual as pessoas absorvem informações e pré-definições já estabelecidas pela sociedade, muitas vezes de forma inconsciente. Entretanto, antes da análise, se faz necessário conhecermos um pouco sobre a história da televisão no Brasil, bem como entender as telenovelas e até mesmo a capacidade de persuasão que existe com a televisão. As principais autoras trazidas neste capítulo são Maria Luiza Baptista (1996), Samira Campedelli (1987) e Anna Maria Balogh (2002).

3.1 A HISTÓRIA DA TELEVISÃO NO BRASIL

Outro aspecto que necessita ser abordado neste trabalho é a televisão e alguns conceitos importantes mais específicos do jornalismo. Dentro de tudo que ele abrange, como, por exemplo, jornais impressos, rádio, blogs e televisão, pode-se perceber que a TV é o meio de comunicação que atinge mais pessoas.

Surgida não ao acaso, mas como decorrência de altos investimentos provenientes das necessidades de uma economia de mercado, a televisão foi, aos poucos, sendo produzida em sua singular forma de comunicação – em relação aos outros veículos existentes -, coerente com o processo do capitalismo. Da fase inicial de experimentação ou, em outras palavras, marcada apenas pela disseminação – transmissão – de informação, muita coisa mudou. A relação desse veículo com a humanidade foi gradativamente sendo caracterizada pela impressão da sua marca. A marca da era televisual. Resultada e influenciada pelas transformações da humanidade, a TV também se constitui enquanto equipamento de produção das mudanças. Assumiu um lugar que não pode ser ignorado no processo mutacional social. (BAPTISTA, 1996, p. 76).

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A televisão chegou ao Brasil em 1950, através de Assis Chateaubreand, jornalista e empresário, que trouxe os equipamentos necessários para que a TV pudesse também ser utilizada no país. Nos anos que sucederam a chegada do equipamento televisivo, as emissoras foram também tomando forma e sendo criadas.

Na altura de 1955, o número de aparelhos receptores não ultrapassara ainda a casa dos 250 mil. Entretante, não impediu que Assis Chateaubriand comprasse, de uma só vez, nove estações nos Estados Unidos, embora não existisse, sequer, uma infra- estrutura de imagem e som, nem uma tradição de show-business, no país. A programação, coluna vertebral de qualquer emissora, oscilava entre programas informativos – combinando notiviários ede estilo radiofônico com debates e entrevistas-, programas educativos e programas de distração. (CAMPEDELLI, 1987, p. 9).

Em 1951 foi ao ar a TV Tupi Rio de Janeiro, em 1953 a TV Record, em 1955 a TV Rio, em 1959 a TV Continental e em 1960 a TV Excelsior e apenas em 1965 é que a TV Globo, que viria a ser a Rede Globo, foi ao ar, e em 1967 a TV Bandeirantes foi ao ar. Segundo Mattos (2002, p. 26), no início dos anos sessenta existiam quinze emissoras de televisão operando nas mais importantes cidades do país, mas as emissoras só se tornaram economicamente viáveis como empresas comerciais quando os efeitos do consumo de produtos industrializados cresceram e o mercado se consolidou. Como as televisões precisavam receber uma grande quantidade de anúncios elas passaram a realizar os seus programas voltados para grandes audiências. Mattos (2002) faz uma cronologia da televisão brasileira que se mostra útil a esta pesquisa. No ano de 1969 os brasileiros assistiram ao vivo uma transmissão do homem pousando na lua, e também no mesmo ano o Jornal Nacional, da Rede Globo, foi ao ar pela primeira vez. Um ano depois a Copa do Mundo foi transmitida ao vivo para todo o país. Já no ano de 1972 aconteceu a primeira transmissão oficial em cores no Brasil, na Festa da Uva, que acontece na cidade de Caxias do Sul. Após esse ocorrido, o televisor a cores entrou no mercado, e ele custava quase vinte salários mínimos da época. Somente em 1980, no dia 3 de fevereiro, o final da censura foi oficializado no telejornalismo. O autor também explica que o crescimento da televisão foi diretamente influenciado pelo desenvolvimento econômico do país, que teve aumento do PIB per capita, aumento da renda per capita e pela melhor distribuição de renda, aspectos que aconteceram na mesma época na qual a televisão chegou ao Brasil. Além disso, o processo de urbanização e modernização das cidades brasileiras foi acelerado também nesse período. 30

Ainda conforme Mattos (2002) há uma divisão de fases durante o desenvolvimento da televisão no Brasil. Inicialmente, entre os anos 1950 e 1964, ele considera como a fase elitista, quando televisão era considerada um luxo, visto que apenas as classes econômicas mais altas tinham acesso a ela. A partir de 1964 entra-se na fase populista, quando a televisão era considerada moderna e tinham muitos programas de auditório no decorrer da programação. De 1975 a 1985 veio a fase do desenvolvimento tecnológico, quando as redes televisivas passaram a produzir os próprios programas, com muito profissionalismo, visando inclusive a exportação. A fase da transição aconteceu de 1985 até 1990, quando os programas passam a ser exportados de forma bem intensificada. A quinta fase é a da globalização e da TV paga, e acontece entre os anos de 1990 e 2000, quando o país busca a modernidade e a televisão se adapta a novos rumos. E, por último, a fase da convergência e da qualidade digital, que começa no ano 2000, mostra que a tecnologia aponta para uma interatividade muito grande dos veículos de comunicação com a internet e outras tecnologias de informação. É necessário que perceba-se a importância que a televisão tem dentro dos lares brasileiros, trazendo notícias, influenciando opiniões pessoais e até indicando formas de como agir frente a um acontecimento. Balogh (2002) comenta que o Brasil é muito marcado pelas desigualdades socioeconômicas e que alguns bens da cultura são acessíveis apenas para uma pequena parcela da população, mas, para além desses que têm o acesso, existe uma parcela considerável da população que é analfabeta. A televisão chega para essas pessoas como o principal meio para a formação de opinião, também proporcionando formas de entretenimento.

Há um conjunto de emissoras de TV aberta à disposição de todos e, aos poucos, as TVs por assinatura vão se expandindo, mas ainda são um privilégio de minorias. De qualquer forma, o alcance da televisão num país de dimensões tão monumentais é fantástico pelo número de pessoas e regiões diferenciadas que são abarcadas. Isso torna a TV uma formadora de hábitos e opiniões, um parâmetro iniludível. (BALOGH, 2002, p. 19).

Cada dia mais atarefadas, as pessoas buscam muito pela informação vinda da televisão, principalmente de telejornais. Porém, nos momentos de lazer, é possível que as pessoas absorvam as informações passadas em programas de entretenimento, e também que reproduzam aquilo no seu dia a dia, muitas vezes sem perceber, de forma inconsciente. Balogh (2002, p. 20) relata que as intuições ou insights que tem [o espectador] sobre eventuais transformações se perdem no fluir incessante, no assistir constante, nos papos familiares. 31

Ao mesmo tempo em que a televisão encontra os telespectadores dentro de suas residências, para os canais de comunicação é difícil estipular qual é o público de determinado programa. Muitas vezes há públicos de diferentes classes sociais, gêneros, raça, o que torna um desafio a produção de um programa que vá agradar a maioria dos telespectadores.

Quem é, afinal, o grande público? Uma massa homogênea? Nivelada por baixo? Uma massa resultante da lei da oferta e da procura? As questões são muito complexas, na medida em que são de ordem dialética entre o sistema de produção cultural e as necessidades culturais dos consumidores. Parece que o “público médio ideal” continua a ser pesquisado pela emissora ainda hoje. (CAMPEDELLI, 1987, p. 38).

Campedelli (1987) também comenta que uma telenovela é criada já com a intenção de que os telespectadores se prendam na trama, não desligando a televisão ou mudando de canal. Para isso, no decorrer de uma novela acontecem os pequenos ou grandes clímax, sendo que cada capítulo conta com quatro ganchos, três de menor grau e um no final, que geralmente se desenrola no capítulo seguinte. Outro elemento importante que a autora traz é o acompanhamento da trilha sonora que acompanha as ações realizadas em uma novela. Essa trilha se integra ao espetáculo da telenovela, emocionando e impressionando os telespectadores. Além das fases explicadas por Mattos outro acontecimento histórico que mudou e vem mudando a comunicação é globalização, principalmente através da internet. Como citam Caparelli e Lima (2004, p. 17), um computador conectado à interface gráfica da internet se transforma simultaneamente em rádio, televisão, telefone, correio, além de transmissor e receptor de dados nas mais diferentes formas. Com a internet é possível assistir a um filme no computador, ver o capítulo perdido de uma novela no outro dia e até mesmo se conectar de forma mais próxima com atores admirados. É possível observar que alguns canais televisivos vêm acompanhando essa mudança, criando páginas em redes sociais, conversando com os telespectadores, que agora passaram também a serem internautas. Pode-se perceber que os canais que estão acompanhando essa mudança seguem sendo lembrados pelo público, e, acima disso, sendo vistos, seja na televisão ou nos computadores.

3.2 PERSUASÃO TELEVISIVA

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Conforme Balogh (2002, p. 70), as estratégias de construção do discurso ficcional na TV estão fortemente normatizadas pelas demandas de gênero e pelas servidões de formatação e ambos interferem poderosamente nesse fazer discursivo que se analisa. A autora ainda complementa explicando que a enunciação a enunciação nunca é explicitada, mas deixa no enunciado as suas marcas.

Se considerarmos que os conglomerados das redes de TV, tal como as Organizações Globo, incluem revistas, jornais, copanhias cinematográficas, indústria fonográfica, emissoras de rádio e TV, televisão a cabo e Internet, é fácil concluir que o interesse público do brasileiro, seus gostos, crenças, cultura e valores, estão sob controle de corporações, as quais estão criando uma estrutura de dependência a fim de reforçar e impor seus valores e produtos à sociedade. (MATTOS, 2002, p. 47).

No Brasil há quatro grandes emissoras de televisão abertas que são mais conhecidas, são elas: Rede Globo, SBT, Band e Record.

Os números oferecidos pelos relatórios de audiência dos serviços especializados parecem não mostrar, à primeira vista, uma grande concorrência entre as redes brasileiras de televisão. Se alguém, por exemplo, procura saber quais são os dez programas de maior audiência na televisão o ano 2000, num ranking por média de telespectadores, descobrirá que os dez foram da Rede Globo, sendo quatro programas de informação, três programas de ficção e três programas de shows de variedades. (CAPARELLI; LIMA, 2004, p. 94).

Nota-se, portanto, que apesar de as quatro serem reconhecidas, em questões de audiência o público não é espalhado de forma tão homogênea, visto que a Rede Globo lidera grande parte das pesquisas, de audiência e de programas vistos pelo público. Caparelli e Lima (2004, p. 94), ainda comentam que dentre esses dez mais assistidos, o primeiro foi uma telenovela, com share médio de 67% e 35 milhões de telespectadores, e o décimo, um telejornal com share de 51% e 21 milhões de telespectadores. Por trás da televisão e dos programas que são expostos e das falas que são ditas, há alguns patrocinadores que precisam que suas satisfações sejam realizadas. Mattos (2002, p. 77), comenta que a televisão tem grande parte dos investimentos publicitários para os produtos mais anunciados no Brasil. Esses produtos incluem, já em sua devida ordem, artigos de perfumaria e beleza, financiamento e empréstimos, drogas e remédios, cigarros, bancos, indústria automotiva, bebidas, sapatos e produtos de limpeza.

A comunicação é interação de sujeitos, mas também é uma relação de poder. Portanto, não há dúvida que em televisão, como na comunicação de massa em geral, na pessoal e na dos sindicatos, nada é aleatório. No plano individual, não se escolhe uma palavra por acaso. Escolhemos porque acreditamos que ela representa nossas 33

ideias. E isso também não é inocente, isso é da ordem do jogo de poder com nossos receptores. (BAPTISTA, 1996, p. 39).

Baptista (1996, p. 39) comenta que as tentativas de manipulação televisiva existem e é possível encontrarmos muitos exemplos disso na televisão brasileira, pois elas passam muito pela seleção de conteúdos e utilização dos recursos do veículo, como a linguagem, por exemplo. Mas a autora comenta que essa manipulação só é possível porque os telespectadores não conseguem perceber como uma manobra, e, para que isso ocorra, é preciso que a população seja bem informada e educada, caminho não tão fácil de ser seguido.

A observação do verbal na televisão também se faz importante, na medida em que se compreende a sua estreita relação com o processo de significação. Se a televisão apresenta-se também enquanto composto de características visuais – imagens, num certo sentido – a serem decodificadas, essa decodificação passa também pela interação via verbal. A imagem não é produzida, apresentada dissociada do verbal. Ela pode provocar sensações, sentimentos, emoções, intensidades, mas no momento da explicitação desses aspectos passa pela verbalização, enquanto reconstrução dela própria. Ao menos, passa por algum tipo de representação da ordem do mundo dos códigos. Passa por uma reconstrução em nível de mundo secundário. O verbal acopla-se à imagem, justamente no que ela tem de nitidez, de visível. (BAPTISTA, 1996, p. 78).

Todos esses fatos são importantes de serem analisados ao falarmos de televisão e telenovela porque, segundo Cretaz (2014), “A televisão aberta brasileira, criada no início da década de 1950, está presente em 95% dos lares do país, o que lhe proporciona o status de principal meio de comunicação brasileiro”. Visto isso, pode-se dizer que 95% dos lares do país são influenciados por aquilo que é exposto na televisão. Como contraponto, Baptista (1996) reflete sobre outro aspecto, que a televisão também pode ser influenciada por aquilo que os telespectadores emitem e ideologias que acreditam, sendo um o espelho do outro.

Muito se disse que os meios de comunicação de massa - e particularmente a televisão - são espelhos da sociedade, refletem essa sociedade. Só que, tradicionalmente, a concepção de espelho é a seguinte: uma superfície que reflete, que mostra a imagem do refletido e que, representando essa imagem, impõe uma determinada visão de si mesmo. O espelho seria, então, um outro externo que nos diz, autoritariamente, quem somos. Essa concepção pode ser apenas adequada à ideia de que é o outro quem tem o poder sobre o sujeito, e que é a partir desse outro e deterministicamente segundo a sua lei que ele (o sujeito) existe. Acontece que é limitada, Não dá conta da interação com o espelho-outro. (BAPTISTA, 1996, p. 49).

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Ficaria difícil, então, poder definir se a telenovela reflete aquilo que a sociedade é, ou se a sociedade é que reflete aquilo que a telenovela expõe, visto que ambas são um reflexo da outra. Sendo assim, conforme um deles realiza uma mudança, é possível e provável que o outro também mude de alguma forma. A autora não é a única a refletir sobre o tema, o que mostra que realmente a relação entre o emissor e receptor é recíproco, e assim como o emissor influencia na vida do receptor, o receptor também influencia naquilo que o emissor vai falar. Sodré (1987) explica que a televisão é tanto o reflexo do real, como o real do reflexo. Conforme Baptista (1996, p. 79), a televisão encontra o receptor no cotidiano, às voltas com as suas coisas, na sua casa, consigo mesmo. E, ao mesmo tempo, permite que ele se encontre, entre em sintonia, com outros sujeitos. Além disso, essa relação também proporciona um encontro com situações vivenciadas no cotidiano, o que traz uma mobilização relacionada ao afeto daquilo que foi vivido.

A existência de diversas emissoras abertas trouxe instigantes momentos de guerras de ibope entre algumas emissoras no campo da ficcção, que, apesar de não terem abalado irremediavelmente a hegemonia da Globo, até recentemente trouxeram mudanças e experimentações relevantes, principalmente para o formato novela. (BALOGH, 2002, p. 171).

Independente da emissora, as telenovelas trazem mensagens para os telespectadores. Utilizam bastante o discurso moralizador, que também podia ser visto no folhetim.

É comum serem incluídas nas narrativas cenas em que os “personagens” abusam do fato de estarem falando para milhões de espectadores e gozarem da simpatia dessas pessoas para pregarem padrões de comportamento. É um canal de passagem para as regras sociais, o mundo das leis sociais. Nesse poto, dependendo do uso e da situação, podemos observar um risco no envolvimento com a telenovela – variável, é claro, também em função das características desse campo de forças que é o receptor. A questão é controversa porque a telenovela, assim como o folhetim do século passado, também pode ser, e em alguns casos é, uma forma de alertar a sociedade para algumas questões. Um exemplo é o caso de cenas em que personagens simpáticos ao público ressaltam a importância do uso da camisinha, da doação de sangue ou de órgãos. (BAPTISTA, 1996, p. 95-96).

A sequência narrativa geralmente passa pela manipulação, pela qualificação, pela ação e pela sanção. Conforme Balogh (2002) a manipulação acontece através do desejo que o personagem tem por fazer ou obter alguma coisa; a qualificação são as aptidões que o personagem vai ter para conseguir conquistar o que ele deseja; a ação é o momento principal 35 da narrativa, que faz as mudanças da trama acontecerem; e a sanção é a interpretação ou julgamento sobre o contrato estipulado na manipulação.

3.3 AS TELENOVELAS

Segundo Cretaz (2014), o gênero da ficção - que abrange não só telenovelas, como minisséries, filmes e desenhos infantis - ocupa o segundo lugar no espaço da grade televisiva, tendo 19% da mesma. A primeira colocada ainda é a informação, que envolve 25% do escopo televisivo nacional. Baptista (1996, p. 94) comenta que as semelhanças da telenovela com o folhetim são muitas, pois a telenovela também é uma narrativa que se dirige a um público multiforme, através do exagero na estereotipagem. Além disso, ela explica que os assuntos de ambos envolvem alguns apelos, abordando temáticas que oscilam entre questões que os telespectadores também vivem, como família, adultério, violência e amores. Eles também se tratam de obras abertas, ou seja, a história pode tomar outro rumo que o previsto, conforme a repercussão dos acontecimentos. Conforme Melo (1988, p. 25), a telenovela chegou no Brasil na década de 50, quando tomou-se conhecimento das melodramáticas histórias em série expostas pela TV argentina. Então, ocorreu uma tentativa de adaptar essas histórias no país, porém como as radionovelas estavam em alta, somente quando as histórias que tinham feito sucesso no rádio foram readaptadas para a televisão é que o sucesso da telenovela aconteceu.

Há dez ou quinze anos (fim da década de 60, começo da de 70), era fácil precisar o público da telenovela: dirigia-se à dona de casa classe média, algo assim como “história para mulheres”. Já no final da década de 70, seu público é algo indistinto, até mesmo impreciso. Ou não: basta generalizar. Todos veem telenovela. Deixou de ser história só para mulheres. É assunto cotidiano e responsável, inclusive, por mudanças de horários (ou sacralização deles). Depois das dezenove horas é fácil encontrar todo mundo em casa. Difícil é falar com as pessoas nesse horário: atentos ao mundo que “vem lá da televisão. (CAMPEDELLI, 1987, p. 16).

Fernandes (1997) relata que a telenovela é reconhecida como uma instituição nacional, que tornou-se uma arte respeitável em suas particularidades, e complementa que a telenovela pode ser considerada uma arte popular brasileira, assim como o samba ou o Carnaval. Ela é capaz de arrebatar toda uma população que se mantém distante da ribalta artística. 36

A telenovela é respeitada pelos brasileiros e reconhecida como uma forma de usar um tempo livre para relaxar. Melo (1988) explica que o fascínio das pessoas que acompanham os capítulos de uma novela se dá também pela consciência de estarem participando de um passatempo, dando uma trégua do ritmo de vida intenso ou até mesmo da monotonia.

As histórias fluem lentamente, criando suspenses diários e motivando os telespectadores a retomarem o fio da meada do dia seguinte. É o que se pode chamar de catarse coletiva. Tudo isso facilitado pela completa inteligibilidade: a novela fala a linguagem da transparência – para todo mundo se sentir por dentro. (MELO, 1988, p. 53).

Durante uma telenovela é possível que a trajetória da história mude, pois tudo tem influencia do público, que, como comenta Campedelli (1987, p. 15), pode dar mais força para um personagem e fazer com que um protagonista se apague.

A telenovela é estruturada em capítulos, estes em segmentos que, por sua vez, dividem-se em cenas. A proposta é alinhavar uma série de “ganchos” desconfortantes, de maneira que a promessa de prazer seja explícita em cada um deles. O conflito é resolvido e rapidamente substituído por outro – de preferência de intensidade maior – para evitar a decepção, a vivência demorada da situação de conforto. Não é à toa que, em grande parte das telenovelas, os autores deixam para o último, ou últimos capítulos, a solução dos grandes conflitos. Dessa forma, a atenção do telespectador tende a ser retida por mais tempo, e a decepção, a ter vida curta. (BAPTISTA, 1996, p. 90).

Conforme Campedelli (1987) o telenovelista é diferente do romancista, pois o último apresenta uma obra acabada, escrevendo um romance, publicando e depois percebendo qual vai ser a interação e aceitação do público. Já o telenovelista escreve a obra aos poucos, estando aberto para a forma como o público vai receber cada capítulo e podendo mudar o rumo da novela.

Considerada como um subproduto da literatura, do mesmo modo como se enxerga o folhetim, a telenovela é um tipo especial de ficção. Desenrola-se segundo vários trançamentos dramáticos, apresentados aos poucos – história parcelada. Tem um universo pluriforme, exigindo hábil manuseio para a condução dos desdobramentos da fábula – cada pedaço tem seu próprio conflito a ser trabalhado. Exige o perfeito domínio do diálogo, base de seu discurso. (CAMPEDELLI, 1987, p. 20).

Balogh (2002, p. 53) explica que para que um objeto cultural tenha uma narrativa é preciso conter alguns itens. É preciso que ele tenha começo, meio e fim; um esquema mínimo 37 de personagens, como o bandido versus o mocinho; esses personagens precisam ter alguma qualificação para as ações que eles vão realizar ao longo da trama; essas ações precisam dar um andamento para a história e também mostrar a relação entre os próprios personagens. A autora ainda fala um pouco mais sobre essa relação da narrativa com os personagens e as ações realizadas por eles.

O essencial de todos os modelos narrativos é que eles giram em torno das ações dos personagens. As ações executadas pelos personagens para atingir os seus objetivos constituem o cerne da narrativa. Para que um personagem execute uma série de ações é necessário que ele tenha um querer (ser rico, conquistar uma mulher, desbravar o Oeste, ser famoso etc). Assim, podemos dizer que o móvel da narrativa é o desejo que leva o personagem a ser o sujeito de uma série de ações no sentido de conseguir os objetivos do seu desejo. (BALOGH, 2002, p. 61). Então, durante a trama inteira da novela, pode-se perceber que os personagens têm algum desejo e buscam realiza-lo. Conforme Balogh (2002), em cada narrativa é possível perceber um microuniverso de valores, que normalmente refletem os valores da própria cultura na qual ela está inserida. Os personagens da narrativa buscam algo que seja socialmente valorizado, e geralmente os objetos desejados são cobiçados por mais de um personagem.

Temos aí o tão decantado e tão reiterado triângulo amoroso, a base de incontáveis histórias. Ele serve para ilustrar o que diz a teoria da narrativa: a partir do momento em que o personagem tem um desejo – conquistar uma moça – ele se torna, dentro da história, o sujeito de uma série de ações que o levarão à conquista ou ao fracasso. A moça que ele ama constitui o objeto de desejo. (BALOGH, 2002, p. 61).

Além disso, a telenovela incorpora também situações do cotidiano, criando um efeito de real que facilita ao receptor ver-se no espelho. Propõe um envolvimento mais emocional, mais da ordem dos processos primários, conforme Baptista (1996, p. 171). A novela escolhida para analisarmos o tema abordado na pesquisa foi “A força do querer”, telenovela produzida e exibida na Rede Globo no ano de 2017 e escrita por Gloria Perez. A novela foi ao ar no dia 3 de abril e teve seu último capítulo no dia 20 de outubro de 2017, contendo 172 capítulos. Exibida no horário das nove, a novela abordou temas como transexualidade e tráfico de drogas. Uma das maiores polêmicas da novela foi a personagem Ivana, interpretada pela atriz Carol Duarte, que tem um corpo de mulher, mas se sente como um homem, então decide passar pelo processo de transformação que vai deixá-la com um corpo considerado masculino. Ela enfrenta uma resistência muito forte de sua mãe, Joyce, interpretada por Maria Fernanda 38

Cândido, que sempre criou a sua filha com uma ideia clássica de princesa, que se veste como uma menina vaidosa e usa maquiagem e sapatos de salto. Para ilustrar a grande repercussão que a novela teve na mídia, optou-se por trazer nesse trabalho a opinião de alguns repórteres e canais de notícia. No portal de notícias iBahia4, em uma matéria creditada como Agência O Globo, é possível observar um panorama dos temas mais polêmicos trazidos por Gloria Perez durante sua carreira. Na trama de A Força do Querer o tema citado como mais polêmico é justamente os transgêneros, trazendo a realidade de uma menina que se sente inadequada em seu próprio corpo, ainda contendo o dado de que 25 milhões de pessoas no mundo passam por isso e o tema ainda assim não é tratado da forma como deveria. Já o site LovZ traz as cenas que mais repercutiram para o público da telenovela. Em uma lista que monta um “top 3”, a ordem é a seguinte: Ivana não se reconhece em corpo de mulher; travesti é espancado; e parto que acontece dentro de uma viatura.5 O colunista Tony Goes, do site F5, que pertence a Folha de S. Paulo, acredita que a revelação de Ivana foi uma das cenas mais comentadas entre o público, além de, na visão dele, ser uma das melhores cenas de telenovelas em muito tempo. Além disso, ele traz também o fato de que as hashtags #Ivana e #AforçaDoQuerer ficaram nas mais citadas do país.6 Beatriz Bradley Moreira, repórter do Portal iG, traz críticas a novela no mês de junho de 2017, enquanto a novela ainda estava sendo exibida. Ela aponta que a novela aborda muitos temas polêmicos, mas que só se aprofunda em alguns, deixando outros muito importantes de lado. Traz exemplos de machismo e agressão física contra a mulher. No primeiro, comenta do personagem Zeca, interpretado por Marco Pigossi, que acha que a sua namorada, Jeiza, interpretada por Paolla Oliveira, não sabe se defender sozinha, também mostrando certo incômodo com sua profissão, que é soldada da Polícia Militar. A repórter critíca que a trama do casal ainda ganha um ar engraçado e diverte o público, sendo que deveria ser tratado de forma séria. Já em referência à agressão física contra a mulher, o exemplo trazido pela repórter é o do personagem Ruy, interpretado por Fiuk, que pega pelo

4 IBAHIA. Veja os seis temas polêmicos da novela “A Força do Querer”. 20 out. 2017. Disponível em: . Acesso em: 17 jul. 2018. 5 LOVZ. Assita as 3 cenas mais polêmicas da novela “A Força do Querer”. 2017. Disponível em: . Acesso em: 17 jul. 2018. 6 GOES, Tony. Revelação de Ivana em “A Força do Querer” foi a melhor cena de novelas em anos. F5, São Paulo, 30 ago. 2017. Disponível em: . Acesso em: 17 jul. 2018. 39 braço sua ex-mulher Cibele, interpretada por Bruna Linzmeyer, caracterizando uma agressão física. Porém, quando a personagem vai abrir um boletim de ocorrência o comentário é que ela “exagerou”. A repórter considera essa uma falha grave, levando em conta a seriedade do assunto e a falta de profundidade com que é tratado.7 Além dos dois personagens já citados no parágrafo anterior, em outra matéria do Portal iG, que não contém os créditos para o repórter que escreveu, traz mais três personagens da novela A força do querer que também têm atitudes machistas que são ignoradas ou tratadas superficialmente no decorrer da trama. São eles: Eurico, interpretado por Humberto martins, que grita com a sua mulher com muita frequência; Eugênio, interpretado por , que é casado, arruma uma amante e culpa a mulher de não ser uma boa esposa; e Dantas, interpretado por Edson Celulari, que persegue a ex-namorada quando eles terminam o relacionamento.8 Uma cena que houve muita repercussão em redes sociais como o Twitter e Facebook foi a que retratou Joyce, interpretada por Maria Fernanda Cândido, agredindo Irene, interpretada por Debora Falabella, motivada pela traição do marido. Enquanto muitos telespectadores comentaram que achavam desnecessário, pois o marido não havia sofrido as consequências e nem sido punido por elas, outras pessoas comentavam que “mulher que fica com homem casado precisa apanhar”.9 Considera-se importante também trazer um pouco sobre a autora da telenovela A Força do Querer, Gloria Perez, que nasceu em 1948 em Rio Branco, no Acre. Ela é muito conhecida no Brasil por escrever telenovelas, séries e minisséries. No ano de 2010 Gloria foi premiada com o Emmy Internacional de Melhor Telenovela, por Caminho das Índias. Além disso ela já ganhou o Troféu Imprensa de Melhor Telenovela por O Clone (2002), Caminho das Índias (2010) e A Força do Querer (2018), e o Troféu Internet de Melhor Telenovela também pelas três citadas anteriormente. As novelas escritas por Gloria Perez não contam com a ajuda de colaboradores, e ela é autora de onze telenovelas e de cinco séries ou minisséries.

7 BRADLEY, Beatriz. “A Força do Querer” não foge de temas polêmicos, mas trata superficialmente. IG, Rio de Janeiro, 27 jun. 2017. Disponível em: . Acesso em: 17 jul. 2018. 8 IG SÃO PAULO. “A Força do Querer”: o machismo por trás de cada personagem. Portal IG, São Paulo, 26 jun. 2017. Disponível em: . Acesso em 17 jul. 2018. 9 AZEVEDO, Arlan. Cena de agressão em “A Força do Querer” causa polêmica nas redes sociais. Na Mira, São Luis, 25 jul. 2017. Disponível em: . Acesso em: 17 jul. 2018. 40

A principal novidade que a globalização traz nessa área é o surgimento de novos mega-atores internacionais, sejam empresas, organismos internacionais ou Estados nacionais. Esses atores se transformam em “global players”, interferindo direta ou indiretamente na formulação das políticas públicas de comunicações, tanto em nível internacional como em nível nacional. (CAPARELLI; LIMA, 2004, p. 17).

A telenovela escolhida foi da Rede Globo porque, conforme já evidenciamos nessa pesquisa, é a emissora com maior repercussão nacional. Além disso, como explica Melo (1988), a telenovela produzida pela Rede Globo é um produto cultural que tem características únicas e diferentes de outras dramaturgias. Primeiro porque ela pode ser consumida por grande parte das pessoas, como, por exemplo, àqueles que não sabem ler. Também porque ela vive da aceitação do mercado, levando em conta a opinião dos telespectadores, e ao longo dos capítulos o mercado é consultado através de pesquisas. Além disso, a produção da telenovela obedece a um andamento relativamente veloz, visto que não se pode comprometer os demais programas da grade. A Rede Globo teve um papel decisivo na popularização da telenovela, pois realizou a formação do gênero folhetinesco, melodramático e estrangeiro em uma novela ligada à realidade brasileira, conforme Melo (1988). Isso porque, se antes as novelas eram importadas, com a Globo elas passaram a ser produzidas dentro do país, fazendo com que as pessoas se indentifiquem mais e se reconheçam melhor na história exibida no decorrer dos capítulos.

A construção dramática empreendida pelos novelistas brasileiros privilegia não apenas tipos humanos e situações vivenciais factíveis de acontecerem no Brasil e em outras sociedades do Terceiro Mundo ou do espaço cultural latino, mas combina o conflito e a violência com o humor, a simplicidade e a afetividade. Tudo isso bem dosado, de modo a prender a atenção dos telespectadores, seduzindo-os para acompanhar a história até o fim. (MELO, 1988, p. 56).

Portanto, na busca de prender essa atenção de quem está assistindo a uma telenovela, a trama dela é pensada, escrita e exposta de uma forma instigante. Para atingir um público agrandente, a emissora produz novelas pensando em diferentes segmentos sociais e culturais, mas, como exploca Melo (1988, p. 52) ela “prima pela utilização de três elementos capazes de viabilizar a identificação e a participação do conjunto dos telespectadors: uma linguagem coloquial, a escolha de personagens da classe média e o mito da ascenção social”. No primeiro, a linguagem é utlizada de forma simples para que todos possam entender facilmente; a utilização de personagens da classe média são uma estratégia para que grande parte da audiência se identifique, seja porque é o seu reflexo ou porque é um padrão que deseja atingir; e, por fim, a ascenção social é utilizada como caralizadora de anseios e 41 aspirações da população jovem. A Rede Globo, como todo veículo de comunicação, necessita de audiência do público para ser atrativa aos patrocinadores dos programas, portanto há certa intencionalidade no enredo de suas novelas. Geralmente apresentam temáticas abordadas na contemporaneidade, como também, vislumbram tendências de comportamento que são construídos no contexto de um personagem, além de, obviamente, possuírem domínio da técnica fílmica, sejam nos equipamentos, como também cenários, figurinos, iluminação etc., o que viabiliza uma imagem envolvente. Contudo, uma das preocupações ao escrever uma telenovela é que ela precisa seguir uma linha de temporalidade, inclusive seguindo datas festivas e férias da vida real, por exemplo. Um recurso muito utilizado pela televisão é fazer a retrospecção em determinada cena. O ritmo criado na telenovela deve ser o mesmo que vai embalar o telespectador até o final da mesma, o mantendo interessado e curioso sobre os temas abordados. Além disso, outros aspecto importantes ao elaborar a trama de uma novela são os temas escolhidos para guiar a mesma e as figuras que são utilizadas nela, conforme Balogh (2002). Para tanto, a busca pelo ferramental de análise orienta para os estudos do discurso. O discurso é uma área do campo da linguística que consiste nos textos (expressões da linguagem) envolvidos em um ambiente que determina a situação da comunicação. Sendo assim, percebe-se o EU e o TU, como agentes de fala, dos quais se posicionam em um processo de representação e interpretação dialógico que acontece devido as condições de comunicação, ou seja, em qual ambiente, para qual função cada personagem está na situação, sob qual temática a ser evidenciada no contexto e qual seriam as intencionalidades dos agentes de fala. Nesse sentido, o próximo capítulo tratará do conteúdo teórico a respeito do discurso, assim como, será demosntrada a ferramenta de análise de discurso a ser utilizada neste trabalho.

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4 ANÁLISE DO DISCURSO

Para observar as cenas escolhidas das telenovelas, serão observados os discursos utilizados entre os personagens presentes. O discurso diz respeito ao texto que está sendo utilizado no diálogo, que pode ser escrito ou oral, e também inclui a forma de expressão do corpo, seja gestual, através das mãos ou postura, ou até mesmo facial, trazendo aspectos implícitos do discurso. A fala durante um diálogo, os gestos articulados diante de diferentes situações, as expressões faciais que revelam, muitas vezes, uma interpretação velada, sua indumentária que caracteriza uma identidade. Toda essa configuração representa elementos para uma análise de discurso. Para tanto, ressalta-se que esses elementos sempre estarão inseridos em um contexto, chamado também de gênero situacional, que faz referência ao lugar e a situação na qual um discurso ocorre. Ou seja, o contexto de um texto proferido hoje, pode não ter o mesmo significado desse mesmo texto dito em 1950, visto que estão imersos dentro de épocas diferentes, onde a realidade era outra, as roupas usadas, as expressões, o contexto histórico eram outros. Então o tempo no qual o discurso se localiza precisa ser observado antes de um discurso ser analisado. Da mesma forma, o espaço, no qual a fala se situa, também precisa ser contextualizado, pois o espaço influencia a intencionalidade da fala. (CHARAUDEAU, 2004). A complexidade da questão exige que nada seja analisado de forma individual, mesmo que seja possível criar as divisões de forma teórica para que haja a possibilidade de estudar tais questões. Observá-las de forma isolada é um erro com fácil propensão a acontecer, pois aquele que está analisando pode cometer o erro de utilizar a sua realidade, tempo e espaço como base para a análise, o que não pode ser feito. (CHARAUDEAU, 2004). Um discurso estabelecido sempre tem uma intenção, que pode ser o de persuadir ou o de seduzir. Na persuasão a pessoa que realiza o ato discursivo busca fazer com que o outro acredite no seu ponto de vista, e transformando as divergências entre eles em concordâncias, na tentativa de convencer, de forma estratégica e racional, quem o escuta. Entretanto, quando o discurso busca seduzir o outro, se quer de forma estratégica e emocional, conquistar seu destinatário. (CHARAUDEAU, 2004). O consciente e o inconsciente podem ser revelados de forma explícita e implícita, por exemplo, a maneira como o corpo se posiciona, os gestos feitos com a mão, a coluna ou o queixo eretos ou não, tudo possui significados e podem trazer a tona algumas percepções que antes, possivelmente, não eram esperadas. Assim, o explícito e o implícito do discurso 43 também são demonstrados de forma sutil e ambos devem ser observados para uma análise de discurso. Os elementos linguísticos explícitos estão evidenciados no discurso de forma precisa e direta. Já o implícito refere-se aos elementos linguísticos que estarão de forma indireta ou subentendida no contexto discursivo. (CHARAUDEAU, 2004). Outro aspecto importante de um discurso é o lugar de palavra, que se refere a posição na qual o sujeito que realiza o ato discursivo está. Essa posição pode dizer a respeito da hierárquica social frente a uma comunidade, ainda que se estabeleça dentro de uma empresa ou membros de um núcleo familiar. (CHARAUDEAU, 2004). A natureza comunicacional da troca verbal tem duas possibilidades, natural ou construída. Quando a comunicação é natural acontece nos encontros e diálogos que não foram previamente programados ou quando acontecem de forma espontânea. Também acontece em momentos que representam franqueza, em que a encenação visa demonstrar algo genuído e verdadeiro. Já a troca verbal construída diz respeito àquilo que foi normalizado e institucionalizado dentro de um contexto ou grupo social inserido, uma fala que é reconhecida como sendo de determinado meio ou local específico. Um bom exemplo são as gírias utilizadas em algum estado e que em outro estado não tem seu significado reconhecido, ou até mesmo expressões verbais utilizadas em uma classe social e também não reconhecidas em outra classe econômica. O aparelho formal da enunciação se caracteriza pela forma com que o discurso (texto) é construído, podendo ser verbal ou escrito. O discurso verbal é mais completo, pois é composto por itens já citados anteriormente, como a fala e expressão corporal, enquanto o discurso escrito contém apenas as palavras, não permitindo a análise da expressão corporal, facial ou gestual. Em ambas as formas, a atividade linguageira pode variar de formato, como narrativa, argumentativa, explicativa, descritiva, entre outras. Como explica Charaudeau (2004), a noção de gênero lembra o quão complexa é a questão da análise do discurso, e que deve ser levado em conta tanto à ancoragem social, quanto a sua natureza comunicacional, tanto às atividades linguageiras construídas, quanto às características formais dos textos produzidos. Sendo que todos esses diferentes aspectos estão interligados, e podem trazer problemas para uma análise que os considera de forma separada. Em referência à ancoragem social, o autor relata que algumas práticas sociais que se instalam dentro da sociedade são mais visíveis e capazes de mostrar de forma mais clara as relações hierarquizadas e institucionalizadas. Uma mesma pessoa em diferentes locais sempre muda o seu ato discursivo buscando ganhar legitimidade dentro daquele contexto e situação inserida. E mesmo que esse ato seja realizado de forma inconsciente ou não planejada, o 44 discurso muda, pois as pessoas sempre buscam acolhimento e identificação com quem está ao seu redor. (CHARAUDEAU, 2004). Dessa forma, a atividade linguageira é formada pelas operações mentais e pelos modos de organização textual realizados. Nela, existem duas tendências, a cognitiva e a semiodiscursiva. A primeira tendência é a cognitiva é aquela que descreve as operações do pensamento que correspondem ao mesmo tempo e espaço no qual elas estão inseridas, categorizando-as por organizações. Quando se trata de ter consciência do processo de produção de texto, essa organização pode ser uma esquematização abstrata e ordenada, que cria um mecanismo que projeta um discurso semelhante a outro já utilizado em uma ocasião semelhante. No entanto, quando se trata de obter consciência do processo de compreensão, essa organização é um mecanismo que reconstrói uma esquematização já existente (CHARAUDEAU, 2004). A segunda tendência da atividade linguageira é a semiodiscursiva, que é toda a simbologia demonstrada em um discurso. Ela considera que um texto não pode ser classificado ou categorizado, pois sempre é heterogêneo, sempre tem alguma diferença de um para o outro. Por isso, o que pode ser classificado são os aspectos que constituem sua estrutura textual, sempre em um nível abstrato, pois não são relacionados de forma consciente. Então, o ato de esquematizar, pensar e montar um discurso não precisa ser considerado necessariamente como uma compreensão do texto discursivo, mas sim um reflexo da armadura assumida por aquele que realiza o ato discursivo. Essa armadura diz respeito a figura que cada pessoa assume como sendo ela mesma, como uma proteção vestida e que não pode ser mudada. (CHARAUDEAU, 2004). Há diversos tipos de “armaduras” ou “máscaras sociais” uma vez que se referem à identidades escolhidas para representar um papel na sociedade. Podem ser categorizadas dentro de alguns protótipos homogêneos, mas são sempre impossíveis de se encaixarem totalmente dentro de um protótipo. Apesar de alguns aspectos dessas máscaras serem parecidos, diversos motivos podem fazer com que ela mude, seja o ambiente onde a pessoa está, seja pelo ciclo de amizade que está ao seu redor, entre outros. Há alguns feixes de regularidade que a caracterizam como determinada armadura, mas através da observação é possível notar diversas falhas. Essas categorias prototípicas podem ser consideradas como um modo do discurso, que cada pessoa considera como ideal ou falho dependendo do contexto no qual está inserido. Esse modo de organização leva em conta o ambiente no qual o discurso vai ser realizado, as pessoas que vão estar nesse ambiente, entre outros tantos aspectos que devem ser pensados. 45

Ao organizar essa intenção discursiva o sujeito dispõe de algumas condições estruturais, como a narrativa, a descritiva e a argumentativa. A narrativa é aquela que conta um fato de maneira linear, deixando claros os acontecimentos e pontos imprtantes dele. A descritiva é aquela que também vai descrever os fatos da maneira mais realística possível, o que acaba por fazer com que essa descrição carregue em si a experiência pessoal e única do indivíduo que o vivenciou. Por último, a estrutura argumentariva traz opiniões pessoais sobre determinado fato e busca convencer o ouvinte através do seu discurso. Essas duas tendências, a cognitiva e a semiodiscursiva, colocam em questão o nível de organização realizado no discurso, que não precisa ser necessariamente com formalidade. Um discurso pode estar ligado àquilo que é aceito dentro daquele contexto sem que ele dependa completamente disso, assim como ele não depende apenas da fala, mas de um conjunto todo. O procedimento dessa organização pode ser feito de diversas maneiras, independentemente do tipo de texto ou discurso utilizado. É possível misturar vários procedimentos dentro de uma mesma fala, por exemplo, um texto publicitário pode ter características narrativas ou argumentativas. Além disso, o discurso também leva em conta a aparência discursiva da pessoa que está realizando o mesmo, fazendo com que o espectador tente reconhecer o que representa aquela pessoa dentro de determinado contexto discursivo. Também é possível que um indivíduo identifique-se com apenas alguns aspectos de algum discurso, e não totalmente. Há certas regularidades marcantes no decorrer de um texto, porém, comparando com outro do mesmo gênero é possível ver que algumas coisas são semelhantes e outras diferentes. Essas regularidades são chamadas de recorrências formais, e tornam um texto pertencente a uma classe, tipo ou gênero. Mas há dois problemas com ela, o primeiro é o sentido que as formas têm, e o segundo é o fato de não haver garantia de que exista um tipo de texto específico. No primeiro, que se refere ao sentido das formas, pode-se ver que uma mesma palavra pode ter múltiplos sentidos, seja pelo uso das formas lexicais ou gramaticais. Isso faz com que não seja possível que sempre uma mesma palavra tenha realmente o mesmo significado em textos diversos. Por poder pertencer a mais de um significado, de categorias diferentes, isso pode se tornar um obstáculo para classificar o texto a partir das recorrências formais. Já no segundo problema, que está interligado com o primeiro, a discussão é sobre o fato de não haver garantia de que exista um tipo de texto específico, então se busca saber se as recorrências são exclusivas ou específicas apenas de um tipo de texto. Se forem exclusivas, então existe ali um gênero textual, que busca provar a exclusividade por meio de uma 46 comparação sistemática com outros tipos de textos. Já as recorrências específicas, que são próprias de um tipo de texto, mas não necessariamente exclusivas dele, mostram que é possível agrupar os textos em nome de uma especificidade, constituindo uma classe heterogênea diante de determinada situação. É praticamente impossível agrupar textos através de uma classe, por exemplo, jornalístico ou científico, pois eles diferem entre si, apesar de terem várias características em comum, como as construções das frases ou o modo formal de escrever. Um tipo de texto pode ser caracterizado por essas regularidades formais, que se unem a outras características e formam um texto de um gênero específico. Porém, a dificuldade encontra-se em saber quais critérios deveriam ser usados para categorizar determinado texto, podendo lhe dar características que são específicas, mas não exclusivas. Então, as características formais deveriam ser apenas alguns traços que caracterizem os textos através de propriedades específicas, e não traços definidos que trazem aos textos propriedades constituintes. O problema dos gêneros textuais diz respeito ao lugar que as atividades linguageiras ocupam, tendo como questão fundamental as restrições ou a liberdade que o sujeito falante pode dispor. No momento em que se aceita que existem gêneros de linguagem também se reconhece que ela está se submetendo a restrições, sem saber em qual nível essas restrições podem realmente intervir. Se fica longe do desejado, o sujeito acaba perdendo sua liberdade e tendo que se encaixar em um modelo de formas codificadas antecipadamente, para se manifestar exatamente dentro das restrições previamente estabelecidas, e ele acaba desaparecendo como sujeito. E se as restrições agem além, o sujeito acaba completamente determinado pelo lugar que permite que ele tenha esse domínio da prática social, fazendo com que a sua maneira de falar perca a importância. Para resolver esse dilema, existe uma proposta de Charaudeau (2004): É preciso deixar claro que no momento em que o sujeito necessita expressar suas intenções, primeiramente ele precisa de referências para conseguir realizar essa comunicação. É a interpretação dos sinais, signos e elementos que traz o significado necessário pra esse diálogo, pois perminte que o sujeito falante signifique suas intenções e as comunique. Tudo isso é resultado do processo de socialização passado pelos indivíduos no decorrer da vida, passando o sujeito através da linguagem e, da mesma forma, a linguagem através do sujeito, de forma individual e coletiva, uma construção em conjunto. Também em conjunto é que se determinam quais comportamentos, comportamentos ou formas serão normalizados ou não, e o sujeito registra isso em sua memória. Existem três memórias dentro do sujeito, sendo que cada uma delas mostra uma diferente maneira de constituir as comunidades. São elas: a 47 memória dos discursos, a memória das situações de comunicação e a memória das formas de signos. Na memória dos discursos os saberes de conhecimento e crença são construídos dentro da sociedade, formados através de representações e identidades. As comunidades discursivas reúnem, de maneira virtual, aqueles sujeitos que têm o mesmo posicionamento e valores, podendo se referir a opinião política, doutrina religiosa, julgamentos ou ideologias. Elas acabam formando uma bolha com os indivíduos que carregam as mesmas crenças. Na memória das situações de comunicação percebe-se que há uma normatização das trocas comunicativas, formando conjuntos de condições psicossociais de realização, permitindo que os pareceiros entendam o que constitui a expectativa daquela troca. Eles mostram que diferentes meios de comunicação mudam o modo de informar uma notícia. As comunidades comunicacionais são formadas então por pessoas que se encaixam com determinado modo de comunicação e maneira de se informar. Tudo com base no lugar situacional no qual uma notícia é dada e se existe confiança nele ou não. É a memória comunicacional que permite que os indivíduos possam diferenciar a representação tratada por uma mídia de informação ou publicitária comercial, por exemplo, também o fazendo aceitar uma e rejeitar outra. Então, passa a não se dar tanto valor para o que está sendo veiculado, e sim o local onde está sendo veiculada determinada informação. Então, para realizar essa análise de discurso de forma objetiva, foram selecionados alguns itens explicados anteriormente, são eles: o gênero situacional, a intenção do discurso, que pode ser de persuasão ou sedução, o explícito e o implícito no texto, o lugar de palavra do personagem em questão, a comunicação natural ou construída e as máscaras sociais identificadas nas cenas. Já dentro do feminismo, alguns termos foram escolhidos, são eles: Empoderamento, sororidade, machismo, patriarcado, mansplaining, misoginia, manterrupting, bopriating, gaslighting e slut-shaming.

4.1 ESTUDO DE CASO

Na primeira cena selecionada (Cena 1 do Apêndice 1) a personagem Ivana está se arrumando quando sua prima Simone entra no quarto sem bater na porta e, enquanto elas conversam sobre Ivana trocar de vestido, Simone abre as costas do vestido de sua prima e acaba vendo que Ivana está usando uma faixa para apertar os seus seios, e a conversa delas gira em torno dessa situação. Os elementos que foram percebidos e analisados na cena são: Ivana estar utilizando um vestido; a faixa utilizada por Ivana para apertar seus seios; a entrada 48 de Simone no quarto de Ivana sem bater na porta; o julgamento de Simone sobre a o vestido de Ivana; a forma como Simone abre o vestido de Ivana sem o consentimento da mesma; a reação desconfortável de Ivana para explicar para sua prima; o ato de elas se sentarem no decorrer da cena, demonstrando seriedade na conversa; e, por fim, Simone afirmando que mulher tem peito. Utilizando a análise de discurso, o primeiro elemento importante é o fato de Ivana estar usando vestido, que é um elemento feminino, e mostra que, mesmo que ela não se sinta confortável ou representada por aquele corpo de mulher, ela utiliza elementos que demonstram uma feminilidade, seja por gostar ou por uma forma de pressão social exercida principalmente pelos seus familiares. O vestido também pode representar a máscara social que ela assume em determinadas ocasiões, por exemplo, jantares de família importantes, casamentos ou eventos considerados mais importantes no contexto no qual ela está inserida. O gênero situacional no qual a cena se encontra, que é o tempo e o lugar, sendo que o tempo é a contemporaneidade, e a conversa acontece dentro do quarto de Ivana, um lugar seguro para ambas, com o qual elas já estão acostumadas e onde a maioria das conversas entre as duas ocorrem durante a novela. Pode-se perceber que a intenção implícita de Simone é fazer com que Ivana acredite no mesmo que ela sobre o que é ser mulher e como elas devem gostar de seus corpos. O lugar de palavra de nenhuma das duas é superior ao da outra, visto que elas são primas e estão na mesma situação hierárquica dentro da família. De qualquer maneira, alguns gestos de Simone podem demonstrar certa superioridade frente a sua prima, como, por exemplo, o fato de ela entrar no quarto sem bater na porta, o ato de abrir o vestido sem perguntar para a mesma, ou até mesmo ela escolher o vestido que Ivana vai usar para sair ao final do diálogo, sendo que ela se rende à escolha de Simone, mesmo que inicialmente não quisesse. A comunicação que acontece entre elas é natural e espontânea, já que Ivana apresenta para Simone uma situação que ela jamais tinha vivenciado e que nenhuma das duas constrói um discurso que foi normalizado ou institucionalizado. No contexto feminista, é possível trazer a autora Betty Friedan, que durante a segunda onda do movimento falou sobre a mística feminina. Na época, essa mística dizia respeito às mulheres precisarem se sentir felizes sendo donas de casa. A fala de Simone pode carregar aspectos dessa mística, mas de forma diferente, trazendo uma mística que espera que a mulher seja de determinada forma, goste de se vestir de uma maneira padrão e precise se sentir satisfeita em ter seios grandes, por exemplo. Também pode trazer aspectos da terceira onda, que mostra que cada mulher tem demandas e necessidades diferentes uma da outra, buscando 49 acabar com padrões que são considerados femininos. É nessa fase que os recortes do feminismo começam a aparecer, entre classe, raça, sexualidade, mulheres lésbicas e transexuais. Outro aspecto do feminismo que cabe ser citado durante essa fala são os termos usados no feminismo contemporâneo, como a palavra empoderamento, que é o ato de adquirir ou dar poder. Ao observar a fala de Simone, pode-se perceber que não houve empoderamento da parte dela em relação à Ivana, pois ela não tenta trazer força ou importância para aquilo que a sua prima quer fazer ou atitude que quer tomar, podendo fazer com que ela não se sinta tão forte quanto ela pode ser. Além dela, outra palavra do feminismo contemporâneo que precisa ser analisada nessa cena é a sororidade, que diz respeito à relação de amizade e união entre as mulheres, como se fossem irmãs. Nesse sentido, Simone também não teve muita sororidade com sua prima Ivana, visto que criticou o fato de ela não dar atenção para um garoto, sendo que poderia ter argumentado que tudo bem ela não responder ou mandar algo para Cláudio. Já na segunda cena (Apêndice 2) escolhida para ser analisada, Ivana e Simone entram no quarto de Ivana e se sentam. Então Simone pergunta para ela se ela está arrependida de ter terminado com Cláudio, e Ivana se levanta e fecha a porta. Então, ela pergunta para sua prima “já passou pela sua cabeça que eu posso não ser uma mulher?”, e no decorrer da aconversa Ivana explica para Simone sobre ser transgênero. A garota se mostra confusa com relação aos termos, e entende como se Ivana fosse lésbica, mas Ivana destaca para sua prima qual é a diferença de ambos os termos, que ser lésbica significa gostar e querer se relacionar com outras mulheres, enquanto ser transgênero significa não se sentir encaixada no corpo no qual nasceu. Os elementos que foram percebidos e analisados na cena são: Ivana estar utilizando roupas largas; o fato de Ivana questionar se Simone já imaginou que Ivana pode não ser uma mulher; Simone afirmar que Ivana é uma mulher por já ter a visto nua; a confusão que Simone faz com relação aos termos transgênero e lésbica; o questionamento de Simone sobre quem falou para Ivana que ela não era uma mulher; o relato de Ivana sobre conhecer um transgênero; a compreensão que Simone tem com Ivana; a confiança de Ivana ao se identificar com o ser homem. Em relação à análise de discurso, a cena se passa novamente no quarto de Ivana, local onde ela se sente segura e protegida para fazer as suas revelações à prima. Ela também demonstra confiar em Simone, visto que fala tudo para ela, se abrindo e a explicando com paciência sobre não se sentir pertencente àquele corpo. No início da cena, antes de elas começarem a conversar sobre o assunto considerado mais delicado, Ivana se levanta e fecha a 50 porta do quarto, demonstrando o quão sério era o assunto que viria e também a confiança que ela tem em Simone, visto que mais ninguém da casa poderia saber sobre o que elas conversariam. Nessa cena, Ivana utiliza uma blusa mais larga, demonstrando mais afastamento de sua feminilidade e mais proximidade a sua masculinidade. Quando Ivana vai contar para sua prima que ela não é uma mulher, na verdade ela o faz em forma de pergunta. Isso faz com que ela tire um pouco do peso que teria em ela apenas contar esse fato, mas faz com que Simone sinta-se obrigada a se colocar na situação de Ivana, imaginando se ela poderia ser um homem ou não. Simone afirma que Ivana é uma mulher por já ter visto ela nua, e isso mostra o desconhecimento dela sobre os transgênero, bem como o fato de ela considerar Ivana uma mulher apenas pelo corpo que ela tem. Fica explícito no diálogo que Simone está confusa com a pergunta que Ivana faz a ela, fazendo inclusive com que ela se sinta um pouco chateada, quase chorando. No decorrer dessa cena podem-se observar dois aspectos: ou a negação que Ivana tem com o seu feminino, ou a liberdade que Ivana tem de poder ser da forma que ela se sente mais adequada e encaixada. Há mulheres que têm o seu feminino e sua feminilidade negados, e outras que, assim como Ivana, realmente não se reconhecem em um corpo de mulher, que são transgênero. Já as mulheres lésbicas, que Ivana cita na conversa com sua prima, sentem-se pertencentes àquele corpo, bem como não negam o seu feminino, aceitam ele, mas compreendem e aceitam que gostam de se relacionar com pessoas do mesmo gênero. Por estar disposta a mudar, tomar hormônios masculinos e tirar os seios, é interessante observar que Ivana na verdade está se dispondo a trocar uma máscara social que ela havia assumido. No momento em que ela decide transformar o seu corpo feminino para um corpo masculino, ela acaba recebendo uma nova máscara social, passando a ser tratada de forma diferente pelos outros e também a se enxergar de forma diferente, mas na forma a qual ela se sente pertencente. Além disso, ela busca, através da persuasão, conquistar o apoio de Simone, fazendo com que ela a entenda e a apoie em sua decisão. A comunicação que se deu entre as duas é construída, visto que Ivana se utiliza de falas normalizadas e institucionalizadas dentro do contexto delas para conseguir convencer Simone. Entrando no feminismo, da parte de Simone, primeiro houve certa desconfiança, ao perguntar quem havia dito para Ivana que ela não era uma mulher, como se a própria estivesse sendo persuadida por outra pessoa. Porém, depois que Ivana explica para Simone sobre a situação, é possível observar que Simone tem sororidade com sua prima, pois mesmo um pouco confusa e sem entender o que Ivana está falando, ela demonstra carinho e afeto com a próxima. Essa sororidade se mostra presente no decorrer das conversas delas, sempre com 51

Simone buscando compreender Ivana, sem julgamentos e atenta àquilo que sua prima explica para ela. Como Solnit (2017) citou, uma das definições do patriarcado é o controle rigoroso sobre a sexualidade feminina, e, além disso, pode ser o controle rigoroso sobre o ser mulher. Por um lado, estar inserida em uma sociedade patriarcal pode ter contribuído para que Ivana tenha demorado para se reconhecer como homem, e não como mulher. Por outro lado, o feminismo pode ter colaborado, pois ele busca ampliar os direitos civis e políticos das mulheres, fazendo com que elas sejam livres e trazendo a mesma igualdade dos direitos que os homens têm (Priberam, 2018). Cabe aqui a reflexão trazida na segunda onda por Betty Friedan (1971), que questionava o que era a feminilidade e o que era ser mulher. A visão de mulher projetada pela nossa sociedade hoje não era aquela na qual Ivana se sentia encaixada, e desde quando era jovem, com a sua mãe a chamando de princesa, ela não se sentia como uma. E, ainda conforme a autora, na época as mulheres se sentiam culpadas por não sentir a realização em cuidar da casa. Trazendo para a contemporaneidade, Ivana não se sentia realizada com os seus pais a tratando como uma princesa, nem com os seios e o corpo que tinha. Ainda na segunda onda do feminismo, em 1960, a ativista Carol Hanisch cria o “Feminismo Radical”, por perceber que as questões das mulheres não eram relevadas, mas sim consideradas secundárias. Ivana pode ter sentido isso durante sua vida, até descobrir que era transgênero, visto que muitas vezes falou para sua prima Simone sobre não gostar de seu corpo, e ela não dava a devida atenção para isso. Como fala Tiburi (2018), muitas mulheres passam um período de escravidão emocional e psicológica, e foi por isso que Ivana passou. A terceira cena analisada (Apêndice 3) foi uma das mais comentadas nas redes sociais, conforme já foi citado no decorrer do trabalho, é o momento no qual Ivana relata para a sua família que ela não é uma mulher. Nessa cena, estão presentes seus pais Joyce e Eugênio, seu irmão Ruy, sua prima Simone e a empregada da família Zu. Os elementos que foram percebidos e analisados na cena são: a forma direta como Ivana relata aos seus familiares que é um homem; a incompreensão de seus pais e de seu irmão; a alteração no tom de voz de Ivana. A conversa se passa dentro da sala da casa da família, um local já conhecido e confortável para todos, sem exposição para ninguém de fora. Além do núcleo principal familiar de Ivana, que são seus pais e seu irmão, só estão na cena Simone e Zu, que é empregada da família, mas não participa e não comenta nada no decorrer da cena. 52

A intenção na fala de Ivana é a sedução, pois ela busca, de forma estratégica, o apoio dos seus pais, fazendo com que eles acreditem e apoiem-na em sua decisão. Como uma estratégia de fala, Ivana vai direto ao ponto, comentando que não será fácil para ela falar, nem para seus pais ouvirem, e declara que não é uma mulher, é uma “trans”. A declaração de Ivana é direcionada principalmente para seus pais, o lugar de fala dela pode ser considerado prejudicado, visto que seus pais estão em uma posição hierárquica superior a ela dentro da própria estrutura familiar, que também faz referência ao tempo e ao lugar que a fala se encontra. Primeiramente, a reação que seus pais têm é a do desespero, principalmente de sua mãe, que acredita que Ivana está “louca” e que precisa chamar um médico. Mas no decorrer da conversa Ivana mostra sua posição bem definida, relatando que sempre brigou com o seu corpo, que não era seu, era um engano. A cena é longa, e durante ela é possível observar que o seu irmão Ruy comete o chamado manterrupting pelo feminismo contemporâneo, que é quando um homem interrompe uma mulher, não permitindo que ela conclua seu pensamento. Mas sua mãe também a interrompe bastante, na maioria das vezes para comentar que Ivana está “louca”. No caso de sua mãe, pode ser pela relação hierárquica que há entre as duas. Assim como Simone havia ficado confusa quando Ivana disse para ela que era um homem, Ruy indica que então Ivana é lésbica, e ela explica para ele que ela é trans. Ela ainda relata o quanto é ruim se sentir sem identidade nenhuma como uma mulher, e pede para sua mãe se imaginar no corpo de seu pai, sem poder ter o cabelo que tem e nem usar maquiagem. Essa estratégia utilizada por Ivana é uma tentativa de que sua mãe consiga ter um pensamento um pouco mais empático, se colocando no lugar da filha e imaginando como ela se sente em um corpo de uma mulher. O seu pai, Eugênio, que se mostra o mais calmo do ambiente, se aproxima de sua filha e com um tom de voz tranquilo ele pergunta se os hormônios que ela está tomando colocam umas ideias estranhas na cabeça dela. Nessa fala o que fica explícito é o cuidado que ele tem com Ivana, mas também fica implícito que na verdade ele está preocupado com o seu estado psíquico, como se ela realmente pudesse estar fora de si. Ivana se desculpa por ser uma decepção para eles. Na sequência, ela diz que não é a “princesinha” que eles queriam, que a “natureza blefou com todos”, e sua mãe, Joyce, reafirma que ela é sim uma princesa, mas com complexo de borralheira. Pode-se observar que essa comunicação realizada é espontânea, pois a reação que sua mãe tem é por não esperar ouvir aquilo que sua filha disse para ela. Ainda 53 assim, ela busca reafirmar uma máscara social que ela mesma criou para sua filha, a máscara da princesa, que gosta de usar vestido, salto, e que tem a feminilidade mais aflorada. Ivana relata que o hormônio que ela está tomando é testosterona e Ruy faz uma série de perguntas para sua irmã, como se ela quer ter barba, quer virar um homem com barba, com esses pelos, e ela relata que quer ser apenas quem ela é. Ao final da cena, Ivana reafirma que só quer ser ela mesma, e que veio apenas perguntar se a família dela a aceitaria, mas que já percebeu que não.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa realizada buscou estudar como as mulheres são representadas dentro das telenovelas, descrevendo suas relações, conversas e analisando o discurso apresentado. A escolha de o estudo ser realizado com as telenovelas é porque elas são programas populares existentes na televisão brasileira e porque a própria televisão é capaz de formar opiniões, mesmo que inconscientes, dos seus telespectadores. Então, a problemática dessa pesquisa é quais aspectos do discurso são utilizados e quais conceitos do feminismo são encontrados dentro das falas das personagens da telenovela A Força do Querer, e o estudo foi realizado através da análise do discurso da mesma. Para realizar a pesquisa de forma imparcial, escolheu-se uma personagem de destaque, que foi Ivana, em uma telenovela recente, A Força do Querer (2017), escrita por Glória Perez. Então, foram observadas três diferentes cenas, que tiveram destaque e comentários do público, principalmente online, conforme mostramos no decorrer dos capítulos. O teórico utilizado para que a análise se realizasse foi Charaudeau (2004), e através dele buscou-se identicar falas e gestos que os personagens realizassem, o tempo e o lugar no qual a fala estava inserida, a intenção de pesuasão ou sedução na fala, o que estava explícito ou implícito no discurso, o lugar de palavra de cada personagem, se a comunicação era natural ou construída e quais as armaduras ou máscaras sociais assumidas. Após a interpretação desses discursos, os mesmos foram comparados com os conceitos feministas empoderamento, sororidade, machismo, patriarcado, mansplaining, misoginia, manterrupting, bropriating, gaslighting e slut-shaming, analisando quais deles estavam presentes e quais estavam ausentes. Acredita-se que quanto antes os jornalistas auxiliarem na construção de uma sociedade mais igualitária, possivelmente o papel do profissional poderá contribuir para debates que estimulem a visão da pluralidade, do diálogo e da hamonia social. Como futura jornalista, essa pesquisadora pode corroborar para a análise do cenário atual e buscar formas para que isso seja diferente, afinal, a representatividade feminina é frágil no que tange a sua participação na cultura popular televisiva. As diferentes conotações pejorativas e estereotipadas são vistas como latentes na sociedade e isso deve ser percebido pelos estudiosos e estudiosas de comunicação, uma vez que somos responsáveis pelo conteúdo disparado no meio de massa. Uma das hipóteses iniciais era a de que a telenovela retratata um tipo de comportamento de mulheres de forma abusiva, misógina, sem sororidade, fazendo com que 55 isso estimule a visão machista na sociedade. Em alguns diálogos essa hipótese se confirmou, como, por exemplo, na primeira cena analisada, na qual Simone entra no quarto de Ivana e vê que ela está utilizando uma faixa para apertar seus seios. Houve falta de sororidade da parte de Simone, que busca encaixar Ivana dentro dos conceitos pré-estabelecidos pela sociedade, que ela mesma acredita ser como certos: sua prima precisa usar um vestido que “valorize” o seu corpo feminino, não um que a deixe sem peitos, além de considerar que Ivana precisa gostar de ter seios por ser uma mulher. Além disso, ao final da cena Simone acaba convencendo Ivana a trocar de vestido, demonstrando uma total falta de empatia da parte de Simone. Já da parte de Ivana, é possível observar uma postura de inferioridade à Simone, pois ela se sente desconfortável ao explicar os motivos de ela utilizar a faixa, mas se sente na obrigação de dar essa explicação para sua prima. Também na terceira cena analisada, na qual Ivana conta para os seus pais que não é uma mulher e que está tomando hormônios masculinos, essa falta de sororidade se repete, pois sua mãe não tem empatia com ela e não busca a compreender. Nela pode-se dizer que há um fator ainda mais grave, pois a mãe de Ivana a chama de louca, e essa fala ainda dá margem para o chamado gaslighting aplicado pelos homens, que faz com que a visão da mulher seja distorcida e ela passe a duvidar de sua própria sanidade mental. Então, esse diálogo aplicado na telenovela pode dar legitimidade para os homens que utilizam ou podem vir a utilizar desse discurso. Outro ponto a ser observado é a forma como Ivana é retratada. Como transgênero, ela evidencia que existem mulheres e homens que não se sentem encaixados dentro de um corpo, porém, falha em não trazer uma mulher que não se sinta encaixada dentro dos padrões de feminilidade estabelecidos pela sociedade. Mulheres que, por exemplo, não gostem de usar maquiagem ou vestido, mas que ainda assim se sintam confortáveis e encaixadas dentro do corpo de mulher. Ao retratar um trans, a telenovela deixa de abrangir as mulheres que não são trans, mas não estão dentro dos padrões femininos, podendo ser compreendido por alguns telespectadores que há apenas dois tipos de pessoas: as mulheres que estão dentro dos padrões femininos e as mulheres que não se sentem pertencentes ao seu corpo, que são transgênero. Ainda na última cena analisada, o machismo é reforçado, pois a mãe de Ivana é retratada como a histérica e o pai como o centrado, calmo e paciente, que utiliza tom de voz baixo e tranquilo. Joyce, a mãe de Ivana, se mostra descontrolada, grita em diversos momentos e chora, dizendo que não pode aguentar aquela situação. Esse espetáculo realizado por ela reforça a ideia construída na sociedade de que a mulher é mais frágil e mais descontrolada que os homens. 56

Nas três cenas observadas existe a negação do feminino por parte de Ivana. Alguns aspectos do feminismo contemporâneo podem considerar que essa negação do feminino não é correta, havendo certo julgamento com mulheres que viram homens, por diversos motivos, como, por exemplo, ela passar a se enquadrar dentro do gênero masculino e ser tratada pela sociedade como um homem, que aplica o patriarcado e o machismo com outras mulheres. Além disso, como homem, Ivan, como ele passa a se chamar, ele passa a ter benefícios sociais, pode usufruir da “superioridade” masculina, bem como estar em empregos que o paguem melhor, na mesma posição que uma mulher. Entretanto, pensando que ele já esteve na situação de uma mulher, pode ser que um transgênero colabore para uma sociedade menos machista, por já entender aquilo que as mulheres passam, principalmente sobre se encaixar dentro de padrões e sofrer julgamentos. Outro ponto é questionarmos por que as mulheres que viram homens são julgadas, mas os homens que viram mulher não são. Isso pode corroborar ainda mais para que o machismo seja reforçado na sociedade. Já outra hipótese era de que a telenovela retrata uma relação positiva entre as mulheres, estimulando um bom relacionamento entre o gênero. A única cena analisada que demonstra uma relação positiva entre as mulheres é na segunda, quando ao final da cena Ivana pede para Simone não contar para ninguém em casa que ela na verdade não é uma mulher, e sua prima demonstra sororidade e compreensão, falando que era óbvio que não contaria. Cenas como essa fortalecem a relação de amizade entre as mulheres. O problema de pesquisa foi atingido, pois ao analisar algumas cenas da telenovela A Força do Querer, foi possível trazer quais aspectos do discurso estavam sendo utilizados, bem como quais conceitos do feminismo poderiam ser encontrados dentro das falas dos personagens. O gênero situacional pode ser observado, a intenção na fala de cada pessoa, o lugar de palavra, se o discurso estava explítico ou implícito, as máscaras sociais carregadas por cada personagem, e se a comunicação dada era natural ou construída. Dos termos feministas mais observados, seja na presença ou na ausência, foram o empoderamento, a sororidade, o machismo, o patriarcado e o gaslighting. Como sugestão de melhoria para a pesquisa, acredita-se que também se deve analisar mais figuras femininas dentro das telenovelas, sejam protagonistas ou não, e observar como a relação delas se dá com os homens. O tema escolhido para a realização da pesquisa é considerado como relevante socialmente, principalmente para as mulheres, que sofrem violência física e psicológica. E, para além da causa social, como pesquisadora, acredita-se poder ter colaborado para um estudo desse cenário, que está incluído dentro da comunicação e que os profissionais da área 57 precisam estar atentos sobre a forma como a sociedade está sendo representada nos meios de comunicação, e não só na televisão. Essa investigação de como as mulheres são representadas nas telenovelas pode mostrar que o discurso exposto colabora para que o machismo continue sendo reproduzindo dentro da sociedade. Enquanto profissional do jornalismo, é possível modificar essa realidade, tanto no quesito particular da telenovela, quanto se expandindo para outros produtos midiáticos ou meios de comunicação. Estuda-se, confronta-se, enfrenta-se e muda-se a visão da sociedade sobre a forma como as mulheres se relacionam uma com a outra.

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IG SÃO PAULO. “A Força do Querer”: o machismo por trás de cada personagem. Portal IG, São Paulo, 26 jun. 2017. Disponível em: . Acesso em 14 abr. 2018.

LOVZ. Assita as 3 cenas mais polêmicas da novela “A Força do Querer”. 2017. Disponível em: . Acesso em: 14 abr. 2018.

MACIEL, Danielle. Rivalidade Feminina não! 6 jul. 2017. Disponível em: < https://www.oitomeia.com.br/colunas/tpm-tudo-pra-mulher/2017/07/06/rivalidade-feminina- nao/>. Acesso em: 15 set. 2018.

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MATTOS, Sérgio. História da televisão brasileira: uma visão econômica, social e política. 2a ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2002.

MELO, José Marques de. As telenovelas da Globo: produção e exportação. São Paulo: Summus, 1988.

MELLO, Adriana Ramos de. Feminicídio: uma análise sociojurídica da violência contra a mulher no Brasil. Rio de Janeiro: LMJ Mundo Jurídico, 2016.

MILLER, Mary Susan. Feridas invisíveis: abuso não-físico contra mulheres. 2. ed. Trad. Denise Maria Bolanho. São Paulo: Summus, 1999. Título original: No visible wounds.

SOARES, Nana. Em números: A violência contra a mulher brasileira. 7 set. 2017. Disponível em: . Acesso em: 12 set. 2018.

SODRÉ, Muniz. Televisão e psicanálise. São Paulo: Editora Ática, 1987.

SOLNIT, Rebecca. A mãe de todas as perguntas: reflexões sobre os novos feminismos. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. Título original: The mother of all questions.

TIBURI, Marcia. Feminismo em comum: para todas, todes e todos. 7a ed. Rio de Janeiro: Rosa dos tempos, 2018.

UNIVERSIDADE LIVRE FEMINISTA, Linha do tempo do movimento feminista. 2018. Disponível em: . Acesso em: 14 abr. 2018.

WAISELFISZ, Julio. Mapa da violência 2015 - homicídio de mulheres no Brasil. Disponível em: . Acesso em: 12 set. 2018.

WOLF, Naomi. O mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres. Trad. Waldea Barcellos. Rio de Janeiro: Rocco, 1992. Título original: The Beauty myth.

YIN, Robert K. Estudo de caso: planejamento e métodos. 2. ed. Trad. Daniel Grassi. Porto Alegre: Bookman, 2001. Título original: Case study research: design and methods.

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APÊNDICE 1 – CENA DO CAPÍTULO 14 DA NOVELA “A FORÇA DO QUERER”

Passado no dia 18 de abril de 2017, terça-feira, aos 31’40” Disponível em: . Acesso em: 8 de outubro de 2018

Simone: Hey! E aí, tá pronta? Ivana: Quase. Simone: Cê tem falado com o Cláudio? Já te falei que se você não der trela pra esse garoto ele vai arranjar outra! Cê pelo menos ligou pra agradecer as flores lindas que ele te mandou? Ivana: Eu vou ligar, calma. Simone: Tá. Deixa eu ver o vestido, vira pra cá.. Ivana, esse vestido tá te deformando! Ivana: Ah não, Simone! Você gosta dele, foi você que comprou comigo! Simone: Eu sei, mas hojé tá estranho, tá te deixando muito lisa aqui. Vamos trocar o sutiã? Deve ser o sutiã. Ivana: Para, Simone. Simone: Ivana, você amarrou um pano no seu peito? Ivone: Não é pano, é uma faixa. Simone: Uma faixa.. Prima, você já tem pouco seio, não precisa disso. Na praia já tava estranho, agora, com o vestido não tem nada a ver. Ivana: Não, mas é que eu não.. não gosto que marque aqui os seios. Eu não gosto. E esse vestido ele é meio justo, parece que desenha eles demais. Simone: Tô começando a acreditar que você pirou. Ivana: Simone, posso te fazer uma pergunta? Simone: Fala. Ivana: Não tem nada em você que você não goste? Que você procura, sei lá, esconder, disfarçar.. Simone: Claro que tem, mas o seio não, né. Ai, tanta mulher aí querendo turbinar, dar volume, e cê tá querendo deletar? Ivana: É, se eu pudesse eu deletava mesmo. Simone: Ivana, você é mulher. Mulher tem peito. Ivana: Tá bom. Vamo embora, Simone, vamo. Simone: Não, não, não, a gente vai trocar esse modelito que tá horrível. Ivana: Não, não, não, não! 62

Simone: Vamos sim, mocinha. Cadê aquele vestido preto e branco? Aqui, vai com esse, vai ficar linda!

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APÊNDICE 2 – CENA DO CAPÍTULO 101 E 102 DA NOVELA “A FORÇA DO QUERER”

Passado no dia 28 de julho de 2017, terça-feira, aos 50’53” Disponível em: . Acesso em: 8 de outubro de 2018

Simone: E a senhorita, hein? Já se arrependeu de ter terminado com o Cláudio, né? Não, porque eu não consigo engolir isso. Ivana: Simone, já passou pela sua cabeça que eu posso não ser uma mulher?

Continua no capítulo 102, passado no dia 29 de julho de 2017, quarta-feira, aos 00’01” Disponível em: . Acesso em: 8 de outubro de 2018

Simone: Que você pode não ser uma mulher? Ivana, oi?? Ivana: Eu tô falando sério. Simone: Prima, eu tô te vendo.. Que que é isso? A gente se conhece desde pequena, eu já te vi pelada várias vezes. Ivana, você é uma mulher. Ivana: É. Eu também não achava que eu poderia não ser.. Sempre que eu escutei a palavra trans eu achava que tava falando de travesti, de transformista. Simone: Sim. Ivana: É, mas trans é transgênero. É uma pessoa que nasce com um corpo de um homem ou de uma mulher, mas ele não se identifica. Ele não reconhece o próprio corpo, assim como eu. Só que eu nunca soube nominar isso. Simone: Quem foi que te falou que você é isso? Ivana: É que ontem eu conheci uma pessoa trans. Uma pessoa que nasceu com um corpo de uma menina, que foi criada como uma menina, mas sentia tudo isso que eu sinto.. esse vazio, essa coisa de se olhar no espelho e não se reconhecer, de rejeitar o próprio corpo. Só que ele.. ele não sabia nominar o problema. Ele não sabia o que era. E enquanto ele era uma menina ele era muito parecido comigo. As pessoas falavam que ele era desleixado, porque ele vestia roupa de homem, não de mulher. Ele também tinha esse horror que eu tenho de ter seio. Simone: Eu tô confusa. Eu não tô entendendo. Cê tá chamando ela de ele. Ahn? Ivana: É, Simone, porque é um homem. 64

Simone: Não, é uma lésbica. Ivana: Não, é um homem. Simone: Ivana... Ivana: Tá bem, eu nem vou te mostrar foto, eu quero que você conheça ele. Ele ficou um grande amigo meu, ele tá me ajudando muito. Simone: E essa questão aí que você tem com o próprio seio? Ele tem também? Ele amarra? Ele faz isso tudo? Ivana: Ele não tem mais. Ele tirou o seio. Simone: Ele tirou o seio?? Ivana: Calma, Simone, você vai entender! Eu passei a noite toda pesquisando isso na internet. E é como se as coisas tivessem se encaixado. E eu nunca me senti encaixada. Simone: É muita coisa pra absorver. Zu: Ivana, Simone, vamos ver se vocês acalmam essa confusão da Ritinha com a dona Joice? Ivana: A temperatura subiu ainda mais? Ivana: Não conta pra ninguém aqui em casa. Nem pra sua mãe. Simone: Isso cê não precisa pedir, né. Ai, vamo lá.

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APÊNDICE 3 – CENA DO CAPÍTULO 126 E 127 DA NOVELA “A FORÇA DO QUERER”

Passado no dia 28 de agosto de 2017, segunda-feira, aos Disponível em: . Acesso em: 8 de outubro de 2018

Ivana: Não vai ser fácil para eu dizer, não vai ser fácil pra vocês ouvirem. Eu não sou uma menina. Eu sou um trans.

Continua no capítulo 127, passado no dia 29 de agosto de 2017, terça-feira, aos 00’00” Disponível em: . Acesso em: 8 de outubro de 2018

Ivana: Vocês não tiveram uma filha. Eu nasci um menino. Joyce: Cê tá louca? Ruy: Não, não, não, pera aí. Que piração é essa, Ivana? Cê ficou louca? Ivana: Não, não é piração. Eu passei a minha vida toda brigando com o meu corpo, não aceitando ele, esse corpo não é meu, foi um engano. Joyce: Que droga é essa que cê tá tomando, Ivana? Ivana: Mãe, me escuta.. Por favor, você nunca me escuta. Simone: Gente, deixa ela falar. Joyce: Deixa ela delirar, você quer dizer né, porque isso é delírio, não tem outro nome. Ruy: Não, não, exatamente. Chama o psiquatra logo. Ivana: Vocês pensam que é fácil pra mim, dizer isso pra vocês? Vocês pensam que é fácil pra mim, viver isso? Simone: Ivana, calma. Tem que contar com calma, lembra. Joyce: E você, hein, Simone? Que eu sempre achei que fosse tão equilibrada. Eugênio: Para, para, para! Chega! Ivana, de onde você tirou essa ideia absurda? Ivana: O pai, eu só tô pedindo pra vocês me escutarem, só isso. Ruy: Nada, pai, surtou. Não tá vendo que ela tá surtando? Ivana: EU NÃO SOU UMA MULHER! EU SOU UM HOMEM! Eu nunca fui uma mulher, nunca. Ruy: Então você tá assumindo que é lésbica, é isso? 66

Ivana: Não, eu não sou lésbica. Eu sou um homem que nasceu assim, nesse corpo errado. Joyce: É um surto psicótico, Eugênio. É um surto psicótico, só pode ser. Simone: Ela é um trans, transgênero. Eu te expliquei o que é isso, lembra? Ivana: Eu passei a minha vida toda brigando com o meu corpo. Eu quis morrer quando começaram a nascer esses peitos aqui. Eu quis MORRER! Joyce: Você.. Você tá esmagando os seus seios com essa faixa? Ivana: Eu tô esmagando porque eu não consegui tirar. Eu falei isso pra você, mãe. Eu falei, mas você não quis ouvir. Eu passei minha vida tentando me achar no espelho, tentando me procurar no espelho, mas não me achando. Vocês sabem o que é isso? Se sentir um vazio? Sem identidade nenhuma? Estando nesse corpo que te humilha, que te incomoda, que te machuca. Como se você tivesse numa roupa que não é sua, que você pegou emprestada, mas meteram você lá e você NÃO CONSEGUE SAIR! Imagina você, mãe. Imagina você dentro do corpo do papai, tendo que se comportar como o papai. Não podendo ter esse cabelo, essa maquiagem, essas unhas. Tendo que se comportar como o papai, e as pessoas te exigindo que você sinta como o papai, que você seja com o papai, que as pessoas te olhem como.. Mãe, você ia pirar, você ia pirar. Como eu tô pirando!! Joyce: Não! Eu não tenho estrutura pra suportar isso! Eugênio! Ivana: Mãe, você não tem estrutura, mãe? Você, mãe? Eu é que não tenho! Eu passei a minha vida toda vivendo isso!! EU PASSEI A MINHA VIDA TODA! Ruy: Ivana, Ivana, calma! Ivana: Eu não escolhi nascer assim. Ruy: Cê tá jogando a culpa toda na mamãe! É isso? Ivana: Não! Eu não tô jogando a culpa na mamãe, eu não tô. Eu só vim aqui pra perguntar se vocês me aceitam. Eugênio: Ivana, minha filha, meu amor. Esse hormônio que cê tá tomando. Ele coloca umas ideias estranhas na cabeça da gente, não é? Ivana: Pai.. Eugênio: Filha, minha filha, minha filha. Ivana: Pai. Eugênio: Que? Ivana: Desculpa. Desculpa por eu ser uma decepção pra vocês. Eugênio: Você não é. Ivana: Mas foi um engano. Foi um engano. Eu não sou a princesinha que vocês queriam. Eu não sou. A natureza blefou com vocês e blefou comigo também! Você tá entendendo? 67

Joyce: Você é sim. Você É uma princesa! Você sempre foi uma princesa, com complexo de borralheira, mas agora você ultrapassou todos os limites, Ivana! Você tá louca! Louca! Eugênio: Joyce.. Joyce: Eu quero um MÉDICO AQUI, AGORA! Ivana: Espera, mãe! Espera pra chamar o médico! Espera que tem mais! E aí você chama o médico para o que você precisar e ele te medica. Vocês querem saber o que eu tô tomando? Vocês querem saber? Eu vou mostrar pra vocês o que eu tô tomando. Aqui. É testosterona. Eugênio: Hormônio masculino? Ruy: O que? Não, não. Você quer virar homem também? É isso? Ivana: Eu quero ser o que eu sou. Eu quero ser o que eu sou, o que EU SOU. E eu vou tirar esses peitos também! Joyce: VAI SE MUTILAR, IVANA! É isso que ela tá dizendo, gene. Vai se mutilar!! Ivana: Não, mãe, não! Porque eu já nasci mutilada! EU JÁ NASCI ASSIM! Eu só vou consertar o que tem conserto. Ruy: Não, eu não tô acreditando. Cê quer colocar assim, que nem eu tenho, barba. É isso mesmo? Bigode? Cê tá falando isso, Ivana? Cê quer colocar pelinho, barba? Ivana: Eu quero ser eu mesma. Eu quero ser que nem eu sou. E eu vim aqui perguntar pra vocês se vocês me aceitam! E eu tô vendo que não, que vocês não me aceitam.