Cadernos de Estudos Africanos

7/8 | 2005 Varia

Rui Mateus Pereira (dir.)

Edição electrónica URL: http://journals.openedition.org/cea/971 DOI: 10.4000/cea.971 ISSN: 2182-7400

Editora Centro de Estudos Internacionais

Edição impressa Data de publição: 1 Junho 2005 ISSN: 1645-3794

Refêrencia eletrónica Rui Mateus Pereira (dir.), Cadernos de Estudos Africanos, 7/8 | 2005 [Online], posto online no dia 29 agosto 2013, consultado o 02 maio 2019. URL : http://journals.openedition.org/cea/971 ; DOI:10.4000/cea.971

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SUMÁRIO

Artigos

Justiça e Reconciliação Pós-Conflito em África Patrícia Magalhães Ferreira

Campos de batalha da cidadania no Norte de Moçambique Marina Padrão Temudo

Os partidos políticos africanos no virar do milénio: um ensaio preliminar Manuel Maria Braga

Estado, Autoridades Tradicionais e Legitimidade Política: os parâmetros de um «casamento de conveniência» em Mandlakazi Vitor Alexandre Antunes Lourenço

Educação e Política em . Uma proposta de diferenciação social Maria João da Silva Mendes Ferreira

Da escola corânica tradicional à escola Arabi: um simples aumento de qualificação do ensino muçulmano na Senegâmbia? Eduardo Costa Dias

«Nyaneka-Nkhumbi»: uma carapuça que não serve aos Handa, nem aos Nyaneka, nem aos Nkhumbi Rosa Melo

A lusofonia no interior da África Central na era pré-colonial. Um contributo para a sua história e compreensão na actualidade Beatrix Heintze

Raça, Sangue e Robustez. Os paradigmas da Antropologia Física colonial portuguesa Rui M. Pereira

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Artigos

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Justiça e Reconciliação Pós-Conflito em África

Patrícia Magalhães Ferreira

Introdução

1 As questões da reconciliação após a existência de um conflito violento são hoje o cerne de muitos estudos referentes ao campo teórico da resolução de conflitos e daquilo que de forma mais vasta se designa por «estudos da paz» (peace research). No entanto, são análises muito recentes, ainda pouco sistematizadas, em parte pelo facto de a literatura existente tender a abordar de forma mais exaustiva as tentativas de obtenção de acordos entre as partes em conflito, do que propriamente os desafios mais vastos de implementação desses acordos no longo-prazo. O debate tem início desde logo no próprio conceito, de natureza complexa e de utilização relativamente recente: o que significa a reconciliação num contexto de construção da paz numa fase pós-conflito? Quais os caminhos, em que consiste?

2 Partindo do estudo de caso sul-africano, Brandon Hamber e Hugo van der Merwe (1998) identificaram cinco definições ou abordagens possíveis: uma de dissolução de identidades que se tinham tornado incompatíveis (no caso da África do Sul, identidades raciais criadas num determinado contexto político); outra baseada no entendimento inter-comunitário (apostar na comunicação e no estabelecimento de pontes entre comunidades com diferentes culturas, ideologias e histórias); uma terceira assente na ideologia religiosa (colocando o ênfase na confissão, na honestidade e no perdão entre inimigos); a quarta denominada de abordagem dos direitos huma-nos (segundo a qual deve existir uma interacção social reguladora, através do Estado de direito e da prevenção de que certas violações de direitos voltem a verificar-se); e uma última que encara a reconciliação como uma forma de construção da comunidade. Esta abordagem encara os conflitos como disruptores de uma rede de relações de interdependência anteriormente existentes nas comunidades, pelo que a reconciliação passaria por um processo de recuperação da confiança e de reconstrução de laços interpessoais e intergrupais, essencialmente ao nível local. Neste âmbito, admite-se que existam mecanismos e factores psicosociais que

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tenham grande influência sobre como e quando a reconciliação contribui efectivamente para a restauração da ordem social, embora os estudos sobre esta questão ainda estejam pouco sistematizados (como exemplo refira-se BRECKE, 2003)

3 A discórdia está, antes de mais, no significado do próprio conceito.Por exemplo, enquanto alguns autores encaram a reconciliação como um processo de acomodação entre pessoas ou grupos anteriormente com perspectivas e interesses antagonistas (KRIESBERG, 1998), outros criticam esta abordagem estática, preconizando a necessidade de uma reconciliação pró-activa, que se insira na dinâmica das relações (aquilo que Lederach denomina de «sistema de conflito»), por forma a criar novas percepções e novas experiências partilhadas entre os grupos em confronto. Só assim, segundo o mesmo autor, poderá ter lugar uma «transformação do conflito» – conceito que assente no pressuposto da paz como processo dinâmico e não-finito, em que os conflitos sociais não são nem fenómenos de curto-prazo, nem podem ser eliminados permanentemente, mas antes devem ser alvo de uma transformação no sentido de melhorar a comunicação e compreensão mútua entre grupos sociais, promovendo formas não-violentas de expressão das tensões sociais.

4 Num outro plano de análise, a recociliação representa para alguns autores um processo contínuo que está no centro das actividades de construção da paz ou uma ferramenta para a transformação das dinâmicas negativas do conflito em dinâmicas positivas de paz; enquanto para outros, é um fim em si mesmo dessas actividades. Para Oberg (1996), reconciliação é algo que está inserido dentro do conceito de «reconstrução» pós-conflito, uma vez que esta não constitui algo apenas ligado a estruturas físicas: é a reconstrução de seres humanos, da estrutura social, da cultura, do ambiente e de uma cultura de paz e respeito que conduza a uma coexistência pacífica. Já Johan Galtung (1998) encara a reconciliação como um dos elementos essenciais à estabilização e ao progresso em situações pós-conflito, sendo os outros dois a resolução e a reconstrução, formando o conjunto dos três «R», em que a omissão de um compromete a obtenção dos outros dois.

5 Com efeito, vários autores argumentam que a reconciliação nacional não é uma forma completa de promover a transformação ou resolução duradoura do conflito, ou seja, que não constitui condição suficiente para a construção da paz. O paradigma das necessidades humanas defendido por Burton (1990) e por vários especialistas com profunda experiência de terreno, apresenta uma série de necessidades importantes para os seres humanos – como o sentido de segurança e de identidade, de reconhecimento e de relações sociais com valor – que estão interligadas com o contexto e com as instituições sociais existentes. Se as necessidades estão a ser asseguradas por determinada instituição, esta recebe apoio, consolida-se e perpetua-se; de onde se conclui que a reconciliação nacional só pode completar-se se a ordem política e social for percebida pela generalidade da população como legítima. Estas necessidades devem estar no cerne da teoria e da prática de construção da paz (peacebuilding), pelo que as reformas sociais necessárias em países que passaram por situações prolongadas de conflito violento vão, segundo Burton, muito para além dos convencionais modelos ocidentais de governação. E daí que iniciativas como a formação de Comissões de Verdade e Reconciliação constituam apenas pontos de partida para processos de transformação social que preencham (em vez de frustrarem) as necessidades humanas e que permitam que as instituições de sociedades em transição adquiram uma legitimidade de longo-prazo (LERCHE, 2000).

6 É hoje praticamente consensual que a resolução de conflitos, para ser efectiva, deve actuar aos vários níveis e com os diversos actores – «top-level approach» (líderes políticos e

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outros cargos de alta chefia), «middle-range approach» (figuras com autoridade que têm um papel central na educação, saúde, ou outras actividades reconhecidamente importantes), e «grass-roots approach» (pessoas envolvidas nas comunidades locais). Relativamente ao primeiro nível de abordagem, a situação torna-se ainda mais complexa pelo facto de os países em fase de resolução de um conflito estarem, muitas vezes, simultaneamente numa fase de implementação de transições rápidas entre uma governação autoritária e/ou ilegítima e um regime democrático . Os regimes pós-conflito estão interessados não só em sarar as feridas do passado, mas também normalmente em distanciarem-se dos seus predecessores ou da maior parte dos aspectos da fase anterior de conflito, aumentando a sua legitimidade e apoio ao nível social. Sendo o equilíbrio político e social pós-conflito frágil, alguns governos tentam promover a paz a todo o custo, descurando elementos estruturais importantes, que podem significar mais tarde o ressurgimento da violência. Se por um lado, exigências excessivas de acusação e julgamento de culpados podem interromper a transição e conduzir a novos conflitos ou golpes de Estado, por outro lado, a concessão de amnistias generalizadas pode frustrar as expectativas sociais e afectar a credibilidade futura da democracia.

7 Verificamos assim que a ambiguidade de muitos processos formais e nacionais de reconciliação deriva exactamente do contexto político transitório em que muitos destes programas são concebidos e implementados (Lerche,1999), por várias vezes limitados pelas condições e natureza dos acordos de paz assinados. E, nesse sentido, a reconciliação nacional enquanto exercício político pode, ao pretender encerrar o passado, salvar o Estado, mas não necessariamente «curar» a sociedade. De tal forma que o surgimento posterior de fenómenos de violência, nomeadamente de aumento da criminalidade, em algumas destas sociedades, pode estar relacionado, por um lado, com processos de transição democrática pouco consolidados e, por outro lado, com processos de reconciliação que se reduziram ao interface perpetrador-vítima sem equacionarem devidamente as questões da cultura de violência e das suas repercussões ao nível social (SIMPSON, 1997 e 2000)

8 Autores como Donna Pankhurst (1999), Charles Lerche (1999) ou Hamber e van der Merwe (1998) enfatizam a importância das condições económicas e políticas em que decorre o processo de reconciliação, o qual não é senão uma parte da agenda mais vasta de mudança política que permita promover a boa governação a assegurar a credibilidade interna e externa dos novos regimes. Estes autores preconizam uma abordagem da peacebuilding que engloba a necessidade de transformação das relações Estado-sociedade, por forma a que as instituições políticas sejam no futuro capazes de mediar os interesses dos vários grupos sociais de uma forma mais equitativa, justa e, principalmente, não- violenta. Um contexto social em que a violência não seja encarada como a resposta funcional e normal à existência de tensões é algo que deve ser prosseguido pelos novos governos, através daquilo que Lerche (1999) denomina de «paradigma da reconciliação pró-activa». As questões sobre qual o modelo de governação é o mais adequado e quais as políticas que devem ser prosseguidas nesse sentido (aos mais diversos níveis da sociedade), é algo que difere consoante as condições específicas de cada situação pós- conflito, mas todos os autores referem a necessidade de reformas estruturais (institucionais, políticas e económicas) que promovam a justiça social.

9 A maior parte da literatura existente diz respeito a sociedades com fracturas sociais profundas, delineadas ao longo de linhas étnicas ou religiosas, em que as clivagens estruturais de discriminação e victimização, a reconstrução da História e os ciclos

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recorrentes de violência marcam percepções mútuas e identidades fortemente cristalizadas. Daí que o grosso da produção teórica neste campo (derivado em muito dos estudos de caso que marcaram a década de 90: Grandes Lagos e Balcãs) se relacione com o tipo de regime pós-conflito, nomeadamente no que respeita à criação de governos de unidade nacional e de acordos de partilha de poder – p.ex. a questão subjacente da inclusividade das diversas forças através de frágeis equilíbrios políticos, a proporcionalidade dos cargos entre etnias, etc. (GURR, 1993 e 2001; ROTHCHILD, 1997; ADEKANYE, 1998). Para além disso, na generalidade das situações pós-conflito em que o acordo de paz marca muitas vezes o início de uma nova fase política, as questões de consolidação da paz jogam-se desde logo em dois planos distintos: um de curto-prazo – mais ligado a questões de segurança, reassentamento das populações deslocadas e desarmamento dos soldados —, e outro de longo-prazo, materializado numa série de questões estruturantes como a reconstrução económica e social, o reforço das instituições democráticas, o respeito pelos direitos humanos, e outras.

Reconciliação e Justiça

10 O debate teórico reflecte a existência de uma tensão entre estes dois conceitos e, em muitos casos, diz respeito à escolha da reconciliação ou da justiça quase como categorias de exclusão mútua, ou seja, por um lado os que advogam a importância primordial da reconciliação entre os antigos contendores, mesmo que isso implique a existência de amnistias ou perdões sem punição dos responsáveis por crimes de guerra ou atrocidades cometidas por regimes não-democráticos e, por outro lado, os que dão primazia à punição judicial dos culpados, sem a qual afirmam não ser possível uma paz duradoura.

11 Para além de existirem diferentes tipos de expectativas sobre o que é que constitui justiça e qual a viabilidade de estabelecer esses mecanismos em diferentes contextos sociais e políticos, não há actualmente qualquer teoria normativa ou dedutiva sobre as hipóteses de sucesso das diferentes combinações entre justiça e reconciliação pós-conflito. Há, no entanto, um conhecimento empírico importante derivado de casos práticos, dos quais se destacam, por um lado, os processos de justiça pós-conflito levados a cabo em vários países da América Latina (Chile, Argentina, El Salvador, Guatemala) e por outro alguns processos na África Subsaariana. Destes, a principal constação deriva da variedade de experiências e combinações de aborda-gens possíveis: desde o Ruanda, considerado um exemplo de justiça sem reconciliação, ou seja, em que o governo assumiu a responsabilidade de acusar e julgar a maior parte dos que participaram nos massacres; passando pela África do Sul, encarada como modelo de reconciliação sem processo de justiça no seu sentido formal/judicial; até ao caso da Serra Leoa, onde se ensaiou uma combinação mais abrangente de estratégias, incluindo simultaneamente um Tribunal Internacional e uma Comissão de Verdade1.

12 De toda a literatura existente sobre a utilidade, funcionamento e repercussões sociais das Comissões de Verdade e Reconciliação, a principal conclusão, não obstante o facto de serem muito variadas em termos de pressupostos de funcionamento, recursos e apoios, reside no facto de terem obtido graus de sucesso consideravelmente díspares. Estas entidades, não abrangendo procedimentos criminais de punição como os tribunais internacionais, situam-se, como refere Martha Minlow (1998) algures no continuum moral, político e emocional entre vingança e perdão, preconizando formas alternativas de justiça que colocam o enfoque central na procura da verdade – «justiça de transição»,

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«justiça reconstituinte», «justiça retroactiva» – e que têm sido abordadas por diversos autores: Assefa (1993), Skaar (1999),Tutu (2000), Hayner (1996). A maioria destes autores considera a justiça como condição necessária mas não suficiente para a reconciliação, já que as questões da verdade e do perdão são também centrais num contexto de pós- conflito, embora também não haja clareza quanto ao papel efectivo que desempenham num processo de reconciliação que se pretende «nacional» e «intergrupal», mais do que «interpessoal».

13 A complexidade e multiplicidade de verdades é uma questão importante, já que as diversas partes têm versões próprias e por vezes competitivas do que «realmente aconteceu», para além de que a procura da verdade num processo de reconciliação esbarra normalmente com «várias verdades» consoante o tipo de memórias e de pro‐ tagonistas: a verdade histórica, verdade moral, verdade factual ou forense, verdade pessoal ou narrativa, verdade social, etc. (Villa-Vicencio e Verwoerd, 2000). Na África do Sul, onde a garantia de amnistia em troca dos testemunhos constituiu um dos aspectos mais controversos do funcionamento da Comissão, o Arcebispo Desmond Tutu (1999) argumentou que «a liberdade tinha sido trocada pela verdade». No mesmo sentido, Heribert Adam (1998) fala de negociar a troca de justiça por verdade, o que conduz à questão ética de a verdade ser um bem que pode ou não ser comercializado – e se pode, para que fins e a que preço. Para uns, a verdade constitui uma espécie de seguro contra qualquer possibilidade de amnésia colectiva, uma vez que depois da Comissão de verdade e reconciliação sul-africana, ninguém no país poderá alegar desconhecimento dos factos. Para outros, como Desmond Tutu, o único preço razoável é a possibilidade de comprar a paz, trazendo com ela a reconciliação e até possivelmente o perdão, o que constitui uma opção em sua opinião mais eficaz do que a existência de julgamentos «tipo-Nuremberga» ou a garantia de amnistias sem condições «tipo-Chile» Esta perspectiva parece ir de encontro à concepção de Monteville, um dos principais teóricos dos conflitos e da reconciliação do ponto de vista psicosocial, que condensa o processo de reconciliação na fórmula de soma entre a consciencialização, contrição e arrependimento dos perpetradores, por um lado, e perdão das vítimas, por outro.

14 Com efeito, vários autores que abordam as questões da reconciliação direccionam o seu discurso sobre justiça para uma linguagem de terapia e cura, ou para o discurso moral e religioso do perdão, o que assenta claramente nos conhecimentos terapêuticos da psicologia individual, bem como nos princípios cristãos de relacionamento entre indivíduos. Ora é precisamente na tentativa de aplicar o que pode ser eficaz no relacionamento interpessoal do ponto de vista terapêutico, ao nível colectivo da soci‐ edade ou ao nível nacional, que a questão da reconciliação parece perder clareza e tornar- se mais ambígua como abordagem de construção da paz (peacebuilding)2. Enquanto autores como Winslow (1997) defendem que a cura individual é claramente independente de uma reconciliação colectiva, outros, como Lederach, Montville e Wilson têm lançado algumas pistas em sentido contrário, partindo essencialmente da análise dos efeitos da Comissão sul-africana ao nível da consciência colectiva e de outros aspectos da sociedade. A assumpção de que a verdade conduz naturalmente ao perdão e à reconcliação, levando também por conseguinte à «cura da sociedade», assenta na concepção «durkheimniana» desta enquanto organismo que pode estar doente ou saudável, tendo originado grande questionamento por parte de vários cientistas sociais. Mais uma vez, a literatura existente levanta mais questões do que sugere respostas.

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15 Para além disso, só muito recentemente se começa a dar atenção a algumas abordagens que tentam conciliar a necessidade de justiça com o objectivo de reconciliação num contexto de construção da paz, como certas iniciativas de organizações da sociedade civil — por exemplo organizações de mulheres que medeiam tensões entre comunidades –, ou como a existência de mecanismos locais de resolução de conflitos, muitas vezes descurados pelo poder central, mas com grande papel na reintegração de ex-soldados e no exorcizar de traumas de guerra através de rituais específicos (Alcinda Honwana, 1999 e 2003). Assim, no plano teórico, a resolução de conflitos assente no valor da cultura local e das abordagens tradicionais locais, surgida no início dos anos 90, é actualmente aplicada também à construção e reforço da paz em situações de pós-conflito. Partindo da defesa que as percepções (de nós e dos outros) são elas próprias fundamentais para a paz e relacionando a construção da paz com o desenvolvimento, Adam Curle introduz em 1995 essa ideia de construção da paz e «cura da violência» a partir do individuo e da comunidade em que este se insere, correspondendo ao conceito de «citizen peacemaking». Ligado a este está o maior contributo que Lederach ofereceu ao campo teórico da resolução de conflitos – a noção de «empowerment», ou seja, de que as pessoas de uma dada comunidade envolvida num conflito acumularam ao longo do tempo e têm em si próprias um conhecimento profundo e capacidades de desenvolver as estratégias apropriadas para resolver esse mesmo conflito. A intervenção externa e a resolução de conflitos devem, assim, alterar o enfoque central do seu pensamento e actuação, de uma prescrição de receitas e soluções, para promover a utilização e reforço dos mecanismos, recursos e modalidades de construção da paz que já existem dentro do contexto social em causa (Lederach, 1997).

16 Muitos destes mecanismos tradicionais de justiça e reconciliação, inicialmente destinados a resolver contendas de terras ou outras disputas sociais ao nível local, foram destruídos com a guerra, pretendendo-se agora a sua restauração em moldes similares, como acontece relativamente aos tribunais locais «gacaca» no Ruanda, ou o círculo de sábios « abashingantahe» no . No entanto, o recente despertar do interesse das grandes agências doadoras por estas iniciativas locais gera igualmente efeitos perversos relativamente à presença, pressão e financiamento internacionais, já que, num contexto em que não exista um conhecimento e compreensão profunda da política local e do tecido social em causa, podem mesmo originar uma distorção das dinâmicas locais e afectar a credibilidade de todo o processo de reconciliação.

Perdão ou Castigo: Moçambique e Ruanda em pólos opostos

17 Perante o fim do conflito, qual a abordagem mais adequada à promoção de uma reconciliação efectiva, que tenha um efeito preventivo relativamente ao possível res‐ surgimento da violência? Como lidar com o legado dos abusos de direitos humanos existente após a guerra?

18 Cada caso é único, dependendo a abordagem de uma multiplicidade de factores tais como as causas, natureza e contextualização do conflito nas suas diversas fases (início, decurso e término), a composição do próprio tecido social a diversos níveis (político, económico, social), a existência de uma série de elementos históricos e sociológicos nas relações

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intergrupais, o papel desempenhado pelos diversos actores no conflito e na sociedade, etc.

19 Aescolha situa-se normalmente entre quatro grandes opções: (i) a implementação de uma estratégia de julgamento e punição dos culpados, no caso de se considerar que a gravidade dos crimes cometidos é de tal ordem que a justiça é o valor primorial a ser prosseguido; (ii) a opção de agir no sentido de iniciar uma nova fase da vida do país sem olhar ou recordar o passado, considerando que o esquecimento é a melhor via; (iii) a promoção de abordagens que valorizem a verdade e a existência de perdão entre perpetradores e vítimas – normalmente através de Comissões de Verdade e/ou de outros mecanismos locais; (iv) ou ainda uma combinação das anteriores (com excepção da opção ii), de acordo com o que se considera mais adequado a cada caso. Os países podem ainda oscilar entre as diversas opções, uma vez que no caso ruandês apenas se evoluiu para uma combinação de estratégias após a percepção de falhanço da primeira abordagem, que havia sido considerada como a prioritária logo após o genocídio.

20 Na África Subsaariana temos hoje exemplos destas várias opções, os quais derivam desde logo da natureza dos próprios conflitos.

21 Num dos pólos, Moçambique parece constituir um caso sui generis de reconciliação «sem justiça». Com efeito, imediatamente após o conflito, a paz estendeu-se praticamente a todo o país e as questões de consolidação do cessar-fogo a curto-prazo processaram-se de forma relativamente fácil, tais como a entrega de armas por parte da população e a reintegração dos soldados e dos refugiados nas comunidades. As explicações são múltiplas e interligadas.

22 Em parte, porque o conflito não derivou de rupturas profundas no plano societal, como fracturas étnicas ou religiosas, que marcam divisões de difícil reparação entre famílias e comunidades. Isto pode eventualmente ter facilitado um maior nível de integração do tecido social que favorece um processo natural de reconciliação. Não havendo um «outro» diferente de «nós» a quem culpar, a reconciliação teve de ocorrer ao nível da raíz, isto é, no seio da família, da comunidade, da aldeia. No fim do conflito, os antigos protagonistas, exauridos pela guerra, encontravam-se igualmente pobres e sem perspectivas de futuro, pelo que regressaram à rede familiar e local, enquanto os discursos políticos convergiam para a necessidade de unidade, não existindo aproveitamento político ou apelo à divisão regional ou étnica.

23 Por outro lado, toda a população esteve envolvida na guerra, sendo vítimas mas simultaneamente intervenientes, em muitos dos casos forçados quer pelo serviço militar obrigatório do lado governamental quer pelo recrutamento forçado da Renamo. Os exemplos de jovens que foram coagidos a assassinar os parentes ou vizinhos como ritual de fim do treino militar, são inúmeros. Neste sentido, é possível que o esquecimento tenha sido adoptado como uma forma de perdão para actos individuais que na comunidade reconheciam ter sido, directa ou indirectamente, forçados.

24 Com efeito, apesar de no Acordo de Paz a justiça ter sido sacrificada em nome da necessidade de enterrar o passado e preservar uma paz inclusiva — através da concessão de uma amnistia geral —, vários autores como Alcinda Honwana ou Chicuecue salientam a importância que os mecanismos locais de restauração da confiança e de reconciliação tiveram ao nível da transformação social no sentido de uma dinâmica positiva de paz. Estando os conceitos de guerra e de vingança conotados com espíritos e forças negativas exteriores aos próprios indivíduos e que podem contaminar toda uma comunidade, a

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violência foi encarada como uma patologia que necessitava de cura, tal como outra doença. Assim, os curandeiros tradicionais foram essenciais na condução de inúmeras cerimónias e rituais destinados a purificar os indivíduos (tanto vítimas como perpetradores) e «retirar-lhes a guerra», permitindo assim cortar as ligações ao passado, reintegrá-las na comunidade e reiniciá-las numa nova fase dos relacionamentos interpessoais. Esta abordagem, ainda que tenha sido no geral bem sucedida, levanta, contudo, questões relativas aos custos futuros da negação do passado e da própria cultura de impunidade, já que permanecem na sociedade moçambicana factores estruturais de crise que não foram devidamente equacionados ao longo da última década.

25 No pólo oposto, o caso ruandês ilustra a prossecução da justiça sem reconciliação. A existência de fracturas profundas entre grupos sociais, que foram sendo reforçadas ao longo de decadas de violência e de rigidificação das identidades étnicas, conduziram, em 1994, à existência de um genocídio, em que o grau e intensidade das atrocidades cometidas tornaria a convivência intergrupal praticamente impossível se vies-se a imperar uma cultura de impunidade na sociedade ruandesa. Neste contexto, a justiça torna-se um valor inegociável, pelo que as abordagens posteriores foram no sentido de restaurar rapidamente o sistema judicial ruandês e instaurar ao nível internacional um processo de julgamento dos mais altos responsáveis pelos crimes contra a humanidade e crimes de guerra que representassem violações claras das Convenções de Genebra3. Optou-se, assim, por estabelecer um tribunal do tipo-Nuremberga em Arusha, para julgamento de altas individualidades implicadas no genocídio, enquanto os tribunais ruandeses se encarregariam de julgar os detidos nas prisões do país.

26 No entanto, a herança do genocídio e os problemas práticos que foram surgindo tornaram estas tarefas quase impossíveis de cumprir no curto-médio prazo. Por um lado, o sistema judicial ruandês tinha sido completamente destruído: não existiam instalações condignas; muitos juízes e advogados tinham sido mortos, fugido do país ou estavam eles próprios implicados nos massacres; as prisões ruandesas não tinham quaisquer condições para albergar os mais de 150 mil detidos, enquanto muitos mais teriam de ser acusados de participar num massacre que acabou por envolver vastas camadas da população. Por outro lado, o Tribunal Penal Internacional para o Ruanda (TPIR), estabelecido pela resolução 955 do Conselho de Segurança das Nações Unidas em Novembro de 1994, debateu-se desde o início com dificuldades processuais e administrativas que tornaram a sua acção demasiado morosa. Registam-se algumas vitórias simbólicas, como a condenação do ex-primeiro ministro ruandês, , que confessou ter participado em reuniões de planeamento do genocídio e incitado à sua realização. Mas o facto de até hoje os processos julgados serem escassos4 e de o tribunal estar situado fora do território ruandês, sem que os ruandeses tenham qualquer papel na decisão de quem deve ser acusado, contribuiu para descredibilizar a instituição aos olhos da população5. Nos últimos anos, os montantes despendidos em apoio aos acusados e o facto de não haver qualquer garantia de segurança para as testemunhas no regresso da Tanzânia para o Ruanda granjearam um coro de críticas contra a actuação deste órgão internacional, para além de que existe um grande desconhecimento sobre a evolução dos processos e dos julgamentos. O facto de não ser possível aplicar a pena de morte – tal como estabelecido pela lei internacional – enquanto essa possibilidade existe nos tribunais ruandeses (foi aliás já aplicada por cerca de 700 vezes), introduz igualmente um critério de desigualdade que muitos encaram como um factor de discriminação social: penas mais leves, melhores condições de detenção, vantagens processuais e melhor defesa dos direitos dos acusados,

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que por várias vezes motivaram a suspensão da cooperação com o Tribunal por parte de diversas associações de vítimas e grupos de sobreviventes do genocídio. Para muitos, o Tribunal não passa de um mecanismo estabelecido pela comunidade internacional para se absolver a si própria das responsabilidades que em 1994 simplesmente ignorou – percepção que é, aliás, reforçada pelo facto de o TPIR não ter sido ainda capaz de esclarecer muitas questões relativas ao planeamento, mecanismos, cronologia, organização e financiamento do genocídio, que seriam essenciais para o cumprimento do seu mandato.

27 No plano interno, o sentimento de desilusão tornou-se igualmente forte, uma vez que o frágil sistema ruandês revelou-se incapaz de lidar com o volume de suspeitos, tendo numa década julgado 6.500 pessoas, enquanto 85.000 permanecem detidos a aguardar julgamento6, com consequências económicas significativas. Impunha-se, portanto, uma outra solução, que resolvesse o problema de aplicação da justiça e incentivasse a reconciliação ao nível local e nacional. Contudo, num contexto em que o tecido social ficou quase completamente destruído, poucas instituições reuniam as condições para o fazer. Facilmente se percebe que a Igreja não tenha podido assumir um papel de mediação como em Moçambique, ou de liderança da reconciliação,como na África do Sul, uma vez que apesar de o Ruanda ter uma das maiores percentagens de população católica em África (cerca de 62%), os membros da igreja estiveram fortemente implicados no genocídio. Muitos padres incitaram à violência ou participaram activamente nos esquadrões da morte, seja por medo, seja por estarem integrados na estrutura de poder que o genocídio pretendia defender, pelo que qualquer discurso no sentido do perdão ou da reconciliação está à partida desacreditado.

28 A opção de reavivar mecanismos locais de resolução de conflitos foi, portanto, a mais exequível e óbvia a adoptar, paralelamente ao processo de descentralização política já em curso. O sistema tradicional dos gacaca existe desde o período pré-colonial e, embora tenha perdido a sua posição proeminente com a introdução das práticas judiciais ocidentais durante a época colonial, permaneceu como uma prática local importante de resolução de «questões menores», tais como divergências de família, disputas de gado, questões de propriedade e outras, até à data do genocídio. O objectivo principal destes «tribunais», constituídos por um conselho de sábios com autoridade reconhecida no seio da comunidade, era a restauração da ordem social através da reintegração do culpado novamente nessa comunidade, sendo os actos punitivos encarados como parte integrante dessa reabilitação7.

29 Estas instituições foram sendo reavivadas ao longo dos últimos quatro anos, agora para julgar crimes de maior gravidade. Embora o processo se esteja a revelar extremamente moroso – só 10% destes tribunais estão operacionais8 – a adesão e apoio da população revelou-se estrondoso, sendo que até Março de 2004 foram registadas 60 mil confissões. Ao contrário do caso sul-africano, em que a confissão era condição suficiente para a aministia, no Ruanda, o acto de contrição (pedido de desculpas e manifestação de arrependimento) foi mantido na lei dos gacaca como componente fundamental da reconciliação entre vítima e perpetrador.

30 A compensação está igualmente prevista na legislação, sendo paga individualmente pelo culpado, por exemplo sob a forma de serviço comunitário – reconstrução das casas destruídas, trabalho agrícola e outros. Isto significa uma maior ligação à comunidade e à própria vítima, ao contrário do sistema sul-africano, em que as compensações eram pagas pelo governo, cujos membros faziam, na sua maioria, parte da população vitimizada.

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31 É ainda prematuro avaliar o impacto destes tribunais no processo de justiça e reconciliação no Ruanda. No entanto, o sistema tem desde logo uma falha importante devido à sua falta de abrangência, já que pode apenas julgar os perpetradores do genocídio (na sua maioria ), mas não os crimes cometidos no leste do território pelos soldados da Frente Patriótica Ruandesa (FPR), que posteriormente tomaram o poder9.

32 A aplicação de uma visão parcial da justiça, ou seja, aquela que é defendida pelos vitoriosos, pode vir a afectar os níveis de participação da população hutu e corroer as perspectivas de reconciliação no longo-prazo.

33 Por outro lado, a abordagem ruandesa relativamente à construção da paz contrasta claramente com a do vizinho Burundi, actualmente no decurso de um processo de paz que teve início na assinatura dos Acordos de Arusha de 2000. Apesar da composição social e étnica idêntica, os Acordos de Arusha adoptam claramente a perspectiva de um país assente em duas comunidades distintas, entre as quais deverão existir uma série de regras – nomeadamente de partilha do poder político e militar –, enquanto o regime ruandês escolheu a visão de um Estado unitário, com um único povo, em que não há lugar a vozes distintas ou a disposições específicas para as duas comunidades.

A abordagem combinada da Serra Leoa

34 Para além dos casos referidos, existem actualmente em África dois exemplos mais recentes de abordagens que se pretendem abrangentes, tentando combinar uma série de instrumentos legais para a prossecução da justiça, com o objectivo central de promover a reconciliação pós-conflito. São eles a Serra Leoa e, numa fase ainda embrionária e com base no primeiro, a Libéria.

35 Na Serra Leoa, a evolução de uma situação em que a ajuda de emergência e as questões de segurança eram a prioridade central imediatamente após o conflito, para uma fase em que a restauração da legitimidade governamental e do Estado de Direito se tornam aspectos essencias da reconstrução do tecido social, colocaram o sistema judicial no centro das preocupações internacionais. A exigência de justiça e a fraqueza das estruturas nacionais levou à adopção de uma abordagem mista, estabelecendo simultaneamente um Tribunal Internacional Especial10 para julgamento dos crimes de guerra cometidos por líderes políticos e militares após 30 de Novembro de 199611, e uma Comissão de Verdade e Reconciliação, destinada a constituir-se como plataforma para o relato de experiências traumáticas por parte das vítimas e para o perdão dos perpetradores que a procuram, sem qualquer poder legal de acusação ou punição. O objectivo principal da Comissão era investigar as causas e naturaza das violações dos direitos humanos desde 1991 e restaurar a dignidade das vítimas, com especial atenção aos crimes de abuso sexual e ao segmento das crianças-soldado, no sentido de formular recomendações a serem implementadas por um Comité já previsto no Acordo de Paz. O objectivo parece ser o de caminhar no sentido do perdão, mas nunca do esquecimento, já que as atrocidades cometidas, em especial pelos rebeldes da Frente Unida Revolucionária, estarão por muitos anos patentes em marcas físicas irrefutáveis, como as amputações.

36 O caso da Serra Leoa ilustra que as lições apreendidas das experiências anteriores deram alguns frutos: por um lado, o Tribunal Especial está situado em Freetown, por forma a ser facilmente acessível às vítimas e para que os trabalhos sejam seguidos pela população com regularidade. Por outro lado, a Comissão de Verdade contou com uma composição

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mista de nacionais e não-nacionais (assegurando uma maior independência e imparcialidade) e incentivou desde a fase preparatória dos trabalhos uma forte participação de organizações da sociedade civil, tais como activistas de direitos humanos, grupos ligados à protecção de menores ou associações de mulheres. Para além disso, foram realizados estudos preliminares pela Comissão em aspectos-chave do conflito na Serra Leoa – como os métodos tradicionais de resolução de conflitos ou inquéritos a vários tipos de vítimas (mulheres, crianças, amputados) – por forma a responder às suas expectativas e criar um modo de actuação único que corresponda o melhor possível à especificidade daquele conflito. Como ilustração está o facto de, pela primeira vez, os trabalhos de uma Comissão terem dado origem a um relatório separado sobre a participação das crianças no conflito, prevendo a aplicação de medidas específicas, no plano político e social, para prevenção de futuros abusos12.

37 No entanto, algumas das fraquezas destas instituições continuam a repetir-se, nomeadamente a morosidade de todo o processo burocrático e administrativo (ins‐ talações, nomeação dos magistrados, obtenção de fundos...) em países onde o timing é essencial para o sucesso deste tipo de acções13; a existência de prazos rígidos que privilegiam a quantidade de depoimentos recolhidos em detrimento da qualidade e do conteúdo; a percepção de que os perpetradores são compensados através de programas de reintegração enquanto o futuro das vítimas tende a ser descurado; a inexistência de um esquema integrado de compensação às vítimas devido à escassez de fundos14; etc.

38 Acresce ainda uma certa confusão entre o papel das duas instituições, uma vez que a confissão de um crime na Comissão de Verdade poderia dar origem a uma acusação do Tribunal Especial, o que actuou como efeito dissuasor a que muitos perpetradores, já amnistiados no quadro do Acordo de Paz, confessassem livremente os seus crimes.

39 Em algumas comunidades que desenvolveram formas próprias de reintegração dos ex- combatentes, o trabalho da Comissão foi mesmo encarado como desnecessário e até contraproducente, uma vez que colidia com outros valores considerados mais importantes, tais como a preservação das relações interpessoais e a protecção da comunidade após práticas locais de «cura» e reconciliação. Tal como em Moçambique, estas práticas revestiram-se de grande diversidade na Serra Leoa, abrangendo uma série de cerimónias espirituais e religiosas, rituais de envolvimento das crianças numa água abençoada que iria exorcizar as suas memórias de guerra e provocar uma transformação interior enquanto novos membros da sociedade, e outras.

Conclusões

40 Os estudos na área da psicologia social demonstram, em geral, que após um conflito, o cidadão comum quer que a sua voz seja ouvida, que os abusos sejam debatidos e denunciados, que a sociedade exorcise colectivamente os seus traumas e que a verdade seja restabelecida, mesmo que isso não implique a condenação dos culpados a penas efectivas. Nesse sentido, as chamadas Comissões de Verdade e Reconciliação podem constituir um espaço importante para debates sobre a violência e os abusos cometidos no passado. No entanto, as confusões e opacidade conceptual que persistem relativamente aos processos de reconciliação abrem espaço para sustentar a ideia de que a produção de uma «verdade nacional» poderia por si só conduzir a uma memória colectiva única e, em última análise, eliminar as clivagens que estiveram na base do conflito. No entanto, as palavras são apenas uma das muitas formas de exteriorizar e exorcizar um trauma, assim

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como a contrição ou o perdão não podem ser impostos, pelo que este tipo de Comissões apenas constituem uma das possíveis peças do puzzle.

41 Em primeiro lugar, existe a necessidade de reconhecer o significado fundamental de muitas práticas locais de evocar as memórias, de simbolizar a cura e de, em suma, promover a reconciliação ao nível comunitário. As várias formas de «justiça transitória» – como os Tribunais Internacionais ou as Comissões de Verdade — só terão alguma eficácia ao nível local e regional se for possível ultrapassar a visão espartilhada de uma «cura» ou «reconciliação nacional» que se encontram inseridas num «kit» importado de resolução de confitos aplicável a qualquer situação. A aposta simultânea noutros caminhos, cuja génese e utilização fazem muitas vezes já parte da própria sociedade, de acordo com a natureza de cada situação de conflito, é igualmente importante: o exemplo sui generis de Moçambique, a recriação dos gacaca no Ruanda, ou os diversos rituais locais recentemente levados a cabo na Serra Leoa, podem fornecer pistas importantes para abordagens futuras.

42 Com efeito, apesar do exemplo moçambicano se basear na assumpção de que esquecer o passado é um passo positivo no sentido da reconciliação e os exemplos ruandês, sul- africano e (em parte) serraleonês partirem exactamente do pressuposto contrário – quanto mais se esclarecer a verdade e falar do passado, melhor será para o processo de reconciliação – conclui-se que, independentemente desse facto, as acções que colocaram o ênfase na reintegração dos perpetradores nas respectivas comunidades parecem ter tido, em todos estes países, os melhores resultados no sentido da resolução duradoura do conflito.

43 Pelo contrário, o impacto directo dos Tribunais Internacionais para a transformação dos conflitos parece ser muito limitado, devido ao seu custo elevado, ao número reduzido de suspeitos julgados e ao distanciamento (até geográfico) das populações. O seu efeito joga- se essencialmente ao nível simbólico, através da aplicação de penas exemplares a suspeitos-chave, que poderão eventualmente romper com a percepção de impunidade e ter repercussões em alguns sectores da sociedade, nomeadamente ao nível das elites.

44 Todas estas medidas de justiça transitória de curto-prazo, patrocinadas pela comunidade internacional e sempre susceptíveis de um certo grau de manipulação política, deveriam, num cenário ideal, ser combinadas por forma a melhor responder à especificidade de cada conflito.

45 No entanto, para além de todos os problemas de descoordenação ou de duplicação apresentados, não existem ainda sequer critérios objectivos que permitam aferir o seu sucesso, com base em conceitos que carecem actualmente de clarificação: «verdade», «reconciliação», «unidade nacional», etc.

46 Em segundo lugar, estas medidas não devem fazer esquecer a necessidade de reconstrução e reestruturação profundas dos sistemas judiciais destes países, num contexto de reforço das instituições democráticas, que se revela essencial como pre ‐ venção do ressurgimento da violência. Em países onde persistem problemas estruturais de pobreza ou de disfuncionalidade do Estado, a elaboração do relatório de uma Comissão de Verdade e Reconciliação não constitui qualquer garantia de aplicação das recomendações nele formuladas15 e, muito menos, de uma reconciliação efectiva. Esta terá de ser entendida como um processo dinâmico, em que a coexistência pacífica entre indivíduos e grupos sociais, no seio de uma cultura democrática e de respeito pelos direitos humanos, com um desmantelamento das estruturas que tornaram possíveis a

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erupção da violência, se constituem como aspectos fundamentais, embora muitas vezes descurados pelas lógicas de curto-prazo da ajuda internacional.

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NOTAS

1. Para uma descrição detalhada das várias abordagens de justiça transitória, ver Theissen, 2003. 2. Mesmo ao nívelinterpessoal, não há estudos concretos que permitam afirmar que o acto de contar a verdade numa Comissão de Verdade e Reconciliação tenha uma efeito catártico e «de cura» do indivíduo. No exemplo sul-africano, 60% das pessoas que testemunharam afirmaram sentirem-se pior após esse acto, por ter reavivado memórias e originado sentimentos de culpa e vingança de que anteriormente não tinham consciência. A identificação das audiências de uma comissão deste tipo com um acto de terapia permanece, portanto, altamente questionável. 3. As Convenções de Genebra de 12 de Agosto de 1949 são o principal instrumento legal internacional referente às situações de conflito armado e de respeito pelos direitos humanos. 4. Só em Setembro de 1998 teve lugar o primeiro julgamento. O TIPR julgou até ao início de 2005 23 casos, com 20 condenações, esperando atingir os 70 até ao final do seu mandato, em 2008 (A Year of Both Controversies and Progress for ICTR, Hirondelle News Agency, http:// www.allafrica.com). Em 2004, a acção do Tribunal for afectada por casos de alegada corrupção e favorecimento, que originaram a demissão de juízes. 5. O processo nunca foi encarado como algo endógeno e o próprio Ruanda foi o único Estado a votar contra o estabelecimento do Tribunal nas Nações Unidas. 6. Dados de 2004, in GRAYBILL, 2004. O número de detidos chegou a ser de 150 mil, mas a libertação de cerca de 40 mil suspeitos passíveis de serem julgados através dos tribunais locais gacaca contribuíram para a diminuição considerável da população prisional. 7. Para mais informações sobre o processo dos gacaca ver, p.ex., UVIN, 2001. 8. Em Outubro de 2001, os ruandeses elegeram 260 mil juízes de gacaca ( e ), para mais de 11 mil jurisdições. Os tribunais actuam em cada nível administrativo, para julgar vários tipos de crimes,que vão desde a destruição de propriedade até ao homicídio (envolvendo 90% dos julgamentos que seriam efectuados pelos tribunais regulares centrais), enquanto os crimes de planeamento do genocídio e de tortura sexual continuam a ser julgados pelo sistema judicial nacional. A participação da população ruandesa na eleição dos juízes foi de 90%. Os tribunais gacaca iniciaram formalmente as suas funções ao nível nacional em Novembro de 2002, mas muitos estão ainda numa fase preliminar. Ver GRAYBILL, 2004. 9. Estima-se que o avanço da Frente Patriótica Ruandesa no terreno, após o genocídio, tenha resultado num número elevado de mortos, que pode chegar aos 100 mil. 10. A criação do Tribunal Especial para a Serra Leoa foi autorizada pela Resolução 1315 de 14 de Agosto de 2000 do Conselho de Segurança das Nações Unidas. No entanto, ao contrário do Tribunal para a ex-Jugoslávia e para o Ruanda (que são instituições das Nações Unidas e operam independentemente do sistema judicial nacional), o Tribunal para a Serra Leoa é uma instituição híbrida, de carácter nacional com supervisão da ONU, à semelhança do Tribunal para os crimes de guerra no Cambodja. Este modelo inovador significa uma aplicação simultânea da lei penal da Serra Leoa e do Direito Internacional, permitindo igualmente uma maior racionalidade nos montantes financeiros dispendidos. O Tribunal foi estabelecido através de um acordo entre o Governo da Serra Leoa e a ONU, em Janeiro de 2002. 11. Data do acordo de paz falhado entre o governo e os rebeldes da Frente Unida Revolucionária. 12. Durante quase uma década de conflito, estima-se que cerca de 10 mil crianças foram raptadas e recrutadas à força, tendo muitas delas sido drogadas e ameaçadas de morte caso não participassem no esforço de guerra, em especial dos rebeldes da Frente Unida Revolucionária.

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13. Apesar de o Acordo de Paz de Lomé, assinado em 1999, estabelecer o prazo irrealista de um mês para a criação da Comissão de Verdade e Reconciliação, esta foi apenas estabelecida em Julho de 2002, tendo iniciado as audiências públicas em Abril de 2003. O relatório final dos trabalhos da Comissão foi publicado em Outubro de 2004. Para uma descrição detalhada do seu funcionamento, ver DOUGHERTY, 2004. 14. As experiências das Comissões de Verdade relativamente a esta matéria são variadas: p.ex, enquanto o Chile implementou um sistema integrado de reparação dos danos causados (normalmente dirigido aos familiares daqueles que foram assassinados ou que permanecem desaparecidos), noutros casos essas reparações foramparciais (como na África do Sul) ou não estavam sequer previstas. 15. Se no caso de El Salvador a pressão dos actores internacionais foi fundamental para assegurar o follow-up das reformas sugeridas pela Comissão de Verdade, na Serra Leoa as perspectivas são menos optimistas, já que os baixos níveis de ajuda internacional até ao momento não garantem a existência de capacidade financeira e administrativa para essa implementação.

RESUMOS

Após a existência de um conflito violento com consequências sociais desastrosas, as sociedades vêem-se confrontadas com a necessidade de promover a reconciliação e consolidar a paz, com o objectivo central de prevenir um ressurgimento da violência. Uma série de mecanismos têm sido desenvolvidos para lidar com as violações dos direitos humanos, os quais vão muito para além dos julgamentos ao nível nacional: desde tribu-nais internacionais concebidos para cada conflito, comissões de verdade e reconciliação, programas de reparação das vítimas e reintegração dos combatentes e perpetradores dos crimes de guerra, ou ainda mecanismos locais de resolução de conflitos. Este artigo aborda as questões da reconciliação e da justiça em três situações de pós- conflito na África Subsaariana (Ruanda, Moçambique e Serra Leoa), destacando a variedade dos caminhos seguidos, consoante as características únicas de cada conflito e do próprio tecido social.

After a protracted conflict, societies have to cope with the need of promoting reconciliation and peace consolidation, in order to prevent the resurgence of violence. Several mechanisms have been developed to address human rights’ violations, which go far beyond the national judicial systems: specific international courts; truth and reconciliation commissions; programmes for reparation of victims and reintegration of ex-combatants and war crimes perpetrators; traditional and local mechanisms of conflict resolution. This paper addresses reconciliation and justice issues in three different post-conflict situations in sub-Saharan Africa (Rwanda, Mozambique and Sierra Leone) highlighting the approaches and responses adopted in each one of them.

ÍNDICE

Keywords: Sub-Saharan Africa, conflict, peace, reconciliation Palavras-chave: África Subsariana, Conflito, Paz, reconciliação

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AUTOR

PATRÍCIA MAGALHÃES FERREIRA Instituto de Estudos Estratégicos e Internacionais ISCTE, Lisboa

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Campos de batalha da cidadania no Norte de Moçambique

Marina Padrão Temudo

NOTA DO AUTOR

Esta investigação foi desenvolvida no âmbito do projecto «A desintegração das sociedades agrárias africanas e o seu potencial de reconstrução». Os dados foram, no entanto, analisados numa perspectiva que teve em conta teve em conta a participação da autora no projecto «Política, actores sociais e cidadania em África», igualmente coordenado pelo CEA/ISCTE e financiado pela FCT. A pesquisa empírica foi conduzida de Junho a Agosto de 2001, nas chefaturas de Mitukue e Konhomali localizadas na província do Niassa, tendo sido realizadas entrevistas semi-estruturadas a uma amostra de 48 agregados (ethokos) em Konhomali (num total de 270) e de 106 em Mitukue (total de 964). As técnicas de pesquisa incluíram também observação directa e participante, conversas informais, discussões de grupo e o recurso a informantes chave.A autora agradece aos seus tradutores de língua macua – Srs. Costa Dine e Acácio Januário – que a acompanharam durante o trabalho de campo e aos Doutores Fernando Florêncio, Ramon Sarró, Nadje Al-Ali e João Vasconcelos pelas críticas e sugestões tecidas.

A guerra e o seu contexto

1 O Niassa é a maior província de Moçambique, mas também uma das que possui menor densidade populacional – 5,9 hab./km2 (INE, 1997). Está circundada pelas províncias de Cabo Delgado, Nampula e Zambezia e faz fronteira com a Tanzânia e com o Malawi. Os Macua constituem o maior grupo etno-linguístico das províncias do norte – Niassa, Nampula e Cabo Delgado –, sendo também um dos mais representativos em termos numéricos do país.

2 A guerra anti-colonial durou dez anos (1964-1974). Com a independência, em 1975, a Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique) estabeleceu um regime de partido único.

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Foi então iniciado um profundo processo de socialização do campo com a criação das aldeias comunais – que reconfiguraram o povoamento tradicionalmente disperso – e das machambas do povo (campos agrícolas colectivos).

3 O último período da era colonial também foi marcado por políticas de reordenamento – consubstanciadas na constituição de assentamentos –, delineadas no sentido de controlar o recrutamento da população rural pela Frelimo.

4 Tal como as políticas pós-coloniais de aldeamentos forçados, as coloniais também conduziram a uma redefinição das redes políticas locais e à consequente subordinação de algumas autoridades a outras que anteriormente possuíam um nível hierárquico igual ou inferior (ver GEFFRAY, 1991).

5 Os chefes1 espirituais, religiosos e políticos – acusados de colaboração com o regi me colonial – foram marginalizados, humilhados2 e substituídos por representantes do partido no poder (Secretários do Partido e Comités Dinamizadores). Simultaneamente, os rituais e as cerimónias religiosas, assim como as regras tradicionais regulamentando o casamento, a residência e a herança, foram duramente criticadas – como obscurantistas, supersticiosas e feudalistas – e na maior parte dos casos proibidas. Foi o tempo dos slogans «Abaixo com...» da Frelimo, repetidos ad infinitum. Este processo era parte de uma estratégia da elite do partido que visava a construção e o fortalecimento do aparelho estatal no campo, operando no sentido do estabelecimento de uma cidadania moçambicana, que negava as diferenças étnicas, regionais e históricas, num processo de esvaziamento identitário (cf. FLORÊNCIO, 2002: 55). Nas palavras de Geffray, era a «ideologia da página em branco» (GEFFRAY, 1991: 15-16). Com a nacionalização da economia e a fuga dos portugueses que provocou uma ruptura do sistema de cantinas, o mercado ficou praticamente paralisado e a aquisição de produtos de primeira necessidade por parte dos agricultores comprometida. A concentração em aldeias comunais – que passou a ser compulsiva em meados dos anos 80 com o agravamento da guerra civil – constituíu também uma ameaça à segurança alimentar (ver também Yañes CASAL, 1988 e 1996; GEFFRAY, 1991; ROESCH, 1993).

6 Todos estes factores em conjunto conduziram ao desencanto progressivo dos agricultores, cujo apoio à Frelimo estava, segundo Geffray (1991), mais baseado em sentimentos anti- coloniais, do que na adesão e compreensão do seu projecto socialista.

7 A Renamo (Resistência Nacional de Moçambique) iniciou a guerra civil em 1977, inicialmente com o apoio do governo racista da Rodésia e, após 1980, da África do Sul. A guerra durou até 1992, altura em que foi assinado o acordo de paz. No Niassa a guerra só começa em 1983, no distrito de Maúa.

8 A interferência de poderes externos pode explicar as origens e o poderio militar (em termos de sofisticação do armamento e dos sistemas de comunicação via rádio) da Renamo, mas não é suficiente para compreender como foi possível manter todo o país por tanto tempo em estado de guerra. Segundo Seibert (2003: 254): «popular resistance by large sectors of Mozambican society to the modernizing projects of the socialist FRELIMO regime, as well as the regional contradictions stemming from (pre-)colonial era and the widespread use of violence can help to explain how RENAMO was able to develop from a small, externally created rebel group into a large guerrilla army that finally controlled entire regions of the country».

9 Christian Geffray (1991: 23, 25, 59) aprofundando as causas da guerra num estudo de caso realizado na província de Nampula identificou estes mesmos factores.

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10 A Renamo era acima de tudo uma organização militar (cf. ALEXANDER, 1997: 8) e não possuía uma ideologia claramente definida3. A sua propaganda estruturava-se em torno de uma oposição explícita às políticas da Frelimo – centrado-se na defesa das tradições e das autoridades tradicionais (GEFFRAY, 1991: 117, 119) – e propalava deter o apoio dos espíritos dos antepassados na sua guerra contra o partido-Estado (ROESCH, 1993). A princípio, a Renamo actuava como uma guerrilha mercenária, mas aos poucos e poucos vai engrossando o seu exército, principalmente através de recrutamento forçado, mas também por adesão voluntária de jovens e de chefes tradicionais acompanhados pelos seus dependentes (GEFFRAY, 1991). Os «bandidos desarmados» – como as forças do governo lhes chamavam, por oposição aos soldados da Renamo («bandidos armados») –, eram grupos de jovens recrutados pela Renamo para a constituição de contingentes de reserva e que lutavam com armas não convencionais, como facas e machetes. Especialmente no princípio da guerra, estes grupos espalhavam o terror com actos de violência, perpetrados inclusivamente contra antigos vizinhos. Apesar de ambos os exércitos terem usado tácticas de violência e de terror e o recrutamento pela força, a Renamo recorreu ao rapto de crianças com maior amplitude (SEIBERT, 2003: 254, 256). Geffray (1991: 72) declara que a Renamo era em parte um «exército de cativos», tendo vários autores referido a crescente desilusão sentida pelos agricultores que aderiram à sua causa à medida que a guerra progredia (GEFFRAY, 1991: 113-112; WILSON, 1991; ROESCH, 1993; SEIBERT, 2003: 269).

11 Este conflito provocou uma polarização marcada das populações e o padrão de povoamento tornou-se um indicador privilegiado da sua adesão política (GEFFRAY, 1991: 123-125). O incêndio de casas e celeiros foi a estratégia adoptada por cada um dos exércitos em confronto para obrigar a população a escolher um dos lados: os que permaneceram nas aldeias eram alvo dos ataques da Renamo e, pelo contrário, os que regressaram aos seus territórios de origem e forma de povoamento disperso sofriam as agressões da Frelimo (cf. GEFFRAY, 1991). Alguns decidiram criar dois cenários diferentes, por forma a agradar (e enganar) os dois exércitos: construíram uma casa na aldeia, onde viviam alguns meses durante a estação seca e outra no mathalani4, onde guardavam os seus bens mais importantes, como os animais e os celeiros. Este foi aliás o caso reportado por um Secretário da Frelimo da chefatura Mitukue. Durante a guerra existia mesmo uma canção no Niassa, cujo refrão era «com um pé na aldeia e outro no mathalani».

12 No decurso da guerra, a elite da Frelimo acabou por reconhecer a relevância estratégica das chefias tradicionais (sem contudo confiar nelas), tendo criado para estas autoridades o cargo de «chefes de produção» (GEFFRAY,1991: 136). No entanto, a este respeito, o partido e o exército posicionavam-se de forma diferente (HONWANA, 2003a: 179), teimando o partido em negar a sua relevância. Pelo contrário, vários autores sublinharam a importância dos poderes religiosos de algumas autoridades tradicionais durante a guerra, respeitados e temidos por ambos os exércitos (e.g. GEFFRAY, 1991: 88; SEIBERT, 2003: 273-275), e mesmo capazes de abrir autênticas «clareiras de paz» onde muitos buscavam refúgio (WILSON, 1991: 3-7). O monopólio da «guerra dos espíritos» detido pela Renamo e a sua auto-atribuída superioridade mágica (ROESCH, 1993) foi finalmente desafiada com a criação dos Naparamas (WILSON, 1991: 3). A suposta invencibilidade deste grupo independente de agricultores – que lutava apenas com armas brancas, como catanas – resultava de um ritual de vacinação que os protegia contra as balas (cf. SEIBERT, 2003: 275).

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13 O controlo geográfico do território e a origem da tropa recrutada foi dual: enquanto que a Frelimo controlava as cidades, onde se abastecia de soldados, a Renamo controlava extensas áreas do interior do país e tinha portanto um exército essencialmente constituído por gente do campo (SEIBERT, 2003: 264). Um estudo conduzido após o final da guerra concluiu que mais de 10% do total da população se deslocou para os países vizinhos e que mais de 25% se refugiou nas cidades e noutras áreas controladas pelo governo (MASLEN cit. in SEIBERT, 2003: 254).

Organização social Macua, sistemas de sustento e mudanças do pós-guerra

14 A unidade básica de organização social é o grupo doméstico matrilinear – o ebumba – normalmente constituído por vários agregados nucleares (ethoko) de mulheres seniores casadas, das suas filhas casadas e respectiva descendência. Antes da criação das aldeias comunais após a independência, o ebumba tinha também uma dimensão territorial com fronteiras bem definidas. O ebumba tem um chefe – o napumba – eleito pelo grupo de descendência (n’loko) entre os irmãos da mulher mais velha. Contudo, devido às regras matrilocais de residência, este homem vive num ebumba diferente – aquele da sua própria esposa.

15 Os indivíduos pertencem não só ao ebumba e ao n’loko mas também ao nihimo, categoria frequentemente designada na literatura por «clã». Um nihimo inclui indivíduos de diferentes ebumbas, n’lokos e grupos étnicos. No passado, o casamento era uma estratégia comum para estabelecer alianças entre ebumbas da mesma divisão (elapo) ou sub-divisão ( muthete; pl. mithete) do território Macua, estando no entanto interdito a pessoas do mesmo nihimo.

16 O elapo é a principal divisão política Macua. A palavra designa simultaneamente o território da chefatura e os seus habitantes e tem como chefe religioso e político o mwené. O mwené é o chefe eleito pelo grupo de descendência (n´loko ou errukulu muthéulene) que primeiro chegou ao território (elapo). Por este facto, o mwené é considerado o dono da terra e o responsável pela protecção espiritual do território – conduzindo as cerimónias da chuva e os rituais de iniciação, entre outros – e pela resolução de conflitos. Nestas funções é apoiado por um conselho de anciãos, por uma mulher escolhida entre o seu grupo de descendência (apwiamwene) e pelos líderes das sub-divisões do seu território. Quando um ebumba adquire um grande número de elementos, o seu chefe solicita ao mwené permissão para criar uma nova sub-divisão (muthete) no elapo. Neste território recentemente criado ele será considerado o líder (puatapata) e pode distribuir lotes de terra a outros ebumbas com o consentimento do mwené.

17 Tradicionalmente, cada agregado nuclear (ethoko) possuía as suas casas, os seus campos de cultivo e os seus celeiros e cada mulher casada preparava os alimentos isoladamente. Porém, o consumo era realizado colectivamente, dado que às refeições todos os membros do ebumba se reuniam por grupos etários e por género. Este processo redistributivo suprimia a condição desfavorável dos membros em situação de carência alimentar.

18 O trabalho agrícola começava nos campos dos agregados seniores do ebumba com a ajuda de todos os membros dos agregados mais jovens. A reconstrução regular das casas e celeiros dos agregados seniores era também realizada através de entre-ajuda e os genros tinham a obrigação moral de ajudar os pais da mulher5. A entre-ajuda no trabalho

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agrícola ocorria também entre todos os agregados juniores de um mesmo ebumba durante os picos de trabalho, nomeadamente durante a monda (olima). Para o convite eram preparadas bebidas doces (n’toboa) ou alcoólicas (otheka) confecionadas com sorgo ou milheto.

19 A intervenção colonial nas sociedades rurais, principalmente pela integração forçada na economia de mercado promovendo a produção de culturas de exportação, o processo de socialização após a independência e a guerra prolongada (anti-colonial e civil), originaram uma desagregação do tecido social. A pesquisa conduzida no Niassa confirma as conclusões de Yañez Casal (1988) para outras partes do país. O modelo de organização sócio-espacial nas aldeias comunais pôs fim à unidade do ebumba favorecendo a nuclearização e destruindo ou enfraquecendo as relações de entre-ajuda no trabalho e as práticas tradicionais de redistribuição. A segurança alimentar dos mais velhos e das mulheres solteiras ficou portanto em risco (TEMUDO, 2002). Nas palavras de um grupo de mais velhos: «tudo começou quando acabaram os Mwenés e vieram os Secretários do Partido, porque aí cada um escolheu a sua casa na aldeia e deixou de haver coordenação (...) agora há desordem, vivemos todos divididos e ainda não nos conseguimos encontrar». Porém, como refere Florêncio (2005), a desagregação provocada pelos aldeamentos forçados nas aldeias comunais não pode ser analisada unicamente pelo prisma do seu impacto no sistema de produção agrícola, mas também através do efeito desestruturante causado pelo aumento das acusações de feitiçaria e pela abolição dos mecanismos tradicionais de regulação (ver também BRAIN, 1982: 378-379).

20 Desde o fim da guerra, o número de mães solteiras e divorciadas que se vêm sózinhas com os filhos tem aumentado, aparentemente como consequência do menor número de homens – muitos foram assassinados durante a guerra – e também como consequência do declínio social da sua responsabilidade face às mulheres e filhos. As declarações gerais proferidas quer por homens, quer por mulheres denunciam também o crescimento progressivo de uma prostituição «camuflada» por mulheres jovens, que tem conduzido a uma redução do número de casamentos e a um aumento do de divórcios. As relações poligâmicas informais e voláteis (poligínicas e poliândricas)6 têm também proliferado sem o enquadramento institucional que protegia as mulheres.

21 As mais velhas acusam as jovens de lhes estarem a roubar as poupanças dos maridos que deveriam ser orientadas para a satisfação das necessidades do agregado doméstico. Este processo agrava-se na imediação das cidades. A maioria dos agregados encabeçados por mulheres enfrentam algumas dificuldades para alcançar a auto-suficiência na produção de alimentos e na gestão dos produtos armazenados, pelo simples facto de não haver homens para cumprir as tarefas que tradicionalmente lhes cabem: abertura de novas áreas e construção de celeiros e demais estruturas de armazenamento. A ajuda mútua, que era comum entre os diversos ethokos do mesmo ebumba, raramente ocorre na actualidade, sendo portanto os agregados dos mais velhos que mais se têm ressentido.

22 Os mais pobres possuem áreas mais pequenas com solos pouco férteis – o que se deve, genericamente, à incapacidade para abrir novas áreas –, estando as suas casas e celeiros em más condições. Este grupo de pessoas compõe-se principalmente de alcoólicos, de mulheres solteiras, divorciadas ou viúvas cuidando de crianças pequenas e de pessoas mais velhas que não obtêm apoio das suas famílias. Convém contudo ressalvar que o estado civil e a idade não se podem considerar indicadores inequívocos de pobreza, uma vez que foram observados casos de mulheres e de idosos disfrutando de padrões elevados de qualidade de vida dentro do quadro vigente. Alguns casais jovens e de meia-idade,

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sofrendo de fome crónica, são considerados preguiçosos pelos seus vizinhos. Aparentemente, o uso de bebidas alcoólicas e de marijuana aumentou consideravelmente durante a guerra civil, principalmente nas zonas controladas pela Renamo. A pesquisa empírica conduzida nos distritos de Cuamba e Maúa mostra um alto consumo de bebidas alcoólicas entre a população católica, o que tem fragilizado a segurança alimentar das famílias. Não foi contudo encontrada qualquer correlacção positiva entre o consumo de álcool e a filiação partidária dos agricultores.

23 O comportamento migrante a que a guerra deu origem nas sociedades rurais, pela necessidade de fugir dos territórios dos antepassados para locais mais seguros e pela integração nos exércitos de ambos os partidos, é agora fonte de introdução de inovações agrícolas e de mudanças sociais. Por terem sido forçadas a partir para outras regiões, as populações vieram a encontrar melhores lugares para viver, seja pela existência de melhores condições agroecológicas, melhor acessibilidade aos mercados e oportunidades de trabalho não agrícola, maior disponibilidade de serviços de saúde e educação ou simplesmente pela oportunidade de fugir de memórias traumáticas. A mobilidade geográfica dos Macua – altamente controlada durante os tempos coloniais e após a independência – tornou-se um traço significativo de mudança social. Outro aspecto notável deste novo comportamento espacial, que se traduz em novos padrões de sociabilidade, é a tendência para uma maior concentração do povoamento, a meio caminho entre as aldeias comunais e os tradicionalmente dispersos muthete.

Sobre como as populações das chefaturas Mitukue e Konhomali sobreviveram e ultrapassaram a guerra

24 Os dois estudos de caso realizados apresentam particularidades, que os tornam extremamente interessantes pela diversidade de situações que retractam.

25 Mitukue é uma grande chefatura (do distrito de Cuamba) criada ainda antes da chegada dos portugueses ao Niassa, num planalto localizado no centro de um conjunto de inselbergs e cujas restantes subdivisões (muthete) se distribuem nas encostas e sopé dessa pseudo-montanha. Os poderes sobrenaturais do chefe deste território – o Mwené Namacoma – eram reconhecidos pelos dois exércitos e a sua fama chegava a Maputo7. Com efeito, não foi alvo de quaisquer ataques do partido Frelimo, que permitiu mesmo a nomeação de um sobrinho (o actual mwené) para o cargo de secretário. Porém, até ao final da guerra, não foram realizadas quaisquer cerimónias da chuva ou iniciações masculinas.

26 Em 1984, a Renamo incendiou algumas aldeias e raptou jovens8, que mais tarde não só conseguiram mobilizar parte da sua família, como perpetraram graves crimes contra familiares e antigos vizinhos que se mantiveram fiéis à Frelimo ou que tentaram manter- se neutros. Segundo a opinião de alguns agricultores da Frelimo, a adesão à Renamo de certas famílias deveu-se não só ao descontentamento motivado pelas consequências da sua integração em aldeias comunais e pela desautorização dos chefes tradicionais e suas cerimónias e rituais, mas também às expectativas em relação à obtenção de bons empregos, no caso da vitória da Renamo, em comparação com o que tinha acontecido aos antigos combatentes da Frelimo depois da independência. Foi igualmente reportada a existência de velhos conflitos entre linhagens.

27 Após o início dos ataques da Renamo, a Frelimo reforçou a pressão sobre os camponeses para se concentrarem em algumas aldeias comunais e a população dividiu-se: muitos

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subiram a montanha e instalaram-se na aldeia do muthete de Namacoma, outros foram levados pela Frelimo a refugiar-se em quatro grandes aldeias (2 do mesmo território e 2 de outro) protegidas pelo seu exército, uns poucos fugiram para a cidade (9 dos 103 inquiridos), 3 famílias permaneceram escondidas em «terra de ninguém» e uma família inquirida foi raptada pela Renamo e pouco tempo antes do final da guerra conseguiu fugir e instalar-se em Namacoma. Repare-se que a chefatura de Mitukue constituía um alvo importante na Renamo, dado que no muthete de Namacoma tinha sido construída uma barragem que alimentava a população da cidade com água canalizada e electricidade. De acordo com os nossos entrevistados (incluindo os da cidade de Cuamba), a incapacidade da Renamo atacar este muthethe e destruir a barragem foi devida à competência mágico- religiosa do mwené.

28 Nesta chefatura, as relações entre a população que aderiu à Renamo e a que, pelo contrário, se manteve do lado do partido no poder ou neutra não foram completamente restabelecidas após o fim da guerra, tendo sido relatados casos de sabotagem recorrente das tubagens de água potável e dos cabos eléctricos que alimentam a cidade a partir da barragem existente. De notar, que as famílias ligadas à Renamo se recusaram em bloco a responder à entrevista. Muito embora tivessem decorrido quase dez anos sobre a assinatura do acordo de paz, as tensões entre os dois partidos – que nem sempre se traduzem ao nível da relação entre as populações como iremos ver – eram ainda grandes, em especial nas províncias de maioria Renamo (caso do Niassa), mas em que a lei eleitoral confere todo o poder do aparelho administrativo ao partido no governo. Em consequência, as questões relativas à guerra eram ainda delicadas e exigiriam uma investigação mais longa, por forma a permitir o estabelecimento de uma relação de confiança.

29 Como referido, a Renamo iniciou os ataques queimando algumas aldeias comunais da base da montanha e portanto muitos dos agricultores que não foram raptados perderam as suas sementes. O muthete de Namacoma foi o que recebeu um maior número de deslocados e a sua população apoiou-os com alimentação, sementes e terras de cultivo. A grande densidade populacional resultante deu origem à perda de fertilidade dos campos de cultivo. Porém, algumas famílias após o ataque à primeira aldeia desta chefatura recolheram os seus bens e refugiaram-se em outras aldeias mais protegidas pelo exército da Frelimo e como tal, não necessitaram do apoio de familiares e vizinhos para readquirirem a sua reserva de sementes.

30 Na generalidade dos casos relatados, a guerra afectou a diversidade e a quantidade de sementes de cada variedade (nomeadamente de leguminosas de grão) cultivada por cada agricultor. Após a assinatura do acordo de paz, esta chefatura tem vindo a receber um apoio mínimo de organizações de desenvolvimento devido à ideia generalizada de que se trata de uma população «conflituosa [da Renamo]», que se recusa a colaborar em iniciativas externas.

31 O segundo estudo de caso realizado no Niassa – na chefatura de Konhomali (distrito de Maúa) – apresenta um caso paradigmático da capacidade de reconstituição social. Com efeito trata-se de uma nova chefatura criada cinco anos após o fim da guerra, a partir de populações que tinham estado em lados opostos do conflito. Dos 48 inquiridos, 33 famílias eram originárias de diferentes regiões do distrito, que se tinham refugiado na cidade de Maúa sob a protecção do exército da Frelimo. As 15 restantes, pelo contrário, eram adeptos da Renamo e permaneceram em Muacanha – a principal base militar deste partido no Niassa, que dispunha mesmo de um campo de aviação.

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32 Após o fim da guerra, a população da cidade foi aos poucos e poucos abrindo campos de cultivo cada vez mais afastados e por fim alguns fixaram-se no actual território desta chefatura. Em 1995, o Mwené Konhomali decidiu trazer uma parte da sua família para esta região – dada a pressão fundiária que a sua chefatura sofria na região de Muacanha – e funda uma nova chefatura que engloba a população já aí fixada, após ter obtido o acordo do régulo Muúa e realizado as cerimónias tradicionais de demarcação e protecção ritual do território. Passa assim a chefiar dois elapos a cerca de 70 km um do outro (Konhomali I e II), entre os quais divide o seu tempo ao longo do ano. Quando ausente, deixava a substituí-lo – contra a vontade dos seus parentes – o chefe religioso muçulmano (mualimo ), que era simultaneamente o Secretário do partido Frelimo naquele território e presidente da associação de agricultores de Konhomali, fazendo parte do grupo dos que se tinham refugiado na cidade durante a guerra.

33 Segundo um agricultor da Frelimo, «os problemas só existem com o Sr. Dhlakama [líder da Renamo], que quer o poder, mas não entre a população». Com efeito, muito embora os aderentes da Renamo se distingam nomeadamente por se recusarem a pagar o imposto (cf. ALEXANDER, 1997: 12), observaram-se casos de casamentos, ocasiões de diversão e mesmo a criação de uma associação entre camponeses que estiveram em lados opostos do conflito. O sentido de humor típico dos macuas pareceunos ter constituído um importante factor de reconstituição social.

34 A situação perante a segurança alimentar e o sistema de gestão das sementes durante e após o conflito foram, segundo os inquiridos, quase antagónicas em relação aos dois grupos:

35 — Os aderentes da Renamo que se instalaram na periferia da grande base militar de Muacanha, transportaram consigo todas ou grande parte das sementes e animais, mas não dispunham de dinheiro, sal, sabão e roupa. Durante a guerra vestiam-se com fibras de casca de árvores – «como nos tempos [antigos]» –, que também são usadas como recipientes no armazenamento das leguminosas de grão e do arroz. Nas palavras de um agricultor da Frelimo, que uma vez observou a chegada de um grupo de «recuperados» (gente capturada pelo exército durante raids) à cidade de Cuamba: «estavam vestidos com casca de árvore e tão sujos que nem pareciam gente – estavam à maneira!»;

36 — Os que estavam em território da Renamo, mas mais distantes da base, eram constantemente atacados pelo exército da Frelimo, que lhes destruía as casas e celeiros e roubava os animais e trabalhavam pequenas áreas, na maioria insuficientes para garantir a alimentação da família;

37 — Os que se refugiaram em Maúa sob a protecção da Frelimo passaram fome durante quase toda a guerra, porque tinham perdido a maioria das suas sementes e porque só podiam trabalhar pequenas machambas próximas da cidade, onde cultivavam milho, mandioca e sobretudo arroz (devido às menores exigências de monda) com medo de serem raptados. O trabalho na construção civil durante, mas sobretudo após o fim da guerra, permitiu-lhes obter o dinheiro necessário à compra de novas sementes e animais.

38 No fim da guerra, a população da Renamo precisava de dinheiro para comprar alguns bens de primeira necessidade e alfaias agrícolas. Pelo contrário, a população que se tinha refugiado na cidade possuía dinheiro, mas precisava de sementes e animais e foi junto da população de Muacanha que adquiriu a maior parte. As famílias que, independentemente da sua posição politico-partidária, estiveram localizadas durante a guerra em zonas mal protegidas por cada um dos exércitos, foram as que viram a sua capacidade de

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reconstrução social e económica mais afectadas após o fim das hostilidades. Neste caso, as sementes foram sendo adquiridas aos poucos e poucos através de dádivas de familiares e amigos, através da compra a dinheiro, mas sobretudo através de troca de trabalho por sementes9.

39 A recuperação dos agricultores no pós-guerra foi assim aparentemente conseguida com apoio nulo ou reduzido dos agentes externos (TEMUDO & ARVÉOLA, 2002).

40 A capacidade de reconciliação das populações nas duas chefaturas estudadas foi como se viu muito diferente. Em Mitukue, como referido, existiam antigos conflitos linhageiros e a população que aderiu à Renamo cometeu directamente atrocidades contra vizinhos. Simultaneamente, o seu chefe de guerra (sobrinho do legítimo chefe do muthethe) não quis abdicar do poder adquirido e continuou a manipular a população que lhe era fiel, impedindo a reconciliação. Pelo contrário, Konhomali é uma nova chefatura criada a partir de populações que, embora divididas, não se conheciam e portanto não partilhavam memórias traumáticas. Paralelamente, vai ocorrer uma complementaridade de direitos costumeiros – o da anceanidade na ocupação do território pelos adeptos da Frelimo e o da posse de competência mágico-religiosa para fundar e proteger ritualmente uma chefatura pelos adeptos da Renamo –, que favorece a reconciliação. Ao nível religioso vai também ocorrer uma complementaridade entre dois chefes: a população da Frelimo (muçulmana ou não) agrega-se em torno de um imã de grande prestígio e a da Renamo em torno de um chefe religioso (e político) tradicional.

Governação Local, Estado, ONGs e cidadania

41 As autoridades tradicionais que o Estado colonial português encontrou como estruturando a rede de poder das sociedades rurais, foram integradas na administração local sob a designação de régulos e cabos. Constituindo a hierarquia colonial «indígena», os seus deveres primordiais residiam na manutenção da ordem, no recrutamento de força de trabalho e na cobrança de impostos nas suas chefaturas, cujos limites tradicionais eram via de regra respeitados. Em relação à forma como decorria esta nomeação de autoridades «indígenas», Artur e Weimeir (1998: 14) testemunham três cenários possíveis:

42 — A autoridade colonial identifica e nomeia para régulo/cabo a legítima autoridade tradicional (maioria dos casos reportados em entrevista);

43 — A administração colonial falha no processo de reconhecimento da verdadeira autoridade tradicional e nomeia um seu dependente. Este caso foi reportado pelos nossos entrevistados como tendo ocorrido algumas vezes, porque os verdadeiros chefes, desconfiando das intenções dos colonialistas (contra os quais já tinham inclusivamente travado guerras), enviavam em sua substituição alguém da sua família ou mesmo uma «pessoa vista»10;

44 — Era feita uma nomeação arbitrária, em que não havia qualquer tipo de relação, nem consaguínea nem social, com a autoridade tradicional (nenhum dos nossos entrevistados nos reportou tal situação).

45 Duas outras situações podiam também ocorrer. A nomeação arbitrária de um chefe (régulo ou cabo) para uma sociedade segmentária (acéfala) e a alteração da hierarquia tradicional, promovendo a categorias superiores figuras de peso social igual ou inferior. Esta situação foi reportada como tendo ocorrido com alguma frequência entre a população Macua do Niassa, onde os portugueses, segundo relatos locais, aferiam a importância dos chefes

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pelos presentes oferecidos nas apresentações à administração ou ao exército coloniais. De acordo com Florêncio (2005), este fenómeno de alteração das hierarquias do poder tradicional relacionou-se também com as diversas reformas administrativas coloniais, que deram origem à reconfiguração espacial do território, encurtando chefaturas extensas e promovendo sub-chefaturas a chefaturas.

46 Muito embora, as autoridades tradicionais integradas na administração colonial, nem sempre tenham sido solidárias com a população que representavam e tirassem muitas vezes partido da sua posição para obter vantagens pessoais (GEFFRAY, 1991: 58), a pesquisa feita a nível nacional por Artur e Weimer (1998: 13, 14), revelou que muitas delas tinham «duas caras e dois discursos», evidenciando uma atitude ambígua entre a colaboração e a resistência e organizando mesmo, no seio das suas comunidades, uma resistência passiva contra o colonizador11. Actualmente, eles são considerados por grande parte da população «as the exclusive trustee and representative of a legitimate power, different from that of the party or the state» (ARTUR & WEIMER, 1998:12).

47 O governo socialista do período pós-independência, considerando os chefes tradicionais como colaboradores do Estado colonial12, impuseram a sua substituição por representantes do partido – forma pela qual, a «indirect rule» deveria ser substituída por um modo directo de governação. Como Fry (2000: 129) ironicamente afirmou «the ‘bifurcated’ state had been abolished by diktat». Banindo as práticas religiosas e o exercício do poder pelas autoridades locais e inclusivamente limitando a mobilidade rural/urbana13, o novo Estado independente reduziu os direitos civis e o acesso das populações rurais à esfera pública. Nesse sentido, a divisão entre «cidadãos» e «súbditos», anteriormente baseada na raça, foi substituída por uma outra que opunha o rural (universo dito «tribalista» e «feudal») ao urbano (universo considerado «civilizado»). Nas palavras de Fry (2000: 118) «the Portuguese colonial principle of assimilation was transmuted at independence into the Marxist-Leninist attempt to convert Mozambicans into socialist new men».

48 Algum tempo após a independência, o Estado organizou as eleições para as Assembleias do Povo nas principais aldeias comunais, mas as candidaturas das autoridades tradicionais ( mwenés) não foram aceites. Geffray (1991: 18) refere que em duas grandes aldeias da província de Nampula por ele estudadas, a população, face a esta proibição, resolveu votar nos chefes de linhagem. Esta estratégia foi contudo descoberta pelos representantes do partido e a votação teve que ser repetida. Desta vez a população responde à imposição votando em gente por eles considerada «idiota» ou «inofensiva». Ignorando as contradições subjacentes a estas eleições e a representatividade do seu número relativamente à totalidade da população moçambicana, Mamdani (1996: 108) refere que, em 1980, mais de trezentas Assembleias do Povo foram eleitas e que as eleições para além do nível das aldeias se tornaram um «indirect affair», declarando que «fusion of power» – a característica central do «indirect rule» – «was the principle around which the party-state was constructed».

49 Contrariamente à Frelimo, durante a guerra a Renamo adoptou em relação às autoridades tradicionais que lhe eram fiéis uma relação que se podia considerar como uma recriação do modelo de governação colonial de «indirect rule» (GEFFRAY, 1991: 115; FRY, 2000: 133). Às autoridades tradicionais era pedido que cumprissem um papel em tudo semelhante ao que lhes coube nos tempos coloniais, como a manutenção da ordem, o recrutamento de homens (milícias e soldados), e a cobrança de impostos (reservas alimentares para o exército).

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50 A estas obrigações acresciam as religiosas (que cumpriam conjuntamente com os adivinhos e com os médiuns), executadas com o objectivo de proteger o exército da Renamo em combate e garantir o sucesso dos seus ataques militares (GEFFRAY, 2001: 82; SEIBERT, 2003; HONWANA, 2003a, 2003b). São reportados casos em que a Renamo nomeou novos chefes quando a autoridade tradicional legítima abandonou o seu posto (ARTUR & WEIMER, 1998: 16). Florêncio (2005) utiliza o conceito de «autoridades tradicionais Renamo», precisamente para sublinhar o carácter não tradicional destas figuras.

51 A guerra resultou numa politização das autoridades tradicionais (ARTUR & WEIMER, 1998: 17). Aqueles fiéis à Renamo passam a ser conhecidos por mambos (designação do centro de Moçambique, de onde são originários a maioria dos comandantes da Renamo) em vez de mwenés, e tanto eles quanto a sua população deixam de pagar impostos ao Estado- Frelimo. Esta estratégia de resistência foi observada nas chefaturas de Mitukue e Konhomali, confirmando não só a manipulação política feita pela Renamo, mas principalmente a persistência do descontentamento relativamente ao Estado altamente centralizado, corrupto e dominado pela elite sulista da Frelimo.

52 Na verdade, como Seibert (2003: 268-269) referiu, esta dominação sulista que se instalou logo após a independência e que «was veiled by FRELIMO’s anti-tribal discourse of national unity, nurtured existing regional tensions that stemmed from the colonial period». Os resultados das eleições livres em 1994 e em 1999 revelaram um país dividido: a Frelimo ganhou a maioria dos votos na capital e nas províncias do sul, enquanto que a Renamo era a força política dominante nas províncias do centro e norte14.

53 Imediatamente antes das primeiras eleições multi-partidárias em 1994, o Parlamento aprovou a Lei 3/94 que acarretava reformas institucionais na administração local, com vista a uma maior democratização e descentralização através da criação de municípios.

54 Pela primeira vez após a independência, as autoridades tradicionais são legalmente reconhecidas e convocadas a participar nos processos de consulta e tomada de decisão na administração local, assim como na gestão de conflitos (WEIMER & FANDRYCH, 1999: 156). Alexander (1997: 8) argumenta que, após a eleição de Joaquim Chissano (1986), a Frelimo adopta muitas das exigências da Renamo, tais como o multi-partidarismo, o liberalismo económico e uma tolerância em relação aos chefes tradicionais e à religião. Segundo Fry (2000: 138), a reintegração das «autoridades tradicionais» mostra «the alliances that have been forged between the state and western finance15 and intellectual support for the restoration of tradition».

55 A Lei 3/94 foi posteriormente revogada e a criação de municípios tem sido um processo a conta-gotas e inacabado. A este respeito, Weimer (comunicação pessoal, 2004) defende que a coexistência em Moçambique de dois sistemas de governação local, que conferem diferentes direitos aos cidadãos, cria clivagens políticas e de cidadania.

56 Ao nível das províncias, os governadores e os administradores distritais são nomeados pelo governo central. A articulação destes representantes locais do Estado com as autoridades tradicionais foi regulamentada pelo Decreto-lei n.º 15/2000, no qual se declara que os administradores distritais devem consultar as «autoridades comunitárias» (conceito mais abrangente que «autoridades tradicionais» já que inclui também os representantes a nível local da Frelimo) quanto a «matters concerning local, social, and economic development, and in providing public goods and services» (KULIPOSSA & WEIMER, 2000: 14). Contudo, como é notado pelos autores, estas «autoridades comunitárias» têm que ser registadas pela Administração Distrital e não fica claro se o conceito inclui

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representantes (que na sua larga maioria são chefes tradicionais) dos partidos políticos da oposição, nomeadamente da Renamo (KULIPOSSA & WEIMER, 2000: 14).

57 No que diz respeito aos nossos estudos de caso, o Mwené Konhomali não se registou na administração do distrito de Maúa e como tal foi excluído do processo de tomada de decisão local. O Mwené Namacoma Goriate, pelo contrário, sendo leal à Frelimo, era constantemente convocado pelo Administrador do Distrito a participar em encontros locais. Segundo esta autoridade tradicional, a maioria dos seus «colegas» não entendia a língua portuguesa e em consequência disso não tinha qualquer tipo de participação. Também é significativo notar que as autoridades tradicionais da Renamo não eram reconhecidas pela administração do distrito, facto que, segundo o Mwené Namacoma, levou alguns deles – aqueles que temiam a perda dos benefícios16 que um posto na administração local lhes poderia vir a granjear – a adoptar uma estratégia que consistia em se registarem como membros do partido Frelimo (do que resultava uma dupla filiação partidária).

58 A relação entre os intervenientes mais importantes da sociedade civil (ONGs) e as autoridades tradicionais também ficou marcada pela ignorância e pelo mal-entendido. Após o final da guerra, as organizações não governamentais na província do Niassa (e possivelmente em muitas outras províncias) viram-se no meio de um fogo cruzado, sendo acusadas pelos ex-partidos beligerantes e suas bases sociais de apoio de conduzirem acções destinadas a beneficiar exclusivamente um dos lados do conflito. Se a administração local exerceu pressão sobre as ONGs no sentido de limitar/impedir a colaborações com os «conflituosos [adeptos da Renamo]» – reclamando algumas vezes para o Estado o mérito das intervenções de desenvolvimento –, as ONGs, pela necessidade de articulação das suas actividades com as intervenções e as políticas do governo, tornaram-se alvo fácil de suspeição por parte da população filiada na Renamo e eram frequentemente acusadas de serem agentes da Frelimo (TEMUDO & ARVÉOLA, 2002).

59 Neste frágil contexto, a cultura organizacional das ONGs emerge como fundamental para o sucesso das suas intervenções. Um exemplo pode ser dado: a intervenção da Oxfam no distrito do Nipepe teve que ser subitamente suspensa durante uma epidemia de cólera, porque os agricultores acusaram os agentes externos da Oxfam e do MCDI (que na verdade estavam a desinfectar os poços) de estarem deliberadamente a propagar a doença. A nossa pesquisa concluiu contudo que esta atitude foi na verdade um gesto desesperado de revolta contra o comportamento geral dos agentes externos – uma « weapon of the weak». O primeiro responsável da delegação da Oxfam no Niassa, considerando o seu salário muito baixo, resolveu complementá-lo criando uma empresa agrícola onde fazia uso da maquinaria e dos empregados da ONG; em consequência, os animadores rurais sentiram-se à vontade para também eles capitalizarem o seu tempo de trabalho e os recursos da ONG e montaram um esquema baseado na compra de pedras preciosas aos agricultores do Nipepe e na utilização dos veículos da Oxfam para o transporte de bens de primeira necessidade que vendiam aos agricultores, em concorrência desleal com os pequenos comerciantes locais.

60 O exercício dos direitos de cidadania pelas populações rurais pode assim assumir formas veladas onde, quer o Estado, quer as organizações da sociedade civil não são accountable ou não inspiram uma total confiança, especialmente em contextos pós-conflito.

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Sementes, espíritos e poder na reconstrução da paz

61 A questão da cidadania em Estados multi-culturais africanos e o seu papel na origem de guerras constitui uma temática ainda fracamente tratada. No contexto moçambicano, a adesão de largas franjas da população rural à guerra civil, conduzida por um exército/ partido inicialmente constituído por mercenários ao serviço de dois governos racistas num contexto internacional de Guerra Fria, poderá ser explicada numa perspectiva de luta pelos seus direitos de cidadania – nas suas componentes cívica, política, social e cultural17 – que lhe foram confiscados pelo mesmo partido que os conduziu à independência. Repare-se que mesmo a dimensão social da cidadania18 – normalmente associada com o sistema educacional e os serviços sociais – foi ameaçada, na medida em que a capacidade da população rural prover ao seu sustento através da agricultura ficou limitada pela criação de aldeamentos forçados. Para os que acreditaram que a Renamo lhes ia devolver os seus direitos de cidadania, o tempo encarregar-se-ia de demonstrar que também eles se tinham tornado cativos de um projecto que lhes era alheio.

62 A paz consolidou-se em grande parte por um processo de fadiga e desilusão das bases sociais de apoio de ambos os partidos. Porém, a acção das diferentes forças sociais e políticas deve traduzir-se em discursos e práticas que semeiem a paz e mondem a vingança. Moçambique é um caso paradigmático de capacidade de rápido restabelecimento da paz, que decorreu aliás sem necessidade de intervenção de uma Comissão de Verdade e Reconciliação. E se é verdade que as pessoas estavam já saturadas da guerra e que a mensagem difundida pela Frelimo incentivava ao perdão (cf. WILSON, 1993: 13), não se pode minimizar a função desempenhada na reconstrução comunitária pelas cosmologias locais e pelos líderes religiosos. A este respeito, Fry (2000: 134) refere a existência do pressuposto de que «justice will finally be brought about not by courts and the legal system but by the action of aggrieved ancestors against the descendents of their wrongdoers», sendo portanto as gerações futuras que pagarão o preço pelas atrocidades cometidas pelos soldados de ambos os exércitos (ver também HONWANA, 2003b: 60). Num estudo detalhado, Honwana (2003a, 2003b) sublinha ainda a influência dos curandeiros, adivinhos e médiuns tradicionais nos processos de cura, purificação e reintegração social após o fim da guerra.

63 A capacidade local de reproduzir instituições sociais, políticas e espirituais após um colapso social é também determinante. Como este e outros estudos de caso mostram (Baptista Lundin e Machava, cit. in KULIPOSSA & WEIMER, 2000: 11) os chefes tradicionais, independentemente do seu posicionamento político, contribuíram de forma inegável para a manutenção da coesão social durante e após a guerra. Por esse motivo, no processo de construção da paz e de modos de vida sustentáveis, é de suprema importância o envolvimento formal e informal dos líderes locais, considerados legítimos pela população 19, na resolução de conflitos e na administração local através da sua participação na definição de políticas e planos de desenvolvimento após a auscultação das suas comunidades (ver também, LEDERACH, 1994; ARTUR & WEIMER, 1998).

64 O governo e os partidos da oposição têm um papel instrumental na reconstrução da confiança entre os diferentes actores da sociedade, bem como na promoção da justiça social e no reconhecimento dos direitos cidadania a todos os actores, independentemente do seu posicionamento político durante o conflito. Por seu turno, as ONGs podem de igual forma ser cruciais na consolidação de relações de confiança e na criação de mecanismos

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de empowerment e de auto-ajuda em populações divididas como resultado de uma guerra, desde que mantenham uma cultura de transparência e sejam capazes de se manter imunes a tentativas de manipulação política por parte dos ex-partidos beligerantes.

65 Apesar de todos os esforços deverem ser feitos no sentido de ajudar as populações a regressar aos seus lugares de origem após terminada a guerra, a deslocação forçada pode constituir um gérmen de futuros conflitos. Ao nível comunitário, a forma pela qual a população rural reconhece direitos costumeiros áqueles que estiveram posicionados do lado oposto – tentando esquecer as atrocidades cometidas durante a guerra e acolhendo mesmo forasteiros20 (pessoas vindas de outras regiões e que após o conflito adoptam um comportamento migrante, recusando-se a retornar aos lugares de proveniência) – revela- se talvez como o mais importante pilar da reconstrução sustentável da paz.

66 A segurança alimentar configura-se também como vital na manutenção da estabilidade política local e como um travão a qualquer tipo de mobilização político-partidária. Pelo contrário, uma crise agrícola prolongada transforma-se numa causa de erosão do capital social e num catalizador de conflitos. Concluímos que a existência de sistemas eficientes de gestão do germoplasma e armazenamento, assim como formas de organização do trabalho com uma forte coesão social são condições fundamentais para garantir a autonomia em termos de auto-suficiência alimentar durante um conflito e uma rápida reconstrução após o seu fim. Se a guerra contribuiu claramente para uma erosão de capital social, o estudo de caso demostrou também a existência de uma grande capacidade de reconstrução e reconstituição da sociedade macua.

67 Até ao momento, doze anos volvidos desde o fim da guerra, a paz ainda não sanou por completo a desconfiança entre os anteriores partidos beligerantes. E se a Frelimo se vem mostrando cada vez menos disposta a abrir mão do controlo absoluto sobre o aparelho estatal – como ficou patente nas irregularidades verificadas nas eleições parlamentares e presidenciais de 2004 –, a Renamo por sua vez não parece capaz de consolidar a máquina partidária e de manter a sua base social de apoio. O alto nível de abstenção, principalmente entre os adeptos da Renamo, parece sintomático de que «potential opposition voters decided that rains had started and their day was better spent planting seeds than voting for RENAMO» (Mozambique Political Process Bulletin, 2004, 31: 6)21.

68 Em suma, a reconciliação pós-conflito pode ser situacional e dinâmica e uma sinergia entre tradição e modernidade, magia e decretos, interacção quotidiana e democracia parlamentar, espaços, lugares, pessoas e sementes, forças globais e respostas locais.

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NOTAS

1. Neste trabalho, sob a designação de chefes/autoridades tradicionais incluímos não só os líderes espirituais, religiosos e politicos – que durante a época colonial foram integrados na administração estatal como «régulos» ou «cabos» -, mas também os chefes dos grupos de descendência. 2. Sobre os processos violentos e humilhantes da perseguição às autoridades tradicionais entre os vaNdau, cf. FLORÊNCIO (2005). 3. Nas palavras de Florêncio (2002:61), «A Renamo adoptou então um discurso político-identitário integrador, que pretendia mobilizar toda a sociedade moçambicana que não se revia no Estado-Frelimo». 4. Mata pouco densa, resultante da regeneração do coberto vegetal depois dos campos de cultivo terem sido abandonados para recuperar a fertilidade. Geffray (1991: 123-132) refere que na região de Nampula os agricultores denominam shoshorona as instalações (casas e celeiros) construídas fora das aldeias comunais, nos territórios linhgeiros, após os ataques da Renamo. 5. O padrão de elevada subjugação e dependência económica e social dos casais jovens em relação aos seniores do mesmo ebumba, encontrado por Geffray (1990: 43-58) entre os macua de Nampula, não foi reportado pelos nossos entrevistados como tendo ocorrido no Niassa. 6. A sociedade macua era maioritariamente monogâmica, muito embora tenha sido também reportada a existência de relações poligínicas. 7. Geffray (1991: 88) relata casos semelhantes de chefes posicionados nos dois lados do conflito, cuja competência mágico-religiosa era motivo de temor pelos exércitos. 8. Sobre as razões de descontentamento dos jovens que conduziram à sua fácil mobilização pela Renamo, ver Geffray (1991: 74-77). 9. A troca de trabalho por alimentos é um mecanismo tradicional dos períodos de crise (olola). 10. Os nossos entrevistados relataram que os macua realizavam, em tempos antigos, raids para captura de mulheres e crianças por motivos demográficos (cf. GEFFRAY, 1991). Estas «pessoas vistas» passavam a constituir linhagens dependentes, estando no entanto interdito mencionar a sua origem em público. 11. Segundo Florêncio (2005), esta ambiguidade é mesmo a principal característica do lugar social dos chefes, como representantes das populações e simultaneamente do Estado. 12. Nas palavras de Alexander (1997:2), «This exclusion and condemnation took little note of the wide variations in authority and popularity of chiefs and other holders of ritual power». 13. Em 1983, o governo deportou cerca de 50000 emigrantes urbanos desempregados para as províncias do norte – durante a chamada «Operação Produção» –, considerando-os improductivos e parasitas (cf. Geffray, 1991: 74; SEIBERT, 2003: 269). Muito embora, as limitações à mobilidade dos cidadãos constituisse uma das críticas da Renamo ao governo Frelimo, as populações que irão ficar sob o seu controlo durante a guerra sofreram todavia iguais restrições (cf. ALEXANDER, 1997: 9). 14. A Renamo obteve uma maioria em cinco provincias (total de onze) nas eleições de 1994 e em seis províncias nas de 1999 (cf. Mozambique Political Process Bulletins, http://

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www.mozambique.mz/awepa/issues.htm). De acordo com Artur & Weimer (1998: 18), ambos os partidos têm «predominant ethnic bases of leadership, membership and voters». 15. Kulipossa & Weimer (2000: 24) consideram que o governo moçambicano «is predominantly accountable to foreign donor agencies rather than to its own citizens». 16. Em troca pelo cumprimento destas tarefas na administração local, as autoridades tradicionais exigiam benefícios semelhantes aos que usufruiam no tempo colonial: salário, uniforme, casa e o direito de hastear a bandeira nacional. 17. Se o conceito de cidadania era tradicionalmente constituído por três elementos – cívico, político e social – (ver MARSHALL & BOTTOMORE, 1992), hoje a sua dimensão cultural tornou-se incontestável (ver CRAITH, 2004). 18. Definida por Marshall (MARSHALL & BOTTOMORE, 1992: 8) como «the whole range from the right to a modicum of economic welfare and security to the right to share to the full in the social heritage and to live the life of a civilised being according to the standards prevailing in the society». 19. Não pretendemos contudo reificar e generalizar a importância e legitimidade das autoridades locais, cuja governação assume(iu) em muitos contextos africanos um carácter autocrático e predatório, como é o caso da Serra Leoa. 20. Sobre a problemática da autoctonia, tão importante no actual contexto africano, ver Bayart, Geshiere e Nyamnjoh (2001). 21. Ver http://by15fd.bay15.hotmail.msn.com/cgi-bin/getmsg?msg=MSG1104493628.11&sta (04-01-2005).

RESUMOS

Durante muitos anos, a ideia de que a guerra civil que assolou Moçambique era conduzida por um exército mercenário ao serviço de interesses externos foi considerada inquestionável, desconhecendo-se que a Renamo possuía uma base social de apoio rural e que a produção agrícola constituía uma das fontes de financiamento da guerra. Após a independência, o partido- Estado Frelimo provocou uma desestruturação social, económica, política e cultural das sociedades rurais, conduzindo um projecto de desenvolvimento e de construção da nação autoritário e centralizado, que pôs em causa direitos fundamentais de cidadania. A adesão à guerra de parte da população pode assim ser interpretada como uma tentativa de conquista desses direitos. Neste trabalho, através de dois estudos de caso contrastantes, pretende-se revelar as estratégias de reprodução social e económica que permitiram a sobrevivência das popula ções durante o conflito e a posterior reconstrução, mas também as múltiplas formas que a afirmação dos direitos de cidadania pode encobrir.

For many years, the idea that the civil war ravaging Mozambique was led by a mercenary army at the service of external interests was unquestioned. It was not known that Renamo had a social basis of rural support and that agricultural production constituted a funding source for the war. After Independence, the Frelimo Party-State provoked a social, economic, political and cultural destructuring of rural societies, leading an authoritarian and centralized project of development and nation-building that jeopardised fundamental rights of citizenship. The joining the war of part of the population could thus be seen as an attempt to conquer these rights.

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Through two contrasting case studies, in this paper I intend to unveil the strategies of social and economic reproduction that made it possible for populations to survive during the conflict and to recreate their livelihoods in the aftermath, as well as the multilayered ways the affirmation of citizenship rights can take on.

ÍNDICE

Keywords: civil war, reconciliation, citizenship, Mozambique Palavras-chave: Guerra civil, reconciliação, Cidadania, Moçambique

AUTOR

MARINA PADRÃO TEMUDO Instituto de Investigação Científica Tropical, Lisboa

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Os partidos políticos africanos no virar do milénio: um ensaio preliminar

Manuel Maria Braga

1 Dado que a passagem de objecto real a objecto de estudo se encontra sujeita, no processo da sua edificação, à utilização de instrumentos das Ciências Sociais (razão pela qual este pode ser apresentado como uma construção social), não deixa de ser relevante sublinhar, que a disciplina que serviu de «âncora» a este exercício foi a Antropologia Política, na medida em que esta, tal como Balandier afirma, «impõe-se em primeiro lugar como um modo de reconhecimento e de conhecimento do exotismo político, das formas políticas “outras”. É um instrumento de descoberta e de estudo das diversas instituições e práticas que asseguram o governo dos homens, assim como dos sistemas de pensamento e dos símbolos que os fundamentam» (BALANDIER, 1967: 15).

2 É certo que a objectividade desta disciplina (apesar da sua flexibilidade e maleabilidade teóricas e metodológicas) vai quebrar algum do romantismo e encanto inerentes a tudo o que é «exótico», mas ao definir objectivamente toda a panóplia de relações que se inter- cruzam e inter-influenciam nas arenas políticas africanas conseguir-se-á ter uma melhor percepção de alguns dos trajectos e opções prosseguidas pelos actores africanos ao longo do último século e sobretudo conseguir-se-á também demarcar, de um modo mais nítido, as fronteiras de facto existentes, entre as construções cognitivas africanistas (que procuram proceder a uma transnominação do senso comum em saber) e as contribuições epistémicas que se procuram enquadrar sob um Paradigma Moderno, garante primeiro e último do saber científico (posição que o presente artigo adopta, tanto mais que se o não fizesse incorreria no perigo de promover uma falácia apriorística das proposição por si veiculadas, dada a sua exterioridade relativa face ao objecto de estudo escolhido (embora em campos diametralmente opostos (BERTHELOT, 2000: 112-119) e (BORDA & MORA- OSEJO, 2003: 676-678))).

3 Apresentadas que estão a temática, a problemática e a contextualização teórica deste artigo, resta apenas indicar quais os conceitos que serão alvo de um tratamento mais aprofundado e quais as relações sócio-políticas, cuja evidência empírica se procurará

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encontrar, de modo a comprovar plausibilidades teóricas consideradas como pertinentes (e que aqui serão tratadas como hipóteses de partida). Dado que esta estratégia de inferência dedutiva (assente no pressuposto, de que se um determinado conjunto de hipóteses é partilhado por um número representativo de autores, então é porque aquelas, em princípio, se verificam na realidade) usufruirá necessariamente de um carácter de «empréstimo», por investigadores que fizeram estudos no terreno e que ilustraram, com exemplos concretos, uma determinada posição teórica, referenciar-se-á sempre que necessário as fontes bibliográficas consultadas e assumir-se-ão como válidas as indicações empíricas evidenciadas nas mesmas.

4 Procurar-se-á nomeadamente averiguar até que ponto se poderá estabelecer uma grelha/ matriz conceptual de análise político-partidária válida para todo o continente e, caso tal se verifique, que evolução é que esta sofreu no período supra-referenciado? Quais as estratégias prosseguidas pelos partidos políticos (e pelos seus líderes) para implementação de uma determinada ideologia? Quais as clivagens que servem de base à exploração de factores de coesão ou, por outras palavras, quais os aspectos identitários que os partidos políticos manipulam para cativar as «massas»? Em que contexto surge a partidarização das relações sociais e quais as eventuais especificidades desta transformação nos tecidos sociais africanos? Quais as influências (tanto exógenas, como endógenas) de que os partidos políticos africanos foram alvo? Mesmo que questões outras, para além destas, surjam ao longo do trabalho de pesquisa encetado (e aqui sintetizado), um dos objectivos que se procurará atingir é o de dar resposta a algumas das hipóteses de partida, para chegar a algumas perguntas conscientemente sem resposta. Desta forma o ciclo estará completo e nova análise deverá ser levada a cabo, para novamente lançar mais dúvidas e novas hipóteses serem colocadas e testadas...

Matriz teórica

5 Na medida em que as construções conceptuais aqui enunciadas, ostentam uma carga cognitiva, edificada de forma tendencialmente abstracta e não particularizável, a visão de conjunto que neste ponto se promoverá, servirá no essencial, como contextualização à abordagem mais «depurada» que subsequentemente se realizará. Como tal, para que eventuais equívocos sejam minimizados ou mesmo evitados, o valor epistémico dos conceitos mais relevantes, ou dos que possam suscitar maiores interrogações será evidenciado de modo exploratório, ao longo deste enquadramento.

6 Desta forma, o primeiro conceito a abordar é o de «partido político», que utilizará a proposta de William Schonfeld1, devendo ser entendido, como um «tipo de colectividade não efémera de indivíduos que partilham, em graus diversos, um conjunto de objectivos comuns distinguindo-se de qualquer outra na medida em que se pretende poder recrutar de entre os seus membros o pessoal capaz de governar a Nação». A partir desta definição é possível avançar desde logo com a ideia, de que sendo o objectivo último de um partido político, a maximização do poder por si detido, então, o que aquele procura é garantir que a sua máquina partidária se assuma como máquina de Estado (ocupando assim, posições legislativas, executivas e administrativo-burocráticas).

7 É esta função-objectivo que se assume como uma das principais rupturas com as chefiaturas tradicionais, na medida em que, os partidos políticos (e nomeadamente os seus líderes) procuram alcançar o poder, para poder usufruir «realmente» dele (não apenas do prestígio que lhe está associado, mas antes das inúmeras possibilidades que ele

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oferece), ao passo que os soberanos tradicionais africanos assumiam-se como uma figura representativa do poder, cujo simbolismo se encontrava (em casos extremos, mas não raros) enraizado na própria negação da efectivação deste2. Neste sentido, o fenómeno dos regimes de partido único (que não pode ser compreendido como eufemismo linear de um qualquer despotismo), que se podem encontrar um pouco por todo o continente africano, ao longo dos últimos 40 anos (República Democrática do Congo sob a direcção de Mobuto Sese Seko, Senegal no período do Presidencialismo Senghoriano, ou Angola até à autora do terceiro milénio), deve ser enquadrado neste exercício de mimetismo dos órgãos de partido em órgão de Estado e contra-factualizado como um cenário não possível, numa sociedade tradicional, em que o soberano não detinha, nem a autoridade, nem o poder para tal.

8 Apesar de muitas vezes equiparados e utilizados indiscriminadamente é necessário todavia ter o cuidado de não utilizar os conceitos de «poder» e «autoridade» de uma forma leviana, dado que estes não são duas faces de uma mesma realidade3, pois se o primeiro pode ser relacionado com a capacidade de um actor exercer coacção e exigir obediência de outros(s) (capacidade esta, que em última análise pode ser atribuída de modo exclusivo ao Estado), no que concerne à «autoridade», esta é antes de mais, a síntese de uma relação voluntária entre duas partes, que implica direitos e deveres para ambas as partes e que tem, muitas vezes a ela associada, valores carismáticos e/ou tradicionais. Na África do Sul, após a queda do apartheid, em 1991, verificou-se uma relação interessante entre estas duas «variáveis sociais»: por um lado, De Klerk ao assumir o «erro do Apartheid» e ao apelar a uma democracia pluri-racial, minimizou a perda de poder que afectou o National Party, com a autoridade conquistada, tanto em termos nacionais, como em termos internacionais, ao assumir uma tal posição. Pelo contrário, o ANC (African National Congress) viu a sua legitimação popular reforçada e o poder de Estado (que lhe estava anteriormente vedado) finalmente alcançado de uma forma democrática reflectindo o ideal «um homem, um voto».

9 Porém, as relações autoridade versus poder podem assumir outras formas, bem mais conflituosas, como é possível constatar pelo diferendo que durante mais de duas décadas opôs os líderes «tradicionais» do Distrito de Nanumba, no Norte do Gana, e o poder central (conflito que desde 1980 já contou com episódios relativamente violentos), na medida em que as autoridades locais (naam) exigem manter a sua soberania sobre as terras de Kpasaland, o que não é considerado possível pelo governo central, devido a restrições de traçado administrativo e sobretudo (mesmo que não explicitado) devido a uma politica autófaga assente no cacau e que se encontra fortemente dependente da capacidade do Estado em controlar todo o processo (produção, escoamento e exportação) que afecta esta matéria-prima4.

10 Antes de prosseguir, importa sublinhar que a visão um tanto ou quanto globalizante e alisadora que até agora aparentemente se promoveu, não pretende demonstrar (nem o poderia) que os países africanos padecem de uma qualquer homogeneização ao nível dos sistemas e percursos políticos por cada um deles experimentado. A realidade é bem diferente e pode assemelhar-se a um mosaico político/ideológico/partidário dinâmico, cujas forças endógenas asseguram a sua própria reprodução, essencialmente através de quatro instrumentos: os ritos, os mitos, as manipulações identitárias e as doutrinas sociais e políticas.

11 Os ritos, enquanto fenómeno social, não podem ser vistos apenas como construções exclusivas de uma determinada cultura, ou como expressões saudosistas e quase

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inconscientes de um revivalismo do passado, dado que passaram a assumir-se como uma estratégia passível de «exportação e importação», que visa especificamente a gestão de conflitos sócio-culturais, mormente os que traduzem os atritos intrínsecos à concomitância de uma prática modernizante, com a prossecução de um discurso de base tradicionalista. Assim, os rituais das campanhas partidárias, em ambiente de eleições, são por si só, explicativos do modo de funcionamento deste instrumento (visível através dos debates, das acusações, do apelar a consciências colectivas, ou dos próprios comícios), que assume desta forma, o ónus de assegurar que o partido, com base numa retórica de índole tradicional, se possa assumir como motor de modernização.

12 Mas não é necessário recorrer aos momentos eleitorais para que se possa percepcionar o peso dos rituais no jogo político africano. As tentativas de conciliação da política «moderna», com eventos «tradicionais» particulares (festividades religiosas, manifestações étnicas ou mesmo, procedimentos de âmbito plebiscitário, que com o tempo, passaram a usufruir de um carácter fortemente simbólico) são a este título, suficientemente elucidativas. É neste sentido, por exemplo, que se deve compreender a participação, tanto de Léopold Senghor (1960-1980), como de Abdou Diouf (1981-2000), e mesmo do actual presidente senegalês, Abdoulaye Wade, nas manifestações confrariáticas mais importantes da Mouriddiyya (o Grand Maggàl de Touba) e da Tijâniyya (o Grand Gammou de Tivaouane).

13 No que concerne à utilização do mito, esta verifica-se preferencialmente ao nível dos líderes partidários, numa clara tentativa de, por um lado, imunizar o dirigente (enquanto pessoa) de ataques que possam ocorrer por intermédio dos seus adversários políticos e, por outro, promover um tropo sinédoque, em que o misticismo que envolve a imagem do líder, contagia o próprio partido que o enquadra institucionalmente e as actividades que ele desenvolve. Nelson Mandela, na África do Sul, atingiu o estatuto de mito, ao ser o principal protagonista na luta contra o apartheid e ao conseguir democratizar as instituições anteriormente ocupadas por uma minoria branca; Kwame Nkrumah, no Gana, é hoje referenciado como tal, pois para além de ter conduzido a Costa do Ouro à independência, havia conseguido assumir, ainda no período colonial, cargos políticos junto do poder colonizador (algo de inédito até então); Seretse Khama, no Botswana, conseguiu fazer a ponte entre a «tradição» (na medida em que era o neto do chefe Khama III) e a modernidade (ao ser tornado Sir pela Rainha Vitória e ao afirma-se como primeiro Presidente do Botswana) mistificando assim, para além da sua pessoa, a posição por si ocupada (ele é um chefe que conquista, pelo voto democrático, o lugar de presidente).

14 A manipulação identitária, enquanto instrumento de consolidação de uma pretensa «identidade partidária», apesar de potencialmente perigosa (pois pode implicar a ocorrência de medidas que promovam uma selecção adversa dos apoios necessários – humanos, financeiros, internacionais), não deixa no entanto, de ser uma estratégia frequente, tanto mais, que o carácter muitas vezes inane da capacidade de mobilização ideológica/doutrinária que o discurso político evidencia, não deixa outra solução, que não o aproveitamento demagogo (no sentido Weberiano de «aproveitamento das paixões das massas» (WEBER, 2002: 179)) das saliências que os tecidos sociais evidenciam. A Mouridização que actualmente afecta o Senegal, foi aproveitada (e até certo ponto manipulada) por Abdoulaye Wade, nas eleições presidenciais de 2000, como meio de uma sua autonomização face a toda a restante Oposição que apoiava a Sopi («Mudança», em wolof) e como mecanismo de garantia de mobilização de uma identidade confrariática, assente de modo bastante efectivo na relação entre o «guia espiritual» (Marabout ou Serign

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) e o discípulo (talibée) e que era partilhada por mais de três milhões de senegaleses, muitos deles potenciais eleitores.

15 Quanto à variável «doutrina», esta assume-se de jure, como o fio condutor das políticas económicas e dos comportamentos políticos do Estado. Porém, este instrumento, no caso africano, foi enfatizado (tanto em termos internos, pelos próprios dirigentes africanos, como externos, por toda uma comunidade internacional) durante as primeiras décadas das independências, na medida em que estas, ao ocorrerem num ambiente de bipolarização doutrinária (em que o bloco socialista se opunha ao capitalista), conduziram o continente africano a uma situação em que este se materializou como o campo de batalha privilegiado para expansão de ambos os blocos. Desta forma, algumas das coligações e muitos dos conflitos que exibiram como pretensa base, uma oposição ideológica (como por exemplo a guerra entre a RENAMO e a FRELIMO, em Moçambique, ou entre a UNITA e o MPLA, em Angola), não devem ser analisados apenas sobre esta matriz explicativa, tanto mais, que não é negligenciável que este argumento foi utilizado como fonte de legitimidade internacional, para encobrir as verdadeiras causas dos antagonismos existentes.

16 Todavia não foi só o ambiente de Guerra Fria que tornou relevante a referência da doutrina, porquanto esta também se afirmou (e ainda hoje se afirma, embora com uma preponderância mais reduzida), como uma expressão de modernidade, «estimulada durante os períodos revolucionários e durante as fases de modificação profunda das sociedades e das suas culturas (...) e tanto mais se manifesta quanto (...) surge com a época moderna, sobre as ruínas dos mitos que caucionam a ordem antiga» (BALANDIER, 1967: 15), que foi precisamente o que aconteceu nas transições para as independências ao longo das décadas de 50 e 60. Contudo, e independentemente do proselitismo doutrinário utilizado é possível identificar um certo número de características que lhes são comuns e que por eles são partilhadas, nomeadamente: a) a condenação da exploração e opressão efectuada pelos ex-colonizadores; b) predomínio dos símbolos unitários e de nação 5; c) tentativa de conversão psicológica (primeiro das elites tradicionais e, posteriormente das massas)6; d) inspiração em filosofias sociais e doutrinas políticas estrangeiras (socialismo, marxismo, capitalismo) e; e) substantivação convoluta da dialéctica entre tradição e revolução/ modernização, de uma forma artificial e falaciosa.

17 O mapa político-ideológico entretanto construído alicerçou-se em partidos políticos fortemente apoiados tanto pelas «superpotências» hegemónicas do período, como também pelos seus antigos colonizadores, que desta forma viram uma oportunidade de continuarem a explorar as vantagens competitivas que os territórios africanos continuavam a oferecer, não só em termos económicos (aspecto cada vez menos relevante, pela incapacidade demonstrada pelos países africanos em se assumirem como verdadeiros parceiros comerciais), mas nomeadamente, em termos de uma geopolítica cada vez mais global e que durante mais de quatro décadas, se encontrou bipolarizada, obrigando a uma permanente disputa entre ambas as partes, de modo a evitar que a outra conseguisse uma qualquer hegemonia regional.

18 Para que esta breve grelha de análise esteja concluída tomar-se-á seguidamente contacto com os três domínios fundamentais que, segundo Copans (1971), exprimem e constroem o político, a saber: o parentesco, a ideologia e a economia7. O parentesco ao assumir-se como a referência identitária primeira da sociedade, apresenta-se (e é manipulada nesse sentido), como a «armadura por natureza» do político, não só ao nível das chefiaturas locais (mas principalmente ao nível destas), mas também ao nível regional, ou nacional

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(como é o caso do Botswana Democratic Party, cujo presidente descende da linhagem dirigente tradicional dos batswana), mesmo que em termos constitucionais se proíba a formação de partidos políticos de base étnica ou religiosa, como por exemplo acontece no Senegal, sem que tal tenha alguma vez impedido o aproveitamento plebiscitário desta variável social.

19 Quanto ao domínio da ideologia, esta pode ser compreendida, de um modo maximalista, como o conjunto de todas as formas possíveis de consciência social (moral, religião, mitologia, concepções do mundo), tendo como principal função, não a de «oferecer aos agentes um conhecimento verdadeiro da estrutura social, mas simplesmente em inseri-los de certa maneira nas suas actividades práticas que suportam essa estrutura» (POULANTZAS in COPANS, 1971: 176), o que implica que a ordem social se reproduz sob um pretexto de coerência e hegemonia social de determinada função político-ideológica – a testar esta hipótese, basta recordar que os partidos políticos das décadas de 50 e 60 possuíam como ideologia base, a defesa da independência face ao estado colonizador, defendendo uma retórica anti- colonialista e de homogeneização dos tecidos sociais nacionais, por forma a alcançar um mínimo de coesão, mesmo que artificial e efémero, dentro de fronteiras.

20 No que concerne ao último domínio elencado – o económico – este é susceptível de ser traduzido na transformação do prestígio económico em poder e consequente apropriação dos símbolos inerentes ao primeiro como forma de reprodução do segundo (a título ilustrativo, atente-se ao facto da United Gold Coast Convention, uma das forças políticas mais representativas do Gana na altura da independência, possuir como núcleo central, uma elite já estabelecida desde o início do período colonial, aspecto que se traduziu na defesa dos interesses deste grupo).

Os partidos políticos africanos: as paradoxalidades que não o são

21 Na posse de uma grelha conceptual, como a que entretanto e de forma sumária se apresentou, é agora possível partir para uma análise de âmbito mais empírico dos partidos políticos africanos tendo todavia consciência que; a) as homogeneizações que aqui se possam efectuar usufruem apenas de uma legitimidade metodológica, dado que a sua transposição linear para a realidade, não é possível, tais as originalidades e especificidades que no terreno é possível encontrar e; b) se está na presença de construções sociais que possuem quadros normativos particulares, que se procuram adaptar aos tecidos sociais aos quais se reportam extrinsecamente.

22 Dado que estas organizações não são construções de génese tradicional africana (na medida que as chefiaturas tradicionais assentavam muito fortemente no domínio do parentesco e sucediam-se endogenamente de uma forma quase natural), a sua forma foi influenciada, primeiro por forças exógenas, que rapidamente foram complementadas por processos de adaptação e mimetismo endógenos.

23 Todavia, estes percursos devem ser enquadrados tanto no tempo, como no espaço, pois a realidade colonial afectou o continente africano de diferentes formas (não redutíveis apenas a uma causalidade centrada nas potências colonizadoras, ou nas politicas por estas preconizadas) e o século XX foi profícuo em pontos de ruptura, que no entanto, não podem na maior parte dos casos, ser extrapoláveis à totalidade subsaariana.

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Período Pré-II Guerra Mundial (1895-1940)

24 Apesar da «crise de transição» (de sociedades tradicionais, para sociedades modernas) só agora se começar a fazer sentir verdadeiramente, o mal-estar no seio da larga maioria dos tecidos sociais africanos era evidente (pois assistiam a uma deterioração efectiva das suas condições de vida) e começava a ganhar relevância política para os dirigentes «associativos»8 mais atentos. Porém, e neste período em particular, a colonização dos territórios implicou profundas rupturas, nomeadamente com os quadros normativos dos diversos sistemas sociais africanos, por meio da aplicação de um modelo de estado-nação, tipicamente europeu, e que retalhou de forma discricionária as diversas unidades políticas autóctones originalmente existentes, preconizando assim, a destruição dos equilíbrios tradicionais e a implementação de um legado de autoridade política (um Estado que esmaga toda e qualquer resistência), que ainda hoje é possível encontrar sob a forma de regimes despóticos, como o do Sudão.

25 É de toda a importância fazer aqui uma pausa para reflectir um pouco sobre estas rupturas, pois a sua preponderância fez-se sentir ao longo de todo o período colonial e perpetuar-se-á, com ligeiras nuances, até aos dias de hoje. Neste sentido, importa sublinhar que a imposição de um modelo exógeno de administração implicou o esvaziamento da maioria das funções das chefias tradicionais (e inerente quebra dos equilíbrios sociais anteriormente existentes), que viam assim, o seu poder simbólico enfraquecido e, consequentemente, a sua credibilidade, como representantes e líderes de uma comunidade, corroída.

26 Esta nova situação, para além de ter criado um vazio de poder, gerou um quadro normativo e simbólico inane, que foi sendo preenchido, primeiro por indivíduos «carismáticos» e posteriormente, por partidos políticos que assumiram, para além de uma função de representatividade, um papel de charneira entre os desígnios da força colonizadora e as práticas dos tecidos sociais. Paradoxalmente, o poder que havia enfraquecido as chefiaturas tradicionais, é exactamente o mesmo que despoleta e legitima a existência de partidos/associações políticas autóctones sem que, para isso, a administração colonial tenha imposto qualquer tipo de partidarização das relações de autoridade.

27 Um exemplo quase «paradigmático» da aglutinação de tecidos sociais díspares num único estado-nação, é oferecido pela Nigéria, que congrega mais de 250 etnias nas suas fronteiras (SCHRAEDER, 2000: 102), o que criou problemas de identidade durante o período colonial, dada a multiplicidade e sobreposição das identidades sub-coloniais (um indivíduo dever-se-ia assumir como Britânico, Nigeriano, Igbo, Yoruba, ou Hausa?). No entanto, seria abusivo afirmar que este foi um problema de todas as colónias, pois países como o Botswana, o Ruanda e o Burundi, apesar da coexistência de diversas etnias e religiões, não verificaram, neste período, grande atritos inter-étnicos ou inter-religiosos, na medida em que, tanto pela existência de uma etnia largamente predominante, como pela manutenção das fronteiras existentes, desde há várias gerações, a imposição exógena de uma quadrícula politico-administrativa mostrou-se como um impacto de menor importância.

28 Resta apenas referir, a propósito deste período, que as construções políticas africanas foram igualmente, consubstanciadas pelos seus líderes e por todos quantos delas dependiam directa (ou indirectamente) em respostas à exploração económica dirigida a

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partir da metrópole, surgindo de forma mais ou menos espontânea, como o que aconteceu no Quénia com a East African Association, liderada por Harry Thuku que, em 1920, encabeçou um movimento de contestação às políticas (económicas, mas especialmente tributárias) por parte do Reino Unido.

29 Por outro lado, o pan-africanismo começa a dar os primeiros passos (nomeadamente na costa ocidental, mais especificamente, nas colónias britânicas), como fica demonstrado pela criação do National Congress of British West Africa (NCBWA), logo após a I Guerra Mundial, e cuja apatia, o condenou à extinção, em meados da década de 20.

A Segunda Colonização e as Independências (1940-1985)

30 A II Guerra Mundial surge, para o continente, como um dos marcos indeléveis da sua história recente, pois foi a partir deste episódio que a estratégia das potências colonizadoras se alterou, passando a prosseguir aquilo a que Freund apelida de «New Deal Africano» (FREUND, 1984: 194), que assentou fundamentalmente na aposta na industrialização (sobretudo transformadora, como meio de maximização das potencialidades em termos de matérias-primas das colónias e de minimização da necessidade de importar bens a parceiros outros, que não os que se encontravam sob sua administração), numa tentativa de criação de uma classe operária urbana relativamente bem remunerada (atente-se no caso de Dakar, quando esta era a capital da AOF), na construção de infra-estruturas de suporte às indústrias recém-criadas, no desenvolvimento das agriculturas de plantação (as cash-crops que foram elevadas a cultura de salvação nacional, como o amendoim no Senegal, ou o cacau, no Gana), na intensificação das anteriores formas de penetração do capital produtivo metropolitano e numa aparente preocupação com o bem-estar das populações nativas (com o intuito primeiro e último, de aplacar os cada evz mais evidentes sinais de exigência de autonomia).

31 É neste período que as diferenças em termos de estratégia de colonização se agudizam, apostando a Inglaterra numa delegação de responsabilidades, no sentido de dar alguma representatividade (mais aparente que efectiva) aos interesses africanos (especialmente aos das suas elites tradicionais), de modo a preparar uma eventual independência que só ocorreria a longo prazo; a França idealizando um grande império totalmente integrado9, onde todos os indivíduos usufruiriam de uma nacionalidade francesa e teriam o mesmo estatuto de cidadania (iguais direitos e deveres) e; Portugal, continuando a prosseguir a política possível (num ambiente de antagonismo cada vez mais evidente entre a metrópole e as colónias), dadas as diversas vicissitudes que o regime (Estado Novo) começava a enfrentar em termos internos. Estas diversas opções resultaram no crescimento efectivo (tanto em número, como em relevância) dos partidos políticos africanos, nos dois primeiros casos, e no aparecimento de fenómenos que rapidamente degeneraram em movimentos de guerrilha nas colónias lusófonas (mormente na Guiné Bissau, Moçambique e Angola)10.

32 Esta conquista de um espaço e de uma crescente visibilidade, pelos partidos políticos levou-os a assumirem, por vezes, uma posição anti-colonialista, como no caso da Union des Populations du Cameroun (Camarões), que liderou uma revolta camponesa em 1955, do Convention People’s Party (Costa do Ouro – Gana), que apelando à união nacional e apresentando um programa de «prevenção de polarização de poderes» (de modo a que antagonismos de base regional, étnica ou religiosa fossem apaziguados) conseguiu

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conduzir o Gana à independência em 1957, ou do TANU (Tanganyika Africa National Union), de Julius Nyerere11 que, utilizando um mix político semelhante ao do CPP, no Gana, conseguiu aliar os interesses de uma pequena burguesia florescente, com as necessidades das massas populacionais.

33 Apesar desta aparente massificação partidária, a verdade é que poucos foram os partidos que, nesta fase, conseguiram ser genuinamente generalistas. As influências da pequena burguesia e de líderes sindicais sobrepunham-se à inércia e a uma certa idiossincrasia anódina, que a população em geral demonstrava, o que resultou numa estratégia partidária de apoio pontual às reivindicações de tecidos sociais específicos (os mais relevantes em termos eleitorais), de forma a se poderem fazer apresentar extrinsecamente como representantes legitimados pelo «povo», junto das autoridades coloniais, e assim, consolidar uma posição de verdadeiros (de facto apenas potenciais) contra-poderes. Partidos como o Sierra Leone Peoples’s Party, o Uganda People’s Congress, ou o National Congress of Nigeria and the Cameroons adoptaram este comportamento profiláctico de preparação de um novo contracto social, em que a dependência, mais que (neo)colonial seria de âmbito ideológico.

34 Há medida que as potências coloniais viam os seus impérios a esboroarem-se, os partidos políticos africanos iam-se afirmando como «herdeiros naturais» do poder estatal e, simultaneamente, cimentavam a sua posição de instrumentos «modernizantes», de base «tradicional».

35 É especialmente nestes anos, de convulsão social e política, que os partidos políticos se assumem como «o primeiro dos meios de modernização, por virtude da sua origem ligada à iniciativa das elites modernistas, da sua organização, que lhe permite ter com as comunidades uma relação mais directa do que a administração e, finalmente, devido às suas funções e aos seus objectivos, visto que pretende ser, e é em diversos domínios, o empreendedor do desenvolvimento» (APTER in BALANDIER, 1967: 182).

36 De modo a assegurar esta modernidade os partidos fazem uso de um aparelho burocrático, de uma retórica de progresso e de diversos meios de difusão de informação que veiculam, no entanto, uma ambiguidade cultural, um corpo simbólico, homogeneizador das rugosidades existentes nas respectivas formações sociais territoriais, uma sacralização do líder do partido (atribuindo-lhe um carácter mítico/heróico – por forma a ser-lhe confiada a autoridade do povo – e um carácter de liderança – de modo a conseguir-lhe assegurar a avalização de poder) e uma ideologia amplamente ecléctica.

37 Os partidos assumem assim, mais uma característica paradoxal, traduzida pelo facto de a sua praxis alicerçar-se numa modernidade importada, tanto através dos seus líderes, como pelas elites que lhes asseguravam o poder (quando estas usufruíam de um significativo legado metropolitano). No entanto ao negligenciarem assim as incompatibilidades ontológicas entre uma «Caixa de Pandora» que lhes fornecia sustentação popular e a tentativa de aplicação de um quadro geral que «alisava» determinados particularismo e que estabelecia novas alianças, tanto com instituições da antiga ordem social, como com organizações semi-modernistas (de modo a que a difusão de novas ideias fosse efectuada com o mínimo de atritos), o que de facto fica patente é a inaptidão dos políticos africanos deste período, em acomodarem a sua própria história, nos seus próprios programas: « omnipresente, a tradição impõe, à tarefa modernizante do partido político, limites que as opções mais radicais não conseguem reduzir sem o auxílio do tempo» (BALANDIER, 1967: 184).

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38 O aumento da urbanização (e consequente proletarização dos tecidos sociais urbanos), a maior escolarização dos próprios africanos, a formação de associações voluntárias (religiosas, culturais, étnicas, de solidariedade – muitas delas partilhando mais do que um destes denominadores), a difusão dos ideais de pan-africanismo e de negritude, o envolvimento de soldados africanos nas frentes de batalha tanto da I, como da II Grandes Guerras, as descolonizações na Ásia (cujo maior paradigma foi a independência da Índia), as mudanças estruturais nos sistemas internacionais político-económicos (Guerra Fria, Nova Ordem Económica e Internacional)...

39 Sem ser exaustiva, esta listagem, é já suficientemente elucidativa do ambiente em que as sociedades africanas se encontravam quando o nacionalismo africano surgiu como solução, para os partidos políticos superarem, de uma forma célere, os eventuais entraves que a tradição teimava em levantar à prossecução de uma ideologia imersa na modernidade e que era essencial para o sucesso da aproximação ao Ocidente e aos seus valores, que as elites procuravam atingir. No entanto, e à medida que a euforia das independências se desgastava, os contra-poderes endógenos e autóctones ao continente começaram a surgir, e a homogeneização dos tecidos sociais (que até então tinha sido semente fecunda para o nacionalismo africano) deixou de ser, em muitos casos, sustentável.

40 Dadas estas condicionantes, não é de estranhar portanto que o programa político dos partidos se resumisse a um de dois pilares: a independência do país ou, caso o país fosse já independente, a ideia do progresso e de modernidade... O resto, assentava numa retórica de base efectivamente tradicionalista e na existência de um líder carismático que fosse capaz de assegurar, para o partido, que a máquina partidária fosse assimilada pela máquina do Estado, assim que o poder fosse conquistado (independentemente de o ser, com recurso a instrumentos plebiscitários e/ou coercivos). Para os eleitores em geral, a coesão do país, tanto em termos sociais, como em termos económicos (o Kenya African National Union tinha como único ponto da sua agenda política a libertação do seu líder histórico Jomo Kenyatta; o African National Congress, ostentava como bandeiras políticas a libertação de Nelson Mandela e o fim do Apartheid; o Tanganyika African National Union, de Julius Nyerere, defendia a existência de uma sociedade multi-racial).

41 A politização das colónias francesas, em particular, foi diferente da verificada nas suas congéneres britânicas, na medida em que naquelas a existência de partidos de massas foi um fenómeno relativamente normal. O Bloc Dèmocratique Sènègalais, o Parti Dèmocratique du Côte d’Ivoire, o Parti Dèmocratique du Guinèe e o Union Soudanaise são apenas alguns dos partidos de que emergiram, e que conseguiram alcançar uma certa hegemonia e peso político real, durante as décadas de 40, 50 e 60, materializando-se assim, como fontes de pressão, às autoridades coloniais francesas, obrigandoas a repensar a sua política de ocupação dos territórios africanos e a caminhar no sentido de uma transição sem atritos, de um império, para uma ordem internacional assente em relações comerciais e de cooperação (mesmo que esta mais não seja que uma nova forma de colonialidade (MIGNOLO, 2003: 658-665)).

42 As décadas de 70 e 80 podem ser sumariamente descritas como a continuação da tendência já delineada, sendo todavia significativo um conjunto de «inovações» que gradualmente foram sendo introduzidas e consolidadas: a) a máquina burocrática dos partidos estendeu-se de tal forma, que os movimentos de índole regional apenas serviram para fortalecimento do partido no poder; b) o arquétipo de partido de massas africano torna-se uma ilusão quase mitológica; c) os partidos no poder fundem-se com a máquina

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estatal dando corpo aos conceitos de partido único, de neo-patrimonialismo de estado e de vampirismo político; d) a classe dirigente passa a ser composta pela pequena burguesia, que vê assim, uma hipótese de maximizar os seus ganhos com a economia de renda vigente; e) o clientelismo surge como garante do poder e os golpes de estado sucedessem-se como forma de contestação à autoridade do poder estatal e consequente substituição deste por um novo poder cuja autoridade reside nas armas; f) o xadrez político passa a contar com uma nova peça, as transnacionais e; g) aos movimentos de guerrilha, de índole ideológica, juntam-se outros que resultam da destruição das estruturas tradicionais, pela modernidade, sem que se consiga repor uma ordem social mínima para a «regeneração» dos próprios tecidos sociais.

43 No que concerne à década de 80, um aspecto, em particular, convém ser salientado, a saber, a preponderância política dos Programas de Ajustamento Estrutural (PAE’s) que sendo conduzidos por forças externas (de forma directa, pelas instituições de Bretton Woods e indirectamente, por toda uma Comunidade Internacional que alinhava pelo «bloco capitalista», liderado pelos EUA) produziram implicações profundas, tanto na generalidade dos tecidos sociais subsaarianos, como no comportamento dos partidos políticos africanos, em particular, na medida em que, as forças que se encontravam no poder foram obrigadas a repensar, ou mesmo abandonar, os esquemas de clientelismo e de rent seeking (que até então eram consubstanciados como a trave-mestra de toda a política do estado) e as forças da oposição começaram a utilizar como arma de arremesso político as questões de good governance e accountability das performances das políticas estatais, de modo a que a sua imagem em termos de comunidade internacional fosse credibilizada.

44 Todavia esta falência gradual dos regimes centralizados, apoiados numa forte máquina burocrática (casos da Tanzânia, Quénia, Zâmbia, Senegal, Camarões, Costa do Marfim, Malawi, Benin), não tpode ser imputada de modo exclusivo à implementação dos PAE’s e dos condicionalismos (económicos, financeiros, políticos e sociais), mas também, à generalizada degradação das condições económico-sociais que se vinham a agravar desde meados da década de 70 (nomeadamente a partir das crises petrolíferas de 1973 e 1979) e que atingiram o seu ponto mais alto ao longo dos anos 80.

A Globalização (1990 em diante)

45 O desmantelamento da URSS e o fim de um sonho socialista, acompanhados pelo evento da globalização, de uma cada vez maior intervenção, tanto do FMI, como do Banco Mundial, do fim do Apartheid, e da própria falência do GATT (General Agreement on Tarifs and Trade), para uma sua substituição pela OMC (Organização Mundial de Comércio), acabaram por imergir os partidos políticos africanos numa crise de identidade, que os obrigou a repensar as suas estratégias, de forma a assegurar a sua sobrevivência política (pois os discursos doutrinários exacerbados, de uma antinomia draconiana, que opunha o socialismo face ao capitalismo, e destes, face ao marxismo, haviam deixado de fazer sentido e a importante fonte de financiamento partidária, que provinha deste combate Ocidente/Leste, havia consequentemente sido minimizada, pelos respectivos «patrocinadores»). Mesmo com as vicissitudes sofridas pelos regimes de partido único, ao longo da década de 80, no início dos anos 90, o mapa democrático africano continuava a demonstrar uma forte tendência para a fraca democratização política. Embora a situação actual demonstre já sinais de uma aparente emergência dos valores plebiscitários12,

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continua-se apesar de tudo, a estar longe da desejável democratização plena das instituições estatais, tanto mais, que importa não esquecer, que esta «revolução», que este processo de transição de âmbito democrático, mais que um resultado de uma vontade expressa pelos próprios tecidos sociais africanos, representa sobretudo, uma imposição exógena, elevada a colateral primeiro e último, do financiamento atribuído através dos PAE’s. O desfasamento que então é possível constatar, entre a aplicação dos primeiros programas de ajustamento (coordenados apenas pelo FMI, logo em 1979, no Senegal) e esta fase final da terceira vaga de democratizações (Huntington, 1993) é susceptível de ser explicado, pelo realinhamento teórico-ideológico introduzido pelo Post-Washington Consensus, que deixou de atribuir o primado operacional ao «mercado», para o afectar alternativamente (ou nem tanto), à capacidade do Estado criar as condições para que este funcione (capacidade este medida qualitativa e quantitativamente, por indicadores de good governance e/ou accountability), reconvertendo assim, o neo-liberalismo desde sempre prosseguido, num institucionalismo pouco adaptado às realidades africanas ((DEVARAJAN & MELO, 1987), (HUGON, 1999: 16) e (STEIN & NISSANKE, 1999: 406)).

46 É este portanto, o ambiente situacional que enforma os anos 90 e que propicia todo um conjunto de reformas, rupturas e continuações, ao nível da vida político-partidária no continente africano, que não podendo ser elencadas em toda a sua extensão, podem porém ser sintetizadas nas seguintes cinco linhas de força:

47 a) uma limitação real dos poderes do partido no poder, que implicou o início do desfasamento, entre a máquina partidária e a máquina do estado;

48 b) uma diminuição do clientelismo, como forma de perpetuação do poder e o estabelecimento de novas alianças políticas e/ou de tendências de cooptação governativa, como mecanismo de minimização das perdas resultantes da falência do vampirismo hegemónico do Estado;

49 c) um enfraquecimento efectivo, tanto da autoridade, como do poder estatais (em consequência dos dois factores anteriores);

50 d) o reclamar, por uma sociedade civil cada vez mais ciente e segura do seu papel como agente político e de pressão, por uma abertura política e;

51 e) o aparecimento de um revivalismo dos movimentos baseados em clivagens étnico/ regionais (atente-se nos casos de Cabinda, em Angola, Casamance, no Senegal, Sahara Ocidental, em Marrocos, e Somaliland, na Somália), que se apresentam como contra- poderes e como voz dos que não a têm.

52 Esta alegada democratização das instituições em África, não se apresentou contudo, de uma forma uniforme, nem em termos dos impactos imediatos despoletados nos tecidos sociais de uma dada formação territorial, nem em termos das consequências plebiscitárias de médio prazo promovidas, tanto mais, que estes processos foram instrumentalizados pela própria comunidade internacional, no sentido de legitimar situações anteriormente pouco cómodas (como em Angola13 e no Togo), ou de destituir o partido governante (como ilustram os casos do Benin, da Zâmbia, ou ainda o do Malawi). Mas se estas foram as duas situações extremas, entre elas é possível encontrarem-se uma infinidade de combinações, que vão desde reformas de cosmética, como as ocorridas no Gabão e Costa do Marfim, a reformas conduzidas unilateralmente pelo partido no poder, como na Tanzânia, ou mesmo manipulação dos processos eleitorais, como os próprios observadores internacionais constataram, no Quénia e no Senegal... O efeito final, foi no limite e de um ponto de vista minimalista, o «enriquecimento» do mosaico político africano, sem que tal

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assegurasse, por si só, uma qualquer tendência inequívoca no sentido da democratização do continente.

53 Porém, este processo político-social teve como maior ruptura, não a alteração do regime governativo (pois tal como se mostrou, esta, por vezes, foi mais aparente e induzida de modo ostensivo, que efectiva e real), mas antes, uma alteração de estratégia dos partidos, que passaram a apoiar-se, com uma crescente preponderância, na manipulação das clivagens espaciais e socio-económicas evidenciadas pelos tecidos sociais e na catalisação e reconversão dos ritos praticados no Ocidente, de modo a adaptá-los aos eleitorados- alvo, e assim, conseguir converter o discurso da globalização e de desenvolvimento (no qual já ninguém acredita), num discurso de modernidade de base tradicionalista, local, particularista e endógena... O paradigma muda (como idiossincrasia iconoclasta face a uma Modernidade catalogada como expressão maior de um eurocentrismo promotor de uma colonialidade deletéria para os interesses do «Sul»), mas o discurso, na sua essência mantém-se.

O aproveitamento de clivagens sociais como meio de sobrevivência

54 De uma forma esquemática e, como tentativa de síntese desta sequência de fases, a Figura 1 (na página seguinte) procura mostrar qual o papel e a posição do «partido político», enquanto actor social (e sublinhe-se aqui o atributo de «actor» e não de «agente», pois pressupõe-se a existência de uma estrutura que o condiciona ex-ante, e que por ele é residualmente transformada ex-post). Neste sentido, se por um lado, o partido é receptor, tanto das ânsias e desejos de uma população que, em princípio, representa, como das influências e pressões a que está sujeito, por outros actores nacionais e internacionais; por outro, materializa-se como o local privilegiado para a maximização dos ganhos, de todos aqueles que pertencem à máquina partidária e que esquecem assim, tudo aquilo que representam para os que plebiscitariamente, ou não, representam.

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Figura 1 - Aspectos que influenciam o comportamento dos partidos

55 O percurso até agora apresentado, procurou apresentar uma exposição minimamente coerente e encadeada que, apesar de alisar potenciais incoerências empiricamente observáveis, não deixa de se substantivar como útil, enquanto instrumento de análise do comportamento dos actores políticos, mesmo que estes, surjam como que orquestrados por um ente superior, cuja batuta dirige as «massas» partidárias, de modo a agirem de determinada forma, ou num determinado sentido. Todavia, as realidades «micro» não foram tão lineares, na medida em que, as clivagens em que os partidos se basearam, complementaram-se, sobrepuseram-se e, em certos casos, opuseram-se mesmo, de modo a maximizar as potencialidades das «carteiras de eleitores» detidas e minimizar o risco de ocuparem um lugar precário no alinhamento partidário nacional, ou seja, na «divisão do eleitorado pelos partidos políticos, de acordo com as clivagens do tecido social. Este conceito insere- se numa matriz teórica que defende que de entre as clivagens passíveis de dividir o eleitorado pelos partidos políticos, só algumas são relevantes num dado período e uma domina tipicamente» (BECK in DIAS, 2000: 15).

56 De modo a que esta abordagem não incorra no erro de cartografar os comportamentos político-partidários africanos, a partir de uma escala epistémica demasiado elevada, proceder-se-á a uma breve apresentação de cada uma das clivagens consideradas como as mais relevantes, tanto para o espaço Subsaariano, como para o período em causa, que se estende, desde finais do século XIX (com a aposta numa colonização efectiva das colonias) até aos dias de hoje, na aurora do terceiro milénio. Desta forma, apresentar-se-ão em primeiro lugar, os processos através dos quais estas clivagens ganham forma e importância operativa, para posteriormente, se efectuar uma reflexão, necessariamente breve, sobre os particularismos que tornam esta problemática tão complexa e, talvez por isso, tão interessante enquanto objecto de análise e exploração intelectual.

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Clivagens Religiosas

57 Instrumentalizadas a partir de sentimentos (reais ou induzidos) de exclusão do «outro», que não partilha a mesma matriz normativa religiosa (daí a sua utilidade no combate ao poder colonial, e mais recentemente, em situações em que os tecidos sociais se encontram muito fragmentados e a religião apresenta-se como um dos mínimos múltiplos comuns mais abrangentes, entre eles), usufruem de uma base teórica significativa, que ostentando um genoma milenar, profético e/ou messiânico, consegue promover a defesa de uma «ruptura mítica», como forma de regresso a um passado glorioso, ou de passagem para uma «Era Dourada».

Clivagens Tribais ou Étnicas

58 Quando manipuladas, assentam necessariamente num enorme sincretismo da retórica política apresentada (que passa pela defesa de todo um quadro normativo tradicional, intrínseco e ostensivamente apresentado como «exclusivo» de determinados tecidos sociais), que obriga a liderança partidária a explorar uma determinada genealogia de valores, que permita a sua elevação a um estatuto carismático e modernista (sem antagonizar todavia, os aspectos centrais que permitem a afirmação desta clivagem identitária), que lhe permita contudo argumentar a favor de uma mutietnicidade «saudável», de modo a não fechar de modo convoluto o eleitorado alvo sob uma única saliência identitária.

Clivagens Sócio-Económicas

59 A retórica do discurso combina a optimização dos ganhos a que as classes, (ou de um menos mais neutral em termos ideológicos) ou determinadas categorias sócio-económicas podem aspirar, com a exortação dos «direitos naturais», de que estas idealmente usufruiriam, mas dos quais se encontram expurgadas, por responsabilidade, ou da inaptidão do partido no poder, ou pela instabilidade criada pelos partidos na Oposição. Apesar de eficiente em meios industrializados, na medida em que assume o ónus da mediação entre as estruturas sociais e as práticas socialmente significativas, perde no entanto muito da sua operacionalidade em meios mais tradicionais e rurais, nos quais as relações entre os factores de produção se encontram ainda numa fase muito embrionária e epifenomenizada face a outros papéis sociais.

Clivagens Políticas

60 Comummente a exploração desta clivagem apenas se verifica quando a direcção do partido é constituída por indivíduos letrados, formados no Ocidente (incluindo aqui, os indivíduos que entretanto usufruíram de uma formação académica e política, nos então denominados «países de Leste») e cujos ideais aí foram adquiridos. O apoio popular encontra-se fortemente dependente da capacidade de politicamente harmonizar esta clivagem, com outras, mais relevantes em termos eleitorais, sem todavia fazer depender a escolha destas da retórica ideológica apresentada (procurando, deste modo, evitar o estabelecimento de quaisquer correspondências directas entre diferentes saliências identitárias).

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Clivagens Espaciais

61 Fortemente imbricada nas restantes clivagens elencadas, a exacerbação das reivindicações de um determinado espaço geográfico (socialmente composto por tecidos sociais concretos), ao colocar o ónus do discurso político, na exigência de uma maior autonomia de um território concreto (e no limite da própria independência deste), incorre no risco se transformar numa imposição de carácter militar, ou para-militar, caso no curto prazo não se verifiquem (ou não sejam percepcionados) passos nesse sentido (algo de difícil, dadas as restrições que o próprio direito internacional coloca a este tipo de pretensões).

62 Com base nestas clivagens, importa salientar dois aspectos: por um lado, a natureza intrincada e não estática desta abordagem, dado que, um partido pode, num determinado momento, basear a sua actuação numa clivagem em particular para, posteriormente a abandonar, modificando assim a sua estratégia, com o intuito de conseguir explorar uma outra, que lhe seja conjunturalmente mais vantajosa, ou optar pela adopção simultânea de duas ou mais clivagens e tentar «atingir» os pontos de sobreposição entre elas, por forma a conseguir cativar um maior número de apoiantes e, minimizar assim, os potenciais riscos de sobre-especialização e de selecção adversa; por outro lado, a tipificação apresentada não é a única possível, muito menos, as categorias consideradas, apresentam qualquer tipo de estanquicidade entre elas, o que permite, que a retórica defendida por um partido possa trespassar transversalmente todas as clivagens, captando de cada uma delas, determinados aspectos considerados simultaneamente nucleares, mas neutrais entre si.

63 Supletivamente é porventura relevante não negligenciar, que o aproveitamento das clivagens é dinâmico, encontrando-se dependente dos tecidos sociais existentes e dos equilíbrios susceptíveis de serem encontrados entre eles, adaptando-se a situações concretas, verificadas num determinado território e num dado momento. Só a partir destas premissas é que se compreende aliás, a razão pela qual, ao longo das décadas de 40, 50 e 60, o fenómeno partidário maximizou a exploração das clivagens espaciais (de modo a alcançar as desejadas independências) verificando-se ulteriormente, nas décadas de 60 a 80, a optimização da utilização das clivagens políticas (de modo a maximizar os apoios dos blocos hegemónicos) e, mais recentemente se assiste, a uma cada vez mais inequívoca aposta, nas clivagens étnico-tribais, sócio-económicas e espaciais (desta feita de âmbito regional), como forma de reivindicação social e identitária.

64 A utilização, de uma forma explícita, de clivagens religiosas é rara e tende mesmo a desaparecer, à medida que as sociedades se tornam cada mais estratificadas, com base numa nomenclatura económica/profissional, porém o seu aproveitamento político (enquanto instrumento de segundo plano, ou de suporte complementar) é uma constante, na medida em que o simbolismo que elas fornecem é essencial para a veiculação dos ideais doutrinários e ideológicos que os partidos, no limite e de jure, defendem. Basta recordar a vitória de Abdoulaye Wade e do PDS, no Senegal, nas eleições de 2000, para que se constate que se está na presença de um exemplo paradigmático deste tipo de comportamento, tanto mais, que apesar da ubiquidade da Mouridiyya (uma das duas mais importantes Vias Espirituais muçulmanas existentes naquele país) no discurso eleitoralista daquela candidatura, não é possível esquecer a génese liberal que legitima politicamente os actos e as proposições que ela defende... Aferir qual o impacto real do

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apoio Mouride à candidatura de Wade é algo que ainda se encontra em fase embrionária de análise, mas que importa clarificar.

Quadro 1 – Clivagens e tendências políticas

65 Contudo, e em rigor, os movimentos políticos que se baseiam ostensiva e exclusivamente nas clivagens religiosas (mesmo os que apelam à din wa-dawla – que traduz o carácter indissociável da religião islâmica e da política (EICKELMAN & PISCATORI, 1996, 46-57)) não deveriam ser colocados no mesmo patamar que os partidos políticos, pois ao se proporcionar tal comparação, e no limite, as missões do início deste século, poderiam ser, também elas, consideradas como partidos políticos (de índole Sionista, Protestante ou Cristã), pois proporcionavam uma mais rápida integração dos tecidos sociais autóctones no novo espaço administrativo (uma quadrícula político-administrativa, correntemente denominada de «Colónia») e impunham um discurso político de apoio às potências colonizadoras. Por esta razão, e embora estes movimentos possam possuir uma forte tónica política, não devem todavia ser equiparados aos partidos políticos, na medida em que, ao actor «partido político» se deve procurar afectar conceptualmente, um conjunto limitado de papéis sociais.

Os novos pontos de partida

66 Ao longo das páginas anteriores foi possível tomar um primeiro contacto introdutório com o fenómeno dos partidos políticos africanos, construindo-o, não como uma mera realidade política, mas alternativamente como um fenómeno social total, adoptando para tal uma análise de tipo ensaísta que procurou abordar esta temática, de uma forma global e holística, que a edificou enquanto objecto de estudo, como um acto humano inserido

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numa realidade humana e, simultaneamente, como uma realidade que precisa de uma contextualização histórica e espacial para se tornar mais maleável e inteligível.

67 As pistas enunciadas (e que por não usufruírem ainda de uma robustez epistémica suficiente, não podem ser elevadas à condição de «respostas»), não são estandardizáveis (nem no tempo, nem no espaço), mas constituem, com os devidos cuidados, uma possível grelha de análise político partidária, desde que, ao se tratarem situações específicas e concretas se tenha em mente que «cada caso é um caso» e que a matriz conceptual aqui descrita é uma estrutura flexível, manuseável e cuja adaptabilidade é grande. Complementarmente, e embora as «intensidades» dos «fluxos de influência» tenham percorrido toda uma miríade de situações diversas, ao longo do século XX, pode-se afirmar, com um elevado grau de certeza, que os partidos africanos são um autêntico « melting pot» de símbolos, ideologias, doutrinas e forças, que os torna, por um lado, em actores cujo estudo se torna fascinante, e por outro, em organizações dinâmicas, que se encontram num processo de transformação contínuo e cujo percurso permite compreender melhor quais as lógicas de determinadas tendências e mutações verificadas nos tecidos sociais africanos, ao longo do último século.

68 Do que foi referenciado em epígrafe, um dos aspectos que se pode considerar como nuclear na estratégia da maioria dos partidos africanos é a tentativa de implementação de uma lógica de modernidade, com base numa retórica assente num tradicionalismo pretensamente autoctone. No entanto, este comportamento pode eventualmente, conduzir os partidos ao precipício político, pois ao apostarem na destruição daquilo que os sustenta (os símbolos, os mitos e as ideologias tradicionais), para implementar um esquema que lhes permita maximizar os ganhos da máquina partidária, o partido e os seus líderes correm o risco real de desmoronarem-se, e as ruínas daí resultantes não serão suficientes, para legitimar o poder político necessário, para a manutenção da função- objectivo destes, que é a de controlo da máquina de Estado.

69 A aposta na exploração das clivagens do tecido social mostrou-se como o segundo pilar das diversas estratégias partidárias, e apesar de ter sofrido várias transformações, consoante o contexto sócio-político (tanto nacional, como internacional) assim o exigir, não deixou de gradualmente assumir um papel de primado operacional, hoje axial no planeamento partidário. Quanto ao último alicerce estratégico, este pode ser identificado com a existência de um líder carismático, que assuma o papel de «homem forte» e que consiga personificar/encarnar o poder simbólico que as necessidades, desejos e ânsias dos seus «crentes»/apoiantes lhe conferem, tendo como derradeira responsabilidade, a de harmonizar as duas estratégias anteriores e de lhes conferir um sentido e uma incontornabilidade irrevogáveis.

70 Apesar deste ensaio ter compilado a posição de alguns autores e de ter feito os possíveis por adoptar um enfoque sócio-político-antropológico ao longo da exposição apresentada, torna-se pertinente referir que a literatura sobre esta temática é vasta, apesar de colocar a tónica numa perspectiva essencialmente económico-histórica, tornando qualquer reflexão, fora desta esfera, um autêntico desafio que continua a ser fértil para futuras «incursões», na medida em que algumas perguntas ficaram sem resposta... Quais os mecanismos que conduzem um partido a mudar a sua doutrina de base (o fenómeno da transhumance senegalesa, por exemplo, encontra-se bem documentada em termos empíricos, sem no entanto ter sido alvo de uma qualquer análise de fundo, portadora de uma maior abstracção teórica de base)? Qual o grau de «democraticidade» de que a generalidade dos partidos africanos goza? Quais os verdadeiros impactos do discurso

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político nos tecidos sociais? Porquê a fulcralidade de que os líderes partidários desfrutam? Em que situações é que os partidos políticos não possuem nem o poder, nem a autoridade para se tornarem em máquina do estado, mesmo que usufruindo de uma legitimidade plebiscitária? E por último, uma questão que se coloca a um nível ontológico superior, mormente o teórico-epistemológico, qual a pertinência científica, de construir em torno do conceito «Democracia», conceitos outros, híbridos e intermédios, como os de «Quase-Democracia»?

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NOTAS

1. Esta proposta é retirada da obra (DIAS, 2000: 17), embora originariamente se encontre em William SCHONFELD, 1991, «Les Partis Politiques – Que Sont’ ils et Comment les Étudier?», in Mény, pp. 270. 2. Esta ideia de que o poder do soberano é apenas um poder simbólico, cuja autoridade e capacidade interventiva são relativos é um facto documentado tanto na obra de Jeudy (JEUDY, 1997), como na de Clastres (CLASTRES, 1974). 3. Um estudo sobre esta problemática pode ser encontrado em SKALNIK, 1999. 4. Sobre a autofagia do Estado Ganês aconselha-se a consulta da obra de FRIMPONG-ANSAH, 1991. 5. A posição do chefe nacional é sacralizada, colocando-o num patamar de «herói» (talvez dois dos exemplos mais claros desta sacralização sejam o de Kwame Nkrumah quando este conseguiu a independência do Gana e o de Léopold Senghor, cuja ubiquidade ainda hoje constatável se deve precisamente a este mesmo fenómeno). 6. Este desfasamento entre o processo de implementação ideológica das elites e das massas fica a dever-se essencialmente a diferenças de capacidade de mudança social, ou seja, os tecidos sociais que se identificam com uma determinada cultura (e com uma determinada grelha de normas, comportamentos, regras e ideias) demoram mais tempo a adaptar-se às novas estruturas políticas impostas exogenamente e consequentemente não conseguem acompanhar o ritmo de modernização imposto pelas elites (naturalmente mais abertas à mudança por partilharem já de certos valores ocidentais). 7. As combinações entre estes domínios podem assumir uma quase infinidade de «resultados»/ aparências, permitindo aos diversos partidos políticos, a construção de uma multiplicidade de possibilidades de actuações e comportamentos, que tornam difícil, qualquer exercício de uma sua tipificação e sistematização. 8. Neste período ainda não se pode falar verdadeiramente em partidos políticos africanos por duas razões distintas: por um lado, estes ainda não eram permitidos na maioria da colónias (pois

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os poderes coloniais não pretendiam que as vozes contestatárias à ocupação tivessem um meio formal de se organizar), e por outro, a cultura político-partidária ainda se encontrava numa fase embrionária. Não obstante, partidos como o ANC (African National Congress), na África do Sul, que data de 1912, ou o PS (Parti Socialiste), fundado em 1929 (Diouf, 2001: 227), no Senegal, comprovam a vontade de defender os interesses locais, de uma forma organizada e autóctone, onde esta era permitida. 9. Como prova deste «sonho imperial», após a II Guerra Mundial, foi constituída por referendo, em 1958, a Union Française, como entidade representativa pan-imperial e dada a possibilidade de deputados africanos (eleitos por partidos africanos) fazerem parte da Assembleia Nacional Francesa (o que já acontecia desde 1914, mas apenas para o Senegal). 10. MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola) em 1956, FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique) em 1962, RENAMO (Resistência Nacional de Moçambique) em 1976, UNITA (União Nacional para a Indepndência Total de Angola) em 1966, FNLA (Frente Nacional de Libertação de Angola) em 1962, UPA (União das Populações de Angola) em 1954, PDA (Partido Democrático de Angola) em 1956. 11. Kwame Nkrumah (Gana) e Julius Nyerere (Tanganica), juntamente com Hastings Banda (Niassalândia) e Jomo Kenyatta (Quénia) têm como traços comuns, o facto de terem trabalhado juntos, em Inglaterra, na obtenção de apoio junto de um pequeno estrato da opinião pública metropolitana e de terem sido influenciados pelo Partido Comunista, cujos ideais serviram de retórica ao discurso destes políticos. 12. Segundo um estudo levado a cabo pela Freedom House a democratização do continente, em apenas 10 anos (1988-1998), quintuplicou (no que concerne ao número de democracias existentes) e o número de países categorizados como «não democráticos», verificou uma diminuição para cerca de metade. 13. O MPLA ao vencer as eleições angolanas conseguiu legitimar, tanto em termos internacionais, como internos, o seu poder e autoridade, que se transformaram, no curto prazo, como o garante da manutenção do status quo, e do reforço da sua política de partido único.

RESUMOS

O presente artigo não tem a pretensão de se substantivar num estudo sócio-antropológico sobre os partidos políticos africanos; procura, alternativamente apresentar-se como uma proposta de «estado da arte» e de análise crítica do que empiricamente é possível constatar na realidade, recorrendo para tal, a um enfoque disciplinar heterodoxo, centrado todavia, na Sociologia, na Ciência Política e na Antropologia. Esta opção prende-se essencialmente com uma questão metodológica, pois para além da informação recolhida ter como origem autores diversos (verdadeiros intermediários de conhecimento e saber) e, apesar de um esforço de delimitação do objecto real, o estudo que aqui se apresenta, abrange o sub-continente subsaariano e um período que compreende todo o século XX (período de colonização efectiva e pós-colonização/ independências), o que implicou a construção de uma cartografia epistémica de escala elevada, ilustrada sempre que possível, por imagens de pormenor, localizadas e concretas.

The present article doesn't has the pretension to be understood as a socio-anthropological study about the political parties in Africa; alternatively, it essays to synthesise a proposal of «state of the art» and of critical analysis of what it is possible to empirically find on the «reality». The

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disciplinary lenses used to achieve this goal were heterodox, although centred on Sociology, Political Science and Anthropology. This was essentially a methodological option given the diversity of authors consulted (true vehicles of information and knowledge) and the effort to delimitate a study object that demanded an epistemic cartography built with an elevated scale, although illustrated, when possible, by real, located and contextualized pictures. These methodological constraints were imposed by the study object itself, given its geographical dimension (all the sub-Saharan Africa) and its temporal length (the XXth century, understood as a timeline of colonization-decolonization-post colonization-independences).

ÍNDICE

Keywords: Sub-Saharan Africa, political party Palavras-chave: África Subsariana, Partido político Mots-clés: Afrique sub-saharienne, parti politique

AUTOR

MANUEL MARIA BRAGA Centro de Estudos Africanos, ISCTE

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Estado, Autoridades Tradicionais e Legitimidade Política: os parâmetros de um «casamento de conveniência» em Mandlakazi

Vitor Alexandre Antunes Lourenço

NOTA DO AUTOR

A investigação que deu origem a este texto foi desenvolvida no âmbito do projecto Estado, Autoridades Tradicionaise Modernização Política: O Papel das Autoridades Tradicionaisno Processo de Mudança Política em África, coordenado pelo Prof. Doutor Eduardo Costa Dias, CEA- ISCTE, financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia ao abrigo do Programa POCTI/98.

Introdução

1 Este texto visa analisar as relações políticas tecidas na actualidade entre o Estado e as Autoridades Tradicionais em Mandlakazi (Moçambique).

2 A pertinência da análise de tais relações políticas, assenta fundamentalmente no facto de, passadas várias décadas sobre as independências, em Moçambique, como na generalidade dos países africanos, o Estado pós-colonial não só não conseguiu desfazer o dualismo herdado da época colonial como, ainda, não conseguiu impor a multi-etnicidade e laicidade ao conjunto da comunidade nacional que está na origem da própria ideia de Estado moderno. Dito de outra forma, o Estado pós-colonial africano, marcado pela endémica crise económica, pelo seu falhanço em promover um desenvolvimento equitativo e sustentável e pelo insucesso da sua «democratização», continua a caracterizar-se como um Estado dualista formado por um Estado central hegemónico e frequentemente violento e, por um «estado local camponês», dito «étnico» ou «tribal»,

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suportado por uma noção «presunçosa» de «sociedade civil» (MAMDANI, 1996). Em vários aspectos o Estado pós-colonial não possui o monopólio do controlo da nação, das estruturas políticas e da «sociedade civil» (HARBESON, 1994).

3 No contexto de Moçambique, onde a figura das Autoridades Tradicionais de uma forma ou de outra se manteve, desde os tempos coloniais, incontornável em todos os jogos políticos, só nos anos 80, com a crise e «desconjuntura» do Estado pós-colonial, a problemática das relações Estado-Autoridades Tradicionais voltou a ter uma posição de relevo nas análises de várias disciplinas das ciências sociais, em geral, e da Ciência Política, em particular, sobre a «política» e, sobretudo, sobre o «político» (DIAS, 2001).

4 Contexto este, que assenta, por um lado, numa imposição exterior, levada a cabo por fortíssimas pressões exercidas pelos países doadores e por instituições financeiras internacionais junto do governo de Moçambique, cuja dependência em relação ao auxílio externo diminui a sua capacidade em recusar este modelo, e por outro, numa pressão interna exercida por um conjunto de forças sociais e políticas que se batem, não só por uma maior abertura da vida política de Moçambique à democracia (no sentido da rejeição do regime de partido único ou da tutela militar e a consolidação de um sistema político multipartidário), como também, e decorrentemente, por uma reconfiguração das relações políticas que entre os vários agentes e estruturas políticas se estabelecem.

5 Deste modo, se o sentido da escolha das relações tecidas na actualidade entre o Estado e as Autoridades Tradicionais, em Mandlakazi como objecto de estudo, se articula, em primeiro lugar, pela averiguação da inoperância do poder central e da desconexão entre as práticas ideológicas do sistema político estatal moçambicano e as pretensões e reivindicações do sistema social «real», por outro lado, não é menos verdade que este sentido se deve, à constatação da persistência das Autoridades Tradicionais enquanto « paramount chiefs» de uma estrutura sócio-política dinâmica, de mediação entre o passado e o presente, que a população rural de Mandlakazi continua a encarar como instâncias que representam ainda a boa ordem moral e política e personificam a protecção contra a injustiça, as calamidades e a entropia.

6 Trata-se, em síntese, de um quadro relacional ambíguo e complexo: pois, apesar de predominantemente baseado num aparelho político moderno, o Estado moçambicano, vê- se na contingência de tentar absorver, ou associar, por via administrativa, os agentes políticos representantes da estrutura política tradicional de Mandlakazi, procurando, deste modo, beneficiar simultaneamente de factores de legitimação política «modernos» e «tradicionais». As Autoridades Tradicionais, por seu lado, ao mesmo tempo que lutam para preservar o seu controlo sobre a sua população, tentam apoderar-se de parte dos recursos do Estado e utilizá-los para reforçar os padrões de dominação pessoal, baseados em redes familiars e clientelares e mantidos através da redistribuição de riqueza e de lugares de poder.

1. Autoridades Tradicionais no distrito de Mandlakazi no período pré-colonial

7 A estrutura política pré-colonial de que as Autoridades Tradicionais de Mandlakazi faziam parte, inseria-se num conjunto de dinâmicas sócio-políticas, cujo conhecimento passa pela interpretação das suas instituições, práticas e símbolos culturais. Com efeito, nas comunidades rurais de Mandlakazi, o chefe político do tiko1, era coadjuvado por um corpo

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de indíviduos que, eram por ele seleccionados, de acordo com as competências sancionadas e reconhecidas socialmente. Os principais agentes das estruturas políticas tradicionais no período pré-colonial, em Mandlakazi, eram o chefe e os seus respectivos colaboradores que, no caso da região em estudo – grupo etnolinguístico changana – se designavam por hosi (rei), tinduna (ministros), tiqulume ou tinghanakana (governadores), tindota (conselheiros), e os tinyanga (curandeiros/especialistas mágicos).

8 A ascensão de um indivíduo ao cargo de hosi baseava-se na conquista militar, na ordem de chegada e, de ocupação dos territórios. Assim, as primeiras famílias a estabelecerem-se, passavam a orientar a fixação das famílias ou linhagens posteriores. Entre os falantes da língua changana, eram conhecidos por «vanhani va ditiko», ou seja, donos da terra ou país. O hosi era o nhenha (herói); isto é, a entidade mais importante na estruturação da autoridade política legítima. Um dos atributos que o diferenciava e, tornava reconhecido dentro da respectiva comunidade, era a posse e a gestão da terra. A terra e todos os recursos naturais pertenciam ao hosi. Porém, isto não significava que este, fosse seu senhor absoluto. É, com efeito, o hosi que garantia, geria e controlava o acesso de cada grupo clãnico e/ou linhagem e, de cada indivíduo à terra e ao conjunto de recursos naturais, através de um conjunto de normas/instituições de organização/gestão de direitos, obrigações, de prestações de trabalho e de produtos (FELICIANO, 1989).

9 Nestas comunidades, um outro atributo da autoridade política do hosi estava associado à força dosseus antepassados, tinguluve (antepassados), mintimu ou minkwembo (antepassados-deuses), que representados por este, se supõe interferirem na governação/ gestão do território. Com efeito, nas cerimónias mágico-religiosas, o hosi era a figura mais importante, era o «sacerdote» da comunidade. O hosi assumia simultaneamente os atributos de um chefe político e religioso. Era ele quem, por um lado, pronunciava as orações sobre os túmulos, e, por outro, quem se dirigia aos tinguluve no gandzelo (altar)2. Por detrás, existia o nyanga3. De acordo com as tradições de Mandlakazi, o processo acima referido, fazia com que o hosi adquirisse qualidades e postura de governação, semelhantes às dos seus antepassados, por ordem de sucessão4. O hosi era o «ponto de união» da comunidade constituída pelos vivos, era o portador dos valores últimos do grupo, simbolizado pela totalidade dos antepassados, na exacta medida em que, era ele que mediava a relação entre os vivos e os ancestrais, muito particulamente, dos antigos tihosi.

10 O prestígio político e social destes chefes não provinha só da sua riqueza ou poder económico, mas igualmente, do respeito, da obediência às ordens pelos seus súbditos, e, acima de tudo, da ideia mítica de que a «nação» vive por ele, como o corpo vive da cabeça (JUNOD, 1944). Efectivamente, o chefe tradicional desempenhava a função de pai da comunidade, pois ligava os vivos aos antepassados, os quais tinham o controlo da ordem política, económica e cósmica (FELICIANO, 1989). Os poderes sobrenaturais que detinha, advinham-lhe quer da posse de insígnias reais (Kando)5, quer do recurso a medicamentos secretos mágicos (mphulo)6, os quais rodeavam e transformavam toda a sua pessoa num perigoso tabú (ntrumbo wa hosi wayila). Daí que a realeza nas comunidades rurais de Mandlakazi, fosse uma instituição venerada e tida como sagrada. A desobediência ao hosi significava, concomitantemente, uma insubordinação, tida como manifesta e nociva, ao espírito dos antepassados.

11 É, portanto, dentro deste contexto sócio-cultural que encontramos os elementos de reprodução material da estrutura política tradicional. Esta reprodução assentava na obediência que, por sua vez, se manifestava, por um lado, pelo pagamento do imposto,

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Kuluva, Kuhlenga ou Kurhesa, por outro, por prestações e serviços que eram considerados como socialmente devidos ao hosi. Esta práticas tributárias, constituíam-se ideologicamente como uma estratégia social de pressão sobre o hosi, no sentido deste garantir, quer a boa gestão e protecção do território com recurso a forças imaginárias benéficas, quer como meio de controlar a feitiçaria e de assegurar uma reserva colectiva, visto que o hosi era, por excelência, o pai protector e o bom redistribuidor da comunidade (FELICIANO, 1989).

2. Estado Colonial Português e Autoridades Tradicionais em Mandlakazi

12 Com a extensão e consolidação do regime colonial português a utilização das chefaturas de Mandlakazi trouxe consigo um amplo conjunto de transformações: limitou-se a possibilidade da migração das comunidades políticas ou de rebelião aberta; as chefaturas foram subordinadas a um Estado territorial central, e incorporadas como nível mais baixo da hierarquia político-administrativa; as estruturas de autoridade foram recriadas, rebaptizadas, ou formalizadas, e receberam novas funções, nomeadamente a colecta de impostos e o recrutamento de força-de-trabalho; as fronteiras foram redesenhadas e os chefes tradicionais oportunisticamente promovidos ou apeados. Nas entrevistas, a confusão e o debate que acompanhavam as discussões dos mais velhos sobre as hierarquias das chefaturas testemunham um historial de intervenções e mutações coloniais e pré-coloniais. Os termos utilizados pela administração colonial portuguesa para as Autoridades Tradicionais variavam e incorporavam títulos estrangeiros a par dos títulos em linguagem local.

13 Neste sentido, a hierarquia político-administrativa genérica da parte sul de Moçambique, e de Mandlakazi, em particular, segundo José Feliciano, era constituída do seguinte modo: Chefes de Povoação, Chefes de Terras, Régulos – com Conselho dos Grandes -, Conselho ou Júri Cafreal constituído pelos indunas dos régulos de cada comando, Comandantes Militares, e por último, o Governador (FELICIANO, 1989). Os três primeiros níveis, que integravam a estrutura política tradicional, ficaram assim dependentes de outros que o ocupante colonial criou ou impôs.

14 O Conselho cafreal, tinha funções de corpo consultivo para informação dos usos e costumes cafreais nas assembleias de milandos e transmissão de ordens dos dois níveis superiores. Além dessa assembleia de milandos havia as Assembleias-Gerais de Régulos de todo o distrito de Mandlakazi, denominadas banjas, onde estes poderiam fazer reclamações e recebiam ordens de serviço. Os hierarcas do sistema político tradicional cumpriam agora, além de uma parte das suas funções tradicionais (políticas, judiciais, culturais e económicas, integradas nos usos e costumes, em limites condicionados e controlados), também funções que lhes eram impostas por ordens superiores e obrigados a fazê-las cumprir nas suas terras pelas autoridades suas dependentes (FELICIANO, 1989).

15 A introdução de novos termos e cargos foi, em parte resultado das necessidades da administração colonial: os cargos «inventados» foram frequentemente definidos em termos das suas funções de colecta de impostos e recrutamento de força-de-trabalho. O regime colonial português era violento e extractivo, um sinal da sua fraqueza, pobreza e incapacidade político-administrativa. As pressões sobre os chefes tradicionais de Mandlakazi eram extremas: eles sujeitavam-se a ser sovados com a terrível palmatória;

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muitos fugiram para evitar as responsabilidades dos seus cargos, preferindo uma vida como trabalhadores migrantes ou homens do povo. A fuga de membros de linhagens reais pode mesmo ter sido incorporada como «tradição» nalgumas zonas do distrito de Mandlakazi. Os chefes tradicionais salientavam a sua fraqueza ou incapacidade para proteger os seus súbditos dos impostos ou do trabalho forçado, embora alguns tivessem sido capazes de negociar um regime mais aceitável, e outros, ainda, tivessem explorado as fraquezas administrativas dos portugueses através da evasão e subterfúgios vários.

16 Todavia, a administração colonial portuguesa não era exclusivamente coerciva: existiu uma tensão entre o recurso à coerção e tentativas de cooptar e incorporar os chefes políticos tradicionais de Mandlakazi, numa primeira fase, política, económica e administrativamente, e posteriormente, socialmente. O Estado colonial português e os chefes tradicionais de Mandlakazi existiam em estreita interdependência: os chefes tradicionais tinham que cumprir, pelo menos em parte, com as exigências dos portugueses para permanecer no cargo, uma exigência que tinha que ser equilibrada com a necessidade de manter alguma legitimidade no seio das respectivas comunidades. Os portugueses necessitavam de conseguir um nível efectivo de ordem e extracção. Assim, em paralelo com as brutalidades quotidianas da administração portuguesa, os portugueses também apoiaram cerimónias da chuva e concederam privilégios aos chefes tradicionais de Mandlakazi particularmente a partir de 1960, quando a administração rural foi influenciada por uma filosofia de «desenvolvimento comunitário». Os chefes tradicionais de Mandlakazi foram unânimes em dizer que os portugueses – tanto administradores como colonos – ofereciam presentes de vinho, açúcar, roupas e, mesmo, marfim, de apoio às cerimónias da chuva e outras. Não se tratava meramente de manipulações cínicas da cultura tradicional local, mas de uma tentativa de incorporação efectiva, mesmo que desigual, das autoridades administrativas coloniais na cosmologia local de Mandlakazi, e das Autoridades Tradicionais nos quadros formais-administrativos coloniais, para que deste modo se assegurassem e reforçassem novos mecanismos de integração e legitimação política.

3. A Frente de Libertação de Moçambique e Autoridades Tradicionais na luta pela independência em Mandlakazi

17 Com o alargamento da guerra de independência mais uma vez os chefes tradicionais desempenharam um papel no conflito armado. Embora os estudos sobre a guerra em Mandlakazi e em outras partes tenham tendido a minimizar o papel dos chefes tradicionais, ou a considerá-los como meros colaboradores, as entrevistas que realizámos com antigos guerrilheiros da FRELIMO e com chefes tradicionais em Mandlakazi, revelaram que eles foram importantes agentes na guerra, tendo-se demonstrado capazes de efectuar alianças políticas para além dos limites dos seus territórios, e de se adaptar às diversas exigências da guerra de guerrilha.

18 A guerra pela independência agudizou as tensões entre os chefes tradicionais e os portugueses, na medida em que aqueles forjaram ou foram forçados a entrar em novas alianças. Os chefes tradicionais foram submetidos a diversas pressões e reagiram de diversas formas: alguns procuraram uma dependência mais estreita do Governo colonial, outros deixaram-se apanhar entre os guerrilheiros e o Governo colonial, e outros ainda,

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apoiaram a FRELIMO. As divergências foram, em parte, moldadas pela localização estratégica da residência dos chefes tradicionais e pelo sucesso variável das medidas de contra-insurgência portuguesas. Tal como se observou anteriormente, a actividade de guerrilha da FRELIMO foi tardia em Mandlakazi, limitando-se largamente às bases nas montanhas densamente florestadas ao longo da fronteira com o distrito de Zavala; Chidenguele, por outro lado, tornou-se uma zona semi-libertada.Em Mandlakazi, o chefe Matsinhe, situado nas proximidades da bem protegida Mandlakazi-Sede, recebeu da administração portuguesa uma casa e outras concessões; até à independência nunca chegou a «ver balas»: «A guerra da independência não chegou aqui. Eu vivia com os brancos, dentro das farmas dos brancos»7. Alguns chefes tradicionais e indunas da área de Cambane disseram, similarmente, que antes da independência só tinham tido conhecimento da FRELIMO através da propaganda portuguesa, que a considerava um grupo de terroristas8. Aqueles que se situavam fora ou nas fronteiras do distrito foram submetidos a pressões mais fortes. O chefe tradicional Júlio Correia Langa, por exemplo, situado nos limites meridionais do distrito, foi contactado por guerrilheiros e prestou-lhes apoio, com consequências desastrosas: «alguns guerrilheiros vieram à minha casa, explicaram as razões da guerra e pediramme apoio, comida. Os guerrilheiros explicaram que os portugueses eram estrangeiros, exploradores, que batiam no povo, que nós não podíamos viver com eles. Eu... fui apanhado pelos portugueses e levado para Mandlakazionde me bateram, até ao fim de 1973»9.

19 Estas experiências contrastam com as de Chilatanhale e Chidenguele, zonas muito mais contestadas. Chilatanhale foi submetido à medida portuguesa de contrainsurgência dos aldeamentos ou aldeias protegidas. Entre 1972 e 1974 foram construídos aldeamentos ao longo da estrada para Panda. Os chefes tradicionais Ernesto Macupulane e Francisco Monlhane, por exemplo, foram transferidos para aldeias fortemente controladas nos arredores de Xai-Xai (João Belo), onde se localizava uma das bases portuguesas mais importantes da província. Ambos disseram que nunca chegaram a ter contacto com os guerrilheiros, embora nos últimos anos do período colonial se tivessem recusado a desempenhar algumas das suas atribuições como a colecta de impostos, um indicador do enfraquecimento da capacidade do Estado10.

20 Porém, os chefes tradicionais de Chidenguele não foram isolados com tanto sucesso. Distante, pouco desenvolvida e densamente florestada, Chidenguele, uma antiga «reserva indígena», era um território ideal para o desenvolvimento da guerra de guerrilha. Não tinha presença de colonos e a presença de funcionários governamentais limitava-se ao posto administrativo de Chidenguele, um local vulnerável situado no extremo de uma estrada poeirenta de alguns kms de comprimento. O comandante do destacamento da FRELIMO na área de Chidenguele, Tenente-Coronel Tavares, estabeleceu uma base perto da casa do chefe Gabriel Dengo, a nordeste de Chidengueleposto. Embora inicialmente Gabriel Dengo tivesse sido um «grande amigo dos portugueses», ele fora convencido a apoiar os guerrilheiros, tendo-se tornado no «mais importante simpatizante da FRELIMO» na zona11. Segundo Tavares: «ele chegou mesmo a viajar para a nossa base com informações sobre os portugueses. Ele levou os guerrilheiros para a zona onde os Dengos se haviam escondido durante a guerra (contra os portugueses), explicou-lhes as regras da zona e trazia-noscomida e carne»12. Um forte contraste com Gabriel Dengo era representado pelo seu vizinho, o chefe José Sabino Munguambe. Tavares descreve-o do seguinte modo: «o régulo José Sabino Munguambe era amigo dos portugueses. Ele nunca apoiou os guerrilheiros e os sipais podiam trabalhar à vontade no seu território.Todos os indunas de Munguambe estavammobilizados contra a FRELIMO»13. As perspectivas de Tavares sobre a posição de José Sabino Munguambe eram pragmáticas: «

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José Sabino Munguambe encontrava-se muito próximo de Chindenguele (posto), tinha sipais em sua casa, estava muito próximo dos portugueses. É por isso que ele apoiava os portugueses»14. Quanto a José Sabino Munguambe ele próprio, mantinha simplemente que: «eu ouvi dizer que a FRELIMO lutava contra os brancos mas nunca tive contacto com ela. Eles tinham uma base no mato... e atacavam os brancos na estrada»15.

21 Em suma, Tavares e os outros guerrilheiros que operavam em Chibuto e em Zavala achavam que, para terem sucesso, tinham que recrutar os chefes tradicionais e os velhos em geral. Os anciãos eram «os mais fáceis de convencer», eles «podiam influenciar os jovens» : «os velhos sofreram muito – eles tiveram o chibalo (…) Os velhos ajudavam a mobilizar os novos»16. A atitude dos chefes tradicionais era geralmente positiva – «alguns régulos resistiram muito mas em geral ajudaram muito» – e, em suma, «os régulos eram os melhores políticos... (Eles) foram muito importantes no apoio à FRELIMO. Se fossemos primeiro ao régulo ele apoiava-nos e não reportava à administração a presença da guerrilha»17.

22 Todavia, não se devem romancear as relações dos chefes tradicionais com os guerrilheiros. Os chefes tradicionais sentiam estar numa posição perigosa e vulnerável. Mesmo nos casos em que apoiavam os guerrilheiros sentiam que estes não confiavam neles inteiramente, apesar dos sacrifícios que faziam. Assim, o actual chefe Dengo comentava: «no princípio os guerrilheiros suspeitavam dos velhos tradicionais mas após a prisão do Hosi (seu predecessor) nós trabalhávamos juntos. Mesmo assim os guerrilheiros não confiavam totalmente em nós… nenhum dos membros dos grupos de apoio era Hosi, Tinduna ou Tindota»18.

23 Em paralelo com os anciãos, a FRELIMO recrutou jovens para as fileiras militares, e usualmente pessoas mais velhas como chairman e secretários. Embora estas estruturas trabalhassem em conjunto e a FRELIMO valorizasse sem dúvida a contribuição dos chefes tradicionais, as estruturas não se confundiam. Apesar de tais tensões, a guerra da independência criou outras transformações políticas. Os guerrilheiros da FRELIMO encaravam os chefes tradicionais como mobilizadores e mediadores influentes, como fontes de conhecimento sobre os portugueses e a ecologia, economia, religião e rituais locais de Mandlakazi. Os guerrilheiros procuravam recrutar anciãos influentes e, onde o conseguiam, a chefatura funcionava em harmonia com as estruturas militares da FRELIMO em actividades logísticas e «espirituais». Consequentemente, os chefes tradicionais realizaram alianças que quebraram com a política «tradicional» e penetraram no reino da mobilização da FRELIMO, num quadro entendido localmente como de guerra contra os «brancos», uma luta nacionalista. Pela sua parte, os portugueses viam os chefes tradicionais e seus subordinados como um meio de manter o controlo e a lealdade das populações. Os chefes tradicionais responderam de maneiras diversas, quer como apoiantes dos guerrilheiros quer como colaboradores das autoridades coloniais portuguesas. Porém, foi modesta a recompensa daqueles que apoiaram os guerrilheiros da FRELIMO.

4. Do poder da Frente ao poder de Estado e Autoridades Tradicionais em Mandlakazi

24 A política rural da FRELIMO teve pouco que ver com as alianças e lealdades do período colonial e da guerra de independência; nem procurou tão pouco radicar-se na mobilização do tempo de guerra. Justificada em termos de programa de modernização radical, a FRELIMO procurou criar uma hierarquia inteiramente nova de secretários e funcionários

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eleitos por diversos processos. Os chefes tradicionais colidiam com o projecto da FRELIMO de duas maneiras: quer como representantes do «obscurantismo» rural, quer como colaboradores das autoridades coloniais portuguesas. Eles foram excluídos dos postos, em conjunto com outros acusados de colaboração e exploração.

25 No distrito de Mandlakazi, o relato dos chefes tradicionais sobre o tratamento que receberam após a independência são notavelmente uniformes: foram informados nos comícios da FRELIMO que não havia lugar para eles na «nova ordem» política, acusados de «ter as ideias de Caetano na cabeça», foi-lhes dito que já tinham deixado de existir. O chefe Matsinhe lembra-se que «...o Governo disse que eles não queriam régulos, que os régulos não tinham poder, que deveriam ficar em casa como simples cidadãos»19.

26 Estas decisões surpreenderam os chefes tradicionais e as pessoas que haviam trabalhado na administração colonial. O radicalismo desta exclusão surpreendeu igualmente antigos guerrilheiros. O presidente da localidade de Massengue, por exemplo, antigo guerrilheiro da FRELIMO, perguntou-se porque é que os chefes tradicionais eram excluídos quando «a FRELIMO usou os régulos durante a guerra, quando ela tinha amizades entre os régulos... Os régulos apoiaram-nos com alimentos e cerimónias tradicionais»20.

27 A denúncia dos chefes tradicionais pela FRELIMO criou espaço para a expressão do ressentimento popular. O chefe Júlio Correia Langa, então recentemente regressado da prisão de João Belo, lembra como foi tratado: «após a independência eles disseram que não precisavam de hosi, que isso tinhaacabado... Eles disseram, “vocês fizeram o povo sofrer, nós não vos queremos aqui. Nós vamos escolher novas pessoas”»21.

28 No espaço rural de Mandlakazi, a política da FRELIMO em relação aos chefes tradicionais parece ter tido o apoio daqueles que haviam sido excluídos da autoridade política do passado. A sociedade rural estava dividida; os conflitos surgidos reflectiam uma variedade de interesses locais. Os sentimentos em relação à constituição dos novos comités da FRELIMO eram variáveis. Alguns consideravam que o medo e a arbitrariedade eram a regra. Em Dengoene, por exemplo, os anciãos queixavam-se: «as coisas mudaram drasticamente após a independência. Os brancos foram expulsos e os velhos neutralizados. Os chefes foram substituídos por secretários. Foi dito à população que estes secretários não podiam ser antigos empregados do governo colonial, ou chefes... Qualquer um podia ser escolhido, não havia critério – um estranho podia ser escolhido»22.

29 Contudo, em muitas outras zonas os chefes tradicionais, anciãos e actuais secretários da FRELIMO descreveram aqueles que assumiram os novos cargos como pessoas íntegras, bem queridas pela comunidade, e escolhidas de forma não coerciva e, mesmo, numa atmosfera completamente «democrática». Deste modo, o desejo de excluir a elite política tradicional do período colonial dos novos cargos não deixou de merecer algum apoio local: igualmente, em muitas áreas as novas estruturas da FRELIMO foram bem aceites. Porém, houve pouco apoio a algumas políticas da FRELIMO ou ao rápido restabelecimento de uma cultura política autoritária fechada ao debate sobre os aspectos mais básicos da vida das populações – como deveriam viver e trabalhar as terras, assim como o combate à feitiçaria.

30 A perda de apoios deveu-se menos à criação das novas estruturas do que à subordinação repressiva destas à hierarquia da FRELIMO, e ao seu programa. O clima político após a independência, caracterizado por múltiplas «mobilizações», foi descrito como próximo da intimidação; a possibilidade de oposição aberta a tais políticas foi considerada absurda. Particularmente repudiada foi a supressão de mecanismos para enfrentar a feitiçaria, na base de que eram «obscurantistas», e a política das «aldeias comunais».

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31 Uma reunião tida com dois irmãos mais velhos do chefe Timóteo Monjane Uatchualuane em exercício, e com dois secretários da FRELIMO, revelou uma posição clara em relação à feitiçaria e à natureza autoritária do novo regime. Os dois anciãos asseveraram: «a feitiçaria foi encarada de maneira muito diferente após a independência. Antes da FRELIMO os casos de feitiçaria eram cuidadosamente examinados e os acusados podiam ter que pagar pelas perdas causadas. Após a independência os Comités (da FRELIMO) diziam que não havia feitiçeiros, que não havia tinyanga. O comité tratava o nyanga muito mal, batia- lhe e acusava-o de mentiroso. Perguntava-lhe,Como é que sabes essas coisas de feitiçaria? Ele era o acusado de espalhar a feitiçaria»23.

32 Os resultados foram catastróficos. «A feitiçaria é difícil de controlar e portanto este tipo de políticas acabaram por encorajar a feitiçaria e ela aumentou, ela podia funcionara coberto da política do governo»24. Tais posições surgiram repetidamente nas entrevistas, e foram registadas em outros locais. Virando-nos para os secretários da FRELIMO, perguntamos- lhes como é que viam esta questão. Um respondeu: «nessa altura as populações não tinham opinião sobre isso – só podíamos fazer o que a FRELIMO dizia. Mas a maioria das pessoas pensava que esta era uma forma muito errada de encarar a feitiçaria»25. Os irmãos Monjane confirmaram este ponto de vista: «o Comité só reproduzia aquilo que a FRELIMO dizia. As pessoas sabiam, no seu íntimo, que os feitiçeiros, os tinyangae os chefes estavam ali, mas não podiam dizer uma coisa diferente daquilo que a FRELIMO dizia – seríamos humilhados num comício ou levaríamos pancada. Era o medo»26.

33 A culpa destes tempos por vezes bastante repressivos era atribuída a autoridades externas, e os agentes locais eram absolvidos: «havia sempre alguém que punha esta política em prática – não porque concordasse com ela mas porque não queriam contradizê-la», defendiam os anciãos Monjane27. Os testemunhos dos secretários da FRELIMO sobre a execução desta política são semelhantes aos relatos dos chefes tradicionais sobre a necessidade de por em prática medidas como a colecta de impostos e o trabalho forçado durante o regime português: ambos salientaram a sua incapacidade de confrontar directamente o poder do regime. Todavia, e tal como no período colonial, o exercício da autoridade por parte das pessoas empossadas no quadro de cada regime particular beneficiou determinados grupos e criou divisões profundas. Um ancião de Dengoene, por exemplo, comentava amargamente sobre as atitudes, quer dos funcionários superiores da FRELIMO, quer da população local cujas perspectivas haviam sido privilegiadas: «a FRELIMO disse às populações que o que ela dizia era a única verdade, uma verdade que não podia ser questionada. Ela disse ‘se vocês não concordam nós passamo-vos pelo cano da espingarda’. Mas ninguém sabia qual era a ideia deles a não ser que tivesse sido guerrilheiro – A primeira questão era sempre ‘Quantosanos estiveste na guerrilha?’ Quem não tivesse andado na guerrilha não podia falar. Mesmo que tivéssemos uma boa ideia tínhamos que ficar calados. A FRELIMO tinha vigilantes atentos para garantir que ninguém falava mal dela. Foi nesta altura que começou o sofrimento silencioso»28.

34 Os novos critérios de autoridade foram profundamente mal recebidos. Mesmo assim estabeleceu-se uma forte linha divisória entre a autoridade local e a autoridade «externa», entre secretários da FRELIMO oriundos das comunidades e funcionários superiores do partido e do Estado. Aos problemas associados com o anti-obscurantismo e com a incapacidade de ripostar às directivas emitidas a partir de cima veio juntar-se a introdução das «aldeias comunais». Assim, num primeiro momento, as populações de Mandlakazi entenderam as «aldeias comunais» sobretudo como uma medida de contra- insurgência e, enquanto tal, positiva (em alguns casos) para garantir a segurança e os benefícios em termos da ajuda que elas trouxeram na sua esteira. Porém, mesmo no caso

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em que elas se justificavam nessa base, as «aldeias comunais» não deixavam de ser consideradas um completo desastre político, social, económico e ecológico, um preço directo e terrível da guerra.

35 Nas discussões sobre as «aldeias comunais», a questão da feitiçaria e outros problemas, como doenças, surgiram com muito realçe. A explosão da feitiçaria após a independência esteve ligada não só à neutralização dos mecanismos para combater como também às tensões introduzidas pelo facto das pessoas viverem muito mais perto uma das outras, assim como outras transformações económicas e políticas. Os anciãos da área de Macuacua queixavam-se: «as casas estavam muito perto umas das outras e a aldeia estava cheia de feiticeiros. Os feiticeiros podiam fazer livremente o seu trabalho porque viviam numa aldeia onde se podia ver tudo – eles podiam ver quem tinha dinheiro ou bons alimentos, e portanto a inveja e a feitiçaria eram um grande problema»29.

36 Da mesma maneira, os anciãos e os secretários da FRELIMO em Chibonzane asseveravam: «havia muitos problemas de roubos na aldeia que nunca aconteceram antes, quando vivíamos separados – o único problema que tínhamos antes era com os animais selvagens. (Além disso) na aldeia não se podia dizer que havia feitiçaria – teríamos sido levados para o posto policial, acusados de obscurantismo.Quem dissesse que havia feitiço sofreria pesadas consequências. Os feiticeiros eram completamente livres no tempo das aldeias»30. Em Bonjuane as pessoas referiram o problema adicional do adultério: «quando vivíamos separados era difícil uma pessoa olhar para uma rapariga, mas vivendo perto era como na cidade – está-se sempre a ver pessoas, e portanto estes casos eram piores»31. Em Chicavane, a doença era uma grande preocupação: «se um apanha tosse todos a apanharão. Durante a noite parecia música. Era muito mau, não havia maneira de controlar as doenças»32. Outras queixas comuns e veementes diziam respeito à falta de espaço para o gado pastar perto de casa, à má localização das «aldeias comunais», às longas distâncias entre as casas e as machambas.

37 Porém, o impacto das «aldeias comunais» foi desigual e não deve ser exagerado. Tal como se referiu atrás, em muitas zonas de Mandlakazi as «aldeias comunais» duraram pouco ou nunca chegaram a ser realmente implementadas. Em Mandlakazi, os aldeamentos portugueses ao longo da estrada principal para Panda foram rebatizados e, com poucas modificações, reconvertidos em «aldeias comunais»: numa altura em que se culpavam os aldeamentos de muitos dos problemas acima referidos. Nas montanhas em redor de Betula, as aldeias tiveram que enfrentar obstáculos sérios e por vezes inultrapassáveis devido a razões geográficas. Em Chindenguele, o grandemovimento de criação de aldeias, em 1980/81, foi imediatamente seguido pela ocupação da área da RENAMO, que levou à destruição daquelas. Tal como comentou sucintamente o chefe Marco Dengo: «as aldeias comunais foram estabelecidas em 1981 e destruídas em 1982»33.

38 O fracasso da implementação da política levanta questões sobre a capacidade do Estado: na prática, o partido/Estado da FRELIMO não era monolítico ou hegemónico a ponto de ser invulnerável à necessidade de compromissos negociados a nível local como meio de reforçar a sua legitimidade e aumentar a sua capacidade administrativa. Embora tenha sido pouco reconhecido, o compromisso foi um mecanismo comum. Eles resultavam do enfraquecimento progressivo do Estado sob pressão da oposição, do declínio económico e da guerra, assim como das frequentes simpatias dos funcionários locais para com a «tradição». Longe do Estado alienígena e ideologicamente coerente descrito em particular por Geffray, as perspectivas dos funcionários locais eram frequentemente pragmáticas, diversificadas e, por vezes, oportunísticas (GEFFRAY, 1990).

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39 Dadas as circunstâncias, a utilização das críticas tradicionalistas por parte de líderes locais não é surpreendente: elas baseavam-se nas simpatias dos funcionários locais, na utilização, em tempo de guerra, da «tradição» tanto por parte do governo como da RENAMO, e em precedentes abertos pelos portugueses. Ironicamente, o antiobscurantismo da FRELIMO deu novas forças à esfera cultural como discurso crítico, e reviveu o legado português como uma espécie de vingança, na medida em que os chefes tradicionais compararam criticamente as concessões dos portugueses com os actos pouco medidos da FRELIMO. O recurso a uma crítica «tradicionalista» não decorreu de uma simples oposição entre comunidades tradicionais rurais imutáveis e um Estado modernizador: pelo contrário, constituiu uma crítica eficaz e historicamente enraizada da implementação autoritária de políticas produzidas centralmente e profundamente imperfeitas, uma rejeição não da modernização per si mas de uma modernização falhada e coerciva no contexto de tentativas de afirmar um controlo local sobre processos centrais à vida rural de Mandlakazi.

5. O papel das Autoridades Tradicionais na dinâmica de Guerra Civil em Mandlakazi

40 Segundo testemunhos locais, a RENAMO chegou pela primeira vez a Mandlakazi em 1982, tendo subsequentemente consolidado o seu controlo em 1986. A história desta zona antes desses acontecimentos não é muito diferente da história das áreas atrás discutidas: os chefes tradicionais haviam sido denunciados – acusados de «pertencer a Caetano» – e excluídos do exercício do poder político, independentemente da sua postura na guerra da independência. Todavia, as atitudes dos chefes tradicionais entrevistados em Mandlakazi eram nitidamente mais críticas e menos contemporizadoras do que as encontradas nas áreas controladas pelo governo: nenhum dava crédito às estruturas da FRELIMO, alegando que haviam sido escolhidas ao acaso, na presença de soldados, e nem sequer tinham a ver com a população «comum» que havia apoiado a FRELIMO durante a guerra de independência. O curto período de estabelecimento das «aldeias comunais» tinha contribuído para aumentar o descontentamento. Mesmo assim, a chegada da RENAMO não havia sido saudada com um entusiasmo particular, embora alguns chefes tradicionais dissessem que pelo menos o movimento havia denunciado a FRELIMO. Muitas pessoas fugiram no início dos anos oitenta: alguns «deixaram as aldeias e foram esconder-se no mato»; outros foram para Chilatanhane, controlado pelo governo, estabelecendo-se em Xai-Xai, em campos ao longo da estrada de Panda, ou mais para o interior. Os membros da estrutura da FRELIMO eram os mais inclinados a fugir dado que constituíam alvos preferenciais da RENAMO. Segundo o chefe Marco Dengo, «a RENAMO ameaçava-os e, portanto, muitos fugiram»34.

41 Todavia, as estruturas do governo e do partido não eram as únicas a entrar em colapso: o controlo da RENAMO sobre Chidenguele, e sobre as montanhas centrais de Cimbirre com as quais Chidenguele confina, também criou rupturas, embora menos dramáticas, nas estruturas regionais e locais da autoridade «tradicional». Os detentores de cargos de chefia sofreram desgaste quando fugiam ou eram «recuperados», na sequência de ofensivas de ambos os lados, o que contribuiu para uma nova remodelação e restruturação das chefaturas de Chidenguele. Por exemplo, a chefatura de Makupulani experimentou problemas semelhantes: Salvador Makupulani contou como o seu irmão e então chefe Absolão havia fugido «para as aldeias de Madender» quando a RENAMO chegou

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pela primeira vez. Em 1982 Salvador foi nomeado chefe em lugar daquele. Mesmo assim, a RENAMO continuou a tentar capturar Absolão, o que acabou por conseguir. Porém, pouco depois ele foi resgatado pelo exército zimbabweano. Salvador continuou como chefe tradicional, exercendo autoridade não só sobre a sua área, mas também sobre as dos vizinhos chefes Nhancale e Tamele, ambos fugidos, segundo Salvador, embora pelo menos o posto do segundo estivesse simplesmente vago desde a independência. As tentativas de rapto da RENAMO também se estenderam ao nyanga Damião Massinge, baseados em Chilatanhane. Segundo o chefe Ernesto Macupulane: «a RENAMO andou à procura dos chefes durante muito tempo sem sucesso. A RENAMO tentou capturar Massinge três vezes, mas falhou devido aos poderes de Massinge. Massinge decidiu ensinar-lhesuma lição – quando vieram buscá-lo, ao tentar regressar não encontravam o caminho. Só depois de o libertar é que conseguiram regressar às suas bases»35.

42 Os chefes tradicionais de Chidenguele afirmaram que a guerra, com o seu cortejo de dificuldades económicas, confundiram totalmente a sua capacidade de realizar adequadamente as cerimónias da chuva, o que constituiu causa de grande preocupação, particularmente durante as secas devastadoras de finais de oitenta e início dos anos noventa. Eles queixaram-se que desde 1980 que o seu afastamento dos mercados e a ausência de apoio do Estado os tinha impedido de levar roupas brancas e pretas para Mungoyi como tinham feito no tempo dos portugueses. Em 1991, a seca impedira-os mesmo de fazer a peregrinação dado que Munguambe e outros chefes como Nhancale nem sequer tinham conseguido as sementes necessárias. A guerra teve, também, custos mais directos. Lucas Munguambe explica: «a guerra teve um efeito muito mau na queda das chuvas. A mãe de Mungoyi (Phandanzwane) foi levada pela RENAMO em 1986 e colocada na área de Nhamgume... Dhlakama suspeitava que ela estava a ajudar os soldados zimbabweanos que ali se encontravam na altura. Mas não era verdade: o Mungoyi apõe-se à guerra, só quer saber da chuva. Em resultado... o Mungoyi ficou perturbado e não conseguiu realizar o seu trabalho»36.

43 Nas zonas da RENAMO os chefes tradicionais tiveram que enfrentar outras dificuldades dado que tinham que desempenhar uma série de papéis relacionados com o esforço de guerra daquele movimento. Nas zonas que ocupou, a RENAMO respeitou as hierarquias tradicionais, o que seria de esperar dada a falta de alternativas e o facto de tal atitude representar um desafio à ideologia da FRELIMO. Todavia, a administração da RENAMO durante a guerra estava longe de ser «restauracionista». A RENAMO criou novos postos, novos cargos, novos deveres e responsabilidades. Por exemplo, em Chidenguele (tal como em outros lugares), a RENAMO estabeleceu os mujibas, uma força policial paralela, e recrutada localmente. Na perspectiva dos anciãos locais tais iniciativas, porém, não denotavam um corte radical com práticas políticas anteriores, um sentimento indicativo da regularidade dos levantamentos. As perspectivas dos anciãos eram históricas e sanguinárias, produto de uma história volátil: das depradações e exigências dos Nguni de Sochangane e dos senhores da «Terras da Coroa», às zonas «semi-libertadas» da FRELIMO, e ao controlo estabelecido pela RENAMO, Mandlakazi sempre foi uma zona sujeita a violenta contestação. No ponto de vista dos anciãos das chefaturas de Mandlakazi, a introdução de novos postos e responsabilidades pela RENAMO seguia precedentes estabelecidos anteriormente e, em si, não era controversa.

44 As relações da RENAMO com os chefes tradicionais tinham, efectivamente, uma forte ressonância portuguesa, combinando aspectos da «tradição» com a violência e a extracção. As hierarquias políticas tradicionais estavam encarregadas de fornecer, entre outros, comida e força de trabalho, esta última normalmente para carregar bens, e

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incorporava estrangeiros, normalmente cativos. As descrições dos chefes tradicionais sobre a vida nas zonas da RENAMO combinavam o elogio do respeito acordado às Autoridades Tradicionais com um profundo ressentimento devido à coerção e à extracção, particularmente contra o trabalho forçado dos carregadores. O chefe Nhancale sublinhou que os soldados da RENAMO não entravam na zona antes de proceder a consultas: «a RENAMO sempre pediu autorização: tinham a norma de consultar sempre os chefes tradicionais na área onde operavam»37. O chefe Dengo mostrou-se contente pelo facto da «RENAMO trabalhar com os hosi, tinduna e tindota», mas queixou-se das exigências de comida e pelo facto das pessoas terem sido forçadas «a transportar muitas coisas»38. O deslocado chefe Munguambe, que «viveu com a RENAMO» entre 1982 e 1988, comentou que «a RENAMO respeitou-me como hosi», e que «os curandeiros eram muito importantes nas zonas da RENAMO...Os Renamos não podiam mandá-los fazer qualquer coisa, eles podiam movimentar-se livremente»39. Embora isto fosse considerado positivo, ele prosseguia, queixando-se, que «a RENAMO forçava as pessoas a serem carregadores, a carregar coisas muito pesadas a partir de Cimbirre. As pessoas não estavam contentes mas não podiam queixar-se, pois seriam punidas»40.

45 Embora os chefes tradicionais se referissem às bases muito limitadas que tinham para negociar na qualidade de chefes tradicionais, nem eles nem a «tradição» foram totalmente capturados pela RENAMO. Tal como nos casos das «zonas neutrais» estabelecidas pelos tinyanga, os chefes tradicionais conseguiram colocar algumas restrições ao comportamento dos soldados da RENAMO, usualmente através do recurso à autoridade espiritual. O chefe Nhancale, por exemplo, deu dois exemplos, ambos respeitantes a soldados da RENAMO que se haviam envolvido com mulheres da zona: «em um caso, um soldado da RENAMO que tentava violar uma mulher foi atacado por um leão; em outro, um soldado da RENAMO estava a ter relações sexuais com uma mulher ao ar livre, e os leões vieram importunar o casal. Os leões tornaram-se um problema tão grande que o comandante da RENAMO veio ter comigo para que eu falasse com os antepassados. Então eu expliquei-lhe as regras relativas às relações sexuais»41. O chefe Dengo alegou que os seus (e dos outros anciãos) apelos aos antepassados «protegeram-nos de certa maneira da guerra», e «trouxeram sorte para o povo»42. A sua capacidade de distinguir os movimentos de tropas do rugido dos leões (uma habilidade que ele tinha já usado em favor dos guerrilheiros da FRELIMO na guerra da independência) permitiu não só que ele avisasse a RENAMO da chegada de soldados inimigos como, também, que evitasse a RENAMO.

46 Apesar de um relativo controlo local, as exigências coercivas da RENAMO e, também, o estrago feito na economia local, criaram uma profunda insatisfação e deixaram um rasto de medo, brutalidade e privação no período pós-guerra. Nos últimos anos a RENAMO tinha lutado por apagar tal herança como parte da sua tentativa de criar uma administração em tempo de paz. Ironicamente, acima do nível dos chefes tradicionais, a nova administração da RENAMO em Mandlakazi imitava o modelo da FRELIMO, com hierarquias burocráticas e centralizadas de administração e serviços que operam desde o nível «nacional» até ao nível de localidade, assim como o sistema de quadros e funcionários políticos. Contudo, tais estruturas estavam completamente privadas de meios: a RENAMO operava em condições que faziam com que as áreas do governo parecessem prósperas.

47 As dificuldades materiais na maioria dos aspectos básicos da administração em Mandlakazi eram muito sérias. Por exemplo, papel, lápis, velas, etc., eram muito raros e procurados. Não havia gabinetes para além das ruínas bombardeadas e sem tecto, vestígios da velha administração portuguesa, e de algumas palhotas; não havia

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electricidade nem água potável. A comunicação processava-se sobretudo através de notas escritas à mão, levadas a pé para longas distâncias, uma necessidade reflectida na medida das distâncias em termos de horas a percorrer. Os «funcionários» não eram remunerados. A falta de apoio material à administração levava à contínua extracção da população civil, mais uma vez em termos de alimentos e força de trabalho, introduzindo tensões e inibindo esforços para restabelecer os mercados e serviços tão necessários à reconstrução económica e para o regresso das populações deslocadas às zonas da RENAMO. Todavia, as práticas extractivas foram algo atenuadas, em determinado período, pelo fluxo de ajuda para Mandlakazi. Assim, em 1993/94, os funcionários viviam da ajuda alimentar em vez de fazerem com que os habitantes locais cultivassem para eles, como fora o caso em 1992/93, e utilizavam a ajuda na forma de capulanas em troca de mão-de-obra. Porém, os métodos de distribuição dessa ajuda eram, eles próprios, uma fonte de tensão entre a RENAMO e os civis.

48 Neste contexto, o facto da RENAMO se apoiar nos chefes tradicionais como componente da administração reflectia não só a sua propensão «tradicionalista» mas também a sua fraqueza e vulnerabilidade.

49 Os chefes tradicionais e seus subordinados desempenhavam papéis nas comunicações, na distribuição da ajuda e no fornecimento de força de trabalho. Embora os chefes tradicionais, de certa maneira, estivessem em processo de incorporação nas estruturas administrativas civis da RENAMO, os seus laços com o movimento também revelavam sinais de fraqueza: à medida que as pressões da guerra se atenuavam, os chefes tradicionais restabeleciam unilateralmente ligações com os tinyanga de outras regiões e dirigiam tribunais e presidiam a outros aspectos da vida rural de uma forma relativamente autónoma.

50 Os chefes tradicionais de Mandlakazi pareciam menos propensos ou dependentes de alianças com as autoridades «oficiais» do que com os chefes tradicionais das áreas do governo.

51 Em parte era assim simplesmente porque a RENAMO pouco tinha a oferecer em termos de benefícios materiais, e devido ao medo da coerção, e à relutância em prosseguir com deveres pouco populares.

6. Estado, Autoridades Tradicionais e legitimidade política: os parâmetros de um «casamento de conveniência» em Mandlakazi

52 Quando a FRELIMO «herdou» o Estado moçambicano após o colapso da colonização portuguesa, teve de expandir rapidamente a sua hegemonia política por todo o território de Moçambique. O já previsto lento processo de expandir o controlo político da FRELIMO e de transformação das relações sociais tinha de sofrer um aceleramento imediato. Um movimento de libertação que tinha estado a conduzir uma revolução a partir das bases, através do processo gradual da organização e expansão das «zonas libertadas», estava agora a liderar uma transformação política e social a partir do topo, em todo o território de Moçambique.

53 No entanto, a realidade é que o Estado moçambicano, dirigido pela FRELIMO, não foi nem capaz de expandir e sequer manter a sua soberania, enquanto um espaço produzido

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socialmente e activamente envolvido na sua reprodução. Assim sendo, Howe e Ottoway puderam notar com razão que: «In early 1987, the process of state power consolidation in Mozambique could only be considered a failure... The combination of Rhodesia’s, Renamo’s and South Africa’s attacks on one side, and Frelimo’s inability to defend the state and revive the economy on the other have created a vicious circle. Renamo’s strengh makes it difficult for Frelimo officials to reach the villages, which in turn further strengthens Renamo or at least creats a power vacuum in the rural areas» (HOWE & OTTAWAY, 1987).

54 Em termos gerais, aquilo que Howe e Ottoway veêm como uma discrepância entre a força do regime e a força do Estado, pode ser explicado pelo facto de a força do regime ser uma questão de organização interna e de legitimidade, enquanto que a força do Estado é uma questão de poder e de mobilização de recursos materiais.

55 Os factores que influenciam a legitimidade do regime e a sua força interna são as escolhas políticas feitas pela FRELIMO, a sua organização interna, as relações que estabelece com outros agentes e estruturas políticas, as ligações pessoais estabelecidas durante a luta contra o colonialismo e os mecanismos para gerir desentendimentos.

56 A consolidação do Estado é algo muito diferente. Aqui a chave é o poder ou a capacidade de dirigir a «sociedade civil» e o Estado, se necessário através do «monopólio da violência simbólica legítima». O poder exige recursos materiais. Alguns destes recursos são de ordem económica – um Estado falido tem uma capacidade muito limitada de fazer alguma coisa. Outros recursos são de ordem organizacional – a existência de uma ligação entre o regime e a população que assegure que as decisões políticas são postas em prática, até mesmo quando a população não as vê com entusiasmo. Este tipo de organização é muito diferente da organização interna do regime e não tem aquilo que Scott refere como o «Estado brando» de Moçambique (SCOTT, 1988). Consequentemente: «the collegiately of FRELIMO’s Political Bureau enhances its legitimacy by presenting the population with an image of unitedand cohesive leadership, what would enhance state power is the restoration of FRELIMO’s rural networks, as well as the administrative and security apparatus» (HOWE & OTTAWAY, 1987). O que aqui se refere é basicamente o controlo do Estado sobre a sociedade, a política e a economia por todo o território de Moçambique.

57 A «revolução social», mesmo que seja facilitada por um regime unificado, é um processo sócio-espacial, dado que ocorre no espaço e no tempo. Este processo tem a ver com exercer o poder do Estado e com a transformação das relações sociais e políticas por todo um território. Temas como o modo de organização do Estado pós-revolucionário no espaço e como esta organização difere daquela que vigorava no tempo do colonialismo, levantam uma série de importantes questões. Em síntese: a transição para uma nova forma de governo e para uma nova sociedade requer e dá origem a um novo enquadramento político-espacial. O que é relevante, ou até mesmo paradoxal, aqui salientar, é que a tentativa por parte da FRELIMO em afirmar a sua própria concepção de uma nova sociedade exigia, por um lado, controlo territorial efectivo, e por outro, a não obliteração da praxis social e política da sociedade «tradicional» moçambicana. Neste sentido, a política da FRELIMO – marcada pela unicidade na sua orientação política, com o ideal de formação de um Estado-nação, que movido pelo mito da homogeneidade política, conduziu à destruição de grupos sóciopolíticos específicos; isto é, acabou por contribuir para aquilo a que Cahen, designa por «La révolution implosée», ou na nossa perspectiva, para aquilo a que designamos de «legitimidade dividida» (CAHEN, 1987).

58 De facto, o Estado moçambicano rejeitou (e rejeita em certa medida) de um ponto de vista formal, jurídico e político explícito, aquilo que ele considera como uma ingerência da

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parte das Autoridades Tradicionais de Mandlakazi, reconhecendo-lhe somente uma reduzida e difusa participação de apoio organizativo e consultivo às instituições estatais locais a nível jurídico, sócio-económico e político-administrativo. Todavia, dentro da perspectiva da presença «passiva», ainda que por vezes reconhecidamente activa das Autoridades Tradicionais, como por exemplo na resolução de litígios relativos a terras, poderemos considerar que as Autoridades Tradicionais formam em maior ou menor escala um poder «alternativo», ou se quisermos «paralelo», no quadro da estrutura política estatal local, no qual algumas Autoridades Tradicionais reproduzem (ou pretendem reproduzir) a sua legitimidade e a sua autoridade assente em fundamentos pré-coloniais, enquanto que o Estado moçambicano actual, é ainda visto, não só para as Autoridades Tradicionais mas também para um significativo número da população rural de Mandlakazi, como uma criação externa e sucessor do Estado colonial português, construído a partir do topo, e decorrentemente, detentor de uma legitimidade de outra natureza.

59 Neste sentido, poderemos considerar que a legitimidade e a autoridade do Estado e das Autoridades Tradicionais de Mandlakazi, provêem de fontes totalmente diferentes, produzindo consequentemente uma divisão de legitimidade. Deste modo, é a partir desta «legitimidade dividida» que nasceram (e se mantêm) um considerável número de problemas políticos que afectam o Estado moçambicano (especialmente a nível local), e que se manifestam actualmente mais que nunca, neste contexto de reivindicação de uma forma de Estado democrática, participativa e descentralizadora, que entre outros pontos assenta, por um lado, no estabelecer de relações do Estado com a «sociedade civil», em geral, e por outro, com o «restabelecer» efectivo de relações entre o Estado e as Autoridades Tradicionais, em particular.

60 A recusa do Estado moçambicano em reconhecer integralmente as prerrogativas sociais, económicas e, sobretudo políticas da autoridade legítima dos chefes tradicionais, tem como pano de fundo a apreensão do Estado moçambicano, de que uma vez reconhecida formal e explicitamente a legitimidade tradicional, as Autoridades Tradicionais de Mandlakazi se apresentem como um poder «alternativo» com o qual o Estado tem de coabitar, ou ainda, entrar em competiçãodentro do processo de estruturação das actividades sócio-jurídicas e político-administrativas no distrito. Actualmente, o Estado moçambicano preside a uma orientação política que consideramos ambígua, na exacta medida em que, ora considera as Autoridades Tradicionais como elementos integrantes da «sociedade civil», ora como agentes políticos activos pertencentes a instituições de poder, que devem ser de facto incorporadas nas estruturas administrativas dos órgãos estatais de Mandlakazi. É a última destas concepções, expressa numa tácita engenharia legislativa, que constitui a norma e estabelece o padrão reprodutor fiel à política colonial portuguesa, quer no que diz respeito à definição das relações que entre o Estado e as Autoridades Tradicionais se estabelecem, quer no que diz respeito à dimensão de acção e de intervenção social e política que às Autoridades Tradicionais de Mandlakazi é reservada; isto é, o Estado moçambicano esforça-se em qualquer um dos casos, como refere D. Ray de forma muito concisa, para «mettre en oeuvre un sistème de gestion de la chefferie» (RAY, 1998).

61 Porém, os poderes públicos moçambicanos reconhecem que num contexto de «legitimidade dividida» a não inclusão, por um lado, e a possível tentativa de desestruturação das dinâmicas e legitimidade políticas das Autoridades Tradicionais de Mandlakazi, por outro, poderiam certamente criar situações de conflito e hiatos políticos

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indesejáveis, com onerosos custos para ambos os lados. A este propósito António Mandlate refere que «efectivamente vive-se uma situação algo complicada. Pois por um lado, temos alguma população que reconhece o Estado como sendo o único órgão legítimo na gestão das comunidades. No entanto, existe uma larga percentagem da população que reconhece ao régulo os direitos e os deveres ancestrais de gestão da comunidade e de resolução dos conflitos que possam surgir. Nós mesmos reconhecemos esta autoridade. Na resolução de alguns casos, principalmente de terras e de conflitos entre famílias, eu consulto o régulo. Eu represento a lei, mas existem conhecimentos que me escapam. O Estado não pode ignorar o papel dos régulos, nem estes agirem como se o Estado não existisse»43.

62 Assim, num quadro de «legitimidade dividida» entre o Estado e as Autoridades Tradicionais a estratégia definida explícita ou implicitamente por ambas as partes (cabendo naturalmente a iniciativa ao Estado moçambicano), parece ser, aquilo que designaríamos por um «casamento de conveniência». Com efeito, tal como refere Casimiro Mondlane «O Estado precisa das Autoridades Tradicionais para governar, para chegar às populações, para se fazer ouvir. Não se pode sobrepor a elas nem ignorar a sua legitimidade junto das populações. Esta autoridade colabora e contribui bastantena gestão da terra, participa no estudo e atribuição de terras para habitação, produção agrícola e pecuária, identificação de áreas livres e disponíveispara a ocupação. No entanto, as Autoridades Tradicionais também precisam que o Estado as reconheça. Pois, para além dos recursos materiais que lhes pode dar, também lhes dá outra ‘força’ para fazerem valer a sua autoridade»44.

63 Em suma, o actual contexto anuncia algumas mudanças e expectativas políticas, porém, só o futuro testemunhará se este «casamento de conveniência» apadrinhado por um remake legislativo colonial, na figura do já referido decreto-lei nº15/2000, providenciará o que ambas os nubentes desejam: um contrato benéfico e duradoiro.

Conclusão

64 Desde o início dos anos 90, que fervilha em Moçambique o debate em torno de noções tais como «Bom Governo», «Responsabilidade», «Transparência», «Democracia», «Descentralização», etc. Foi neste contexto de «mudança política», que se enquadraram, e que foram analisadas as relações políticas tecidas na actualidade entre o Estado e as Autoridades Tradicionais, em Mandlakazi.

65 Neste sentido, e na procura de um novo equilíbrio político, o Estado moçambicano e as Autoridades Tradicionais de Mandlakazi estão hoje embrenhadas num processo, nuns casos, competitivo, noutros negocial, em que cada uma das partes procura alargar a sua esfera de influência e de dominação jogando com a sua própria lógica e com os recursos de que dispõe: o Estado moçambicano tem poder mas quer adquirir mais legitimidade, ou melhor, outras legitimidades perante a população rural de Mandlakazi; as Autoridades Tradicionais, pelo seu lado, dispondo de indiscutível legitimidade aos olhos da respectiva população rural de Mandlakazi, tentam fazer-se pagar com o maior quinhão de poder possível em troca da sua colaboração com o Estado.

66 Com efeito, esta situação reflecte as tensões originadas pela coexistência forçada entre duas lógicas legitimadoras estruturalmente diferentes: a «construção» da legitimidade das Autoridades Tradicionais de Mandlakazi (cujas raízes são anteriores à ordem política imposta pelo colonialismo português e mantida no período pós-colonial), fundamenta-se numa matriz político-cultural em que o sagrado e o político constituem um todo coerente

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e indissolúvel, por seu lado, a legitimidade do Estado moçambicano, pelo contrário, baseia-se na observância de formalismos políticos, institucionais e constitucionais, originados num contexto radicalmente distinto e que foram bruscamente instalados na sequência do processo da colonização portuguesa.

67 Nesta medida, esta coexistência de lógicas legitimadoras distintas, diríamos mesmo, antagónicas, abre a porta a uma situação concorrencial mais ou menos velada: se as bases da legitimidade do Estado moçambicano e das Autoridades Tradicionais de Mandlakazi não são as mesmas, então ambas as partes podem defender que a sua autoridade é legítima sem recorrer à negação da legitimidade da outra parte, limitando-se a reclamar que ela se exerce numa esfera diferente da sua. Com ou sem esferas de actuação separadas, no entanto, o facto é que estes agentes «cohabitam» no campo político de Mandlakazi, pelo que, em termos práticos, e tendo como pano de fundo o actual contexto político, se encontram em permanente relação, competindo ou colaborando conjunturalmente entre si ao sabor dos atributos e dos interesses de que dispõem em determinado momento.

68 Em suma, na sua essência, as duas principais características que definem as relações tecidas na actualidade entre o Estado moçambicano e as Autoridades Tradicionais no campo político de Mandlakazi, é por um lado, a concorrência, e por outro, a dependência mútua; isto é, no actual contexto político que se caracteriza por «legitimidade dividida», a estratégia que ambas as partes desenvolvem, quer no sentido de acautelarem a sua sobrevivência (mais no caso das Autoridades Tradicionais), quer no sentido do reforço dos seus padrões de dominação, assenta no recurso último de um «casamento de conveniência».

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NOTAS

1. Nestas comunidades rurais, o muti ou ndjango é a base de toda a organização social, política e económica. O conjunto de muti ou ndjango é designado por Tiko (chefatura), constituíndo este, a unidade política, social, económica e religiosa mais vasta, integrando linhagens de vários clãs cujo chefe é apelidado de hosi. 2. A povoação na qual reside o hosi era denominada Ntsindza ou Kamukhulo, que quer dizer capital. 3. O nyanga é o mestre de cerimónias que zela pela observância rigorosa do ritual. 4. O momento mais importante de ligação entre os vivos e os mortos, ocorre quando do Kuphahla, um ritual de invocação dos espíritos. Este é realizado tanto ao nível da comunidade, como das famílias. Nas primeiras, legitima-se a autoridade do hosi, nas segundas, a autoridade do ancião, mulumuzana. 5. O Kando era um objecto preparado com raízes misteriosas que só existiam em Mussapa e, são conhecidas apenas pelo nyanga do tiko. 6. Este era preparado a partir de pedaços de pele de búfalo, de leão, de hiena, de pantera, de serpentes de diversas espécies e, sobretudo, de pele humana de inimigos mortos durante uma

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batalha. Era colocado na palhota da primeira mulher do hosi um chifre mágico com a mistura. No meio da lareira mantinha-se um fogo perpétuo, o fogo do mphulo (ndzilo wa muhri) – fogo da realeza – que era sagrado. 7. Zefanias Benjamin Matsinhe (Régulo), Posto Administrativo de Mazucane. 8. Paulo Mondlane (Régulo), Chicavane José Monjane (Régulo), Benedito Monjane (Régulo), Estevão Balate (Induna), Filipe Nhavene (Induna) Cossine Matsombe (Induna), Júlio Macave (Induna ), Posto Administrativo de Chibonzane. 9. Júlio Correia Langa (Régulo), Posto Administrativo de Nguzene. 10. Ernesto Macupulane (Régulo), Localidade de Chilatanhale, Francisco Monlhane (Régulo), Localidade de Chidenguele. 11. Gabriel Dengo (Régulo), Localidade de Dengoene. 12. Tenente-Coronel Tavares (Comandante do Destacamento da FRELIMO para a Área de Chidenguele), Posto Administrativo de Chidenguele. 13. Tenente-Coronel Tavares, ibidem. 14. Tenente-Coronel Tavares, ibidem. 15. José Sabino Munguambe (Régulo), Posto Administrativo de Chidenguele. 16. Tenente-Coronel Tavares, ibidem. 17. Tenente-Coronel Tavares, ibidem. 18. Marco Dengo (Régulo), Posto Administrativo de Dengoene. 19. Zefanias Benjamin Matsinhe, ibidem. 20. Vasco Jaime Chilandze (Presidente da Localidade de Massengue), Localidade de Massengue. 21. Júlio Correia Langa, ibidem. 22. António Paulo Biza (Ancião), Albano Abílio Langa (Ancião), Localidade de Dengoene. 23. Felizardo Monjane,Salomone Monjane (irmãos do régulo Timóteo Monjane Uatchualuane) Posto Administrativo de Chibonzane. 24. Felizardo Monjane, Salomone Monjane, ibidem. 25. Alfredo MangalaneMassango(Secretário da FRELIMO), Posto Administrativo de Chibonzane; Vasco Chidzacala Macamo (Secretário da FRELIMO), Posto Administrativo de Chibonzane. 26. Felizardo Monjane, Salomone Monjane, ibidem. 27. Felizardo Monjane, Salomone Monjane, ibidem. 28. Agostinho Fabião Chiau (Ancião), Localidade de Dengoene. 29. Alberto André Massangaia (Ancião), Albino Simione (Ancião), Posto Administrativo de Macuacua. 30. Salvador Machalele (Ancião), Benedito Macamo (Ancião), Rodrigues Macamo (Secretário da FRELIMO), Ricardo Gueze Care (Secretário da FRELIMO), Moreira Mondlane (Secretário da FRELIMO), Posto Administrativo de Chibonzane. 31. António Tchambule (ex-Secretário da FRELIMO), Localidade de Bonjuane. 32. Adriano Parruque (ex-Secretário da FRELIMO), Localidade de Chicavane. 33. Marco Dengo, ibidem. 34. Marco Dengo, ibidem. 35. Ernesto Macupulane, ibidem. 36. Lucas Munguambe (Tindota), Posto Administrativo de Chidenguele. 37. Francisco Nhancale (Régulo), Posto Administrativo de Chidenguele. 38. Marco Dengo, ibidem. 39. José sabino Munguambe, ibidem. 40. José sabino Munguambe, ibidem. 41. Francisco Nhancale, ibidem. 42. Marco Dengo, ibidem. 43. António Mandlate (Administrador do Distrito de Mandlakazi). 44. Casimiro João Mondlane (Presidente do Conselho Municipal de Mandlakazi).

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RESUMOS

O processo de «modernização política» que actualmente se verifica em Moçambique tem conferido grande visibilidade e uma nova importância à questão do relacionamento entre o Estadoe as Autoridades Tradicionais. Comefeito, e dada a persistência das Autoridades Tradicionais enquanto agentes de mediação entre o passado e o presente, o Estado pós-colonial não pode hoje ignorar o papel dessas autoridadesna arena política. Trata-se, assim, de um quadro relacional ambíguo e complexo: apesar de predominantementebaseado num aparelho político moderno, oEstado vê-se na contigência de tentar absorver as Autoridades Tradicionais, procurando deste modo beneficiar simultaneamentede factores de legitimação política «modernos» e «tradicionais». As Autoridades Tradicionais, por outro lado, enquanto lutam pela manutenção do seu controlo sob as populações, procuram ao mesmo tempo capturar parte dos recursosdo Estado e utilizá-los para manter padrões de dominação baseados na existência de redes familiares e clientelaresalimentadas pela redistribuiçãode riqueza e de lugares de poder.

It is commonly accepted that the current process of «political modernization» in Mozambique has given increased visibility and importance to the problems concerningthe relationship between State and the Traditional Authorities.In face of the resilience of Traditional Authorities as mediation agencies between the present and the past, the State cannot afford to ignore their presence in the political landscape. The picture is rather complex: however predominantlybased on a modern political apparatus, the State also tries to include the Traditional Authorities under its umbrella, thus seeking to benefit both from «modern» and «traditional» political legitimization. Traditional Authorities, on the other hand, while fighting to keep control over their communities on their own terms, are nevertheless eager to capture some of the State resources, to increase their ability to maintainthe old ruling patterns, based on the existence of a clientelist network nurtured through the redistribution of wealth and positions of power.

ÍNDICE

Keywords: traditional authority, state, legitimacy, Mandlakazi, political relationship Palavras-chave: Autoridade tradicional, Estado, Legitimidade, Mandlakazi, Moçambique, Relação política

AUTOR

VITOR ALEXANDRE ANTUNES LOURENÇO Centro de Estudos Africanos, ISCTE

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Educação e Política em Angola. Uma proposta de diferenciação social

Maria João da Silva Mendes Ferreira

1. Educação e desenvolvimento em África

1 A abordagem destas questões exige sempre alguma preocupação relativamente ao tratamento teórico de dois níveis de preocupações, a saber, a definição dos conceitos de educação e desenvolvimento em África e a questão das transições (política e económica) na África subsahariana.

2 Patrick V. Dias1 aborda a questão da educação e desenvolvimento, de forma adequada às nossas preocupações teóricas, partindo do pressuposto de que sempre que se fala em desenvolvimento se levanta a questão da educação. Torna-se portanto necessário clarificar quer os conceitos de desenvolvimento quer de educação, considerando quer a educação formal quer a educação não formal, quer mesmo clarificando a questão essencial de que na África subsahariana à educação tradicional se tem vindo a sobrepor, quer no período colonial quer actualmente, a educação ocidental, em contexto urbano e em contexto rural, quando se considera que as políticas educacionais dos diferentes países se estendem a todo o território. Citando I. Wallerstein, Dias refere que a associação de educação e desenvolvimento aparece ligada ao processo de surgimento do sistema mundial e que só se pode falar em desenvolvimento quando se refere a sociedades2. Dias considera que, quando se fala em educação e desenvolvimento se está a falar de um determinado tipo de sociedade, onde a educação é sinónimo de um sistema educativo formal bem desenvolvido, próprio das «sociedades modernas desenvolvidas». A herança colonial sobrevaloriza as instituições herdadas do processo de civilização técnico- industrial, desvalorizando ou desconhecendo a tradição africana e construindo e promovendo elites dirigentes com o objectivo de integração no sistema-mundo. Foi esta a situação que se verificou em toda a África colonizada por europeus, onde não se soube reconhecer que, se na Europa educação, na prática, é sinónimo de educação formal, em África a sociedade tem uma forte tradição de educação não-formal3. O grande problema africano, quando se avalia o insucesso da relação educação-desenvolvimento é que como

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se entende educação como educação formal, se verifica que esta não é garantida a toda a população mas antes a uma elite. Ora, a educação não formal, da tradição africana, não se pode naturalmente relacionar com o conceito moderno de desenvolvimento.

3 Daí que os resultados esperados pelo entusiasmo pós-independência na maioria dos países africanos, a que deveria corresponder «mais educação-mais desenvolvimento» acabam por ter eco na Declaração de Harare de 1982 que sublinha as insuficiências e as dificuldades ainda persistentes nos sistemas educativos africanos. Esta situação, de insucesso educativo, que se traduz no índice elevado de insucesso e abandono escolar vai, na década de 80, traduzir-se no desinvestimento progressivo na educação na maior parte dos países africanos. Em Angola, a situação é a mesma que no resto do continente negro, embora com um ligeiro atraso no tempo, devido à descolonização tardia, mas agravada pela situação de guerra civil. Embora os representantes africanos no Plano de Acção de Lagos tenham considerado importante que a renovação dos sistemas educativos assegure a sua «relevância para as necessidades de desenvolvimento económico, social e cultural dos países africanos, para as aspirações dos seus povos e para os valores africanos tradicionais, que são prometedores de progresso futuro e para o reforço da sua independência», a verdade é que os sistemas educativos dos países africanos usam a mesma matriz dos sistemas educativos do antigo país colonizador. É o caso da Zâmbia, como é o caso de Angola e de Moçambique4. Nestes países as reformas nunca conseguem constituir-se como revolucionárias ou como apoiadas na matriz cultural do estado africano mas são sempre adaptações dos modelos importados de países que servem de modelo societal e/ou implementados nas antigas metrópoles colonizadoras. O argumento de que, na África subsahariana, não há tradição de cidades e de ter sido o colonizador que construiu as primeiras cidades5 e impôs um tipo de vida urbano, pode servir para explicar que a educação formal acaba por se implementar no seio das estruturas urbanas, a que os africanos tinham pouco acesso, no período colonial, particularmente nas antigas colónias portuguesas. Por outro lado, as independências e, nalguns casos, a instabilidade política/ social atraíram para a cidade elevados contingentes de população rural, detentora de matrizes culturais africanas. É então fácil compreender o insucesso da educação imposta pelo estado, o que significa que é a educação imposta pela classe-estado/classe dirigente (educada no período colonial pelas estruturas coloniais ou depois das independências nas próprias metrópoles coloniais) com fortes interesses na relação com os ocidentais6. A urgência do debate em volta da educação em África aparece então associada ao ritmo galopante da chegada à cidade de população rural que vem avolumar o contingente sem acesso ao ensino formal, agravado pela sua característica de ser um ensino culturalmente estranho7. O ensino formal aparece assim como promotor de um desenvolvimento do tipo ocidental, quer de fachada socialista quer capitalista. É com esta abordagem que o panorama parece dramático para a África Subsahriana, mesmo considerando unicamente as regiões do mundo em desenvolvimento.

2. A situação em Angola

2.1. As particularidades do sistema educativo angolano

4 As condições específicas que Angola apresenta no contexto do Sistema-Mundo permitem explicar o interesse de múltiplas instituições/organizações internacionais na problemática angolana. A multiplicidade de missões de observação, de investigação e

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mesmo tendo por objectivo a implementação de acções de formação ao nível dos recursos humanos (gestores do sistema e professores), passando mesmo pela construção e reconstrução de edifícios, são disso a prova.

5 Num país onde a baixa densidade populacional8 constitui um factor positivo no processo de desenvolvimento em que a sociedade angolana parece querer participar, são múltiplos os estudos que apontam o caminho a seguir pela Educação, nomeadamente os levados a cabo pela Fundação Gulbenkian9, o Banco Mundial10 e ainda pela UNICEF e a UNESCO11.

6 A situação de ausência de uma política de educação, não tem como causa o pouco conhecimento da situação real do funcionamento da educação no território ou a falta de conhecimento do rumo a seguir, mas antes a falta de empenhamento e decisão a nível político, justificado pela prioridade dada ao esforço de guerra (até ao desaparecimento de Savimbi) em detrimento das áreas sociais, como a educação.

7 A situação de instabilidade social que se vive em Angola tem como consequência a definição de prioridades políticas e estratégicas que marginalizam completamente uma política de educação. Assim, os estudos estão feitos num Ministério da Educação praticamente inoperante como estrutura, esvaziado de políticas, de técnicos e de dinâmica, em parte consequência de uma reduzida fatia de orçamento.

8 Só um aumento significativo da fatia orçamental poderia aumentar a capacidade de intervenção do Ministério com consequências em todo o território sob controle do Governo12.

9 A investigação, in loco, permitiu verificar que a assistência técnica das organizações internacionais tem vindo a incentivar uma Reforma do Sistema Educativo que aponta para modelos europeus, particularmente para o modelo da Reforma do Sistema Educativo Português, anterior à actual revisão curricular, mesmo a nível do faseamento da sua implementação, com evidentes preocupações de experimentação prévia. Por outro lado, o comportamento dos técnicos do Ministério leva a considerar que a reforma em preparação e proposta pelas instituições internacionais seja vista como uma forma de angariar fundos e apoios políticos mostrando a boa vontade dos angolanos face a um determinado tipo de desenvolvimento13, situação, aliás, verificada noutras áreas, nomeadamente na área económica.

10 O empenhamento em interiorizar o modelo de desenvolvimento proposto pelas instituições internacionais e mesmo em aceitar alguma forma de apadrinhamento é rejeitada pelos técnicos. A ilustrar esta constatação, registe-se a exigência dos técnicos do ME em pretender receber vencimentos pagos pelo BM, no desenvolvimento do seu trabalho. Isto é, no trabalho de preparação da reforma, não sentem que participam em representação do Ministério da Educação de Angola, mas sentem que estão a trabalhar para uma organização internacional, o BM, pelo que deveriam receber uma remuneração igual à dos técnicos estrangeiros, seus parceiros. Regista-se ainda que, toda a dinâmica do 1.º Projecto de Educação do BM praticamente não saiu do espaço onde se movimentam os técnicos envolvidos no projecto, não tendo tradução visível no terreno, além da recuperação e construção de alguns equipamentos (nomeadamente salas de aula).

11 A falta generalizada de verbas para a educação faz com que, quem não está directamente envolvido e, consequentemente, quem não recebe um vencimento em dólares, considera que a Reforma não lhe diz respeito. De facto, o trabalho nas escolas continua com o mesmo ritmo e as mesmas dificuldades, centradas na falta de instalações, equipamento, material didáctico e professores habilitados. Para além das causas meramente económicas

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e ligadas à urgência da sobrevivência, num contexto de inflação galopante que afecta particularmente os funcionários públicos, pode-se acrescentar a dificuldade em aderir à mudança, propriamente dita.

12 Deve-se considerar que, passar de um sistema socialista onde, na prática, não se exigia dos funcionários grande criatividade, para um sistema mais liberal, onde há espaço para a responsabilização e se exige maior empenhamento e envolvimento, não é fácil, tendo ainda em conta as mudanças recentes que se traduziram sempre em situações sucessivamente negativas.

13 Por outro lado, a situação do sistema educativo nas cidades e particularmente em é muito diferente da situação do resto do país. A situação da educação das províncias é nitidamente de autogestão. Parece mesmo não haver grande interesse na articulação das estruturas a nível regional (que funcionam com grande autonomia), com as estruturas nacionais. Pode mesmo considerar-se que a província onde o Ministério da Educação exerce algum controle sobre o território educativo é mesmo e só a província de Luanda.

14 Em todas as outras províncias, o funcionamento do sistema é de autogestão, com ligações muito pontuais à estrutura do Ministério da Educação, quantas vezes só substanciada no preenchimento de mapas de frequência e aproveitamento de final de ano lectivo, que muitas vezes nem chegam a Luanda, devido a dificuldades de comunicação14. As Delegações Provinciais de Educação, como se pode verificar no Estatuto Orgânico do Ministério da Educação, têm uma dupla subordinação: por um lado, devem obedecer ao MED, em questões directamente ligadas ao sistema educativo e às políticas educacionais; por outro lado, articulam-se também com as estruturas dos Governos Provinciais em cujo orçamento se integram15.

15 Assim, as dificuldades criadas pela situação de guerra, nomeadamente a pouca segurança na circulação de pessoas e, o facto de, as verbas em geral e muito particularmente para o ensino, se terem tornado um bem escasso16, tem intensificado, na prática, a regionalização, encontrando-se o sistema educativo fragmentado por províncias sendo, de facto, gerido pelo Delegado Provincial que tem todo o interesse em se articular intimamente com o Governador Provincial e mesmo com a delegação provincial do Partido (neste caso, do MPLA). É este facto, da dupla tutela versus dupla subordinação que permite explicar a falta de conhecimento, em termos numéricos, que o Departamento de Estatística do MED tem, em relação a muitas províncias, embora esses números existam. Contudo, a Delegação Provincial de Educação não sente grande urgência em comunicar com o MED, quando as suas ligações privilegiadas são, de facto, o Governador Provincial e a sede de partido na província.

2.2. O sistema educativo angolano. A situação em finais dos anos 90.

16 Da independência ao período do multipartidarismo formal, o sistema educativo angolano sofreu alguns sobressaltos marcados por «reformas» apressadas, desenhadas em gabinete, sem debate público e da comunidade educativa e implementada com a rapidez dos contextos específicos das sociedades em erupção político/social17.

17 A febre da militância com o objectivo imediato de acabar com o analfabetismo e implementar uma escola gratuita para todos, com vista à construção do «Homem Novo», incluiu nos materiais pedagógicos, fortes cargas ideológicas de cariz marxista/leninista. A

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ideologia que formalmente ainda sobrecarrega os programas actuais já foi abolida da prática pedagógica, pelo menos pelos professores suficientemente próximos dos centros que emanam as orientações das práticas pedagógicas adequadas à política educacional, definida pelo Governo.

18 Se se considerar o afastamento de muitos professores desse centro, pode-se mesmo considerar o seu desconhecimento relativamente às alterações da política educacional e portanto a sua prática pedagógica assentará no discurso marxista/leninista, quer dos programas ainda vigentes quer dos conteúdos dos manuais escolares, ainda em uso.

19 A situação de transição caracterizada pela manutenção dos antigos programas, despidos de carga ideológica e dos antigos manuais pode não se observar na globalidade do território.

20 Assim, a situação que se vive em Angola, em termos de práticas em sala de aula, pode sintetizar-se nestes termos:

21 a) Os professores suficientemente próximos do centro que emana directrizes pedagógicas e que simultaneamente tiveram acesso a acções de formação de professores e/ou tenham acesso a outras fontes de documentação que não sejam os manuais escolares, ensinarão os conteúdos programáticos dos curricula em vigor, despidos do excesso de carga ideológica;

22 b) Os professores que, embora suficientemente próximos do centro não tiveram oportunidade de discutir esta problemática e/ou não concordem com as propostas ministeriais, porque a única formação que conhecem é a marxista-leninista, podem continuar com o discurso pedagógico já elaborado ao longo dos anos;

23 c) Os professores longe dos centros emanadores de novas orientações, sem informação, sem documentos novos, logo a sua situação não é marcada por qualquer situação de transição, pelo que, quando chegarem a estes professores os novos programas e os novos manuais, a mudança irá ser significativa.

2.3. Como é que a população angolana resolve os problemas de educação?

24 A sociedade angolana vive, desde as primeiras eleições pluripartidárias de 1992, um período de forte instabilidade social, política e económica, típico aliás, das transições políticas recentes em sociedades onde os regimes de partido único dão lugar a regimes pluripartidários e/ou muitas vezes pseudo-pluripartidários, como é o caso angolano.

25 O retorno da UNITA à guerrilha após a derrota eleitoral de Outubro de 1992, como forma de preservar o poder adquirido no período da guerra, particularmente entre a independência e as eleições e o esforço do MPLA em se manter no Governo, radicalizando as suas posições políticas e aumentando significativamente o esforço de guerra, contribuíram fortemente para o enfraquecimento das estruturas do aparelho de Estado. Todo o esforço do Estado Angolano se centrou na preservação das posições conquistadas, pelo que as preocupações sociais permaneceram em planos secundários, como aconteceu com o desenvolvimento da educação.

26 O vazio deixado pelo êxodo de quadros portugueses e mesmo angolanos no período pós- independência tem sido parcialmente preenchido pela forte militância dos que ficaram e pelos quadros cubanos e da Europa de Leste. A saída destes deixou, na área de educação, uma situação deficitária ainda hoje longe de poder ser resolvida.

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As limitações ao funcionamento do Ministério da Educação

27 O sector da educação de qualquer país do mundo exige quadros especializados para atingir os seus objectivos, por mínimos que estes sejam.

28 Estes objectivos, definidos pelo Governo, são posteriormente consubstanciados no Orçamento Geral do Estado que, em planos de médio e/ou longo prazo, deve promover a criação de condições para o desenvolvimento da educação.

29 Ora, a situação política neste período não só não elegeu a educação como área prioritária, canalizando para a educação fatias reduzidas do orçamento do estado, como, por necessidade de satisfazer outras vertentes consideradas mais prioritárias como a segurança, a defesa e mesmo os interesses da classe dirigente, a parte destinada à educação foi muitas vezes desviada.

30 A situação criada por este «ignorar» desta área social traduziu-se na paralização das estruturas do Ministério da Educação por evidente falta de verbas, quer para pessoal quer mesmo para o funcionamento da própria estrutura e no baixíssimo nível de rendimento quer dos funcionários/quadros do Ministério, quer dos professores que auferem rendimentos que não lhes permitem sobreviver.

31 Entretanto, quer a estrutura do Ministério da Educação, quer a legislação ou a preparação técnica e política dos seus quadros não permitiram chegar a soluções, tal como a promoção da iniciativa privada, tendo-se vindo a instalar na população de diferentes níveis sócio-económicos, o sentimento generalizado de falta de educação e da necessidade de terem de desenvolver estratégias que lhes permitam resolver os seus problemas, também nesta área.

32 As estratégias desenvolvidas pela população angolana para resolver os seus problemas de educação prendem-se com as estratégias de sobrevivência dos professores. Assim, torna- se importante começar por analisar, embora de forma resumida, quem são os professores angolanos e como sobrevivem.

As estratégias de sobrevivência dos professores

33 Independentemente do seu nível de habilitações, os salários auferidos pelos professores angolanos enquanto tais, não permitem um rendimento que garanta a sua sobrevivência e a da sua família. Assim, muitas vezes exercem outra ou outras profissões paralelamente, de forma a conseguirem um complemento que lhes permita sobreviver com alguma dignidade.

34 Esta situação acontece quer com os professores do I, II ou III nível, quer com os professores universitários. E, se no período do monopartidarismo, ser professor era importante porque permitia o acesso às lojas dos quadros do estado, onde existiam os melhores produtos ao melhor preço, embora os salários não fossem muito elevados, agora os professores, muitas vezes, optam por se demitir, em qualquer momento do ano lectivo, sempre que encontram outra actividade que lhes garanta melhor rendimento. Outros ainda, usam a escola como fonte de rendimento complementar. Assim, para além do baixo salário que auferem, «vendem» as matrículas e as «passagens» de ano/nível, variando os valores em função dos níveis de escolaridade.

35 Outros ainda, acumulam a actividade docente numa escola do estado com o serviço docente no ensino privado mais formal ou mesmo numa sala de explicações.

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36 É ainda vulgar os professores acumularem a actividade docente com actividades no sector informal (vão para o «processo»18), como forma de conseguir condições mínimas de sobrevivência.

As Necessidades de Educação Ressentidas pela População das Cidades

37 A chegada forçada de população às cidades, quer por consequência da guerra civil, quer pela luta pela sobrevivência e tentativa, virtual, de melhorar as suas condições de vida, mistura nestas, famílias pertencentes a diferentes etnias, comunicando em línguas regionais, muitas vezes expressando-se mal em português.

38 Embora, na prática, a língua veicular seja o português, a importância das línguas regionais e o reconhecimento da enorme massa de população rural que tenta sobreviver nas cidades traduz-se, por exemplo, nos noticiários em línguas regionais na TPA (Televisão Popular de Angola).

39 O esforço de integração social das massas oriundas do campo passa pelo seu envolvimento em instituições próximas, que não são a comunidade aldeã mas pode ser a «organização de bairro», o «comité de bairro», «a igreja» e a «escola».

40 A promoção social faz-se pela aquisição de habilitações e esta só se adquire na escola. Mesmo as famílias mais desfavorecidas se preocupam em mandar os filhos à escola, embora reconhecendo que estes, no «processo» conseguem rendimentos melhores do que quem anda ou andou na escola. «Ir à escola» é, na prática, uma estratégia de integração social, no contexto da cidade.

Os que ficam fora do Sistema Educativo

41 Uma parte significativa da população das cidades fica fora do sistema educativo. A chegada recente à cidade e a necessidade de sobreviver, não permite a parte da população ter acesso à escola, dado que não sobram recursos para libertar as crianças do trabalho ou da mendicidade e muito menos para «pagar» a entrada na escola oficial ou a entrada e a mensalidade num dos múltiplos tipos de escolas privadas.

42 Se a família não tem recursos mas consegue libertar algumas crianças do trabalho para as mandar à escola há, anualmente, um determinado número de vagas a serem preenchidas por crianças de idade mais avançada, isto é, entram no primeiro ano do I nível, alunos com dez ou onze anos e mesmo mais velhos. Neste caso, o aluno só precisa ter algum material escolar, no mínimo um caderno e um lápis e muitos acabam por abandonar a escola por não conseguirem adquirir um caderno no mercado. Outros, não têm possibilidade de conseguir uma «bata branca» e a pressão dos professores acaba por fazê- los desistir da escola.

43 Este é um dos contingentes de analfabetos de Angola, os que vivem abaixo de níveis de sobrevivência, recentemente chegados à cidade, sem profissão e para muitos deles, a cidade é uma passagem, motivada pela guerra e pela miséria. São a franja que, oriunda das sociedades tributárias não conseguiram ligar-se ao aparelho do estado. É este grupo que, eventualmente, irá tomar o caminho de retorno para as sociedades de origem onde é possível desenvolver mecanismos tradicionais de sobrevivência.

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Os que frequentam as escolas públicas das cidades

44 Mesmo para frequentar uma escola pública, teoricamente gratuita, é necessário um significativo investimento familiar, justificado pela necessidade de reprodução e/ou promoção social.

45 O necessário investimento reverte a favor da sobrevivência dos professores, como já se referiu, e consiste na sua essência, no pagamento informal de uma «taxa» de matrícula, proporcional ao nível de ensino, na compra de material didáctico essencial e ao pagamento informal de uma taxa de passagem de ano.

46 Em muitas escolas é ainda necessário levar uma cadeira, mas noutras a maoiria das vezes uma carteira individual é partilhada por dois alunos. É ainda vulgar os alunos terem de se sentar numa pedra ou no chão no espaço da sala de aula num edíficio de cimento, de «pau a pique» ou ao ar livre.

47 A este grupo pertencem quer os filhos dos funcionários públicos, pertencentes à classe- estado de nível baixo ou intermédio, quer dos pequenos empresários que desenvolvem a sua actividade no sector informal19.

48 O rendimento destas famílias tem ainda de suportar o custo das «explicações» que permitem melhorar o nível de conhecimentos dos alunos mas também o rendimento dos professores.

49 Independentemente do pagamento em dólares encontra-se ainda outras formas, particularmente nos níveis de ensino mais elevados e no ensino para adultos e que correspondem à oferta/ pedido de oferta de alguns bens (e mesmo favores sexuais).

50 Este grupo, que se consegue apoderar do sistema de ensino público, conseguindo conhecimentos (as cunhas) e/ou recursos para contribuir para a manutenção do sistema, constitui a pequena burguesia, dinâmica e que luta para não se deixar destruir pelas contingências de uma economia em mudança. Por outro lado, as classes-estado de nível baixo e intermédio, não pertencendo aos níveis hierárquicos superiores do aparelho de Estado e do Partido, usufruem, devido às suas ligações, dos benefícios do sistema .

51 É esta Pequena Burguesia que, com os Quadros Médios, frequenta as escolas quer do Ensino Básico quer do Ensino Médio quer mesmo do Ensino Superior. Muitos alunos do Ensino Médio já trabalham, desempenhando mesmo, alguns, as funções de professor e por outro lado, quase todos os alunos do Ensino Superior são funcionários do Estado ou de empresas privadas20.

2.4. O ensino privado. Uma tipologia das escolas privadas

52 O contacto com a realidade educacional da sociedade central Angolana permitiu verificar a existência de escolas privadas cuja origem aconteceu num quadro formal, isto é, o seu surgimento respondeu a um quadro legal instituído. Por outro lado, muitas outras escolas surgem espontaneamente, para responder a necessidades específicas da população. O aparecimento destas escolas não tem o objectivo de pressionar o poder ou as instituições oficiais, mas antes de resolver os problemas de educação de múltiplos grupos sociais. Não havendo lugares para todos nas escolas existentes, todas do Estado (no período do partido único), e não existindo enquadramento legal para o funcionamento de escolas particulares, as salas onde se ensina a ler e a escrever vão surgindo. A estas escolas chamo «escolas espontâneas», em detrimento de «privadas», adjectivo usado neste trabalho para

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qualificar escolas que se enquadram nos objectivos políticos da legislação do ensino privado, regulamentado por decretolei de 1992.

53 O Ensino Privado aparece oficialmente pela publicação do Dec. 21/91 de 22 de Junho e traduz, por um lado, a incapacidade do Estado em satisfazer a procura de educação, e por outro lado, a pressão exercida pela classe-estado e burguesia emergente desejosas de protagonizar dinâmicas próprias dos países capitalistas.

54 Embora este movimento se tenha iniciado particularmente em Luanda, cidade onde esta realidade é mais visível, o interesse pelas escolas privadas vai alastrando a outras cidades, capitais de província.

55 No período de partido único, face à incapacidade do Estado em garantir o ensino para todos, as classes sociais que não tinham recursos e relações suficientemente íntimas com o poder para conseguir um lugar numa sala de aula, começam por colocar os filhos em «salas de explicações». A classe-Estado envia, então, os filhos para o estrangeiro ou coloca-os nas escolas estrangeiras que sempre foram funcionando, mesmo no período do monopartidarismo.

56 Esgotada a escolaridade nesses estabelecimentos, os filhos são então encaminhados para colégios fora, normalmente nos países dos colégios frequentados em Angola.

57 Com a abertura ao capitalismo, aos interesses da classe-Estado juntam-se os interesses dos quadros superiores, quer nacionais quer estrangeiros, das empresas multinacionais a operar em Angola, esgotando assim a lotação das referidas escolas ligadas, muitas delas, às embaixadas.

58 A publicação do decreto 21/91 vai de encontro às aspirações de vários sectores ligados è educação e em consequência:

59 a) as «salas de explicações» vão solicitar a sua legalização e, por consequência, o seu reconhecimento como escolas privadas;

60 b) as várias comunidades religiosas vão solicitar a desnacionalização das suas antigas instalações, com particular incidência para a Igreja Católica, considerada parceira privilegiada pela estrutura do ME, funcionando praticamente com os mesmos interesses das instituições do estado;

61 c) alguns interesses económicos, ligados à classe-Estado, surgem com o objectivo de, recuperando antigas instalações deixadas pelos colonos, reconstituírem os antigos colégios.

62 Contudo, a existência de legislação e mesmo de vontade política nos níveis mais elevados da estrutura do estado para permitir o desenvolvimento de ensino privado, não tem correspondência na prática das instituições ou de quem as representa com vista à abertura do sistema educativo a privados.

63 Com excepção da Igreja Católica, poucas são as pessoas ou instituições capazes de conseguir a legalização e funcionamento, sem obstáculos intransponíveis. Por este facto, os empreendimentos de maior importância aparecem sempre ligados à classe-Estado, cujo empenhamento e ligações político/partidárias permite levar a bom termo os projectos de constituição de escolas privadas. Mesmo outras comunidades religiosas que não sejam a Igreja Católica encontram dificuldades na legalização das suas escolas. O trabalho de campo realizado em Agosto de 1998 permitiu recolher documentação21 que, caso as propostas sejam implementadas pelo Ministério da Educação virão inviabilizar, a um nível muito mais elevado, o funcionamento de salas de aula onde se ensina a ler e a escrever. As

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propostas de apoio financeiro quer a escolas quer a alunos do ensino privado não passam mesmo de proposições teóricas dada a dificuldade manifesta de financiamento do próprio sistema público.

Uma tipologia da Escolas Privadas

a) As Escolas espontâneas

64 São escolas ligadas às diferentes comunidades religiosas, com excepção da Igreja Católica. Grande parte da população das cidades de Angola é constituída por uma população rural, que procura a cidade porque a guerra e as suas consequências, como a minagem dos campos e a dificuldade de circulação de pessoas e bens, têm consequências muito práticas, como o perigo das actividades agrícolas em campos minados, as dificuldades na aquisição de sementes e alfaias por mais elementares que estas sejam, e mesmo a dificuldade de escoamento/troca de produtos.

65 Neste contexto, a cidade acaba por ser um espaço mais seguro num compasso de espera interrompido por períodos de paz que vão criando expectativas mas não condições reais para o regresso às terras de origem. Assim, para quase todos, a cidade apresenta-se como um ambiente socialmente hostil onde, para sobreviver, a população procura esquemas de organização semelhantes aos que funcionam nas suas regiões de origem.

66 Nas regiões rurais, é ainda o soba que é o interlocutor entre as populações e as autoridades do estado moderno, é o soba que pede o professor e que junto com a população lhe constrói a casa e a escola.

67 Quando chega à cidade, a população rural integra-se nas comunidades religiosas, não tanto em função do «credo», mas antes em função da etnia de origem do chefe religioso. O pastor da Igreja substitui então, mesmo que provisoriamente, a autoridade tradicional, pelo que lhe é igualmente solicitado que resolva os seus problemas de educação. Se a integração na sociedade urbana passa pela escola, se o acesso não é para todos, então a instituição mais próxima da população, a Igreja, vai ter de resolver esse problema.

68 Assim, junto ao edifício onde funciona o culto, começam a aparecer salas de aula, AS SALAS ANEXAS, antes e depois da existência de legislação que formalize o ensino privado. O número de salas de aula vai aumentando, longe dos locais de culto, nos «bairros», onde vivem as crianças.

69 Mais recentemente questões muito práticas, como o reconhecimento da qualidade pedagógica do ensino ministrado nessas escolas sem a necessidade dos alunos terem de fazer exames (e pagá-los22) nas escolas oficiais, tem levado os responsáveis por essas escolas a tentarem a sua legalização, o que normalmente se arrasta por vários anos.

70 Embora este tipo de escola seja privada, os alunos contribuem com uma mensalidade que permite essencialmente pagar aos professores, recrutados entre as famílias de crentes, normalmente ainda alunos do Ensino Médio Normal (onde se formam os professores) e manter a escola a funcionar. Esta mensalidade representa custos mais reduzidos do que os da escola oficial23.

71 Uma importante particularidade de muitas destas escolas é o facto de aceitarem receber alunos e particularmente alunas com idades muito superiores às adequadas aos níveis de aprendizagem que necessitam frequentar. Estes alunos não tiveram acesso à escola pública, tendo-se, no entanto, candidatado ano após ano; pertencem aos estratos sociais

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mais desfavorecidos que se vão aproximando das Igrejas no processo de integração na cidade.

b) As antigas «Salas de Explicações»

72 Após 1992, muitas «Salas de Explicações», frequentadas por quem não tinha acesso à escola, têm tentado a sua legalização. Embora o processo burocrático não seja intransponível quando as instituições têm alguma dimensão, muitas vezes, os entraves criados pelas estruturas do estado a pequenas escolas são difíceis de resolver pelos seus proprietários.

73 Assim, as condições físicas são um primeiro entrave, sempre exagerado pela circunstância de que «os proprietários querem é lucro e imediato», segundo o ponto de vista dos técnicos do Ministério da Educação, em vários níveis da estrutura.

74 Neste sentido, são inúmeras as escolas privadas que, solicitando a sua legalização por já existirem, de facto, com conhecimento das respectivas delegações provinciais de educação, com alunos contabilizados, não são, de facto, escolas privadas legais. Isto é, o Ministério considera os alunos dessas escolas como integrados no sistema de ensino mas não reconhece a existência legal das escolas.

75 O conhecimento da existência destas escolas chega à delegação provincial de educação pelas mãos dos interessados em legalizar a escola, dado que a própria delegação reconhece a dificuldade em controlar a proliferação de escolas, por falta de recursos.

c) As Escolas da Igreja Católica

76 A Igreja Católica, particularmente após 1992 começou a receber as suas antigas instalações escolares, embora em estado de degradação maior ou menor, dependendo das funções que exerceram nos últimos anos, após a independência.

77 A capacidade económica da instituição religiosa e a sua capacidade de mobilização de recursos económicos e igualmente a fácil articulação com o poder, herdado do período colonial, tem permitido a sua implementação no terreno como interlocutor privilegiado, em questões de educação.

78 O reconhecimento oficial da incapacidade do Estado em resolver o problema da educação tem como uma das consequências o apelo a entidades privadas de reconhecida credibilidade que aparecem na cena pública como parceiros em questões de educação.

79 Assim, a Igreja Católica apresenta-se mesmo com capacidade e aceitação da estrutura do Ministério para impor normas de funcionamento das estruturas do Ministério e alterar as existentes.

80 O interregno entre o confiscar os bens da Igreja e a sua reposição não mudou muito a posição da Igreja Católica que continua a seleccionar os alunos dentro de determinados padrões sociais. Enquanto algumas escolas são destinadas à socialização dos excluídos, outras escolas contribuem para a reprodução da elite no poder.

d) Os Colégios ou Externatos

81 Os interesses económicos que pretendem envolver-se em projectos de ensino com qualidade suficiente para oferecerem vantagens económicas, tentam aproveitar antigas

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instalações, negociando geralmente com o Estado a reconstrução de edifícios que, no período colonial, exerciam a mesma função ou similar.

82 Conseguir instalações de dimensão suficiente para apresentar as melhores economias de escala não é fácil e normalmente a estratégia utilizada é a ligação dessas vontades a figuras influentes do aparelho do Estado. Sem o apadrinhamento do segmento dirigente da classe-Estado, o desenvolvimento de actividades de algum interesse económico, na área da educação, é muito difícil. Sem este apadrinhamento ao mais alto nível, os técnicos do Ministério usam o argumento de que, se os edifícios têm condições para o ensino particular também as têm para o ensino público.

83 Os professores destas instituições são angariados entre os antigos professores do período colonial, outros são mesmo recrutados entre os quadros das empresas, embora para os níveis de ensino mais elevados.

84 Dado que a mensalidade é relativamente elevada para o nível de vida de Angola (cem dólares em 1996), os alunos pertencem à classe-estado e aos quadros (portugueses e angolanos) de empresas multinacionais que operam no território. Para além da escola portuguesa, situação marginal relativamente à questão que se pretende estudar, são estas as escolas que apresentam melhores condições físicas e pedagógicas. A afluência de alunos é elevada e muitas vezes os pais têm de utilizar a mesma estratégia que a pequena burguesia em relação às escolas públicas: compram uma vaga a um dos professores da escola.

85 Esta cedência de vagas aos professores constitui um comportamento generalizado das instituições, quer públicas quer privadas e que é útil, quer para os professores quer para os que pretendem o acesso a uma instituição escolar.

e) As escolas das ONG’s

86 Embora muitas das ONG’s a operar em Angola se preocupem com as questões da educação, regra geral promovem a construção de escolas entregando-as posteriormente ao Ministério da Educação. Algumas, como a ADPP (Ajuda ao Desenvolvimento do Povo para o Povo) desenvolvem a sua actividade em várias áreas, embora a sua relação com o ensino seja mais a nível da formação de professores.

87 A complexidade do funcionamento das ONG´s e o facto da educação ser só um segmento da sua actividade em Angola, não permitirá abordar este tipo de escolas neste trabalho.

2.5. Uma proposta de Diferenciação Social

88 A observação da sociedade angolana, particularmente da sociedade de Luanda, pela óptica da educação, permitiu distinguir grupos sociais bem diferenciados, função essencialmente das estratégias que operacionalizam para terem acesso a algum tipo de educação.

89 No limite inferior da sociedade de Luanda (e mesmo das outras cidades) encontramos os que, oriundos das sociedades tributárias e do interior, chegam à cidade e não conseguem integrar-se na sociedade central. São analfabetos na maioria e parte irá regressar às regiões de origem quando o ambiente político for propício. Tradicionalmente viviam duma agricultura de subsistência que a guerra tornou impraticável. Têm dificuldade de integração na cidade e alguns levam os filhos a frequentar as «salas anexas» das igrejas ou as «salas de explicações» (escolas a que chamamos «espontâneas»).

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90 A pequena burguesia é constituída por funcionários públicos pertencentes à classe-Estado de nível mais baixo e intermédio e pequenos empresários que desenvolvem a sua actividade no sector informal. Foi este grupo que se apropriou do ensino público.

91 A classe-Estado de nível intermédio-superior e nível superior tem acesso às escolas privadas de nível elevado (colégios e externatos), às melhores escolas das comunidades religiosas (particularmente da Igreja Católica) e às bolsas de estudo ainda disponíveis, particularmente oferecidas pelas grandes empresas angolanas (como a Sonangol) e pelos países ocidentais. A este nível da classe-estado pertencem militares de patente elevada, outros são quadros superiores do MPLA., quadros superiores do Estado ou Novos Empresários saídos das fileiras das Forças Armadas, do Partido ou do Estado. Têm boas relações com as «diplomacias» ocidentais e mantêm, às vezes, os seus filhos nas escolas ligadas às embaixadas em Luanda (escola portuguesa, francesa, alemã). Findo o ensino ministrado nessas escolas, os filhos vão directamente para colégios dos países em questão, naturalmente com bolsas quer concedidas pelos países de acolhimento quer pelas empresas do estado.

3. Conclusões

92 Em Angola, no que se refere à educação, a relação do Ministério da Educação com o Banco Mundial era mais uma relação de fachada com o objectivo de angariar fundos e apoios diplomáticos do que uma parceria com vista a reestruturar o sistema educativo do país.

93 Se se considerar que a dependência da economia angolana do Banco Mundial não é tão importante em termos percentuais como, por exemplo, em relação a Moçambique, por outro lado, a instabilidade da situação política ainda não permite ver um rumo definido, na política educativa. O 1º Projecto do Banco Mundial prolongou-se num espaço que não cobria o território. Também o controle territorial das ONG’s não é muito evidente devido à instabilidade que se vive. No entanto, seria interessante verificar o papel do Banco Mundial no desenvolvimento e na via escolhida para esse desenvolvimento, sendo que o BM usa as políticas educacionais dos estados como instrumento e não como meio para chegar ao desenvolvimento.

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NOTAS

1. Patrick V. DIAS (1990), «Educação e Desenvolvimento na África subsahariana. Desajustamentos conceptuais e logros ideológicos», in Revista Internacional de Estudos Africanos, n.ºs 12-13, pp. 263-320. 2. Diríamos que, quando o crescimento económico se traduz no bem estar da população, isto é, em mais e melhor saúde, educação, habitação, então haverá desenvolvimento. Com mais propriedade, K. K. Prah [(1990), «Classe , ideologia e prática do desenvolvimento em África», in Revista Internacional de Estudos Africanos, 12-13, p. 185] considera que a ideia de desenvolvimento em África deve ultrapassar o estritamente económico. A frente cultural é uma das esfera das mais importantes em que o desenvolvimento se inscreve socialmente. A cultura deve ser entendida «como a soma total da criação do homem como animal social». Assim, «a cultura é a medida superior do desenvolvimento, uma vez que inclui as instituições económicas, políticas e outras instituições sociais, tanto ao nível material como não material». Donde Prah defende a tese (p. 186) de que «só o uso ilimitado e aperfeiçoado dos alicerces culturais africanos pode fornecer uma rampa de lançamento para o desenvolvimento africano. O desenvolvimento da «sociedade ocidental» em África só pode ser conseguido sobre fundamentos culturais puramente africanos». 3. «Educação não-formal é, como a educação formal, uma actividade organizada e sistemática, mas que, ao contrário desta, se dirige a certos grupos da população com vista a aprendizagens determinadas: formação

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profissional de jovens e adultos, vulgarização agrícola, educação sanitária e nutritiva, etc.», Lê Thânh KHÔI (1990), «Educação, cultura e desenvolvimento em África», in Revista Internacional de Estudos Africanos, nº.s 12-13, pp. 321-330. 4. Ressalvam-se em Moçambique a maior preocupação com a educação das raparigas , por ser um Estado sob forte influência muçulmana. 5. Com excepção da Nigéria. 6. «Public policy does not reflect demands of masses but rather the prevailing values of the elite. Changes in public policy will be incremental rather than revolutionary. Active elites are subject to relatively direct influence from apathetic masses. Elites influence masses more than elites», T. R. DYE (1978), Understanding Public Policy, Englewood Cliffs, New Jersey, Prentice-Hall, p. 26. 7. «O sistema educativo actual perdeu a sua função de dar legitimidade, de criar identidade, de qualificar e de distribuir posições por respeito à maioria da população; ele funciona para consolidar a estrutura autoritária de classe em proveito de grupos dominantes, em vez de assegurar a liberdade, a igualdade, a auto-determinação, a criação de competência e a auto-confiança da maioria dos sujeitos históricos, em cada uma das nossas sociedades», P. V. Dias, ibidem. 8. Segundo dados oficiais, 10 hab/km2 em 1995. 9. Fundação Calouste Gulbenkian, «Universidade Agostinho Neto: estudo global», Maio de 1987. 10. 1º Projecto de Educação do Banco Mundial. 11. UNESCO-UNICEF-MEC, «Angola: opções para a reconstrução do sistema educativo. Estudo sectorial», tomos I e II, Dezembro 1993. 12. No trabalho de campo realizado em 1998 foi possível verificar a existência da FESA (Fundação Eduardo dos Santos), com capacidade de concentrar recursos significativos, alguns deles aplicados na reconstrução de escolas. O trabalho de campo não permitiu identificar a origem dos fundos da FESA. Registe-se, no entanto, que o curador da FESA era simultaneamente o Vice- Ministro para a Reforma Educativa. 13. Particularmente o Banco Mundial que financiou os estudos até 1998, a União Europeia, o Banco Africano para o Desenvolvimento, o FNUAP/ UNESCO, o Gabinete Africano das Ciências da Educação, a UNICEF, o SADC, British Council, Fundação Calouste Gulbenkian e a Embaixada Francesa. 14. Essas dificuldades não são de ordem técnica, como falta de transporte ou de segurança, mas de carácter económico. O MED não tem (não tinha, quer em 1996, quer em 1998) verbas para a circulação dos seus técnicos de estatística pelo território e, por outro lado, a própria estrutura do MED não propõe outra estratégia de fazer chegar os dados ao Departamento de Estatística. Ressalve-se a situação que deu origem ao documento do Gabinete de Estudos e Planeamento, sobre a «Situação Educacional em Angola, ano lectivo 1996», publicado em Luanda em Agosto de 1997 e que apresenta algumas das deficiências do sistema educativo do país. 15. «1. As delegações Provinciais e Municipais da Educação são orgãos desconcentrados que têm por funções executar a política educacional, acompanhar e controlar as orientações e directrizes superiormente definidas e recolher os dados operacionais para a concepção de medidas de âmbito local. 2. As Delegações Provinciais e Municipais de Educação estão sujeitas às orientações técnicas, normas e regulamento do Ministério da Educação e administrativamente do Governo Provincial». Decreto-Lei n.º 13/95 de 27 de Outubro, Estatuto Orgânico do MED, Cap. III, Secção VI, art.º 25. 16. Achille MBEMBE (1996), «Des rapports entre la rareté matérielle et la démocratie en Afrique Subsaharienne», in Societés Africaines et Diaspora, 1, pp. 13-39. 17. No território sob controle da UNITA as escolas continuam a funcionar com os programas oficiais do período colonial mais recente. Um representante da UNITA em Lisboa e contactos tidos próximo da cidade do Huambo (em território controlado pela UNITA) justificam esta situação pelo facto de a situação de guerra não ter permitido criar condições para que se fizesse uma reforma curricular adequada às necessidades de Angola.

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18. A expressão «processo» é usada em Angola para significar actividades, normalmente informais, que se incluem nas estratégias de sobrevivência individuais e/ou familiares. Sai-se do Ministério, na hora do expediente para se ir para o processo; abandona-se o emprego, onde não se ganha o suficiente, onde não se ganha quase nada, para se ir para o processo, onde com sorte os rendimentos são mais elevados. O processo está quase sempre ligado ao comércio informal, nos inúmeros mercados existentes em Luanda. 19. É de notar que muitos funcionários públicos, dos quais muitos professores, têm saído do sistema quer para se dedicarem a actividades do sector terciário em empresas privadas quer do sector informal, como seja o comércio nos mercados que proliferam nas cidades e particularmente em Luanda. 20. Média de idades do Ensino Superior cerca de 30 anos; são estes que, na maioria, não tendo acesso a bolsas para o estrangeiro, investem nos recursos que o Estado ainda oferece e utilizam esses recursos na esperança de garantir a sua reprodução social. 21. Ministério da Educação. «I. Projecto Educação. Estudo sobre o Desenvolvimento do Ensino Particular em Angola», Setembro de 1997. Financiado pelo Banco Mundial. 22. As escolas que não têm paralelismo pedagógico, isto é, que não cumprem os requisitos legais para serem reconhecidas como ministrando um ensino do mesmo nível do oficial, solicitam exames para os seus alunos ao MED. O MED exige o pagamento de uma taxa por aluno, que não é fixa, dada a inflação galopante e que deve ser suficiente para pagar aos professores que elaboram as provas, o papel e todo o material didáctico necessário para concluir o processo. Em relação a este assunto foram as únicas informações que se conseguiram recolher junto da Delegação Provincial de Educação de Luanda. Ainda se deve considerar que estas escolas, sem paralelismo pedagógico, não são por isso escolas ilegais; são antes escolas que solicitaram autorização de funcionamento ou a sua legalização mas o seu processo ainda não está terminado, ou por estar incompleto ou ainda não cumprir todas as exigências da legislação. Um importante factor que impede a regularização da situação das escolas privadas é a difícil mobilidade dos técnicos do Ministério, que não têm à sua disposição meios de transporte que lhes permitam fazer as necessárias vistorias. 23. Devido às «taxas» informais de matrícula e de passagem de ano.

RESUMOS

No presente texto pretende-se mostrar que a educação é um indicador válido quando se pretende avaliar as transições políticas. Contudo, na investigação na qual se inclui o presente texto, os objectivos são mais vastos, pretendendo-se igualmente demonstrar a importância da educação para o desenvolvimento e chegar a uma tipologia das escolas em Angola. Na transição política entre um sistema socialista e um sistema capitalista, as estratégias de acesso à educação permitem distinguir diferentes classes sociais e diferentes realidades educacionais. A sociedade reconhece que a educação é o principal veículo de mobilidade social pelo que as famílias desenvolvem estratégias que lhes permitem resolver os seus problemas de educação.

Through this text we would like to show that education is a strong and reliable item when political changes are being evaluated. However the goals of this investigation in which this text is included are larger. We would also like to show how important education is to the development of societies and to classify schools in Angola. During the political transition from a socialist

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system towards a capitalist one, the strategies designed to have access to education allow us to distinguish different social classes as well as different educational contexts. Society recognises that getting education is the main vehicle for social mobility, that's why families develop strategies which enables them to solve their educational problems.

ÍNDICE

Keywords: Angola, education system Palavras-chave: Angola, Sistema educacional, Escola

AUTOR

MARIA JOÃO DA SILVA MENDES FERREIRA Centro de Estudos Africanos/ISCTE

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Da escola corânica tradicional à escola Arabi: um simples aumento de qualificação do ensino muçulmano na Senegâmbia?

Eduardo Costa Dias

NOTA DO EDITOR

In memoriam de Nehemia Levitzon

1 Do meu ponto de vista às escolas arabi está apensa uma concepção de religião e de saber religioso muçulmano em vários aspectos incompatível com o substrato cultural subjacente ao saber religioso e prático-religioso que, ainda hoje, informa, na Senegâmbia e na generalidade dos outros contextos muçulmanos africanos, a larga maioria das escolas corânicas tradicionais.

2 Mesmo assim, nas três últimas décadas, as escolas ditas arabi generalizaram-se por toda a Senegâmbia e são, na actualidade, uma componente, em graus diferentes, oficialmente reconhecida do sistema escolar na Gâmbia e no Senegal, aparecendo ainda na Guiné- Bissau como uma alternativa relativamente popular nos meios muçulmanos à conhecida «falta» de escola.

3 Estas escolas muçulmanas – em certa medida «síntese actualizada» ou simplesmente «herdeiras afastadas» das duas versões, uma mais arabófona e outra mais modernizante, de escolas muçulmanas que surgiram primeiro, no início do século XX, nas colónias inglesas e mais tarde, nos anos vinte, nas francesas, que privilegiam como língua de ensino o árabe e dão espaço a matérias «laicas», não são, contudo, como as clássicas madrass, um simples lugar de aprofundamento do ensino religioso anteriormente aprendido nas escolas corânicas elementares (kuttâb), nas conhecidas1 escolas de mouro/ marabout ou escolas de fokera1.

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4 As escolas arabi, não só, a par do ensino da religião e da língua árabe, incluem no seu currículo matérias como as línguas oficiais de cada país, a matemática, a geografia, a biologia e a história, como ainda, por exemplo, no plano da transmissão do saber, se situam numa lógica totalmente diferente das madrass e sobretudo das fokera: privilegiam a Umma à «localidade religiosa», a «autoridade» do texto à do professor e a compreensão à repetição.

5 Neste artigo, procurarei analisar a questão da escola arabi na Senegâmbia de um duplo ponto de vista: do da nova relação que através dela o ensino muçulmano estabelece com a escrita e do da relação existente entre a sua lógica de transmissão de saber e as transformações em curso no islão da Senegâmbia.

6 De facto, não é inócuo que, em oposição ao monopólio exercido pela oralidade na transmissão de saberes na escola corânica tradicional, a escola arabi assente o ensino na escrita; também, não é indiferente que, ao contrário das escolas corânicas tradicionais que assentam numa concepção local e «etnicizante» do islão, a escola arabi se alinhe por uma imaginada ortodoxia muçulmana árabe.

7 O assunto central em discussão anda pois, neste texto, à volta dos problemas da natureza dos saberes e da sua transmissão e das relações entre religião e saber prático e, naturalmente, das relações da religião com a ordem social e as condicionantes culturais.

8 Isto é, descrevendo o modo e a lógica de funcionamento e organização dos dois tipos de escolas confessionais muçulmanas procurarei demonstrar que um e outro nos remetem para universos de produção, organização e transmissão de saberes religiosos e prático- religiosos em vários aspectos diferentes e mesmo, em alguns casos, opostos .

9 Finalmente, importa dizer que o trabalho de terreno sobre o qual se baseia a informação trabalhada neste artigo foi feito ao longo dos últimos quinze anos nas regiões do Oio, de Bafatá e do Gabú, na República da Guiné-Bissau, nas zonas de Kolda, de Ouassadou e de Sédhiou, na Casamance (Senegal), e, mais recentemente, também nas de Brikama e Serrekunda, na Gâmbia.

10 Contudo, o trabalho de terreno, apesar de situado em três países diferentes – Guiné- Bissau, Gâmbia e Senegal, decorreu sempre numa área que, para além de continuidade geográfica e de relativa homogeneidade em termos de história social, cultural, religiosa e mesmo política – a área do antigo reino mandinga do Kaabú, faz parte de pleno direito, mesmo nas versões «minimalistas», da chamada Senegâmbia «Histórica»2.

11 Na realidade, o Kaabú mantém até hoje, para além de contornos sociais, culturais e étnicos particulares e apesar, como veremos, da especificidade da sua história de islamização, um conjunto elevado de pontos de contacto com outras unidades histórico- políticas da Senegâmbia que permitem, com proveito para as análises, não só estudá-lo num quadro mais vasto, como ainda, com os cuidados devidos, extrapolar para o conjunto senegâmbiano situações que nele se verificam. O caso das escolas arabi é uma destas situações.

1. Contexto social, cultural e religioso kaabunké

12 O reino do Kaabú foi uma unidade política «animista» que existiu, na região compreendida entre os rios Gâmbia e Corubali, sob o controlo mandinga do século XIII até meados do século XIX, altura em que os mansa mandingas «animistas» foram derrotados

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pelos fulas locais, maioritariamente fula-pretos (fulas joon, «escravos de fulas»), apoiados pelas teocracias muçulmanas do Boundu e, sobretudo, do Fouta Djalon e cujo território histórico se distribui na actualidade por três estados independentes, Gâmbia, Guiné- Bissau e Senegal3. O território do núcleo central das províncias do antigo reino do Kaabú – as províncias chefiadas directamente pelas linhagens «reinantes» (nyanthio) do Kaabú, Sama, Pakana, Djimara e Propana – está incluído na região administrativa do Gabú, na Guiné-Bissau, e em parte da guineense de Bafatá e da senegalesa (Casamence) de Kolda e o do das províncias do «segundo círculo», onde se incluem províncias como Sankola, Mana, Kantora, Ganadou, Badora, Mansona ou Mankrosse comandadas por importantes chefes ( farim mansa, kanta mansa) ligados às linhagens nyanthio, no Médio Gâmbia, em parte das regiões guineenses de Bafatá e do Oio e, na Casamence, na zona mais oriental da região de Kolda e na Região de Vélingar4.

13 Na actualidade, o território do antigo Kaabú forma um bloco cultural e religioso (muçulmano) relativamente homogéneo e, embora repartido por três Estados independentes, constitui, no quadro da região em que historicamente se insere, a Senegâmbia, uma entidade dotada de «quase perfeita» identidade social, económica e cultural (Dias, 2002:48).

14 De facto, o território do antigo Kaabú muito embora faça indiscutivelmente parte da Senegâmbia continua a constituir um espaço dotado de razoável homogeneidade social, económica e cultural onde as populações, maioritariamente fulas e mandingas5, partilham desde há séculos um espaço geográfico e, sobretudo desde meados do século XIX, um percurso histórico, social e, em certas dimensões, político comum e uma história de islamização idêntica.

15 Aliás, do meu ponto de vista, esta história idêntica de islamização de fulas e mandingas, é um dos elementos centrais, senão mesmo o principal, da actual identidade kaabúnké.

16 Atrasada em relação ao conjunto da Senegâmbia – o Kaabú é a última grande unidade política «animista» e «centralizada» senegambiana a converter-se ao islão6, devedora das acções de jhiad empreendidas, em meados do século XIX, pelas teocracias do Boundu e do Fouta Djalon e, sobretudo, da missionação itinerante de marabouts, nomeadamente marabouts-comerciantes djakankas, vindos do Labé e de outras zonas do Fouta Djalon e pouco influenciada, por comparação com zonas mais setentrionais da Senegâmbia, pelas confrarias muçulmanas, a islamização acabou por ser tornar, já nos finais do século XIX, no principal elemento da formação de uma (nova) identidade kaabúnké sobre os restos do antigo reino mandinga «animista» do Kaabú, a identidade kaabúnko-muçulmana.

17 De facto, atraso, circunstâncias e formas de islamização não impediram que, por exemplo, não só a islamização dos mandingas e dos fulas animistas – provavelmente a esmagadora maioria dos fulas presentes no Kaabú no momento da derrota mandinga, se tenha processado num espaço de tempo inferior a trinta anos, como ainda que, de um momento para outro, os «mandingas animistas» do antigo Kaabú se tivessem tornado, na opinião dos mesmos, «nos mais antigos e os ‘mais muçulmanos’ de todos os muçulmanos da região»!

18 Deste ponto de vista, as populações do Kaabú fazem figura própria no conjunto da Senegâmbia: por um lado, tornando-se muçulmanas só no terceiro e último dos momentos de islamizações maciças na Senegâmbia, reivindicam para si um papel de quase pioneiros do islão na região, por outro, fazem compaginar, numa nova identidade (kaabúnko-muçulmana), uma pretensa identidade territorial transversal à pertença

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étnica e uma identidade religiosa imposta pela violência, depois de durante séculos terem sido, no interior senegâmbiano, das populações mais resistentes à islamização.

19 Por exemplo, muito embora localmente o fenómeno islamização seja conhecido popularmente por «mandinguização», não só os casamentos inter-étnicos continuam a ser raros, como mandingas e fulas raramente em situações normais se misturam quer nas actividades de culto, quer, no caso das aldeias, num mesmo quarteirão residencial7. Os mandingas ou os fulas do Kaabú são, em termos de auto-atribuição identitária, sempre primeiro mandingas ou fulas e só posteriormente muçulmanos (Dias, 1992: 103).

20 Aliás, apesar da história da islamização de fulas e mandingas kaabúnkés ser a mesma, a identidade kaabúnko-muçulmana só se dá visivelmente a ver nas situações de crise que afectam por igual uns e outros.

21 Neste último aspecto, por exemplo, tanto o actual problema das populações mandingas e fulas deslocadas na Guiné-Bissau e na Gâmbia por causa do conflito da Casamance, como o das mandingas e fulas fugidas para o outro lado da fronteira aquando da guerra civil na Guiné-Bissau, em 1998-1999, revestem aspectos paradigmáticos: «fulas e mandingas são muçulmanos irmãos uns dos outros»; «isso das batalhas de Berekolon e de Kansala [as duas últimas grandes batalhas entre fulas e mandingas que ditaram o fim do reino mandinga do Kaabú e permitiram o controlo fula do território] são coisas de um tempo muito antigo, em que ainda quase ninguém no Kaabú era muçulmano».

22 A identidade kaabúnké é, a meu ver, muito mais de uma identidade «refúgio» típica de uma situação de «perigo», «descartável» passado o perigo, ou, no melhor dos casos, uma proto-identidade, do que de uma identidade no sentido canónico do termo.

23 Isto é, os mandingas ou os fulas kaabúnkés são, nas situações corriqueiras mandingas ou fulas e complementarmente mandingas ou fulas muçulmanos e só nas situações de perigo colectivo «sem mais» muçulmanos do Kaabú (DIAS, 2002: 68).

2. Saber religioso e saber prático-religioso muçulmano no Kaabú

24 Todavia, apesar das resistências notórias dos kaabúnkés à islamização e da permanência até aos nossos dias da «velha» e estrutural oposição entre mandingas e fulas tecida durante os séculos de supremacia mandinga no Kaabú, com a islamização, as ideias religiosas, a ordem social e política e, em certas dimensões, o próprio conteúdo do saber prático dos habitantes do Kaabú alteraram-se de forma significativa.

25 Deste ponto de vista, a islamização, generalizada no antigo Kaabú nos finais do século XIX-princípios do século XX, para além de ter «libertado» os fulas do domínio mandinga e de ter «abalado» os termos da dependência de umas linhagens em relação a outras sobre a qual se baseava a ordem social kaabunké, fomentou o reforço do papel formal dos chamados mouros ou marabouts8 em detrimento dos chefes de linhagem e dos chamados chefe de terra e estabeleceu uma espécie de compartimentação entre o período soninké, o período «animista», e o período muçulmano.

26 Contudo, esta compartimentação não é rígida e em alguns aspectos não tem mesmo razão de ser: os marabouts já existiam no Kaabú animista, tinham inclusive um papel de relevo junto de certos mansa e a sua influência no plano religioso era, em muitos casos,

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significativa e antiga9; com o passar dos anos muitas famílias de chefe de linhagem e de terra acabaram por se assumirem também no papel de famílias de mouros.

27 Por outro lado, esta divisão fundamentada nos aspectos formais da passagem do período soninké («animista») ao muçulmano não é só aparente em muitos campos do saber prático, como também, paradoxalmente, no campo das ideias religiosas muçulmanas.

28 De facto, não só o islão influenciava desde há muito os mandinga e os outros povos presentes no Kaabú10, como ainda a ruptura com o passado soninké, no plano das ideias religiosas, não é linearmente clara com a islamização. Do passado soninké, os muçulmanos do Kaabú, guardam todo um conjunto de ideias e de lembranças nas quais é difícil separar totalmente, do ponto de vista dos conteúdos das ideias e das práticas religiosas, as antigas formas «animistas» das muçulmanas.

29 A penetração das ideias religiosas muçulmanas no Kaabú é, por estas e por outras razões, limitada; ou melhor, as ideias religiosas afastam-se das do «ideal-imaginado» de ortodoxia muçulmana árabe e não atingem em alguns dos seus contornos principais o pensamento «étnico» e «animista» transmitido desde o passado mais recuado de umas gerações para outras.

30 No essencial, como assinala Nicolas (1978: 348) para outros contextos africanos islamizados, no Kaabú a islamização não ocasionou a conversão dos kaabunkés à cultura árabe e ao espírito estrito dos textos corânicos. Os mandinga ou os fulas são mandingas/ fulas e muçulmanos e não simplesmente muçulmanos. A religião muçulmana continua a ser, em muitos aspectos, contextual e local, a ter uma profunda conotação étnica, ainda que nenhum muçulmano se defina totalmente, na actualidade, como aliás também no passado, no quadro exclusivo do seu grupo étnico.

31 No Kaabú, como no resto da Senegâmbia e em inúmeros outros contextos islamizados africanos, a preocupação de adequação à «imaginada» ortodoxia islâmica, apesar do desejo sempre expresso e raramente levado à prática de «fazer como os árabes», não existe e a valorização do substrato cultural étnico continua a ser notória e mesmo no interior das grandes confrarias senegâmbianas o quase total monolitismo étnico é uma constante desde a sua fundação ou aparecimento na região – a mouridiyya predominantemente wolof, a tidaniyya maioritariamente fula e a qadiriyya dominantemente mandinga.

32 Por outro lado, em relação às práticas islâmicas dos dignitários religiosos, o islão praticado pela «massa» dos crentes senegâmbianos não é, como o não é para a generalidade das comunidades muçulmanas da África Ocidental, um islão que se possa designar de popular, que suponha uma demarcação clara entre crentes anónimos e elites instruídas, mas sim um islão culturalmente específico que não distingue de facto, no plano da teologia e do entendimento das práticas religiosas, os crentes menos sabedores dos mais sabedores (BRENNER, 1985: 12-14). Os dignitários religiosos ditos tradicionais, na sua esmagadora maioria, não conhecem a teologia islâmica ou dela só têm alguns rudimentos e não se distinguem da «massa» dos crentes pela natureza das relações que têm com as ideias religiosas, mas sim pelo acesso que têm ao conhecimento «escondido»11 , isto é, ao conhecimento que permite, por exemplo, por intermédio da geomância, aceder à percepção do sobrenatural e ... fazer dele mesmo a sua maior fonte de rendimentos12.

33 Um bom exemplo da não separação nítida entre letrados e não letrados, a «massa» dos crentes, é o fascínio dos talismãs e a importância do tipo de pessoas que os fabrica. Os talismãs, como por toda a Senegâmbia, estão generalizados no Kaabú e os amuletos

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animistas, fabricados a partir de chifres, dentes ou ossos de animais, pequenos répteis secos ou qualquer desperdício, quase que equivalem, em termos de utilização e prestigio, aos talismãs «mais conformes» com o islão, isto é, aos talismãs feitos de papéis, com inscrições de versículos do Corão ou simplesmente com o nome de Alá, metidos dentro de pequenas bolsas de cabedal13.

34 Na Senegâmbia, raros são os indivíduos que não trazem talismãs de tipo muçulmano associados a outros de tipo animista, é frequente, durante a cerimónia de início da construção das casas de habitação, enterrar as vísceras de animais abatidos para consumo na cerimónia juntamente com papéis com versículos do Corão ou derramar, e por vezes consumir discretamente ou às escondidas, bebidas alcoólicas, poucas são as casas de habitação, os celeiros ou os estábulos que não têm, lado a lado com um qualquer símbolo ou talismã islâmico, pelo menos uma garrafa escura, um chapéu velho ou os chifres de um animal destinado, como nas construções das populações animistas, a «afugentar» espíritos maus, doenças, incêndios e outras calamidades.

35 Os talismãs animistas gozam de uma reputação de eficácia perfeitamente igualada à dos que guardam versículos do Corão, só que a função específica de cada um é diferente: os talismãs islâmicos são usados para prevenir certos acontecimentos ou resolver determinadas situações e os amuletos animistas para outros. Conforme as situações, um mouro pode recomendar ou fabricar um ou outro tipo de talismã14.

36 Os dois tipos de talismã estão perfeitamente integrados em todas as camadas dos crentes muçulmanos, são em ambos os casos fabricados ou aconselhados pelos mouros, do mais prestigiado ao de menor importância, e as controvérsias que dividem as várias escolas de pensamento islâmico na África Ocidental sobre a sua legitimidade e o seu uso, do ponto de vista da ortodoxia islâmica, são, mesmo entre os letrados mais qualificados, quase totalmente desconhecidas.

37 No plano da reflexão, a eventual predominância de um tipo de talismã sobre o outro funda-se exclusivamente no facto de, para alguns mouros, os talismãs muçulmanos serem bastante mais eficazes do que os outros porque o seu poder emana do versículo do Corão ou da palavra Alá neles encerrados15.

38 Uma outra das principais singularidades dos actuais saberes religioso e prático-religioso dos povos islamizados do Kaabú e do resto da Senegâmbia, como aliás da generalidade dos africanos islamizados, advém do facto deste saber, fundado aparentemente na tradição escrita pelo lugar fundamental dado ao Corão16, dever a sua transmissão sobretudo à tradição oral que, como se sabe, é, sobretudo, tributária da memória e do ouvido e não da vista e da biblioteca. No mínimo, o facto da inculcação das ideias religiosas muçulmanas ter sido feita, e se fazer ainda, sobretudo oralmente associada à natural tendência das ideias religiosas incorporarem como suas outras ideias, no caso ideias do passado dito animista, tornou o islão das populações locais uma religião «viva» e conjunturalizante e o corpus legal de prescrições e proscrições um elemento a vários títulos secundário17.

39 Desta aparente não conformidade entre religião que se reclama do livro e inculcação das ideias religiosas por via da oralidade, resultam também, por exemplo, escolas, formas de transmissão de saberes e professores e letrados com características específicas: escolas sem quadros pretos e material escolar impresso, formas de transmissão de saber privilegiadoras da oralidade, do aprender ouvindo e vendo fazer e letrados quase sem papel e livros, que se afastam dos das tradições verdadeiramente da escrita18.

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40 Por outro lado, os letrados e os professores de Corão, não formam, de uma forma geral, em termos de actividades quotidianas, um grupo à parte. São pessoas que partilham tarefas e preocupações idênticas às de todas as outras e que fundamentam o seu prestígio intelectual, não tanto no facto de serem capazes de produzir conhecimentos verdadeiramente novos, mas sim no facto de, por um lado, serem capazes de, nos momentos necessários, transmitir oralmente aos outros a (sua) interpretação adequada dos factos.

41 Assumindo-se raramente como produtores autónomos de saber, mouros de grande prestígio ou simples professores de Corão arrogam-se, contudo, como guardiães legítimos do saber e de maneiras de interpretar o real que lhes foram transmitidos por outros que também já os tinham recebido de alguém num quadro de uma cadeia de transmissão ( silsila)19.

3. Escola Corânica Tradicional

42 A escola corânica tradicional senegambiana, como aliás na generalidade dos países da África Negra, à excepção de escolas muito reputadas que ministram níveis muito elevados de ensino e que geralmente estão implantadas no espaço físico das mesquitas, não tem um lugar definido, um edifício especializado que permaneça estável independentemente das mudanças de professores e da renovação dos alunos.

43 Uma kuttâb ou uma madrass é uma comunidade formada pelo mestre e pelos seus alunos, eventualmente acrescida de outras pessoas, segundo o tipo de escola (internato/ externato) ou as circunstâncias do ciclo anual da vida social, religiosa e económica do grupo doméstico a que pertence o professor.

44 O mestre recebe os seus alunos, na varanda ou no quarto de entrada (que não deixa de ter outras funções) da sua própria residência e ministra – no caso das kuttâb – habitualmente o seu ensino formal à volta de uma fogueira e ao princípio da manhã e ao fim da tarde/ princípio da noite20, num ritmo variável que tem em conta os trabalhos agrícolas, as várias festas muçulmanas e as disponibilidades e necessidades de professor e alunos21.

45 Nada distingue uma casa normal de uma escola corânica a não ser a presença de algumas tábuas de madeira escritas em caracteres árabes ou a existência, por perto, de restos de madeira queimada e de cinzas: não existem carteiras, quadros pretos ou, no caso das kuttâb, livros ou qualquer outro material pedagógico22. Desta ausência de quadro material apropriado, depreende-se, para além da sobriedade dos meios utilizados, o carácter muito personalizado da pedagogia corânica.

46 Não sendo uma escola propriamente pública – embora dependa da comunidade que, directa ou indirectamente, a apoia (ofertas, reconhecimento social), nenhuma personalidade tem o poder de controlar e orientar o seu ensino, de impor normas ou eventualmente de o sancionar – e também não sendo particular – sem necessidade de autorização para funcionar, não pode, contudo, por razões privadas, escusar-se a ministrar e a manter ensino se alguém o pede -, a escola corânica tradicional tem como único elemento de controlo do seu ensino e do comportamento do professor para com os alunos a opinião da comunidade e dos familiares dos alunos23.

47 O carácter ambivalente destas escolas, entre o comunitário e o particular, ressalta também da ausência de um controlo pedagógico sobre os alunos do tipo exercido pelo sistema de ensino oficial e, de modo particular, da ausência de diplomas. Não existe um

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regime de exames, nem os conhecimentos adquiridos são atestados por um diploma. Existem, sim, algumas cerimónias de consagração pública de determinados níveis de conhecimento dos alunos, como, por exemplo, o fim da primeira leitura completa do Corão ou o início do estudo comentado de um dos livros da tradição muçulmana (o fîqh, o hadîth, etc)24.

48 Por outro lado, qualquer pessoa pode intitular-se professor de Corão, karamo, desde que considere que proporciona ensino corânico. Aliás, com excepção dos títulos que advêm das funções exercidas na mesquita (almami, muzzenin) ou da «nobilitação» obtida depois da peregrinação a Meca (El Hadji)25, todos os outros (karamo, tcherno, arafan, fodé, etc.) comportam, na actualidade, uma larga margem de arbitrariedade na sua atribuição, havendo mesmo inúmeros casos de auto-atribuição26.

49 Dado que o seu ensino assenta basicamente na aprendizagem de memória27, a escola corânica tradicional no seu nível mais elementar só acessoriamente se serve da escrita como meio de fixação de conhecimento: na aprendizagem do alfabeto árabe, na transcrição de alguns versículos do Corão, no eventual estudo da matemática.

50 Por outro lado, mesmo nas madrass, poucas são as que ministram matemática para além do nível mais elementar de operações aritméticas, efectivo ensino da língua árabe – ler, escrever, falar28 e níveis mais elevados de estudos corânicos ou usam, para além da recitação, o árabe como língua de trabalho.

51 Por exemplo, na parte kaabúnké da Guiné-Bissau, não haverá, na actualidade, mais de meia dúzia de escolas, das provavelmente mais de quinhentas escolas corânicas tradicionais, com capacidade para ensinar os níveis mais elevados do ensino corânico, a língua árabe ou proporcionar ensino da matemática para além da aritmética mais elementar29.

52 Directamente relacionada com o nível de conhecimentos dos professores, a capacidade de ensino numa escola corânica tem naturalmente a ver com o processo de aprendizagem dos professores. Grande parte deles aprendeu com os pais ou com familiares na própria aldeia ou bairro de residência; outros, uma minoria que fez estudos mais aprofundados, começaram geralmente por aprender com os pais ou com familiares e mais tarde frequentaram o ensino de outros professores no país ou nos países limítrofes.

53 Embora não cobre qualquer mensalidade aos alunos, o professor não deixa de usufruir benefícios materiais, sociais e políticos pelo facto de ensinar: aproveita o trabalho dos alunos nas suas actividades económicas e recebe ofertas, em géneros, em dinheiro ou sob a forma de prestações gratuitas de trabalho [aramasou ducuó, em mandinga], de pais e familiares dos alunos e de antigos alunos.

54 Grosso modo, o ensino corânico tradicional divide-se em dois níveis, cada um idealmente ministrado num espaço próprio: um primeiro nível elementar, ministrado na kuttâb, baseado na aprendizagem do alfabeto e da junção das letras e na memorização de um número relativamente pequeno de versículos do Corão, e um nível mais avançado, ministrado nas madrass tradicionais que inclui, num primeiro tempo o aprofundamento da escrita, da aprendizagem da língua árabe e da memorização de um maior número de versículos do Corão e, nos tempos de aprendizagem superiores a leitura e comentário da teoria legal do islão (fîqh), das tradições (hadîth), da teologia (tawhid), da biografia de Maomé (sira) e da gramática árabe (nahm)30. Tanto no nível elementar como no mais avançado, coexistem na mesma classe alunos com conhecimentos e tempos de aprendizagem diferentes, podendo mesmo, por conveniência de gestão do tempos dos

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professores, ocasionalmente alunos de kuttâb e de madrass terem aulas em simultâneo no mesmo espaço.

55 Neste tipo de educação que podemos chamar, sem excesso, de global, a formação moral é, todavia, valorizada em relação à intelectual. A escola corânica tradicional funda-se no princípio pedagógico central de formação global e utiliza, como suporte do seu ensino, não só os textos sagrados, mas também exemplos retirados da vida quotidiana e da história: procura formar desde a kuttâb homens que, para além de serem bons muçulmanos, segundo critérios estabelecidos pela tradição, «se dêem ao respeito»31.

56 O seu objectivo principal não é simplesmente iniciar, na kuttâb, os jovens no modo de vida dos adultos ou, no caso das madrass, prepara-los para uma actividade particular, é, sobretudo, para além do de incutir-lhes o sentimento de respeito que é devido à ordem social da comunidade e às autoridades que a encarnam, o de inculcar a ideia de submissão, ideia fundamental do islão32.

57 Quer seja na sua dimensão moral, social, religiosa ou profissional, a educação corânica está centrada na ideia de submissão: a Deus, ao professor, aos pais, aos mais velhos, à natureza e ao interesse da comunidade. Isto é, as escolas corânicas, são, não só a instituição básica de transmissão dos valores e rituais do islão, mas também a «instituição primeira» de socialização dos jovens muçulmanos.

58 Finalmente, pelo seu carácter global, abarcando as mais variadas dimensões do comportamento social, e pela sua preocupação em formar em simultâneo mandinga/ fulas/beafadas e muçulmanos, o ensino ministrado nas kuttâb e nas madrass clássicas, ao contrário de outras formas de educação, mesmo confessionais muçulmanas, presentes na actualidade no Kaabú prolonga sem rupturas e naturalmente, nos valores, na pedagogia e nos materiais de aprendizagem, a educação iniciada no seio do grupo parental.

59 Por um lado, na escola corânica tradicional, nem a pedagogia – transmissão de conhecimento pela oralidade, ensino das técnicas pela observação, utilização dos castigos corporais e psicológicos como instrumento educativo – é contrária à das formas de educar na família, nem os materiais de aprendizagem utilizados – mitos, palavra dos mais velhos, talismãs, textos copiados do Corão, etc. – estão ausentes do quotidiano familiar.

60 Por outro, os valores transmitidos, nas kuttâb e nas madrass, em nada vêm contrariar os princípios nucleares porque se norteia o ensino dos comportamentos sociais no seio das famílias, o da ideia de submissão e o da de filiação de todo o indivíduo num grupo hierarquizado segundo a idade e o conhecimento33.

4. Escola arabi

61 Como no passado, contudo, o ensino ministrado nas kuttâb e nas madrass clássicas, não é presentemente, tanto no Kaabú como em outras regiões da Senegâmbia, o único tipo de ensino confessional islâmico.

62 De facto, como na actualidade com as escolas arabi, desde há pelo menos um século que o ensino tradicional corânico sofre a concorrência de outros tipos de escolas muçulmanas, nomeadamente de escolas – umas arabófonas e conservadoras, outras modernizantes – que desde finais do século XIX, nas colónias inglesas, e do fim da Iª Guerra Mundial, nas francesas, surgiram por iniciativa privada ou de associações muçulmanas ou, mesmo em meia dúzia de casos, incentivadas pelas autoridades coloniais34. Impropriamente

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chamadas por muitos autores simplesmente de madrass35 e, no caso das modernistas, popularmente conhecidas nas antigas colónias francesas como escolas franco- muçulmanas, apesar dos apoios recebidos de escolas situadas no mundo árabe ou magrebino (envio de professores, formação de docentes, oferta de material pedagógico, etc.) e, em certos casos das autoridades coloniais, não conseguiram apagar a preponderância das escolas tradicionais no ensino muçulmano.

63 Na Senegâmbia, não só o número destas escolas era, por comparação com as tradicionais, diminuto, como ainda estavam sempre localizadas nas cidades, sobretudo nas maiores cidades (Banjul, Dakar, Saint Louis, Kaoulak, Thiés).

64 No Kaabú propriamente dito, para além do caso de, nos anos cinquenta, de quatro ou cinco mais ou menos efémeras escolas em Kolda e Sédhiou, na Casamance, são só conhecidas três outras, duas em Serrekunda e uma Brikama, na Gâmbia36. Destas escolas, só uma de Serrekunda ainda hoje existe, mas transformada em escola arabi.

65 Esta escola (registada actualmente sob o nome de Madrasat al-Ansar, mas conhecida localmente como «escola do émir Mamadu»), fundada nos finais dos anos 1940 por iniciativa de um antigo aluno da Universidade de Al Azhar do Cairo (Bacari Sissé), e que chegou a ter nos anos cinquenta e sessenta do século passado mais de 300 alunos oriundos da Gâmbia, Senegal, Guiné-Bissau e Guiné-Conakry, estava, na altura em que foi «refundada», em finais dos anos oitenta, praticamente desactivada: o seu principal animador, Bacari Sissé, tinha morrido em 1984, dois dos seus três professores acumulavam a docência com actividades comerciais e tinha menos de duas dezenas de alunos, na sua quase totalidade gâmbianos. «Refundada» por antigos estudantes de centros religiosos da Arábia Saudita e do Paquistão, esta escola tornouse na década de 90 não só na das principal escola arabi da Gâmbia (em 2002: 450 alunos, vários níveis de ensino, duas dúzias de professores permanentes, 11 professores com formação nos países árabes, instalações construídas de raiz), mas também no mais conhecido centro de difusão do salafismo waabitta na Gâmbia e na Casamance37.

66 Por outro lado, não só quanto ao seu relacionamento com as autoridades estatais nunca conseguiram um modelo standard de tratamento, como também quanto ao seu «perfil» educativo estas escolas nunca conseguiram apresentar-se sob a capa de um modelo único: umas, modernistas, onde se estudava o árabe, o islão e, à imagem das escolas europeias, as disciplinas científicas a partir de uma língua europeia [a típica escola dita franco- muçulmana, tolerada e mesmo em alguns casos incentivada pelas autoridades coloniais francesas]; outras, mais conservadoras, tendo por modelo o mundo árabe e como língua de ensino exclusivamente o árabe e geralmente vistas pelas autoridades com grande desconfiança (GANDOLFI, 2003: 268).

67 Finalmente, estas escolas, como na actualidade as arabi, para além das questões de relacionamento frequentemente impossível com as autoridades políticas, foram sempre motivo de oposição feroz por parte dos dignitários tradicionais e de desconfiança por parte da maioria dos muçulmanos senegâmbianos. Ao denunciarem os erros pedagógicos das escolas corânicas e a ignorância dos seus professores puseram contra si o establishment muçulmano – dos marabouts de aldeia aos califas das grandes confrarias; ao procurarem «desmaraboutizar» o ensino muçulmano e ao introduzirem na escola muçulmana matérias da «escola dos brancos» – línguas europeias, ciências naturais, desenho, história, etc. – criaram nas populações, na maior parte dos casos, desconfiança do mesmo teor da que até quase aos nossos dias fez com que os muçulmanos na sua maioria recusassem a escola oficial ou a das missões cristãs. Atiçadas ou não pelos

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marabouts, as populações muçulmanas consideravam estas escolas não só como quase iguais às dos «brancos», como ainda como inimigas da religião!38

68 Nem mesmo o facto de em alguns casos estas escolas proporcionarem diplomas que, dependentemente do querer das autoridades, para vários efeitos eram considerados como equivalentes aos do ensino oficial fez delas uma história de sucesso nos meios muçulmanos senegâmbianos. A maioria destas foi ao longo dos anos perdendo fulgor e acabou por fechar, outras acabaram por ser recuperadas pelas estruturas do islão tradicional e transformadas em escolas em quase tudo idênticas às corânicas tradicionais ou, como no caso de uma dúzia delas no Senegal e na Gâmbia, «convertidas», na década de oitenta, em escolas «verdadeiramente» árabes, isto é, em escolas arabi.

69 Síntese actualizada das escolas referidas nos parágrafos anteriores ou suas simples herdeiras afastadas, as escolas arabi são conhecidas, na Senegâmbia Setentrional, desde há cerca de três décadas e de duas no Kaabú e são desde há pelo menos dez anos uma alternativa «apoiada», seja ao ensino corânico tradicional, seja ao ensino público ou missionário cristão.

70 As escolas arabi contrapõem-se à laicidade do ensino público e à confessionalidade das escolas privadas cristãs39 e oferecem uma aparente modernidade em termos de ensino confessional muçulmano: opõem ao ensino confessional das kuttâb e das madrass, assente numa interpretação local do islão, uma soit-disante ortodoxia arabizante no conteúdo dos conhecimentos transmitidos e acrescentam ao currículo das escolas corânicas tradicionais novas matérias que, respondendo às necessidades criadas pela modernização das sociedades, procura evitar a laicização ou o «desvio» religioso, por via do sistema escolar, dos muçulmanos. Valorizando a escrita e o uso do árabe como língua de conhecimento e ensino e as línguas oficiais como línguas de comunicação40, usam manuais escolares e facultam aos alunos excertos dos textos sagrados como meio privilegiado de transmissão do conhecimento «religiosamente correcto». Inicialmente vistas, pelos seus inspiradores, como alternativa ortodoxa ao ensino das escolas corânicas tradicionais e como contraponto à expansão do ensino oficial ou, em alguns casos, como tentativa de evitar qualquer penetração excessiva, por via das escolas das missões, do cristianismo nos terrenos muçulmanos, as escolas arabi têm vindo, em vários países africanos, por pressão das organizações muçulmanas e de parceiros internacionais como o Banco Mundial, o PNUD, a UNESCO e a UNICIEF e por razões ditadas pela incapacidade dos diferentes Estados de responderem com meios humanos e instalações à crescente procura de ensino, a ser tomadas pelos poderes públicos progressivamente, como subsidiárias ou como supletivas em relação ao ensino oficial (UNESCO/BREDA, 1995; DIAS, 2001)41.

71 Do ponto de vista do seu enquadramento no sistema nacional de ensino, a situação das escolas arabi varia de país para país: no Senegal estão simplesmente registadas no Ministério da Educação42 e os seus diplomas, ainda que na prática sem valor efectivo no mercado de trabalho e sem grande valor como passaporte para transitar para outro subsistema de educação, reconhecidos; na Gâmbia, desde há meia dúzia de anos, depois de passaram a ser consideradas como uma boa solução para a resolução do problema da escolaridade das «massas populares», beneficiam da equiparação de diplomas com efeitos práticos idênticos aos que ocorrem no Senegal e de algum apoio por parte do Estado em termos de financiamento e formação de professores43 e está em curso a implementação de um conjunto de medidas visando no curto prazo o controle pedagógico por parte do estado e o estabelecimento de programas nacionais e, no médio prazo, a organização de exames nacionais de forma a tornarem para todos os efeitos os seus diplomas idênticos

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aos do ensino oficial e equiparado; na Guiné-Bissau, simplesmente toleradas sem que, pelo menos como no Senegal, exista um verdadeiro registo ou qualquer medida prática em relação ao reconhecimento dos diplomas44.

72 Em qualquer das situações nacionais a questão da efectiva equivalência dos diplomas é a questão crucial tanto para os responsáveis das escolas arabi, como para os responsáveis políticos dos sistemas educativos nos três países.

73 Trata-se de um assunto que tem motivado grandes debates e cuja solução, mesmo no caso da Gâmbia, parece não estar para breve.

74 Por um lado, o mercado de trabalho não reconhece os diplomas como «bons» diplomas, por outro, as entidades nacionais de educação não conseguem fazer «caber» as idiossincrasias de boa parte das diferentes matérias ensinadas nas escolas arabi no quadro das disposições cientificas, pedagógicas e administrativas que regulam a formação de currículos escolares. Isto é, como no passado colonial com as madrass arabizantes e apesar dos actuais incentivos dos parceiros internacionais, o estado e o conjunto de decisores a quem este delega a gestão dos problemas educativos, continuam, em inúmeros casos, reticentes, em termos políticos, ideológicos e em nome de uma cientifícidade qualquer, em considerar as escolas arabi como escolas no sentido pleno do termo.

75 Todavia, as autoridades nacionais não se coíbem em qualquer dos três países desde pelo menos finais da década de 80 de incluir os alunos que frequentam estas escolas, como, em muitos casos, as de marabout, nos seus recenseamentos anuais de alunos frequentando um grau de ensino (GANDOLFI, 2003: 274)!

76 As escolas arabi, que ao contrário das suas precursoras não se situam exclusivamente nas cidades, têm um funcionamento, em vários aspectos, idêntico ao das escolas, públicas ou para-públicas, que dispensam ensino segundo os programas nacionais, incluindo em termos de calendário lectivo e de níveis de escolaridade, enfermam também, naturalmente em termos quantitativos em escala incomparavelmente menor, dos mesmos problemas de organização e de carência de recursos materiais e de recursos humanos, no caso das escolas arabi com consequência geralmente mais dramáticas, já que abandono de um professor, sobretudo nos contextos onde malha de escolas arabi é mais fraca, ocasiona muitas vezes o fecho da escola por largo tempo e mesmo o seu desaparecimento, e lutam, como as escolas públicas e para-públicas e provavelmente, em termos relativos, maiores, com a falta de adequada formação pedagógica e técnico-científica dos professores.

77 As escolas arabi ocupam os alunos, de Outubro a Junho, com as correspondentes férias de tabaski, fim de ramadão e ano novo muçulmano pelo meio, durante a manhã ou a tarde, têm idealmente edifícios próprios com quadros pretos e material escolar; a escolaridade no primeiro nível é, conforme os casos, de 4 ou 6 anos a que se seguem, nos países onde a implementação deste ensino é mais antiga e mais apoiada e/ou melhor estruturada, um ou mais níveis de ensino que somam na totalidade, em algumas escolas, o mesmo número de anos que o ensino liceal público e equiparado45; atribuem/prevêem atribuir diplomas no fim da escolaridade e, para além do Corão e de outros textos islâmicos e de vários níveis de língua árabe, leccionam, com graus de complexidade maiores ou menores conforme o tempo de escolaridade dos alunos, a matemática, a história, a geografia, as ciências da natureza, a física, a química, as línguas oficiais, etc.

78 Ao contrário das escolas do sistema público e equiparado, que são laicas ou, em alguns casos das equiparadas, cristãs e em que a língua de ensino é, pelo menos teoricamente, a língua oficial do país, e das kuttâb, em que a língua veicular do ensino é a língua materna

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dos professores e alunos e que assentam o seu ensino numa visão contextual do islão e na perpetuação dos valores tradicionais, as escolas arabi dispensam um ensino, em todos os domínios, confessional, baseado numa interpretação idealizada de uma pretensa ortodoxia muçulmana arabizante e, pelo menos nas intenções, em língua árabe. Uma idealizada ortodoxia muçulmana arabizante de tal maneira idealizada e controversa que faz com que, sobretudo, em relação às escolas arabi fundadas mais recentemente se fale cada vez mais de escolas de obediência saudita, líbia, cairota, koweitiana ou paquistanesa e que se criem, conforme a paternidade assumida por cada escola e o volume de donativos recebidos, mesmo no interior da mouvance arabi, círculos de apoiantes incondicionais e de detractores radicais. A questão dos apoios financeiros vindos dos países árabes e magrebinos, como no passado com as suas antecessoras mas de volume incomparavelmente superior, é uma questão delicada tanto para as próprias escolas, como para as autoridades nacionais de educação: a esmagadora maioria das escolas arabi dificilmente consegue sobreviver sem esses apoios financeiros, o relacionamento de cada escola com as autoridades nacionais de educação está ao sabor do estado das relações do poder político ao mais alto nível como o país doador.

79 Do ponto de vista da titularidade de propriedade, a situação é de uma extrema diversidade e mesmo de ambiguidade: algumas são propriedade de organizações islâmicas, outras propriedade conjunta dos próprios professores e das organizações islâmicas ou de patronos locais.

80 Por outro lado, ao contrário da frequência das escolas corânicas tradicionais, a das escolas arabi não é gratuita: os alunos pagam para além da inscrição anual, uma mensalidade durante o período lectivo e, normalmente, os professores arrecadam a totalidade das receitas das matrículas e das mensalidades pagas pelos alunos e, sobretudo nas aldeias do interior do país, quando o professor vem de fora, é-lhe ainda assegurado alojamento e alimentação pelos patronos das escolas e pelos pais dos alunos.

81 Esta situação, para além de tornar estas escolas, à escala local, factor de diferenciação entre as famílias que podem pagar as mensalidades e as que não podem, torna-as, dadas as dificuldades generalizadas das famílias muçulmanas, extremamente frágeis financeiramente e dependentes, quanto à sua sobrevivência, de subsídios externos, de boas vontades locais e do estado das relações inter-étnicas46.

82 De facto, deste último ponto de vista, as escolas arabi não só muitas vezes não ficam de fora das rivalidades étnicas, como também, quanto à origem étnica de professores e alunos, geralmente não cumprem, ou cumprem mal, uma das principais funções que lhe estão destinadas: «desetnizar» o islão africano.

83 Com efeito, com excepção das mais antigas e melhores estruturadas escolas arabi e da generalidade das que ensinam para além do nível mais elementar, existe no Kaabú, como em toda a Senegâmbia, uma quase linear correspondência, do ponto de vista da pertença étnica, entre professor e a maioria dos alunos. Neste aspecto tudo ou quase tudo como na escola corânica tradicional: homogeneidade étnica nos níveis mais elementares e perda da estrita homogeneidade étnica a partir dos níveis mais elevados de ensino.

84 Na verdade, também na escola corânica tradicional, «desde sempre» um número significativo de alunos dos níveis mais elevados procuram, num momento qualquer do seu processo de aprendizagem, professores tendo em conta não tanto a sua origem étnica mas sobretudo a sua reputação como conhecedor desta ou daquela matéria; por exemplo, no Kaabú, é ponto relativamente aceite que, por exemplo, os sherifos mauritanianos da

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linhagem Haidaira são os melhores professores de nahm, os mouros djakankas de tawid, os fulas que estudaram no Labé (Fouta Djalon) de fiqh e os mouros mandingas das linhagens Sissé ou Fati de hadith e de sira.

5. Escolas corânicas tradicionais e escolas arabi: duas formas distintas de transmissão de saber suportadas por visões parcialmente diferentes de Islão

85 Não deixando de ser importante o facto das escolas arabi não terem conseguido até hoje «desetnizar» o islão kaabunké e senegâmbiano, este traço comum entre escolas corânicas tradicionais e escolas arabi, contudo, não só não dilui as grandes diferenças de performances pedagógicas e de objectivos, como também não incobre as substanciais diferenças de entendimento de islão por parte dos promotores destes dois tipos de escolas muçulmana.

86 De facto, ao contrário da preocupação que o ensino nas escolas corânicas têm de formar, pela positiva, em simultâneo wolofs/mandingas/fulas/beafadas e muçulmanos e de prolongar sem rupturas, nos valores, na pedagogia e nos materiais de aprendizagem, a educação iniciada no seio do grupo parental, o ensino ministrado nas escolas arabi rompe com as formas de educar na família e com o entendimento tradicional do islão.

87 Por um lado, as instalações onde o ensino das escolas arabi é ministrado não são exactamente a continuação de uma casa familiar, os materiais utilizados – livros, papel, caneta – são exteriores aos utilizados no quotidiano e instrumentos pedagógicos, como os mitos, os relatos valorizadores do passado das etnias e a palavra dos mais velhos, instrumentos centrais na educação familiar e nas escolas corânicas tradicionais, não são nunca utilizados pelos professores das escolas arabi.

88 Por outro, com maior ou menor sucesso o ensino do islão nas escolas arabi procura seguir uma cartilha soit-disante ortodoxa e arabizante onde de forma nenhuma, por exemplo, mitos e reinterpretações locais do islão têm lugar.

89 Compreende-se pois que no terreno kaabúnké e senegâmbiano e de uma forma geral nos terrenos africanos as relações entre estes dois tipos de escola muçulmana sejam conflituosos e mesmo, por vezes, dada a extrema violência verbal e física colocada nos confrontos, produtores de divisões inultrapassáveis no interior das comunidades e das famílias: os dignitários religiosos tradicionais, elegeram desde há muito os arabizantes, professores de madrass e patronos de escolas arabi, como inimigos do (seu) islão; arabizantes, que desde sempre se auto-atribuíram a tarefa de «desmaraboutizar» o Islão Kaabúnké e senegâmbiano, consideram o islão local como um falso islão, como uma heresia, e os marabouts, independentemente da eventual relação familiar que com eles tenham, de idólatras47.

90 Na realidade, um e outro entendimento de islão situam-se quase nas antípodas um do outro, nomeadamente em questões centrais, como por exemplo, a do próprio entendimento de relação dos fieis com Alá.

91 Nesta dimensão, os ensinamento transmitidos pela escola arabi subvertem a consensualidade, no islão dito tradicional, da existência conjuntural de vários cadeias de submissão e de «maleáveis» hierarquizações no interior das cadeias de transmissão de saber e de baraka48.

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92 No islão local, a relação com Alá faz-se através das conhecidas silsilas, isto é, faz-se no quadro de cadeias de transmissão que ligando entre si gerações de mestres e alunos transformam, ao jeito das relações visionadas nas religiões locais entre vivos e mortos e entre humanos e seres sobrenaturais, potencialmente cada elo da cadeia em transmissor do que ouviu e distribuidor do «dom» que recebeu de quem o antecedeu na cadeia que a já tinha recebido de outrem que «por sua a vez já a tinha recebido de outrem que muito provavelmente a recebeu de alguém que numa altura qualquer esteve em contacto com o profeta Maomé»!; no imaginado islão arabizante, a relação com Alá faz-se em exclusivo pela via do cumprimento dos ensinamentos do seu profeta, Maomé, isto é, a relação com Alá está ao de cima das contingências da existência de intermediários entre si e os fieis [Alá é o único Deus, e Maomé o seu profeta!].

93 Neste contexto, é pois natural que, para os mentores das escolas arabi, o islão praticado pelos kaabunkés e por outros povos da África Negra seja, dado o seu sincretismo originado pela reinterpretação dos valores islâmicos à luz das particularidades culturais, um «não-islão» e as escolas de marabout perigosos «covis» de propagação de heresias e de idolatrias.

94 Esta posição dos mentores as escolas arabi, alias, em pouco difere da de alguns analistas do islão africano. De facto, para todos aqueles que entendem a religião como um corpo de prescrições e de regras neutrais, o islão praticado em África é na maior parte dos casos um islão «desnaturado» e os seus praticantes pouco mais do que caricaturas de muçulmanos, isto é, para muitos destes analistas, os muçulmanos em África são na sua larga maioria «muçulmanos por fora e africanos – vide animistas – por dentro».

95 Para muitos destes autores, por exemplo, não só o papel dos mouros e dos comerciantes muçulmanos na expansão do islão em África é, contra toda a evidência dos factos históricos49, frequentemente desvalorizado em relação ao dos promotores das djihad no século XIX, como as «compatibilizações» impostas manus militari pelas djihad dos usos e costumes locais com os textos corânicos vistas quase como verdadeiros retornos à ortodoxia e o papel das djihad na história do islão em África considerado como uma etapa decisiva na caminhada irreversível para um islão «purificado», isto é, para um islão expurgado do seu fundo cultural africano, como ainda as escolas de marabout remetidas para a categoria de quase falsas escolas.

96 Tratam-se, do meu ponto de vista, de análises que, ao observarem o islão africano simplesmente por referência à historicidade deste no seu núcleo fundador, grosso modo a Península Arábica, não só deixam de fora o modo e o contexto em que a islamização foi feita em África, como ainda, no caso preciso das escolas coranicas tradicionais, não conseguem pôr a nu a relação directa existente entre as «idiossincrasias» da islamização dos povos africanos e as particularidades dos conteúdos e dos suportes usados na transmissão do saber religioso e do saber prático-religioso dos muçulmanos africanos em geral e dos kaabúnkés em particular.

97 Nestes pontos, autores como Fisher (1973), Heskitt (1994), Monteil (1980) ou a maioria dos compilados por Wilks (1979) «encontram-se», por razões diferentes, com os promotores das escolas arabi. Uns e outros acordam na ideia (falsa) de que existe mesmo uma ortodoxia muçulmana e que essa ortodoxia se apresenta em África sob a capa do modelo de islão arabizante veiculado, no passado, pelas djhiad e, na actualidade, pelas escolas arabi e por toda a mouvance religiosa onde elas se inserem.

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98 Do meu ponto de vista, não só não existe uma verdadeira ortodoxia muçulmana, como ainda a externalização do islão para fora do contexto cultural do seu núcleo fundador se deve em grande parte à não existência dela. Mesmo a grande cisão do islão após a morte do profeta entre sunitas e xiitas centrou-se, como é sabido, inicialmente em questões de legitimidade de sucessão e não de compulsação de divergências teológicas ou filosóficas entre grupos.

99 No caso concreto das relações entre tradicionalistas e arabizantes no Kaabú e na Senegâmbia, o que está em jogo são antes de mais, ao nível local, questões de poder e de utilização de entendimentos diferentes de uma mesma religião como arma de conservação/tomada de poder religioso e político-religioso e, a um nível mais global, questões resultantes de alterações das relações de força no interior da Umma e de ímpeto e formas do da’wa («apêlo»).

100 De facto, na Senegâmbia, em relação aos movimentos do passado, é notória uma maior ligação dos movimentos arabizantes actuais com os grandes movimentos de da’wa, sobretudo com os que têm sede no mundo árabe-muçulmano dito central.

101 É neste contexto de maior interligação com movimentos arabizantes de sede não local que, por exemplo, os movimentos reclamando-se do da’wa, na sua concepção moderna, aparecem, nos início dos anos setenta, em algumas zonas da Senegâmbia, nomeadamente na «Grande Dakar» e na «Grande Banjul» e, na década de oitenta, no Kaabú e um pouco por toda a Senegâmbia50.

102 Com efeito, muito embora o da’wa seja um conceito corânico clássico ao qual, em lugares e circunstâncias diferentes, as sociedades muçulmanas do passado recorreram para propaganda e proselitismo religioso, o da’wa que hoje encontramos quer na Senegâmbia e no Kaabú, quer em outras regiões muçulmanas, resulta de uma substancial redefinição da sua concepção e da sua prática durante a segunda metade do século XX, nomeadamente tornando cada aderente num missionário potencial e num militante social. Inicialmente uma iniciativa de renovação vinda de sectores xiitas e de movimentos como o da Ahmadiyya, nas últimas décadas, alguns sectores sunitas e certas organizações pan- islâmicas contribuiriam para o renascimento do conceito e tornaram-se os principais artífices da sua difusão51.

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John WANSBROUGH, 1978, The Sectarian Milieu – Content and Composition of Islamic Salvation History, Oxford, Claredon Press.

NOTAS

1. Na Senegâmbia, as escolas corânicas elementares são conhecidas pelo nome de escola de mouro /marabout e raramente pelo seu nome arabizado, kuttâb; na Guiné-Bissau, são também conhecidas pelo nome escolas de fokera [«fogueira», em crioulo]. 2. O termo Senegâmbia é neste artigo entendido no sentido de Senegâmbia «Histórica» e não no restritivo que, em 1981, tomou a efémera união política, entre o Senegal e a Gâmbia ou no que, como nota Hargreaves (1967: 73) teve no século XVIII, durante a Guerra dos Sete Anos, em que designava o reagrupamento, sob tutela da Grã-Bretanha, das possessões francesas do Senegal e da inglesa da Gâmbia . A Senegâmbia «Histórica» é uma região oeste-africana edificada, desde bem antes da ocupação colonial, por múltiplas convergências históricas e por sucessivas «urdiduras» políticas, religiosas, sociais e culturais e que se estende, nas versões «maximalistas», do rio Senegal ao rio Pongo, na Guiné-Conakry, e mesmo ao rio Kolente, na Serra Leoa, e do Atlântico até ao Bambouk e aos contrafortes do Fouta Djalon (BARRY, 1990; MANÉ, 1979; PERSON, 1974). Na versões «minimalistas», a Senegâmbia «Histórica» é delimitada a norte pelo Rio Senegal e a leste pelo seu afluente Falamé e engloba as bacias hidrográficas dos rios Gâmbia, Casamance, Gêba e, para alguns autores, também a do rio Corubali (DIOUF, 2001; SAINT-MARTIN, 1989).

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3. Boas descrições do reino do Kaabú, do seu sistema político e dos confrontos entre mandingas e fulas em Bowman-Hawkins (1980), Cissoko (1981), Innes (1976), Mané (1979), Niane (1989), Lopes (1999) e Quinn (1972). 4. Um «terceiro círculo» de províncias, correspondendo, em boa parte, a províncias agregadas ao Kaabú na época do seu apogeu, no século XVIII, situa-se quer na zona limítrofe do Fouta-Djalon, na actual Guiné-Conakry, e na do interior-norte do curso médio do Gâmbia, quer na região entre os rios Gâmbia e Casamance próxima do litoral atlântico, nomeadamente na área da actul região senegalêsa de Sédhiou. Ver um levantamento das provinciais kaabúnké e uma boa tentativa de tipificação do relacionamento das províncias da periferia com o centro do Kaabú em Galloway e Sidibé (1980). 5. Os grupos mandinga e fula são largamente majoritários no Kaabú. De entre os grupos minoritários têm expressão, para além do djola «mandinguizado» e do balanta mané (djola muçulmano, balanta islamizado), o balanta, o djola e o manjako. 6. A islamização da Senegâmbia pode dividir-se, grosso modo, em três grandes momentos: um momento fundador, nos séculos XIII-XVII, em que se processou, sobretudo na zona setentrional, a islamizações pontuais; um segundo momento, iniciado nos finais do século XVII, no Fouta-Tooro, com as ditas guerras dos marabouts, que se prolonga, com «altos» e «baixos» até meados do século XIX, em que largas manchas populacionais da Senegâmbia setentrional e oriental se tornaram muçulmanas e em que emergiram as primeiras teocracias muçulmanas (Boundu, Fouta Djalo, Fouta Tooro); um terceiro, a partir de meados do século XIX, que combinando djihads com «conversões pacíficas» do tipo efeito de dominó, delimitou no essencial as áreas e os grupos étnicos muçulmanos tal e qual eles hoje se apresentam. Nos finais do século XIX, assistiu-se, por outro lado, em paralelo ao fim dos combates entre os muçulmanos e os chefes animistas e à vitória das campanhas coloniais ditas de pacificação, à implantação generalizada das confrarias muçulmanas e, no caso do Senegal, à sua inscrição definitiva no projecto colonial. Sobre a islamização da Senegâmbia ver, entre outros autores, análises globais em Clarke (1984), Klein (1968, 1972), Levtzion (1986b), Martin (1976) e Sanneh (1989); sobre a islamização do Kaabú os trabalhos de Barry(1988) e Leary (1972) continuam a ser os mais representativos. 7. Na actualidade, no Kaabú e nas zonas limítrofes, ainda hoje é corrente ouvir-se dizer que alguém que se converteu ao islão «virou» mandinga. Sobre esta expressão, que em parte é devedora da importância que alguns marabouts mandingas e aparentados (djakankas) tiveram, nos finais do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, na conversão dos núcleos populacionais mais reticentes ao islão (mandingas do Oio, fulas pretos da actual região da Bafáta, balantas da zona fronteiriça da Guiné-Bissau e da Casamance, os conhecidos balantas mané, e djolas do interior da Casamance e da Gâmbia), ver Dias (1999: 132). 8. O uso do termo marabout – um termo usado no Magreb para nomear globalmente os santos do islão magrebino – está generalizado na Senegâmbia e designa tanto um dignitário muçulmano, como um muçulmano que se dedica à geomância. Todavia, no Kaabú, ao contrário das regiões mais setentrionais da Senegâmbia, o termo corrente para designar um muçulmano que faz da geomância actividade é o de mouro, versão aportuguesada do termo mandinga mori que, no passado, distinguia as famílias muçulmanas das não muçulmanas de tal forma que os quarteirões onde viviam famílias muçulmanas mandingas se chamavam moricundas. 9. «Tout chef “animiste” au XVIIe ou XVIIIe siècle, a un ou plusieurs marabouts autour de lui. Le marabout est absolument indispensable, comme l’élément religieux nécessaire au commerçant, en tant que musulman. Mais il est aussi nécessaire aux ‘animistes’ en tant qu’intermédiaire utile et complémentaire avec le surnaturel. Il vaut mieux deux chances qu’une, deux religions qu’une. Cela vous donne deux fois plus de chances de surmonter les alias de la nature et du destin» (PERSON, 1985:43). 10. «Through their magic-religious services to non-Muslims, first and foremost to chiefs, they inculcated Islamic elements into the local society as an initial step in a long process of islamization» (LEVTZION, 1986a: 9).

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11. Num plano mais vasto, a dicotomia saber explícito-saber não explícito, insere-se no que poderemos chamar de dialéctica entre a objectivação e a incorporação do saber islâmico africano: na prática islâmica, embora o saber objectivado tenha um papel não negligenciável (devido aos textos), a incorporação desempenha um papel fundamental, especialmente através da recitação dos textos; objectivação e incorporação coexistem nos rituais. Sobre este assunto preciso ver, entre outros, Brenner (1985: 9-34) e Lambek (1993: 375-429); sobre a problemática das relações, no oeste-africano, entre islão-poder-conhecimento, ver Brenner (2001). 12. Uma das actividades mais comuns e rentáveis dos dignitários e letrados muçulmanos, na Senegâmbia e em outras regiões africanas, é a de geomância ou, como popularmente é conhecida no Kaabú, a do «serviço de mouro» ou maraboutagem. Trata-se, ao contrário da astrologia que se baseia nas relações e nas influencias naturais entre os astros, de uma actividade de adivinhação que fundada sobre convenções arbitrárias, com uma forte tendência para tomar os desejos por realidades e que goza de grande prestigio e popularidade: «the willingness to accept Islam [em África] rested on the following factors: first, the many points of contact between the religious frameworks [...]; secondly, the prestige of a “superior” culture, whose representatives, being traders, had the goods one coveted; thirdly, the added value accorded to esoteric magic» (GOODY, 1971: 460). Sobre a geomância e o seu lugar no saber muçulmano africano, ver uma excelente análise em Brenner (1985: 78-98). 13. Sobre o problema dos amuletos no islão africano ver, entre outros, Brenner (1985), El-Tom (1987), McNaughton (1993) e Sanneh (1974). 14. «Muslim clerics took over functions of the traditional priests, and even magic became the prerogative of Muslim clerics» (LEVTZION, 2000: 79). 15. Aliás, «a teologia muçulmana é tolerante para com a adivinhação, a magia, a feitiçaria e a bruxaria. Condena seu uso ilegítimo das duas últimas, mas não põe em causa a sua eficácia. E estas actividades místicas conexas, designadas pelos mais variados nomes em língua árabe mas talvez mais vulgarmente por sihr, acabaram por ocupar sólido lugar de destaque na herança popular do Islamismo» (LEWIS, 1986: 98-99). 16. O Corão é para os muçulmanos africanos não só o Livro mas também o critério maior de distinção (BOTTE, 1990: 48-49). 17. «La différence essentielle entre une culture orale et une culture écrite tient aux modes de transmission. La première laisse une marge étonnamment grande à la créativité, mais une créativité de type cycle, tandis que la seconde exige la répétition exacte comme condition d’un changement positif» (GOODY, 1977: 45). 18. «Ce n’est pas le moindre paradoxe de l’islam, civilisation du Livre, donc de l’écrit, que de recourir pour sa transmission à une pédagogie de l’oralité» (SANTERRE, 1982: 337). Sobre o lugar intermédio do saber corânico, entre o saber baseado exclusivamente na oralidade e o que privilegia a escrita, ver, por exemplo, Brener (2001), Eickelman (1978), Goody (1971) e Santerre (1973, 1982). 19. Cada saber para ser considerado legítimo tem de ser recebido pessoalmente e, quando transmitido, deve ser acompanhado da inventariação dos diferentes elos que o levam do narrador até à fonte original. O saber tem de se integrar numa silsila, numa cadeia de transmissão que estabelece, pela enunciação dos transmissores, a sua legitimidade: no caso do explicito, tem de se situar na linha normal de transmissão de um geração para outra e no do não explicito tem de fazer apelo ao saber dos mestres, de tal forma que, em muitos casos, a ascendência biológica acaba muitas vezes por ser obscurecida no plano genealógico pela inserção numa «árvore genealógica do saber» na qual ele se encontra assinalado como ramo terminal da «árvore» onde, por ordem inversa de antiguidade no acesso ao saber, aparecem representados, o mestre, o mestre do mestre e os seus discípulos que formaram também discípulos e todos os seus predecessores até ao putativo elemento inicial da cadeia de transmissão (BRENNER, 1985: 29-30; LAMBEK, 1993: 178). 20. Na actualidade, dado que alguns alunos frequentam também o ensino oficial, as sessões de trabalho das escolas de fokera organizam-se de modo a não coincidirem com o horário das escolas oficiais.

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21. Num passado não muito recuado os alunos internos das escolas corânicas no Kaabú, a exemplo do que se fazia e faz em outras regiões africanas, dedicavam parte do dia à mendicidade a fim de proverem a sua alimentação. Esta prática, além de derivar de necessidades óbvias, tem, segundo alguns autores, justificações de natureza religiosa e pedagógica: habitua os alunos à submissão, incita-os ao despojamento material e à procura da virtude. Sobre a vida quotidiana dos alunos numa escola corânica africana, vide experiências pessoais em Ba (1991), Kane (1961) ou Sanneh (1975). 22. Estas tábuas de madeira, conhecidas pelo termo arabe lawh, utilizadas pelos alunos para copiarem trechos do Corão, são o verdadeiro suporte material do ensino na kuttâb. 23. Sobre o estatuto das escolas corânicas tradicionais, ver, por exemplo, Chassey (1977), Cissé (1992), Gandolfi (2003) e Santerre (1973, 1982). 24. Sobre o problema da ausência de diplomas ver, entre outros, Botte (1990: 37-45), Brown e Hiskett (1975: 95-96) e Santerre (1973: 32-34). 25. «Son accomplissement confère un prestige considérable: il permet au pèlerin de recevoir le titre envié entre tous de hâjj (turquisé: hadji). Le porteur de la dignité de hâjj bénéficie bien sûr d’une réputation de piété, de vertu et de foi éminente: mais, plus encore, la croyance populaire considère qu’il est désormais un support des effluves spirituels, de la baraka propre aux lieux saints, qu’il est lui-même “sanctifié” dans sa présence physique» (LORY, 1996: 37). 26. Não só «chaque société utilise des titres [honorificos] particuliers, qui varient d’une région à une autre (serine, cerno, môri, karamoko, mallan...) pour désigner ses lettrés et ses savants ...» (TRIAUD, 1985: 274), como ainda, por exemplo, o título de fodé – um titulo, no passado, só atribuido após uma série de provas iniciáticas e rigorosos exames públicos sobre matéria religiosa, é, como é possível constatar no Kaabú, cada vez mais um «título popular de consolação» atribuído a uma qualquer figura religiosa local que nunca foi em peregrinação a Meca. 27. «L’accent mis sur la mémorisation du Livre, au détriment de sa compréhension, peut surprendre la rationalité occidentale. Cependant, cette récitation de la Parole est supposée affermir la foi. Il s’agit presque d’une pratique magique dont l’accomplissement est le signe d’une force que le texte en lui-même. quant á la langue qui l’exprime, l’arabe, c’est la langue de la révélation, mais sa sacralité tient tout autant aux connotations divines qu’elle sous-tend qu’au contenu de son discours. Dire, prononcer la langue de la révélation est donc aussi important que de la parler» (COULON, 1988: 91). Sobre a forma pedagógica de aprendizagem, nas escolas corânicas tradicionais, que valoriza a memorização sobre todas as outras técnicas, ver Colonna (1979, 1984), Eickelmam (1978), Fortier (1997, 2003) e Santerre (1973, 1982). 28. Não só a maioria dos letrados não domina o árabe, como ainda os que o conhecem raramente o utilizam: «un marabout, même très savant en arabe écrit, ne parlera jamais arabe. Ou bien il le parlera avec un marabout visiteur. Mais il l’évitera, en général, parce que, du fait que l’arabe est écrit, on estime que l’utiliser pour des choses triviales de la vie quotidienne, pour discuter avec sa femme, ses enfants ou ses enfants du temps qu’il fait, et des petits problèmes, c’est abaisser la langue sacrée» (PERSON, 1985: 45). 29. As únicas madrass com importância semelhante às que se encontram em outros países da região, ainda que sem atingir a importância de madrassa como as de Kaolak, Kolda e Thiés, no Senegal, Serrekunda, na Gâmbia e de Touba, no Labé (Guiné Conakry) , estão localizados em Bigine, Contuboel e Djabicunda, na Região de Bafatá, em Durambali na Região do Gabú e em Ingoré, na Região do Cacheu. As madrass de Bigine e Djabicunda são controladas por djakankas e mandingas, a de Contuboel por mandingas e as de Durambali e de Ingoré por professores fula; na actualidade, a de Djabicunda é a mais prestigiada e a que maior número de alunos prepara. 30. Sistematizações das matérias e dos seus conteúdos e das exigências para a passagem de uma matéria a outra, nos diferentes níveis de ensino das escolas corânicas tradicionais, em Botte (1990), Daun (1983, 1987), Khayar (1976) e Santerre (1973, 1982).

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31. «Parce qu’il ne prépare pas à un métier particulier, ni même à un état (...) mais à être un croyant, i.e. un homme parfait, le Kuttàb rejoint toutes les techniques d’inculcation totale qui visent la domestication du corps aussi bien que celle de l’esprit» (COLONNA, 1984: 37). 32. «The karanthe [kuttâb] was the basic educational institutional for the transmission of Islamic concepts, rituals and obligations to young people» (SKINNER, 1976: 504). 33. «L’école coranique, il faut y insister à nouveau, vise à la formation totale de l’individu, elle entend faire un homme complet, parfaitement adapté à une société dont l’islam représente le principe supérieur, la référence fondamentale» (COULON, 1988: 95-96). 34. A primeira desta escolas, na África Ocidental, terá sido criada no Ghana em 1889 (FADIGA, 1988: 173). 35. Muito embora na época fossem popularmente conhecidas como novas madrass e , no caso das mais modernizantes nas colónias francesas, como escolas franco-muçulmanas, na actualidade, um numero significativo de autores que trabalham sobre o islão na África Ocidental utiliza o termo madrass «sem mais» para designar indiferenciadamente qualquer versão deste tipo de escola e as do ensino corânico tradicional. Do meu ponto de vista, trata-se da utilização, por analogia «forçada» coma as escolas típicas do islão magrebino, de um mesmo termo – um termo derivado da palavra árabe drass, estudar – para designar escolas diferentes e que utilizado sem qualquer distinção se presta a inúmeras confusões. De facto, mesmo que a versão conservadora e arabófona destas escolas se aproxime, pelo facto da língua de ensino ser em exclusivo a árabe e do modelo de islão ser «idealmente» o árabe, das madrass típicas do islão no Magrebe – escolas com existência secular, geralmente anexas a uma mesquita e dispondo de uma tradição de professores de renome e de um corpo estável de docentes e dispensando, num quadro totalmente arabófono, todos os níveis de ensino religioso, incluindo, nas mais importantes ensino de cariz universitário, nada justifica que na África Ocidental se utilize o termo madrass «sem mais» para as designar. Na minha opinião, a verdadeira madrass, ou a madrass «sem mais», é aquela que, se situando na sequência da escola de marabout, está vinculada ao islão tradicional e como tal tem «direitos histórico» de utilização exclusiva do termo madrass «sem mais». 36. Em relação à Guiné-Bissau, para além de três tentativas infrutíferas de criação de escolas – no Quebo, em 1970, no Gabú e em Morés em 1974, não existem notícias sobre o funcionamento efectivo quer de escolas da versão modernista, quer da mais conservadora (UNICEF, 1993: 45); sobre as colónias portuguesas, as informações disponíveis apontam exclusivamente para sua existência efectiva em Moçambique, geralmente fundadas e mantidas por muçulmanos com raízes na Índia e no Paquistão e sempre de escolas da «versão» conservadora e arabófona. 37. Mamadu Fati, um antigo estudante em Meca e, por via materna, neto de Bacari Sissé, acumula as funções de director da escola com as de almami de uma nova e espaçosa mesquita em Serrekunda, construída em meados dos anos noventa com doações da Arábia Saudita e do Koweit e onde hoje em dia, em instalações anexas, funciona a escola. Mamadu Fati é também tido como um importante conselheiro do Presidente Yahya Jammeh e mesmo, segundo a imprensa gâmbiana, como o principal inspirador, nos princípios de 2002, da abortada iniciativa de Jammeh de transposição para o quadro jurídico gâmbiano de disposições da sharia ( Daily Observer, 10.04.02). Contudo, o estatuto de privilégio que os arabizantes tinham junto de Jammeh ainda em 2002 pode hoje já o não ser, como parecerem indicar noticias recentes, o mesmo: não só, em Junho 2003, Jammeh anulou a directiva do ministerio gambiano da educação que autorizava o uso nas escolas do véu muçulmano e decretou pena de prisão para todas as alunas que usem véu na escola, como ainda, num discurso pronunciado por ocasião do 9.º aniversario da sua tomada do poder, declarou que «les imans doivent prêcher dans leurs mosquées et laisser les écoles tranquillles» (Le Monde des Religions, 2003, n.º 1: 7). 38. Sobre este tipo de escola muçulmana, ver Brenner e Sanankoua (1991), Cissé (1992), Fadiga (1988), Fortier (2003), Gandolfi (2003), Khayar (1976) e Santerre (1973, 1982).

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39. As escolas de iniciativa das diferentes confissões cristãs (sobretudo as católicas no Senegal e na Guiné-Bissau e as anglicanas na Gâmbia) existem desde o tempo colonial e têm ganho nas últimas décadas grande evidência tanto quanto ao seu número, como quanto à sua capacidade de atracção de alunos oriundos das elites locais, incluindo de elites muçulmanas. Por exemplo, no caso da Guiné-Bissau, a maior escola privada – conhecida como Seminário de Bissau – é desde há alguns anos escolhida por inúmeras famílias muçulmanas como instituição de escolarização dos filhos, ainda que, como na Gâmbia e no Senegal, em muitos casos, estes sigam em paralelo o ensino religioso numa escola de marabout. 40. Nas escolas arabi o estatuto das línguas europeia é substancialmente diferente do que tinha nas suas precursoras, tanto nas da «versão» conservadora e arabizante, como nas da modernizante: ao contrario das arabizantes o ensino de línguas europeias é proporcionado, ao contrário das modernizantes o uso de línguas europeias não ultrapassa o quadro da cadeira em que ela é ensinada. Para todos os efeitos, o ensino de línguas europeias tem na escola arabi o estatuto de língua estrangeira. 41. Algumas escolas arabi são mesmo importantes beneficiários dos fundos destinados ao apoio e coordenação das escolas muçulmanas. Esta iniciativa de parceiros internacionais como o Banco Mundial, o PNUD, a UNESCO e a UNICIEF insere-se nas medidas de luta contra o analfabetismo e de promoção da escolarização decididas, em 1990, na Conferência Mundial sobre Educação para Todos de Jomtien e, em 2000, no Fórum de Dakar (GANDOLFI, 2003: 261). 42. Eram as 36 escolas registadas em 1989, 97 escolas em 1997 e 128, num universo de perto de 500 escolas, em 2001 (DABO, 2002: 47). 43. Alguns professores de escola arabi têm seguido desde 1998 cursos de reciclagem em matérias cientificas e de formação em gestão escolar. Em 2001, segundo o Independent [Banjul] (07.09.02), 14 escolas arabi receberam do Ministério da Educação subsídios na ordem dos 300-400 USD, 6 escolas entre 500 e 1. 500 USD, 2 escolas – uma em Banjul, outra em Brikama, cerca de 4.500 USD e 1 escola, em Serrekunda, perto de 10000 USD. 44. Na Guiné-Bissau a primeira a escola surgiu em 1987, na cidade de Bissau, e o reconhecimento das escolas arabi como sistema alternativo ou supletivo está em debate desde o início dos anos noventa, ainda que não tenham sido tomadas medidas concretas que, por exemplo, equiparem, para efeitos legais, o seu ensino e diplomas aos do sistema oficial ou que façam com que as escolas arabi recebam apoios estatais. Nos contactos estabelecidos entre as associações que se arrogam da tutela prática e/ou «moral» das escolas arabi e os organismos do Ministério da Educação, o essencial do debate centrava-se, nas vésperas do golpe militar de Junho de 1998, ainda na definição de curricula, na eventual interesse e oportunidade formação em língua portuguesa dos professores e na equiparação, para efeitos de admissão na função pública, de títulos académicos em estudos religiosos muçulmanos obtidos no estrangeiro. Daí para frente nunca mais o dossier «escolas arabi » esteve em discussão; aliás, a primeira, e até agora única, acção concreta implementada foi um curso de formação em língua portuguesa de professores de escolas arabi realizado, a expensas do Centro Cultural Português, em Agosto-Setembro de 1996. Segundo o até agora único levantamento feito sobre as escolas arabi na Guiné, no ano lectivo de 1992-93, o número de alunos era de 11230 alunos – 7210 rapazes, 4020 raparigas, quase o triplo do de 1990-91, 4821 alunos – 3190 rapazes, 1631 raparigas (UNICEF, 1993: 63). Sobre a situação das escolas arabi na Guiné-Bissau, ver Dias (2001). 45. Ao contrário do Senegal e da Gâmbia onde existem várias escolas que proporcionam níveis de ensino que correspondem grosso modo a todos os níveis do ensino secundário do sistema público, na Guiné-Bissau, mesmo as três ou quatro escolas arabi melhor estruturadas só ministram ainda ensino do primeiro nível (DIAS, 2001: 77). 46. Sobretudo nas aldeias e pequenas cidades muitas das escolas arabi têm uma vida efémera, ou porque não conseguem fundos – mensalidades, subsídios – para se manterem em funcionamento, ou porque se «afundam» nas «guerras» locais e nas rivalidades étnicas. Um bom exemplo desta

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situação é o caso da extinta escola arabi de Contuboel, na Guiné-Bissau: fundada em 1989 e apesar dos seus cerca de 60 alunos (2/3 fulas, 1/3 mandingas), fechou em finais do ano lectivo 1992-93 por alegada falta de professor. Segundo umas versões, o professor (fula), que tinha estudado no Koweit, foi para Bissau trabalhar como comerciante porque os pais não pagavam as mensalidades e não cumpriam as promessas de alojamento e de alimentação; segundo outras, a escola fechou devido à «guerra» – violência física e psicológica sobre os professores, represálias sobre as famílias que tinham filhos na escola – que os mais importantes professores de Corão de Contuboel, sobretudo mandingas, lhe faziam – e que fez com que a então Associação Islâmica de Contuboel e que na altura tinha passado do controle fula para o mandinga lhe tivesse retirado os apoios financeiros concedidos em anos anteriores. 47. Um bom exemplo, entre dezenas de possíveis, das consequências destes conflitos no interior das comunidades e das famílias é o que, desde há meia dúzia de anos, a propósito da legitimidade ou não de parte dos membros do can Dansó – um can [um segmento de uma linhagem vivendo na mesma aldeia] de mouros reputados, fundarem, em terrenos «históricos» dos Dansó, um novo quarteirão residencial [kunda] põe em alvoroço a aldeia de Motiba, nos arredores de Sédhiou. Para os habitantes de Motiba, o que está em jogo, muito mais do que o direito de uma parte dosDansó fundar um novo quarteirão residencial, é sobretudo o nome que o seu mentor, Bacari Dansó – antigo estudante na Arábia Saudita, professor e fundador de uma escola arabi , lhe quer dar (Dar es-Salam [literalmente, casa do islão]): a maioria dos habitantes é a da opinião de que o novo quarteirão deve ter, como manda nestes casos de cisão a tradição, o nome de Dansokunda II ou à la limite de Bacarikunda; um punhado de habitantes, independentemente do can a que pertencem, apoiam a pretensão de Bacari Dansó. O conflito, para além das violências verbais e toda a espécie golpes baixos que tem originado entre os habitantes, tem provocado frequentemente autênticas batalhas campais a propósito da tabuleta «Dar es-Salam» que Bacari Dansó e os seus apoiantes fazem, contra todo o costume local, questão de ter á entrada do quarteirão. O nível de violência destas autênticas batalhas campais tem sido de tal forma grande que não só a gendarmerie teve já de entrevir várias vezes para separar os contentores, como correm, desde 1999, no tribunal de Sédhiou diversos processos instaurados pelo ministério publico contra vários habitantes por fogo posto e tentativa de homicídio e, desde 2002, no tribunal de Zinguinchor, um por homicídio – em Março de 2002, numa dessas batalhas campais um dos mais fervorosos apoiantes de Bacari, Famora Baldé, foi morto por vários tiros de caçadeira, segundo o jornal senegalês Le Soleil (17.03.01), disparados por um membro da própria família de Famora. 48. Conceito sufi, utilizado a propósito e despropósito em toda a Senegâmbia, que literalmente significa «dom» ou «benção» particular de origem divina, fonte de qualidades sobrenaturais; a baraka pode ser transmitida a discípulos ou a descendentes [«A spiritual quality wich is transmitted by holy men or holy places; spiritual grace», BRENNER, 1984: 208]. Sobre a importância da baraka na transmissão do saber religioso no islão africano ver, para além de Brenner (1984, 1985), Décobert (1993) e Wansbrough (1978). 49. «Se os mercadores muçulmanas devem ser considerados, em muitas regiões da África Tropical, como os primeiros a abrirem caminho para a eventual expansão do Islamismo, aos homens santos e aos mestres que os acompanharam e seguiram, ou a eles próprios no exercício dessas funções, incumbiu a tarefa de consolidarem o processo de conversão religiosa. Largamente separados no espaço e no tempo, estes “activistas” do Islamismo exerceram uma influência notável nas comunidades onde se inseriram e nas quais muitas vezes casaram, tanto pelo ensino e pela prática, como pelos poderes místicos (baraka) que invocam e lhes eram atribuídos, e ainda como mediadores em assuntos seculares e religiosos, com a vantagem adicional de serem participantes de uma cultura cujos mistérios, apenas eram desvendados aos letrados» (LEWIS, 1986: 48-49). 50. A interligação com os movimentos reformadores pan-islâmicos, embora com intensidades e resultados diferentes, está inscrita desde sempre nos objectivos dos movimentos de reforma na

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Senegâmbia: foi assim aquando da reforma das confrarias, no século XIX e no início do século XX e o mesmo se passou aquando dos movimentos arabizantes antecessores dos actuais, nos anos quarenta e cinquenta. Estes últimos, nas vésperas da independência com alguma importância no Senegal, incapazes de resistirem à repressão «suave» do regime de Senghor e à concorrência de novos movimentos reformistas, entraram na década de sessenta em letargia, tendo na sua maioria antes do final da década de setenta desaparecido ou transformando-se em simples círculos de estudos islâmicos em volta de uma figura carismática; a excepção mais significativa é o movimento Al-Falah («sucesso total»), desde a sua fundação por Mahmoud Bâ, em 1956, directamente influenciado pela wahhabiyyya saudita e que, na actualidade, integra a corrente de grupúsculos islamitas que se propõem instaurar no Senegal uma república islâmica (COULON, 1984; GOMEZ-PEREZ, 1998). 51. Termo árabe, da’wa significa literalmente «apelo» e, na teologia muçulmana, «convite ao islão»; modernamente, o termo da’wa designa explicitamente uma ideologia de propaganda e de proselitismo muçulmano que propugna o regresso dos fieis do islão a um modo de vida «verdadeiramente muçulmano». Sobre os movimentos de da’wa em África ver, por exemplo, Loimeier (1997), Miran (2000), Otayek (1993) e Sanneh (1996); no caso preciso do Kaabú, ver Dias (2002).

RESUMOS

Este texto tem como objectivo principal apresentar e discutir algumas das razões que tornam, na Senegâmbia, como aliás em muitos outros contextos muçulmanos africanos, as escolas arabi, também conhecidas por «novas madrass», ao contrário das escolas corânicas tradicionais (kuttâb, madrass «clássicas»), num tipo de escola confessional muçulmana pouco consentâneo com a forma como a generalidade das populações locais islamizadas estrutura e organiza o seu saber religioso e prático-religioso.

This text presents and discusses some of the reasons behind the transformation of arabi schools in the Senegambia and other Islamic areas in Africa. On the contrary to the classic Islamic schools (kuttâb, madrass), these arabi schools tend to be converted into a type of confessional school not very much in accordance with the ways Islamised local population structure their religious knowledge and practice.

ÍNDICE

Palavras-chave: Sistema educacional, Escolas corânicas, Islão, Senegâmbia Mots-clés: système éducatif, coranique, islam, Sénégambie Keywords: education system, Koranic schools, Islam, Senegambia

AUTOR

EDUARDO COSTA DIAS Centro de Estudos Africanos/ISCTE

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«Nyaneka-Nkhumbi»: uma carapuça que não serve aos Handa, nem aos Nyaneka, nem aos Nkhumbi

Rosa Melo

NOTA DO AUTOR

Desenvolvido no âmbito de um projecto de pesquisa pós-doutoral, o presente trabalho foi elaborado com o patrocínio da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, em Portugal, da qual sou bolseira. Deixo aqui expressos os meus agradecimentos à minha família e aos amigos pelo seu solícito e incomensurável apoio nas pesquisas que deram lugar a este trabalho.

1. Introdução

1 Este artigo constitui uma reflexão sobre questões relativas à identidade étnica, focando o caso específico dos Handa. O texto apresenta os resultados preliminares de um estudo cujas motivações emergem de episódios vividos na minha adolescência e que se prendem com o termo «Nyaneka-Nkhumbi»1.

2 Ao longo do meu processo de socialização, foi-me ensinado que o grupo do qual sou originária se designa por Handa, cuja língua, o oluhanda, é falada pelos seus detentores quer nos meios rurais, quer urbanos, particularmente nas províncias da Huíla e do Namibe2. Entretanto, ao confrontar-me, através da escassa literatura existente sobre as identidades étnicas do Sul de Angola3, com o facto de os Handa serem denominados como «Nyaneka-Nkhumbi» – termo composto por nomes de dois outros grupos vizinhos e distintos entre si, a saber, os Nyaneka e os Nkhumbi – suscitou-me alguma perplexidade e curiosidade. Irrompe, daqui, a minha preocupação relativamente às razões do apelativo «Nyaneka-Nkhumbi», este completamente alheio aos Handa, assim como aos Nkhumbi e aos Nyaneka.

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3 A procura de respostas para o quesito levantado tem-me permitido acumular algum material que vem servindo de esteio às minhas argumentações. Se, por um lado, o mesmo me leva a aprofundar o meu conhecimento sobre as minhas «raízes» culturais, isto é, sobre a identidade cultural Handa, permite-me, por outro, considerar a designação «Nyaneka-Nkhumbi», primeiro, como uma (re)criação colonialista, em Angola, que se arrasta até aos dias de hoje; segundo, como um facto que, ao simplificar a complexidade cultural nesse território, impede o conhecimento das distintas identidades sociais, das suas denominações próprias, da sua história, dos seus traços culturais característicos (nomeadamente linguísticos e artísticos) e dos seus usos e costumes; e, terceiro, como um dado conducente à ideia de supremacia de uns grupos, relativamente a outros.

4 Amalgamados sob tal designação estão, para além dos Handa, dos Nyaneka e dos Nkhumbi, outros grupos identitários, como sejam os Muila, os Ngambwe e os Muso. Identitários, no sentido de que cada um deles possui características distintivas marcadas, nomeadamente, por uma estrutura específica (que mantém os seus membros ligados entre si), por uma homogeneidade de atitudes (que consciencializa os seus membros das suas semelhanças e das diferenças, relativamente aos outros), por uma especificidade organizativa, pelas suas particularidades linguísticas, pela sua dinâmica, enquanto grupo, e por um espaço no qual se desenvolvem, numa permanente interacção com os outros. Sublinhe-se, entretanto, que além de habitarem territórios adjacentes, os mesmos constituem grupos sociais aparentados quer pela via dos usos e costumes (alguns tabus observados em contextos de participação social, determinadas práticas económicas e de cura), quer pela língua, quer ainda por alguns outros traços exteriores da sua cultura, nomeadamente, o estilo de arquitectura e disposições interiores, as formas artísticas e o estilo indumentar. Não obstante, no contexto rural, é ainda hoje possível distingui-los, com alguma precisão, a partir de elementos como a língua, o toucado e o estilo ornamental do corpo.

5 Por uma série de razões, desde a procura de outras condições de vida até às deslocações forçadas pela guerra civil no país, qualquer um dos grupos mencionados ultrapassa os limites dos espaços rurais para se estender, igualmente, a zonas urbanas. Aqui, em contacto estreito com culturas locais e não só, as suas referências culturais vão-se transformando. Melhor dito, alguns dos seus membros vão sendo aculturados. Nos novos contextos em que se vão integrando são postos em evidência novas referências e novos valores que são, paulatinamente, assimilados. De facto, registam-se, no contexto mencionado, alterações substanciais no seu modo de agir e de pensar, no desempenho dos seus rituais, no estilo indumentar e na arte de pentear4; alterações marcadas por uma uniformização dos usos e costumes, tendentes a uma ocidentalização comportamental e cultural. Aponte-se, como exemplo, a existência, em contextos urbanos, de um grupo considerável de pessoas a viverem e a falarem o português; pessoas que, além de terem o português como língua materna, se vestem à europeia, sendo ou não intelectuais, e não seguem os preceitos tradicionais da cultura de origem; gente que, falando mal ou bem o português, não sabe sequer falar a língua dos seus grupos de origem e desconhece a que grupo pertence; indivíduos que além de não saberem falar a língua de origem menosprezam-na, valorizando as línguas ocidentais, nomeadamente o português, o francês e o inglês; enfim, pessoas que vivem no centro de uma confluência de culturas (por um lado as ocidentais, maioritariamente portuguesa) e por outro as tradicionais locais) e de religiões (as ditas tradicionais, que envolvem o culto aos espíritos ancestrais, as chamadas universais, nomeadamente a Católica, e também as sincréticas)5.

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6 Com efeito, nesta análise, a minha atenção recai, mormente, sobre algumas das particularidades culturais dos Handa e dos aspectos que, distinguindo-os dos grupos vizinhos, marcam a sua identidade – um aspecto social particularmente forte (cf. Stevens 1983) que, na opnião de Richard Jenkins, constitui «always a dialectic between similarity and difference» (JENKINS, 1997: 13). Todavia, neste artigo, a identidade não é tomada apenas na perspectiva das oposições e relatividades. Ela é aqui também entendida:

7 (i) como a identificação do indivíduo com uma determinada colectividade culturalmente definida;

8 (ii) como a consciência que um indivíduo possui de pertencer a uma comunidade cultural particular6 (cf. HUTCHINSON & SMITH, 1996);

9 (iii) como algo (sejam atributo, coisa ou entidade) que um indivíduo ou um grupo de indivíduos traz em si mesmo ou faz de si mesmo e que está sujeito a desenvolver-se ou a perder-se (cf. TONKIN et al., 1996).

10 Daí destacar os traços nos quais se evidenciam semelhanças dos Handa com os demais grupos vizinhos, bem como os aspectos manifestos pelos próprios Handa para se distinguirem e se categorizarem como grupo.

11 Algumas vezes amplo, outras vezes mais estreito, o sentido de identidade, peculiar a todas as sociedades (cf. Luc de HEUSH, 2001), está igualmente presente nas diferentes comunidades africanas (cf. HASTINGS, 1997), razão porque se distinguem umas das outras. Não obstante, a identidade, e no caso particular deste estudo, a identidade étnica está longe de ser estanque, imutável. Como um produto social – que tem como pressuposto uma comunidade de aspectos que vai desde a língua aos costumes, passando pelos ancestrais, origens e mitos – a identidade étnica é algo de flexível e dinâmico, processual e histórico (cf. STEVENS, 1983; HASTINGS, 1997; Luc de HEUSH, 2000). E, embora vivida como algo «natural» pelos que nela nascem, ela pode alterar-se em função de diversos factores, nomeadamente a colonização, a guerra, a migração, a política e o intercâmbio cultural entre grupos vizinhos.

12 Referi, já, que a língua, bem como determinadas práticas sociais e culturais dos Handa, Muila, Nkhumbi, Nyaneka e Ngambwe, entre outros grupos, fornecem, ainda hoje, evidências de singularidade e, no final, de identidade dos mesmos. Não obstante, é sobretudo na consciência étnica que coloco a tónica para discutir a identidade dos vahanda, dado o incremento da estandardização comportamental em curso, nas zonas urbanas, por força da aculturação.

2. Breves considerações conceptuais

13 As questões de etnicidade7 mereceram particular destaque dos investigadores sociais, por volta dos anos oitenta e noventa do século XX. Mas já desde a década de sessenta que a Antropologia Social se ocupa delas, com alguma notoriedade. Não obstante despertar o interesse pela análise da forma como as pessoas definem as suas relações étnicas ou as percepcionam, a abordagem desta disciplina científica tem facilitado a compreensão daquilo que as pessoas pensam e falam de si mesmas, do grupo de que fazem parte e dos outros; tem permitido clarificar o significado que as pessoas atribuem ao facto de se ser membro de um grupo social determinado e tem dado a observar as semelhanças e dissemelhanças existentes entre os diversos grupos identitários (cf. ERIKSEN. 1993).

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14 Hodiernamente, é comum o uso de expressões como etnia, guerras étnicas, grupos étnicos e etnicidade; não tanto por constituírem uma preocupação exclusiva das ciências sociais, mas, particularmente, pela acção difusiva dos meios de comunicação massiva. A razão disto pode, quiçá, explicar-se, pelo facto de o fenómeno étnico, outrora «encapotado», no ocidente, estar agora desprovido de camuflagem, revelando-se, ele mesmo, como um elemento presente nas relações sociais, em contextos ocidentais8. Mas, pode também explicar-se, pelas mudanças geopolíticas pós-coloniais – facto que terá proporcionado aos não ocidentais um conhecimento, relativamente mais amplo, do «outro» (ocidental); pela convivência, mais ou menos prolongada, dos não ocidentais na Europa, conforme sejam estudantes, imigrantes, diplomatas, turistas, beneficiários de juntas médicas; pelo seu grau de desenvolvimento intelectual, granjeado quer no ocidente, quer nos seus respectivos países; pelos cruzamentos inter-culturais e inter-raciais efectuados, por via do matrimónio, sobretudo fora dos territórios não ocidentais.

15 Etnia é um termo derivado do grego «ethnos» para designar povo, nação, equivalendo, este último, à tribo9 (cf. AMSELLE, 1985; TAYLOR, 1991; CASHMORE, [1984] 1996; TONKIN et al., 1996; HUTCHINSON & SMITH, 1996). Durante muito tempo, foi de uso exclusivamente eclesiástico. Neste contexto, e por oposição aos cristãos, o termo designava os povos pagãos ou gentios que eram chamados de nações e povos, na linguagem secular (cf. TAYLOR, 1991 e HUTCHINSON & SMITH, 1996). Passou, posteriormente, a ser usado pelos colonizadores, para classificar sociedades africanas, ameríndias e asiáticas, isto é, sociedades com características específicas: diferentes e «inferiores» às europeias, «sem história», pré-industriais (cf. AMSELLE, 1985), «arcaicas», «não civilizadas». Ou seja, respondendo às exigências do enquadramento administrativo e intelectual do processo colonial (cf. TAYLOR, 1991), o vocábulo etnia passa a incorporar uma outra dinâmica, ao ser usado para identificar as populações conquistadas e «pô-las no seu devido lugar» (TAYLOR, 1991: 242); para as fraccionar e as fixar numa definição homogénea de território e cultura (cf. AMSELLE, 1985); e para denegrir os sistemas e as instituições tradicionais.

16 Uma consequência desta situação é a desarticulação das relações entre sociedades locais, bem como a constituição de grupos identitários, anteriormente inexistentes. No caso de Angola, por exemplo, até as denominações socialmente construídas e que emergiram do contacto que os diversos grupos étnicos estabeleciam entre si, como ovanano10 («os de cima») e ovakwamatwi11 («os de orelhas grandes» ou «os de ouvidos aguçados») foram tomadas pelos europeus como denominações próprias, constando algumas delas nos mapas etnográficos12.

17 Tal como hoje se apresenta, no contexto científico, o termo etnia designa um dado conjunto de pessoas caracterizado por uma unidade linguística, cultural (por exemplo religião e costumes) e territorial13 (cf. AMSELLE, 1985 e TAYLOR, 1991); um conjunto no qual as pessoas partilham, ainda que latentemente, uma origem, memórias históricas, valores, interesses e experiências comuns (cf. CASHMORE, 1996); se auto-identificam e são identificadas pelos outros através de um nome; formam um grupo de interacção e comunicação; manifestam uma consciência de pertença comum e reclamam uma unicidade de descendência. Como exemplos de grupos assim constituídos estão, nas províncias da Huila e do Namibe (sobre as quais versa este estudo), os Muila, os Nkhumbi, os Ngambwe, os Ndongwena e os Nyaneka, distintos entre si, mas agrupados sob a designação comum e estereotipada de «Nyaneka-Nkhumbi».

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18 Retenha-se, contudo, que não obstante o conteúdo da sua definição, as «etnias» não se mantêm isoladas umas das outras. Elas estabelecem, entre si, diversos tipos de relações, emergindo algumas delas de atribuições de estatutos étnicos14. Por conseguinte, as distinções étnicas não dependem da ausência de mobilidade, de contacto, de informação, de interacção social e de aceitação. Elas podem persistir, não obstante o contacto e a interdependência (cf. BARTH, 1981). Nesta conformidade, optei, neste estudo, pelo uso da expressão «grupo étnico», em vez de «etnia». Não só por ser, hodiernamente, mais usada, mas também por sugerir, ela mesma, a existência de contactos e interrelacionamentos (cf. ERIKSON, 1993; BARTH, 1996), afastando hipóteses de isolamento dos grupos em causa.

19 As mais diversas sociedades africanas possuem vocábulos e noções próprias de identidade e de grupo (cf. AMSELLE, 1985). A noção shiya, que entre os bambaramalinke corresponde a raça e a grupo étnico (cf. AMSELLE, 1985), é um exemplo revelador de tal facto. À semelhança dos bambara-malinke, constatam-se, entre os Handa, exemplos reveladores de existência destes termos que, além de os definir, enquanto grupo, os distingue dos demais. Neste grupo, o vocábulo «eanda» (ou omaanda, no plural) designa o conjunto de denominações de origem vegetal ou animal que caracteriza a pertença de um indivíduo a um determinado grupo de pessoas aparentadas por via de um animal ou de uma planta, usados como símbolos identitários.

20 Ou seja, sob a ideia de possuírem uma descendência comum, determinado grupo de pessoas manifesta a sua pertença a uma dada eanda. Ligadas pela mesma eanda, as pessoas estreitam laços entre si, comungam das responsabilidades inerentes a esses laços, asseguram a sua mobilidade, liberdade e condição social, reforçam a sua condição enquanto pessoas, partilham os mitos de origem da eanda e da relação entre as omaanda (plural de eanda) e mitigam as consequências provenientes de condições sociais adversas, como a penúria.

21 Do mesmo modo, conceitos como ombunda15, exprimem a noção de consanguinidade ou a pertença de um grupo de indivíduos à linhagem materna. A ideia de grupo identitário com uma mesma referência territorial, com os mesmos valores, usos e costumes, com a mesma descendência e consciência de pertença ao grupo está subjacente no termo omuhanda ou muhanda (dos Handa), onde o prefixo «omu» ou «mu» exprime a ideia de ser, de pertencer16.

22 Apesar da importância que se atribui à partilha cultural, nos estudos sobre etnicidade, resulta mais significativo, no presente trabalho, considerá-la mais como um resultado ou uma implicação, como sugere Fredrik Barth, do que como uma característica essencial da organização dos grupos étnicos (cf. BARTH, 1981). De contrário, assegura o autor, a classificação de pessoas como membros de um grupo étnico fica circunscrita aos traços particulares que os mesmos exibem, expõem e podem ser objectivamente julgados pelos outros, vinculando «a prejudged view-point both on (...) the nature of continuity in time of such units and (...) the locus of the factors which determine the form of the units» (BARTH, 1981: 201).

23 A reflectirem o meio ecológico ou as circunstâncias externas nas quais os grupos se instalaram (cf. BARTH, 1981), é natural que alguns dos traços culturais de grupos vizinhos como os Handa, os Nkhumbi, os Muila, os Ngambwe e outros sejam semelhantes e até se confundam. Entretanto, para abordar a questão da identidade étnica de qualquer destes grupos é arriscado, insuficiente e tendencioso centrar a atenção apenas nos efeitos das circunstâncias ecológicas sobre o comportamento dos seus membros.

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24 Os membros de cada um dos grupos, à excepção, no maior das vezes, daqueles que estão fora do seu meio de origem, ressaltam os seus valores fundamentais (como a sujeição aos rituais, a reciprocidade e o espírito de camaradagem e de grupo) e exibem sinais exteriores, como o estilo do penteado, das tatuagens e da limagem dos dentes (postulados como emblemas exteriores cf. ROOSENS, 1989) que os identificam (como membros de um determinado grupo, classe etária ou género) e os diferenciam. Como membros de uma cultura, estão em constante interacção entre si e com os outros, facto que impõe certas mudanças, nomeadamente comportamentais, indumentares, ideológicas e linguísticas. Com efeito, independentemente do status social, do lugar que habitem, das práticas que desenvolvam e dos traços culturais que apresentem é importante considerar o seu sentimento e consciência de pertença, bem como os limites subjectivos e auto-construídos que os permitem identificar-se e distinguir-se dos outros. Neste contexto, os etnónimos com os quais os mesmos se autoidentificam, bem como as suas noções de identidade e de grupo possuem particular relevância.

25 Não obstante, em África, nem sempre tais elementos, a saber, a consciência étnica dos actores sociais, a sua ideologia de grupo, os etnónimos auto-atribuídos, bem como os limites elaborados de separação e distinção, foram tidos em consideração pelos estudiosos e pelas entidades coloniais, na classificação étnica dos grupos encontrados. Motivados, nalguns casos, por uma ideologia colonial (de superioridade da raça branca, de imposição dos interesses coloniais, de assimilação das populações encontradas (cf. DINIZ, 1924; REBELO, 1971; HENRIQUES, 1997) ou partindo de pontos de vista preconceituosos sobre as populações africanas (como o de serem feiticistas e indolentes) e, noutros casos, valendo- se apenas da observação das práticas sociais dos actores sociais influenciados pelas circunstâncias ambientais, os agentes coloniais criaram ex nihilo identidades étnicas (como é o caso dos «Bété» da Côte d’Ivoire, cf. AMSELLE, 1985), redistribuíram os espaços territoriais, transpuseram a semântica dos etnónimos usados pelos próprios grupos (por exemplo, humbi, em vez de nkhumbi17), desarticularam relações entre as sociedades locais e transformaram topónimos em identidades étnicas. As reflexões que se seguem mostram outros exemplos da extensão deste fenómeno, em Angola.

3. Aspectos estruturais dos Handa como grupo social

26 Grande parte da população angolana é composta por inúmeros grupos étnicos Bantu e não Bantu. Os Bantu constituem o seu maior contingente, e para além dos Handa, dos Nyaneka, dos Helelo, dos Nkhumbi e dos Muila, existem outros, igualmente Bantu, como os Bakongo, os , os Cokwe, os e os Ngangela. Os não Bantu são constituídos pelos Bochimanes e pelos Kwisi que, embora reduzidos em número (cf. VASCONCELLOS, [1896] 1903), parecem ser, efectivamente, os autóctones. Porquanto, já aí habitavam aquando da invasão dos Bantu, tendo sido molestados tanto por estes, como pelos europeus no decurso da penetração portuguesa, em Angola (cf. ESTERMANN, 1983).

27 Tal como sucedeu noutras regiões de África e, particularmente, de Angola, os Bantu que habitam a região Sul deste país também se fraccionaram em diversos grupos étnicos que se distinguem entre si pela sua indumentária, pela língua, pelas suas formas artísticas, pelo toucado, pelos sinais infligidos no corpo, pelos etnónimos e pelas manifestações de consciência identitária. São eles os Handa, os Nkhumbi, os Muila, os Nyaneka, entre outros. Não obstante, torna-se, ainda assim, bastante difícil delimitar e caracterizar todos

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os grupos aí existentes – alguns dos quais já em vias de extinção – sobretudo tendo em conta a escassez de estudos sobre a etnografia de Angola (cf. ESTERMANN, 1983).

28 Os Handa (ou vahanda), grupo étnico em estudo, ocupam uma área territorial que vai desde o Noroeste de Cipungu, passando por Kakula, com prolongamentos espaciais interruptos até à região da Lola; estendem-se, igualmente, até Kamukuiyu, com prolongamentos também a Oeste de Congoloi; e, desde a sede administrativa de Cipungu, confinam com a área ocupada pelos Nyaneka (cf. ESTERMANN, 1957). Todo este espaço territorial constitui a área tradicional dos Handa – abrangida pela actual província da Huila e por uma pequena parte da província do Namibe – uma área extensamente rural, onde os seus traços culturais se mantêm ainda conservados, relativamente aos meios urbanos, e de onde partiram vários dos seus membros para outros pontos do país.

29 Apoiados no critério geográfico (o que se depreende das denominações usadas na caracterização do grupo), estudiosos como Carlos Estermann discriminaram os vahanda em pequenos grupos, nomeadamente Handa da Mupa, Handa de Cipungu e Cilenge Handa (ou Cilenge Humbi). Entretanto, pautada em termos de localidade, uma tal individualização – quiçá substanciada em noções preconceituosas da época, de que os africanos se identificam com as «tribos» e são naturalmente tribais18 (cf. ATKINSON, 1994) – retira, em minha opinião, a natureza unitária do grupo étnico em questão, ao mesmo tempo que convoca os actores sociais em causa à perda da sua coesão, enquanto grupo. Aliás, independentemente das zonas, onde se localizem as famílias Handa (seja em Cilenge, em Kakula ou em Cipungu19), constata-se que elas expressam a identidade e a integralidade do grupo através dos etnónimos auto-impostos aos grupos de pertença, da partilha da mesma língua, dos usos e costumes, das tradições, da organização político- social, dos símbolos identitários (como a tatuagem, a limagem dos dentes, a indumentária, os penteados e outros) e de determinados estereótipos (visando, por exemplo, a sistematização comportamental dos membros do grupo); e, acima de tudo, através da manifestação do sentimento identitário e da consciência de pertença ao grupo. Daí a razão por que tomo os vahanda na sua globalidade, isto é, não me limitando ao modo como se dispõem no espaço geográfico, mas identificando, essencialmente, as suas particularidades sociais e culturais, bem como as manifestações endogénicas (como o próprio sentimento) de ordem identitária.

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Esboço de localização e de distribuição dos Handa no meio rural

30 Por influência da colonização, muitos termos e noções coloniais foram introduzidos, no quotidiano das pessoas implicadas, usando-se, hodiernamente, entre os próprios Handa, termos como «ovacipungu» ou «ovacilenge» para mencionarem os indivíduos ou famílias, conforme se localizem nos municípios de Cipungu ou de Cilenge, respectivamente. Não obstante a tónica destes termos assentar na localização, consideram que os mesmos são usados sem prejuízo da integridade do grupo e do sentimento de pertença dos seus membros. Estes sentem-se e identificam-se, em primeiro lugar, como vahanda, antes de serem vacilenge ou vacipungu. Aliás, se o termo vacilenge designa os de Cilenge, convém notar que o município de Cilenge, para além de acomodar os vahanda, alberga também pessoas de outros grupos étnicos, como os Muso e os Umbundu. O mesmo acontece com o município de Cipungu, onde os Handa partilham o território, por exemplo, com os Nyaneka.

31 Com efeito, os vocábulos «olucipungu» e «olucilenge», comummente usados para discriminar linguisticamente os vahanda entre si, conforme se localizem em Cipungu ou em Cilenge, respectivamente, não designam uma língua, como tal. Constituem designativos de variações linguísticas do oluhanda e derivam não de formações identitárias em si (como é o termo oluhanda), mas sim de topónimos (Cipungu e Cilenge). Além de revelarem a existência de inter-relações dos Handa com grupos vizinhos, em diferentes contextos sociais (como nas práticas comerciais) e geográficos dos quais emergem, tais variações linguísticas revelam a existência de fluidez no oluhanda, o que vem a sublinhar a noção de flexibilidade quer das línguas (particularmente as não escritas) quer dos contornos dos grupos étnicos.

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4. «Nyaneka-Nkhumbi», uma identidade forjada

4.1. Os grupos incorporados nessa designação

32 Como já foi mencionado, o espaço angolano alberga uma vasta multiplicidade de grupos étnicos. Só a circundar o grosso do efectivo dos Handa encontram-se os Nkhumbi, no extremo Sul Oriental, os Ngambwe e Muila, na parte Sul e Ocidental, respectivamente, os Cilenge Muso, na região Norte e Ocidental e os Umbundu e Ngangela, a Norte e Nordeste, respectivamente. Entretanto, nessa região austral do país, estes não são os únicos grupos existentes. Localizam-se, igualmente, os Ndimba, os Kwanyama e os Kuvale, entre outros grupos.

33 Perante tamanha complexidade e diversidade cultural; diante da imensidão do país (Angola); envoltos em preconceitos coloniais de discriminação dos africanos; e confrontados com o sonho de se enriquecerem, de dominarem as populações encontradas (HENRIQUES, 1997), de as assimilar (cf. DINIS, 1924) e de as civilizar, os agentes coloniais executaram estratégias para a prossecução dos projectos coloniais. Tais estratégias passavam, não só, pelo conhecimento dos grupos locais, isto é, pelo domínio da língua, dos usos e costumes e dos seus sistemas de autoridade (cf. HENRIQUES, 1997), mas também por destruir as grandes chefaturas, por enfraquecer as unidades políticas e reconstruí-las a seu modo (cf. CLARENCE-SMITH, 1989), por submeter as populações à autoridade colonial, por puni-las em caso de recusa, por determinar diferentes formas de acesso das mesmas aos recursos, por potenciar querelas entre os grupos étnicos, por acentuar diferenças entre eles, por conotá-los com noções preconceituosas, como tribos e etnias. É neste contexto que estudiosos e agentes coloniais agruparam diferentes grupos étnicos em conjuntos mais amplos, os quais foram designados como grupos etnolinguísticos. Mas, isto foi delineado em detrimento das identidades próprias dos grupos em causa, da significação emocional que elas têm para os seus membros, dos sentimentos e do conhecimento de pertença manifestos pelos indivíduos a determinados grupos étnicos.

34 Embora factores como a vizinhança, a economia, os traços da cultura material e o modo de organização do sistema social possam ter sido tomados em linha de conta na classificação da população angolana, o factor linguístico, conforme se depreende do Atlas de Portugal Ultramarino, editado pelo Ministério das Colónias em 1948, terá sido o critério fundamental para o estudo e a classificação da população angolana. Emergem daqui os designados «Nyaneka-Nkhumbi», os «Lunda-Cokwe», os «Helelo», os «Ovambo», entre outros, cada um dos quais envolvendo um número variado de grupos étnicos20.

35 No que diz respeito à composição dos «Nyaneka-Nkhumbi», observam-se algumas discrepâncias, nas opiniões de autores como, José Redinha, Carlos Estermann e Mário Milheiros21. Enquanto José Redinha classifica os «Nyaneka-Nkhumbi» como um conjunto que integra os Muila, os Ngambwe, os Nkhumbi, os Ndongwena, os Hinga, os Kwankwa, os Handa da Mupa, os Handa de Cipungu, os Cipungu e os Cilenge Humbi (cf. REDINHA ,1962: 18), Carlos Estermann considera que sob o mencionado apelativo estão associados dois ramos populacionais distintos, a saber, os Nyaneka e os Nkhumbi. No seu entender, os Nyaneka abrangem os Muila e os Ngambwe, enquanto que os Nkhumbi encerram grupos mais diversificados como os Ndongwena, os Hinga, os Khwankhwa, os Handa da Mupa, os

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Handa do Cipungu, os Cipungu, os Cilenge Humbi e os Cilenge Muso (cf. ESTERMANN, 1957 e 1983).

36 Outros estudiosos como Mário Milheiros também se referem à composição dos «Nyaneka- Nkhumbi», nos seus trabalhos (cf. MILHEIROS, 1967). Contudo, muitas dessas referências ou não fogem grandemente do estabelecido por Carlos Estermann, exceptuando algumas diferenças gráficas ou, como faz Mendes Corrêa, apoiado nos resultados do censo de 1940, distinguem os Nkhumbi como um grupo composto por quatro pequenos grupos: os ovankhumbi, ovahanda, ovakapelongo e ovamulondo (cf. CORRÊA, 1943). De notar que o esboço linguístico contido na obra intitulada Agronomia Angolana, publicada em 1953, separa os Lunyaneka (Nyaneka) dos Lukumbi (Nkhumbi) e incorpora, nos primeiros, os Muila, os Gambwe (Ngambwe) e Tylengue–muso (Cilenge Muso) e, nos últimos, os Nkumbi (Nkhumbi), os Donguana (Ndongwena), os Hinga, os Mulondo, os Handa, os Tyipingo (Cipungu) e os Tyilengue-humbi (Cilenge Humbi).

37 Não obstante, constata-se que hodiernamente, em Angola, constitui prática corrente o uso comum das designações dos grupos etno-linguísticos para se referir aos grupos étnicos, ou (como explicitarei mais adiante), a atribuição da língua de um grupo étnico ao grupo etno-linguístico22. Ou seja, denotam-se equívocos que levam a confundir grupos étnicos com grupos etno-linguísticos. Alguns desses equívocos são manifestos, por exemplo, durante as missas, em diversas paróquias das províncias da Huila e Namibe. Nestes locais, é frequente os missionários católicos anunciarem o processamento das leituras das homilias ou das epístolas, em língua dita «Nyaneka-Nkhumbi».

38 Outros equívocos constatam-se no empreendimento de programas radiofónicos, por exemplo, na província do Namibe, em língua dita «Nyaneka-Nkhumbi». Outros, ainda, levaram em 2000, à criação, no Lubango, de uma associação cívica e eclesiástica, não governamental, apartidária, independente e de carácter humanitário – a Associação Nyaneka-Nkhumbi (cf. S.A. 2002).

39 A origem da ambiguidade quer terminológica («Nyaneka-Nkhumbi»), quer de conteúdo (composição), bem como das discrepâncias, já mencionadas, entre os autores, poderá estar na complexidade da cultura de cada um dos grupos étnicos em causa; na falta de uniformidade no estabelecimento dos elementos de classificação dos grupos mencionados; no menosprezo, da parte dos estudiosos, dos sentimentos identitários manifestos pelos membros desses grupos; na ignorância das línguas dos referidos grupos ou na falta de conhecimento profundo e de precisão, dos estudiosos, na apreensão dos traços culturais que os caracterizam, bem como na falha de selecção ou na aplicação dos critérios usados para a definição do perfil de cada um deles23.

40 Refira-se, entretanto, que embora nas missas e em certos programas radiofónicos se anuncie o «Nyaneka-Nkhumbi» como língua de leitura das epístolas e de trabalho, respectivamente, na prática, a realidade discursiva revela-se de modo diferente. Ou melhor, o uso da palavra é, na realidade, feito ou em Olunyaneka (língua dos Nyaneka) ou em Olunkhumbi (língua dos Nkhumbi) ou em Oluhanda (língua dos Handa), o que traduz, enfim, um paradoxo.

41 Relativamente à Associação Nyaneka-Nkhumbi, note-se que ela é constituída por pessoas originárias de grupos étnicos distintos, embora integrados nos designados «Nyaneka- Nkhumbi»24. Não obstante pugnarem por uma identidade única dita «Nyaneka-Nkhumbi», quando confrontados, nomeadamente, com a disparidade das suas identidades étnicas, bem como com a diversidade das línguas correspondentes, muitas dessas pessoas acabam

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por reconhecer a diversidade de identidades de que se caracteriza o grupo mencionado. Contudo, procuram (umas de forma consciente e outras por indução) transpor esses limites étnicos, apelando para os «Nyaneka-Nkhumbi» como uma identidade mais ampla, mais abrangente e pretensamente unificadora.

42 Conforme sugestão de um dos meus interlocutores (membro fundador da associação mencionada), sob a designação «Nyaneka-Nkhumbi» prende-se o desejo inequívoco dos membros da associação de fortalecimento e crescimento dos grupos abrangidos por esta denominação25, independentemente das razões que estejam por detrás da mesma. Isto, com vista a contornar a dispersão e fechamento desses grupos, a evitar a sua sujeição ao isolamento, à alheação e ao desconhecimento (como ainda se observa e se observou durante o período colonial), a fugir da discriminação étnica, a posicionar-se em igualdade de circunstâncias com os demais grupos, na relação entre si, nas reivindicações sociais, políticas e económicas, no país, e a obter, como os outros, iguais benefícios, no espaço angolano. «Se alguém clamar só pela língua ou pela cultura Nyaneka perde porque os Nyaneka são poucos. Se o fizer só pelos vankhumbi ou pelos vahanda também perde porque são grupos pequenos. Sózinhos não têm força. O mellhor é estarmos unidos, aliás, a cultura desses grupos é muito parecida. Apesar das diferenças, mais vale falarmos de língua e cultura Nyaneka-Nkhumbi, o que nos torna mais fortes em termos de número e de extensão territorial. Se, por um lado, essa unidade dá peso às nossas reivindicações permite-nos, por outro lado, fazer frente a grupos grandes como os ovimbundu e outros» (A.T., entrevista, 2003).

43 A acção dos membros da associação supra-mencionada manifesta-se, por exemplo, nas celebrações ditas de efuko26 no seio da Igreja Católica (nas províncias da Huíla e do Namibe). Tem, igualmente, sido expressa nas discussões relativas à implementação do ensino das línguas nacionais de Angola nas escolas.

4.2. Particularidades da língua

44 A língua é um factor importante de formação e manifestação de identidade. Além de veículo de comunicação, de expressão e de conceptualização, ela é um factor de distinção étnica e símbolo de etnicidade (cf. HAMESO, 1997; HASTINGS, 1997). No caso em análise, o factor linguístico, pelas suas características (típicas das línguas Bantu), fornece importantes pontos de convergência entre os Handa, Nkhumbi, Muila, Ngambwe e Nyaneka. No entanto, a língua de cada um dos grupos mencionados revela, por si mesma, simultaneamente, uma certa disparidade entre si. Enquanto os primeiros falam o oluhanda, os outros falam, respectivamente, o olunkhumbi, o olumuila, o olungambwe e o olunyaneka, sendo estas auto-denominações linguísticas dos mesmos expressas no seu quotidiano.

45 Com diferentes graus de variabilidade, note-se que tal semelhança e dissemelhança, patente na cultura dos grupos referenciados, se estende, igualmente, na de outros grupos dispersos no país. Ou seja, além de estarem assentes nas línguas supra designadas, as afinidades e as diferenças mencionadas repercutem-se, do mesmo modo, noutras línguas, igualmente Bantu, faladas noutras regiões do país (por exemplo, o ibinda e o umbundu) e não só. Essa complexidade funcional das línguas faladas pelos grupos designados explica- se pelo enredo de que se caracterizam as suas relações históricas, políticas, culturais e económicas, desde os tempos mais recuados. Ou seja, não obstante existirem afinidades linguísticas entre o oluhanda e, por exemplo, o olumuila, ou entre aquele e o olunyaneka,

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essas línguas não são uma e mesma coisa. Cada uma delas emerge de um espaço étnico particular, ou seja de um «ethnic home» (como diria Seyoum Hameso) diferenciado: «Just like the ethnic homes of English, French, Russian and chinese languages are England, France, Russia and China, so African languages accupy their own ethnic space» (HAMESO, 1997: 24).

46 Constituindo os Handa, os Nkhumbi, os Muila, os Ngambwe e os Nyaneka identidades étnicas distintas e, de certo modo27, demarcadas cultural e territorialmente, cada uma delas toma a língua do outro como estrangeira e alheia. Qualquer manifestação de unicidade ou homogeneidade é sentida como um absurdo, particularmente pelos mais velhos, causando algum desconforto e perplexidade ao serem confrontados directamente com essas classificações.

4.3. Traços identitários ainda visíveis, pela observação

47 Não obstante habitarem territórios adjacentes, entre os grupos integrados nos «Nyaneka- Nkhumbi» percebem-se, além das diferenças linguísticas, de sentimentos e de consciência de pertença, outras dissemelhanças, designadamente, no seu agir social; em determinados traços exteriores como a indumentária, os penteados28 e os tipos de tatuagem; na forma de realização dos rituais; enfim, em muitos outros traços reveladores da sua cultura e da sua identidade, enquanto grupo. Um exemplo revelador dessas diferenças é a existência de ombelo29, entre os vahanda, inerente à prossecução de rituais de iniciação feminina. O ombelo é um elemento ausente nos grupos vizinhos como os Muila, Nkhumbi e Nyaneka.

48 Um outro exemplo merecedor de destaque prende-se com o ocoto – um lugar destinado ao homem como chefe de família. Está situado no recinto do conjunto residencial, ao ar livre, isto é, sem cobertura. É neste lugar que, entre os Handa, o mwene weumbo30 chefia e preside às mais diversas cerimónias tradicionais. Enquanto os Handa constroem o ocoto, usando troncos de árvore em forma de U e direccionando a abertura deste para o nascente do Sol, os Muila, Nyaneka e Ngambwe constróem-no de pedra, havendo elementos adicionais e simbolismos particulares que o diferenciam igualmente, do ocoto dos Handa31. Os Muso, por exemplo, também constroem o seu ocoto de pedra e, ao contrário dos Handa, o mesmo está voltado para o poente, simbolizando a relação que estabelecem com as suas origens.

4.4. O sentimento identitário impõe limites

49 Outro aspecto a considerar nesta análise, e que marca a individualidade de cada um dos grupos mencionados, é o sentimento manifesto pelas pessoas de pertencerem ou não a este ou àquele grupo. Um tal sentimento, o de pertença étnica, existe na mente dos indivíduos que se revêem como membros de um determinado grupo. Aliás, só assim se pode entender a manifestação de pertença ao grupo por parte de indivíduos que, sem saberem falar a sua língua de origem, habitam em zonas urbanas, são letrados e falam línguas estrangeiras; são europeizados e não cumprem com os preceitos tradicionais.

50 O sentimento étnico e a consciência de pertença étnica são elementos que hodiernamente permitem, mais do que outros, distinguir mais desembaraçadamente um muhanda universitário de um munkhumbi do mesmo nível académico, exceptuando, às vezes, quando existem sotaques – impostos pelos resquícios da influência da língua de origem. Mas, é mais factível a distinção entre um muhanda e um munkhumbi rurais (nomeadamente pela indumentária, pelos penteados, pelas tatuagens e pela língua) do

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que urbanos, no seio dos quais, motivado por uma série de factores, o esbatimento dos traços culturais é cada vez mais acentuado.

51 Não é raro um muhanda rural conhecer os limites e as marcas da sua identidade e sentir- se diferente dos ovamuila, dos ovankhumbi e dos ovanyaneka. Contudo, na perspectiva de Fredrik Barth, os estranhos ao grupo podem detectar nele mais semelhanças com os grupos vizinhos mencionados do que ele próprio é capaz de perceber (cf. BARTH, 1981). Note-se, entretanto, que mesmo quando um muhanda percebe que é diferente de um outro muhanda, não obstante possuírem a mesma identidade social, sente-se mais parecido com este do que com um Muila ou Nyaneka. De entre as várias razões está o sentimento étnico que faz deles vahanda. É este sentimento identitário que leva determinadas pessoas, nos meios urbanos (onde a confrontação étnica é mais notória e os indivíduos estão mais à mercê das influências dos meios de comunicação massiva e das escolas), a questionarem a essência da expressão «Nyaneka-Nkhumbi», a rejeitarem o termo quando se auto- identificam e, inclusivamente, a sentirem-se intrigados com o mesmo. Algumas delas acabam por tomá-la como insultuosa, por considerarem que ela posterga as demais identidades nela integradas; outras, têm-na como uma tentativa de opor e subjugar grupos sociais, colocando-se os Nyaneka e os Nkhumbi em posição de destaque, relativamente aos Handa, Muila, Ngambwe, etc.; e outras ainda, tentam encontrar, por si mesmas, uma resposta para a justificação do termo32.

5. «Nyaneka-Nkhumbi», uma «carapuça» que não serve aos Handa, nem aos Nyaneka, nem aos Nkhumbi

52 Referi, nas linhas acima, que é ainda hoje observável, em Angola, uma confusão relativamente ao termo «Nyaneka-Nkhumbi». O facto de não ter havido interesse notável quer da administração colonial, quer dos estudiosos já mencionados em corrigir ou retrabalhar a problemática emergente deste conceito ou afins, incluindo o repensar e a reelaboração dos mapas étnicos que apresentam praticamente os mesmos traços desde os anos 18 do século XX; havendo, nos referidos mapas, designações de grupos a partir de termos socialmente construídos pelos vizinhos para os denominar; tendo em atenção o facto de, em África, as «false historical assumptions about “naturally tribal” Africans combined comfortably with pratical administrative convenience» (ATKINSON, 1994: 15), não parece de somenos importância considerar, também, tal confusão como consequência de uma estratégia da administração colonial para confundir, enfraquecer e dominar os pequenos grupos étnicos existentes e dispersos pelo território.

53 Sejam quais forem as razões que estiveram na base da designação «Nyaneka-Nkhumbi», o certo é que a confusão se vem aprofundando, a ponto de, hoje, mesmo em Angola, se pensar nos «Nyaneka-Nkumbi» como grupo étnico e como língua. Nyaneka-Nkhumbi não existe nem no primeiro caso (como grupo), nem no segundo (como língua). Também não é uma expressão socialmente construída pelos grupos vizinhos nem uma auto- denominação dos grupos nele enquadrados. É uma expressão que resulta de um arranjo empreendido por estudiosos europeus (facto que se repete noutras regiões do país, nomeadamente, Cabinda, Lunda e Kunene) e constitui uma representação colonial dos diversos grupos abrangidos por esta designação. Uma representação que existe apenas na mente dos estudiosos europeus que a criaram, dos missionários que a difundem nas

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práticas ritualísticas no seio da Igreja, de alguns dirigentes políticos e governativos que permitem a sua promoção através dos meios de comunicação massiva e, também, de alguns nativos falantes e leitores da língua portuguesa. Uma representação que, fluindo no discurso de alguns missionários, dos agentes da administração colonial e daqueles que, mesmo sendo nacionais, são leigos nessa matéria, «distorce» a identidade dos Handa e os «dilui» em dois outros grupos, a saber, os Nyaneka e os Nhkumbi33. Uma representação que, formando-se nas cabeças dos estranhos à cultura e ao grupo mencionado, como, inclusivamente, na de alguns vahanda europeizados, e ditos «assimilados», os impede de identificar cada um dos grupos envolvidos, de perceber os contornos dessa diversidade cultural, de compreender a história de Angola.

54 Por paradoxal que pareça, é de sublinhar o facto de, em Angola, as dinâmicas sociais, no seu curso, irem propiciando a criação de novas e outras identidades étnicas, bem como o despontar de novos sentimentos identitários, podendo haver já, neste país, quem se possa sentir, por exemplo, «Nyaneka-Nkhumbi».

55 Para alguns dos meus interlocutores urbanizados, a sua origem étnica não possui significado nenhum, nem relevância nas suas vidas. Eles praticamente nunca se afirmam etnicamente. Sentem-se, ainda que sem saber explicar, simplesmente angolanos. Embora este sentimento nacionalista possa emergir, particularmente, da interacção natural das pessoas (em busca do seu sentido de vida ou de status social), do contacto com culturas ocidentais e da elevação do nível de escolaridade dos diferentes actores sociais, é de reter que o mesmo foi reforçado com a guerra que abalou o país, por mais de duas décadas34. Num tal contexto, além de se terem multiplicado os cruzamentos étnicos, foi evidenciada a salvaguarda dos interesses comuns das pessoas, independentemente da origem, o que veio a ofuscar, de algum modo, as implicações de ordem étnica. A acção de alguns missionários católicos na perpetuação do termo «Nyaneka-Nkhumbi», ainda que seja para denominar uma língua inexistente e que se pretende ser a de uma identidade étnica também forjada, isto é, os «Nyaneka-Nkhumbi» (abrangendo uma multiplicidade de identidades étnicas) contribui, consciente ou inconscientemente, para o desenvolvimento do sentimento nacionalista, o de ser angolano. O denominar-se «Nyaneka-Nkhumbi», como já alguns em Angola o fazem, mesmo que por ignorância, permite entender a susceptibilidade de manipulação a que as identidades étnicas estão sujeitas (cf. Luc de HEUSH, 2000).

56 Entretanto, segundo testemunhos, nos momentos críticos de guerra, e diante da eminência de serem assassinadas, algumas pessoas chegaram a ocultar a sua própria identidade, assumindo outras como estratégia de protecção pessoal e familiar35.

57 Constatações como estas permitem, igualmente, sublinhar o carácter dinâmico da identidade, neste caso particular, da identidade étnica. Esta que, parafraseando Richard Stevens, nunca se estabelece como algo definitivamente acabado, mas cuja dinâmica, perpassando no decurso da vida de um indivíduo, envolve quer uma «function of direct experience of the self [quer] the world and perception of the reactions of others to the self» (STEVENS, 1983: 62).

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NOTAS

1. «Nyaneka-Nkhumbi», como se verá mais adiante, é um termo usado para nomear um conjunto de identidades étnicas distintas, no qual estão inseridos os Handa. 2. O oluhanda é falado em casa, nas relações familiares, nos contactos com os vizinhos, nas trocas comerciais, enfim, no dia-a-dia individual ou colectivo. Nos meios urbanos, por condicionalismos vários decorrentes do processo colonial, o oluhanda é usado apenas por alguns dos seus detentores. 3. Ver, por exemplo, ESTERMANN, 1957. 4. As escolas, a rádio, a televisão e as igrejas são alguns, de entre muitos, elementos que aceleram o referido processo de aculturação. 5. Note-se que algumas das pessoas mencionadas não nasceram sequer nos meios urbanos. 6. Tal como a etnicidade, a identidade não só pode ser colectiva e individual, como também pode ser exteriorizada no processo de identificação social e interiorizada na auto-identificação pessoal (cf. JENKINS, 1997). 7. Etnicidade é um termo que foi usado, em primeira-mão, em 1953 pelo sociólogo David Riesman (cf. ERIKSEN, 1993). No contexto antropológico, o termo refere-se a «aspects of relationships between groups which consider themselves and are regarded by others, as being culturally distinctive» (ERIKSEN, 1993: 4 e 1996: 28). 8. Em contextos não ocidentais, nomeadamente em África, por uma questão de ideologia colonial, da suposta supremacia rácica do homem branco e da necessidade que tinham os colonizadores de se instalarem, estes, além de depreciarem e minorarem os grupos étnicos aí encontrados, levaram os africanos, através de certas práticas (como a destruição das instituições tradicionais locais e dos amuletos usados nos cultos aos antepassados), a crerem na inexistência do fenómeno étnico (e não só) na Europa. Para mais observações sobre este tipo de consideração, ver Ronald Atkinson (1994) , Leroy Vail (1989) e Jean-loup Amselle (1985). 9. Na antiga Grécia o termo etnia era usado de diferentes modos: «In Homer we hear of ethnos hetairon, a band of friends, ethnos Lukion, a tribe of Lycians, and ethnos melisson orbornithon, a swarm of bees or birds» (HUTCHINSON & SMITH, 1996: 4). Apesar desta variabilidade, acrescentam John Hutchinson e Anthony Smith, os múltiplos exemplos da aplicação do termo dão ideia de existência de um dado número de pessoas ou animais que além de possuírem características culturais e biológicas comuns vivem e actuam de forma concertada. É de sublinhar, entretanto, que no contexto acima mencionado, o termo etnia era usado pelos gregos para se referirem a outros povos, ligados a determinados grupos que, por sua vez, eram diferentes dos seus. Daí a tendência de caracterizarem os não gregos como sendo bárbaros e como ethnea uma vez que os próprios gregos se designavam por genos Hellenon (cf. HUTCHINSON & SMITH, 1996). 10. Termo para designar os Umbundu. 11. Termo que designa um pequeno grupo étnico estabelecido na província do Kunene (Sul de Angola), junto aos Ndongwena e Nkhumbi. 12. Com o aportuguesamento das palavras em línguas nacionais, o termo ovakwamatwi foi comummente grafado como «cuamatos» (ver, por exemplo, Ferreira Diniz (1918) e Carlos Estermann (1971). No singular, o mesmo vocábulo é usado como topónimo, na província do Kunene. 13. Não se trata necessariamente de uma ocupação física do espaço territorial. Inclui-se aqui a ligação simbólica com a terra ancestral, o que acontece não só com os indivíduos na diáspora (cf. Hutchinson & Smith, 1996), mas também com aqueles que (como no caso de Angola) rumaram dos meios rurais para os urbanos.

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14. O poder económico parece estar na base das atribuições de estatutos étnicos nas relações entre os grupos. Em Angola, por exemplo, pode-se observar que os grupos étnicos Bantu (nomeadamente os Handa, Muila e Nkhumbi) cujo modo de produção, nos meios rurais, assenta sobretudo na agricultura e na pastorícia, manifestam um status relativamente superior na relação que estabelecem com os não Bantu, isto é, com os Boximanes (também denominados por vakwankhala) e com os Vakwisi. Além dos traços físicos destes últimos (tomados como elementos de distincão), não é raro aqueles depreciarem determinadas práticas sociais e culturais típicas destes grupos. 15. Para referências mais detalhadas sobre a eanda e ombunda, ver MELO (2001 e 2005). 16. Uma tal noção, revelando-se como uma categoria identitária, aparece, igualmente, como um meio de resistência e de afirmação dos diversos grupos sociais. 17. Nkhumbi é a designação de um dos grupos étnicos, no Sul de Angola. 18. A ideia da natureza tribal dos africanos e a da ausência deste fenómeno entre os europeus era, na opinião de Ronald Atkinson, um «cardinal Tenet» (ATKINSON, 1994: 12) de grande parte dos agentes coloniais, em África. 19. Cilenge, Kakula e Cipungu são municípios da província da Huila. 20. A divisão etno-linguística da população angolana resume-se a um exercício teórico que terá suscitado alguma perplexidade junto de homens de terreno, como Carlos Estermann, razão pela qual terá sido alvo de algumas críticas da parte deste (cf. ESTERMAN, 1957). 21. Este tipo de confusão é, igualmente, detectável nos mapas etnográficos do Sudeste do Zaire, nos quais «different authors delimiting the «tribes» at more or less the same time invariably report different findings. Some of these names refer to regions, hence to the people inhabiting those regions» (ROBERTS, 1989: 193). 22. Retenha-se, entretanto, que só uma parte das pessoas (escolarizadas, missionadas, urbanizadas e interessadas) se dá conta das classificações etnolinguísticas atribuídas aos grupos étnicos. O resto é completamente alheia. 23. Ronald Atkinson lembra que «though Africans are all supposedly members of distinct units [as quais se designam por grupos étnicos], it has proven very difficult to agree about what criteria might be used to identify these [grupos]» (ATKINSON, 1994: 13). 24. De entre os fundadores, destaca-se o facto de serem todos letrados, católicos e urbanizados. 25. Um fortalecimento na base do lema de que a união faz a força. 26. Efuko é a designação do ritual de iniciação feminina entre os Handa. Sobre este ritual e também sobre a sua celebração no seio da Igreja Católica, ver MELO, 2001 e 2005. 27. Digo de certo modo por existirem elementos culturais que são comuns a todos esses grupos mencionados e por haver uma flexibilidade em termos de limites quer espaciais, quer étnicos. 28. Ver MELO (2001 e 2005). 29. Designação do edifício central onde se desenrola o ritual de efuko. Termo que, entre os Handa, denomina o poder de presidir cerimónias de efuko. 30. Tradução literal: dono do conjunto residencial. 31. Referências sobre o ocoto, sua importância, simbolismo e funções na cultura Handa estão detalhadamente analisadas num outro trabalho; ver MELO (2001 e 2005). 32. Numa conversa com alguns dos meus interlocutores, no Namibe (Angola), na sequência de uma entrevista radiofónica que concedi à Radio local, em Agosto de 2002, sobre a problemática em análise, foi-me manifesta, através de uma pergunta, a preocupação com a questão numérica dos grupos em referência. Questionava-se se a expressão «Nyaneka-Nkhumbi» não impunha a subordinação dos grupos nele incorporados, com base na pretensão da superioridade numérica dos Nyaneka ou dos Nkhumbi. Ao que consta, sublinhe-se, não existe, em Angola, nenhum registo de um censo populacional por grupo étnico (cf. MELO, 2001 e 2005), o que torna especulativo qualquer dado avançado neste sentido.

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33. A deturpação, a manipulação e a criação de representações étnicas por parte dos colonialistas fizeram parte de estratégias coloniais noutros pontos de África (cf. ATKINSON, 1994; VAIL, 1989a), nomeadamente o Uganda. Coniventes com políticas coloniais de «dividir para reinar», e na perspectiva de especificar os grupos étnicos dentro, unicamente, do contexto de uma sociologia colonial, os antropólogos europeus atribuíram falsas identidades às mesmas (VAIL, 1989b). 34. A concentração de pessoas nos centros urbanos, a ausência de contactos de muitas delas com as zonas rurais e/ou de origem (tornadas, praticamente, palco de guerra ao longo da guerra civil), os complexos étnicos (emergidos do colonialismo), o desconhecimento das origens étnicas (entendido no quadro do assimilacionismo) a falta de estímulos que valorizem as culturas locais, a quase ausência de estudos, no país (particularmente, no período pós-colonial), que visem desconstruir, nomeadamente, os rótulos identitários criados com o colonialismo são alguns dos vectores que alimentam e vão vincando o sentimento de distância, relativamente às origens étnicas. 35. A título de exemplo, diga-se que, em Angola, em tempo de guerra, se a assumpção da identidade étnica umbundu algumas vezes favoreceu determinadas pessoas, noutras criou alguns embaraços, levando-as mesmo à morte.

RESUMOS

Partindo da denominação «Nyaneka-Nkhumbi», usada para designar um dado grupo etnolinguístico, no Sul de Angola, este artigo discute aspectos ligados à identidade étnica. Tem como centro de análise o grupo étnico Handa. Apoiando-se nas dinâmicas sociais locais, este artigo, além de resgatar a identidade dos Handa, demonstra a discrepância entre a designação «Nyaneka-Nkhumbi» e a identidade dos próprios actores sociais abrangidos pela mesma; fornece elementos de comparação relativos às interpretações identitárias dos próprios indivíduos (conforme sejam rurais ou urbanos); analisa a relação indivíduo/identidade étnica, bem como as práticas sociais locais que influenciam as dinâmicas de construção das identidades.

Taking as a starting point the name «Nyaneka-Nkhumbi», used to designate a specific ethno- linguistic group in Southern Angola, this article discusses aspects linked to ethnic identity. The article focuses on the Handa ethnic group. Based on an analysis of the local social dynamics, the article not only redeems Handa identity, but demonstrates the discrepancy between the label «Nyaneka-Nkhumbi» and the identity of the social actors themselves, who are included in it. The article supplies comparative data concerning the interpretations of identity by the individuals themselves (according to whether they are rural or urban dwelling). It analyses the individual/ ethnic identity relationship, as well as social practices which influence the dynamics of construction of the identities.

ÍNDICE

Palavras-chave: Identidade étnica, Etnia, Handa, Angola, África Keywords: ethnic identity, ethnicity, Handa, Angola, Africa Mots-clés: identité ethnique, ethnique, Handa, Angola, Afrique

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AUTOR

ROSA MELO Instituto de Investigação Científica Tropical, Lisboa

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A lusofonia no interior da África Central na era pré-colonial. Um contributo para a sua história e compreensão na actualidade

Beatrix Heintze

NOTA DO AUTOR

Este artigo foi escrito originalmente para o Colóquio Internacional do CODESRIA «Lusofonia em África: História, democracia e integração africana» (Luanda, 28-30 de Abril de 2005), no qual não pude participar por motivos de ordem financeira. Agradeço a Marina Santos a tradução portuguesa do texto e a Katja Riek a tradução inglesa do sumário. Todas as citações em língua estrangeira foram discretamente traduzidas para português. «Devemos prezar a nossa origem, a que estamos ligados como os cachos à planta»1

1 Os navegadores, «descobridores», comerciantes e missionários portugueses chegaram à costa de Angola em finais do século XV. No final do século XVI, encontravam-se estabelecidos na região. Nas décadas e séculos que se seguiram, assistiu-se ao seu lento mas continuado avanço em direcção ao leste, acompanhado de numerosas e violentas campanhas militares. Os seus postos militares, feitorias e estações missionárias constituíram os centros da sua expansão; durante muito tempo, a motivação principal destes empreendimentos foi a procura de metais preciosos e, mais tarde, o comércio atlântico de escravos. Até 1975, Angola, com as suas fronteiras actuais, foi uma colónia portuguesa. Como herança deste longo historial de portugueses em solo angolano, o português manteve-se como língua oficial do estado independente de Angola.

2 Será que isto foi simplesmente uma consequência lógica da interacção luso-africana que, incontestada, se prolongou por quatrocentos anos? De forma alguma. Aquilo que hoje nos

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parece inevitável não resultou de um desenvolvimento tão linear como o que é sugerido por uma apreciação superficial e sumária.

3 Em relação ao hinterland costeiro, que desde o início esteve exposto a uma influência portuguesa particularmente intensa, podem constatar-se, neste contexto, duas tendências bastante surpreendentes e, de certo modo, antagónicas: em primeiro lugar, a kimbundização dos portugueses e, em segundo, a criação e divulgação de uma correspondência escrita em português, de cariz diplomático e jurídico, no interior de uma série de sobados angolanos.

4 Mesmo a suposição, compreensível para quem está de fora, de que a divulgação da língua portuguesa se deveu principalmente ao empenho dos próprios portugueses, não é, de modo algum, exacta em termos gerais e, muito menos em relação às regiões situadas para lá do Kwango, nas quais se centra a minha apresentação. Antes, porém, de me concentrar neste último aspecto, gostaria de abordar resumidamente os outros dois.

A kimbundização dos portugueses

5 Num artigo pioneiro, Jan Vansina2 mostrou como, nos séculos iniciais, o português se conseguiu estabelecer como lingua franca em redor dos centros portugueses, limitando-se contudo a um espaço bastante restrito, devido ao reduzido número e à alta mortalidade dos emigrantes portugueses, à falta de mulheres portuguesas e de escolas. Vansina mostrou igualmente como essa língua foi retrocedendo progressivamente a favor do kimbundu, nomeadamente porque os filhos dos emigrantes portugueses não eram socializados pelos seus pais portugueses, mas sim pelas suas mães africanas que falavam kimbundu. A publicação de um catecismo em kimbundu, no ano de 1620 e a consequente estandardização dessa língua, conduziu ao florescimento do kimbundu nos séculos XVII e XVIII, que não só substituiu os diversos dialectos kimbundu, mas, em consequência do comércio de escravos, substituiu também o português como lingua franca em muitas regiões e se estabeleceu como língua escrita. Este processo acentuou-se com a expulsão dos jesuítas e com o encerramento das suas escolas no ano de 1760, cujas consequências não se restringiram à língua, e que levou a uma africanização reforçada das elites. As tentativas no sentido de pôr termo ao domínio do kimbundu, através da sua interdição, fracassaram.

6 Em meados do século XVIII, o governador português António Álvares da Cunha constatava indignado: «Cauza sim admiração grande ver que esta cidade cheya de Menistros de Deos, Templos, Pregadores, e homens europeus se esqueçem os seus abitantes da relegião, da lingoa e dos costumes da nossa nação; porque nada disto exziste, neste mizeravel Povo, os seus costumes são barbaros, a lingoa hé a Inbunda, e a ley a gentilica»3.

7 A mudança para o português só ocorreu a partir de 1823, após o fracasso de uma revolta da elite local e da vinda de uma nova vaga de emigrantes portugueses.

Os «Arquivos dos Ndembu»

8 O segundo fenómeno surpreendente, no que respeita à interacção luso-africana, consiste no surgimento de uma cultura escrita de cariz político, sob influência portuguesa, numa série de sobados do hinterland costeiro, a partir do século XVII. Embora a correspondência

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dos reis do Kongo com o rei de Portugal e o Vaticano seja há muito conhecida e faça parte de qualquer historiografia sobre este reino, o facto de se ter limitado sobretudo ao governante principal impediu, para além do reconhecimento da sua existência como tal, que lhe fossem atribuídas características estruturais próprias4. Só com a descoberta de centenas de documentos em diversos sobados angolanos e com a sua publicação parcial, os chamados «arquivos dos Ndembu»5 cujos documentos mais antigos têm três séculos e meio de existência, ocorreu entretanto uma reapreciação integral que, até agora, foi reconhecida apenas por um círculo restrito de historiadores iniciados, mas que um dia irá inevitavelmente chegar a um público mais vasto.

9 Num estudo elucidativo sobre estes documentos, Catarina Madeira Santos mostrou6 como, nestes sobados, o contacto directo com os portugueses, assente em contratos de vassalagem luso-africanos7 vigentes desde o fim do século XVI deu origem a um processo muito complexo em termos diplomáticos, jurídicos e mais tarde também económicos, de formas de legitimação e comunicação escrita em língua portuguesa, cada vez mais correntes, que com o tempo se foram estendendo às relações entre os próprios sobados. Com a apropriação desta nova técnica de comunicação, usada como símbolo de poder, deu-se também a vulgarização de todo o vocabulário jurídico-político e, necessariamente, a introdução de uma estrutura burocrática. O novo cargo de secretário nestes sobados que, em certas alturas, podia «constituir uma forma de estatuto de poder à margem das estruturas de parentesco», desempenhou um papel fundamental neste processo. Encontrá- lo-emos também nas regiões situadas para lá do Kwango. A grande originalidade deste processo inovador resultante das vassalidades reside, segundo Santos, no facto de permitir aos Ndembu vincular o discurso africano da oralidade ao discurso político colonial da palavra escrita, sem abalar os fundamentos da sua organização política interna, aproveitando-se deles como instância de legitimação dinâmica do poder africano8 .

Os intermediários luso-africanos: «Eu sou preto mas com o coração de branco»

10 Exceptuando a chefia de campanhas militares, o contacto diplomático e a actividade missionária os portugueses ou outros europeus raramente foram, durante os primeiros dois séculos da sua permanência em Angola, os actores principais dos avanços em direcção ao interior. Isto não se deveu somente ao seu número relativamente reduzido, mas correspondeu também expressamente à política oficial portuguesa, nomeadamente no que respeita ao comércio de escravos. Por este motivo, todos os regimentos do século XVII, endereçados aos governadores portugueses de Angola, continham uma cláusula que os obrigava a zelar para «que não uão brancos as feiras que não haja nas feiras homeñs brancos ainda que seya com pretexto de guardar justiça e meter em ordem», de modo a impedir que houvesse «grande prejuizo ao bem com ũ e ao serviço de Deos e meu»9. Esta proibição não conseguiu impor-se, como se pode verificar pelas suas repetidas edições. Porém, as transgressões geralmente violentas, praticadas com vista à obtenção de escravos, não tiveram provavelmente consequências a nível da divulgação da língua portuguesa.

11 Por outro lado, os filhos de pais portugueses, nascidos em Angola (os «filhos da terra»), e sobretudo os seus descendentes desempenharam um papel que, com o decorrer do tempo, se foi tornando cada vez mais importante. Em especial, à volta da região populosa de

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Ambaca, constituiu-se, durante o século XVII e XVIII, uma elite luso-africana independente dos sobados. Tratava-se de um grupo muito heterogéneo e difícil de delimitar, que incluía sobretudo africanos negros (grande parte deles antigos escravos) e «mestiços», mas também alguns brancos. Entre os seus antepassados europeus contavam- se conquistadores, soldados, comerciantes ou degredados portugueses10. A sua língua materna era, no geral, o kimbundu, mas eles orgulhavam-se de falar também o português, e muitos deles sabiam ler e escrever. Tinham sido baptizados e consideravam-se cristãos convictos. Como símbolo exterior do seu estatuto elevado, esses luso-africanos usavam sapatos (o que era um privilégio especial) e vestuário europeu. A libertação do serviço de carregador era uma das suas prerrogativas. Na primeira metade do século XIX, podiam ser encontrados em pequenas colónias espalhadas pelo hinterland costeiro, nos sobados e nas feiras. A sua influência nas sociedades africanas «tradicionais» era considerável, tanto a nível económico, como a nível político, uma vez que desempenhavam com frequência as funções de secretários, intérpretes e conselheiros dos sobas em cujos territórios viviam e se casavam com parentes suas. Ocupavam também cargos de chefia não remunerados nas companhias móveis da 2.ª linha coloniais, o que lhes proporcionava um meio eficaz de exploração das populações africanas. Associavam-se a eles numerosos artífices africanos especializados, como por exemplo alfaiates, sapateiros e carpinteiros. Ambaca que, com as suas regiões circundantes, constituía há muito um ponto-chave para o comércio de escravos, transformou-se então num próspero centro agrícola e artesanal.

12 No decurso do século XIX, muitos moradores dessa região desenvolveram uma identidade própria, a de Ambaquistas, um conceito que se foi afastando cada vez mais da sua acepção geográfica inicial e assumindo conotações preponderantemente culturais e sociais. Os Ambaquistas ficaram especialmente conhecidos como comerciantes que arriscavam viagens cada vez mais longas rumo ao interior de África. Os escravos constituíam o seu principal meio de ascensão social e forneciam uma oportunidade para a sua emancipação da tutela dos sobas tradicionais. Como investiam os seus lucros principalmente na aquisição de mulheres e crianças, dispunham de um séquito de parentes e dependentes em permanente crescimento, que por sua vez os ajudava a consolidar a sua posição social e económica e a expandir cada vez mais as suas actividades empresariais. Os Ambaquistas tinham os portugueses como modelo e a afinidade cultural e política desempenhava um papel determinante. A cor da pele não constituía para eles um critério decisivo. Por isso, consideravam-se portugueses e «brancos», o que não implicava uma determinada aparência – era raríssimo terem a pele clara – , mas sim características culturais específicas. «Eu sou preto mas com o coração de branco»11 – foi assim que um deles se definiu em determinada altura. Esta definição foi divulgada sobretudo pelos africanos que viviam de modo ainda mais tradicional. José António Alves, o comerciante de escravos oriundo de Pungo Andongo, que falava, lia e escrevia fluentemente o português, era denominado «branco» no Bié e «mulato» em Benguela, embora, segundo Serpa Pinto que o encontrou em 1878, «a verdade é, que nas suas veias não há uma gôta de sangue Europeu, e que elle é preto não só na côr como na ascendencia, e quiçá na alma»12. Para os portugueses brancos (e outros europeus) os Ambaquistas constituíam motivo de desprezo e irrisão, devido a preconceitos racistas dos primeiros e a alguns traços culturais sincréticos dos segundos, considerados arrogantes e ridículos. Os Ambaquistas, por sua vez, adoptavam os valores dos europeus para se distinguirem dos outros africanos «não civilizados», encarando-os correspondentemente como «selvagens». O prestígio destes Ambaquistas era tão grande, que nos sobados tradicionais surgiram numerosos imitadores seus – frequentemente designados por quimbari – que adoptavam os seus

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costumes e outras características exteriores e gostavam de se identificar como «filhos de Ambaquistas»13.

Os Ambaquistas e a língua portuguesa

13 Mesmo os observadores mais críticos verificaram nos Ambaquistas um pendor invulgar para a aprendizagem. Com a valorização do português na primeira metade do século XIX14 , difundiu-se também a consciência da sua utilidade e o desejo de aprender a língua. Como as escolas das missões já estavam encerradas há muito, essa aprendizagem foi feita de modo informal, no contacto directo com os militares e os comerciantes portugueses. Os escravos aprendiam com os seus donos, os filhos com os seus pais, os militares com os seus chefes, os empregados com os seus patrões portugueses ou luso-africanos, por exemplo nas feitorias15. Porém, aqui e ali existiam também formas organizadas de ensino. Neste sentido, o tenente de Infantaria de Pungo Andongo, A.C. da Costa Diniz, relata o seguinte em 1847: «[…] as creanças n’este presidio são dotadas de muito instincto, e têem grande applicação ao que lhes ensinam. Esta verdade se collige pela grande affluencia de creanças que umas mandadas dos seus paes, outras de seu motu proprio frequentam a aula de um pardo natural do paiz, de nome Antonio Martins de Sousa, que com todo o zêlo porém nenhuma pratica lhes ensina os erros que pôde aprender; além d’este há outros de igual calibre, que á porta de suas cubatas conservam diariamente uma nuvem de creanças assentadas em troncos e mochos, cantando em algasarra cartas que já sabem de cór; … estes [ambaquistas] têem entre si a opinião de mais civilisados, tanto que entre se tratam de illustrissimos e senhorias; tratam os pretos dos outros presidios de brutos e com elles não fazem liga»16.

14 Passados trinta anos, o explorador alemão Paul Pogge conheceu o padre de uma capela de Pungo Andongo, que dava aulas de língua portuguesa, religião, leitura, escrita e aritmética a 30-40 crianças ambaquistas baptizadas17.

15 Uma das maiores ambições dos Ambaquistas era saber ler e escrever. Para alguns, isto reduzia-se à assinatura do nome, mas muitos desempenhavam estas actividades satisfatoriamente ou até muito bem. Num meio analfabeto, isto chamava de tal modo a atenção, que o saber ler e escrever passou a ser a sua marca distintiva18. Não havia Ambaquista que fosse encontrado sem tinta, pena e algumas folhas de papel19. Contava-se que, mesmo em viagem, liam em voz alta trechos das cartas que levavam, à noite na sua cubata20. Nos sítios em que não era possível obter tinta e papel, recorriam a outros materiais, como por exemplo a folha de palmeira (como papel: ibubulo) ou de bananeira21 e, como tinta, a uma mistura de fabrico próprio, feita a partir da casca da cabaça do imbondeiro, ou com base na pólvora para espingardas22.

16 Como exemplo de um Ambaquista com uma formação alargada, referimos aqui João Gonçalves de Azevedo. Vivia em Pungo Andongo, onde em 1875 travou amizade com o botânico e explorador alemão Hermann Soyaux. Era baptizado, falava bem português, aprendera com o seu pai a escrever e a fazer contas e vestia-se à europeia. Fizera expedições comerciais de vários meses ao sul até junto dos Libolo, dos Kisama e dos Mbailundu e também já estivera no interior oriental. Entre os seus livros de cabeceira encontravam-se textos religiosos, gramáticas portuguesas e inglesas, atlas, Os Lusíadas de Luís de Camões e o Kosmos de Alexander von Humboldt em traduçãoportuguesa. Isto não impressionava os portugueses estabelecidos no local. Para eles, Azevedo não passava de

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um negro presunçoso; chegaram mesmo a censurá-lo por se julgar igual aos brancos, só porque, como muitos outros, sabia ler e escrever23.

17 Embora a maioria dos Ambaquistas não atingisse o seu nível, Azevedo não foi, de modo algum, um caso isolado. Na estante do Ambaquista Cypriano de Abreu e Santo, um sargento da 4.ª Companhia móvel do Distrito de Ambaca, que se estabelecera no interior, junto ao Kwango, onde Livingstone o encontrou em 1854, encontrava-se um livro sobre medicina, um dicionário de português, uma enciclopédia e alguns folhetos hagiográficos. Alegadamente os Ambaquistas também se interessavam muito pela História de Portugal, pelo direito e pelos costumes portugueses24.

18 Também no hinterland de Benguela e no planalto dos Ovimbundu, nomeadamente no Bié, existiram no século XIX colónias luso-africanas com uma cultura luso-africana25.

A divulgação do português no interior do continente

19 Na África central, o século XIX foi o século das caravanas do comércio a longa distância, que criaram uma rede cada vez mais densa de rotas comerciais, através da qual, os escravos, numa primeira fase, e mais tarde o marfim, a cera e a borracha chegavam ao litoral. Esta rede comercial que, a pouco e pouco, se tornava mais compacta, deu também origem a novos espaços de comunicação estimulados, na segunda metade do século, pelas grandes expedições organizadas por europeus (principalmente por portugueses e alemães). Os principais incentivos para o comércio angolano a longa distância provinham, na altura, dos portugueses do litoral. Era através das suas casas comerciais aí estabelecidas, bem como das suas sucursais e dos seus postos avançados no hinterland que os artigos de importação chegavam ao interior. A eles se deveu a expansão explosiva deste tipo de comércio e a sua dinâmica especial. Em termos de organização, os empresários brancos e os seus agentes principais constituíram também o motor deste comércio. Contudo, a maioria dos que, contratados como chefes ou por iniciativa própria, realizavam, de facto, as viagens em caravana nas regiões distantes, eram negros, e sobretudo Ambaquistas que, em conjunto com os sertanejos europeus e os Mbangala, se tornaram grandes peritos no comércio de caravanas centro-africano.

20 Os seus trilhos levaram-nos para leste, atravessando o Kwango, até à região da Lunda e até junto aos Luba, para sudeste até ao Zambeze, para junto dos Lui e dos Kilolo, e para nordeste até junto dos Luluwa e dos Kuba. Paralelamente à Feira de Cassanje, o importante centro de comércio no território dos Mbangala, Quimbundo, situado mais para o interior e dominado por um chefe lunda, constituiu, durante várias décadas, o mais avançado posto comercial português no leste e o principal ponto de confluência de algumas das mais importantes rotas das caravanas26. Em 1867, os portugueses desistiram oficialmente da Feira de Cassanje, deixando-a totalmente ao cuidado dos Ambaquistas. A partir de então, a localidade de Malanje, situada mais a ocidente, tomou o seu lugar como posto avançado português para o comércio a longa distância. A cidade tornou-se um ponto de encontro do comércio europeu e luso-africano, atraindo, principalmente nos anos 80, um número cada vez maior de Ambaquistas. Na maioria das vezes, foram estes que – partindo daqui ou de Benguela, nomeadamente do Bié – desbravaram novas rotas, antes que os seus patrões portugueses ou os exploradores europeus os seguissem e as inaugurassem «oficialmente» (ver por exemplo Joannes Bezerra como antecessor de Paul Pogge e Hermann von Wissmann; Lucas Coimbra como antecessor de António Francisco Ferreira Silva Porto).

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21 Os exploradores, a quem devemos as poucas informações que possuímos, deparavam-se, ao longo da viagem, frequentemente com pessoas que falavam português e em quase todas as caravanas havia alguém com conhecimentos mínimos dessa língua27. Isto não se limitava, de modo algum, aos Ambaquistas, aplicando-se também, por exemplo, às comitivas do Kongo, que viajavam amiúde pela região dos Lunda e de que Carvalho ainda encontrou alguns participantes28.

22 No entanto, os Ambaquistas não limitaram os seus empreendimentos no interior às viagens comerciais com estadias mais curtas ou mais longas nos locais de etapa ou de destino. Muitos deles também se estabeleceram, durante anos ou décadas, nos chefados africanos. A motivação residia, muitas vezes, em condições comerciais propícias que poderiam levar mais tarde à abertura de uma feitoria. Isto porque, frequentemente, a permanência no local se revelava mais favorável. Caso o negócio florescesse, era possível mandar vir, a pouco e pouco, a família e outros dependentes, a que, com o tempo, se poderiam juntar mulheres e criados, para além de outros comerciantes. A maior e mais importante colónia ambaquista foi fundada em 1862, mantendo-se durante três décadas e meia na Mussumba29. Houve uma outra em Cabango, junto ao Muansansa, situada na rota meridional de Quimbundo para Mussumba, onde Livingstone registou, já em 1855, dez a doze cubatas quadradas de Ambaquistas que aí viviam como agentes de comerciantes de Cassanje30. As colónias de Ambaquistas, de maiores dimensões no interior, constituíam porém uma excepção. Geralmente os Ambaquistas preferiam estabelecer-se sozinhos ou aos pares, talvez com a sua família e outros agregados, perto de um chefe africano, velando, por uma questão de concorrência, para que não vivessem demasiado perto uns dos outros.

23 Na segunda metade do século XIX, a residência mais ou menos permanente de Ambaquistas em numerosos sobados entre o Kwango, o Lulua e o alto Zambeze está documentada – isto para não falar das regiões a oeste do Kwango e de Quimbundo – como, por exemplo entre os Shinje, Cokwe, Lunda, Luluwa e Ngonyelu; e, para além dos referidos rios, junto ao Wamba, Kwilo, Chiumbe, Chicapa, Luachimo, Luembe, Cassai, Calanhi e Muanzangoma. Carvalho refere que, no seu tempo, ou seja nos anos 80, não havia muitas aldeias lunda que não se pudessem gabar de ter um desses «portugueses» e que até ao grau de longitude 24, entre o Cassai e o Zambeze, se poderiam encontrar muitos dos chamados «filhos de Ambaca» ou imitadores seus31.

24 Nas suas novas moradas, os Ambaquistas não se dedicavam somente à actividade comercial e a uma agricultura diversificada para sustento próprio, mas também ao ensino da língua e de outras disciplinas, aos seus filhos, aos filhos dos seus sequazes e aos dos seus anfitriões.

25 O exemplo mais conhecido foi o da já referida colónia ambaquista na Mussumba, residência dos reis lunda (actualmente na República Democrática do Kongo). Foi aqui que o seu fundador e dirigente, Lourenço Bezerra Correia Pinto, um Ambaquista oriundo de Golungo, conhecido por Lufuma, deu aulas de língua portuguesa, leitura, escrita e aritmética básica, a que assistiram também alguns jovens que todos os chefes (quilolo/ chilol) eram obrigados a oferecer ao Mwant Yav, como servos. Em 1887, Carvalho ainda encontrou junto ao Calanhi, três indivíduos lunda que sabiam falar e escrever o português. Tinham sido alunos de Lourenço Bezerra32.

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26 Na região dos Shinje, para lá do Kwango, o Ambaquista Garcia Fragoso dos Santos, oriundo de Malanje, tinha, entre outras coisas, ensinado os filhos da chefe feminina Mona Samba Mahango a ler e escrever o português e os rudimentos da aritmética33.

27 Até no longínquo Lubuco, junto ao Lulua, os Ambaquistas que aí se tinham estabelecido desde 1871 ensinaram aos seus filhos e aos das populações locais a língua portuguesa, a escrita e a aritmética34. A procura era grande, uma vez que os povos reconheciam as vantagens que a capacidade de expressão nesta lingua franca representava para as suas transacções comerciais e estavam conscientes de que com a aprendizagem da leitura e da escrita «já não seremos enganados com os recados»35.

O uso do português

28 É difícil de determinar, pelas fontes existentes, a extensão e o grau alcançados pela divulgação do domínio da língua portuguesa no século XIX nas regiões para lá do Kwango.

29 Enquanto que, em meados do século, Livingstone ainda refere por diversas vezes que os Ambaquistas, com quem se encontrou pelo caminho, não só falavam todos português, mas muitos deles também sabiam ler e escrever essa língua36, segundo Buchner, 25 anos mais tarde isso só acontecia excepcionalmente37. Mas, embora alguns exploradores salientem que, mesmo os intérpretes falavam apenas uma algaravia horrorosa ou um português corrompido38, a verdade é que encontravam constantemente luso-africanos ou africanos que dominavam bem ou até muito bem a língua portuguesa39. Buchner que só aprendeu o português em solo angolano, mas que tinha um interesse particular pelas línguas e pela linguística, louvou expressamente os portugueses «por eles ensinarem aos negros o português de forma correcta, […] muitos negros em Angola, antigos escravos que tinham cargos remunerados como cozinheiros ou secretários, falavam português quase sem erros»40.

30 Contudo, entre si, até mesmo os Ambaquistas continuavam a falar a sua língua materna ou uma lingua franca africana, o que no contexto ambaquista, significava geralmente o kimbundu. Diz-se, no entanto, que gostavam de condimentar a sua conversa com palavras portuguesas que kimbundizavam através do uso de prefixos ou de associações invulgares de palavras. Assim definiam, por exemplo, o objectivo das expedições de pesquisa alemãs como «passeala ngo» (do português passear com o termo kimbundu ngo que significa «apenas»)41. Enquanto os portugueses tratavam os Ambaquistas depreciativamente por «Vossé»42, estes gostavam de usar entre eles, particularmente na correspondência escrita, elaboradas formas de tratamento cortês, como por exemplo «Ilustrissimo Senhor» para fazer uma encomenda ao pequeno negociante de uma venda de aldeia43. Em especial para impressionar os seus contemporâneos menos letrados, esforçavam-se por falar numa linguagem rebuscada, mostravam predilecção pelo uso de expressões idiomáticas e gostavam de asseverar que estavam «no serviço da Sua Magestade»44. «Nas suas conversas, as ligações, muitas interjeições ou melhor as partes variaveis da oração eram sempre feitas em portuguez […], por exemplo – ora agora, pois então, por consequencia, oh homem! por isso, mas então etc. E o que ainda mais me impressionou, é o saco geral que se dá até com os de Malanje. Levanta-se uma questão entre elles sustentada na sua lingua; pois os vituperios, os insultos, as palavras enfim que querem dirigir com mais offensivas ao seu contendor, tudo é dito em portuguez intelligivel, e segue a conversa na lingua d’elles»45.

31 Também criaram neologismos, como presumivelmente «mudancia» para aldeia africana abandonada46. Através das suas extensas viagens com estadias mais longas ou mais curtas

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nos locais de destino, os Ambaquistas difundiram muito disto pelo interior profundo do continente, até junto dos Luluwa47. Com os objectos introduzidos pelos Ambaquistas chegaram também as suas designações, tais como os grandes panos de algodão, tecidos por eles e chamados lessole (do portug. lençol) e diversos tipos de bilinco (do portug. brinco) 48.

32 Uma especial influência portuguesa foi a que se verificou graças aos Ambaquistas que viviam como conselheiros ou secretários na residência de chefes africanos do interior e que muitas vezes eram casados com filhas destes ou outras parentes próximas. Era possível encontrá-los junto dos Shinje (por exemplo junto de Mona Samba Mahango e Capenda-ca-Mulemba), dos Cokwe (por exemplo junto de Quipoco e Quissengue), dos Luluwa (por exemplo junto de Muquengue) e também dos Lunda (em Tenga e sobretudo na Mussumba). Tal como junto dos Ndembu, uma das suas importantes tarefas consistia em escrever cartas em português para o seu anfitrião49. Consequentemente, foram também eles os mais importantes intermediários na correspondência escrita entre os chefes angolanos e as autoridades coloniais portuguesas. O grande valor por eles atribuído a esta forma de comunicação e a sua própria mobilidade levaram a que esta troca de missivas diplomáticas escritas fosse adoptada, mesmo em regiões sem qualquer presença portuguesa, por alguns chefes políticos, como símbolo do seu estatuto especial. Estes testemunhos textuais são quase completamente desconhecidos e só graças ao interesse de Henrique Dias de Carvalho é que está documentada uma dúzia de cartas, entre as quais se encontra infelizmente apenas uma única proveniente do interior de África, em que um africano se dirige a outro50. O seu reduzido número não permite generalizações, mas dá uma ideia da grande amplitude do domínio da língua e das formas de expressão. A carta de um dos carregadores de Carvalho (ver adiante, carta 12) é especialmente tocante.

33 A nível linguístico, salienta-se sobretudo o uso indiscriminado do r e do l, habitual nas línguas bantu (vortar = voltar, porvora = pólvora, a loba = arroba, majolo = major, rá = lá, farar = falar, ribertos = libertos, revar = levar) e uma ocasional vocalização de palavras portuguesas (o oroubo, opois, majolo).

34 Estão presentes algumas expressões correntes de origem africana (soba, banza, moleca, muleque, mussapo, binji, angananzambi) e outras de uso generalizado no contexto das viagens comerciais a longa distância (importância, fundo).

35 Especialmente gostosa é a interpelação do presumível incumbente oficial de Carvalho como «Senhora Rei de Sua Magestade» por parte da chefe shinje, uma mulher. Também não falta originalidade à maneira como é parafraseada a máquina fotográfica da expedição.

36 Em termos de conteúdo, as cartas tanto se referem a casos banais da actualidade relacionados com a viagem de Carvalho, como à alta política.

37 Em relação aos destinatários portugueses, denotam uma certa submissão – que não surpreende, tendo em conta a História luso-angolana – com exageradas manifestações de cortesia («mil vezes muito obrigadissimo»; «mais perfeitissima saude e ventura»; «humildemente »; «veneradora»; «seu alto venerador creado») e contêm afirmações claras de pertença à nação portuguesa («como subordinado portuguez»; «já pertencente do mesmo Rei»; «Muene Puto nosso amo», «protector e senhor de todas estas terras»; «eu sou preto mas com o coração de branco»; «não se esqueça de me dar uma bandeira do nosso Rei para a cubata») e de tomada de partido («alguns sobas … como os conheço, querem enganar a V.»; «acho desnecessario fazer

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similhante offerta [aos Mbangala], visto V. não tencionar passar nas terras de Cassanje»). Porém, o medo aos portugueses também transparece numa das cartas, em que um soba justifica a sua fuga (ver adiante, carta 7).

38 Quando comparada com a missiva que um «grande potentado» endereçou àquele que, segundo todos os indícios, seria o seu futuro Mwant Yav, esta carta testemunha todavia uma postura ainda mais submissa («que todos sômos seus escravos»; contudo refere também «o nosso Muatiânvua, pae» e «meu Muatiânvua»). É, na verdade, uma pena que não exista mais documentação sobre esta correspondência entre os africanos das regiões além Kwango.

39 Há que salientar em especial a referência a relações de parentesco (em parte fictícias) com objectivos políticos nestas cartas («como parente do mesmo Rei do Muatahiamvo»; «meu parente Xa Madiamba», cf. também noutro sentido: «nosso Muatiânvua, pae»; e provavelmente sem objectivos políticos: «barrigão de Muana Mahango»)51. Há que reter também o facto de os incumbentes africanos das cartas, e não apenas os mais poderosos, se expressarem com grande autoconfiança, dando assim a entender ao destinatário, com maior ou menor subtileza, a sua posição política e (pelo menos) a equivalência da sua condição social («sou pessoa de considerar»; «Sua Magestade Quissengue»; «eu aqui no sitio sô superior de todos os potentados»; «Rei Mahoca») e não se coíbem de expressar abertamente o desejo de receber um presente, sendo que as armas de fogo constituíam o artigo mais cobiçado.

Conclusão

40 Tal como noutros locais, a difusão e o uso da língua portuguesa não constituíram um fenómeno isolado no interior do continente africano, assentando sim num contexto extremamente complexo. Integravam-se num vasto intercâmbio, em que os artigos de comércio importados e exportados estavam em primeiro plano, mas que, na realidade, era muito mais abrangente e que incentivou múltiplos processos de apropriação e inovação. Graças sobretudo aos Ambaquistas, o kimbundu foi também difundido, paralelamente ao português, mas, ao mesmo tempo, as transformações por eles desencadeadas levaram a que a língua luba se transformasse numa nova lingua franca em toda a região do Cassai. Os Ambaquistas trouxeram também muitos outros artefactos, capacidades e conhecimentos. A leste do Kwango, juntaram-se a estes «extras» do intercâmbio de culturas, sobretudo plantas de cultivo (por exemplo arroz, tomates e cebolas), ofícios e outras artes (por exemplo a de alfaiate e a da leitura e da escrita), artefactos religiosos e profanos, nomeadamente a divulgação das suas formas básicas (por exemplo casacos, sapatos, poltronas, crucifixos, tambores para a divulgação de notícias, poções mágicas), mas também enfermidades (o vírus da varíola), parasitas (bitacaias) e espíritos de possessão. Os contactos que se multiplicaram no século XIX fomentaram a comunicação, intensificando assim este inter-câmbio.

41 O comércio distante com os Chilangue (Luluwa), inaugurado nos anos de 1870 pelos Cokwe e pelos Ambaquistas, conduziu a mudanças profundas no seio das suas comunidades. Os chefes tradicionais haviam sido substituídos por novos dirigentes políticos com orientação comercial, portadores dos respectivos títulos, insígnias e símbolos de poder e a residência de Calamba Muquengue, transformara-se no mais importante centro de comércio e de poder; a isto acresceram inovações a nível das

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estruturas políticas e sociais, bem como da cultura material, uma reorganização do sistema tributário segundo o modelo lunda, novas plantas, a introdução e adaptação de artigos europeus, dos quais as armas de fogo eram particularmente cobiçadas, e também a introdução do gado bovino, sobretudo como sinal de prestígio, e um novo estilo de construção. Diversas instituições e leis antigas foram abolidas, o que proporcionou sobretudo aos mais jovens, uma maior margem de manobra em relação aos seus parentes, no que respeitava à construção das suas vidas segundo os seus ideais. A população que até então se identificava apenas pelo uso do nome dos respectivos clãs, passou a ser reunida sob a designação de Luluwa que lhe foi atribuída pelos comerciantes angolanos52.

42 Embora, como foi demonstrado, não se possa falar de lusofonia, nem aqui, nem noutras regiões para além do Kwango, a verdade é que a divulgação da língua portuguesa não se limitou, decerto, à introdução de alguns vocábulos e de uma nova técnica de comunicação. Os Ambaquistas residentes nos chefados africanos funcionaram também como intermediários transculturais, contribuindo, pelo menos de modo parcial e esporádico, para o reconhecimento de uma aproximação (já que a igualdade estava fora de questão) diplomática, económica e política entre portugueses e africanos. A língua é, como constatou Wilhelm Humboldt, expressão da diversidade do pensamento. Cada uma delas é também «uma forma de ver o mundo»53. As nossas fontes não nos permitem avaliar o alcance desta outra visão do mundo, difundida através do português, no interior do continente africano. O certo é que, com a fundação do Estado Livre do Kongo, e a conferência de Berlim, essa influência começou a enfraquecer no território da futura colónia belga e, mais tarde, com as fronteiras estabelecidas, foi quase completamente cortada. Contudo, na segunda metade do século XX, ainda vivia, junto ao Cassai, um grupo de cerca de 1500 pessoas que se denominavam Akwambaka, mas que haviam sido baptizados, pelos Cokwe, de «cimbadi cia Put», o que pode ser traduzido por «celui que connaît la langue Portuguaise» (aquele que conhece a língua portuguesa)54.

43 Nos territórios ocidentais da Angola actual, este processo complexo, protagonizado por portugueses, luso-africanos e alguns africanos, criou no entanto as bases em que assenta a lusofonia posterior.

12 cartas de Ambaquistas ou de discípulos seus

44 1) Carta do «negociante africano» Narciso António Paschoal a Henrique Dias de Carvalho, de 18.7.1884 (CARVALHO, 1890-1894, op.cit., vol. I, pp. 346-347). «… Sr. – Presente da estimada carta de v., datada de hoje; vou em primeiro logar agradecer os seus cumprimentos que retribuo, desejando-lhe a continuação da sua saude; eu continúo encommodado, sendo este o motivo de ainda não poder dar ahi uma chegada. Aos seus criados dei o recado para se dirigirem aos sobas a fim de arranjarem os carregadores; eu já providenciei para me trazerem todos que podessem ajuntar; mais ainda não me appareceram e apenas pude agora arranjar o homem portador d’esta, para contratar com V. a fim de seguir com elle na sua missão, este homem esteve muitos annos em Loanda, e tem bastante pratica da gente e costumes do sertão. Quando despachar os portadores para Cassanje devem elles passar aqui para receberem a carta para o chefe de Cassanje, assim como recommendar ao pessoal a maneira por que devem entrar naquelle concelho.

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O homem que remetto tem conhecimento com os sobas que, como do costume abonam os carregadores; por isso com grande facilidade pode ir engajando os carregadores, dirigindo-se aos sobas. De V., etc. Angingi Acabari, 18 de julho de 1884. – … Sr. major Henrique de Carvalho. = Narciso Antonio Paschoal».

45 2) Carta do «negociante africano» Narciso António Paschoal a Henrique Dias de Carvalho, de 20.7.1884 (CARVALHO, ibidem, vol. I, p. 347) «... Sr. – É portador d’esta o seu criado que tinha vindo ao engaje de carregadores que não pôde obter nessa, disse-me que alguns sobas pediam que lhes adiantasse alguma vestimenta, mas é uma desculpa simples, e como os conheço, querem enganar a V., porque sei que alguns sobas estão comprometidos com carregadores para diversos negociantes. O homem que eu mandei no outro dia para guia de V., passou aqui hontem tendo- lhe recommendado para hoje seguir para o Sanza, a fim de engajar os carregadores que lhe foram recommendados por V., e vendo a vontade da parte d’elle, creio que o ha de conseguir muito breve. Sube do mesmo homem que V. tencionava mandar uma offerta ao jaga de Cassanje por uns Caquatas55 que me consta estarem ahi no concelho os quaes já estão naturalisados Bângalas, por terem gasto todas as importancias56 que traziam do Muatiânvua a seus negócios, não podendo por este motivo voltarem para a Lunda, e cresce mais que elles não podiam entregar pessoalmente a offerta para o jaga, por não se corresponderem com o referido jaga de Cassanje, e mesmo acho desnecessario fazer similhante offerta, visto V. não tencionar passar nas terras de Cassanje. Eu acho-me um pouco melhor mas muito fraco; tenciono fazer uma visita a V. mesmo para fallarmos sobre certos assumptos da sua missão. Desejo que continue de perfeita saude, e sou com estima e consideração. De V., etc. Angingi Acabari, 20 de julho de 1884. – … Sr. major Henrique de Carvalho. = Narciso Antonio Paschoal».

46 3) Carta do Soba Andala Quissúa Andombo ao ajudante da expedição de Henrique Dias de Carvalho, Manoel Sertorio de Almeida Aguiar, de 29.8.1884 (CARVALHO, ibidem, vol. I, p. 349). «Il.mo Sr. – Recebi a honrada carta de V. S.ª com data de 20 do corrente, que acompanhou uma peça de chita, um barril de polvora, e (3) tres botijas de agua ardente, que por sua generosidade mandou-me offerecer, e mil vezes muito obrigadissimo Fico certo da chegada de V. neste sitio, de meu filho Ndala Quinguangua, assim o trabalho que tem ahi de mandar fazer a pousada (fundo), para qualquer negociador que por ahi transitar, conforme as ordens de Sua Magestade Fidelissima, a quem Deus guarde, e estimarei que cumpra os ditas ordens, para ganhar a victoria. Depois de concluir o trabalho de ahi, aqui m’achará ás ordens, para escolher o sitio que quizer, para fazer outra casa como aquella. A respeito dos carregadores, até quando chegar aqui o … Sr. major, que diz ter ficado em Malanje, e por consequencias V. S.ª pode fallar a meus filhos, que estão vizinhos com o dito Andala Quinguangua, para ver se arranjão ahi alguns carregadores para irem em Malanje. Estimei as medidas que Sua Magestade Fidelissima tomou, de mandar a Expedição portugueza para o Matianvo. Chegando aqui V. e o … Sr. major, poderão fallar bem com os carregadores que quizerem ganhar, para levarem as cargas. Concluo, desejando a V. S.ª a mais perfeitissima saude e ventura, e eu fico de saude, e assentado em um logar por causa da minha idade avançada, e sou por ser com respeito De. V. S.ª seu subdito muito obrigado e criado. Banza, 28 de julho de 1884. – … Sr. tenente ajudante Aguiar. – Sobba, Ndala Quissua Ndombo.

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P.S. – Sciente do bom tratamento que lhe está fazendo o meu subordinado filho Ndala Quinguangua, conforme V. mandou-me dizer na sua estimada carta, e muito estimarei que elle continue, como subordinado portuguez».

47 4) Carta do secretário ambaquista do soba Cuigana Mogongo ao ajudante da expedição de Henrique Dias de Carvalho, Manoel Sertorio de Almeida Aguiar, de 29.8.1884 (CARVALHO, ibidem, vol. I, p. 344) «Ill.mo sr. Tenente. – Em primeiro desculpa sem saber o honrado nome de V. S.ª e peço perdão a V. S.ª por parte de Deus Nosso Senhor, a confiança de lhe dirigir similhante esta; e como minha necessidade tão me exige por isso humildemente dirigio-lhe esta; Estou informado de varios meus patricios d’aqui, em como V. S.ª tem a Gulha57 de olhar para uma pessoa que está muito distante de 4 leguas e pode ser conduzido por um emzollo58 e por este motivo quero ver tambem com meus olhos; e para o que no caso de ser assim, rogo a sua bondade comparecer nesta minha Banza, resposabilizo da jornada do meu senhor 50:000 que são duas vaccas e um garrote que é o nosso dinheiro d’aqui. – Deus guarde a V. S.ª Canbonbo, 29 de agosto de 1884. = Soba, Cuigana Mogongo». [Comentário de Carvalho na p. 345: «Quer V. Ex.ª saber do que se trato [sic]? Pede o homem ao meu ajudante para ir á sua residencia com a machina photographica tirar-lhe o retrato, responsabilisando-se elle pelas despezas da viagem»].

48 5) Carta da chefe shinje Mona Samba Mahango e de seu filho Mona Candala a Henrique Dias de Carvalho, s.d. [1884] (CARVALHO, ibidem, vol. I, pp. 528-529) «Ill.mo e Ex.mo Sr. Major. – Recebi pelo seu portador José, uma peça de chita, uma dita de riscado, um barril de porvora que me mandou, mas isto por lhe informar das ordens que eu publiquei pois, tenho a dizer ao sr. major, que ordenei que publiquei não é porque desgostei com viagem que a sua Senhora Rei de Sua Magestade lhe encarrega marchar e porque a chigada do sr. Capitão não o tratei mal, nem elle, mas havia começo de aver desculpas do ourobo, por parte da minha gente e como vi que ha muita gente com cargas é por isso, dei ordem da minha gente a não ir no acampamento porque no muita confusão é por onde tem havido do ourobo e não para não os vender de comer como falei-lhes vieçe na senzalla a comprar; como levam moneas ao sr. major opois vortam os objectos porque não tem crime para o sr. major pagar-me espero coisas de offertas, como parente do mesmo Rei do Muatahiamvo, pois o sr. Capitão não quer que o povo d’elle que viece na senzalla, o quer é minha gente ir no acampamento e eu não quero para logo aver dezorde e para invitar as consequencias faço o meu asogue para todos e compram ahi, a loba de povora59 avinha sem ser cheia por isso lhe faço ver para não desculpar com meu portador. Sou de V. Ex.ª, veneradora, Muana Mahango e Mona Candalla, seu d’elle».

49 6) Carta de Mona Quienza, marido da chefe shinje Mona Samba Mahango, a Henrique Dias de Carvalho, s.d. [1884] (Carvalho, ibidem, vol. I, p. 529). «Ill.mo e Ex.mo Sr. Major Henrique de Carvalho. – Recebi a sua carta em resposta á minha, onde se dignou dizer que estava passando mal de saude e vai já bem. Eu lhe fiz vortar o mimo que me mandou, como ontem já lhe fiz ver, mas como era de mimo eu recebeu, que isto não ha mais nada. Melhor era que chegaçe nesta sua digna Banza que a vista faz fé, mesmo eu que sou amazio della não estive incaza ontem e que cheguei encontrei já estas borradas o que meu major estranha; nós agradecemos d’esta sua viagem ninguem ambiciona visto estar segundo ao nosso Rei, depois que me trata bem em razão de ser já pertencente do mesmo Rei lhe pareço agradecer, nós tudo o mesmo, e os portadores entregar o mimo e fico-lhe muito obrigado. Sem mais desejo-lhe saude, venha depressa cá o espero que a caza está ás suas ordens. Sou de V. Ex.ª, Mona Quienza, barrigão de Muana Mahango».

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50 7) Carta do Soba Cáhia Cassáxi, sobeta subordinado ao soba Ambango, perto do Lui, a Henrique Dias de Carvalho, de 31.12.1884 (Carvalho, ibidem, vol. I, pp. 529-530). «Ill.mo e Ex.mo Sr. Majolo. – No dia 29 appareceram os meus filhos que eu redava como serventes de revar a sua carga, os porgundei que os faria vir, me contou o seu irmão Quipago foi prezo por isso nos fugimos, como não roubamos nada e sim nada pois viemos. Eu como sou pessoa de considerar mandei vortar meus filhos houtro atraz hoje que vão no manto do nome Caira, eu vou rá por 8 dias o 9 dia rá me tem eu ir farar meus filhos, Banza, 31 de dezembro de 1884. – De V. S.ª seu alto venerador creado, amigo. = Soba, Caia de Cassaxi.»

51 8) Ofício de Quissengue, o mais poderoso potentado cokwe entre os rios Kwango e Cassai60 , a Henrique Dias de Carvalho, de 18.5.1886 (CARVALHO, ibidem, vol. III, pp. 523-524). «Meu presado amigo e senhor major – Hitengo 18 de maio de 1886 – Foi-me á mão o seu favor pelo meu primo Xa Cumba datado de 6 de abril do corrente anno. Sou a dizer que pelo seu conteúdo não respondo nada porque o meu desejo é que o senhor major chegue aqui pessoalmente junto com um quilolo do Muatiânvua61 meu parente para fallarmos bem, embora a sua Expedição fique lá com o Muatiânvua pois o que me importa é fallar com o senhor representante de Muene Puto nosso amo, protector e senhor de todas estas terras e dar-lhe bons conselhos com respeito ao meu parente Muatianvua, visto resolver-se a ir tomar posse do logar para que o chamaram os quilolos da Mussumba. Aqui me achou o seu amigo Xa Cumba com um recado imbocal sobre a faca62 do Muatiânvua Xanama que Muene Puto quer para acabar com as intrigas de Lundas e Quiocos e eu não tenho querido dal-a e se a entreguei agora a rogo de meu primo Xa Cumba é só para que o senhor major fique sabendo quanto nós os Quiocos respeitamos e estimamos a Muene Puto. Devo advertil-o porêm, que todos os Lundas sabem que as facas em meu poder eram duas, uma para matar o meu parente Xa Madiamba que é a que leva meu primo, pois sou amigo e não quero os Quiocos abusem d’isso no caminho para os fecharem á marcha do meu parente e amigo. Se o senhor major não pode vir aqui, não tem nada, para ahi vou fazer partir meu irmão Xa Cazanga e segundo o que conversar com elle irei ao seu encontro no Luembe para fallarmos muito bem sobre a outra faca e acabar todas as questões para o seu amigo Muatiânvua, elle poder herdar e não haver mais mal nenhum. Sem alteração para mais. Desejo ao senhor major ter saude e em geral o mesmo á sua comitiva. Emquanto eu, vou indo sem novidade. Sou como amigo. Do senhor obrigado e acabo. Sua Magestade Quissengue. – N.B.E’, favor mandar-me uma arma de revolvo, é uma graça que lhe agradece muito seu amigo Quissengue».

52 9) Pós-escrito de uma carta de Mona Mahóca63 a Henrique Dias de Carvalho, escrita por um Ambaquista ou um dos seus discípulos e assinado por Sua Magestade Mahoca, s.d. [1886] (Carvalho, ibidem,vol. III, p. 529). «NB – Eu aqui no sitio sô superior de todos os potentados e o Quissengue é meu sobrinho no sitio. Escrevo ao meu amigo para seu contento. O primeiro Quissengue queria guerras com Quimbundo ou o matal-o depois, que eu fiz-lhe voltar, não podia mais lá chegar, por saber que eu sô tio fez-lhe voltar. Vejo que o amigo conhece potentado Quissengue, e não a mim, por isso lhe aviso para ficar na certeza. Desejo- lhe saude e paz a sua comitiva toda. Espero o amigo mande-me algumas polletas64 para arma o favor, lhe serei muito obrigado, disponha etc. 2.º NB. – Terá v. a bondade de mandar pelo meu filho Xa Cumba 1 arma portugueza de mais de 2 canos, sendo revólver, melhor, mais obrigado e summamente grato lhe ficarei eu que sô seu amigo – Rei Mahoca».

53 10) Carta ofício do lunda Muene Luhanda Mutombo («prande potentado» dos Lunda junto ao Chiumbe65) ao Mwant Yav eleito Xa Madiamba alias Quibuinza Ianvo, escrita por seu

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secretário, um Ambaquista ou discípulo de ambaquistas, de 2.6.1886 (Carvalho, ibidem, vol. III, p. 557). «Sitio de Mona Luhanda 2 de junho de 1886. – Senhor Muatiânvua Xa Madiamba. Fui intimado hoje por Vossa Embaixada para me apresentar no Chibango com os meus quilolos sem demora, o que devia cumprir, porém, existe uma complicação não ir junto á Embaixada, pelos Quiocos de cima protesta logo que tenha notícia que estou seguindo para baixo, aproveita a occasisião fazer o bínji66 nestas terras, por isso esperavamos que o nosso Muatiânvua, pae e bom amigo, subisse o Rúqui ou o Cassai, a bem de juntar ahi todos os quilolos de cima pelo menos, o que acontece e o que está para acontecer terá noticia, para ter tempo de acudir aos seus povos que ficam esperando guerra dos Quiocos do sul e contra mim está sério. Todavia os povos estão suspirando a sua chegada para os tirar da escravidão, precisar buscar os prisioneiros que choram liberdade d’elles. a maior parte filhos e filhas do Muatiânvua. e mulheres do mesmo acima comtudo todavia, aquillo que resolva o meu Muatiânvua, duvida nenhuma devo ter, de me apresentar com os meus quilolos, que todos sômos seus escravos e vamos para os seu encontro e acampamento. Nesta data remetto ao meu Muatiânvua pelo velho Calenga, bom amigo, dous ribertos a ser uma moleca e um muleque e tambem um muleque a ex:mo sr. major e um dito a Lucuoquexe do Muatiânvua que são quatro. Sem mais disponha do vosso cativo, que é um nada ao pé do Muatiânvua – (a) Mutombo á Capenda Mona Luhanda».

54 11) Carta de Manuel Correia da Rocha da colónia ambaquista de Luambata, na Mussumba, a Henrique Dias de Carvalho, de 18.5.1886 (CARVALHO, ibidem, vol. III, p. 559). «Sr. major Henrique de Carvalho – Recebi o seu officio e respondo mandando-lhe dizer, que o Canapumba, Muítia, Muári Muíxi, Lucuóquexe e grande Calala, mandam dizer ao … sr., que diga ao nosso amigo Muatiânvua que faça a brevidade de vir muito cêdo; estamos chorando a elle ha muito tempo; o Mutanda Mucanza, irmão do Muatiânvua, que assumiu interinamente a direcção dos negocios e recolheu os parentes que se lhe apresentam para serem entregues ao Muatiânvua, tambem ancioso espera a elle e remette para o … sr., uma ponta de marfim e dois muleques, a outra é para o Xa Madiamba de mussapo (sinal de respeito). Emquanto tudo, está aqui; o que querem é a vinda d’elle com brevidade, que nada de muita demora mais no caminho, que todos andam chorando por elle, nada mais, que nada mais offerecem dizer ao … sr., o mais e a perfeita saude em companhia da sua comitiva, emquanto nós aqui estamos ás suas ordens por sermos do … sr., qiololos do Muatiânvua, o Muítia, Canapumba, Lucuóquexe, Calala, Muári Muíxi e todos mais, e o mesmo escrevente muito seu attencioso vr. e creado Manuel Correia da Rocha».

55 12) Carta do carregador Xavier Domingos Paschoal a Henrique Dias de Carvalho, s.d. [Primavera de 1888] (CARVALHO, ibidem,vol. IV, p. 723).

56 «Meu bom patrão. – Desejo-lhe saude. Por este meio venho sollicitar a V. uma fineza que desejo vel a realisada. Como vim a esta cidade67 em acompanhamento de V., no seu regreço a esta, e como não sou filho d’esta terra e por não me agradar esta terra, não quero ficar, quero regraçar-me á minha patria, portanto venho por meio d’esta minha catinha, pedir o favor de me passar um escripto do meu bom comportamento durante a longa viagem que fizemos para ir á Mussumba e para chegar a esta cidade, que parece não tinha fim, qual é o meu mau procedimento que procedi na viagem, se assim V. patrão assim julgar, outro sim passar-me uma carta para minha segurança, que quando eu chegar á minha terra não me acontecer nada, porque eu em chegando lá, quero fabricar minha cubata em ordem no caminho do negocio junto á minha familia, para quando vier qualquer auctoridade do Rei como o patrão receber-la em boa harmonia, eu sou preto mas com o coração de branco. A terra que eu quero fabricar lá no caminho é o Camau, onde o

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meu patrão com o seu Angananzambi cortou o fogo no acampamento68, onde todos iamos ficando assados, portanto peço a V. este obsequio e favor para o meu governo. – Sou com toda a estima de V. Att.or V.º Obr.º Cr.o Servo que pede a resposta (ass.) Xavier Domingos Paschoal. – NB. Não se esqueça de me dar uma bandeira do nosso Rei para a cubata».

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NOTAS

1. Comentário a um desenho na areia dos Cokwe representando uma bananeira com dois cachos, citado in Mário Fontinha, 1983, Desenhos na areia dos Quiocos do nordeste de Angola, Lisboa, n.º 240. 2. Jan VANSINA, 2001, «Portuguese vs Kimbundu: Language Use in the Colony of Angola (1575 - c. 1845)», Bulletin des Séances de l’Académie royale des Sciences d’Outre-Mer, vol. 47, (3), pp. 267-281. 3. Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa (AHU), cx. 26, 1754-1756, doc. de 6.12.1754, in Carlos COUTO, 1972, Os capitães-mores em Angola no século XVIII, Luanda, Instituto de Investigação Científica de Angola, pp. 65-66, n. 97. 4. Ao que sei, a análise esclarecedora de John K. THORNTON (1987, «The Correspondence of the Kongo Kings, 1614-35: Problems of Internal Written Evidence on a Central African Kingdom», Paideuma, vol. 33, pp. 407-421) não teve continuidade. 5. Ver Ana Paula TAVARES & Catarina Madeira SANTOS (eds.), 2002, Africae monumenta – A apropriação da escrita pelos Africanos. Arquivo Caculo Cacahenda, Lisboa, Instituto de Investigação Científica Tropical; ver também, das mesmas autoras, 2000, «Uma leitura africana das estratégias políticas e jurídicas. Textos dos e para os dembos, Angola c. 1869-1920», in Maria Emília Madeira SANTOS (ed.), A África e a instalação do sistema colonial (c. 1885-c. 1930). III Reunião Internacional de História de África – Actas, Lisboa, Instituto de Investigação Científica Tropical, pp. 243-260; e, em relação à divulgação da escrita em Angola, Maria Emília Madeira SANTOS, 1997, «A apropriação da escrita pelos Africanos», Actas do Seminário Encontro de povos e culturas em Angola, Luanda, 3 a 6 de Abril de 1995, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, pp. 351-359, e Ana Paula TAVARES & Catarina Madeira SANTOS, 1998/1999, «Fontes escritas africanas para a história de Angola», Fontes & Estudos. Revista do Arquivo Histórico Nacional, vols. 4-5, pp. 87-133. 6. Catarina Madeira SANTOS, 2004, «”Escrever o poder”. Os autos de vassalagem e a vulgarização da escrita entre os africanos: o caso dos Ndembu em Angola (séculos XVII-XX)», in Beatrix HEINTZE & Achim von OPPEN (eds.), Angola on the Move: Transport Routes, Communications and History, http://www.zmo.de/angola; ver também TAVARES & SANTOS, 2000, op.cit. 7. Relativamente ao contrato de vassalagem angolano, ver Beatrix HEINTZE, 1979, «Der portugiesisch-afrikanische Vasallenvertrag in Angola im 17. Jahrhundert», Paideuma, vol. 25, pp. 195-223; idem, 1980a, «The Angolan Vassal Tributes of the 17th Century», Revista de História económica e social, vol. 6, pp. 57-78; idem, 1980b, «Luso-african Feudalism in Angola?», Revista Portuguesa de História, vol. 18, pp. 111-131; idem, 1996, Studien zur Geschichte Angolas im 16. und 17. Jahrhundert, Colónia, Köppe. 8. SANTOS, 2004, op.cit. 9. «Regimento endereçado a Fernão de Sousa», 20.3.1624, in Beatrix HEINTZE (ed.), 1985, Fontes para a história de Angola do século XVII. I. Memórias, relações e outros manuscritos da Colectânea Documental de Fernão de Sousa (1622-1635), Estugarda, Steiner, p. 149. Relativamente ao carácter estereotipado desta cláusula, ver idem, 1983, «Probleme bei der Interpretation von Schriftquellen: Die portugiesischen Richtlinien zur Angola-Politik im 17. Jahrhundert als Beispiel», in Rainer VOSSEN & Ulrike CLAUDI (eds.), Sprache, Geschichte und Kultur in Afrika, Hamburgo, Buske, pp. 461-480; e idem, 1996, op.cit. Relativamente ao século XIX, ver David LIVINGSTONE, 1858, Missionary Travels and Researches in South Africa, Nova-Iorque, Harper & Brothers, p. 397. Em relação ao longo «bloqueio do Kwango» pelos Mbangala, ver Beatrix HEINTZE, 2004a, Pioneiros Africanos. Caravanas de carregadores na África Centro-Ocidental (entre 1850 e 1890), tradução de Marina Santos, Lisboa e Luanda, Caminho e Nzila, cap. II. 7.

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10. Em 1864, cerca de um terço da população branca de Angola portuguesa era constituído por estes degredados. Jill DIAS, «Angola», in Valentim ALEXANDRE & Jill DIAS (eds.), 1998, O Império Africano 1825-1890. Lisboa, Editorial Estampa, p. 438. 11. Afirmação do carregador Xavier Domingos Paschoal em 1887 numa carta a Henrique Dias de Carvalho. Henrique Augusto Dias de CARVALHO, 1890-1894, Descripção da Viagem à Mussumba do Muatiânvua, Lisboa, Imprensa Nacional, 4 vols., vol. IV, p. 723. 12. Alexandre Alberto da Rocha Serpa PINTO, 1881, Como eu atravessei África do Atlantico ao mar indico, viagem de Benguella á contra-costa. Atravès regiões desconhecidas; determinações geographicas e estudos ethnographicos, Londres, Sampson Low, 2 vols., vol. I, p. 171; ver também Verney Lovett CAMERON, 1877, Quer durch Afrika, Lípsia, Brockhaus, 2 vols., vol. II, p. 50. 13. Relativamente aos Ambaquistas, ver Joseph C. MILLER, 1988, Way of Death. Merchant Capitalism and the Angolan Slave Trade 1730-1830, Londres, James Currey, cap. 8; DIAS, 1998, op.cit., pp. 363-364; idem, 1986, «Changing Patterns of Power in the Luanda Hinterland. The Impact of Trade and Colonisation on the Mbundu ca. 1845-1920», Paideuma, vol. 32, pp. 291-295, 298, 303; mas sobretudo idem, 2000, «Esterótipos e realidades sociais. Quem eram os “Ambaquistas”?», in Construindo o passado angolano: As fontes e a sua interpretação, Actas do II Seminário International sobre a História de Angola. Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, pp. 597-623; HEINTZE, 2004a, op.cit., caps. I.3 e III.1; Max BUCHNER in Beatrix HEINTZE (ed.), 1999, Max Buchners Reise nach Zentralafrika 1878-1882. Briefe, Berichte, Studien, Colónia, Köppe, pp. 177-178. Para uma pequena sinopse, ver também Jean-Luc VELLUT, 1972, «Notes sur le Lunda et la frontière luso-africaine (1700-1900)», Etudes d’Histoire Africaine, vol. 3, pp. 95-99. 14. Ver VANSINA, 2001, op.cit., pp. 276-278; ver também BUCHNER in HEINTZE, 1999, op.cit., p. 178 («O Ambaquista torcia o nariz em relação à sua língua materna, na presença de estranhos»), p. 391 («Os portugueses teriam muito pouca compreensão para com a língua de Ambaca e nunca conseguiriam aprendê-la verdadeiramente»). 15. Ver, por ex. HEINTZE 2004a, op.cit., cap. II. 3; CARVALHO, 1890-1894, op.cit., vol. I, p. 146; vol. II, p. 626; vol. III, pp. 422, 614; vol. IV, p. 566; idem, 1890a, Ethnographia e história tradicional dos povos da Lunda, Lisboa, Imprensa Nacional, p. 674; idem, s.d. [1890], Álbum de fotografias da Expedição Portuguesa ao Muatianvua 1884/88, AMNE (Arquivo do Ministério dos Negocios Estrangeiros, Lisboa), Secretaria de Estado, 3.° P., A. 7, M. 108, n.º 19a e 26c; BUCHNER in HEINTZE, 1999, op.cit., pp. 180-181, 391; CAMERON, 1877, op.cit., vol. II, pp. 113, 165; Joachim John MONTEIRO, 1875, Angola and the River Congo, Londres, MacMillan and Co, 2 vols., vol. I, p. 223; PINTO, 1881, op.cit., vol. I, p. 292. 16. «Noticias de alguns dos districtos de que se compõe esta provincia», 1867, Annaes do Conselho Ultramarino, parte não official, Lisboa, p. 143. 17. Paul POGGE, 1880, Im Reiche des Muata-Jamvo, Berlim, Reimer, p. 3. 18. Ver por exemplo Manoel Alves de Castro FRANCINA, 1867, «Itinerario de uma jornada de Loanda ao districto de Ambaca, na provincia de Angola», Annaes do Conselho Ultramarino, parte não official, vol. I [1854], Lisboa, 1867, p. 13; CARVALHO, op.cit., 1890-1894, vol. I, p. 566; ver também LIVINGSTONE, 1858, op.cit., p. 405; cf. também pp. 238, 394, 479; MONTEIRO, 1875, op.cit., vol. I, p. 223; vol. II, p. 102; PINTO, 1881, op.cit., vol. I, p. 171. 19. Ver Hermenegildo CAPELLO & Roberto IVENS, De Benguella ás terras de Iácca, Lisboa, Imprensa Nacional, 1881, 2 vols., vol. I, p. 40; CARVALHO, 1890-1894, op.cit., vol. I, p. 147. 20. «Noticias... », 1867, op.cit., p. 143: «ambaquistas, que mesmo no caminho para a cidade, são encontrados nos fundos, assentados no chão com uma caixinha de bordão forrada de papel, cheia de cartas e com uma na mão a lerem em voz alta». 21. CARVALHO, 1890a, op.cit., p. 215 nota de rodapé 1; Francisco de CASTELBRANCO, História de Angola…, Luanda, 1932, p. 299 in TAVARES & SANTOS, 1998/1999, op.cit., p. 92 nota de rodapé 15.

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22. LIVINGSTONE, 1858, op.cit., p. 405; Francisco de CASTELBRANCO, Hístória de Angola…, Luanda, 1932, p. 299 in TAVARES & SANTOS, 1998/1999, op.cit., p. 92 nota de rodapé 15. 23. Hermann SOYAUX, 1878, «Nur ein Neger», Die Gegenwart, vol. 13, (10), pp. 153-154; idem, Aus West-Afrika. 1873-1876. Erlebnisse und Beobachtungen, Lípsia, F.A. Brockhaus, 1879, p. 116. 24. LIVINGSTONE, 1858, op.cit., pp. 393-395, 479; idem, 1963, Livingstone’s African Journal 1853-1856, ed. I. Schapera, Londres, Chatto & Windus, 2 vols., vol. I, pp. 125-127, ver também pp. 215, 227. 25. Ver HEINTZE, 2004a, op.cit., caps. I.3 e III.1 e a bibliografia aí referida. 26. Para uma boa visão das rotas mais importantes, ver VELLUT, 1972, op.cit., pp. 101-110, 115-132; ver também Beatrix HEINTZE, 2002, Afrikanische Pioniere: Trägerkarawanen im westlichen Zentralafrika (ca. 1850-1890), Francoforte do Meno, Lembeck, e idem, 2004a, op.cit., cap. III.3. 27. Ver por exemplo CAMERON, 1877, op.cit., vol. II, pp. 50, 113, 121, 165; Paul POGGE, 1883-1885, «Mittheilungen aus Dr. Paul Pogge’s Tagebüchern, bearbeitet von Dr. A. von Danckelman», Mittheilungen der Afrikanischen Gesellschaft in Deutschland, vol. IV, p. 230; CARVALHO, 1890-1894, op.cit., vol. II, pp. 254, 277, 626, 656; vol. III, pp. 613-614, 831; vol. IV, p. 566. 28. CARVALHO, ibidem, vol. II, p. 614, vol. III, p. 432. 29. CARVALHO, ibidem, vol. I, pp. 145-147; vol. II, p. 838; segundo vol. IV, p. 227 só no ano de 1869, mas acho a data anterior mais provável. 1869 é a data da grande caravana comercial, que Mwant Yav Muteba destinou ao governador português em Luanda. A maior parte das datas mencionadas por Carvalho neste contexto são apenas valores aproximados, uma vez que se baseiam em informações contadas só muitos anos mais tarde. 30. LIVINGSTONE, 1858, op.cit., p. 493. 31. Henrique Augusto Dias de CARVALHO, 1890b, A Lunda ou os Estados do Muatiânvua, dominios da soberania de Portugal, Lisboa, Adolpho, Modesto & Ca., pp. 19-20; relativamente à expansão dos Ambaquistas, ver HEINTZE, 2004a, op.cit., caps. II.1, II.5, II.6, III.1; e também BUCHNER in HEINTZE, 1999, op.cit., pp. 279, 280, 290; CARVALHO, 1890-1894, op.cit., vol. I, p. 481; vol. II, pp. 8, 92, 110, 114, 192, 249, 292, 307, 418-419; vol. III, pp. 97, 529, 557, 644, 649, 736, 831, 896; idem, 1890a, pp. 102, 104, 483; LIVINGSTONE, 1858, op.cit., pp. 478; 1963, op.cit., vol. I, p. 227. 32. CARVALHO 1890a, op.cit., p. 260; ver também idem, 1890-1894, op.cit., vol. III, p. 913; vol. IV, pp. 201, 208, 228-229; HEINTZE, 2002, op.cit., idem, 2004a, op.cit., idem, 2004b, «Between Two Worlds: The Bezerras, a Luso-African Family in Western Central Africa (19th Century)», Paper presented at the Charles Boxer Centenary Conference Creole Societies in the Portuguese and Dutch Colonial Empires, King’s College, Londres, 9 de Setembro de 2004. 33. CARVALHO 1890-1894, op.cit., vol. II, p. 8. 34. Ibidem, vol. III, p. 648. 35. Ibidem, vol. I, p. 421. 36. LIVINGSTONE, 1858, op.cit., pp. 238, 394, ver também p. 405; idem, 1963, op.cit., vol. I, pp. 126, 215, 227. Relativamente aos territórios ocidentais ver MONTEIRO, 1875, op.cit., vol. I, p. 104 (no litoral), ver também p. 223, vol. II, p. 102; CARVALHO, 1890-1894, op.cit., vol. I, p. 86 (os seus carregadores de Luanda falam todos «mais ou menos portuguez»), p. 144 (alguns sobas do concelho de Ambaca: «mais ou menos se faziam perceber em portuguez»), p. 445 (os herdeiros de Andala Quisua: «melhor ou peor percebem o portuguez»). 37. BUCHNER in HEINTZE, 1999, op.cit., pp. 157, 178. 38. Ver por exemplo ibidem, pp. 95, 177-178, 181; CARVALHO, 1890a, op.cit., p. v; ver também idem, 1890-1894, op.cit., vol. I, p. 146; vol. III, p. 422; cf. também p. 523; Anton Erwin LUX, 1881, Von Loanda nach Kimbundu. Ergebnisse der Forschungsreise im äquatorialen West-Afrika (1875-1876), Viena, Eduard Hölzel, p. 100; Otto H. SCHÜTT, 1881, Reisen im südwestlichen Becken des Congo. Nach den Tagebüchern und Aufzeichnungen des Reisenden, editado e trabalhado por Paul Lindenberg, Berlim, Reimer, p. 3. 39. Ver por exemplo «Noticias…», 1867, op.cit., p. 145; BUCHNER in HEINTZE, 1999, op.cit. p. 180; PINTO, 1881, op.cit., vol. I, p. 292; CARVALHO, 1890-1894, op.cit., vol. II, pp. 114, 254, 626; vol. IV,

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pp. 201, 208, 566, 723, 803; idem, 1890a, op.cit., p. 499; Hermann von WISSMANN, 1892, Unter deutscher Flagge quer durch Afrika von West nach Ost, Berlim, Walther & Apolants Verlagsbuchhandlung, p. 42; Hermann von WISSMANN, Ludwig WOLF, Curt von FRANÇOIS e Hans MÜLLER, 1891, Im Innern Afrikas. Die Erforschung des Kassai während der Jahre 1883, 1884 und 1885, Lípsia, F.A. Brockhaus, p. 205. 40. BUCHNER in HEINTZE, 1999, op.cit., p. 391. 41. BUCHNER in HEINTZE, ibidem, p. 392; ver também CARVALHO, 1890-1894, op.cit., vol. I, pp. 349, 491; vol. III, p. 648. 42. BUCHNER in Heintze, ibidem, p. 391. 43. LIVINGSTONE, 1858, op.cit., p. 405. 44. BUCHNER in Heintze, 1999, op.cit., pp. 95, 280, 391. 45. CARVALHO, 1890a, op.cit., p. 134. 46. BUCHNER in HEINTZE, 1999, op.cit., p. 266. 47. CARVALHO, 1890-1894, op.cit., vol. I, p. 261; vol. III, p. 648; idem, 1890a, op.cit., pp. 102, 722. 48. CARVALHO, 1890a, op.cit., pp. 328-329, 349. 49. Ver HEINTZE, 2002, op.cit., e 2004a, op.cit., sobretudo caps. II.1, II.5, III.1. Ver também CARVALHO, 1890-1894, op.cit., vol. I, pp. 344, 528-530; vol. II, p. 419; vol. III, pp. 411, 523-524, 529, 557, 831; idem, 1890a, op.cit., pp. 590, 628; (Paul GIEROW), 1881-1883, «Die Schütt’sche Expedition. Bericht des Mitgliedes der Expedition, Herrn Paul Gierow», Mittheilungen der Afrikanischen Gesellschaft in Deutschland, vol. III, p. 105; CAPELLO e IVENS, 1881, op.cit., vol. I, pp. 39-40, 175-176. 50. Ver adiante, Carta 10. 51. Relativamente a afirmações de parentesco num contexto político, ver HEINTZE, 2002, op.cit., e 2004a, op.cit., caps. III.5; idem, 2003, «Orale Traditionen als Mittel zentralafrikanischer Tagespolitik im 19. Jahrhundert», Intervenção no workshop Inszenierung von Geschichte, Francoforte do Meno, manuscrito; idem, «Long-distance Caravans and Communications beyond the Kwango (c. 1850-1890)», in Beatrix HEINTZE e Achim VON OPPEN (eds.), 2004c, Angola on the Move: Transport Routes, Communications, and History, http://www.zmo.de/angola. 52. Ntambwe LUADIA-LUADIA, 1974, «Les Luluwa et le commerce luso-africaine (1870-1895)», Etudes d’Histoire africaine, vol. 6, pp. 92-104; ver também CARVALHO, 1890-1894, op.cit., vol. II, p. 261; vol. III, pp. 647-648; idem, 1890a, op.cit., pp. 102, 702; BUCHNER in HEINTZE, 1999, op.cit., p. 523; LIVINGSTONE, 1858, op.cit., pp. 478-479. 53. Citado in Jutta LIMBACH, 2005, «Ich liebe unsere Sprache. Englisch ist ein Muß, Deutsch ist ein Plus: Plädoyer für eine aktive Sprachpolitik – in Innern wie im Ausland», Frankfurter Allgemeine Zeitung, 8.2.2005. 54. LUADIA-LUADIA, 1974, op.cit., p. 61. 55. Trata-se de Toca Muvumo e alguns outros caquata, que o Mwant Yav Noéji Ambumba enviara, em 1882, para Luanda, para o governador português, com cinquenta presas de elefante, uma «anã», duzentos escravos, borracha e um leopardo vivo, que, no entanto, tinham sido retidos pelos Mbangala junto ao Kwango. Em Julho de 1884 chegaram a Malanje, onde encontraram Carvalho ocupado com os preparativos da sua expedição. Relativamente a esta missão lunda, ver HEINTZE, 2002, op.cit., e 2004a, op.cit., cap. II.7. 56. Conjunto de artigos de comércio que um negociante levava na sua viagem. Cf. também BUCHNER in HEINTZE, 1999, op.cit., pp. 329-330. 57. «Agulha» como sinónimo de aparelho, instrumento? 58. Pode tratar-se de uma vocalização de «anzol», reportando-se, em sentido figurado, ao fio do disparador, ou de «anzolo» (bracelete), referindo-se, também em sentido figurado, à lente ou objectiva da máquina fotográfica. 59. «Arroba de pólvora». 60. Ver CARVALHO 1890-1894, op.cit., vol. III, pp. 473, 517 (chefe principal dos Cokwe entre os rios Chicapa e Luembe), 798 (Quissengue, que se fez intitular de Majestade, assina de cruz).

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61. O Mwant Yav eleito Xa Madiamba alias Quibuinza Ianvo, herdeiro potencial do título de Mwant Yav, que em 1870 ou 1871 fugira da Mussumba devido a intrigas de corte e fôra para o exílio, e que agora deveria tomar posse como Mwant Yav. O parentesco alegado nesta carta, entre Quissengue e Xa Madiamba, é fictício e assenta numa linguagem de parentesco baseada em tradições orais, comum às elites lunda e cokwe. 62. Trata-se da grande faca cerimonial e de guerra mucuali, dos Lunda, que o Mwant Yav Noéji Ambumba, conhecido por Xanama (1874-1883) tinha dado aos Cokwe como garantia e compensação pelo serviço de lhe matarem os seus inimigos lunda. O resgate da faca e a consequente reconciliação oficial entre Lunda e Cokwe só foram possíveis graças à intervenção de Carvalho. Ver CARVALHO ibidem, vol. III, passim. 63. Pai do potentado cokwe, Muanangana Xa Cumba, um «sobrinho» do poderoso chefe cokwe Quissengue, que vivia a sul de Hitengo, a residência deste. Ver CARVALHO, ibidem, vol. III: pp. 154, 414, 896. 64. «Espoletas». 65. Ver CARVALHO, ibidem, vol. III, pp. 380-381, 910. 66. CARVALHO, ibidem, vol. III, p. 404: «fazer o binji, era equivalente ás gazzivas, roubos de gente, ou caça de pessoas». 67. Luanda. 68. O acampamento da Expedição tinha sido destruído pelo fogo a 9.5.1885. O vale da Camau pertencia aos domínios do chefe Caianvo, súbdito do potentado shinje Capenda-ca-Mulemba.

RESUMOS

A difusão da língua portuguesa em Angola, iniciada com a chegada dos portugueses no século XV, está estreitamente ligada ao comércio atlântico de escravos. Os principais impulsos dessa difusão partiram das cidades, feitorias e presídios portuguesas junto à costa e no hinterland. No entanto, atribuir as raízes históricas da actual lusofonia em Angola única e exclusivamente aos portugueses e ao seu domínio colonial, seria incorrer num erro grosseiro e num simplismo inadmissível. Desde o século XVII que um grupo de africanos que adoptou elementos da cultura portuguesa – para além do vestuário, principalmente a língua falada e escrita – teve uma participação decisiva neste processo, não só no hinterland costeiro, mas a partir do início do século XIX também no interior profundo do continente, longe de qualquer influência directa dos portugueses. No interior do continente, este processo terminou após a conferência de Berlim e a criação do Estado Livre do Congo. Nos territórios ocidentais da Angola actual, o processo complexo, protagonizado por portugueses, luso-africanos e alguns africanos, criou no entanto as bases em que assenta a lusofonia posterior.

Since the arrival of the Portuguese in the 15th century the spread of the Portuguese language across Angola has primarily been linked with the Atlantic slave trade. The main impulses are regarded as radiating from Portuguese settlements along the coast and in the hinterlands, as well as from their military posts and trading stations. However, it would be too reductionistic to assert that the historical roots of present-day Lusophone culture is of Portuguese provenience only and the product of colonial rule. As early as the 17th century Africans began adopting elements of Portuguese culture – dress certainly, but most importantly the written and spoken language – not only in areas of the coastal hinterland, but beginning in the 19th century also

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deep in the continent’s interior well out of reach of any direct Portuguese influence. This too played a decisive role in the spread of Lusophone culture. In the African interior this process was interrupted after the Berlin Conference and the establishment of the Congo Free State. However, in the western regions this process, propelled and sustained by Portuguese, Luso-Africans and a few Africans, laid the foundations early on for what would later become a flourishing Lusophone culture.

AUTOR

BEATRIX HEINTZE Frobenius-Institut, Frankfurt am Main, Alemanha

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Raça, Sangue e Robustez. Os paradigmas da Antropologia Física colonial portuguesa

Rui M. Pereira

1. «Como se deve estudar um preto do ponto de vista antropológico»

1 Em 9 de Agosto de 1946, Joaquim dos Santos Júnior, médico e professor na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, ministrava na cidade de Quelimane, no Norte de Moçambique, perante a população europeia local, uma palestra no âmbito dos trabalhos que vinha a desenvolver naquela região e paragens circunvizinhas. Finalmente, poderiam as autoridades locais e a população europeia em geral perceber o alcance e objectivos das visitas anuais daquele distinto médico e professor universitário da Metrópole que, desde há dez anos àquela parte, insistia em se embrenhar no mato para estudar os «indígenas». O título da lição-conferência aos habitantes europeus de Quelimane era «Como se deve estudar um preto do ponto de vista antropológico» e reproduzia, no essencial, uma conferência que Santos Júnior tinha apresentado no ano anterior, durante a sua anterior visita a Moçambique, na cidade da Beira. Nesta cidade, em 9 de Novembro de 1945, Santos Júnior proporcionara aos colonos aí residentes os conhecimentos de «Como se deve estudar um preto. Lição sobre o modo (exemplificando com um indígena) como se observam os caracteres descritivos e se tiram algumas medidas de maior interesse antropológico». A conferência-lição da Beira, depois de repetida em Quelimane, seria ainda ministrada, em 6 de Outubro de 1946, em Nampula (sob o título, mais prosaico, de «Antropologia Colonial»), encerrando aí o ciclo de sessões de esclarecimento que aquele médico e antropologista da «escola do Porto» apresentou nas principais cidades do Centro e Norte de Moçambique (SANTOS JÚNIOR, 1952: 3).

2 A «escola do Porto» marcou decisivamente a orientação do pensamento antropológico português por toda a primeira metade do século, quer essa Antropologia se referisse ao

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perímetro metropolitano, quer se reportasse aos territórios coloniais. António Augusto Mendes Corrêa, médico, doutorou-se em Antropologia Física em 1921, o que em muito explica o sentido antropobiologista da escola que tutelou (RODRIGUES, 1990: 11). No que respeita ao terreiro colonial, as primeiras acções de vulto desta escola ocorreram a partir de 1936, quando o então Ministro das Colónias, Francisco Vieira Machado, determinou o envio de missões antropológicas às colónias com o objectivo de proceder ao «conhecimento dos grupos étnicos de cada um dos nossos domínios ultramarinos, ou seja, a elaboração das respectivas cartas etnológicas»1.

3 No seguimento da determinação ministerial de 1936, foram enviadas missões antropológicas à Guiné, a Angola, a S. Tomé e Príncipe, a Moçambique e a Timor. O provimento de investigadores para essas missões processar-se-ia, sobretudo, por via da Faculdade de Ciências do Porto e do seu Instituto de Antropologia, de onde proveio, por exemplo, Joaquim Rodrigues dos Santos Júnior que, no terreno, dirigiu as seis campanhas (1936, 1937, 1945, 1946, 1948, 1955) da Missão Antropológica de Moçambique, sem dúvida a mais esforçada e sucedida das «missões antropológicas» então criadas. Se bem que o objectivo enunciado no decreto de criação tenha sido atingido, isto é, ao fim das seis campanhas a Missão tinha já elaborado uma carta etnológica de Moçambique com cerca de 80 designações etnonímicas, os membros da equipa estavam sobretudo preocupados no levantamento de dados antropométricos, na boa tradição da escola antropológica do Porto: «Observámos muitos milhares de indígenas [...] e temos em arquivo mais de 12 000 fichas antropológicas, com uma média de 20 medidas cada uma. Num certo número de índices de maior importância antropológica estão já feitas umas 80 000 determinações, duma boa parte das quais se fizeram as seriações e calcularam as médias, os desvios padrões e seus erros prováveis. Estes milhares de números, apreciados estatisticamente, hão-de fornecer elementos para a apreciação somática das tribos e suas relações de similitude ou diversidade» (SANTOS JÚNIOR, 1956a: 7).

4 Nos vinte e três anos de acção das Missões Antropológicas de Moçambique2, entre 1936 e 1959, foram publicados, em resultado e no quadro daquelas missões, 44 trabalhos, dos quais apenas 14 relevam dos desígnios da Etnografia3. Prosperavam os estudos de antropometria, sobretudo aqueles que diziam respeito ao aproveitamento da força de trabalho e cujos objectivos são facilmente descortináveis, como, entre outros (e apenas para o caso de Moçambique), «Contribuição para o estudo das relações entre os grupos sanguíneos e os caracteres físicos dos negros de Moçambique (tribo Tonga-Changane)» (ALBERTO, 1954a) e, mais significativamente, «Contribuição para o estudo da robustez da raça Maconde» (REIS, 1954) ou «Variações da robustez dos trabalhadores Macondes» (REIS, 1955). A persistência de estudos antropológicos desta natureza em meados da década de 50 do século passado parece indicar um não alinhamento com o então propalado novo quadro ideológico da política colonial portuguesa, mas se isso aconteceu foi porque as reformas constitucionais de 1951 e todas as disposições legislativas que lhes estiveram associadas não tiveram qualquer correspondência no domínio da realidade social, política e económica das colónias. Referindo-se à revisão constitucional de 1951, particularmente à permuta do termo «colonial» pela designação «ultramar», Adriano Moreira reconheceu explicitamente que tal substituição «teve na base mais a preocupação de tomar uma atitude perante as tendências internacionais do que exprimir um novo sentido da política consagrada nos textos» (MOREIRA, 1960: 318).

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2. Aplicabilidade e utilitarismo

5 No início dos anos 30, a iniciativa de renascimento do «espírito imperial» na ciência partiu dos próprios cientistas. Como se pode deduzir dos muitos votos de académicos das universidades do Porto, Coimbra, Lisboa e da Escola de Medicina de Goa no 1.° Congresso Nacional de Antropologia Colonial, realizado no Porto em 1934, os antropólogos físicos apostavam em colocar a investigação científica ao serviço da «revalorização das colónias» (CORRÊA, 1935a: 21). Apesar de todo o entusiasmo pelas novas possibilidades de investigação e novos domínios de aplicação que então surgiam para a Antropologia Física, através da sua aplicação nas colónias, o balanço do interesse manifestado até então pelo Estado e pela opinião pública era modesto. Não sem algum sarcasmo, Mendes Corrêa, principal mentor do congresso, comentava assim o generalizado desinteresse pelos problemas coloniais nas escolas e universidades portuguesas (CORRÊA, 1935a: 26): «As nossas Universidades e escolas vivem geralmente num mundo abstracto em que parecem ignoradas as colónias, a não ser por vezes ao comentarem algumas estrofes dos Lusíadas ou quando se entra em conta com uns pobres mapas, suspensos das paredes e mais visitados pelas moscas indiscretas do que pelos olhares verdadeiramente interessados da mocidade dum país dotado duma consciência imperial».

6 Na sessão de encerramento do Congresso os participantes aprovaram um programa detalhado para a criação de institutos científicos coloniais e missões de pesquisa no terreno para a investigação sistemática dos «indígenas» sob uma perspectiva antropológica, psicológica e linguística. Supõe-se que na sequência das conclusões do Congresso, a Junta de Educação Nacional do Ministério da Educação encarregou Mendes Corrêa da elaboração de um plano para a «ocupação científica das colónias». O plano, apresentado por Mendes Corrêa em 1935 à Junta de Educação Nacional, previa o envio de missões de investigação científica das universidades do Porto, Coimbra e Lisboa, essencialmente para Angola e Moçambique, nas áreas da Botânica, da Zoologia e da Antropologia Física (CORRÊA, 1945: 3-4; SANTOS JÚNIOR, 1944: 5).

7 Contudo, ignorando todos esses esforços para colocar as universidades no centro da investigação colonial, em Janeiro de 1936 o Governo decidiu fundar um organismo autónomo, na dependência do Ministério das Colónias, para a coordenação e promoção das ciências coloniais. A criação da Junta das Missões Geográficas e de Investigações Coloniais (JMGIC) foi incluída no decreto de reforma da lei orgânica do Ministério das Colónias4. Em 1945 a JMGIC acolheu uma nova lei orgânica, através da qual se declarava que a Junta e, em última instância, o Ministério das Colónias, passava a ser responsável pela condução e coordenação de todas as missões de investigação oficiais nas colónias, bem como por todos os centros de estudos e investigações na área das ciências coloniais por iniciativa privada ou de institutos estrangeiros5. A nova lei orgânica da Junta determinava as áreas de especialização das ciências coloniais por ela abrangidas, as quais foram divididas em duas secções: uma secção geográfica e uma secção para a «História Natural». A esta última pertenciam a Geologia, a Zoologia, a Botânica, a Antropologia e a Etnologia. Infelizmente, o decreto não explana mais detalhadamente os conteúdos dos estudos antropológicos e etnológicos para podermos, por aí, aferir dos critérios que presidiram à sua distinção. Contudo, como iremos constatar, não se pode inferir de imediato que o estudo da dimensão social e cultural do Homem mereceria, por parte da Junta, um tratamento equitativo ao da perspectiva antropobiológica. As «missões

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antropológicas e etnológicas» enviadas pela JMGIC para as colónias eram dirigidas por antropólogos físicos (Santos Júnior em Moçambique, Amílcar Mateus na Guiné e António de Almeida em Angola, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Timor), com formação na área das ciências naturais e estreitamente ligados ao grupo que temos vindo a designar por «Escola do Porto»6, na qual pontificava Mendes Corrêa. A influência de Mendes Corrêa na JMGIC, cuja secção antropológica foi por ele conduzida a partir de 1936 (CORRÊA, 1952b: 29), saiu reforçada nessa reforma da lei orgânica de 1945 com a nomeação do Professor de Antropologia Física do Porto, em 1946, para presidente da Junta das Missões Geográficas e de Investigações Coloniais.

3. Mendes Corrêa e a «Escola do Porto»

8 A inclusão da Antropologia e da Etnologia como partes da «História Natural» na Junta das Missões Geográficas e de Investigações Coloniais e o envio de antropólogos físicos para «missões antropológicas e etnológicas» nos anos 30 e 40 tiveram origem na enorme influência de Mendes Corrêa e dos seus colaboradores e alunos da «Escola do Porto», imprimindo um certo conceito de Antropologia nas ciências coloniais portuguesas por toda a primeira metade do século XX.

9 A «Escola do Porto» de Antropologia tinha sido constituída nos anos 20 a partir de uma estreita ligação entre duas instituições científicas da cidade: o Instituto de Investigação Científica de Antropologia (frequentemente designado na forma abreviada de «Instituto de Antropologia») da Faculdade de Ciências Naturais da Universidade do Porto e a Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia (SPAE), com sede na mesma faculdade. O Instituto de Antropologia, fundado em 1923 ocupava-se exclusivamente da Antropologia Física e era suportado pela disciplina de Antropologia como subárea da Biologia da secção de História Natural, bem como pelo Museu Antropológico que lhe estava associado e pelo Laboratório Antropológico da Universidade do Porto7. A SPAE, fundada em 1918 – com a sua revista «Trabalhos da Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia»8 –, incluía nas suas áreas de estudo, além da Antropologia Física, também a Pré-História e a Etnografia de Portugal.

10 O núcleo duro da «Escola do Porto» era composto por médicos e biólogos que se dedicavam à Antropologia Física e publicavam regularmente estudos científicos, alguns dos quais versando matérias que diziam respeito quer à Pré-História e Arqueologia, quer ao Folclore e Etnografia. Mendes Corrêa era a principal figura em ambas as instituições: como médico, assistente de biologia e médico legista, estava desde 1912 à frente da disciplina de Antropologia, bem como do Museu e do Laboratório Antropológico da Universidade do Porto; em 1921 ascendeu ao lugar de professor ordinário da mesma universidade e, a partir de 1923, a director do Instituto de Antropologia. A Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia, que tinha sido fundada em 1918 por sua iniciativa, foi por ele presidida até 1954 (CORRÊA, 1940a: 619-636; MONTEIRO, 1959: 296-305; MONTEIRO, 1960: 160-163; SANTOS JÚNIOR, 1982: 189-209).

11 O conceito de Antropologia de Mendes Corrêa e da «Escola do Porto» englobava, contudo, dois aspectos contraditórios entre si: por um lado, a Antropologia era entendida como uma ciência de integração abrangente, incluindo não só a Antropologia Física, mas também a Pré-História, a Etnografia e a Psicologia. Por outro lado, a Antropologia Física baseava-se na raciologia e na teoria da hereditariedade que, por natureza, excluíam uma perspectiva social e cultural. Dessa forma, a Antropobiologia, que surgiu a partir dos anos

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20 com os novos métodos da análise de grupos sanguíneos, partia de uma explicação biológica da «mentalidade das diferentes raças» (CORRÊA, 1933: 18): «A Antropobiologia ocupa-se de investigações sôbre a hereditariedade normal e patológica no homem, dos estudos eugénicos, da fisiologia das raças, dos grupos sanguíneos e outros assuntos de bioquímica humana, das constituições e temperamentos, da determinação da base biológica da mentalidade e actividade das diferentes raças».

12 Convém esclarecer, aqui chegados, a utilização, muito frequente nos textos de Antropologia Física dos autores da «Escola do Porto», dos conceitos de Etnologia e Etnografia, como se fossem definidos enquanto estudo das raças. Esta aparente «confusão» pode ser explicada pelo sentido muito «amplo» que Mendes Corrêa emprestava à Antropologia, abrangendo tanto a Antropologia Física étnica entendida como Etnologia ou Raciologia — segundo um conceito que ele tomou do antropólogo físico francês Broca9 –, como a Antropologia psíquica e cultural em que o conceito de Etnologia era utilizado como sinónimo de Etnografia. Mendes Corrêa cristalizaria, em 1941, o credo científico da «Escola do Porto» com as seguintes palavras (CORRÊA, 1933: 35-36): «(…) a Antropologia é entendida num sentido lato embora não tão amplo que ela constitui uma verdadeira enciclopédia de tôdas as ciências que dizem respeito ao homem e às sociedades humanas. É sobretudo tomada num sentido comparado: comparação do homem com os antropóides, e dos tipos humanos, raças e povos entre si, mas comparação que incide sôbre caracteres não apenas somáticos ou físicos, mas também psíquicos e sociais. Isto é, a Antropologia aparece como um estudo integral do homem e dos grupos humanos, abrangendo portanto a Antropologia zoológica, a Antropologia física étnica (a “Etnologia”, segunda a Escola de Broca), a Antropologia psíquica e cultural (a “Etnologia” de outras escolas; Etnografia num sentido común), a Prehistória, etc».

13 No entanto, se consultarmos as largas dezenas de textos produzidos pelos vários membros da «Escola do Porto», depressa constataremos que, em termos gerais, a designação Antropologia – nas várias asserções que lhe atribuíam – foi a mais amplamente utilizada.

14 O 1.° Congresso Nacional de Antropologia Colonial de 1934 no Porto, alicerçado na Exposição Colonial que aí decorria, constituiu a oportunidade de que a «Escola do Porto» necessitava para se afirmar. E fê-lo com estrondo. As exaustivas investigações antropométricas, serológicas, ergológicas e psicológicas, entre outras, junto dos mais de 300 «exemplares» da população colonizada que foram exibidos (esta é a expressão mais correcta) na Exposição Colonial deveriam demonstrar a força científica e a aplicabilidade da Antropologia Física em prol de uma colonização mais racional e de uma revalorização da mão-de-obra indígena. No seu discurso inaugural do Congresso, Mendes Corrêa quis marcar a diferença: a estreita associação da Antropologia Física à Exposição Colonial do Porto destinava-se a evitar as encenações baratas da Exposição Colonial de Paris, em 1930, que, em seu entender, se esgotavam na teatralidade do exótico, sem qualquer objectivo civilizacional (CORRÊA, 1935a: 28-29). «Os trabalhos apresentados na 1.ª secção do Congresso abordavam a Antropologia Física, a Biologia étnica, os cruzamentos e os grupos sanguíneos e as comunicações da 2.ª secção versavam a Etnologia, o Folclore, a Linguística, a Psicologia, a Sociologia e as religiões. É de notar que na 2.ª secção foram também apresentados estudos de antropólogos físicos sobre o «nível espiritual», o «valor psicossocial» e o «tempo de reacção» dos «indígenas»10.

15 Os muito pouco conhecidos e divulgados «estudos sobre mestiços», pelos quais Mendes Corrêa se interessou especialmente após 1934, demonstram com particular clareza o

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racismo que parece ter contaminado alguns dos antropólogos físicos da«Escola do Porto». É certo que Mendes Corrêa rejeitou veementemente as teorias de higiene racial pangermanistas de Hans F. K. Günther, encarando as suas teorias como não sendo científicas. Contestava energicamente, sobretudo, a tese de Günther sobre as marcantes influências genéticas dos negros africanos sobre os portugueses e procurou refutar essa tese através de pesquisas sobre grupos sanguíneos (CORRÊA, 1933: 36). Para defender a integridade racial dos portugueses, Mendes Corrêa deitou mão dos métodos empregues pelos raciólogos brasileiros Oliveira Viana e Roquette Pinto na investigação da mestiçagem (CORRÊA, 1926: 12-ss; CORRÊA, 1935c: 386), bem como dos utilizados pelo teórico da «limpeza racial» Eugen Fischer (CORRÊA, 1926: 12; CORRÊA, 1935b: 333). Mas essa mesma unidade rácica e cultural do povo português postulada por Mendes Corrêa foi também utilizada como argumento contra a mistura de raças, que ele considerava ser um dos «factores degenerativos» que poderiam conduzir à idiotia e à demência mental (CORRÊA, 1940b: 13). Por este motivo, a mistura de raças deveria ser globalmente rejeitada e os mestiços deveriam ser impedidos de alcançar posições políticas de liderança (CORRÊA, 1940c: 23): «É intuitivo que, quanto mais intenso e variado for o mestiçamento e mais activa a interferência social e política dos mestiços na vida portuguesa, mais rapidamente e forte-mente se desfigurará a fisionomia tradicional da Pátria e irá desaparecendo o que de mais nobre e próprio existe no valor português. Seria a dissolução do Portugal multisecular, o fim de uma cadeia vital ininterrupta e gloriosa. (…) … as razões que expusemos, não permitem que o papel político dos mestiços ultrapasse o âmbito da vida local. Por mais brilhante e eficaz que possa ser a sua acção profissional, económica, agrícola, industrial etc., nunca êles deverão (…) exercer postos superiores da política geral do país, salvo porventura em casos de demonstrada e completa identificação connosco, no temperamento, na vontade, no sentir, nos ideais, casos êsses, aliás, muito excepcionais e improváveis».

16 Argumentação semelhante tinha sido desenvolvida, alguns anos antes, por um outro ilustre membro da Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia, o professor da Universidade de Coimbra Eusébio Tamagnini (1935: 61).

17 Após 1945, Mendes Corrêa – e com ele a «Escola do Porto» – conseguiu alcandorar-se a posições de liderança nos mais importantes organismos estatais e privados de ciências coloniais. Em 1946, como atrás referimos, Mendes Corrêa tornou-se não só presidente da reformada Junta das Missões Geográficas e de Investigações Coloniais, mas também director da Escola Superior Colonial e presidente da Sociedade de Geografia de Lisboa. Foi ainda deputado na Assembleia Nacional, entre 1945 e 1956, depois de já ter sido Presidente da Câmara do Porto no período de 1936 a 1942. Nenhum outro antropólogo português, nem mesmo qualquer outro cientista social, assumiu tamanho relevo na sociedade portuguesa.

4. A Missão Antropológica de Moçambique.

18 Uma análise aos trabalhos publicados na sequência das primeiras cinco campanhas de investigação da Missão Antropológica de Moçambique, as de 1936, 1937-38, 1945, 1946 e 1948, permite estabelecer a seguinte distribuição por áreas de investigação: num total de 35 estudos, 14 abordaram questões de Antropologia Física, 8 de Etnografia, 8 de Pré- História e 4 dos chamados estudos psicotécnicos, existindo ainda um texto que aborda questões relacionadas com Demografia e Linguística. As primeiras quatro campanhas de

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investigação originaram ainda vários relatos de viagem e breves resumos (SANTOS JÚNIOR, 1938; SANTOS JÚNIOR, 1939b; SANTOS JÚNIOR, 1940b; SANTOS JÚNIOR, 1946; SANTOS JÚNIOR, 1947a; SANTOS JÚNIOR, 1956a). Sobre a quinta campanha, a de 1948, existe um relatório, nunca publicado, dactilografado, que apresenta como nenhum outro uma perspectiva não censurada sobre as condições de investigação e as observações dos cientistas no terreno (SANTOS JÚNIOR, 1948a).

19 Enquanto projecto institucional na área das ciências coloniais, a Missão Antropológica de Moçambique estava, naturalmente, submetida aos objectivos definidos previamente pelo Governo. Se analisarmos o quadro legislativo que a enquadrou verificamos que os objectivos e prioridades de investigação determinados, em última instância, pelo Ministério das Colónias durante as primeiras cinco campanhas de investigação, especialmente durante os anos 40, favoreciam crescentemente a Antropologia Física em detrimento de outras áreas de investigação, menos pertinentes para a política colonial daquela fase do Estado Novo.

20 As duas primeiras campanhas da Missão Antropológica de Moçambique, as de 1936 e 1937-38, não foram subsidiadas pela Junta das Missões Geográficas e de Investigações Coloniais, mas sim pelo Instituto de Alta Cultura do Ministério da Educação. O Decreto-Lei n.º 26 842, de 28 de Julho de 1936 – que, no quadro da reorganização do Ministério das Colónias, fundava a Junta das Missões Geográficas e de Investigações Coloniais –, autorizou o Ministro das Colónias Francisco Vieira Machado a incorporar na Missão Geográfica de Moçambique11 um especialista para «estudos antropológicos, arqueológicos e etnológicos». A escolha recaiu sobre

21 Mendes Corrêa que não estando disponível, devido a outros compromissos, concedeu ao seu assistente Joaquim Rodrigues dos Santos Júnior uma bolsa para a realização dessa viagem de estudo (SANTOS JÚNIOR, 1939b: 170). O programa dessa missão de estudo que viria a constituir, mais tarde, a primeira campanha da Missão Antropológica de Moçambique, incluía, além de uma estadia de vários meses no distrito do Tete, uma visita às universidades da União Sul-Africana. Em 1937 foi aprovada uma segunda campanha da Missão Antropológica de Moçambique em Tete e na Zambézia e, em seguida, uma viagem de estudo de um mês aos museus coloniais de Paris, Bruxelas, Amesterdão e Berlim12. Esta disposição legislativa não definia ainda objectivos de investigação concretos, limitando-se a indicar as áreas de investigação: Antropologia, Arqueologia e Etnografia.

22 Só em 1945, embora ainda antes da reorganização acima referida, a Junta das Missões Geográficas e de Investigações Coloniais assumiu a tarefa de elaborar linhas programáticas para a organização de «missões antropológicas e etnológicas» enquanto missões de investigação específicas e independentes de outros domínios de investigação, como a Geografia. Com o envio dessas missões de investigação também para outras colónias, almejava efectuar uma comparação sistemática de resultados. De facto, o Decreto-Lei n.º 34 478, de 3 de Abril de 1945, determinava que as «missões antropológicas e etnológicas» a organizar deveriam ter por finalidade investigar as populações das colónias de uma «perspectiva bio-étnica» e que os objectivos de investigação a cumprir seriam os seguintes: «Os objectivos fundamentais das missões antropológicas são: 1.° – O reconhecimento geral dos grupos étnicos de cada colónia, seus indivíduos, sua sistematização e definição das suas condições de vitalidade; 2.° – O estudo das instituições tradicionais das populações indígenas e do seu direito consuetudinário» 13.

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23 Apesar de o Decreto não indicar explicitamente áreas de especialização específicas, estes objectivos de investigação permitem deduzir que tanto a Antropologia Física como a Etnografia e a Etnologia Jurídica deveriam ser incluídas nas áreas de investigação das «missões antropológicas e etnológicas». Para a elaboração do programa de cada campanha, os líderes das missões, nomeados pela Junta das Missões Geográficas e de Investigações Coloniais, deveriam consultar ainda os serviços de saúde e a administração civil da colónia em questão, de modo a orientar os principais objectivos de investigação para as necessidades locais da administração colonial e as autoridades das colónias deveriam, por seu lado, prestar às missões de investigação todo o auxílio solicitado e, em caso de necessidade, disponibilizar temporariamente todo o pessoal necessário. Os programas definitivos, as calendarizações das campanhas e o pessoal que participava nas missões de investigação deveriam ser regulamentados por decreto do Ministro das Colónias.

24 A Missão Antropológica e Etnológica de Moçambique – muito sintomaticamente, mesmo nas suas publicações oficiais, a Missão deixaria cair o adjectivo «Etnológica» e seria sempre designada por «Missão Antropológica de Moçambique» –, criada, no âmbito desse processo, através da Portaria n.º 10 997, de 19 de Junho de 1945 cumpriu em termos gerais os objectivos de investigação definidos no Decreto-Lei n.º 34 478 que enquadrava a organização das missões antropológicas e etnológicas a enviar às colónias. Para além dos objectivos mais importantes de Antropologia Física, Etnografia e Etnologia Jurídica, foi ainda introduzida a Pré-História, na sequência das campanhas de 1936 e 1937, tendo-se especificado que a Antropologia Física deveria incluir o estudo da «robustez e vitalidade» das populações africanas. Os chamados estudos psicotécnicos foram introduzidos como novo domínio de investigação e a sua função consistia em avaliar as capacidades profissionais dos indígenas.

25 Definiu-se um período de seis anos para as investigações planeadas da Missão Antropológica de Moçambique, durante os quais se deveria estudar, se possível, todo o território de Moçambique, de norte a sul, durante várias campanhas, sempre durante a época seca. O pessoal da Missão foi ainda encarregado de apresentar conferências públicas «de carácter essencialmente prático» em cada capital de província, «de forma a despertar o interesse por estes estudos, tanto por parte de funcionários como de outras entidades». Sabemos, pela introdução a este artigo, que o Chefe da Missão Antropológica de Moçambique tomou tão a peito esta determinação que ministrou conferências nas capitais dos distritos em que decorreram as diversas campanhas de investigação: Beira (Manica e Sofala), Quelimane (Zambézia) e Nampula (Moçambique). Lendo-se o relatório não publicado de Santos Júnior sobre a 5.ª campanha, a de 1948, percebe-se que os objectivos previamente cometidos sofreram um claro desvio: o plano de trabalho que Santos Júnior submeteu à aprovação da Junta das Missões Geográficas e de Investigações Coloniais em 1947 (SANTOS JÚNIOR, 1948a: 17-19) conclamava por uma nova área de investigação, os «estudos de deslocação de população indígena e seu aldeamento», e estabelecia no programa de investigação prioridades explícitas no sentido de uma rentabilização dos resultados a obter. Assim, os objectivos da investigação incluíam também a realização de pesquisas previstas no «Plano de valorização económica da colónia de Moçambique» da JMGIC de 1947. Como demonstra a lista detalhada de tarefas que a Junta das Missões Geográficas e de Investigações Coloniais cometeu à Missão, dever-se-iam investigar os grupos étnicos relativamente à sua origem, às suas «perspectivas biológicas» e às suas

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capacidades, esclarecendo, finalmente, a questão sobre que grupos populacionais seriam mais adequados para projectos de deslocação de populações. «A missão deverá: (…) 4.° Obter informações sobre os seguintes pontos: a) Origem e relações das populações; b) Condições e vitalidade e de robustez dos vários grupos étnicos e suas perspectivas biológicas; c) Capacidade e tendências predominantes dos mesmos grupos; d) Possibilidade de deslocação de populações indígenas e seu aldeamento» (SANTOS JÚNIOR, 1948a: 26).

26 As investigações deveriam ser levadas a cabo por seis «brigadas de estudo», as quais deveriam abordar questões antropológicas, etnográficas, linguísticas, pré-históricas e psicotécnicas, bem como estudar as hipóteses de deslocação de populações. Posteriormente foi anexada uma nota com instruções adicionais, determinando que a prioridade deveria residir nos estudos psicotécnicos e na deslocação de populações (SANTOS JÚNIOR, 1948a: 28). Estas instruções adicionais, introduzidas pela primeira vez no programa da Missão Antropológica de Moçambique, deveriam permitir a avaliação das possibilidades de concentrar em aldeias de maiores dimensões populações dispersas geograficamente, no sentido de uma utilização mais eficiente da mão-de-obra africana: «Tal estudo deverá ser feito tendo em atenção as características das ditas populações no referente ao seu modo de ser nómada ou não, aos hábitos de trabalho, aptidões, semelhança com os povos para junto dos quais vão viver, etc. Deverá indicar pois quais as populações a deslocar e os locais, onde isso convenha fazer-se, dando preferência àqueles em que estejam localizadas grandes empresas. Estudará a possibilidade do aldeamento das populações de modo a dar incremento às grandes povoações. Tal concentração conviria ser orientada no sentido de se tirar maior rendimento das culturas por elas feitas, de modo a diminuir o seu preço de custo e permitir uma maior fiscalização sobre os processos de trabalho por elas empregado» (SANTOS JÚNIOR, 1948a: 27).

27 Estes projectos de deslocação de populações lançados em 1947 pelas autoridades coloniais em Moçambique estavam claramente relacionados com a política de cultivo obrigatório de algodão – a concentração da população dispersa em novas aldeias deveria permitir, não só uma produção e comercialização mais eficientes do algodão em bruto, como também uma supervisão mais apertada dos produtores (ISAACMAN, 1986: 24-ss; FORTUNA, 1993: 161-164). Se analisarmos com detalhe os objectivos de investigação postulados para as outras áreas de investigação, verificamos que também continham elementos que, pelo menos da perspectiva da política colonial portuguesa, deveriam produzir resultados aproveitáveis para os projectos de deslocação de populações: nos estudos etnográficos deveria investigar-se sobretudo os costumes de habitação e alimentação, nos estudos antropobiológicos a constituição física e nos estudos psicotécnicos as «capacidades intelectuais» das várias etnias. Para esclarecer o complexo mosaico étnico de Moçambique não deveriam ser investigadas as relações socioculturais, mas sim determinadas as relações etno-genéticas entre as populações, utilizando pesquisas de grupos sanguíneos em que até a linguística poderia ser colocada ao serviço da raciologia (SANTOS JÚNIOR, 1948a: 26-ss).

28 As novas prioridades estabelecidas pela Junta das Missões Geográficas e de Investigações Coloniais, assumidas por Santos Júnior na sua 5.ª Campanha da Missão Antropológica de Moçambique, revelam uma concepção de investigação onde não havia lugar para a dimensão cultural das sociedades africanas. É significativo o facto de o estudo das instituições jurídicas, ainda previsto pelo decreto de 1945, ter sido excluído do programa de investigação de 1948. Esta exclusão, deverá ser sublinhado, não correspondia às pretensões de Santos Júnior, como demonstra o seu desejo em juntar mais colaboradores

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à equipa da Missão, sobretudo para os estudos etnográficos e linguísticos. Para a 5.ª campanha, Santos Júnior havia proposto à JMGIC o reforço da equipa de 5 para 16 elementos (SANTOS JÚNIOR, 1948a: 7-11). Para a Etnografia e para a Antropologia Social, assim mencionada pela primeira vez, Santos Júnior propôs vários funcionários administrativos coloniais que considerava particularmente adequados para os estudos linguísticos e etnográficos. Contudo, o então novo Ministro das Colónias, Capitão Teófilo Duarte, através da Portaria n.º 12 215, de 27 de Dezembro de 1947, disponibilizou apenas seis colaboradores, entre os quais se encontravam António Augusto, antigo inspector escolar de Moçambique, Joaquim Norberto dos Santos Júnior, estudante de Antropologia Física no Porto e filho do chefe da Missão, e Luís dos Santos, chefe da polícia de trânsito em Moçambique.

29 As pesquisas levadas a cabo pela Missão Antropológica de Moçambique nas primeiras cinco campanhas correspondiam, assim, aos objectivos de investigação postulados pela JMGIC, quer se referissem à Antropologia Física, aos estudos psicotécnicos ou à Etnografia. Pelo menos nessas três áreas, a Missão pôde demonstrar a utilidade do seu patrocínio e potenciar a aplicabilidade das suas investigações.

4.1. Investigações em Antropologia Física

30 Nas primeiras 5 campanhas da Missão Antropológica de Moçambique foram investigados e registados mais de 8 000 africanos e calculados, com base nos dados obtidos, mais de 80 000 indicadores (SANTOS JÚNIOR, 1952a: 627). Tais dados incluíam as características descritivas ou mensuráveis, mas também os grupos sanguíneos (serologia) e as impressões digitais (dermatoglíficos). Alguns dos trabalhos publicados em resultado das primeiras 5 campanhas referiam-se a determinadas particularidades ou características, como anomalias físicas (Santos Júnior, 1939a) e tatuagens (J. N. SANTOS JÚNIOR, 1949; VIANA, 1947; J. N. SANTOS JÚNIOR, 1962). Outros textos, entre os quais a tese de doutoramento de Santos Júnior apresentada à Universidade do Porto em 1944, abordavam a representação de diferentes grupos populacionais identificados como «tribos», de acordo com as perspectivas que temos vindo a mencionar (SANTOS JÚNIOR,1944; SANTOS JÚNIOR, 1945; J. N. SANTOS JÚNIOR, 1949; J. N. SANTOS JÚNIOR, 1950). Reconhecidamente, a sua tese de doutoramento apoiou-se em dados recolhidos nas duas primeiras campanhas da Missão e de onde resultou, também, uma obra de cerca de 400 páginas editada pela própria Junta. Nesse texto, Santos Júnior caracterizava exaustivamente os aspectos físicos dos Nhúngués, dos quais pôde investigar um grande número de indivíduos (120 homens e 46 mulheres): «(…) o tipo dominante tem: grau de nutrição médio; pele de corpo de tonalidade chocolate (côr 30 da escala de Luschan); pele da palma da mão castanho amarelado de tom levemente rosado (côr 18 da mesma escala); pele sêca e macia; esclerótica amarelada; conjuntiva ocular colorida; cabelo erícomo (forma H da tabela de Martin); côr de cabelo preta acastanhada (mecha X da escala de Fischer-Saller); testa alta, vertical e ligeiramente proeminente (convexa); face de contôrno rômbico, nos homens, e elíptico, nas mulheres (respectivamente n.° 7 e n.° 1 da escala de Pöch), achatada e com maçãs de rosto regularmente salientes; olhos castanhos escuros (n.° 2 da escala de Martin); olhos horizontais; nariz de raiz larga e achatada; dorso do nariz arrendondada; asas do nariz rectilíneo (n.° 8 da tabela de Martin); ponta do nariz arredondada; asas do nariz finas e com a linha do bordo ascendente; narinas de forma elíptica (n.° 4 da tabela de Topinard); lábios grossos (n.° 3 da tabela de Martin), com a parte epidérmica do lábio superior côncava e

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baixa (n.° 10 da tabela de Martin); dentes direitos, de tamanho médio e, muitas vezes, com mutilações nos ângulos internos dos incisivos; orelhas afastadas; tatuagens distribuidas pela face e várias regiões do corpo, umas em relevo, as mais abundantes, outras por impregnação» (SANTOS JÚNIOR, 1945: 149).

31 Santos Júnior demonstrava uma particular apetência pela descrição exaustiva das características físicas uma vez que, na sua opinião, não existiam séries de medições que pudessem substituir a impressão visual global das «categorias rácicas» (SANTOS JÚNIOR, 1948: 9). Durante as campanhas de investigação da Missão conseguiu uma maior precisão das escalas e tabelas utilizadas na época e acrescentou, por exemplo, seis categorias à tabela de formatos de cabelo de Rudolph Martin14, tendo os seus resultados merecido alguma divulgação internacional (Santos Júnior, 1951). As características descritivas a que a Missão Antropológica de Moçambique prestava particular atenção estendia-se também às tatuagens e às marcas de índole cultural nas orelhas e nos dentes, no léxico da Missão designadas por «mutilações étnicas». A descrição dessas particularidades coube, fundamentalmente, ao filho do Chefe da Missão. Norberto dos Santos Júnior, contudo, viria a confessar algo candidamente que não tinha a possibilidade de estudar o significado cultural dessas «mutilações étnicas», prevendo o seu rápido desaparecimento sob a influência da «acção civilizadora dos portugueses» (J. N. SANTOS JÚNIOR, 1962: 280).

32 A quantidade das características físicas mensuradas por Santos Júnior e os índices e coeficientes calculados, que produziram um total de 32 valores, é tão impressionante como a abundância de características descritivas acima mencionada. Nas duas primeiras campanhas foram mensurados não mais de 345 indivíduos mas nas terceira, quarta e quinta campanhas o número de «amostras» dos grupos populacionais investigados foi muito superior – um total de 8 000 indivíduos (SANTOS JÚNIOR, 1952a: 625). Apesar disso, de todas essas incontáveis descrições e mensurações em milhares de «indígenas», pode-se afirmar que Santos Júnior e a sua Missão Antropológica de Moçambique não atingiu os objectivos lhe foram previamente traçados pela JMGIC, isto é, estabelecer uma base para a racionalização do aproveitamento da mão-de-obra africana, etnia a etnia, a partir do cálculo de índices de robustez e vitalidade veiculados por todos esses indicadores antropométricos. As comparações étnicas limitaramse a alguns, poucos, trabalhos no domínio da serologia, incidindo particularmente sobre o grau de homogeneidade genética de algumas etnias (SANTOS JÚNIOR, 1937; SANTOS JÚNIOR & ISIDORO, 1957), não se encontrando um único texto na área de uma almejada e potencialmente necessária «Antropologia da força de trabalho». Podemos, neste ponto, tentar compreender as razões desse relativo insucesso. Radicam, em nossa opinião, na débil percepção que Santos Júnior possuía do conceito de grupo cultural. Em boa verdade, Santos Júnior utilizou os conceitos de tribo, etnia e raça, frequentemente como sinónimos no sentido de um grupo populacional com laços de sangue. E o principal problema residia aí, nessa dificuldade em atribuir um «valor taxonómico» a cada grupo populacional no âmbito de um sistema de classificação biológico, uma vez que as opiniões dos informadores, bem como as representações mais antigas sobre parentesco e origens dos grupos étnicos em Moçambique, não permitiam tirar conclusões claras quanto a essa questão. «Se os embaraços e a diversidade de opiniões são grandes no que respeita aos parentescos, origens e razão de ser dos nomes dos diferentes grupos étnicos, a confusão não é menor quanto ao valor do grupo taxionómico a atribuir a cada uma dessas designações étnicas. O que para uns é uma raça, para outros é uma sub-raça ou apenas tribo, ou até nem uma coisa nem outra» (SANTOS JÚNIOR, 1945: 111).

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33 Apesar da confissão de uma certa confusão, Santos Júnior estava armado da inabalável convicção de que um grupo étnico se caracterizava por uma homogeneidade genética (no sentido de «tribo»), esperando chegar a conclusões definitivas sobre se um grupo populacional teria, ou não, uma pertença étnica, precisamente através de pesquisas antropológicas (leia-se antropométricas) sistemáticas. A metodologia empregue obedecia sempre à mesma imutável sequência: numa primeira fase, eram consultados relatos de viagem de séculos anteriores no que se refere a informações sobre a distribuição étnica, tentando identificar-se os diversos nomes dos grupos populacionais como as denominações de tribos, de clãs ou geográficas; depois, se necessário, para esclarecer certas dúvidas ou imprecisões a esse respeito eram consultadas autoridades africanas da região em causa, bem como outros informadores; finalmente, um inquérito «tribal» dos indivíduos a avaliar deveria permitir efectuar uma selecção no que se refere à sua «pureza étnica».

34 Cuidado metodológico adicional era ainda a preocupação em limitar a investigação a indivíduos de «etnia pura» até à segunda geração, i.e., aos indivíduos cujos pais e avós paternos e maternos pertenciam à mesma «tribo», excluindo assim os «cruzamentos» entre «tribos» diferentes (SANTOS JÚNIOR, 1940b: 16, 58; SANTOS JÚNIOR, 1948a: 119; SANTOS JÚNIOR & ISIDORO, 1957: 407). Contudo, os «exemplares» de «etnia pura» eram frequentemente uma minoria, como revela expressivamente o seguinte exemplo de trabalho de campo da Missão na Circunscrição do Zumbo, no vale do Zambeze: «No dia em que estudava os Chicundas, impressionado pela diversidade dos caracteres que notei num grupo de oito homens, que me esparavam para ser medidos, averiguei que apenas um era filho de pais chicundas. Só êsse foi medido. Os sete restantes, deram as seguinte indicações de progenitura: 1.°, pai Senga e mãe Sêrêro; 2.°, pai Senga e mãe Chicunda; 3.°, pai N`jaua ou N`chaua e mãe Mulamba; 4. ° pai Chuabo e mãe Aluano; 5.° pai Atande e mãe Chicunda; 6.° pai Zimba e mãe Chicunda; 7.° pai Zimba e mãe Sêrêro. O último prêto desta série repetidas vezes respondeu que o pai era Macanga e só instado é que terminou por se dizer filho de Zimba» (SANTOS JÚNIOR, 1940b: 58).

35 Estes «inquéritos tribais» foram um verdadeiro logro, pois Santos Júnior ignorava a extensão cultural dos etnónimos, preso que estava a critérios de natureza «rácica». A questão agravou-se quando Santos Júnior, incapaz de registar com precisão os limites dos grupos étnicos, estendeu os seus «inquéritos tribais» ao parentesco, tentando registar os nomes dos clãs mas ignorando completamente se se tratava de sociedades de linhagem matrilinear ou patrilinear. O quebra-cabeças resultante das denominações de parentesco levou Santos Júnior a atribuir aos «indígenas» aquilo que ele designou de «confusão espiritual», não reconhecendo a sua manifesta incapacidade em levantar e analisar sistemas classificatórios de parentesco: «Explicada uma e muitas vezes que pretendíamos averiguar a tribo de cada um e a sua “cabila” (…) , verificámos que a cada momento as declarações eram contraditórias, confusas ou tão díspares que até parecia um propósito fazerem trapalhada. Independentemente da dificuldade que por vezes há em fazer compreender os pretos, surgem embaraços doutra ordem (…). Ao tentar esclarecer uma trapalhada de “cabilas” de dois pretos e dos seus ascendentes até à segunda geração, recebi do língua este esclarecimento, apontando um deles: “– Este é irmão mais velho”. Esta afirmação vinha reforçar as dúvidas em vez de as esclarecer. Só passado um bocado mais é que o língua elucidou suficientemente quando disse: “– A mãe deste e deste (e apontou os dois pretos) eram irmãs da mesma barriga”. Quer dizer: aqueles dois pretos não eram nada irmãos mas simplesmente primos. Razão desta trapalhada: consideram as tias, mães» (SANTOS JÚNIOR, 1948a: 74).

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36 Hilariante, não fora o caso de se tratar de um Professor Extraordinário de Antropologia da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto. Sendo certo que só no ano seguinte, 1949, Claude Lévi-Strauss publicaria o seu Les Structures Élémentaires de la Parenté, o evolucionista Lewis Henry Morgan já publicara, em 1870, Systems of Consaguinity and Affinity of the Human Family, obra fundadora da distinção entre terminologias de parentesco descritivas e classificatórias.

37 A quase total ignorância dos conceitos básicos da Antropologia Cultural sua contemporânea levou Santos Júnior a cometer outros erros semelhantes, mesmo quando parecia reportar-se apenas à sua Antropologia Física. Por exemplo, os seus estudos serológicos concluíram que os Nhúngués eram geneticamente mais homogéneos, logo «etnicamente mais puros», do que os povos vizinhos e apresentou como explicação a ideia de os Nhúngués serem possuidores de um sentido de superioridade muito marcante, sendo por isso mais propensos a casarem «entre si» (SANTOS JÚNIOR & ISIDORO, 1957: 407, 425). Ora todos os estudos conhecidos sobre os povos do vale e delta do Zambeze apontam exactamente na direcção oposta. Historiadores e etnólogos são unânimes na afirmação de que os povos dessa região provêm de uma mistura secular entre vários povos matrilineares do sul, povos de linhagem patrilinear do norte e vários invasores externos (ISAACMAN, 1972: 443; ISAACMAN, 1976: 20-ss). Por este motivo, de uma perspectiva etno-histórica, especialmente na região do vale e do delta do Zambeze, seria tarefa inútil utilizar grupos populacionais definidos geográfica e geneticamente como ponto de partida para uma investigação sobre os povos locais. «Esta confusão é o resultado lógico do insucesso em examinar adequadamente a complexa composição étnica e cultural dos povos que vivem ao longo do rio Zambeze, entre Tete e o Oceano Índico. Existiu a tendência para designar indiscriminadamente populações vivendo em áreas geográficas alargadas como pertencendo a uma mesma tribo, sem levar em linha de conta os seus ascendentes históricos ou as suas afinidades étnicas e culturais com outras populações vizinhas. A classificação dos Cheringoma, Nhúngués e Anguru como grupos étnicos distintos é um desses casos» (ISAACMAN, 1972: 444).

38 A confusão presente na investigação de Santos Júnior no vale do Zambeze também chamou a atenção de Mendes Corrêa, mas os pressupostos básicos da sua Antropologia Física sobreviveram sem dificuldade a essa incoerência, refugiando-se na inexistência de dados sobre o objecto de estudo (os povos da região): «A confusão etnográfica na Zambézia (…) desafia qualquer tentativa de sistematização segura, com os elementos que dispomos actualmente» (CORRÊA, 1943: 519).

39 Finalmente, uma pequena nota sobre a forma como a Missão arregimentava «exemplares» para as suas mensurações e descrições. Santos Júnior assinala nos seus textos, por diversas vezes, a relutância da população em relação às colheitas de sangue. Os chefes das aldeias ignoravam também frequentemente as intimações de arregimentação de «indígenas», para grande contrariedade de Santos Júnior (SANTOS JÚNIOR, 1940b: 16, 38, 43). Assim, sobretudo nas duas primeiras campanhas, contou com a «participação activa» do chefe de polícia de Tete de modo a não ter de esperar pacientemente no posto local da administração colonial até que, por algum acaso, alguns africanos aparecessem para, voluntariamente, pagar os impostos (SANTOS JÚNIOR, 1938: 296; SANTOS JÚNIOR, 1940b: 70; SANTOS JÚNIOR, 1948a: 100).

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4.2. Estudos psicotécnicos

40 Nas terceira, quarta e quinta campanhas entrou em acção a «brigada de estudo» liderada por António Augusto, a cuja investigação a Junta das Missões Geográficas e de Investigações Coloniais e Santos Júnior atribuíram um grande significado: «Não me parece que a administração política e a utilização económica das populações ultramarinas possam fazer-se sem orientações inspiradas nos resultados de trabalhos desta natureza. Erraria gravemente quem supusesse todas as populações susceptíveis de se aferirem pelo mesmo padrão psicológico» (SANTOS JÚNIOR, 1950: 423).

41 O objectivo desses estudos era investigar a «inteligência global» de indivíduos de um número máximo de etnias possível, através de testes de inteligência segundo o modelo do psicólogo norte-americano RobertYerkes15. Os testes eram compostos por 20 séries de provas a vários aspectos como a atenção, a percepção, a compreensão, a imaginação, a memória, etc. No entanto, também as séries de testes adaptadas à realidade colonial, à semelhança dos famosos «Army Mental Tests» de 1917 nos Estados Unidos, não conseguiam medir mais do que o nível de formação escolar e não a inteligência «inata». Dessa forma, António Augusto cairia na mesma falácia de Yerkes, ao considerar que os Suahilis, o grupo étnico com o mais elevado nível de alfabetização, detinham o mais elevado grau de inteligência (AUGUSTO, 1948: 35). Na realidade, o motivo para o elevado grau de alfabetização dos Suahilis islamizados residia no facto de as escolas do Corão conseguirem nitidamente melhores resultados do que as escolas das missões portuguesas. Igualmente de modo incorrecto, António Augusto inferiu que a média geral de inteligência mais baixa nas mulheres africanas, em comparação com os homens, explicava a generalizada posição social inferior das mulheres na sociedade africana (AUGUSTO, 1949: 23, 73). Também Santos Júnior estava convencido de que os valores medidos nos testes psicotécnicos correspondiam a disposições genéticas e utilizou-os para levianamente deduzir as suas conclusões: «O Sr. Dr. António Augusto (...) informou-me que os Inharingas ou Maganjas eram dotados de reacção muito lenta (...). O índice intelectual médio foi baixo. Isso talvez resulte do predomínio de sangue Lómuè. Os Lómués foram até agora à data os negros da colónia que deram médias intelectuais mais baixas» (SANTOS JÚNIOR, 1948a: 111). Muitas das perguntas dos testes revelam também distorções claramente resultantes da situação colonial. O exemplo que se segue pretende mostrar como um comportamento em conformidade perante as autoridades administrativas era recompensado na avaliação do teste de «compreensão de gramática»: «À pergunta “se tivesses de pagar o imposto e não tivesses dinheiro, o que farias?”, foram satisfatórias as respostas “Arranjava dinheiro”, “Pedia emprestado”, “Procurava serviço”; foram aceitáveis as respostas “Apresentava-me ao Sr. Administrador e dizia-lhe que não tinha dinheiro e que resolvesse o que devia fazer”; e não valoráveis “Dizia não ter dinheiro” e “Ficava no calabouço”» (AUGUSTO, 1948: 26).

42 Em todos os estudos de António Augusto, os resultados globais dos vários grupos étnicos foram comparados com os valores médios dos portugueses; pelo contrário, não foi prestada praticamente qualquer atenção à comparação dos grupos étnicos africanos entre si. No seu estudo comparativo entre alunos africanos do ensino primário de Lourenço Marques e portugueses de Lisboa, obteve aliás resultados diversos, consoante a série de testes, pelo que crianças africanas conseguiram, nalguns testes, melhores resultados do que as portuguesas (AUGUSTO, 1950: 425). Todavia, a atenção de Augusto não se ateve

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nesses desvios à postulada superioridade intelectual dos europeus, confirmando, outrossim, os preconceitos do costume: «O estudo que se fez com os testes de Yerkes mostrou por medida o que apenas se conhecia por estimativa: que a inteligência das crianças pretas é muito inferior à das crianças europeias e que por isso, um ensino primário simultâneo, na mesma escola, prejudicava uns e outros. (…) A criação e manutenção do ensino primário rudimentar para indígenas não traduz um preceito de raça ou de cor, mas a necessidade de promover o maior aproveitamento de europeus e indígenas» (AUGUSTO, 1950: 427).

43 Daqui se poderá concluir que o único resultado desses estudos psicotécnicos desenvolvidos pela brigada especializada de António Augusto foi o de legitimar «cientificamente» a ideologia colonial da supremacia civilizacional e justificar a manutenção do ensino separado.

44 Finalmente, um dado notável a propósito dos estudos psicotécnicos e dos seus testes inspirados no modelo de Yerkes. Em 1924, o lobby do movimento eugénico no Congresso americano tinha proposto medidas restritivas à emigração (Immigration Restriction Act), usando como principal argumento em defesa das suas teses os resultados dos «Army Tests». Se a lei tivesse sido aprovada – foi rejeitada por larga maioria – os europeus do Sul, incluindo os portugueses, seriam considerados elementos indesejáveis devido à sua alegada má herança genética, devendo ser definidas para eles quotas de imigração reduzidas (GOULD, 1981: 170, 255, 295). Essa leitura inesperada dos testes de Yerkes constituiu para Mendes Corrêa, o mentor de Santos Júnior e da Missão Antropológica de Moçambique, razão suficiente para vociferar contra o «falso eugenismo» em voga nos Estados Unidos (CORRÊA, 1933: 6), mas não para prescindir da convicção básica do valor científico dos estudos psicotécnicos (CORRÊA, 1951: 347; CORRÊA, 1952b: 45).

4.3. Estudos etnográficos

45 Ao longo das primeiras cinco campanhas de investigação, os estudos etnográficos sofreram essencialmente pela circunstância de as campanhas de investigação da Missão Antropológica de Moçambique terem sido concebidas como «missões de esclarecimento» e não como pesquisa de campo: a rigorosa calendarização previa, para todas as circunscrições da administração civil que atravessariam, apenas um tempo de estadia de 3 a 6 dias. Assim, a investigação etnográfica limitava-se sobretudo ao que era possível observar de imediato: recolher objectos, fotografar e filmar paisagens exóticas e anotar, o mais minuciosamente possível, observações diversas. Os informantes eram os funcionários coloniais locais, os sipaios, os missionários, colonos portugueses desde há muito estabelecidos nesses locais, mas também chefes africanos e intérpretes africanos (os línguas) recrutados localmente. O levantamento de dados sobre as formas de habitação e alimentação definido como prioritário pela Junta das Missões Geográficas e de Investigações Coloniais foi efectuado em todas as campanhas a partir de 1945, mas esses dados nunca foram publicados. A inexistência de um colaborador permanente da Missão Antropológica de Moçambique com conhecimentos sobre os idiomas africanos foi sempre motivo de queixas por Santos Júnior (SANTOS JÚNIOR, 1947a: 144; SANTOS JÚNIOR, 1948a: 114), mas apesar dessa lacuna publicaria um texto com a recolha de algumas expressões nas línguas de alguns dos povos entre os quais trabalhou – em boa verdade, na maioria dos casos, frases imperativas resultantes da actividade de mensuração, como «senta-te!», «levanta-te!», «vira-te!» e outras de igual teor (SANTOS JÚNIOR & CASTRO, 1952).

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46 O resultado mais importante da Missão na área da Etnografia foi a carta etnográfica de Moçambique com 82 etnónimos (Santos Júnior, 1952a). Para este trabalho, baseando-se nas explicações dos informantes, Santos Júnior fez uma selecção entre 195 etnónimos recolhidos por vários autores nos anos 20. Os restantes estudos etnográficos da Missão Antropológica de Moçambique ocuparam-se sobretudo do centro de Moçambique, único local onde a Missão permaneceu durante as duas primeiras campanhas mas que também foi abordado nas restantes três. Foram também intituladas de «notas etnográficas» as descrições de Fernando Barros, médico estabelecido de há longa data na Zambézia, na clínica médica da «Sena Sugar Estates» no Luabo (SANTOS JÚNIOR & BARROS, 1952).

47 Vários aspectos da vida religiosa das populações colonizadas mereceram alguma atenção de Santos Júnior e dos seu colaboradores na Missão e motivaram a redacção de uns quantos textos. Os estudos publicados por Joaquim Norberto do Santos Júnior e Luís dos Santos faziam referência a aspectos religiosos e cerimoniais, como os chamados batuques, danças com um carácter cerimonial (SANTOS, 1949; J. N. SANTOS JÚNIOR, 1957b), e os textos publicados por Santos Júnior aludiam aos locais sagrados como as menepas (SANTOS JÚNIOR, 1950; SANTOS JÚNIOR, 1973) e os muzimos, almas dos mortos ou locais de culto dos antepassados (SANTOS JÚNIOR, 1940a). Dado que não estavam minimamente interessados nas estruturas sociais das «tribos» observadas, Santos Júnior e os seus colaboradores não se aperceberam do significado social dos rituais religiosos e práticas de magia observadas e, muito menos, da sua eficácia simbólica. Apesar de atribuir ao culto dos antepassados um grande valor espiritual, as práticas mágicas a ele associadas eram, aos seus olhos, altamente suspeitas. Considerava que a crença nessas práticas constituía, por um lado, uma prova do «espírito simples e facilmente impressionável dos negros» e, por outro, do parasitismo aproveitador dos alegados feiticeiros. Nesse conceito pejorativo eram incluídas todas as pessoas cuja função estivesse de alguma forma relacionada com a magia: «E ainda como consequência das mesmas crenças, e necessidades de abalar o espírito simples e fácilmente impressionável dos negros, os feiticeiros, sabidos e espertos, mantêm um ritual mais ou menos complicado em tôrno dos muzimos ou lugares sagrados que, em lugares mais ou menos recônditos das florestas, constituem como que as suas capelas, igrejas ou catedrais, onde os pobres pretos, isoladamente ou em conjunto, vão prestar culto às almas dos seus mortos, satisfazendo ao mesmo tempo uma necessidade espiritual premente e ansiosa, em face do impenetrável mistério do Além, que impressiona não só o espírito simples dos selvagens e dos homens rudes e ignorantes, mas também o espírito vigoroso dos homens cultos do mundo civilizado» (SANTOS JÚNIOR, 1940a: 375).

48 Alguns anos mais tarde, num outro texto, Santos Júnior afirmará o carácter anormal e perigoso dos feiticeiros e das suas sociedades secretas (SANTOS JÚNIOR, 1948a: 109).

49 A dominância obsessivamente biológica da «Escola do Porto», cujo mais insigne representante, Mendes Corrêa, ocupava lugares-chave nos organismos de investigação científica colonial portugueses, travou o desenvolvimento de uma perspectiva cultural e social nas «missões antropológicas e etnológicas», contribuindo assim para a cristalização da imagem dos povos colonizados como «raças» mental e civilizacionalmente atrasadas. Deste modo, as «missões antropológicas» — embora nunca tenham chegado a fornecer, como esperado, conhecimentos relevantes e aplicáveis para a prática administrativa — vieram dotar o regime colonial português de, pelo menos, uma avaliação «científica» para a afirmação de uma espécie de «axioma da diferença» relativamente aos povos colonizados a que Salazar se referia repetidamente, nos anos 30 e 40, como «raças

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inferiores». Apesar dessas «provas» serem fornecidas sobretudo pelos estudos psicotécnicos, eram os pressupostos científicos fundamentais da Antropologia Física que estavam na base desses estudos e os valoravam.

50 Em primeira instância, as «missões antropológicas» serviam a própria Antropologia Física: Santos Júnior realizou toda a carreira académica, de assistente a professor catedrático, com as suas investigações no âmbito da Missão Antropológica de Moçambique. Também outros antropólogos físicos da «Escola do Porto» receberam da Junta das Missões Geográficas e de Investigações Coloniais, apesar dos escassos incentivos à investigação nos anos 30 e 40, um patrocínio de vulto e puderam entregar-se sem restrições às suas actividades de mensuração de «indígenas» nas colónias e apresentar os resultados das suas investigações em congressos internacionais. Assim, em certa medida, as «missões antropológicas» serviam igualmente outro objectivo importante da investigação científica colonial e da política do Estado Novo:

51 o aumento do «prestígio nacional». É que, ao contrário da Etnologia portuguesa, fosse ela colonial ou não, a escola portuguesa de Antropologia Física gozou de algum reconhecimento internacional na sua área.

52 Devemos acrescentar, todavia, que a orientação colonial da Antropologia Física da «Escola do Porto» não foi propriamente uma invenção da política científica do Estado Novo. Desde os anos 20 que Mendes Corrêa se encontrava em contacto com a Société d‘Anthropologie de Paris, a mais antiga escola francesa de Antropologia Física, e era amigo pessoal de Henri Vallois, desde 1938 secretário-geral desta sociedade, e seguia também com grande interesse as investigações antropobiológicas deLéon Palès na África Ocidental Francesa. As semelhanças entre a «Mission Anthropologique» organizada pelo Office de la Recherche Scientifique Coloniale (O.R.S.C.) entre 1946 e 1948, sob a orientação de Léon Palès, na África Ocidental Francesa e a Missão Antropológica de Moçambique são, de facto, evidentes: os domínios de investigação da «Mission Anthropologique» de Léon Palès também incluíam, tal como acontecia com a Missão Antropológica de Moçambique, outras áreas para além da Antropologia Física como a Psicologia, a Etnologia, a Sociologia e estudos nutricionistas. Mesmo assim, Mendes Corrêa viria a afirmar que essa convergência de orientações resultava de reflexões independentes (CORRÊA, 1948-1949: 62-63).

5. A mudança de paradigma

53 Na série de colóquios organizada em 1949 e 1950 pela Junta das Missões Geográficas e de Investigações Coloniais sobre os problemas da investigação científica colonial, a extrema importância política da «assimilação científica dos territórios do Ultramar» ficou devidamente realçada. Nesse evento, Orlando Ribeiro, geógrafo e Professor da Universidade de Lisboa, criticou o facto de a ciência colonial portuguesa apresentar poucos resultados concretos para além dos lugares-comuns retóricos recorrentemente citados: «(…) a tradição científica nacional é uma destas flores de retórica, vulgares nos nossos discursos e nos nossos escritos, um destes lugares-comuns com que nos consolamos do atraso actual, um facto que devia constituir motivo de redobrada responsabilidade e sobre o qual muitas vezes adormecemos, procurando iludir-nos e imaginando suprir e atenuar com ele as graves deficiências do reconhecimento actual dos territórios que nos pertencem» (RIBEIRO, 1950: 4).

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54 A centralização dos organismos de investigação nos ministérios da Metrópole, o carácter temporário das missões enviadas pela Metrópole para as colónias, bem como o carácter superficial da investigação – frequentemente concebida apenas como tarefa de reconhecimento – eram para Orlando Ribeiro características reveladoras do gravoso atraso das ciências coloniais portuguesas, cuja recuperação deveria constituir uma prioridade da política científica do Estado (RIBEIRO, 1950: 6-ss).

55 A criação de centros de estudos e institutos especializados na Metrópole e nas colónias, prevista nos decretos de reforma da JMGIC de 1945 e da Escola Superior Colonial de 1946, só foi colocada em prática na década seguinte. Antes foi ainda aplicada aos institutos de ciências coloniais a mudança de terminologia contida na revisão constitucional de 1951: em 1953 a Junta das Missões Geográficas e de Investigações Coloniais mudou o seu nome para Junta de Investigações do Ultramar e, em 1954, a Escola Superior Colonial passou a Instituto Superior de Estudos Ultramarinos.

56 Em meados dos anos 50 verificou-se, finalmente, uma vaga de criação de instituições de investigação sob a égide da Junta de Investigações do Ultramar, três das quais foram relevantes no contexto da Etnologia e da Antropologia Física: em 1954, o Centro de Estudos de Etnologia do Ultramar, fundado pelo Instituto Superior de Estudos Ultramarinos, no qual a Antropologia Física encontrou uma base institucional sobretudo em Lisboa; o Centro de Estudos Políticos e Sociais, fundado em Lisboa em 1956 no âmbito da Junta de Investigações do Ultramar, assumia pela primeira vez como área de investigação prioritária a Etnologia na sua verdadeira dimensão, a cultural; finalmente, o Instituto de Investigação Científica de Moçambique, fundado em Lourenço Marques em 1955, considerava todas as ciências coloniais, e também, entre outras, a Antropologia Física e a Etnologia, como subdomínios das «Ciências Humanas». A toda essa renovação institucional, carregando consigo um novo arrumar de conceitos, deve-se acrescentar um novo factor na investigação científica colonial dos anos 50: a colaboração regional e internacional de Portugal com a Grã-Bretanha, a França, a Bélgica e também a União Sul- Africana e a Rodésia em organizações científicas internacionais. Foi sobretudo importante o Conselho Científico Africano (CSA), fundado em 1949 em Johannesburg, e a Comissão de Cooperação Técnica em África ao Sul do Sara (CCTA), criada em Londres em 195016.

57 Sob a égide da CCTA e do CSA realizou-se em 1955, em Bukavu (Congo Belga), a primeira «Conferência Inter-Africana de Ciências Humana», a qual, entre outros, abordou o tema da política demográfica das administrações coloniais. Segundo Adriano Moreira, a conferência deixou bem claro que a investigação científica na área das ciências humanas e, em particular, da Sociologia, da Etnologia e da Linguística, assumia uma importância crucial na legitimação da dominação colonial e que o auxílio prestado à administração colonial por estas disciplinas se havia tornado indispensável (MOREIRA, 1960: 332).

58 Mesmo Mendes Corrêa, que durante décadas fora o grande paladino da Antropologia Física portuguesa, começou paulatinamente na década de 50 a integrar a sua disciplina nas «ciências humanas» enquanto conceito abrangente para o «estudo integral do ser humano», agregando as ciências naturais e sociais e reconhecendo finalmente a importância das ciências sociais e da Etnologia como ciências coloniais aplicadas (CORRÊA, 1951: 368; CORRÊA, 1952b: 44; CORRÊA, 1959: 24-ss). A conjuntura política internacional da época e, por outro lado, o cuidado retórico posto na conservação da imagem do regime, tornaram incómodo um discurso demasiado assente em pressupostos de raça. Os dois «Statements on Race» da UNESCO de 1950 e 1951, em cuja elaboração

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participaram especialistas das áreas das ciências sociais, da genética e da Antropologia Física, testemunharam a tentativa da comunidade científica internacional em declarar um consenso anti-racista. A segunda declaração da UNESCO, a de 1951, afirmava taxativamente: «A propósito da maior parte, senão mesmo da totalidade, das características mensuráveis, as diferenças entre indivíduos pertencentes à mesma raça podem ser maiores do que as diferenças que ocorrem entre as médias constatadas para duas ou mais raças (…)» (cit. em HARAWAY, 1988: 215). Apesar deste novo asserto na comunidade científica internacional, Mendes Corrêa não se inibiu, em 1950, de fazer uma comunicação em colóquio realizado em Washington, na qual lamentava o facto de a Antropologia Física, orientada para a raciologia, ter recebido um estatuto tão negativo em consequência da desvalorização do conceito de raça após o desfecho da Segunda Grande Guerra: «(…) a raça e a cultura não se sobrepõem, mas parece-me terem caminhado demasiado depressa no terreno das negações todos aqueles que se recusam a reconhecer qualquer relação entre, dum lado, os factores biológicos em geral e a biologia étnica em especial, e doutro lado, os aspectos e processos culturais. (…) A Ciência não contesta a existência de correlações bio-psíquicas. Porque as expulsamos então do estudo das culturas? Porque as não procuramos conhecer com precisão? Só porque se fez um uso ilegítimo da noção da raça?» (CORRÊA, 1950-1951: 26).

59 Mas, poucos anos depois – e perante a evolução dos acontecimentos sociais e políticos em África, com as primeiros levantamentos nacionalistas como a revolta Mau-Mau no Quénia –, começou a inflectir a sua opinião. Reflectindo sobre as movimentações proto- nacionalistas que se alinhavam por detrás das chamadas «sociedades secretas africanas», Mendes Corrêa lembrou que os britânicos, graças à utilização de etnólogos profissionais no serviço colonial, estavam muito melhor equipados contra esse tipo de ameaças do que os portugueses, acrescentando que a formação desses especialistas em Portugal era desde há muito necessária para ultrapassar o carácter de improvisação que tinha dominado essa área até à época: «(…) a Ciência Social suscita hoje no mundo civilizado investigações numerosas e importantes. Os ingleses (…) possuem nas suas colónias um corpo de investigadores oficiais, que chamam “colonial social scientists” (cientistas sociais coloniais), como possuem antropologistas do governo. Numerosas organizações existem em vários países para o estudo da matéria. Encara-se entre nós a formação de investigadores da disciplina em questão. Ainda bem. É necessário substituir à intuição, ao palpite, à improvisação, à fantasia, a iniciativas isoladas e sem continuidade, a tarefa sistemática, metódica, contínua, integral, em suma verdadeiramente científica» (CORRÊA, 1954: 232).

60 Começa então a desenhar-se, no seio dos institutos de ciências coloniais portugueses, um consenso quanto à necessidade de uma nova orientação da Etnologia como ciência independente da Antropologia Física. Como os representantes da até então dominante Antropologia Física não possuíam as bases científicas para conduzir uma reorganização da sua prática científica, começaram a ganhar relevo no seio das instituições científicas coloniais portuguesas todos aqueles que reivindicavam uma prática de Etnologia Cultural. Jorge Dias, pela sua formação académica mas também por tudo quanto tinha feito no campo da Etnografia e Etnologia portuguesas, foi o primeiro a ser chamado a assumir responsabilidades de investigação nas instituições científicas coloniais.

61 Não se pense, contudo, que a substituição da Antropologia Física pela Etnologia foi imediata e que aquela perdeu influência e campo de acção. A presença da Antropologia

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Física nos «International Congresses of Anthropological and Ethnological Sciences» dos anos 50 mostra que Portugal, pelo menos na área da Antropologia Física, não estava tão «orgulhosamente só». No congresso de Viena, em 1952, Mendes Corrêa era um dos três membros do comité internacional para a normalização das técnicas na Antropologia Física e no congresso de Filadélfia, em 1956, o Centro de Estudos de Etnologia do Ultramar, por si dirigido, foi admitido como membro da International Union of Anthropological and Ethnological Sciences. Até aos anos 60, todos esses congressos internacionais abordavam questões de Antropologia Física e de Etnologia, embora esses domínios se fossem separando de forma cada vez mais clara.

62 Mendes Corrêa atingiu nos anos 50 o auge da sua carreira científica: por ocasião da sua morte, em 1959, era simultaneamente presidente da Junta de Investigações do Ultramar e da Sociedade de Geografia de Lisboa, director do Instituto Superior de Estudos Ultramarinos e membro do Conselho do Ultramar, a mais elevada comissão de consulta da política colonial, além de membro efectivo ou de honra de diversos outros institutos científicos em Portugal e no Brasil, Espanha, França, Inglaterra,Alemanha, Bélgica e Áustria. Apesar de a orientação de Mendes Corrêa ter pendido essencialmente para a Antropologia Física, Jorge Dias elogiou-o como um verdadeiro «antropólogo latu sensu» que havia sempre concedido espaço para a Etnologia (DIAS, 1960b).

63 Embora a orientação científica de Mendes Corrêa e da «Escola do Porto» nos anos 30 incluísse já o conceito mais abrangente de Antropologia, a sua prática científica até ao dealbar da década de 50 demonstrava um peso claramente maior do conceito biológico de Antropologia. Nos anos 50 começou a desenhar-se uma mudança de paradigma: por um lado, para uma concepção de Antropologia como ciência de integração contendo disciplinas das ciências naturais e sociais em níveis equiparados e, por outro, para uma nova definição de Antropologia Física (enquanto Antropobiologia) e de Etnologia (enquanto Antropologia Cultural) como disciplinas científicas independentes entre si. A conjuntura política internacional favoreceu de forma decisiva este desenvolvimento, na medida em que, por um lado, desacreditou internacionalmente o conceito de raça da Antropologia Física e, por outro, mostrou que a raciologia como modelo explicativo para a crescente agitação social nas colónias era manifestamente insuficiente. Na segunda metade da década de 50 a mudança de paradigma estava consumada, marcando assim o fim do domínio da «Escola do Porto» no seio dos institutos científicos coloniais.

64 No âmbito da Missão Antropológica de Moçambique ainda decorreria, em 1955, uma derradeira campanha. Mas toda a 6.ª campanha esteve envolta em equívocos, muitos dos quais ainda não totalmente esclarecidos. Em primeiro lugar, não são claros os motivos para que só se tenha prosseguido com os trabalhos de investigação seis anos após o término da 5.ª campanha, até porque nos primeiros anos da década de 50 a Antropologia Física ainda gozava de todos os favores institucionais. Depois, no final de 1958, toda a missão de investigação foi dissolvida, prematura e definitivamente, por ordem superior e sem qualquer explicação, apesar dos protestos de Santos Júnior que anos mais tarde continuava a lamentar profundamente: «Em 1955 uma Portaria estabeleceu um quinquénio de trabalhos de campo à Missão. (…) Inesperadamente, e sem que ainda hoje eu saiba porquê, a Missão foi extinta ex- abrupto em Dezembro de 1958. O corte de um ano ao quinquénio (…) estabelecido em portaria prejudicou muito o plano de trabalhos dos muitos materiais colhidos. Pedi por várias vezes a recriação dos trabalhos de gabinete mas nada consegui» (SANTOS JÚNIOR, 1973: 125, n. 1).

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65 Este fim quase silencioso da Missão Antropológica de Moçambique relacionou-se com a mudança de paradigma atrás assinalada. O novo contexto político e social nas colónias e os novos assertos na política internacional, como o despontar dos movimentos anti- colonialistas, não se compadeciam com a natureza dos estudos desenvolvidos no âmbito daquela Antropologia Física. Ademais, também no seio da Antropologia Física europeia, as bases científicas das descrições tipológicas das raças e a sua cartografia geográfica tinham já caído em declínio. Depois, é muito provável que, na sequência da diferenciação científica e institucional iniciada nos anos 50 em Portugal entre Antropologia Física e Etnologia, a investigação conjunta nesses dois domínios fosse sendo gradualmente considerada obsoleta.

66 Paradoxalmente, Santos Júnior e os restantes membros da Missão Antropológica de Moçambique assistiram à transição de paradigma no seio dos institutos de ciências coloniais da Metrópole mas essa mudança conceptual não implicou a imediata saída de campo dos antropólogos físicos. Antes os induziu a mostrarem um cada vez maior interesse por estudos etnológicos e etnográficos, embora ignorando as bases teóricas e metodológicas da Etnologia enquanto disciplina científica. Os resultados desses estudos, como não poderia ter deixado de acontecer, foram, inelutavelmente, ainda mais fracos e enviesados pela ideologia colonial, tanto mais que Santos Júnior e o seus pares continuavam a defender o valor intrínseco dos estudos psicotécnicos como base para a «diferenciação» no que se referia à «alma dos indígenas». No contexto colonial, tornou-se evidente que não havia qualquer hipótese de conciliação entre os pressupostos básicos de uma Antropologia Física «clássica» e os da Etnologia Cultural e Social.

67 Foi, de todo o modo, uma breve fase de transição na investigação antropológica colonial em Portugal, uma vez que definitivamente se estabeleceu, nos anos 60, a separação entre Antropologia Física e Etnologia enquanto ciências aplicadas independentes. Aliás, a Etnologia tinha já tomado a dianteira nos domínios coloniais, substituindo-se, em importância e dimensão, à Antropologia Física.

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Stephen Jay GOULD (1981), The Mismeasure of Man, Norton, New York.

NOTAS

1. Decreto-Lei n.º 26 842, de 28 de Julho de 1936. 2. A Missão conheceu várias refundações e determinações legislativas: o Decreto-Lei n.º 34 478, de 3 de Abril de 1945; a Portaria n.º 15 240, de 4 de Fevereiro de 1955; e, finalmente, a Portaria n.º 16 736, de 19 de Junho de 1958, que, reformulando o prazo de duração da Missão estabelecido na Portaria anterior, a extinguiu. 3. E mesmo assim, com os sugestivos títulos de «Sobre tatuagens em relevo nos indígenas da Zambézia», «Alguns muzimos da Zambézia e o culto dos mortos», «A alma do indígena através da etnografia de Moçambique». A lista exaustiva das obras publicadas no quadro das Missões Antropológicas de Moçambique poderá ser consultada em SANTOS JÚNIOR, 1956a, pp. 23-31. 4. Decreto-Lei n.º 26 180, de 7 de Janeiro de 1936. 5. Decreto-Lei n.º 35 395, de 26 de Dezembro de 1945. 6. Convém neste ponto esclarecer que a designação «Escola do Porto» que temos vindo a utilizar nesta dissertação e em outros textos nossos já publicados não é, de modo algum, uma classificação forçada e redutora. O próprio Mendes Corrêa assumiu, em 1940, que esse grupo de antropólogos físicos representava um verdadeiro escol (CORRÊA, 1940a: 619-636). 7. A disciplina de Antropologia foi introduzida nas universidades de Lisboa e do Porto com a reforma universitária de 1911 – a Universidade de Coimbra já incluía esta disciplina desde 1885. Em 1923 a disciplina foi reconhecida oficialmente ao ser constituído, pelo Decreto-lei n.º 9344 de 29 de Dezembro, o Instituto de Investigação Científica de Antropologia da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, agregando o Museu e Laboratório Antropológico. 8. Em 1947 a designação da revista foi alterada para «Trabalhos de Antropologia e Etnologia». 9. Paul Broca (1824-1880) fundou a Société d‘Anthropologie de Paris em 1859 e é considerado a figura fundadora da Antropologia Física francesa. A sua definição do conceito de «Éthnologie» como estudo das raças e, assim, como uma subárea da Antropologia Física perdurou em França até aos anos 40 do século XX, o queajuda a compreender o porquê de em França se ter utilizado o termo «Éthnographie» em substituição de «Ethnologie» até à altura em que Lévy-Bruhl, Mauss e Rivet se apropriam do conceito. Ver, a este propósito, SIBEUD, 2002: 266; e STOCKING Jr., 1984. 10. De que são exemplo: CORRÊA, 1935c; COSTA, 1935; ATHAYDE, 1935. 11. Criada pela Portaria n.º 7379, de 13 de Julho de 1932. 12. Decreto-Lei n.º 27 922, de 4 de Agosto de 1937. 13. Decreto-Lei n.º 34 478, de 3 de Abril de 1945. 14. Rudolph Martin (1864-1926), antropólogo alemão da escola de Eugen Fischer, que incluía, ainda, Otto Aichel, Egon Frieherr von Eickstadt, Ernest Rudin, entre outros, agrupados no Instituto Kaiser-Wilhelm de Antropologia, Hereditariedade Humana e Eugenismo de Berlim, peça fundamental no suporte às teorias racistas do nacional-socialismo alemão do III Reich.

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15. Robert Mearns Yerkes (1876-1956), psicólogo, desenvolveu para o exército americano uma bateria de testes psicotécnicos para avaliar da inteligência dos recrutas. A primeira aplicação desses testes decorreu em 1917 e o modelo por ele desenvolvido rapidamente passou a ser aplicado, até data muito recente, nas incorporações militares de inúmeros países (incluindo Portugal). A sua principal obra neste domínio é Robert Mearns Yerkes (1921), Psychological examining in the United States Army, citada em Stephen Jay GOULD (1981), The Mismeasure of Man, Norton, New York. 16. Para um historial sintético destas duas organizações e sua importância para a definição da política colonial portuguesa, ver Adriano MOREIRA, 1960: 325-332.

RESUMOS

Por toda a primeira metade do século XX a Antropologia colonial portuguesa esteve quase que totalmente entregue a uma orientação antropobiológica. A denominada «escola do Porto», na qual pontificava o professor catedrático de medicina Mendes Corrêa, assegurou todas as «missões antropológicas» oficialmente instituídas para as colónias. A mais sucedida de todas essas campanhas de investigação foi a dirigida por um seu assistente, Santos Júnior, também ele médico e professor na Faculdade de Medicina do Porto. Entre 1937 e 1956, a Missão Antropológica de Moçambique procedeu ao exaustivo levantamento antropométrico das populações africanas da colónia. A Etnologia, ou a simples recolha etnográfica, eram ignoradas, deixadas ao cuidado da curiosidade diletante dos mais diversos agentes da colonização, missionários, militares, funcionários administrativos, comerciantes e fazendeiros. Porque foi tão importante para o desígnio colonial português a Antropologia Física é o que se procura responder neste artigo. E, em sequência, tentar perceber porque no início da segunda metade do século XX foi a Antropologia Física tão subitamente substituída pela Etnologia colonial.

During the first half of the twentieth century, Portuguese Colonial anthropology was almost completely centered in biological anthropology. The so called «Escola do Porto» («Oporto School») founded by the well reputed Doctor of Medicine, Professor Mendes Correia, conducted all the Overseas «Anthropological Missions», officially institutionalized by the colonial government. The most well succeeded Research Campaign was coordinated by one of his disciples, Santos Júnior, who was also a Doctor and Lecturer at the Oporto Faculty of Medicine. Between 1937 and 1956, Mozambique Anthropological Mission carried out an extensive anthropometric survey of the African populations from the colony. Ethnology, or basically ethnographic collection, was disregarded, left in the hands of curious dilettantism of the several colonial officers, missionaries, soldiers, administrative technicians, merchants and landowners. The important role assigned to Biological Anthropology in relation with Portuguese colonial enterprise is the central issue addressed in this paper. And subsequently, trying to understand why, during the second half of the twentieth century, was Biological Anthropology so suddenly substituted by Colonial Ethnology.

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ÍNDICE

Keywords: physical anthropology, science mission - 1936-1959, Mozambique, race Palavras-chave: Antropologia física, Missão científica – 1936-1959, Moçambique, Raça

AUTOR

RUI M. PEREIRA FCSH/Universidade Nova de Lisboa

Cadernos de Estudos Africanos, 7/8 | 2005