UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL

ANDRÉ SZCZAWLINSKA MUCENIECKS

AUSTRVEGR E GARÐARÍKI – (RE)SIGNIFICAÇÕES DO LESTE NA ESCANDINÁVIA TARDO-MEDIEVAL

Versão corrigida

São Paulo 2014

ANDRÉ SZCZAWLINSKA MUCENIECKS

AUSTRVEGR E GARÐARÍKI – (RE)SIGNIFICAÇÕES DO LESTE NA ESCANDINÁVIA TARDO-MEDIEVAL

Tese apresentada ao Departamento de História da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Doutor em História Social

Orientadora: Profa. Dra. Ana Paula Tavares Magalhães Tacconi

Versão corrigida

De acordo

São Paulo 2014

AGRADECIMENTOS

Ao Deus trino, criador, doador da Salvação, do sopro da vida, de sua imagem semelhança, que permite todo e qualquer empreendimento no campo das letras e do saber.

Aos familiares, tanto os perto quanto distante geograficamente, pelo suporte e apoio constante e pela prioridade sempre dada à minha formação e educação: meus pais Igors e Lúcia, minha irmã Rebeca, meus avós Agafangiel (in memorian) e Marta.

Aos tutores e conselheiros, que, nesta fase de minha jornada pessoal assumiram papeis não tanto mais diretivos, mas providenciaram, ao lado da liberdade intelectual e de ação necessários, os conselhos e exemplo de vida imprecindíveis: Prs. e Revs. Denis, Artur, Darcy, Maurício, André Mira.

Aos professores que contribuíram de tantas formas em minha formação, para a conclusão deste trabalho e de tantas formas que muitos dos mesmos não imaginam – alguns por muitos anos a fio: Ana Paula, Bruno Gomide, Elena Nikolaievna Vassina, Maria Cristina Pereira, Renan Frighetto, Fátima Regina Fernandes Frighetto, Marcelo Cândido, Andrejs Vasks, Johnni Langer, Celso Taveira.

Aos amigos, colegas e alunos. Desses, alguns nunca entenderam exatamente o que estudo, sempre se comprazendo em perguntar-me acerca de dinossauros, pterodáctilos e a Era do Gelo; a outros, agradeço as sugestões, críticas, descrenças e piadas que colaboraram para a composição de um trabalho melhor e de uma autoimagem menor; outros foram de grande ajuda em minha trajetória acadêmica, oferecendo oportunidades e ajuda inestimável. Alguns enquadram-se em várias dessas situações. Diversos estimularam minha criatividade de várias formas; alguns ouviram pacientemente meus delírios; outros pagaram a língua ao verem-se constrangidos à lerem e comentarem esta tese: Pedro, Paulinho, Renan, Daniel, Larissa, Samuel, Evandro, Wellington, Otávio, Van, Lucas, Cecéu, Fábio, Pablo.

Às instituições que deram suporte, proveram recursos, experiência, crescimento pessoal e sustento: IBVM, STBNET, CBVM.

Aos não mencionados, minha gratidão pela compreensão de minhas falhas imensas, que incluem a falta de memória.

Também fica claro que muitos aqui mencionados incorrem em mais de uma das categorias. Mas deixemos de positivismo.

DEDICATÓRIA

Ao meu avó Agafangiel Szczawlinska, falecido em 2010, cujas cinzas agora compõem parte do Altântico meridional. Nascido no núcleo da antiga Rus, nos territórios pertencentes outrora à tribo dos Drevliani, sua última frase dita em minha presença (tendo tomado conhecimento de minha entrada no doutorado uma semana antes) foi, dirigida profeticamente para o médico que o atendia na UTI: “Este é meu neto. Ele é doutor”. Sua inspiração vai em muitos sentidos além; desde o trabalho incansável, criativo – por vezes pendente ao tosco - à face séria.

RESUMO

Nome: MUCENIECKS, André Szczawlinska. Austrvegr e Garðaríki – (Re)significações do Leste na Escandinávia Tardo-Medieval. 2014. Tese (doutorado) – Faculdade e Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014.

Nesta tese analisamos as nuances que o conceito de leste assumiu nas fontes escritas da Escandinávia e Islândia dos séculos XIII e XIV. De início, procedemos na observação de como a historiografia referente às interações entre povos da Escandinávia e do Nordeste Europeu produziu extenso debate de implicações políticas, conhecido como a Controvérsia Normanista. Neste capítulo salientamos também os impactos que o estudo do medievo teve nos tempos contemporâneos. A seguir, efetuamos uma síntese baseada na interpretação da Cultura Material sobre os movimentos escandinavos a leste no período viking, que forneceram material para os próprios historiadores e autores na Escandinávia e Islândia dos séculos XIII e XIV. Até então demonstramos que, a despeito da Controvérsia Normanista, há evidência convincente e suficiente para demonstrar que a presença escandinava no leste foi deveras significativa. Os capítulos posteriores centralizam-se na análise das fontes primárias. Dividimo-las em fontes que apresentam material cartográfico e geográfico, obras de cunho historiográfico e sagas voltadas ao entretenimento; como seleção de obras representativas de tais grandes grupos analisamos o Mappamundi islandês Gks 1812, 4to, 5v-6r., o prólogo da Edda Menor, a Heimskringla, a Gesta Danorum e a Ọrvar-Odds Saga. A análise dessas fontes demonstrou que entre o século XIII e o XIV ocorreu na produção escrita escandinava uma bifurcação entre o conhecimento produzido com objetivos de instrução e aquele com intuitos de entretenimento. O uso do leste na primeira vertente é livresco, inserindo muito do saber acumulado do Medievo Ocidental e ressignificando o leste segundo parâmetros das terras bíblicas e dos autores clássicos. Nas fontes de intuito de entretenimento o uso do leste é também ressignificado, mas desta feita de acordo com material mais ligado à cultura e às narrativas populares, empregando o leste na materialização de temas do fantástico e da mitologia.

ABSTRACT

Nome: MUCENIECKS, André Szczawlinska. Austrvegr e Garðaríki – Austrvegr e Garðaríki – (Re)significações do Leste na Escandinávia Tardo-Medieval. 2014. Tese (doutorado) – Faculdade e Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014. (“Austrvegr and Garðaríki - (re)significations of the East in Low- Scandinavia”)

In this thesis we analyze the nuances assumed by the concept of east in the primary sources of Scandinavia and Iceland in the thirteenth and fourteenth centuries. Initially, we proceeded in the observation of how the historiography related to Northern and Eastern have produced extensive debate of political implications, named the Normanist Controversy. In this chapter we have stressed also the impacts that Medieval Studies may assume in Contemporary milieu. Hereafter we build a synthesis based on Material Culture - in the archaeological sense - of the Scandinavian movements in East in the , interactions that already had provided inspiration for authors in XIII-XIVs. At this point we have showed successfully that there is enough evidence to demonstrate the relevance of the Scandinavian presence in medieval Eastern Europe. The later chapters deal with the analysis of several kinds of primary sources. We have gathered and organized it in geographical and cartographical works, writings of historiographical nature and entertainment aimed sagas. As a selection of representative works of such large groups we studied the Icelandic Mappamundi of manuscript Gks 1812, 4to, 5v-6r, the Prologue of Edda Minor, the Heimskringla, the Gesta Danorum and the Ọrvar-Odds Saga The analysis of these sources showed that between the thirteenth and the fourteenth century a bifurcation occurred in Scandinavian written sources between the knowledge produced for the purposes of instruction and the one with the goal of entertainment. The use of the East in the first group is highly scholar, re-elaborating the East in the light of accumulated knowledge of the Western Middle Ages, as well as redefining it within parameters coherent with christian and classical authors. The sources aimed to entertainment, however, employed the eastern areas in connection with a different kind of knowledge. Folk narratives and popular lore gained prominence in the reshaping of eastern region, transforming it in an auspicious place to the materialization of the fantastic and the mythical.

MAPAS

Mapa 01: Austrvegr e Garðaríki, 90. Mapa 02: Austrvegr e seus ramais, 99 Mapa 03: Principais rios ligados à Rota do Daugava, 102. Mapa 04: Principais rios ligados aos movimentos escandinavos na Rus na região do Alto Volga, 105. Mapa 05: A Região de Bolghar e o entreposto com os Khazares, 108. Mapa 06: Distribuição das estelas rúnicas na Suécia e Noruega por Km2, 119. Mapa 07: As províncias suecas, 135. Mapa 08: Locais com toponímia báltica, 182. Mapa 09: Tribos bálticas no século XIII, 184. Mapa 10: Mar Branco, Península de Kola e Oceano Ártico, 192.

Volga

Dniepr

Para Kiev e Bizâncio TABELAS

Tabela 01: “Runes and North Italic letters”, 112. Tabela 02: “Old English futhorcs and the Ruthwell runes”, 114. Tabela 03: Distribuição geográfica das Estelas Vikings, 136. Tabela 04: Os reis Valdemares e os arcebispos na Dinamarca do século XIII, 200. Tabela 05: Genealogia de Sturla Þoŕðarsson, 204. Tabela 06: A Gesta Danorum: a ordem dos livros em contexto, 242. Tabela 07: O desenvolvimento do esquema das Virtudes Cardinais, 250. Tabela 08: O desenvolvimento da Temática do Conselheiro na Gesta Danorum, 251. Tabela 09: Paralelos das duas iniciações de Ọrvar-Oddr, 286. FIGURAS

Figura 01: Eurípedes em fevereiro de 1942 à sua máquina de escrever ROYAL, redigindo e finalizando a 1ª tese de doutoramento em história a ser defendida na Universidade de São Paulo, 82 Figura 02: Espada em estilo viking escavada em 1950 em Gniozdovo. Início do X, 107 Figura 03: “Den utnordiska runraden”, 113 Figura 04: “Den 16-typiga runradens två varianter: Normalrunor, Kortkvistrunor”, 113 Figura 05: U 439. Desenho de Johann Bureaus em 1595, 127 Figura 06: U 504 – Ubby, Uppland, 128 Figura 07: U 792 – Ulunda, 129 Figura 08: U 778 - Localizada no pórtico da Igreja de Svinnegarn, 131 Figura 09: DR 216. Exposta no museu nacional dinamarquês, 132 Figura 10: Sö 319 - Localizada no solar de Stäringe, para aonde foi movida. Oriunda de Sannerby, 133 Figura 11: Mappamundi de Al Işţakhrī (977 a.D.), 153 Figura 12: O Mappamundi circular de al-Idrīsī. (1099-1165/66 a.D), 154 Figura 13: Mappamundi de Macrobius, 158 Figura 14: Mapa isidoriano em T-O, 160 Figura 15: “Mapa do Mundo, de Beatus de Saint Sever”, 162 Figura 16: O mapa da Vinland, 165 Figura 17: O Mappamundi islandês do Gks 1812, 4to, 5v-6r., 167 Figura 18: Biarmia, na Carta Marina de Olaus Magnus (1539), 191 Figura 19: Van EEDEN, Stemma, 209 Figura 20: Stemma – Gesta Danorum, 238

SIGLAS – MANUSCRITOS E CÓDICES

Póviest vriémennikh liet PVL Póviest vriémennikh liet L Póviest vriémennikh liet, redação laurentina H Póviest vriémennikh liet, redação hypatiana

Heimskringla F Codex Frisianus - AM 45 fol K Kringla – Lbs fragm 82 HH Haralds saga Harðráða OH Óláfs saga ins Helga OT Ólafs saga Tryggvasonar

Edda Menor R Codex Regius - GKS 2367 4to T Codex Trajectinus - MSS 1374 U Codex Uppsaliensis - DG 11 4to W Codex Wormianus - AM 242 fol

Gesta Danorum A Fragmento de Angers - Ny kgl. Saml. 4to, 869 g. a Edição de Paris, 1514 BD Frags. de Lassen (Ny kgl. Saml. Fol. 570.) + Kall-Rasmussen (Ny kgl. Saml. Fol. 570.) b Codex de Caspar Barth (perdido) C Fragmento de Laverentzen c Colação de C E Fragmento de Plesner - Ny kgl. Saml. Fol. 570. F Chronicon Sialandiae f Codex usado por F (perdido) g Codex de Birger Gunnersen (perdido) j Compendium Saxonis - Add. 49 2o K Albert Kranz k Codex usado por K (perdido) O Peder Olsen o Codex usado por Peder Olsen (perdido) p Cópia de g usada para impressão de a (perdida) s Edição e comentário de Stephanius, de 1645 t Tradução de Christiern Pedersen (perdida) v Tradução de A.S. Vedel, 1575 x Arquétipo medieval (perdido)

Ọrvar-Odds Saga OS Ọrvar-Odds Saga S Ọrvar-Odds Saga, redação curta - Perg. 4tpo nr 7; 43v-57r:20 M Ọrvar-Odds Saga, redação média - AM 344 a, 4to; 1r-24v A Ọrvar-Odds Saga, redação longa variante A - AM 343, 4° membr; 59v-81v B Ọrvar-Odds Saga, redação longa variante B - AM 471, 4° membr.; 61r-96v E Ọrvar-Odds Saga, redação longa variante E - AM 173, 4° membr.; SUMÁRIO

INTRODUÇÃO, 15 CAPÍTULO 1: PRELIMINARES HISTORIOGRÁFICOS, 22 1.1 Pensando sobre a dualidade Mito X história, 22 1.2 A historiografia pertinente, 26 1.3 A Rússia czarista, 27 1.3.1 Tatíschev, 29 1.3.2 O alemães, 29 a) Gottlieb Siegfried Bayer (1694-1738), 29 b) Gerhard Friedrich Müller (1705-1783), 31 c) August Ludwig von Schlözer (1735-1809), 32 1.4 A controvérsia Normanista, 36 1.4.1 A posição normanista,38 I. A Etimologia, 41 II. As fontes, 42 a) Póviest vriémennikh liet, 42 b) Fontes bizantinas, 42 c) Fontes islâmicas, 45 d) Fontes latinas, 46 1.4.2 A posição anti-normanista, 47 I. A questão da etimologia, 48 II. Os argumentos de ausência, 49 III. Os enviados, 50 IV. Fontes islâmicas, 50 V. Superioridade econômica, 50 1.4.3 Uma avaliação crítica das duas posições, 51 I. O problema das etimologias, 51 II. Interpretação arqueológica e etnicidade, 52 1.4.4 Outras possibilidades interpretativas,55 1.4.5 O problema metodológico, 56 1.4.6 O rei-estrangeiro, a Antropologia, a mitologia e o Hieros-gamos: sugestões e possibilidades interpretativas adicionais, 58 1.5 O século XX: A arqueologia e a historiografia russas nos tempos soviéticos, 63 1.5.1 O período revolucionário (1917-1919) e os inícios da URSS, 63 1.5.2 O período Stalinista, 66 1.5.3 Os tempos pós-Stalin: Kruchtchóv (1953-1964) e os inícios da escola de Klejn, 69 1.5.4 Da era Bréjnev ao final da URSS (1964-1991), 70 1.5.5 A Rússia pós-soviética, 73 1.6 Desenvolvimentos contemporâneos: a era Putin-Medvedev, 76 1.6.1 A “Comissão presidencial da Federação Russa para conter tentativas de Falsificação da História em detrimento dos interesses da Rússia” (15 de maio de 2009 a 14 de fevereiro de 2012), 75 1.6.2 A academia russa hoje, 78 1.7 Brasil: Eurípedes Simões de Paula, 79 1.8 A historiografia ocidental e da antiga Cortina de Ferro, 84

CAPITULO 2: A CULTURA MATERIAL, 89 2.1 Os Escandinavos no leste – O testemunho da Cultura Material, 91 2.1.1 A numismática, 92 2.1.1.1 As Fontes, 94 2.1.1.2 Os khazares e os árabes, 95 2.1.1.3 Rotas e cronologias, 97 I. O Báltico: Austrvegr, 98 II. A Rus de norte: Ladoga, 103 III. Rostov, Suzdal e Murom, 106 IV. Os povoamentos pareados, 106 V. Rumo ao sul: Bizâncio e Serkland, 108 2.2 As estelas rúnicas, 110 2.2.1 Sobre as estelas rúnicas, 111 2.2.2 A distribuição das inscrições rúnicas, 115 2.2.3 A História Social e as estelas rúnicas, 123 2.2.4 As estelas rúnicas e o leste,125 2.3 Análises: a Cultura Material, o Período Viking e o leste, 135

CAPITULO 3: O LESTE ENQUANTO CONSTRUÇÃO GEOGRÁFICA, 139 3.1 Preliminares: múltiplas acepções de leste, 139 3.1.1 O sistema cardinal e a terminologia, 141 3.1.2 O Sistema de orientação geográfica e espacial no medievo escandinavo, 143 3.1.3 Sagas dos antigos islandeses e sagas dos reis – a primazia da direção geográfica simples, 147 3.1.4 Os mappaemundi e as formas pictográficas da representação geográfica, 150 3.1.4.1 Um breve panorama das tradições cartográficas, 151 3.1.4.2 Os Mappaemundi, 155 3.1.4.3 O desenvolvimento e histórico dos mappaemundi, 156 3.1.4.4 A tradição de Macróbio (ca. 395-436): os mapas zonais, 158 3.1.4.5 Paulo Orósio (ca.383- post 417), 159 3.1.4.6 Isidoro (ca. 560-636), 159 3.1.4.7 De Beda a Lambert de Saint-Omer (ca. 700-1100): o surgimento dos mapas “Beatos”, 161 3.1.5 A cartografia na Scandia e Islandia medievais, 163 3.2 Quadro etno-linguístico de Austrvegr e Garðaríki entre os séculos VIII e XIII, 174 3.2.1 Fino-úgricos, 177 3.2.2 Os Baltos, 181 3.2.3 Baltos e Fino-Úgricos, 190 3.2.4 Bjármaland, 191

CAPITULO 4: O LESTE ENQUANTO PRODUTO DE REFLEXÃO HISTÓRICA, 198 4.1 A produção escrita na Escandinávia e Islândia no medievo, 199 4.2 Snorri Sturlusson (1179-1241) e a tradição islandesa, 204 4.2.1. Histórico, 204 4.2.2 A Heimskringla, 207 4.2.3 A Edda menor, 208 4.2.4 As interpretações histórico-geográficas da Heimskringla e da Edda Menor, 212 4.2.5 O prólogo da Edda Menor, 214 4.2.6 O Evemerismo,219 4.2.7 Snorri e a “Matéria de Roma”,224 4.2.8 Austrvegr e Garðaríki na Heimskringla: o ciclo de Óláfr Tryggvason, S.Óláfr, Magnus o bom e Haraldr Harðraði,227 4.2.9 Garðaríki como local de refúgio,228 4.2.10 Conclusões parciais,234 4.3 Saxo Grammaticus e a Gesta Danorum, 235 4.3.1 O Evemerismo de Saxo, 243 4.3.2 O leste na Gesta Danorum, 248 4.3.3 A Temática do Conselheiro, 250 4.3.4 O Imperium de Frotho e a Hegemonia dos Valdemares, 253 4.3.5 O leste e as cruzadas setentrionais, 255 4.4 Algumas conclusões prévias; Saxo, Snorri, o autor da Heimskringla e o leste: educar e instruir, 258

CAPÍTULO 5: A ỌRVAR-ODDS SAGA E AS FORNALDARSÖGUR - O LESTE E A NARRATIVA DE ENTRETENIMENTO, 261 5.1 As Fornaldarsögur, 261 5.1.1 Datações e subdivisões, 264 5.2 A Ọrvar-Odds Saga, 266 5.2.1 Manuscritos e redações, 266 5.2.2 A profecia e as conexões da Ọrvar-Odds Saga com a produção histórico-geográfica, 268 5.2.3 Bjarmaland e o leste enquanto espaço liminar, 270 5.2.4 O Homem-Casca, 279 5.3 As iniciações e o leste, 286

6. CONCLUSÕES, 288 7. BIBLIOGRAFIA, 291 7.1 Fontes primárias, 291 7.1.1 Fontes escritas tradicionais, 291 a) Colêtaneas, 291 b) Por autor ou título, 291 7.1.2 Cultura material – estelas rúnicas, 293 7.2. Referências Bibliográficas, 294

8. APÊNDICES, 311 Apêndice I: Constantino Porfirogênito, “De administrando Imperio”, 311 Apêndice II: Tabela de transliteração do Russo empregada pelo DLO (Departamento de Letras Orientais) da Universidade de São Paulo, 313

15

INTRODUÇÃO

A juventude dos estudos histórico-arqueológicos do medievo escandinavo e germânico no Brasil e na própria América Latina não é novidade; também não o é o vigor com que essa área tem se desenvolvido nas últimas décadas. Se prosseguirmos um pouco mais adiante e nos dispormos a discutir o contexto escandinavo mais a leste envolvendo a Rússia nos períodos viking e medieval, encontramos um panorama de ineditismo quase total, com pouquíssimas exceções, como a tese de doutorado defendida por Eurípides Simões de Paula1 no departamento de História Social da Universidade de São Paulo, na década de 1940.

A produção que insere a temática Escandinava no contexto de leste é restrita a artigos esparsos de estudiosos ligados de forma mais ou menos indireta ao tópico. O interesse, entretanto, é relativamente crescente, em particular nas novas gerações de graduandos em História, que enfrentam, além da resistência entre os próprios acadêmicos estabelecidos (e desconhecedores do campo em questão), a ausência de literatura. O trabalho de Eurípides Simões de Paula veicula informações úteis, mas que necessitam de atualização e contextualização.

Essa deficiência engloba outros problemas que inclui a falta de bibliografia estrangeira mais acessível ao estudante que deseja adentrar o campo. As obras de cunho geral sobre a cultura russa mais difundidas nas nações ocidentais apresentam uma ênfase acentuada no período soviético, em decorrência da influência da URSS no século XX, e da maneira como as relações soviético-americanas moldaram a política do mundo contemporâneo.

É relativamente fácil se encontrar manuais de alcance geral sobre a História Russa desde seus primórdios até os tempos soviéticos, que carecem de maior especialização nos tempos que interessam à escandinavística. O acesso às fontes primárias e secundárias é cada vez mais fácil ao estudioso graças ao advento da Internet e dos recursos digitais, mas o interessado em desvendar o tópico ainda se depara com inúmeras dificuldades – desde o desconhecimento de por onde começar, ao próprio acesso às linguagens e idiomas requeridos.

1 PAULA, Eurípedes Simões de. O comércio varegue e o grão-ducado de Kiev. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1942. 16

O foco de nosso trabalho é, de muitas formas, múltiplo, por estranha que possa parecer tal afirmativa ao leitor, que enxergará a temática russo–escandinava no medievo como algo da mais notória especificidade. Nosso interesse primordial de pesquisa são as visões e conceituações desenvolvidas pelos eruditos escandinavos do medievo sobre o leste – austr, em antigo nórdico.

O leste pode consistir em referência simples de direção geográfica; nesta acepção, por vezes assume um significado relativo, passageiro para quem o emprega: por exemplo, um navegante que sai da Islândia ruma para leste quando se dirige para a Noruega; um norueguês ruma para leste quando se dirige para a Suécia.

Ainda geograficamente, entretanto, o leste pode assumir uma conotação mais absoluta, que perpassa a mera dimensão geográfica e, ainda que a incorpore, assume também um significado quase que etnológico. Neste sentido, encontramos o leste enquanto região habitada por populações específicas, diferentes e similares aos escandinavos em diversos graus, e por eles caracterizados e distinguidos por conceitos próprios.

Há outra dimensão que o leste assume na historiografia escandinava medieval. De natureza mais etérea, menos “real” ao leitor contemporâneo e mais inserida no campo do imaginário, da narrativa mítica e fantástica. Uma dimensão na qual o leste torna-se um lugar adequado para tanto os acontecimentos e feitos dos deuses e heróis quanto para localização de acontecimentos imemoriais que se encontram no domínio do passado.

O estudo do conceito de leste assume, portanto, um papel significativo no próprio estudo do desenvolvimento da história do pensamento nas regiões escandinavas medievais. Estruturas de pensamento que passam a ser fixadas de forma escrita, e que sofrem uma bifurcação crescente entre narrativas de cunho mais estritamente histórico e geográfico para o campo não apenas do fantástico, mas de próprio entretenimento.

Tal circunstância leva-nos a efetuar uma aproximação com a já antiga discussão entre o mito e a história, entre o fato e o ficcional. Porém, o faz de formas que extrapolam nossas concepções contemporâneas, e que devem ser compreendidas e estudadas dentro da mentalidade do contexto em questão. Os marcos temporais são fornecidos pelo nosso próprio tema. A concentração de fontes escritas tradicionais escandinavas ocorre no século XIII, refletindo processos diversificados e distintos 17 ocorridos nos reinos escandinavos.

Majoritariamente remete aos séculos IX-XI, conhecido como o período viking. Temos, portanto, uma dualidade temporal constante. O trabalho por nós proposto está fadado a estudar a história não apenas de pensadores e historiadores do passado, mas a história por eles pensada e escrita. Para isso, devemos nos aproximar não apenas de seu contexto, mas também do contexto que tão vividamente atraiu seu interesse. Essa opção traz consequências metodológicas, principalmente ligadas à existência e disponibilidade das fontes primárias, sua própria natureza, bem como os procedimentos a serem adotados em relação a elas.

Nossa pesquisa está estruturada de forma a, inicialmente, prover um panorama referencial dos contextos em questão: discutiremos a historiografia pertinente ao tema e não apenas o tradicional contexto político e narrativo de escrita das fontes. Também nessa seção tocaremos brevemente na discussão entre Mito X História, Fato X Ficção que, ainda que bastante familiar ao historiador, precisa ser revisitada, por razões que explanaremos logo a seguir. Tal abordagem enfatizará os enganos que o uso indiscriminado da Arqueologia pelo historiador pode induzir.

Essa seção contém também a discussão da chamada Controvérsia Normanista, que merece destaque. Ainda que uma questão considerada resolvida na historiografia ocidental - e mesmo nos países da antiga Cortina de Ferro, a temática ainda é capaz de suscitar debate acalorado em território russo, polarizando as posições políticas, tanto dentro quanto fora da academia. Dessa forma, uma temática que seria de certa forma acessória – visto que nosso objeto é focado sobre o ponto de vista escandinavo sobre o leste, e não o contrário – acabou por assumir atenção e espaço especial, pelas implicações políticas contemporâneas que a temática pode assumir, e em relação às quais não estamos dispostos a nos omitir.

É relevante a circunstância de que a análise das consequências presentes no estudo da Antiguidade e do Medievo consista em um campo relativamente recente nos estudos antigos, mas bastante ausente nos medievais. No Brasil, tal preocupação tem sido constante no trabalho de pesquisadores ligados à Antiguidade, como Pedro Paulo Funari, Renata Senna Garrafoni e Glaydson José da Silva – destacamos, por exemplo, os estudos do último referentes aos usos da Antiguidade na França de Vichy, mas com exceção de tentativas de análise cinematográfica e da Cultura popular, o estudo das 18 formas de emprego do medievo na Idade Contemporânea ainda tem engatinhado e encontrado resistência. Destacamos os estudos de Johnni Langer referentes às representações escandinavas no Romantismo, por si só pioneiros, e que despertaram interesse em toda uma geração de estudantes.

Em nossa apresentação do Normanismo pretendemos ir, no entanto, um passo adiante, na demonstração, ainda que em linhas gerais, de como uma temática do Medievo pôde assumir consequências amplas na Rússia e na União Soviética, a ponto de vir a ser considerada danosa e perigosa ao Estado, implicando perseguição aos seus proponentes, bem como assumindo conotações de disputa e ressentimento político entre antigas nações do Bloco Soviético e a Rússia.

Para a confecção de tal seção nos beneficiamos consideravelmente dos conselhos dos professores do departamento de Línguas Orientais da Universidade de São Paulo, Bruno Gomide e Elena Vássina, bem como das oportunidades de discutir e lecionar o tema na disciplina de Cultura Russa I, ministrada pelo próprio professor Gomide. O leitor encontrará nesta seção, portanto, uma síntese consideravelmente ampla – estamos plenamente cientes do paradoxo da afirmação -, e também inexistente na América Latina. Também devemos aqui o agradecimento aos professores Andrejs Vasks, da Universidade de Riga, Letônia, Heiki Valk e Anti Selart, da Universidade de Tartu, Estônia.

Essa ponte entre o passado e o presente é desejável em todo trabalho de pesquisa histórica; é impossível dissociar-se do presente vivido, que sempre se imiscuirá na pesquisa do mais “neutro” e “científico” dos historiadores. De fato, as pesquisas antigas e medievais permanecem como um dos últimos redutos na pesquisa história em que se pratica um modelo no qual o historiador pensa isolar-se em sua torre de marfim, mantendo postura supostamente apolítica – ora, o próprio hábito de abster-se é ação de consequência política, ainda que de tolerância, subserviência ou mesmo apoio ao status quo.

Por outro lado, perduram ainda em âmbito acadêmico as discussões sobre as maneiras de se efetuar tal conexão passado-presente, e em muitas ocasiões a crítica de uma historiografia mais conservadora centralizar-se-á no argumento de que muitos historiadores que dizem efetuar o estudo da Antiguidade ou Medievo estão, na verdade, efetuando estudos de História Contemporânea. Em outras circunstâncias, a mesma 19 historiografia tradicional, com uma preocupação salutar do recurso às fontes primárias, advogará uma total e cabal ausência de referência teórica e reflexiva externa à fonte, como se tal empirismo fosse de fato, possível.

Procuramos lidar com tais ambiguidades e dualidades em nossa pesquisa, efetuando, dentro das possibilidades de tempo e espaço, trabalho sólido de análise das fontes – sejam escritas ou arqueológicas, mas sem nos abstermos das implicações sócio- políticas contemporâneas de tal análise. Cabe também ao leitor a consideração final acerca de quão perto fomos capazazes de chegar de tal objetivo.

No capítulo seguinte procederemos ao estudo de Austrvegr e Garðaríki nos séculos IX -XI – termos que dissecaremos com mais afinco adiante, mas que por hora é suficiente definir enquanto áreas à leste da Escandinávia – Austrvegr compreendendo a região báltica e Garðaríki a Rusde Kiev e Novgorod. Em tal fase da pesquisa daremos foco às fontes propiciadas pela Cultura Material – termo aqui empregado em seu conceito arqueológico. Empregaremos principalmente duas séries documentais; a numismática e as estelas rúnicas. Nossa pesquisa não é exclusivamente arqueológica, e não possui a natureza de uma análise arqueológica específica e detalhada de limitado e determinado contexto arqueológico. Dessa maneira, pela própria natureza de tais fontes e pelas possibilidades de tempo e espaço, tal etapa de estudo inevitavelmente recorrerá com frequência ao cânon interpretativo acadêmico, possuindo caráter enciclopédico. Temos a confiança de poder, a despeito de tais circunstâncias, prover o leitor de interpretações e sínteses ainda não agrupadas em conjuntos.

O capítulo seguinte iniciará a contraparte temporal do século XIII. Analisará a terminologia, conceituação e aparatos geográficos disponíveis aos antigos escandinavos, incluindo suas formas de expressão linguísticas, cartografia e formas narrativas. Esta seção será complementada por uma análise das diferenciações etno-geográficas presentes na Eurásia de noroeste.

A seguinte e última parte do trabalho lidará mais profundamente com as fontes escritas de caráter tradicional ao historiador, em particular com os trabalhos de Snorri Sturlusson, Saxo Grammaticus e autores anônimos de diversas modalidades de sagas. Os dois capítulos a ela destinada dividir-se-ão em uma análise específica das obras históricas e cronísticas dos autores supracitados no primeiro, seguida da comparação com a Ọrvar-Odds Saga e alguns extratos de outras Fornaldarsögur, que exemplificam 20 outras formas totalmente distintas de se empregar o passado e de se compreender o leste.

Tal estruturação da pesquisa, a nosso ver necessária à abrangência de todas as temáticas envolvidas, corre perigosamente perto da discussão já referenciada sobre “mito X história”, “fato X ficção”, “o que realmente aconteceu X o que foi escrito sobre isso”. O leitor perceberá a facilidade com que se associa Cultura Material, conhecimento Arqueológico e materialidade à objetividade científica, bem como o texto escrito à subjetividade. Um estudo focado na materialidade nos séculos IX-XI seguido da análise das fontes escritas do século XII que tratam sobre esses primeiros séculos induz tentadoramente o pesquisador a uma diferenciação simplista entre “o que de fato aconteceu”, estudado pela Arqueologia e “o que se escreveu sobre isto”, estudado pela História. Esperamos não incorrer nessa discussão de forma ingênua, despreparada e simplista, e deixaremos ao leitor a conclusão se conseguimos ou não vencer e transpor tal limitação.

A natureza múltipla de nosso trabalho implica um caráter por vezes enciclopedista e mais inclinado ao estudo generalista, ao invés de uma análise estritamente transversal. Temos a confiança, no entanto, de apresentarmos ao leitor e à academia uma discussão pareada com o estado da pesquisa internacional, beneficiada pela discussão com especialistas da Escandinávia, do Reino Unido e do Báltico, e que pode se prover de elementos tanto da academia ocidental quanto da antiga cortina de ferro.

Em relação aos nomes russos, empregamos a tabela de transliteração do cirílico empregada pelo curso de Língua Russa do Departamento de Letras Orientais da Universidade de São Paulo, que pode ser consultada no Apêndice II. No caso de acadêmicos russos com produção internacional, principalmente no mundo anglo-saxão, citamos as formas de seus nomes segundo as respectivas publicações. Quanto aos nomes escandinavos, mantivemo-los em suas formas originais, incluindo terminações de nominativo singular.

Por fim, falta ainda a ressalva sobre o emprego específico que faremos dos termos “viking” e “varegue”. Defendemos o emprego do termo “viking” em uma acepção ocupacional, não étnica, de um indivíduo que navega em expedições listadas nas fontes escritas e monumentais como ‘í viking’, fossem de saque ou comércio. 21

Defendemos tal posição em artigo publicado em 20102 e, desde então, a mesma ideia foi proposta e defendida por Renan Birro e Théo Moosburguer.

Quanto ao uso do termo “varegue”, é designação comum à historiografia usada para escandinavos, normalmente suecos, que navegam, lutam, perseguem carreira ou residem nas terras a leste, fosse Austrvegr, Garðaríki ou mesmo Bizâncio e além. Esta acepção geral induz a uma dicotomização simples entre varegues-mercadores e vikings- guerreiros, e pode ser encontrada na obra de autores consagrados na Escandinavística como Lucien Musset3 e o casal Sawyer4.

Entretanto tal formulação já não se sustenta de forma completa. Ainda que a maior parte dos empreendimentos a leste tenham tido caráter comercial, os aspectos presentes em expedições vikings encontram-se também nos movimentos dos varegues a leste, sendo o termo viking empregado pela historiografia mais recente a lidar com as terras orientais5. Também é importante notar que um indivíduo não necessariamente navegava apenas a oeste ou apenas a leste. Dessa forma, empregamos “viking” de forma ocupacional, mas genérica, e varegue de forma específica, enquanto vikings nas terras a leste.

2 MUCENIECKS, André S. “Notas sobre o termo viking: usos, abusos, etnia e profissão”. In: Revista Alethéia de Estudos sobre a Antigüidade e Medievo, volume 2/2, ago/dez 2010. 3 MUSSET, Lucien. Les peuples scandinaves au Moyen Âge. Presses universitaires de : Paris, 1951. Musset discute o conceito de “viking” nas páginas 41s, e o de varegue, segundo a acepção citada, na 53. 4 SAWYER, Birgit & SAWYER, Peter. Medieval Scandinavia: from Conversion to circa 800-1500. Minneapolis: Minnesota University Press, 2003 [1993], 53. 5 Destaque-se os influentes trabalhos de Thomas Noonan, em particular sua série de artigos “The Islamic World, Russia and the Vikings, 750-900”, seminais no campo da Numismática; a obra de referência de Wladimir Duczko, “Viking Rus: Studies on the Presence os Scandinavians in Eastern Europe”, publicada pela Brill em 2004, e o recente manual de Stefan Brink e Neil Price, “The Viking World”, publicado em 2008. O termo “viking” tem sido empregado também por autores de origen russa e que publicam em russo como Tatjana Jackson, Elena Melnikova e Leo Klejn, bem como em congressos internacionais – podemos citar, por exemplo o Internacional medieval Congress em Leeds, UK, e as “Saga Conferences”. 22

CAPÍTULO 1: PRELIMINARES HISTORIOGRÁFICOS

“Alguns, estimando que os fatos mais próximos a nós são, por isso, mesmo, rebeldes a quaquer estudo verdadeiramente sereno, desejavam simplesmente poupar à casta Clio contatos demasiado ardentes. [Assim pensava, imagino, meu velho professor. Isso é, certamente, atribuir-nos um fraco domínio dos nervos. É também esquecer que, a partir do momento em que entram em jogo as ressonâncias sentimentais, o limite entre o atual e o inatual está longe de se ajustar necessariamente pela média matemática de um intervalo de tempo.] Estava tão errado meu bravo diretor do liceu languedociano onde empunhei minhas primeiras armas, que advertia- me, com sua voz grossa de capitão de ensino: ‘Aqui, o século XIX, não é muito perigoso; quando chegares nas guerras de Religião, sê prudente.’ Na verdade, quem, uma vez diante de sua mesa de trabalho, não tiver a força de poupar seu cérebro do vírus do momento será bem capaz de destilar suas toxinas até num comentário sobre a Ilíada ou o Ramayana” (Marc Bloch)6

1.1 Pensando sobre a dualidade Mito X história

Os paradigmas históricos sofreram consideráveis alterações na Pós- modernidade. O que muitos de nós não se apercebem é o quão modernos ainda somos em muitos aspectos. Como Barstad7 salienta, a despeito das grandes diferenças existentes entre as metodologias dos positivistas alemães e a Escola dos Annales francesa, ambas partilham do pressuposto de que a tarefa do historiador é compreender o passado.

O estado atual de discussão da disciplina aponta para a necessidade de uma reflexão séria por parte do historiador sobre o seu trabalho, sua produção e seu próprio ponto de partida. Em particular o lugar de onde o historiador escreve precisa ser considerado, bem como a compreensão de que sua escrita não é neutra e desprovida de significados para o seu presente e sua posteridade.

Aparentemente, há um senso comum de que a dimensão política do presente no trabalho do historiador é considerada mais significativa na relação de que seu recorte de estudo aproxima-se de seu próprio tempo. As temporalidades mais distantes – Antiguidade, Antiguidade Tardia e Idade Média permanecem distantes geografica e

6 BLOCH, Marc. Apologia da História: ou O ofício do historiador. Edição anotada por Étienne Bloch. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002 [1997]. P.62. 7 BARSTAD. and the Hebrew Bible: Can a History of Israel Be Written? In: GRABBE, L. L. Grabbe (ed.) Journal for the Study of the Old Testament Supplement Series 245. European Seminar in Historical Methodology 1. Sheffield, 1997. p.40. 23 temporalmente, e, escondendo-se em tal distância, é risco constante do historiador pressupor a ausência de consequências e influências – nas duas mãos – de seu trabalho no contexto em que ele vive.

Há de ressaltar que, ao menos no que toca a Antiguidade Greco-Romana, o panorama têm sido mudado. Gradualmente mais departamentos e pesquisadores abrem- se às necessidades do estudo dos diversos usos da Antiguidade efetuados a posteriori. Dessa forma, não causam mais tamanha estranheza linhas de pesquisa inteiramente devotadas a este objetivo, e ainda assim inseridas em departamentos voltados ao estudo da Antiguidade.

A despeito de críticas eventuais de uma historiografia mais tradicional e empírica, os produtos de tais linhas de trabalho têm dado significado maior ao próprio estudo da História Política com um todo. Podemos citar como exemplos de tais estudos os trabalhos de Glaydson da Silva8 acerca dos empregos de identidades étnicas – ora gaulesas, ora gallo-romanas, ora francas na França, em particular no período de Vichy; trabalhos do grupo de pesquisa no qual o mesmo se insere, que também inclui Pedro Paulo Funari, Renata Senna Garrafoni, Lourdes Madalena Gazarini Conde Feitosa e José Geraldo Costa Grillo, ligado à UFPR e Unifesp e chamado “Antiguidade e Modernidade: usos do passado”; estudos sobre apropriação de imaginário germânico antigo e mesmo helênico na Alemanha nazista, dos quais se destaca o ensaio de Carlo Ginzburg “Mitologia Germanica e Nazismo – Su Un Vecchio Libro Di Georges Dumézil" em “Mitos, emblemas e sinais”9; estudos sobre a apropriação do passado romano pela Itália fascista, e mesmo estudos sobre os usos da Arqueologia nas nações coloniais, disputas étnicas e temáticas afins.

No estudo do medievo, entretanto, tais preocupações parecem mais distantes da mente do historiador, a despeito da maior proximidade temporal – e por vezes, nos casos europeus, geográfica. Algumas exceções notáveis – e podemos referir nesta linha de pesquisa alguns trabalhos do professor Johnni Langer acerca das representações

8 Destacamos: SILVA, Glaydson José da. O mundo antigo visto por lentes contemporâneas: as extremas direitas na França nas décadas de 1980 e 90, ou da instrumentalidade da Antigüidade. História (São Paulo), v. 26, p. 79-99, 2007; e principalmente SILVA, Glaydson José da. História Antiga e usos do passado: um estudo de apropriações da Antiguidade sob o regime de Vichy (1940-1944). São Paulo: Annablume; Fapesp, 2007, 222p. 9 Publicação original: GINZBURG, Carlo. Mitologia Germanica e Nazismo – Su Un Vecchio Libro Di Georges Dumézil : Miti emblemi spie. Morfologia e storia. Einaudi, 1986. 24 românticas sobre os vikings10 – vêm trabalhar o estudo de determinadas representações do medievo em períodos mais contemporâneos. Mas são casos mais raros, esporádicos, e muitos deles se perdem como meros estudos de curiosidades, carecendo de análises políticas mais consistentes.

Dois pontos fundamentais que derivam de tais reflexões são as fronteiras rígidas entre "Mito" e "História" e uma reavaliação do próprio conceito de "verdade histórica". A respeito das implicações políticas de nosso objeto de pesquisa, retornaremos com maior detalhe brevemente. Em relação à questão “Mito e História”, ao tratarmos da dualidade temporal entre o período viking e o período da Baixa Idade Média na Escandinávia, costuramos as duas situações inadvertidamente pela própria natureza das fontes envolvidas, pelas disciplinas que se destacam em seus estudos, e pelos preconceitos que gravitam em torno de tais disciplinas.

Quando comparamos o estudo dos séculos IX-XI – carente de fontes primárias escritas e, por conseguinte, centralizado em interpretações sugeridas pelo estudo da Cultura Material por disciplinas como a Arqueologia, Numismática e Paleografia – com a análise das fontes escritas no século XIII-XIV – caracterizados por abundância de material escrito e epigráfico e, portanto, dominados por estudos históricos e literários, as naturezas das disciplinas induzem-nos a pressupor uma maior verossimilhança nos estudos que lidam com a materialidade, produzindo uma polarização entre cultura material = história/verdade versus fontes escritas e literárias = mito/mentira.

As próprias divisões entre as fontes primárias, também influenciadas por doses consideráveis de positivismo histórico, induzem a critérios de “maior” ou “menor” verossimilhança, em abordagens que, por mais que envolvidas em discursos historiográficos contemporâneos, repetem estereótipos de matriz positivista. A contraposição entre as Fornaldarsögur (Sagas Fantásticas) com as Islendigasögur (Sagas dos Islandeses)11 produziu tradição de desmerecimento das primeiras em favor da suposta maior factualidade e realismo das últimas.

É interessante frisar, entretanto, que possuímos um termo classificatório empregado por alguns dos próprios islandeses medievais, ainda que aparentemente mais

10 LANGER, J. The origins of the imaginary Viking 4, 2002. Centre for Baltic Studies/Gotland University, Visby, : Viking Heritage Magazine, v. 04, n.04, p. 07-09, 2002. & ______. Les Vikings, premiers européens. In: Temas medievales 14 14, 2006, Scielo Argentina; ______. A guerra das imagens. In: História (UNESP). 26, 2007. 11 Discutiremos em separado as categorias de fontes primárias, nos capítulos II e V. 25 restrito. Trata-se de lygisögur. Traduzido para o inglês como “lie-sagas”, uma apropriação razoável no português seria “sagas de mentira”, ou mesmo algo coloquial como “sagas de mentirinha”. Porém não é necessário pressupor aqui um critério pejorativo per se. Trata-se de um critério de certa forma similar ao que empregamos ao diferenciar “verídico” de “fictício”, ou mesmo “história” e “mito”, e enfatiza o aspecto de que o evento narrado ocorreu ou não12. Este parâmetro classificatório cria situações curiosas ao olhar contemporâneo. Enquanto o parâmetro classificatório fosse o “ocorreu” ou “não-ocorreu”, a incorporação de motivos mágicos e fantásticos podia ser feita a um enredo que “realmente ocorrera” sem alterar a característica de “fato” da narrativa em questão. A maior parte das sagas classificadas atualmente como marcadamente fantásticas e fictícias, ou seja, as fornaldarsögur, não eram chamadas de lygisögur. E de algumas sagas classificadas como tais, afirmava-se que das mesmas não se devia desprezar o valor pois, a despeito de sua não-factilidade, traziam ensinamentos morais relevantes. Temos, portanto, definições e consideração sobre a diversa natureza do conhecimento que não coincidem exatamente com as nossas próprias visões. Nossa divisão tradicional que classifica mito enquanto fantasia e invenção e história enquanto estudo ou narrativa de fatos que realmente aconteceram não se aplica aqui. As Íslendigasögur e as Fornaldarsögur, a despeito de suas formas e estéticas muito diversas, lidam com a mesma matéria-prima, o passado e a narrativa, em contextos diferentes e subsequentes. Esses usos diversos são igualmente válidos, e é anacrônico executar juízos de valor ou colocar uma forma de escrita de saga como superior à outra. A menor factualidade das Fornaldarsögur não deprecia o seu valor enquanto fonte histórica. De igual forma, ao tratarmos da dualidade temporal, é mister salientar que todas essas interpretações dos contextos históricos – sejam as interpretações arqueológicas sobre os séculos IX-XI e seu estudo focado no material, sejam as construções escritas nos séculos XIII-XIV, sejam os estudos históricos feitos sobre as mesmas e sua abordagem quase que literária – trata-se de interpretações e construções, efetuadas por historiadores – dos séculos em questão, dos séculos XIX até nós. Tratamos de visões sobre um passado do qual cada época aproximou-se empregando o cabedal de conhecimento disponível para si.

12 DRISCOLL, Matthew. Late Prose Fiction (lygisögur). In: McTURK, Rory (ed.). A companion to Old- Norse Icelandic Literature and Culture. Oxford: Blackwell Publishing, 2007. Pp.190ss 26

1.2 A historiografia pertinente

A dinâmica entre Escandinávia e o Leste foi tratada diferentemente nos países nas quais foi estudada. Na Escandinávia, na Europa Ocidental e na América a ênfase maior da Escandinavística sempre foi o oeste, em particular os movimentos vikings nas Ilhas Britânicas. A presença escandinava a leste foi considerada um fato dado, mas uma especificidade mais ligada aos varegues, os vikings suecos, e as próprias dificuldades de comunicação e troca de informações com o bloco soviético colaboraram em muito para que o tema permanecesse em posição periférica.

Na Rússia, posterior URSS e países a ela incorporados, a situação foi bastante diversa. A historiografia russo-escandinava e o início da própria historiografia russa estão entrelaçados, e o debate ligado a esta questão diz respeito diretamente ao próprio surgimento da Rússia – seja qual acepção se empregue para o termo, assumindo significados maiores sob os regimes czarista, soviético e da Era Putin-Medvedev, mas sempre retornando ao moto de que o normanismo13 é uma ideologia “danosa” ao estado russo/soviético, dependendo da temporalidade em questão, ou reafirmando e legitimando a independência dos Países Bálticos por enfocar supostos vínculos milenares com o Ocidente e o Norte.

Destarte, é pertinente efetuarmos um panorama sobre as diversas abordagens que a temática já sofreu. Fica a ressalva de que não se trata de nosso objetivo primário a confecção de um estudo específico sobre a historiografia russo-soviética, que merece por si só considerável espaço à parte.

Faremos a seguir um apanhado historiográfico sumário da Rússia, seguido de uma discussão mais detalhada da chamada “Controvérsia Normanista”. Daremos ênfase especial aos primeiros historiadores de origem germânica, pela própria inexistência no Brasil de qualquer informação acerca dos mesmos e pelo papel que tiveram no desenvolvimento de estudos russo-escandinavos. Atravessaremos o período soviético, encerrando tal discussão com uma análise da situação da temática no Brasil, Ocidente (em particular Escandinávia, EUA e Reino Unido) e Países da antiga Cortina de Ferro.

Na antiga URSS a arqueologia foi rebatizada como “História da Cultura Material”, e foi ensinada por muito tempo como parte das ciências históricas. Esta circunstância é similar nas antigas repúblicas soviéticas e em parte da antiga Cortina de

13 Que definiremos à exaustão muito em breve. 27

Ferro. destarte, muito da discussão historiográfica entralaça-se com a discussão da própria teoria arqueológica que, diga-se de passagem, enfrenta problemáticas muito similares na relação passado-presente.

1.3 A Rússia czarista

Os primeiros estudos históricos na Rússia deram-se no século XVIII e devem-se principalmente aos trabalhos de Tatíschev – relido e cada vez mais resgatado na Rússia nos tempos contemporâneos, Bayer, Müller e Schlözer. Conquanto entre os acadêmicos no ocidente e na Escandinávia a atuação escandinava na Rus de Kiev e Novgorod tenha sido ponto bastante consensual, havendo maior divergência em nuances e detalhes sobre os movimentos escandinavos no leste, na Rússia e URSS a situação foi diversa por implicar na própria formação do “estado”, bem como em ferir as sensibilidades e nacionalismos de diversas eras.

A temática escandinava esteve presente já na primeira geração de historiadores russos. Em parte a origem e formação alemã de elevada porcentagem desses estudiosos explica embasamento e propensões aos estudos germânicos. Entretanto, desde os princípios da historiografia russa, estudos de tal natureza encontraram um revezamento entre acirrada resistência e aceitação, em particular com o surgimento da chamada “Controvérsia Normanista”, deflagrada já em 1749, que defendia um papel significativo escandinavo no surgimento e organização da Rusde Kiev, e que ainda na atualidade perdura como ponte de debate entre acadêmicos de situação e oposição na Rússia pós- soviética.

A despeito do grande debate acadêmico que a controvérsia gerou, os historiadores da Rússia dos séculos XVIII-XIX acabaram por adotar em grande parte a posição normanista como história oficial, ainda que fossem acusados de um suposto anti-patriotismo. De fato, após a morte de Pedro, o Grande, e com o final da linha direta masculina dos Románov – entre 1761 a 1917, portanto, o Império Russo foi governado por oriundos principalmente da dinastia germânica dos Holstein-Gottorp.

No século XIX os alemães compunham 57% dos oficiais no Ministério de assuntos exteriores, 46% do ministério de defesa e 62% do Ministério de Correio e Comunicações. A presença germânica na ciência e nas artes era também dominante. 28

Dessa forma, como Zakharii14 argumenta, a elite do Império Russo, alienada das classes subalternas, careceria de um elo nacionalista eslávico que a impedisse de favorecer a ideia normanista.

Nos primeiros historiadores a lidar com a questão escandinava na Rússia tal campo de estudo foi geralmente secundário em relação aos seus interesses principais, normalmente ligados às antiguidades clássica e oriental.

Não obstante as fortes posições anti-normanistas desenvolvidas na Rússia imperial entre autores nacionalistas e na posterior União Soviética, os primeiros historiadores na Rússia acabaram por se deparar com a temática escandinava ao lidar com as próprias fontes primárias que tratavam dos primórdios da história russa. Em trabalhos que não consistiam em suas maiores aplicações de esforços, as circunstâncias mais básicas do trabalho historiográfico – o diálogo com as fontes primárias – apontavam para a presença escandinava no início da Rus.

Veremos a seguir um breve panorama dessa primeira geração de historiadores, iniciando-se com Tatíschev, e a seguir enfatizando os “alemães” Bayer, Müller e Schlötzer, passando posteriormente para o estudo da controvérsia normanista propriamente dita, que irá permear toda a discussão de uma historiografia russo- escandinava desde então, e que fornece um panorama bastante adequado e sintético das relações entre Escandinávia e Rússia enquanto tema historiográfico.

O fechamento de tal discussão de dará com o estudo das modificações ocorridas na historiografia russa com a Revolução de 1917 e as transformações sofridas pela mesma no decorrer da história soviética, a abertura e o os tempos contemporâneos.

14 ZAKHARII, Roman. The Historiography of Normanist and Anti-Normanist theories on the origin of Rus: modern historiography and major sources on Varangian controversy and other Scandinavian concepts of the origins of Rus. Master dissertation. Centre for Viking and Medieval Studies, The University of Oslo, 2002. P.22 29

1.3.1 Tatíschev

Vassílii Nikítitch Tatíschev (1686-1750) foi inicialmente um militar, diplomata e engenheiro russo no tempo de Pedro, o Grande. destacou-se como tenente nas batalhas de Narva e Poltava, e, tendo passado os anos entre 1713 e 1717 no estrangeiro, coletara considerável bibliografia de cunho geográfico e histórico. Por tais razões, foi escolhido por Pedro, o Grande, para levar a cabo um levantamento geográfico de toda a Rússia15, tarefa que, tendo sido completada em 1739, durou 20 anos.

Em 1724 Tatíschev esteve em missão diplomática na Suécia. A despeito de seus objetivos oficiais serem assuntos ligados à metalurgia, mineração, moeda e cunhagem, tal contexto propiciou a Tatíschev a oportunidade de obter contatos com acadêmicos suecos também no campo da História, contato que teve influência em seus primeiros estudos históricos e que pode ser notado já na primeira obra histórica na Rússia, “História Russa desde os tempos antigos”, publicada postumamente em 176816.

Dessa forma, Tatíschev não foi apenas o primeiro historiador russo, mas também o iniciador dos russo-escandinavos.

1.3.2 O alemães17 a) Gottlieb Siegfried Bayer (1694-1738)18

É chamado por Belaiew19 de o fundador de fato da “pesquisa islandesa” na Rússia – posição que, como acabamos de afirmar, parece mais adequada a Tatíschev. Tendo estudado e pesquisado diversas fontes primárias, incluindo escandinavas, gregas e orientais, Bayer escreveu a obra “De Varagis”, publicada em latim em 1735 e em russo em 1768, e que seria obra fundamental na controvérsia normanista. Bayer deu ênfase especial ao estudo das sagas escandinavas então disponíveis.

15 BELAIEW, N.T. Eymundar Saga and Icelandic Research in Russia. In: Saga Book II (1934), p.93. 16 BELAIEW, 94 17 Destaque seja dado – o uso do termo “alemão” ou “alemães” está sendo efetuado em período prévio à unificação da Alemanha. 18 A maior parte das referências sobre Bayer é passível de ser encontrada em bibliografias referentes à sua carreira enquanto sinólogo, dentre as quais se destaca: LUNDBÆK, Knud. T.S. Bayer (1694-1738): Pioneer Sinologist. Scandinavian Institute of Asian Studies, Monograph Series No.54. Curzon Press: London & Malmö, 1986. 19 BELAIEW, 94. 30

Bayer nasceu em Königsberg, na época parte da Prússia, onde passou os primeiros 32 anos de sua vida. Classicista por formação, seu tópico inicial inicial de estudo foi a história das Igrejas na Ásia antes da abertura das rotas marítimas além da Índia. Dessa forma, estudava o etíope, o siríaco e a expansão do Cristianismo rumo ao sul.

Aos 19 anos demonstrou interesse em estudar o chinês, tendo a possibilidade de fazê-lo mais seriamente três anos depois, em 1716, na biblioteca de Berlim, onde teve contato com o pouco material ao qual tinha acesso. Coletou grande quantidade de material, mas seu conhecimento do chinês não chegou a ser completo e profundo o suficiente para ser considerado um sinologista20.

Em 1726, mudando-se para São Petersburgo, ocupou o cargo de curador das antiguidades greco-romanas e, posteriormente, passou a lecionar antiguidades orientais, o que lhe permitiu ocupar-se mais a fundo com seus interesses na China. Sua biblioteca, vendida por sua viúva e posteriormente passando por mais de um proprietário, acabaria por formar a “Bayer Collection” da biblioteca da Universidade de Glasgow, contendo por volta de 200 livros e manuscritos chineses e orientais, e incluindo sua correspondência com jesuítas em Beijing (dada entre 1731 até a sua morte) e livros em folhas de palmeiras21. Sua obra “Museum Sinicum, in quo Sinicae Linguae et Literatura ratio explicatur”, publicada em 1730, consiste na primeira obra detalhada sobre a língua chinesa a ser publicada na Europa22.

É peculiar que sua obra De Variagis (1735), de tamanha influência nos estudos russo-escandinavos, e de tamanha relevância na criação da Controvérsia Normanista, tenha sido fruto de parte consideravelmente marginal de seu trabalho.

20 LUNDBAEK, pp.182s. 21 The Bayer collection. In: 22 BOXER, C. R. Bulletin of the School of Oriental and African Studies, University of London. Vol. 51, No. 2 (1988), p. 367. 31 b) Gerhard Friedrich Müller (1705-1783)23

Gerhard Friedrich Müller nasceu em Herford, na Westphalia em 18 de outubro de 1705. Recebeu sua educação em Leipzig e em 1725 foi convidado para cofundar a Academia de Ciências em São Petersburgo. Participou da segunda expedição Kamtchatka, que relatou sobre a vida e a natureza a leste das cadeias dos Urais. Entre 1733 e 1743, dezenove cientistas e artistas viajaram através da Sibéria para estudar povos e culturas e coletar dados para a confecção de mapas. Müller descreveu e categorizou vestimentas, religiões e rituais dos grupos étnicos siberianos, também sendo considerado “pai” da etnografia e do folclore.

Ao retornar da Sibéria, tornou-se historiógrafo do Império Russo. Foi um dos primeiros historiadores a trazer um registro geral da história Russa baseado no exame extenso das fontes escritas. Graças à ênfase que deu do papel escandinavo e alemão na história russa – um germe da teoria normanista – ganhou a inimizade de Lomonóssov, que antes lhe apoiara.

Em 6 de setembro de 1749, Müller proferiu uma fala na Academia Imperial de Ciências de São Petersburgo, intitulada “Origines gentis et nominis Russorum”, baseado no “De Varagis”, de Bäyer, e a partir do qual propôs a teoria de que o antigo reino da Rússia Kievana fora fundado por escandinavos24.

Müller não conseguiu sequer terminar sua fala devido ao tumulto que ela gerou, e a questão teve de ser levada ao conde Alieksiei Grigórievitch Razumóvskii e à própria imperatriz Isabel25, que criou um comitê a fim de investigar se os escritos de Müller eram danosos aos interesses do Império.

A situação, particularmente o testemunho de Lomonóssov, prejudicou consideravelmente sua carreira. Após muitos ataques por seus colegas Müller foi proibido de dar continuidade à suas pesquisas na Rússia antiga e Kievana, suas publicações foram confiscadas e destruídas.

23 Informações bibliográficas, quando não-referenciadas, obtidas na Allgemeine deutche Biographie. STIEDA, Ludwig Von. Müller, Gerhard Friedrich. In: Allgemeine Deutsche Biographie, herausgegeben von der Historischen Kommission bei der Bayerischen Akademie der Wissenschaften, Band 22 (1885), S. 547–553. 24 PRITSAK, Omeljan. The Origin of Rus. Volume I: Old Scandinavian Sources other than the Sagas. Cambridge, Massachusetts; Harvard Ukrainian Research Institute: Harvard University Press, 1981. P.03s. 25 Ielizavieta Pietróvna, Imperatriz entre 1741 a 1762. 32

A despeito da turbulência dos anos entre sua fala na Academia Imperial e o confisco de suas obras, a situação de Müller gradualmente se ameniza. Em 1754 recebe a nomeação de secretário conferencista da Academia de Ciências e no ano seguinte consegue o trabalho de editor da publicação científica “Escritos mensais”, na qual publica diversos artigos acadêmicos, ainda escrevendo sobre as origens da Rússia.

Chegou a ser eleito membro estrangeiro da Academia Sueca Real de Ciências em 1761, juntamente com Lomonóssov, que permanece crítico de seu trabalho e de suas publicações na “Escritos mensais”. Este falece em 1765, ano no qual Müller se muda para Moscou, tendo sido indicado diretor-chefe do Orfanato da cidade. Em 1766 Müller recebe a posição de mantenedor dos arquivos do Colégio de Relações exteriores de Moscou.

Em 1772 Müller é atingido por uma paralisia, mas continua a escrever e produzir. Doou ao governo uma coleção dos seus tratados e morreu em Moscou, com 77 anos, em 1783. c) August Ludwig von Schlözer (1735-1809)26

Especialista em diversas áreas, suas contribuições para a humanística no geral foram grandes e diversas. Paralelamente a seu rival Gatterer, em Göttingen, Schlötzer definiu o escopo temporal da “Mittelalter” entre a queda do Império Romano em 476 e a descoberta da América, em 1492. O primeiro conceito de “etnologia”, definido por Adam Kóllar em 1783, deve muito ao seu intercâmbio de ideias com Schlözer27, sendo que o próprio conceito de “ethnographie” é atribuído ao próprio Schlözer ou a Gatterer28.

Schlözer foi conduzido por boa parte de sua vida em um interesse pelo Oriente e pelas terras bíblicas. Movido por necessidades materiais, financeiras e de patrocínio, viajou para Suécia e Rússia, onde efetuou contribuições fundamentais para suas historiografias. Contribuições, que, não obstante sua relevância, não consistiam no

26 A maior parte das informações bibliográficas sobre Schlözer foram obtidas na “Allgemeine Deutsche Biographie” e na “Russland und die ´Göttingische seele – 300 jahre St. Petersburg´: Ausstellung in der Paulinerkirche Göttingen unter der Schirmherrschaft von Bundespräsident Johannes Rau und dem Präsidenten der Russischen Föderation Wladimir Putin”, ambos disponíveis em meios impressos e digitais. 27 STAGL, Justin. Rationalism and Irrationalism in Early German Ethnology: The Controversy between Schlözer and Herder, 1772∕1773. In: Anthropos, 93. Viena: Anthropos Institut, 1998. P.524. 28 STAGL, Justin. P. 522. 33 objetivo primário de sua vida acadêmica, de forma muito semelhante ao que ocorrera com a produção acadêmica de Bayer.

Nascido em 1735 em Jaggstadt, Nördlichen Württenberg, Schözer foi historiador, jornalista, pedagogo e estatístico. Descendente de pastores protestantes, iniciou seus estudos em Teologia em Wittenberg. Após completar sua dissertação em Teologia (“De vita Dei”) em 1754 em Witteberg, mudou-se para Göttingen, aonde estudou com o então eminente orientalista e especialista em Antigo Testamento Johann David Michaelis.

Influenciado pela ânsia por aventuras e viagens, por questões teológicas e mesmo missionárias, estudou árabe, geografia e estatística do Oriente Médio. Não possuía o dinheiro necessário para cumprir seus planos e, usando de bolsas e de um pequeno capital deixado por seu pai para completar seus estudos, simultaneamente buscava formas de se manter, principalmente como professor particular na família dos Röderer.

Por meio de Michaelis conseguiu um trabalho como tutor privado de Murray, pastor da comunidade alemã em Estocolmo. Dessa forma, em 1755 mudou-se para a Suécia, onde residiu por três anos e meio. Estudou Gótico e Antigo Nórdico em Uppsala entre 1756 e 1757, e devido à sua vivacidade de espírito e diversas habilidades – incluindo a de aprender o sueco, conseguiu manter-se no país, ajuntar certa quantia de dinheiro e fazer conexões importantes, ainda mantendo em mente suas ideias de viajar para o Oriente. Ali publicou algumas obras e conseguiu alguns trabalhos como jornalista.

Retorna às terras germânicas entre 1758 a 1761, como tutor particular em Lübeck, na residência dos Kusel (1758∕59), e em Göttingen. Esta fase marca um grande desapontamento em sua vida: Michaelis organizara uma expedição dinamarquesa exploratória à Arábia, que partiu sem Schlötzer – não recomendado por Michaelis para a mesma, alegadamente por Schlötzer possuir caráter “obstinado e egocêntrico”29.

Schlötzer, ainda com seus objetivos de visita ao Oriente em vista, e por meio novamente do próprio Michaelis e de Büshing, consegue um lugar enquanto assistente literário e tutor privado da família do já referido Gerhard Friedrich Müller, em São

29 STAGL, 525. 34

Petersburgo. Ali aprende rapidamente a língua russa, bem como tem contato com as fontes primárias para a história da Rússia.

Dotado de temperamento forte, Schlözer logo entra em choque com Müller, deixando sua casa em 1762. Entra em conflito também com o próprio Büshing e com o polímata Lomonóssov, cujos versos critica e cuja inimizade adquire – bastante danosa face à extrema importância de Lomonóssov nos meios culturais, científicos e artísticos da Rússia.

Consegue o suporte, entretanto, de Taubert que, por sua vez, mantinha um escritório de prestígio e o acesso ao conde Razumovski. Schlözer consegue, assim, a posição assalariada de instrutor adjunto da instituição educacional que o conde fundara para seus filhos e para os de outras famílias nobres.

A despeito das rivalidades acadêmicas que Schlözer conseguira, Kozlov, pai de um de seus alunos, intermedia contato com a imperatriz Catarina II, “a grande”(1762- 1796)30. Catarina interessa-se por ele, e em 1765 lhe garante a posição de membro da Academia, e de professor em tempo integral de História Russa por cinco anos, com um salário de 850 rublos.

Registra-se que Schlözer manteria até o fim de sua vida grande apreço e crédito à déspota esclarecida da Rússia, patrocinadora das artes e do saber. O patrocínio pretendido por Schlözer para sua viagem ao Oriente, entretanto, não era de interesse de Catarina, ficando o projeto parado.

O ambiente da Rússia de então foi de grande estímulo para a produção acadêmica de Schlözer, à qual ele dedicou-se com particular afinco. Aplicando modelos com os quais trabalhara na Suécia, em particular nos trabalhos de Süssmilch e Wargentin, Schlözer trabalhou em prol do projeto de Taubert, da criação de um bureau estatístico para a Rússia, encorajando a criação de listas e diretórios de nascimentos, mortes e casamentos. Suas propostas, entretanto, mantiveram-se, na maior parte, no papel.

Sua atividade acadêmica no gabinete da imperatriz teve mais sucesso, ainda que relativamente tarde. Schlözer efetuou trabalho crítico e de campo na História antiga da Rússia, em particular com a crítica dos textos e manuscritos aprendida em Göttingen à Póviest vriémennikh liet, escrita em eslavônico antigo, do qual publicou uma edição

30 Iekatierina II “Vielikaia”, viveu de 1729 a 1796, governando a Rússia de 1762 até sua morte. 35 crítica entre 1802 e 1809 – a primeira aplicação do método crítico germânico a um texto do medievo31. Tal trabalho, entretanto, não satisfazia aos maiores planos de Schlözer, que abandona a Rússia em definitivo em 1767, após períodos também de conturbações e rumores junto aos seus rivais na Academia.

Nesse meio tempo Schlözer recebera do governo Hannoveriano em Göttingen os títulos de Professor extraordinarius em 1764, em grande parte por intercessão de Michaelis, e Doctor honoris causa em 1766 devido ao seu trabalho acadêmico na Rússia, posições que lhe auxiliaram na obtenção de suas funções na Rússia após seus conflitos com Lomonóssov.

Em 1769 consegue o cargo de professor em tempo integral na faculdade de filosofia em Göttingen, com o salário de 540 thalers, casando-se no mesmo ano com Caroline Röderer, da qual fora preceptor no tempo em que ali estudara, adquirindo uma residência na Paulinerstraße, e ali se estabilizando para o resto de sua vida.

Em Göttingen, Schlözer deu continuidade aos seus trabalhos sobre a Rússia, ainda que relativamente distante de lá. A correspondência com estudantes e bibliotecas da Rússia garantiram-lhe bibliografia, e nos seus primeiros anos ali, Schlözer publicaria diversas obras, bem como revisaria trabalhos antigos, por vezes em meio à polêmicas com Büsching e Müller: "Probe russischer Annalen"32 (1768), “Annales Russici" (Göttingen 1769), Tableau de l'histoire de Russie", (Göttingen, 1769), “Geschichte von Rußland bis zur Erbauung Moskaus im J. 1147”(Göttingen 1769)33, "Oskold und Dir: erste Probe russischer Annalen" (Göttingen 1773)34.

Em 1771 Schlözer publicaria “Uma história geral dos povos do Norte”, número 31 da coleção “História geral do mundo”. Em 1785 publicaria, ainda parte dessa mesma coleção, sob o número 50, “Geschichte Lithauens”35.

Sua “Nordische Geschichte”36 encontraria boa acolhida, a despeito de críticos severos como Thun, jovem professor em Halle, que apontou severos erros de Schlözer em relação aos eslavos ocidentais, e a despeito de ser principalmente uma compilação e tradução de autores escandinavos.

31 STAGL, 526. 32 “Amostra dos anais russos”. 33 “História da Rússia até a edificação de Moscou no ano de 1147”. 34 “Askold e Dir: primeira amostra dos anais russos”. 35 “História dos lituanos”. 36 “História nórdica”. 36

Nesta obra, Schlözer definiria por “norte” o espaço desde a Islândia até a península de Kamtchatka, e do Mar de Barents aos Balkans, organizando as regiões por um Völkersystem, “sistema de povos”, ao invés de unidades políticas, e classificando tais povos por meio de suas linguagens37. Esse apoio e emprego de Leibniz na organização das populações por meio dos grupos linguísticos acabou por se constituir em um dos maiores méritos da obra.

O período posterior da vida de Schlözer foi devotado à suas atividades de ensino e pesquisas relativos a outros tópicos, como História do Mundo, Estatística e Política, e os estudos relativos à Escandinávia e Rússia não foram levados adiante.

Por suas contribuições ao estudo da História Russa, Schlözer recebeu em 1804 o título de nobre da parte do Imperador Alexandre I (1801-1825).

1.4 A controvérsia Normanista

As ideias de Bayer, Müller e Schlötzer sobre o papel Escandinavo na origem da Rússia, como vimos, desembocaram em uma disputa acadêmica acirrada de amplo escopo que atingiria toda a historiografia pertinente, e viria a ser conhecida como “Controvérsia Normanista”. Seus pontos de conflito focam-se no papel que os escandinavos tiveram na formação da Rusde Kiev nos períodos viking e medieval, principalmente entre os séculos XIII-XI38.

O termo “Rússia”, por si só, é genérico e necessita de clarificação. A controvérsia normanista trata sobre os inícios da Rússia, mas a Rusde Kiev enquanto origem do Império e Federação russos é objeto de controvérsia; a mesma origem é alegada pelos historiadores ucranianos.

Ao falarmos de Rusde Kiev, tratamos do reino dentre os séculos X-XIII existente em região aproximada à Ucrânia contemporânea, formado majoritariamente por populações de etnia e linguagem eslávico-orientais, e sobre as quais a origem dos primeiros governantes é o objeto de disputa na Controvérsia Normanista. Outras acepções que o termo Rússia adotou incluem o Grão-Ducado de Moscou, por vezes chamado de termos similares a “Moscóvia”, que perdurou dos séculos XIV-XVII – visto por alguns como continuador da Rus de Kiev, e por outros como entidade política

37 STAGL, 526. 38 Informações bibliográficas e narrativas baseadas em PRITSAK e BELAIEW, listados nas referências. 37 bastante diversa –, os Impérios Russos subsequentes, e a Federação Russa pós-URSS.

Dessa forma, historiografias historicistas – tais quais as marxistas – que lidam com uma linha contínua e inexorável de eventos cujo desfecho enquadra-se em uma teoria geral explicativa, ou um desenrolar já previsto, traçam a linha indelével entre a Rus de Kiev e as Rússias posteriores, posição que já foi e ainda é objeto de muito debate, em particular com historiadores de origem ucraniana – cujo país consiste no herdeiro territorial do reino em questão.

Os próprios limites e abrangência da Rus na Alta Idade Média encontram controvérsia, na inclusão ou não da região das cidades do norte – Novgorod, Ryazan, Rostov, Smolensk, Polotsk e Suzdal – em seu escopo político-geográfico, situação que, tendo perpassado a obra de autores como o escandinavista russo Aron Gurevitch, Dmitri Likhatchóv e Iuri Stiepanovitch, voltou à pauta contemporânea, entremeado de implicações políticas, nas ações do presidente russo Vladímir Putin.

Segundo a Póviest vriémennikh liet, os eslavos de leste e seus vizinhos fino- úgricos foram vencidos por alguns varegues, aos quais pagavam tributo, mas libertaram- se desse jugo. Entretanto, não conseguiam manter a ordem e chamaram outros varegues para governá-los. Os irmãos Riurik, Sineus e Truvor responderam ao chamado, dando origem ao primeiro reino unificado de Rus.

Segundo esse ponto de vista baseado principalmente nas fontes primárias escritas, chamado normalmente de “normanista”, o termo Rus é de origem nórdica, mais precisamente referindo-se aos svear que, adentrando o Norte russo, foram organizadores da vida política, primeiramente na região do lago Ilmen, e posteriormente mais ao sul ao longo do Dnieper (vide Mapas 03 e 04).

Tais afirmações são de teor polêmico em ambientes acadêmicos influenciados ou gerenciados por governos autoritários. A primeira disputa sobre esse tema ocorreu na Rússia Imperial, nas épocas das guerras do Norte, nas quais a Rússia combateu, dentre outras nações, a Suécia.

Como já demonstrado, quando Müller proferiu sua conferência sobre as fontes escandinavas aos membros da Academia Imperial Russa em 1749, causou veemente debate ao propor a ideia normanista. Os estudiosos russos presentes não podiam admitir a ideia de que a origem do estado russo fosse estrangeira, ainda mais de um grupo 38

étnico com o qual travara guerras recentemente39.

O debate perdura por toda a historiografia russa, ucraniana, soviética e mesmo polonesa. Nos tempos da URSS desenvolveu-se a teoria que chamaremos de “anti- normanista”, principalmente por meio de argumentos que empregavam a Arqueologia e a Linguística, segundo a qual a origem do estado russo seria autóctone e devida exclusivamente aos eslavos de leste.

Ao menos em seus primórdios, a ideia normanista revestiu-se de conotações políticas que, por sua vez, implicavam uma incapacidade dos povos eslávicos em desenvolverem um processo independente de formação de “estado”40. A historiografia soviética posterior consideraria a teoria normanista politicamente prejudicial, argumentando que ela negava a habilidade das “nações eslavas” de formar “estados independentes” por meio de seus próprios esforços41.

Segundo os anti-normanistas, os Rus seriam eslavos, autóctones na região Sul de Kiev desde os tempos pré-históricos, antes do aparecimento de vikings e varegues na Europa. Esse elemento nativo, eslávico, teria tido o papel decisivo na construção de um Estado42, em particular da Rus de Kiev.

Veremos a seguir as posições de ambas correntes.

1.4.1 A posição normanista

A historiografia contemporânea possui uma posição majoritariamente normanista, ainda que em graus variados. Tal posição é encontrada também entre pesquisadores russos contemporâneos, de origem russa e de outros países da antiga Cortina de Ferro, como Dmitrii Matchinskii (Rússia), Gleb Lebedev (Rússia), Elena Melnikova, Tatjana Jackson (Rússia)43 e Wladyslaw Duczko (Polônia-Suécia). Alguns casos apresentam posições intermediárias, incluindo autores tradicionais e referenciais no tópico no ocidente, como o russo-americano Vernadsky, sobre o qual falaremos mais

39A guerra russo-sueca de 1741-1743, após a qual o Império Russo incorporou a Finlândia, e a Suécia iniciou seu declínio enquanto potência. 40 ZAKHARII, p.18. 41 ЯКОВЛЕВ, Н. О преподавании отечественной истории. Большевик № 22, 1947, Москва. 42 As acepções de “estado” defendidas por tal posição frequentemente enquadram-se em conceitos marxistas, considerando uma linha contínua e inexorável da história a levar ao Comunismo e considerando, dessa forma, o período em questão como uma etapa em tal desenvolvimento. 43 No caso de autores com produção biográfica ampla no ocidente, como Lebedev, Melnikova e Jackson, empregamos aa formas dos nomes próprios pelos quais são citados internacionalmente. 39 adiante.

Quanto à historiografia brasileira, a discussão é insuficiente sobre o assunto até o presente para poder se falar em tendências e posições. Eurípides Simões de Paula, autor da única obra específica e mais abrangente sobre o assunto, bem como única fonte de consulta para diversos estudantes e pesquisadores, defende a posição normanista sem ressalvas. Além de seu trabalho mais amplo, que discutiremos melhor mais adiante, há artigos esparsos, endossando a posição normanista quase que em sua totalidade.

Levando-se em consideração que as novas gerações de pesquisadores interessados no tema têm se levantado em meio a estudos escandinavos, é razoável pressupor uma tendência à consolidação da posição normanista também na academia brasileira.

Listamos a seguir alguns dos principais expositores de posição normanista desde seu princípio, ou ao menos que se enquadrem em seu espectro de alguma maneira, tendo-se em mente que muitos estudiosos incorporam matizes dos dois lados. Os alemães que colaboraram para a criação de uma historiografia russa estão listados na Rússia. A Ucrânia está considerada a parte por, a despeito de estar sob jugo do Império Russo e da URSS pela maior parte de sua história, ter produzido tradição historiográfica própria, e está listada em conjunto com a Polônia pelas temáticas e abordagens por vezes similares de sua historiografia. A lista não é exaustiva; a quantidade de estudiosos no ocidente, por exemplo, que adota uma posição que pode ser considerada dentro do espectro normanista é por demais extensa.

No Império Russo:

August Ludwig von Schlözer (1735-1809; Württemberg; Império Russo), Friedrich/Fiodor Aleksandrovitch Braun (1862-1920 – Império Russo/URSS; 1920- 1942 – Leipzig, Alemanha), Nikolai Mikhailovitch Karamzim (1766-1826, Império Russo), Serguei Mikhailovitch Solovióv (1820-1879, Império russo), Mikhail Pietrovitch Pogodin (1800-1875, Império russo), Aleksiei Aleksandrovitch Chakhmatov (1864-1920, Império Russo)

Na Escandinávia e Alemanha:

Ernst Kunik (Prússia, 1814-1899), Vilhelm Ludwig Peter Thomsen (1842-1927, Dinamarca), Ture Algot Johnsson Arne (1879-1965, Suécia), Herbert Jankuhn (1905- 40

1990, Alemanha), Adolf Frans Emil Stender-Petersen (1893-1963 Império Russo; Dinamarca; Estônia; Dinamarca), Holger Arbman 1904-1968, (Suécia)

Russos emigrados:

Vladimir A. Mochin (1877-1921 – Império Russo; 1921-1987 - Iugoslávia), George Vernadsky (1887, Império Russo; 1927-1973, EUA).

Na Polônia e Ucrânia:

Henryk Paszkiewicz (1897-1979), Stiepan Tomachevskii (1845-1930, Ucrânia), Myron Mikhailovitch Korduba (1876-1947, Ucrânia), Mykola Chubaty (1889-1975, Ucrânia).

A argumentação inicial defendida por tais eruditos baseava-se principalmente na análise das fontes primárias e em argumentos de análise linguística. Apontava para uma elite escandinava fundadora da Rus Kievana, governante dos eslavos orientais e outras etnias nativas (fino-úgricos e baltos).

A posição normanista passou por modificações e possui nuances e níveis de aceitação diversos. As conotações políticas iniciais foram substituídas, sendo que alguns estudiosos, chamados por vezes “neo-normanistas”44, como Jankuhn, Stender-Petersen, Arbman e Taube apresentariam ideias que envolvem uma mudança gradual no governo estrangeiro sobre os eslavos, bem como graus mais variados de assimilação.

Alguns normanistas, participantes da historiografia ocidental ucraniana das décadas de 1920-30 como os referidos Stepan Tomashevsky, M. Korduba, M. Chubaty, e B. Krupnytsky apresentaram aceitações parciais de alguns pontos anti-normanistas.

George Vernadsky (1887-1973), autor de grande influência no meio de língua anglo-saxã – e em nosso próprio trabalho, apesar de afirmar de forma enfática adotar uma posição normanista45 ao ponto de qualificar como “quixotescos” os esforços anti- normanistas46, não aceita ideias altamente difundidas entre os mesmos, como a etimologia do nome Rus ligada a Roðslagen e Ruotsi47 (que discutiremos logo adiante).

Vernadsky em ocasião alguma diminui a parcela de responsabilidade eslávica-

44 ZAKHARII, 18. 45 VERNADSKY. Ancient Russia. A , Volume I. New Haven and London: Yale University Press, 1964. 6ºed [1943]. Pp.259; 261ss; 275ss. 46 VERNADSKY, 276. 47 VERNADSKY, pp. 278s. 41 oriental na formação da Rus; antes, adota também posição que, a despeito de categorizável dentre os normanistas, dá grande papel às interações mútuas populacionais – a linha, ao nosso ver, mais coerente e contemporânea de pesquisa, a despeito de já falecido há mais de 40 anos.

Da mesma forma, Thomas Noonan (1938-2001) busca uma posição mais intermediária na questão, ainda que partindo inequivocamente de pressupostos que serão reconhecidos por anti-normanistas como “normanistas” e, pelos próprios normanistas, como moderados.

Omeljan Pritsak resume muito convenientemente os tópicos-chave dos dois lados da questão em sua obra peculiar “The origin of Rus”, apanhado imenso de erudição nos campos conectados à questão, e apresenta outra proposição completamente original de sua lavra, inserindo a participação da Rādhānīya judaica.

Adentremos de forma mais aprofundada nas minúcias da posição.

I. A Etimologia O primeiro “estado” russo, a Rus de Kiev (ou kievana) foi fundada por estrangeiros escandinavos. Rus era o nome dado aos vikings de Leste, oriundos da Suécia e conhecidos como “varegues”. A etimologia do nome “Rus” derivaria do fino- úgrico “Ruotsi”, termo cujas derivações são empregadas até os tempos contemporâneos entre populações de fala fino-úgrica (como estonianos e finlandeses) ao referirem-se aos suecos.

Esse termo, por sua vez, viria do germânico “Róðr”, que significa “remador”, em particular derivado da região costeira de Uppland, denominada como Roðslagen, cujos habitantes chamariam-se, portanto, Róðskarlar. Ekblom e Stender-Petersen apresentam uma variante dessa etimologia, sugerindo que rus derivaria de róð(er)s- byggjar, algo como “os habitantes de estreitos entre as ilhas”48.

Devemos salientar que a grande maioria das estelas rúnicas com citações a escandinavos viajando e morrendo em Garðaríki encontram-se no distrito sueco atual de Uppland. Retornaremos a tal tópico em detalhe no capítulo 2 desta tese.

48 STENDER-PETERSEN, Adolf. Zur Rus'-Frage. In: Varangica. Aarhus, 1953. p.82. 42

II. As fontes a) Póviest vriémennikh liet

Também chamada de “Crônica primeira russa” ou “Crônica nestoriana”, sua autoria foi atribuída no século XIX ao monge Nestor, que a teria escrito nas proximidades de um monastério de Kiev. Mais recentemente, têm-se questionado tal autoria, argumentando-se pela hipótese de uma compilação de diversas crônicas49.

Há duas redações conhecidas da crônica: a Laurentina, copiada pelo monge Lavrentii em 1377, e a Ipatiana que, datada da metade do século XV, recebeu seu nome do monastério de Ipatiev, em Kostroma, onde foi descoberta, apesar de provavelmente ter sido copiada em Pskov50. As diferenças entre ambas são poucas, principalmente nas entradas após o ano 1110. Em ambas as redações, o texto que transcreveremos a seguir referente aos Rus é o mesmo.

Nela, os grupos entre os quais os Rus'i estão incluídos são todos germânicos de além-mar, chamados de varegues: shviedy (шведы – svear∕suecos), normanny (норманны - noruegueses), angly (англы - anglos), gotlandy (готландцы – gotlandeses):

“(862) (...) Estes varegues (варяги) foram chamados Rus (русью), assim como outros chamavam-se shviedy, outros normanny e angly, e ainda outros gotlandy (...)51. b) Fontes bizantinas

Os tratados assinados entre os Rus e os bizantinos em 911 e 944 trazem os nomes dos signatários de rus. Estes nomes são nitidamente transcrições de nomes de origem escandinava: Karly, Inegeld (Ingeld), Farlof, Veremud.

O livro De administrando imperio “(Acerca da administração do Império”),

49 SHERBOWITZ-WETZOR, Olgerd.P. Introduction. In: The Russian Primary Chronicle: Laurentian Text. Translated and edited by Samuel Hazzard Cross and Olgerd P. Sherbowitz-Wetzor. Cambridge: The Mediaeval Academy of America, 1953. P. 03. 50 SHERBOWITZ-WETZOR, 04. 51 “(862)... Те варяги назывались русью, как другие называются шведы, а иные норманны и англы, а еще иные готландцы (…) ”. In: По́весть временны́ х лет. “Crônica dos anos antigos”, “Crônica primária Russa” ou “Crônica nestoriana”. Edição de Likhatchov, segundo o texto Laurentino; obtida em: . Último acesso em 28∕10∕2014. Tradução para o inglês: CROSS, Samuel Hazzard (trad.) & SHERBOWITZ-WETZOR, Olgerd. P (ed.). The Russian Primary Chronicle: Laurentian Text. Translated and edited by Samuel Hazzard Cross and Olgerd P. Sherbowitz- Wetzor. Cambridge: The Mediaeval Academy of America, 1953. 43 escrito em cerca de 948 a 952, supostamente pelo imperador bizantino Constantino Porfirogênito (905 - 959), lista os nomes das cataratas e corredeiras do Dnieper, frequentemente em duas formas, que o autor diferencia como sklavisti e 'rosisti. As formas chamadas de 'rosisti são evidentemente transcrições de designações escandinavas: Essoupi (antigo nórdico vesuppi – "não durma!"), Oulvorsi (antigo nórdico holmfors, "corredeira da ilha", nome eslavônico dado Ostrovouniprach), Gelandri (antigo nórdico gjallandi, "gritando”, “soando alto"), Aeifor (Antigo nórdico eiforr, "sempre feroz"; eslavônico “neasiti”), Varouforos (antigo nórdico varufors, "corredeira do penhasco" ou barufors, "corredeira da onda"; eslavônico Voulniprach), Leanti (antigo nórdico leandi, "fervendo", ou hlæjandi, "rindo"; eslavônico Veroutzi), Stroukoun (antigo nórdico strukum, "corrente rápida"; eslavônico Naprezi).

Segue uma versão nossa da passagem:

9. Sobre a vinda dos Rus em monoxylas da Rússia para Constantinopla As monoxylas que descem da Russia para Constantinopla são de Nemogard, onde Sviatoslav, filho de Igor, arconte da Rússia, tem seu trono, e outras da cidade de Miliniska, de Teliutza, de Chernigov e de Vishegrad. Todos estes descem o rio Dniepr, e ajuntam-se na cidade de Kiev, também chamada Sambatas. Seus tributários eslavos, os chamados Krivichi, os Lendzaneni e o resto das regiões eslavas cortam as monoxylas em suas montanhas no tempo do inverno, e quando eles as têm preparadas, com a chegada da primavera e o derretimento da neve, trazem-nas para os lagos vizinhos. E já que estes lagos desaguam no rio Dniepr, eles entram então no mesmo rio, e descem para Kiev, carregam os barcos adiante para serem terminados, e vendem-nos para os Rus. Os Rus compram os cascos apenas, equipando-os com remos, escálamo e outros equipamentos de pesca de suas monoxylas velhas, que eles desmontam, e assim deixam-nas preparadas. E no mês de junho eles descem o rio Dniepr e vêm a Vitichev, que é uma cidade tributária dos Rus e ali se reúnem por dois ou três dias. E quando todas as monoxylas estão reunidas eles partem, e descem o já mencionado rio Dniepr. E primeiramente eles vêm para a primeira corredeira, chamada Essoupi, que significa em Rus e slavônico “não durma!”. A barragem por si só é tão estreita quanto a largura de um estádio. No meio dela estão enraizadas altas rochas, que erguem-se como ilhas. Contra estas, então, vem a água, ergue-se e cai do outro lado, com um poderoso e amedrontador estrondo. Dessa forma os Rus não se arriscam a passar entre elas, mas dirigem-se à margem, desembarcando os homens em terra seca e deixando o resto dos bens a bordo das monoxylas. Eles então despem-se e carregam-na a pé para evitar bater em alguma rocha. Isto eles fazem, alguns à proa, alguns no meio do barco, 44 enquanto outros novamente, à popa, navegam-na com paus; e com este procedimento cuidadoso eles passam a primeira barragem, contornando pela margem do rio. Quando eles passam esta barreira, reembarcam os outros da terra seca, navegam adiante, e descem até a segunda barreira, chamada em Rus “oulvorsi”, e em eslavônico “ostrovouniprach”, que significa “a ilha da barragem”. Esta é como a primeira, desastrada e que não pode se atravessar diretamente. Novamente eles desembarcam os homens e passam as monoxylas, como na primeira ocasião. De forma similar eles passam a terceira barreira, chamada “Gelandri”, que significa em eslavônico “barulho da barragem”, e então a quarta barragem, a grande, chamada em Rus “aeifor”, e em eslavônico “neasit”, porque os pelicanos descansam nas pedras da barragem. Nesta barragem todos colocam a proa à frente em terra, e aqueles delegados para manter a vigia saem com eles. Assim vão estes homens, e mantêm vigília atenta aos Pechenegues. Os restantes, tomando os bens que eles têm a bordo das monoxyla, conduzem os escravos em suas cadeias por terra, seis milhas, até atravessarem a barragem. Então, em parte arrastando suas monoxyla, em parte carregando-as em seus ombros, eles conduzem- nas ao lado oposto da barragem. E então, colocando-as no rio e carregando-as com a bagagem, embarcam eles mesmos, e novamente navegam nelas. Quando eles chegam à quinta barragem, chamada em Rus “Varouforos”, e em eslavônico “voulniprach”, porque ela forma um grande lago, eles novamente conduzem suas monoxylas pelas margens do rio, como na primeira e segunda barragens, e chegam à sexta barragem, chamada em Rus “Leanti”, e em eslavônico “Veroutzi”, que é “ebulição da água”, e esta também eles cruzam de forma similar. E então eles navegam adiante para a sétima barragem, chamada em Rus “stroukoun”, e em eslavônico “naprezi”, que significa “pequena barragem”. Essa eles passam no chamado vau de Vrar, por onde os khersonitas deixam a Rússia e os Petchenegues vão a Kherson. Esse vau é tão largo quanto o Hipódromo e, medido rio acima da base até o ponto em que as rochas atingem a superfície, um tiro de arco de comprimento. É nesse ponto, consequentemente, que os Petchenegues descem e atacam os Rus. Depois de atravessar este lugar, eles alcançam a ilha chamada de São Gregório, na qual realizam seus sacrifícios porque um gigantesco carvalho fica ali; e eles sacrificam galos vivos. Eles também penduram ao redor flechas, e outros pão e carne, ou algo de qualquer coisa de que cada um possa ter, como é seu costume. Eles também lançam sortes sobre os galos, se é para mata-los, ou comê-los também, ou deixá-los vivos. Dessa ilha em diante os Rus não temem aos Petchenegues até que eles atingem o rio Selinas. Dali então eles começam (a fazê- lo∕temê-los), e navegam por quatro dias, até que chegam ao lago que forma a foz do rio, na qual está a ilha de São Atherios. Tendo chegado nesta ilha, eles ali descansam por dois ou três dias. E eles reequipam suas monoxyla com tantos apetrechos quanto seja necessário, velas, mastros e lemes que eles trazem consigo. Já que esee lago é a foz do rio, como foi dito, e deságua no mar, e a Ilha de São Aitherios fica ao mar, eles vêm então ao rio Dniester, e tendo chegado seguros ali, descansam novamente. Mas quando o clima é propício, eles lançam-se 45

ao mar e chegam ao rio chamado Aspros, e depois de descansar ali de maneira similar, eles novamente partem e vêm para Selinas, como é chamado um ramal do rio Danúbio. E até eles passarem o rio Selinas, os Petchenegues mantém paz com eles. E se acontece que o mar lança uma monoxylas na praia, eles todos colocam-na na terra, de forma a apresentar uma oposição unida aos Petchenegues. Depois do Selinas eles não temem a ninguém mas, entrando no território da Bulgária, eles vêm à foz do Danúbio. Do Danúbio eles procedem para Konopas, de Konopas para Constantia, de Constantia para o rio de Varna, e de Varna eles vêm ao rio Ditzina, todos eles sendo território búlgaro. Do Ditzina eles chegam ao distrito de Mesembria, e ali finalmente sua viagem, cheia de tanto trabalho e terror, tamanhas dificuldades e perigos, está em seu fim. A severa forma de vida desses mesmos Rus no inverno é como se segue: Quando começa o mês de Novembro, seus chefes junto com todos os Rus de uma só vez deixam Kiev e vão para a poliudia, que significa “arredores” (γύρα), isto é, para as regiões dos verviani, drugovitchi, krivitchi, severiani e o resto dos eslavos que são tributários dos Rus. Ali eles são mantidos ao longo do inverno, mas então novamente, começando no mês de abril, quando o gelo do rio Dniepr derrete, eles descem de volta a Kiev. Eles então pegam suas monoxylas, como foi dito anteriormente, preparam-nas e descem para a Romania. Os Ouzi podem atacar os Petchenegues.52

c) Fontes islâmicas

Alguns normanistas argumentam que as fontes islâmicas também fazem distinções entre Rūs e aş-Şaqāliba (eslavos). Ahmad Ibn Rustah, explorador e viajante persa do século X, viajou até Novgorod com os Rus, e sobre eles escreve o seguinte:

“Os Rūsīya vivem em uma ilha em um lago (…) Eles têm um governante chamado khāqān Rūs. Os Rūs pilham os Saqāliba, navegando em seus barcos até virem sobre eles. Tomam-nos cativos e vendem-nos em Khazarān e Bulkār (...) Eles não têm campos cultivados e vivem de pilhar a terra dos Saqāliba. Quando um filho nasce, o pai lança uma espada perante ele e diz: ‘Eu não lhe deixo nenhuma herança. Tudo que você possui é o que você pode obter com esta espada’ (....) Eles usam espadas ‘Sulaymān’ (versão nossa)”53

52 Texto grego no apêndice I. 53 ““The Rūs [Rūsīya] live in an island in a lake (…) They have a ruler called khāqān Rūs. The Rūs raid the Saqāliba, sailing in their ships until they come upon them. They take them captive and sell them in Khazarān and Bulkār (Bulghār). They have no cultivated fields and they live by pillaging the land of the Saqāliba. When a son is born, the father throws a naked before him and says: ‘I leave you no inheritance. All you possess is what you can gain with this sword’ (…) They use ‘Sulaymān’ (...) ”. Ibn Rustah on the Rūs. 903-913. In: IBN FADLAN. STONE & LUNDE (trads.). Ibn Fadlān and the Land of Darkness: Arab Travellers in the Far North. Penguin Books, 2012. 46

Esta passagem é usada com frequência por escandinavistas, particularmente na tentativa de reconstrução dos costumes antigos do período viking, incluindo funerais, práticas de guerra e mesmo preferência por armas. As espadas referidas podem ser sabres obtidos no distrito de Salmān, em Khurasān54, norte da Pérsia. Soldados do distrito usavam espécies de sabres curvos no século IX chamados shamshir, mas o termo pode ser aplicado também a espadas de lâmina reta55-56.

d) Fontes latinas

Nos Annales Bertiniani encontra-se um extrato que narra sobre dois enviados dos Rhos, vindos do imperador bizantino Theofilos (813-842) ao imperador Luis, o Pio, (778-840) em Ingelheim, cujo líder tinha o título de chacanus – latinização de “khagan”. Consta que “(...) o imperador diligentemente investigou a causa de sua vinda, e descobriu que estas pessoas eram suecos”:

Misit etiam cum eis quosdam, qui se, id est gentem suam, Rhos vocari dicebant, quos rex illorum chacanus vocabulo ad se amicitiae, sicut asserebat, causa direxerat, petens per memoratam epistolam, quatenus benignitate imperatoris redundi facultatem atque auxilium per imperium suum toto habere possent, quoniam itinera, per quae ad illum Constantinopolim venerant, inter barbaras et nimiae feritatis gentes inmanissimas habuerant, quibus eos, ne forte periculum inciderent, redire noluit. Quorum adventus causam imperator diligentius investigans, comperit, eos gentis esse Sueonum57. A Historia Ottonis, do bispo Liutprand (c.922-972), de Cremona, também traz uma referência aos Rus. Enviado do imperador germânico Otto I (912-973) ao imperador bizantino Nikephoros II Phokas (c.912-969) entre 968-969, Liutprand cita o seguinte:

54 Ibn Rustah on the Rūs. 903-913. In: IBN FADLAN. STONE & LUNDE (trads.). Ibn Fadlān and the Land of Darkness: Arab Travellers in the Far North. Penguin Books, 2012. Nota 30. 55 LINDSAY, James E. Daily life in the medieval Islamic world. Greenwood Publishing Group, 2005. p. 64 56 Consideramos possível, entretanto, que a referência se deva ao tipo de aço damasceno, comum no mundo islâmico do medievo, altamente valorizado pelos escandinavos, mas cuja tecnologia os europeus não dominavam. Lingotes do material eram comercializados pelos persas; é possível que esta passagem nos dê uma pista importante sobre a fonte de material para as altamente valorizadas espadas uhfberth, primeira opção do guerreiro viking, e cujas técnicas de fabricação e fontes de matéria-prima ainda consistem em um problema não resolvido de todo na escandinavística. 57“O imperador diligentemente investigou a causa de sua vinda, e descobriu que estas pessoas eram suecos.” Annales Bertiniani. Hannoverae. Impensis bibliopolii Hahniani, 1883. p.21. Obtido em: http://www.archive.org/stream/annalesbertinian00wait#page/n3/mode/2up em 22 de fevereiro de 2012. Avaliável também na Monumenta Germaniae Historiae. Scriptores rerum Germanicarum in usum scholarum separatim editi. 47

“Habet quippe ab aquilone Hunagrios, Pizenacos, Chazaros, Rusios, quos alio nos nomine Nordmannos apellamus (...)”. (Liudprandi antapodosis, Lib.I. 10. Grifo nosso).58 XV. Gens quaedam est sub aquilonis parte constitua, quam a qualitate corporis Greci vocant Ρουσιος, Rúsios, nos vero a positione nominamus Nordmannos. Lingua quippe Teotonum nord aquilo, man autem dicitur homo, unde et Nordmannos aquilonares homines dicere possumus. (Lib. V.15. Grifo nosso)59.

Resumindo a argumentação, a hipótese normanista tem sua origem, portanto, nas fontes escritas russas, em particular a Póviest vriémennikh liet, e respalda-se em uma série de fontes escritas de povos vizinhos. Segundo ela, nos princípios da Rusos eslavos foram dominados pelos varegues, mas conseguiram expulsá-los. Entretanto, não foram capazes de se autogovernar, necessitando pedir a ajuda de outros varegues para fazê-lo. Desses que vieram derivou a dinastia riurikida.

Os primeiros governantes da Rus possuíam, de fato, nomes escandinavos, como Igor (Yngvarr), Oleg (Helgi), Olga (Helga), (Hrorekr), sendo que apenas a partir de Sviatoslav os nomes eslavos passam a ser predominantes. As fontes e tratados bizantinos trazem a maior parte dos Rus listados portando nomes escandinavos, e os nomes dos rios percorridos pelos varegues até Bizâncio tanto em suas formas escandinavas quanto eslavas. A própria forma comum de tratamento no russo “gospodin” – “cavalheiro” - derivaria do antigo nórdico “husbond”, em contrapartida às formas “pan” em outras línguas eslávicas como o ucraniano e o polonês.

1.4.2 A posição anti-normanista

Quanto aos anti-normanistas, sua escola deriva diretamente de correntes nacionalistas russas, tanto dos tempos czaristas quanto dos soviéticos. Se nos primeiros a Suécia era tradicional inimigo nas não tão ultrapassadas guerras do Norte, quanto aos segundos, a ideia de que o estado russo tivesse sua origem em populações estrangeiras não podia ser aceita por um governo marcado pelo autoritarismo, que apregoava possuir

58“... os russos, a quem nós chamamos de nordmanos”. Liudprandi antapodosis. In: Monumenta Germaniae Historiae. Scriptores rerum Germanicarum in usum scholarum separatim editi. Liber I. 10. 59Liudprandi antapodosis. In: Monumenta Germaniae Historiae. Scriptores rerum Germanicarum in usum scholarum separatim editi. Liber V. 15. 48 sistema política e econômico superior aos outros países.

Pode-se dizer que seu início deu-se com a reação de Mikhail Lomonóssov (1711-1765; Império Russo) à fala supracitada de Müller. Dentre outros defensores subsequentes da posição, podemos citar de início Stepan Aleksandrovitch Gedeonov (1815-1878, Império Russo), Nikolai Ivanovitch Kostomarov (1818-1885 - Império Russo; origem mista russo-ucraniana), Dmitri Ivanovitch Ilovaiskii (1832-1920; Império Russo) e V. Vasilevskii, que apresentaram teorias em contrário à origem normanista – as chamadas teorias “Balto-Eslávica”, “Lituana” e “Gótica”60.

A despeito de certo influxo normanista na historiografia soviética inicial, diversos acadêmicos passaram a apresentar forte criticismo à mesma, encontrando alguns seguidores em outros países. A posição normanista encontrou pouco apoio particularmente na historiografia ucraniana61.

Dentre seus defensores, ou simpatizantes, podemos citar Mykhailo Serhiiovitch Hruchtchevski (1866-1934- Ucrânia-URSS), Boris Dmitrievitch Griekov (URSS; 1882- 1953), Serafim Vladimirovitch Iushkov (1888-1952, URSS), Borís Aleksandrovitch Rybakov (1908-2001; URSS), L. Tcherepnin, Mikhail N. Tikhomirov, Vladimir T. Pashuto, I. Chaskolskii, Nicholas Valentine Riasanovsky (1923-2011; USA), Alexander V. Riasanovsky, o polonês Henryk Łowmiański (1898-1984) e historiadores ucranianos contemporâneos como Petro Petrovitch Tolochko (1938-), M.Braychevski, M. Kotlyar e V. Baran.

A posição anti-normanista é em grande parte uma resposta aos pontos defendidos pelos normanistas. Apresenta-se como uma contra-argumentação comprometida com a origem autóctone da Rússia ou da Ucrânia, do que propriamente num escopo teórico bem-definido. Seguem suas ideias principais.

I. A questão da etimologia

Dmitri Ivanovitch Ilovaiskii (1832-1920) articulou a ideia de que o termo Rhos estaria conectado aos Roxolani da Antiguidade, tribos Sármatas que teriam habitado as estepes da atual Ucrânia e migrado para a direção do Danúbio no século I A.C. Sua ideia, que se tornou tradicional na argumentação anti-normanista e foi chamada de

60 ZAKHARII, 20. 61 ZAKHARII, 21. 49

“Teoria iraniana”, perdeu peso e aceitação no início do século XX.

Em 1837 o historiador, escritor e naturalista ucraniano Mikhailo Oleksandrovitch Maksymovitch (1804-1873) desenvolveu a “Teoria local”, segundo a qual o nome Rus estaria ligado à área do rio Ros´, tributário da margem direita do Dnieper, e nascente na Vinnytsia Oblast. Outros rios citados também por Potebnya, seriam o Rosava (tributário do mencionado Ros´), Rusna e Rostavitsia . Proeminente no processo de construção de consciência nacional ucraniano levado a cabo do século XIX, Maksymovitch argumentava que a região da Rus não teria ficado despovoada após a Invasão Mongol. Antes, teria sido habitada continuamente pelos remanescentes da Rus, com os quais os ucranianos teriam uma linha de continuidade direta.

Esta ideia será levada mais adiante a partir do período soviético. Os anti- normanistas argumentariam que o nome Rus estaria inicialmente ligado com a área de Kiev, ao Sul, habitada desde séculos anteriores pelos eslavos, e não com as regiões de Ladoga e Novgorod ao norte, de maior influência escandinava e habitada anteriormente por baltos e fino-úgricos.

Ilováiskii62 citaria: o Neman da Lituânia como nomeado anteriormente de Ros, contendo um tributário chamado Rus e drenado na bacia Rusna, o Ros ou Rus na província de Novgorod, Rusi (a foz do Narev), Ros (uma foz do Dniepr), Rusa (a foz do Semi), e um Ros ou Ras no Volga. Nesta linha argumentativa estaria o uso dos termos Ruslo, “rio”, em antigo eslavônico, e Rusalka - um “espírito da água” nas mitologias eslávicas.

Outra evidência etimológica apresentada pelos anti-normanistas seria o uso do termo Hrōs na Crônica siríaca do Pseudo-Zacharias reitor, de 555 A.D., ligado a povos de origem no cáucaso vivendo no período em questão ao sul de Kiev – três séculos anteriormente aos movimentos escandinavos no norte da Rússia, portanto.

II. Os argumentos de ausência

Outro argumento levantado pelos anti-normanistas, em contraposição à ideia da derivação de Ruotsi de Roðslagen, seria a inexistência de qualquer tribo chamada de Rus na Escandinávia, bem como a ausência de menção a ela nas fontes nórdicas.

62 ILOVÁISKII: 1890, VII. 50

Afirmam também que há ausência de material arqueológico escandinavo encontrado nas rotas de comércio, cidades e entrepostos próximos às mesmas.

III. Os enviados

Quanto aos enviados citados nos Annales Bertiniani, a postura anti-normanista afirma que os nomes nórdicos não provariam o componente étnico escandinavo dos Rus. Antes, esses escandinavos seriam apenas espécies de representantes comerciais de príncipes eslávicos Rus. Seriam diplomatas e comerciantes profissionais.

IV. Fontes islâmicas

Alguns defensores anti-normanistas citam o autor Ibn Khurdadbeh que, escrevendo entre 840 e 880, chamava aos rus uma tribo de eslavos (aş-Şaqāliba).

V. Superioridade econômica

Rybakov, (1908-2001) professor de História na Universidade de Moscou desde 1939, personificará em particular as ideias anti-normanistas. Em Ремесло Древней Руси63, de 1948, procura demonstrar que a Rus de Kiev seria superior economicamente à Europa Ocidental. Em Геродотова Скифия: Историко-географический анализ, de 197964, defenderá que os eslavos descenderiam dos citas da Antiguidade.

Baseando-se em sua argumentação, os anti-normanistas negam a validade do relato da Póviest vriémennikh liet, alegando que não haveria razão para que os eslavos, culturamente avançados, convidassem os varegues para governá-los.

63“Ofícios na antiga Rus”. 64“Citia de Heródoto: análise histórico-geográfica”. 51

1.4.3 Uma avaliação crítica das duas posições

I. O problema das etimologias

As críticas dos anti-normanistas resumem alguns pontos críticos das idéias normanistas. Um dos ataques mais fundamentados seria a etimologia de Rus e a sua suposta ligação com Róðr.

Omeljan Pritsak, ainda que não totalmente contrário à posição normanista, vai além da crítica anti-normanista ao atacar a própria derivação de Rus de ruotsi. Segundo ele, ruotsi vincularia-se a um suposto *rūzzi, e não Rus65.

Ele aponta, entretanto, que seria igualmente errôneo o uso do pseudo-Zacharias e o suposto Hrōs pelos anti-normanistas. O termo para ele seria, na verdade, uma corruptela na adaptação siríaca do grego ἥρως (herói). Na passagem em questão, o copista teria citado um trecho referente às Amazonas citadas de uma versão do médio persa da saga de Alexandre. A corruptela de ἥρως teria sido usada para os pares gigantes das Amazonas, e não se trataria de uma forma étnica, de um povo ou grupo racial66.

Podemos apontar também que há certa circularidade no uso de hidrônimos contendo raízes similares a Rus ou ros´ e os termos ruslo e rusalka, por encontrarem-se em campos semânticos adjacentes ligados à água, rios, foz de rio, divindades aquáticas.

Os anti-normanistas estão corretos quando afirmam a ausência de alguma tribo germânica ou escandinava com tal designação. Isto não invalida, entretanto, a argumentação acerca da proveniência de Roðslagen como possível etimologia para Rus. A crítica anti-normanista, nesse sentido, fundamenta-se num critério bastante restrito e exclusivamente étnico – uma acepção contemporânea de identidade. A inexistência de uma tribo, de um grupo étnico com laços consanguíneos, “raciais”, apresenta-se como contra-argumento insuficiente, à medida que a etimologia proposta de Roðslagen enfatiza a proveniência da região costeira de Uppland e tem o vínculo com o ato de remar, navegar, lançar-se ao mar. É uma proposição de etimologia de caráter, ao menos em sua origem, ocupacional, que posteriormente definirá o grupo em questão de forma étnica, apenas na confrontação com outro grupo cultural distinto.

Há de se notar a existência de outras etimologias que apresentam situação

65 PRITSAK, 06. 66 PRITSAK, 06. 52 similar em contexto muito próximo, nos termos vikingr e bjarmar. Conquanto tenham no período contemporâneo e pós-romântico assumido um sentido marcadamente étnico ao leitor, as etimologias mais recentes propostas derivam vikingr de vik- baía, enseada, ligando-o não a um sentido étnico, restrito à Noruega e à região de Oslo, mas sim ao sentido ocupacional do termo, daquele que frequenta o mar67.

Bjarmar, por sua vez, a despeito das tentativas de estudiosos que tentam ligar a designação aos Komi da região russa de Perm, tem obtido um consenso acadêmico; é termo aplicado primordialmente aos carélios, mas tem sua origem no termo fino-úgrico -per(e)m´. Isto implica o caráter ocupacional, o modo de vida das populações que desenvolviam atividade econômica extratora nas proximidades do Mar Branco, principalmente a coleta de peles, caça e comércio68.

Enfim, um peso muito grande em etimologias demonstra ser prejudicial e impraticável, abrindo os flancos de ambas as posições a uma série de ataques.

II. Interpretação arqueológica e etnicidade

Os anti-normanistas questionam a quantidade de material escandinavo encontrado nas principais cidades e povoamentos da Rus, como Novgorod, Kiev e Staraia Ladoga. É adequado afirmar que encontramo-nos aqui em uma forma um tanto subjetiva e relativa de argumentação, ao quantizar por “muito” e “pouco”. Em particular no campo da Arqueologia, a ausência de vestígios de alguma espécie não é “prova” ou ponto passível de definição teórico, pela própria natureza da evidência arqueológica, que é fragmentada, indiciária e incompleta.

Acerca do tópico, David M. Wilson escreve o seguinte:

“In , the only town to produce really convincing Viking antiquities in any number is York, and this number has been rather exaggerated. Structures of the Anglo-Danish period in York are rarely found and even when they are, they are not specifically Viking in character. The other Viking towns in England [known from historical sources – O.P.] have produced hardly any Viking antiquities. We know that the Vikings were there, just as we know that there Vikings in Novgorod and Kiev”69.

67 HAYWOOD, John. The Penguin Historical Atlas of the Vikings. London: Penguin Books, 1995. Pp. 08ss; MUCENIECKS, 2010: 03-06. 68 CHESTNUT, Michael. Afterword. In: ROSS, Alan. The Terfinnas and Beormas of Othere. University College London: Viking Society for Northern Research, 1981. p.77. 69 WILSON, David M. East and West: A Comparison of Viking Settlement. In: Varangian Problems. 53

A citação, transcrita também por Pritsak, pode levantar argumentos contrários ou questionamentos sobre o que é um número “exagerado” ou “convincente” de artefatos. Pode parecer também uma forma de se esquivar do problema de forma retórica. Ela traz à pauta, entretanto, alguns aspectos úteis e pertinentes à discussão.

A mais premente é a questão da dificuldade de questões relativas à etnicidade70 na interpretação dos vestígios arqueológicos. Conquanto tenha sido tema de destaque na Arqueologia Histórico-Cultural, o predomínio da Arqueologia Processualista abandonou quase que por completo as discussões referentes à etnicidade, pelas dificuldades e impossibilidades apresentadas pela natureza da evidência. Ou seja, a questão per si já é complexa; quando associado ao problema polêmico da etnicidade dos Rus, evidentemente assume contornos ainda mais difusos e pouco seguros.

A questão da Etnicidade é um tema que será retomado pela arqueologia pós- processualista, em bases bastante diversas, com fundamentações teóricas diversas, amplas e complexas, e uma compreensão diferente do problema, da existência de subjetividades, fluidez, mutabilidade e critérios de definição étnica muitas vezes específicos em cada caso.

Outro aspecto levantado é a questão da Arqueologia Histórica, e da relação, muitas vezes difícil e nem sempre harmônica, entre os diferentes níveis de interpretação que são levantados pela Arqueologia e pela História. Um exemplo de caso dessas questões é a escavação de Sarskoie Gorodichtche , ao sul da atual Rostov, no banco do Sara. A despeito das grandes evidências de habitação escandinava coexistindo com os Meri, nativos fino-úgricos, a partir do século IX, esta interpretação, formulada desde o início das escavações em 1854, foi substituída quando as escavações soviéticas foram reiniciadas, após 1949. A interpretação soviética oficial, veiculada na Больша́ я 71 сове́тская энциклопе́дия , seria a de que o sítio era exclusivamente habitado pelos Meri desde o século VI. Fortificações foram construídas pelos eslavos no século X, mas após isso a cidade declinou até o século XIII. Sarskoie Gorodichtche passou a ser considerada pela academia soviética como a “capital” dos antigos Meri.

Scando-Slavica Supplementum 1. Copenhagen: Munksgaard, 1970. P.113. 70 Consideramos o termo na acepção de um conjunto de caraterísticas que definem uma determinada população em relação à outra. Tais atributos possuem fronteiras muito fluídas, por vezes pragmáticas, que alteram-se no decorrer do tempo, sendo mais geralmente ligados à língua, vínculos sanguíneos e religiosos. 71 “Grande enciclopédia soviética”. 54

Por fim, levanta-se a questão da natureza da ocupação escandinava não apenas na Rússia, mas da própria forma e natureza dos movimentos escandinavos pela Europa e outras regiões. Um elemento-chave no sucesso escandinavo em um espectro geográfico tão grande deve-se em grande parte à sua mobilidade e adaptabilidade característica a diversos contextos. Associada a esta adaptabilidade está uma fluidez considerável na natureza dos processos sociais envolvidos que, em particular no caso da Rus, parece ter sido bastante marcante, como demonstra a mudança em poucas gerações dos nomes escandinavos da casa de Rurik para nomes eslávicos. Como bem ressalta Logan,

The principal historical question is not whether the Rus were Scandinavians or Slavs, but, rather, how quickly these Scandinavian Rus became absorved into Slavic life and culture.... In 839 the rus were swedes; in 1043 the Rus were slavs. Sometime between 839 and 1043 two changes took place: one was the absorption of the Swedish Rus into the Slavic people among they settled, and the second was the extension of the term ´Rus´ to apply to these Slavic peoples by whom the Swedes were absorved72.

Sob este aspecto de mobilidade, transitoriedade e adaptabilidade, é necessário frisar que a evidência arqueológica dá suporte à compreensão de uma ampla movimentação escandinava pela Eurásia, evidenciada não apenas no grande número de tesouros de dirhams encontrados pela Rússia, Países Bálticos e Escandinávia, mas também por artefatos como pentes, broches, objetos com vestígios de inscrições rúnicas e fíbulas encontrados em Staraia Ladoga, Timerevo (extrato mais antigo de Yaroslav), Gorodichtche , Staraya Russa, Sarskoie Gorodichtche , Gniozdovo e nos países vizinhos (i.e. Daugmale e Grobiņa na Letônia, Iru e Proosa na Estônia).

O cemitério de Plakun, no outro banco do Volkhov, em Ladoga, contendo enterramentos escandinavos, não é equiparado à Grobiņa, por exemplo, porém a evidência existente é, sob nosso ponto de vista, bastante convincente, apresentando indícios convincentes da presença escandinava73.

72 LOGAN, F. D. The Vikings in History, Routledge, 1991[1983]. p.203. 73 NOONAN, 1998a: 339. 55

1.4.4 Outras possibilidades interpretativas

Omeljan Pritsak, ainda que inclinado para o lado anti-normanista, considera nenhum dos extremos da querela completamente convincente, presentando uma outra hipótese. Segundo ele, o nome Rus, é uma espécie de “trademark” de mercadores judeus medievais especializados em comercializar escravos da Rússia Européia, principalmente com muçulmanos, mas também com europeus ocidentais.

O grupo principal nesse tipo de comércio era a corporação judaica chamada Rādhānīya, que, possuindo contatos na maior parte das colônias judaicas, incluindo o acesso às regiões controladas pelos khazares, detinha o monopólio do fornecimento de escravos eslavos, os chamados aş-Şaqāliba ‘pelos muçulmanos.

Note-se que na língua inglesa, bem como em diversos idiomas da Europa Ocidental, o termo “escravo” deriva de variantes do “eslav-”, tal era o predomínio de tal componente étnico no comércio escravista na Eurásia. O termo árabe, “aş-Şaqāliba” também deriva de “sklav*” ou termos similares pelos quais os próprios eslavos se nominavam. Na Europa Ocidental os judeus da Rādhānīya baseariam-se em algumas regiões da , como Marseiles e Rodez. Para Pritsak, tais mercadores, conhecidos como “Ruthenicis” teriam legado o nome Rus, oriundo de sua própria companhia. Com o passar do tempo, o comércio por eles dominado passaria a intermediários varegues que, dessa forma, adotariam o nome Rus como uma espécie de marca registrada ou designação comercial74.

Tal idéia não pode ser sustentada. De fato, o chamar tais judeus de “mercadores russos” ou “ruthenicis” devia-se, antes de seu nome comercial, à sua proveniência e atividade nas regiões já conhecidas por tal nome. O argumento de Pritsak, por mais engenhoso que parece, acaba tornando-se uma inversão.

Quanto à Thomas Noonan, apesar de dar um peso grande à evidência arqueológica, e em particular da Numismática, toma uma posição mais moderada, mais de acordo com a Arqueologia Histórica contemporânea, em procurar inserir aspectos das duas visões, levando em consideração tanto a presença escandinava quanto a contribuição local eslávica, fino-úgrica e báltica, ainda que aparentemente esta posição incline-se um pouco para o espectro normanista da questão. De fato, esta posição é a

74 PRITSAK, 24s. 56 que tem alcançado a maior proximidade com um consenso, ao menos entre os estudiosos nos países anglo-saxões, escandinavos e bálticos, sobre os inícios da Rússia.

Nos últimos anos, a temática viking tem levantado também um número grande de interessados na Rússia e em outras nações de origem eslávica, ao menos a nível popular, e o número de estudiosos de origem eslava a considerar a questão sem as tradicionais restrições e preconceitos soviéticos têm aumentado, bem como obras que ampliam e trazem em pauta novas questões. Podemos citar, por exemplo, Melnikova75, Tatijana Jackson76, Fyodor Androshchuk77, Wladyslaw Duczko78.

1.4.5 O problema metodológico

A questão do nacionalismo e da influência do ambiente contemporâneo político sobre o pesquisador é o principal ponto gerador de discórdia entre os diversos envolvidos nos debates normanistas. A temática por si só encontra-se, de certa forma, esgotada e repetitiva no que toca à argumentação e contra-argumentação dos dois lados.

Há ainda outra dimensão que necessita ser acrescentada ao debate: o problema metodológico. De fato, boa parte da discordância envolvida na controvérsia normanista é uma discordância de método e da forma de análise das fontes de informações.

O lado normanista privilegia a evidência histórica, as fontes primárias de caráter mais tradicional, ou seja, escritas. Os anti-normanistas procuram dirigir o peso interpretativo para a Arqueologia, como se a mesma pudesse propiciar um argumento científico isento, factual e plenamente objetivo. Ambos os lados empregam evidência linguística, etimológica e toponímica nas tentativas de reforçar sua argumentação, por vezes gerando becos sem saída.

Dessa forma, parte do que ocorre na controvérsia normanista espelha um problema de ordem mais geral, metodológica, que é objeto primário de estudo do ramo

75 MELNIKOVA, E.A. The Eastern World of the Vikings: Eight Essays about Scandinavia and Eastern Europe in the . Gothenburg Old Norse Studies 1. Göteborg universitet: Litteraturvetenskapliga institutionen, 1996. 76 ДЖАКСОН, Т. Н. Austr í Görðum: древнерусские топонимы в древнескандинавских источниках. — М.: Языки русской культуры, 2001. (JACKSON, Tatiana Nikolaievna. Austr I Görðum: Topônimos russo-antigos nas fontes antigas escandinavas. Moscou: Língua e Cultura Russos, 2001). 77 ANDROSHCHUK, Fjodor. The Vikings in the East. In: BRINK, Stefan & PRICE, Neil (eds). The Viking World. London & New York: Routledge, 2008. pp.517-542. 78 DUCZKO, Wladyslaw. Viking Rus: Studies on the Presence os Scandinavians in Eastern Europe. The Northern World, v.12. Leiden, Boston & Tokyo: Brill, 2004. 57 específico da Arqueologia Histórica e que perpassa diversos outros recortes. Um exemplo muito marcante de similaridade metodológica ocorre na Arqueologia Siro- Palestina, antiga Arqueologia Bíblica, que nas últimas décadas assistiu ao engrandecimento de toda a evidência arqueológica e a propiciada pela Cultura Material79 em conjunto a um desprezo pelas fontes escritas, das quais o texto bíblico é a principal, definindo a escola chamada de Minimalista. Temos aqui as motivações de ordem ideológica e a influência da “New Archaeology” (ou arqueologia “Processualista”), com sua ênfase nas Ciências Sociais e seu cientificismo, bem como abandono de temáticas de etnicidade, religião e o uso das fontes escritas.

É interessante notar a similaridade de resultados provocada por contextos sociais diversos e específicos. A Arqueologia soviética não bebeu das mesmas fontes teóricas que influenciaram a Arqueologia ocidental. A “New Archaeology” não teve acesso ao bloco oriental; aliás, o isolamento entre arqueólogos e historiadores soviéticos e ocidentais provocou uma gama variada de incompreensões e gerou atraso em várias frentes nos estudos históricos mais amplos que envolvem a Rússia e o Ocidente.

Entretanto, a matriz marxista teve na arqueologia soviética um papel similar ao que as teorias sociais tiveram na New Archaeology, que foi a tentativa de explicação do registro e da evidência por meio de um escopo teórico crítico e bem-definido. É necessário reconhecer o benefício e avanço que as tentativas de interpretação mais sólidas trouxeram à Arqueologia como um todo, fazendo-a transpor o status de “ciência auxiliar”, fazendo-a abandonar uma abordagem meramente descritiva e ilustrativa e dando a ela um escopo mais amplo e sólido dentre as demais Ciências Humanas.

Entretanto, esse apego às teorias gerais explicativas muitas vezes imobilizou a interpretação arqueológica em quadros rígidos e pré-definidos, abandonando fontes úteis de informação, como a evidência das fontes primárias escritas, dessa forma limitando grandemente a abrangência das temáticas passíveis de estudo arqueológico.

O lado normanista da questão, por sua vez, desenvolveu-se de em grande parte em uma visão histórica de caráter mais tradicional, compartilhada pela Arqueologia Histórico-Cultural. As explicações de migrações e movimentos de povos como fatores provocadores de mudança, tão característicos da explicação da Arqueologia Histórico-

79 Termo usado aqui na acepção arqueológica que considera Cultura Material toda manifestação da ação humana, não limitada à confecção de artefatos – contendo a tecnologia da escrita ou não -, mas revelando-se também, por exemplo, na alteração do ambiente e da paisagem. 58

Cultural, harmonizam-se bem com a explicação normanista em seu espectro mais simplista e extremado. Um grupo estrangeiro externo “mais evoluído” traz tecnologia e estruturas sociais que promovem mudança social no contexto em questão.

É necessário transpor tais linhas de explicação para uma compreensão mais satisfatória da situação, que aplique um tratamento adequado às diversas naturezas de evidências e incorpore escolas de pensamento mais recentes, como a Arqueologia Pós- Processual e a Nova História. Não podemos simplesmente ignorar as fontes escritas, tampouco as evidências arqueológicas. Concordâncias entre ambas nos revelam conhecimento sobre o passado. Porém, discordâncias também.

A abordagem de Thomas Noonan, tentando esquivar-se das insuficiências produzidas pelas fontes escritas, abriu generosos leques de interpretação, mas propiciou uma estrutura explicativa de cunho mais econômico para o movimento escandinavo no Leste. A circulação de dirhams árabes apresentou-se como atrativo e impulso aos escandinavos.

A narrativa deixada pela Póviest vriémennikh liet pode apontar caminhos interpretativos diversos e mais amplos de como o passado recente era visto pelo século X. A reelaboração do passado lida com esse mesmo passado, estudado através dos vestígios arqueológicos e da Numismática. Dessa forma, ainda que as interpretações mais óbvias de ambas abordagens possam parecer exclusivas, elas propiciam um conhecimento mais completo do quadro histórico da região.

1.4.6 O rei-estrangeiro, a Antropologia, a mitologia e o Hieros-gamos: sugestões e possibilidades interpretativas adicionais

Há outra vertente ainda que pode ser explorada e que oferece campo promissor e amplo no estudo da PVL e o Chamado dos Varegues. Trata-se dos estudos que incorporam análise do mito, conhecimento antropológico e literário.

Marshal Sahlins, em “Ilhas da História”, apresenta-nos um estudo de caso antropológico que sugere uma forma interpretativa da situação. Não pretendemos expor uma hipótese absoluta e substitutiva da controvérsia, mas apontar a existência de formas diversas pelas quais a situação ainda pode ser analisada com o emprego de conceitos 59 mais recentes de interpretação historiográfica, como a Antropologia Histórica.

No estudo de caso “O rei-Estrangeiro; ou Dumézil entre os Fiji”, Sahlins apresenta a desconcertante possibilidade comparativa da teoria tripartite de Dumézil com suas próprias investigações sobre as estruturas sociais nas Ilhas Polinésias.

A ponte que Sahlins fará encontra-se no aspecto da Teoria Política. Aponta para a recorrente situação do simbolismo envolvido na adoção de um governante estrangeiro por uma sociedade específica:

“A soberania aparece como vinda do exterior da sociedade. O rei, que é de início um estrangeiro e uma figura um tanto aterrorizante, será depois absorvido e domesticado pela população nativa, em um processo que passa por sua morte simbólica e seu consequente renascimento sob a forma de um deus local”80.

Os paralelos apontados por Dumézil encontram-se mais no campo da História Clássica; a vinda de Enéias de Tróia, a questão dos latinos e sabinos, a expulsão de Rômulo e Remo por Numitor e a posterior conquista do poder por Rômulo, como um ser vindo de fora. Os paralelos trazidos por Sahlins tratam mais de casos da Oceania, em particular envolvendo o Capitão Cook. Poderíamos acrescentar outras situações, como a chegada de Europeus às Américas, em um contexto definitivamente não conexo e sem ligações históricas verificáveis.

Porém, o contexto específico da História Clássica encontra-se mais próximo, em um âmbito europeu, e podemos encontrar outros paralelos. Um é de particular interesse, por ter sido empregado pelos críticos das ideias normanistas. Trata-se da Crônica Anglo-saxã, que vai tratar de formas muito semelhantes à narrativa da Póviest vriémennikh liet a vinda dos anglos para as Ilhas Britânicas. Por sua vez, temos uma interessante similaridade na Saga de Yngvar.81 Sueco que fará uma expedição de renome duradouro à Rússia, morrendo possivelmente nas proximidades do Mar Cáspio, Yngvar enquadra-se de certas formas no estereótipo do rei estrangeiro.

Sahlins e Dumézil trarão a ideia de que, num campo simbólico e imaginário, o elemento estrangeiro simbolizará o masculino, o macho feroz, criador e procriador e, quando mitologizado, geralmente associado ao sol e às esferas celestes. Quanto ao

80 SAHLINS Marshall. O rei-Estrangeiro; ou Dumézil entre os Fiji. In: Ilhas de História. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990 [University of Chicago Press, 1987]. p.106. 81 Tradução inglesa: PALSSON, Hermann & EDWARDS, Paul (trads). Vikings in Russia: Yngvar's Saga and Eymund's Saga. Edinburgh: Polygon, 1990 [1989]. 60 elemento nativo, simbolizará num primeiro momento o feminino, a associação com o poder da terra e do subterrâneo, de crescimento, de ações pacíficas e duradouras. Como os sabinos, apresentam-se associados com a riqueza, com aquilo que “nutre a semente divina e a transforma em substância social”.

Essa forma interpretativa encontra eco também em estudos não apenas da Mitologia Escandinava per se, mas também em trabalhos que vinculam representações mitológicas à própria institucionalização monárquica. O conceito de Hierogamia (de ιερός γάμος, “casamento sagrado”) é aplicado no contexto escandinavo desde estudiosos de décadas anteriores como Regis Boyer, Hilda Ellis-Davidson e Thomas Dubois, quanto das novas gerações, como Christopher Abram e Gro Steinsland82. De forma recorrente, encontram-se semelhanças em narrativas que apresentam a união entre duas divindades representativas da ordem e do caos.

Na narrativa escandinava, o próprio escandinavo está ligado à divindade masculina e ao princípio da ordem. A população estrangeira, o outro – frequentemente os saami ou os finnar - é associada à divindade e ao princípio feminino, ligado ao caos, à falta de estruturação. A união entre as duas entidades resultará em feitos extraordinários. Dessa forma, encontra-se o mito da Hierogamia “strongly connected to the legitimation of the elite, to the peoples wish for fertility as well as philosophies around death and ressurection”83.

Existem indícios também da existência de mitos hierogâmicos entre os fino- úgricos, em particular referente ao casamento do deus Ukko com Rani84, e entre os povos eslávicos85. As discussões relativas à mitologia eslávica, entretanto, enfatizam de

82 Destaque à tese de doutoramento da norueguesa Gro Steinsland, defendida em 1989 e intitulada “Det hellige bryllup og norrøn kongeideologi: en analyse av hierogami-myten i Skírnismál, Ynglingatal, Háleygjatal og Hyndluljód “ (“O casamento sagrado e a ideologia nórdica de realeza: uma análise do mito do hieros gamos no Skírnismál, Ynglingatal, Háleygjatal e Hyndluljóð”). Agradecimentos a Renan Birro, que trouxe à lembrança as seguintes obras que tratam da temática em uma perspectiva mais ampla em completa: ABRAM, Christopher. Myths of the Pagan North. New York: Continuum International Publishing Book, 2011; STEINSLAND, Gro, BEUERMANN, Ian et alli (eds.). Ideology and Power in the Viking and Middle Ages: Scandinavia, Iceland, , Orkney and the Faeroes. Leiden: Brill, 2011. 83 KVILHAUG, Maria. The Maiden with the Mead: A Goddess of Initiation Rituals in Old Norse Mythology? Oslo: VDM Verlag, 2009.p. 23. 84 DUBOIS, Thomas. Nordic Religions in the Viking Age. Philadelphia: at the University Press, 1999. P. 56. 85 BELAJ, Vitomir. Uz Katičićevu rekonstrukciju tekstova o baltoslavenskoj Majci bogova. In: Trava od srca: Hrvatske Indije II. Urednici Ekrem Čaušević… et ali. Zagreb: Hrvatsko filološko društvo: Filozofski fakultet. 2000; MARJANIĆ, Suzana. The Dyadic Goddess and Duotheism in Nodilo´s The Ancient Faith of the Serbs and the Croats. In: Studia Mythologica Slavica VI. 2003. Pp. 181-204. & NODILO, Natko. Stara vjera Srba I Hrvata. In: Religija Srbâ i Hrvatâ, na glavnoj osnovi pjesama, priča i govora narodnog (Antiga fé dos sérvios e croatas. In: Religião dos sérvios e croatas, nas principais bases 61 forma um tanto demasiada aspectos estruturalistas e mesmo fenomenológicos que desembocam em tentativas da reconstrução de um panteão bem-definido e difundido, frequentemente desconsiderando as especificidades contextuais. Em ambos os casos, a aplicação do hieros gamos à legitimação monárquica encontra-se distante da discussão, mas é interessante notar que, ao menos funcionalmente, há similaridades entre as divindades envolvidas (i.e. um deus celeste, muitas vezes ligado ao trovão, que une-se à deusa-terra).

Retornando a um contexto escandinavo, é razoável argumentar que no campo do imaginário a temática do “rei estrangeiro” propicia valor simbólico acentuado, em particular na confecção de narrativas de princípios de reinos e dinastias.

O historiador necessita ter saudáveis ressalvas na aplicação de comparações entre contextos sem conexões históricas empíricas e∕ou plausíveis, ainda que um regresso ao historicismo e positivismo não sejam uma opção; porém, de forma alguma procuramos a criação de leis antropológicas universais.

Ora, é necessário frisar, o próprio método antropológico e etnográfico insiste na necessidade de que o estudo de campo preceda o estudo de caso; é ele que fornecerá a teoria explicativa específica do caso em questão, ainda que outros estudos teóricos possam propiciar escopo, fundamentação, bem como na formulação mais precisa das questões.

Feitas tais ressalvas, julgamos plausível que a força simbólica do governante estrangeiro, recorrente em diversos contextos (incluindo na Europa, e dentre outras populações próximas aos escandinavos) tenha sido um fator que não deve ser desconsiderado na análise da Póviest vriémennikh liet enquanto relato histórico do surgimento da Rússia.

O poder simbólico que a temática fornece à dinastia governante não pode ser subestimado, e é mais que coerente e plausível que a existência de temática mítica recorrente em relatos de legitimação monárquica escandinavos sejam empregados numa fonte que, ainda que eslávica, defenda a existência e legitimação de uma dinastia de origem escandinava em contexto eslávico.

A sugestão do uso de uma temática específica pelo cronista não é aleatória e

de canções, estórias e ditos populares). Split: Logos, 1981. 62 desprovida de significado. As ideias circulam nos mais diversos contextos, influenciam e sofrem influências, mas não surgem do nada. Dessa forma, a força simbólica do rei estrangeiro teve de ser inspirada por algum evento do passado, que não pode estar desconexo ou incoerente com o emprego da mesma.

Tal circunstância é reforçada pelo contexto de escrita da PVL, marcado pelo esfacelamento e enfraquecimento das antigas unidades entre os príncipes russos, e quando a Rus passa a se dividir em pequenos principados tomados de disputas e feudos entre seus governantes. Uma história apontando uma linhagem única e contínua que surgiria em meio de contexto de contendas, como a apresentada com o chamado dos varegues, possui assim especial significado no sentido de reunir e retomar antigos laços de unidade, legitimados pela casa ancestral riurikida.

Porém, o reduzir a situação a uma mera narrativa de legitimação pode subestimar o poder do simbólico e restringir sua circulação e perenidade, seja temporal ou social.

O interlace entre extratos sociais – clerical, aristocrático, ou mesmo da tão buscada “Cultura popular” - permite uma ampliação das possibilidades de ressonâncias do mito nas sociedades eslávicas, fínicas e escandinavas do medievo e do contexto de interação entre as mesmas.

Por fim, outro caminho também pelo qual não temos, no presente, condições de nos aprofundarmos, seria o aberto por Eleazar Meletínski, ligado à chamada Escola de Tartu, e autor de obras extremamente relevantes à temática como a “Poética do Mito”, “Os arquétipos literários” e “A Edda e as formas primitivas de Epos”.

Categorias e conceitos presentes em alguns estudos medievais russos como o de “épico arcaico mitológico” ou “conto-maravilhoso heróico” (Богатырская Сказка) poderiam fornecer novas ferramentas interpretativas em um contexto histórico mais plausível e conectado, que inserisse elementos comuns aos épicos russos (como a recorrência de tríades, também presente no chamado dos varegues, por exemplo).

63

1.5 O século XX: A arqueologia e a historiografia russas nos tempos soviéticos

1.5.1 O período revolucionário (1917-1919) e os inícios da URSS

Voltemos ao desenrolar da controvérsia normanista em solo russo, em particular referente aos desenvolvimentos da mesma no período soviético. Tal histórico mistura-se com o próprio desenvovimento da História e da Arqueologia na União Soviética.

Em 1919 foi criada a RAIMK: Academia Russa de história da Cultura Material, derivada da antiga Comissão Arqueológica Imperial de Petrogrado. Seu primeiro diretor foi Nikolai Marr (1865-1934). Neste período a arqueologia em particular foi marcada por características relativamente progressistas, incluindo comunicação de resultados e ideias a nível internacional e disputas teóricas86.

Personalidade polêmica, Marr foi considerado por alguns como um gênio, mas por outros, como os linguistas Trubetskoi e Jakobson, como insano87. Não exatamente um arqueólogo, Marr estava mais interessado na formulação de teorias linguísticas e no ajuste dos achados arqueológicos a elas, sendo um amador que praticara de tal forma a Arqueologia em seu passado, e que tampouco tinha por ela apreço88.

Dentre suas ideias básicas como o “Jafetismo” e a “Paleontologia da fala”, recebeu destaque a concepção de que as mudanças linguísticas, ao invés de ocorrerem por meio de processos de diferenciação fonológica, gramatical e léxica, dariam-se por meio de respostas à mudanças socioeconômicas nas sociedades89.

Similaridades entre línguas indicariam similaridades em seus estágios “evolutivos”. Pelo adequamento superficial de tal teoria aos referenciais marxistas de mudana sociocultural, as ideias de Marr encontrariam acolhida e dominância no meio acadêmico soviético até a década de 195090.

Com a criação da URSS a RAIMK transformaria-se na GAIMK91 – Academia Estatal de História da Cultura Material, assumindo jurisdição por todas as repúblicas da

86 PLATONOVA, Nadezhda Igorevna. The Phenomenon of Pre-Soviet Archaeology: Archival Studies in the History of Russian Archaeology – Methods and Results. In: SCHLANGER, Nathan & NORDBLADH, Jarl (eds.) Archives, Ancestors, Practices: Archaeology in the Light of its History.New York & Oxford: Brghahn Books, 2007. P.48. 87 KLEJN, Leo. Soviet Archaeology: Trends, Schools, and History. Oxford: 2013, p. 204. 88 KLEJN, 212. 89 KLEJN, 211s. 90 TRIGGER, 206. 91 TRIGGER, 206. 64

URSS. Ocorreu a criação de departamentos de arqueologia com muitos pesquisadores em tempo integral e com facilidades de acesso a institutos de análise geológica, climatológica, da fauna e flora, dentre outros campos do conhecimento92.

No início da década de 20 foi criado em Moscou o RANION, a “Seção de arqueologia da Associação russa de Instituos de Ciências Sociais”. Espécie de rival do GAIMK, o RANION estava sob supervisão direta do Partido Comunista, que também estimulava a criação de centros regionais de pesquisa e sociedades arqueológicas.

O período imediato após a Primeira Guerra mundial foi marcado pela NEP – nova política econômica (1921-1928), no qual a URSS esteve sob governo de Lênin. Nesse período o governo soviético adotou política de reconciliação com a intelligentsia – em sua maior parte oriunda da classe intelectual anterior à revolução, sendo que boa parte da mesa não havia apoiado a revolução bolshevique.

Lenin adotaria a política de que, ao invés de se destruir os fundamentos científicos e culturais atingidos pela burguesia, o partido deveria aproveitá-los e edificar novos fundamentos sobre os mesmos – o governo comunista não poderia governar o país sem o apoio das classes educadas e detentoras de conhecimento93.

Dessa forma, ao menos nos anos da NEP, muitos intelectuais das gerações anteriores, donos de reputações consolidadas, exerceram cargos de chefia e influência, com remunerações adequadas, possuindo relativa liberdade de pensamento94, a despeito das ideias de Marr no GAIMK.

Esse período inicial da arqueologia soviética assistiu à substituição da arqueologia prévia, amadora, por uma arqueologia profissionalizada, com a formação de grande número de acadêmicos e uma coordenação mais adequada de esforços por todos os territórios da URSS. Foi também um período no qual ocorria grande colaboração com autores do estrangeiro95.

Uma das principais publicações na arqueologia do período foi o período Eurasia Septentrionalis Antiqua, cujo editor, o finlandês Aarne Michaël Tallgreen (1885-1945), foi relevante defensor da posição normanista. Tallgren publicaria em 1911 “Die kupfer- und bronzezeit in Nord- und Ostrussland I”, no qual analisaria a cultura arqueológica da

92 TRIGGER 207. 93 TRIGGER, 207. 94 TRIGGER, 208. 95 TRIGGER, 208. 65

Idade do do Volga-Kama enquanto produto de difusão da expansão sueca na Rússia. Tallgreen publicaria artigos de autores russos em línguas ocidentais, como o inglês, francês e alemão, num contexto em que a arqueologia europeia ainda influenciava a produzida na União Soviética. A influência difusionista da escola vienense de antropologia consistia na ideia dominante entre os arqueólogos, e propiciava um campo intelectual apropriado para ideias de escandinavos estrangeiros portadores de cultura no território da Rus. Neste contexto inicial, a circunstância de lidar com a Cultura Material era para tais pesquisadores ligação suficiente com uma perspectiva materialista96. A posição da primeira geração de historiadores pós-revolucionários, entretanto, não é tão facilmente rotulável como “normanista” ou “anti-normanista”. O foco de atenção dos pesquisadores passará gradualmente da etnogênese para o estudo de questões sócio-econômicas, porém neste processo conceitos antigos ainda perdurarão consideravelmente. A própria visão de uma arqueologia marxista monolítica nas décadas subsequentes vêm sido criticada como desconhecedora das nuances, só perceptíveis com a análise de documentação nem sempre acessível, ou disponível ao pesquisador ocidental apenas muito recentemente97. Entre 1917 e 1920 destacam-se dois trabalhos específicos referindo o problema normando. O primeiro é "Drevneyshiye Sudby Rus' skogo Plemeni" (Os antigos destinos da tribo russa), de Aleksei Aleksandrovitch Chakhmatov (1864-1920). Sua crítica à crônica nestoriana será fundamental para os posteriores anti-normanistas soviéticos. Entretanto Shakhmatov mantém-se em um posicionamento analítico que insere a história inicial da Rus em uma estrutura normana, desenvolvendo uma teoria na qual três estados varegues teriam se sucedido – ideia que frutificaria na obra de Platonov. A outra obra, de P.P.Smirmov, Волжский Путь и Древние Руси, (Rota do Volga e os antigos Rus), basearia-se fortemente nas obras de crônicas muçulmanos medievais, e centralizaria a influência varegue na área do Volga98. Devemos ainda referir ao acadêmico Brim, que tentará conciliar a ideia normanista e a origem escandinava do termo Rus com a frequência do termo Ros nas

96 TRIGGER, 209. 97 PLATONOVA, 48. 98 ZAKHARII, 96. 66

áreas mais meridionais do Dniepr e de Kiev, argumentando que teria havia uma mistura entre ambos componentes étnicos e sociais. Tal estado favorável à manutenção de uma posição normanista ou, ao menos conciliadora perdurará até o final da década de 20 e início da década de 30. Ainda em 1931 a enciclopédia concisa soviética veicularia que a classe dominante entre os séculos 9-11 era composta principalmente de varegues e chamada de Rus99.

1.5.2 O período Stalinista

A subida de Stalin ao poder alteraria drasticamente as ciências soviéticas. Entre os anos de 1928 a 1932 ocorreria a chamada “Revolução cultural”, bem como a campanha para acomodar a intelligentsia aos princípios marxistas soviéticos.

Os centros de pesquisa arqueológica regionais foram substituídos por departamentos de estudos regionais controlados pelo governo.

A partir de 1930, os contatos entre acadêmicos soviéticos e estrangeiros foram suprimidos100. Por certo tempo o GAIMK era o único local onde podia se encontrar exemplares de publicações estrangeiras.

O que seria considerado “manifesto” da nova arqueologia soviética, marxista, seria publicado em 1929 por Vladislav Ravdonikas (1894-1976). O relatório, publicado no ano posterior como ensaio e intitulado “Para uma história soviética da cultura material”, foi lido em sessão do GAIMK. Criticava posições da antiga intelligentsia e defendia sua substituição por princípios marxistas101.

Nos anos seguintes ocorreu a perseguição, que passava pela demissão até mesmo prisão e exílio de arqueólogos que não mudassem seus pontos de vistas, acomodando-os às novas configurações ideológicas.

O próprio Tallgren, em virtude de suas críticas a tais processos, perdeu seu título de “cidadão honorário soviético”, posteriormente à sua visita a Leningrado, em 1935.

A RANION foi substituída em 1932 por um ramo moscovita da GAIMK, denominado MOGAIMK. O principal pensador nesse período foi o próprio Ravdonikas,

99 ZAKHARII, 98. 100 TRIGGER, 210. 101 TRIGGER, 210. 67 mas a maior parte dos novos arqueólogos carecia de experiência – tanto no marxismo quanto na arqueologia102 , e a ausência de muitas diretrizes nos escritos de Marx não tornava a tarefa da criação de uma arqueologia marxista mais fácil.

Ainda assim, a arqueologia soviética foi pioneira no sentido de tentar explicar mudanças sociais por meio da Cultura Material, antecedendo-se em suas formas explicativas à própria New-Archaeology, ou Arqueologia Processualista, explicando mudança no registro por meio de transformações internas das sociedades, ao invés de recorrer de imediato à migração e difusão103. Evidentemente, sob fortes restrições conceituais e sob a obrigatoriedade de enquadrar achados e teorias explicativas em moldes marxistas e materialistas.

É significativo, a nível conceitual, que a Arqueologia tenha nesse período sido “rebatizada” de “História da Cultura Material”104.

Um fator particularmente catastrófico para a teoria arqueológica soviética no período em questão foi o predomínio das ideias de Marr acerca da mudança linguística. Elocubrações bizarras foram criadas a fim de explicar mudanças populacionais.

O próprio Ravdonikas, seguindo os passos de Marr, explicaria as modificações culturais e étnicas na Criméia, na qual se sucederam Citas, Godos e Eslavos, como uma mudança de uma mesma população, local, tendo haviado uma evolução linguística entre as línguas iranianas, sucedidas pelas germânicas e, finalmente, pela eslava. Também argumentaria que, devido à tal sucessão evolucionária local e a necessidade de passagem por tais estágios, os godos da Criméia, germânicos, não teriam qualquer relação com outros povos germânicos do oeste e norte – a evolução linguística ocorria independentemente105.

Tal ideia seria abandonada apenas com Stalin, em 1950, que salientaria em seu ensaio “Sobre o marxismo na linguística” que os russos falavam russo antes da revolução e permaneceram o falando após a mesma.

A despeito do avanço teórico – ao menos, nas tentativas de explicação social com emprego da Cultura Material, técnicas tradicionais e consolidadas na Arqueologia no Ocidente, como construção de tipologias, classificações e descrições, foram deixadas

102 TRIGGER, 212. 103 TRIGGER, 217. 104 KLEJN, Leo. La Arqueología Soviética. Barcelona: Crítica, 1993. P.21. 105 TRIGGER, 218. 68 de lado, designadas como metodologias “burguesas”, o que gerou descompasso e atraso considerável da arqueologia soviética em relação à praticada no restante da Europa e América.

Após 1934 ocorreu um aumento considerável de estudos empíricos mais convencionais e profissionais na arqueologia soviética. A própria insistência em ortodoxia política e o risco de se ser contrário a ela implicava que discutir teoria e inovações na teoria marxista era tarefa perigosa106.

Foram reinstituídos os programas de pós-graduação e defesas de teses e dissertações, e a Arqueologia, ainda que continuasse enquanto um ramo da História, foi reconhecida enquanto disciplina, recebendo a designação específica de “Arqueologia Sovíetica” para distinguí-la do que era chamado de “Arqueologia burguesa”107.

Em adição aos projetos arqueológicos de larga escala iniciados em 1928 difundiram projetos de arqueologia de salvamento, e iniciou-se a publicação da Советская Археология (“Arqueologia Soviética”).

Nos finais da década de 30 as discussões relativas à etnogênese – em particular relativas aos povos eslávicos e aos germânicos – assumiram grande importância, discussão agravada pelo contexto circundante da 2ª guerra mundial. As escavações de Novgorod, demonstrando elevado desenvolvimento urbano e mesmo a descoberta de cartas escritas em cartas de bétula, que demonstraram literamento em extratos sociais fora do clero, deram ânimo a explicações nacionalistas acerca do progresso eslávico no medievo, particularmente “russo”, em relação aos povos da Europa Ocidental.

Destarte, a influência escandinava e o normanismo foram veementemente rejeitados108, ainda que o predomínio das teorias de Marr tornasse as explicações referentes à etnogênese verdadeiros malabarismos teóricos.

O último pensador a advogar a ideia normanista seria Brim, que defenderia a dualidade entre os nomes Rus, oriundo de Ruotsi e em voga no norte, e Ros, ligado ao sul e aos rios da bacia do Dnieper. Griekov incluiria ideias do último em sua obra109, mas penderia definitivamente para o papel auto-suficiente dos eslavos e o surgimento

106 TRIGGER, 221. 107 TRIGGER, 221. 108 TRIGGER, 225. 109 ZAKHARII, p.97. 69 da Rus enquanto entidade política autóctone110. É nesse período que se desenvolveriam as ideias de anti-normanistas importantes como Artamanov, Iushkhov e Trubatchév.

Stalin reassentaria populações de todo o território ocupado pela URSS de forma a diluir minorias étnicas e enfatizar uma pressuposta unidade de estado, alterando também a interpretação histórica e arqueológica de forma a enfatizar unidades e conexões ancestrais e milenares dentre seus povos constituintes111 – fossem elas reais e embasadas ou não. Evidentemente, em tais processos antigas atitudes de Pan-eslavismo foram retomadas, ressignificadas e empregadas de forma a legitimar a nova ordem, em particular a partir da década de 1940112.

Em 3 de Novembro de 1947, Iakovlev resumiria o espírito da questão normanista à academia soviética de então, com sua declaração no periódico “Bolshevik” de que o normanismo era “politicamente danoso” por “negar a habilidade das nações eslavas de formarem um estado independente por seus próprios esforços”113.

1.5.3 Os tempos pós-Stalin: Kruschóv (1953-1964) e os inícios da escola de Klejn

Ainda que descrito por alguns como problemático114 ou de crise115, o período posterior ao governo de Stalin permitiu que a interpretação arqueológica assumisse ares distintos.

Mais relevante, no entanto, foi a significativa liberalização pela qual passou a URSS, tanto a nível acadêmico quanto na sociedade em geral, decorrente do chamado “degelo” da administração de Nikita Kruschóv enquanto primeiro secretário da URSS. A relativa abertura da URSS ao ocidente e a pública condenação aos desfeitos de Stálin por Kruschtchóv tiveram efeitos na academia, na história e arqueologia.

A centralização específica das pesquisas arqueológicas foi diluída com a criação de outros centros. O acesso a periódicos estrangeiros também se tornou mais fácil, ainda que sob a lente marxista-leninista que as compreendia enquanto produtos da sociedade

110 ZAKHARII, p.93. 111 BARFORD, 276. 112 BARFORD, 277. 113 ЯКОВЛЕВ, 1947. 114 apud GENING, 1982 em TRIGGER, 226. 115 apud SOFFER, 1985:8-15 em TRIGGER, 226. 70 burguesa que deviam passar sob o crivo da crítica materialista116.

As discussões dentro do marxismo tornaram-se mais complexas e multi- facetadas, por todo o contexto cultural soviético – incluindo a historiografia117. Ainda assim, a posição normanista permaneceu condenada pela maioria dos acadêmicos soviéticos até a década de 1970, em particular aos ligados à chamada “Escola de Moscou”118.

Nesse contexto destaca-se o nome de Liev Samoilovitch Klein, mais conhecido como Leon Klejn, e que se tornaria voz ativa e de relevância no estabelecimento de um reavivamento das ideias normanistas dentro da própria URSS. Judeu oriundo da Bielorússia, efetuaria seus estudos de pós-graduação em Leningrado após ser forçado a abandonar a universidade de Grodno por divergências ideológicas119.

Tendo estudado arqueologia com Mikhail Artamonov e filologia com Vladimir Propp, entre os anos de 1947 a 1950 Klejn criticaria as posições de Marr, ato que não lhe trouxe consequências mais sérias pela condenação de tais ideias pelo próprio Stalin.

Trabalhando no departamento de arqueologia após 1960, Klejn tornar-se-ia professor assistente do mesmo em 1962, mas completaria o grau equivalente a um doutorado (Candidato de ciências) apenas em 1968, sem conseguir defender sua tese, entretanto.

1.5.4 Da era Bréjnev ao final da URSS (1964-1991)

Com a deposição de Kruschóv e a subida de Bréjnev ao poder, muito de suas medidas, incluindo a abertura da URSS ao ocidente, foram revertidas. Entretanto, foi no período do longo governo de Bréjnev que a URSS atingiu status de superpotência, e no qual sua população desfrutaria de melhorias econômicas e sociais consideráveis. A ciência, tecnologia e a academia no geral avançariam num processo de profissionalização ainda maior.

Tais melhorias, no entanto, não perduraram, sendo que o final do período a

116 TRIGGER, 227. 117 REIS Filho, Daniel Aarão. As revoluções russas e o socialismo soviético. São Paulo: UNESP, 2003. P.123. 118 BARFORD, 233. 119 ZAPATERO, Gonzalo Ruiz. Prefacio. In: KLEJN, Leo. La Arqueología Soviética. Barcelona: Crítica, 1993. P.VII. 71

URSS entraria em marcada crise, principalmente econômica.

Na metade da década de 1960 Leon Klejn organizaria uma série de seminários sobre o normanismo, na tentativa de estabelecer uma posião normanista mais velada, parcial, ou ao menos que sobrevivesse às restrições da ideologia oficial. Tal contexto gerou debate entre o próprio Klejn e Shaskolski. Seria o que o próprio Klejn chamaria de “terceiro pico” de debate normanista na Rússia (agora URSS); os dois primeiros seriam Müller contra Lomonóssov e Pogodin contra Kostomarov120.

Klejn desmembraria o conceito normanista no que ele chamaria de “sete passos”, de acordo com os quais o mesmo era discutido na historiografia soviética: 1) a chegada dos escandinavos na antiga área eslava oriental; 2) Fundação de Kiev por eles; 3) a origem escandinava do termo Rus; 4) Influências escandinavas na cultura eslava oriental; 5) Escandinavos como criadores do primeiro estado eslavo oriental; 6) Preferência racial dos escandinavos como causa de seu sucesso; 7) Influêncas políticas na situação contemporânea: os “geniais escandinavos” enquanto chefes e os eslavos como seus subordinados121.

Klejn argumentaria que seria possível a aceitação dos cinco primeiros passos tranquilamente sem qualquer risco de distorção da teoria marxista. Seria perseguido pelo regime e preso na década de 1980 por sua homossexualidade, conseguindo defender sua tese de doutorado apenas em 1994.

No entanto, de seus seminários e posicionamentos em Leningrado surgiria uma nova vertente historiográfica na URSS, favorável ao normanismo e oposicionista, que tornaria forma mais marcadamente a partir da década de 1980122, sendo chamada genérica e não oficialmente de “Escola de Klejn”, termo desfavorecido pelo próprio Klejn, que, atualmente, aposentado na academia após lecionar na Universidade Europeia de São Petersburgo, é colunista na Troitski variant.

Os estudos históricos e arqueológicos na URSS seriam mais criticados e problematizados nas décadas de 70 e 80, abrindo espaço importante a pensamentos divergentes. Formozóv, por exemplo, criticaria amargamente o estado da Arqueologia

120 WESTRATE, Michael. The “Norman Problem” in Historiography: Nationalism and the Origins of Russia. In: Vestnik, the Journal of Russian and Asian Studies. 08 de maio de 2007. Obtido em: Último acesso em: 03/09/2014 121 KLEJN, Leo. Normanism — antinormanism: the end of the argument. In: Stratum plus. Non-Slavic Elements in the Slavic World. 1999. N.05. Pp. 91-101. 122 Apud LEBEDEV, G.S. Epokha vikingov v Severnoi Europe. Leningrad, 1985. In: BARFORD, 233. 72 soviética em seu artigo de 1977, “Crítica das fontes em Arqueologia”123.

Segundo ele, um problema generalizado na Arqueologia soviética era o procedimento de publicar conclusões e resultados da pesquisa sem os dados da pesquisa em si. O leitor leigo final ficaria com a impressão de que os conflitos, problemas e dificuldades da interpretação histórico-arqueológica estariam resolvidos, enquanto que ao acadêmico faltariam todas as premissas sólidas para construção do conhecimento124.

Klejn, referindo-se a Formozóv e à situação, cita a monografia de Danilenko, “O neolítico na Ucrânia. Capítulos da História antiga do sudeste da Europa”, de 1969, cuja periodização – razoavelmente detalhada – basear-se-ia apenas em materiais colhidos na superfície, sem sequer estudo estratigráfico ou escavações; os próprios materiais de superfície foram empregados sem qualquer uso de serialização125.

O próprio Formozóv viria a ser eleito membro do conselho de redação da Sovetskaia Arkheologia, o que Klejn definiria como “um bom sintoma”. De fato, nesse ambiente de retorno a um debate mais próximo de uma conjuntura acadêmica e científica, foi possível o surgimento dessa nova escola normanista, em particular em Leningrado, mantendo a polarização acadêmica Leningrado - Moscou.

Destacar-se-iam alguns pesquisadores nesse novo normanismo soviético cujas obras perduram contemporaneamente: A.N. Kirpichnikov, E.A. Melnikova, E.N. Nosov, e V. Ia. Petrukhin. Dessa forma, a posição normanista assumiu uma conotação política ativa, no sentido de polarizar politicamente seus participantes entre oposição (os normanistas) e os suportadores do status quo (anti-normanistas).

É inviável se empregar os termos “esquerda” e “direita” em suas acepções políticas mais empregadas no Ocidente ao se tratar de União Soviética126; destarte, optamos por, ao invés de se usar um impróprio “esquerda” para caracterizar a

123 ФОРМОЗОВ, А.А.О критике источников в археологии. Ин: Советская Археология, 1977. Н 01, с.05-14. 124 ФОРМОЗОВ, с.10. 125 KLEJN, 1993: 87. 126 Norberto Bobbio, resumindo e agrupamento a maior parte das definições pertinentes define como um dos critérios de maior relevância para distinção entre Esquerda e Direita a igualdade/desigualdade, inserindo também outras nuances ao debate como, por exemplo, a díade liberdade/autoridade. Segundo tais critérios, a URSS possuiria uma política de esquerda que, no entanto, pelas características próprias e específicas de um estado autoritário, gerou outras formas de desigualdade. Não obstante, a distinção e sua discussão permanecem válidas, ainda que cinzentas; o próprio partido Rússia Unida, do qual faz parte atualmente Vladímir Putin, por mais que consista em partido de situação, possui alas e divisões internas que refletem a própria divisão direita-esquerda-centro. Vide BOBBIO, Norberto. Direita e Esquerda: razões e significados de uma distinção política. São Paulo: Editora UNESP, 1995[1994]. 73 dissidência, em se empregar o conceito de “oposição”.

1.5.5 A Rússia pós-soviética

Na década de 1990, com o final da União Soviética, transformações de grande magnitude percorreram toda a sociedade da Rússia e demais ex-repúblicas soviéticas. Na tentativa de se emular os aparentes sucessos das sociedades ocidentais, instaurou-se na Rússia a cartilha neoliberal, incluindo liberação total dos preços, combate ao déficit público e inflação, câmbio flutuante e consequente sobrevalorização do rublo e privatizações127.

Simplificando uma situação complexa, algumas das consequências foram queda relevante da produção industrial, diminuição de investimentos externos, desemprego e subemprego, concentração brusca de renda, surgimento de uma classe de especuladores, queda na expectativa de vida e precariedade nos serviços públicos128.

O impacto em setores específicos, como a saúde por exemplo, é mensurado estatisticamente. O mesmo é mais difícil na área de pesquisa e produção de conhecimento. Os danos às áreas ligadas aos serviços públicos evidentemente atingiram a área da Educação e da Pesquisa, incluindo estudantes subvencionados. Ocorreu o desmantelamento de uma grande quantidade de institutos e de equipes de pesquisa, construídos por meio de uma longa e difícil maturação, e dilapidados por meio de cortes de verbas e salários reduzidos129.

Em tal circunstância, o meio acadêmico será atingido duramente pela migração de cérebros, mas ao menos tempo ficará razoavelmente livre de imposições ideológicas e governamentais. Merece destaque nessa década o trabalho efetuado por Yanin relativo aos resultados de escavação de Novgorod.

Yanin, ainda que analizando a complexidade étnica da reigão, que envolvia fino- úgricos e eslavos, argumentaria que a evidência arqueológica corroboraria o Chamado

127 REIS Filho, Daniel Aarão. As revoluções russas e o socialismo soviético. São Paulo: UNESP, 2003. P. 269. 128 Idem, p.270. 129 Idem, ibidem. 74 dos Varegues da Crônica Primária Russa130.

A situação perpassaria toda a década, e passaria a reverter-se apenas no século XXI, com o início da chamada “Era Putin”, que seria marcada por uma tentativa de estabilidade econômica e retomada do crescimento131. O meio para tanto seria um papel afirmativo, diretivo e regulatório da parte do Estado, levando ao fortalecimento de outras contradições, dentre as quais a mais marcada seria o recrudescimento de formas autoritárias na infante democracia russa. Sem maiores surpresas, será nestes anos mais recentes que novas discussões sobre o normanismo retomariam força na Rússia.

1.6 Desenvolvimentos contemporâneos: a era Putin-Medvedev

O início da era Putin (2000-2008) foi marcado pela nostalgia em relação aos tempos de Stalin e o sentimento de necessidade de uma “mão forte”. O crescimento do poder econômico privado associado à corrupção e redirecionamento das prioridades nacionais levou a uma consequente diminuição no estímulo à pesquisa em determinados campos da ciência. Neste período a Arqueologia passou a receber o menor apoio do estado já registrado na história russa e soviética, menor ainda que nos anos turbulentos de guerra civil próximos a revolução de 1917. O contexto é marcado por baixas remunerações e diminuição das posições acadêmicas132.

Não obstante, no início de seu primeiro mandato enquanto presidente (2000- 2004), Vladimir Putin demonstrou acentuado interesse pela história mais antiga e recuada da Rússia, ainda que tal interesse tenha a presentado-se mais a nível pessoal ou na própria construção de sua imagem. Viajou pelo norte para Novgorod em 2001, quando o governador local tentou persuadí-lo que o local fora a mais antiga capital da Rússia. Putin discutiria a ideia com historiadores e arqueólogos, mas focaria sua atenção no papel de Kiev na história da Rússia, bem como de que forma lidar com a situação após a independência da Ucrânia. Os acadêmicos foram unânimes em confirmar o papel de relevância de Novgorod, mas tendo ressalvas em relação à ideia do uso do passado

130 YANIN, V. L. The archaeological study of Novgorod: An Historical Perspective. In: The Archaeology of Novgorod, Russia: The society for Medieval Archaeology, 1992. Pp. 67-106. 131 REIS Filho, 275. 132 KLEJN, Leo S. Russia. In: SILBERMAN, Neil Asher & BAUER, Alexander A. (eds.) . The Oxford Companion to Archaeology. Oxford: At the University Press, 1996. P.67. 75 mais remoto para construção de uma ideia nacional133.

Putin manteve-se com seu projeto, mas transferindo a atenção para, ainda no norte, Staraia Ladoga, culminando na celebração de 1250 anos da cidade em 2003, após decreto presidencial. Os jornais e a mídia descreveram na ocasião Staraia Ladoga como a “primeira capital da Rússia”134.

Putin chegaria ao local de barco, o que evocaria concientemente, para Shnirelman, a própria chegada dos Varegues, reforçando o simbolismo e a tentativa de Putin de, no início de seu mandato, associar-se à ideia da própria criação do primeiro “estado” russo. Para o presidente, o nacionalismo russo tinha de basear-se em sua “própria história” 135.

É interessante, no entanto, que a iniciativa de Putin, por mais ideológica que tenha sido, coexiste com aparente interesse pela história mais antiga da Rússia e com tentativas de tomar lições do passado para o presente. Nesse sentido, antes de efetuar malabarismos teóricos e de ir contrariamente à maioria dos acadêmicos, Putin demonstraria comportamento mais pragmático, tentando empregar ideologicamente da melhor forma possível a evidência aceita unanimemente.

No caso da origem russa, a ênfase de Putin seria no desenvolvimento do norte, particularmente Staraia Ladoga, e, neste sentido de tomada de lições e tentativas de interpretação, Putin viria a sugerir que o desenvolvimento da cidade deu-se como resultado da “integração” dos povos – comparação clara com seu próprio projeto de uma Rússia novamente hegemônica. Uma posição raramente respeitosa à interpretação acadêmica por parte de um estadista russo que, ao invés de tentar banir a ideia normanista, procuraria dela aprender lições e aplicações.

O interesse de Putin no sítio diminuiria em 2004 e entraria em declínio. No entanto, Putin providenciaria suporte financeiro para escavações em Novgorod e Staraia Ladoga no início de seu segundo mandato (2004-2008).

Por sugestão de Medveded – no momento em questão, chefe de sua

133 SHNIRELMAN, Victor. Archaeology and the National Idea in Eurasia. In: HARTLEY, Charles, YAZICIOĞLU, Bike & SMITH, Adam (eds.). The Archaeology of Power and Politics in Eurasia: Regimes and Revolutions. Cambridge: at the University Press, 2012. P.25. 134 BBC & Channel One TV, Moscow . “Russian president discusses problems with local authority representatives”, 17/07/2003. In: Último acesso em 28/10/2014. 135 SHNIRELMAN, 2012: 26. 76 administração, porém, Putin visitaria em 2005 o centro Histórico-Arqueológico de Arkaim, no sul dos montes Urais. O sítio de Arkaim, escavado na década de 1990, foi declarado pelos arqueólogos locais como a terra de origem dos Indo-Arianos. Iniciou-se então um novo projeto de ideia nacional, estimulado pelo próprio arqueólogo que escavara o local, Guennadi Zdanovitch, encarado com reservas por Putin136.

Num momento em que as tentativas de atribuir ascendência eslava a Rurik enfrentava grandes dificuldades e sua associação à ideia da construção de um estado russo trazia problema ao nacionalismo dos russos, Arkaim apresentava-se como alternativa atraente, ampla, tanto pelas implicações mais vastas das migrações indo- arianas como pela questão do autoctonismo da população ali vivendo e sua ligação direta com os eslavos137.

1.6.1 A “Comissão presidencial da Federação Russa para conter tentativas de Falsificação da História em detrimento dos interesses da Rússia” (15 de maio de 2009 a 14 de fevereiro de 2012)

Com o final do segundo mandato de Putin elegeu-se Dmitri Medvedev, com Putin como primeiro ministro. Em 15 de maio de 2009 o então presidente Medvedev criou, por meio de decreto presidencial, uma comissão com o intuito de “defender a Rússia contra falsificadores da História” e “contra aqueles que quiserem negar a contribuição soviética na Segunda Guerra Mundial”138.

A comissão foi liderada pelo chefe de estado, Serguei Narichkin, e composta por antigos membros do Duma, como Serguei Markov e Natalia Narotchnitskaia, bem como por oficiais das forças armadas e do serviço de inteligência. De 28 membros, 5 eram historiadores: a própria Natalia Narotchnitskaia, Andrei Artizov (chefe da agência de arquivo federal), Aleksandr Chubarian (chefe do instituto de História Mundial da Academia russa de Ciências), Andrei Sakharov (chefe do Instituto de História russa da

136 RIANOVOSTI, 16/05/2005. “Putin visits Arkaim Museum-Reserve in Chelyabinsk Region”. In: Último acesso em: 28/10/2014; SHNIRELMAN, 2012: 27; SHNIRELMAN, Victor A. Russian Response: Archaeology, Russian Nationalism, and the “Artic Homeland”. In: KOHL, Philip L., KOZELSKY, Mara, BEN-YEHUDA, Nachman (eds). Selective Remembrances: Archaeology in the Construction, Commemoration, and Consecration of National Pasts. Chicago: At the University Press, 2008 [2007] .p.46.. 137 SHNIRELMAN, 2012: 27. 138 O decreto está disponível online nos arquivos do Kremlin: УКАЗ, президента Российской Федерации: О комиссия при президенте Российской Федерации по противодействию попыткам фальсификации истории в ущерб интересам России. . Último acesso em 11/09/2014. 77

Academia russa de Ciências) e Nikolai Svanidze.

Narichkin acusaria Letônia e Lituânia de “reescrever” e “politizar” a história, Estônia e Letônia de defesa do nazi-fascismo, defendendo que a tarefa da comissão seria analisar falsificações de fatos históricos que pudessem manchar a reputação internacional da Rússia139. Evidentemente a comissão foi vista com maus olhos internacionalmente, gerando atrito com os países Bálticos, em particular na Letônia140, Geórgia, Ucrânia141 e antigos países da Cortina de Ferro como a Polônia142, que consideram a ocupação soviética como uma atitude hostil. Posições que negassem a contribuição soviética contra o nazismo foram criminalizadas143 e no caso de países cujas interpretações contradissessem a “história oficial” da comissão, os mesmos deveriam sofrer sanções – caso particular e específico dos países Bálticos e as interpretações sobre os julgamentos de Nuremberg144.

Dentro da própria Rússia a comissão encontrou críticas de vozes importantes como de Mikhail Gorbatchóv145. É evidente o caráter autoritário e de revisionismo histórico da comissão. De nosso interesse direto, entretanto, é que a despeito do foco principal da comissão na história contemporânea, o normanismo foi considerado como uma das temáticas perigosas pela comissão.

O responsável por tal enquadramento foi Andrei Sakharov. Em entrevista à TV1 efetuada dois meses depois, anunciaria que uma das mais “ameaçadoras falsificações”

139 “Комиссия против фальсификации истории обещает не переписывать книги и не учить ученых”. In: new.ru.com, 17 de junho de 2009 Último acesso em 11/09/2014. 140 Por exemplo, na tentativa de reabilitação de condenados por crimes de guerra como Vassili Kononov. “Кремлевская комиссия займется делом Кононова”. In: delfi.lv, 20 de maio de 2009. <.http://rus.delfi.lv/news/daily/politics/kremlevskaya-komissiya-zajmetsya-delom- kononova.d?id=24659049>. Último acesso em 11/09/2014. 141 “Medvedev Forms a Commision to Protect Russian History”. In: Jamestown Fundation, from Eurasia Daily Monitor, V. 06, Issue 98. Último acesso em 11/09/2014. 142. Último acesso em 11/09/2014. 143 “Russia Moves to Ban Criticism of WWII Win”. In: Time. 08 de maio de 2009. . Último acesso em 11/09/2014. 144 FILATOVA, Irina. Medvedev's new Russian orthodoxy: Postwar Soviet history is to be revised, with official sanction; and transgressions from the approved version could lead to prison. In: The guardian. 21 de maio de 2009. < http://www.theguardian.com/commentisfree/2009/may/21/russia-medvedev-history> Último acesso em 02/10/2014. 145 “Gorbachev blasts Kremlin 'managed' democracy in Russia”. In: dnaindia.com, 22 de maio de 2009. . Último acesso em 11/09/2014. 78 da história russa era o normanismo, que estaria se espalhando novamente. Inspirada por organizações e instituições estrangeiras que financiariam “atividades destrutivas” de alguns acadêmicos russos146. Suas iniciativas encontraram tamanha oposição que Sakharov viu-se forçado a se aposentar. Após a circunstância, o normanismo passou a ser encarado como “vitorioso” e encontra-se em voga147, mas julgamos leviano pressupor uma situação fechada.

Na proximidade da transição posterior do governo, com um terceiro mandato de Putin, a comissão seria encerrada. No entanto, levando-se em consideração a situação política russa no momento de escrita desta tese, o nacionalismo e expansionismo russo agravam-se com a situação de anexação da Criméia e conflitos na Ucrânia. As discussões envolvendo a Ucrânia, tensões com Países Bálticos e OTAN trazem a tona novamente as antigas discussões relativas ao Ocidente e sua relação com a Rússia – de fato, o eixo mais sensível e particularmente ligado com a situação normanista, que evoca o papel do Ocidente nas questões internas russas ou em suas áreas de influência.

A ideia de um projeto nacional de legitimização do estado russo com o uso das ciências históricas permanecerá em pauta. É particularmente relevante, ao se efetuar tal panorama, a percepção de que, quiçá as ideias históricas de Putin em relação a Kiev e o atual território ucraniano não estiveram dormentes. Os efeitos da mudança de foco do norte para o sul ainda trarão desenvolvimentos posteriores à discussão normanista. Seguir adiante com mais conclusões no presente momento é conjectura.

1.6.2 A academia russa hoje

Por fim, em adição a autores já atuantes nos debates Moscou X Leningrado, como Elena Melnikova, destacam-se nesta última década e meia os trabalhos de Tatijana Jackson e de diversos pesquisadores ligados à Academia Russa de Ciências como Galina Glazyrina, Elena Gurevitch, Fiodor Uspenskii, bem como de outras instituições russas, como Glieb Kazakov (da Russian State University), Tatiana

146 GAZEAU, Véronique & MUSIN, Alexandre. Normannism and Anti-Normannism. In: Liberté pour l´Histoire. 24 de março de 2010. . Último acesso em: 21/04/2014. 147 Entrevista: КУЗНЕЦОВ, Алексей (entrevistado) & БУНТМАН, Сергей (entrevistador). . Ломоносов и норманская теория в истории. 79

Cheniavskaia (Moscow State University).

A última geração de acadêmicos tem não apenas se enquadrado de forma marcadamente normanista em suas posições, mas também tem encontrado boa inserção no meio internacional, produzindo conhecimento específico sobre o medievo escandinavo – não necessariamente atendo-se apenas às relações entre os mesmos e o leste, mas adicionando estudos sobre diversas áreas ligadas aos mesmos, como epigrafia, runologia, estudo literários, históricos e arqueológicos das sagas.

1.7 Brasil: Eurípedes Simões de Paula

A temática russo-escandinava em solo brasileiro é praticamente inédita. Em adição a poucos artigos publicados, e a obra de Celso Taveira148, centralizada mais especificamente nas origens e desenvolvimento da Rus e suas relações no mundo ortodoxo e bizantino, existe uma única e particularmente notável obra de maior extensão sobre o tema: a tese de doutoramento “O comércio varegue e o grão-ducado de Kiev”, publicada em 1942 por Eurípedes Simões de Paula, e que incorpora uma relevância institucional para a Universidade de São Paulo por diversas razões.

O professor Eurípides Simões de Paula, catedrático de História Antiga na Universidade de São Paulo, foi pioneiro no estudo de diversas áreas no Brasil, e publicou diversos trabalhos que percorriam temáticas inusitadas e pouco estudadas, fosse no quesito de recorte ou na abordagem historiográfica tomada.

Sua tese de doutoramento foi pioneira não apenas tematicamente: foi a primeira tese de doutorado em história a ser defendida na própria Universidade de São Paulo149. Orientada por Jean Gagé, foi defendida em 13 de setembro de 1942, sendo a banca composta pelo próprio Jean Gagé (presidente), Pierre Monbeig, Conde Emanuel de Bennigsen, Plínio Ayrosa e Alfredo Ellis Junior150.

148 TAVEIRA, Celso. Da primeira à terceira Roma. A commonwealth bizantino-eslava e seu impacto na formação da Rússia. 2008. Relatório de Pós Doutorado – Universidade Estadual Paulista/ Campus de Assis. 149 EL MURR, Victória Namestnikov & EL MURR, Joubran. O Comércio Varegue e o Grão-Principado de Kiev. In: SOUZA, Antonio Candido de Mello et alii (org). In memoriam de Eurípedes Simões de Paula: artigos, depoimentos de colegas, alunos, funcionários e ex-companheiros de FEB; vida e obra. São Paulo: Seção gráfica da FFLCH, 1983. pp. 406 & 409. 150 EL MURR & EL MURR, 406. 80

Eurípedes foi capaz de reunir a bibliografia disponível no Ocidente, muito dela parte de sua própria e vasta biblioteca pessoal, que disponibilizaria depois para os alunos151. O acesso à tese foi difícil por 30 anos pela existência de poucos e antigos exemplares; difundiu-se por vezes por cópias mimeografadas e datilografadas152. Finalmente, em 1972 ela foi reimpressa, sem uma complementação, desejada pelo seu autor. Passaram-se mais de duas décadas sem tentativa alguma de continuidade ao trabalho pioneiro de Eurípedes153.

Os trabalhos posteriores não estariam focados na Rus kievita ou na questão dos varegues, referindo-as de passagem ou parcialmente.

Em relação à própria controvérsia, Eurípedes tem posição clara e definida, exposta já em sua introdução: para ele, o principado de Rus ”é obra dos Normandos que se lançam sobre a Europa desde o final do século VIII”154.

Não obstante, ele a discute em razoável detalhe, ainda mais tendo-se em conta a data de publicação e o acesso difícil à biliografia no tempo em questão155. Inicia pela etimologia dos nomes Rus e Varegue156, concluindo que os Rus eram escandinavos157 e que o nome varegue possui a mesma origem158.

Eurípedes de Paula considera que o chamado dos varegues contido na crônica de Nestor consistiria em uma “justificativa” de uma posse já efetiva das terras eslavas, da parte dos escandinavos159.

O autor adiciona pontos interessantes e intrínsecos à discussão que sustentam um domínio já consolidado e prévio dos varegues sobre o principado russo. Conquanto a crônica nestoriana date a chegada de Riurik em Novgorod em 862, e o domínio de Kiev por seus descendentes em 881, consta que em 860, durante o reinado de Miguel III ocorreu um ataque dos Rus a Bizâncio, o que pressuporia uma força já organizada e relativamente consolidada. Os Annales Bertiniani, que já citamos a respeito da origem escandinava dos Rus, fala sobre o reinado de Luis o Piedoso, entre 814 a 840 e cita a

151 Idem. 152 Idem, 407. 153 Idem, 408. 154 PAULA, 06. 155 PAULA, 05; & EL MURR & EL MURR, 406. 156 PAULA, 14-22. 157 Idem, 18. 158 Idem, 21s. 159 Idem, 24. 81 chegada de uma embaixada dos Rus – pelo autor como suecos – durante o reinado do bizantino Teófilo – entre 829 a 842, portanto160.

Dada a data de escrita e o já banimento do normanismo na URSS enquanto possibilidade explicativa, e considerando-se que Eurípedes chegou a consultar bibliografia de autores russos, é razoável supor que o mesmo optou conscientemente pela sua tomada de posição, seja alinhando-se politicamente com o consenso ocidental, seja por convencimento da evidência analisada. Parece-nos mais provável que esta última afirmativa esteja mais próxima da verdade, como se depreende de seu trabalho.

Eurípedes não chegaria a visitar a União Soviética ou a consultar qualquer bilbiografia in loco. Era conhecido por alguns acadêmicos soviéticos interessados em estudos brasileiros e na Revista de História da USP como Lev Slióskin, com o qual travou conhecimento em 1965 em congresso efetuado em Viena, em conversa em francês. Quanto ao próprio domínio de Eurípedes sobre o tema de sua tese, nas palavras de Slióskin, Eurípedes era “uma pessoa de imensa erudição, certo na história antiga da Rússia (...)”161

160 Idem, 27. 161 SLIOSKIN, Lev. Eurípedes de Paula na União Soviética. In: SOUZA, Antonio Candido de Mello et alii (org). In memoriam de Eurípedes Simões de Paula: artigos, depoimentos de colegas, alunos, funcionários e ex-companheiros de FEB; vida e obra. São Paulo: Seção gráfica da FFLCH, 1983. P. 564. 82

Figura 01: Eurípedes em fevereiro de 1942 à sua máquina de escrever ROYAL, redigindo e finalizando a 1ª tese de doutoramento em história a ser defendida na Universidade de São Paulo. Fonte: EL MURR & EL MURR, 409.

Eurípedes orientaria três teses de doutoramento que tocariam na questão russo- medieval. Foram as teses de Marcos Margulies, “Evolução dos contatos intergrupais na Europa da Idade Média através do relacionamento entre judeus e russos”, defendida em 1970; de Niko Zuzek, “Razões da recusa do grão principado de Moscou à união florentina”, defendida em 1972; e de Victória Namestnikov El Murr, “Poema russo do seculo xii : o dito da expedição de Igor”, também defendida em 1972.

Os impactos e desenvolvimentos desses trabalhos, entretanto, foram pequenos, no sentido da criação de uma tradição de estudos da Rússia medieval – o que dizer, então, de uma historiografia mista, russo-escandinava. Alguns reflexos tardios de tais trabalhos podem ser percebidos, por exemplo, na notável publicação em 2000 de uma tradução do “Canto da campanha de Igor” por Maria Aparecida B.P. Soares162. É digno de nota que em suas referências, a única obra específica brasileira no tema seja o

162 SOARES, Maria Aparecida B.P. Príncipe Igor: ou o canto da campanha de Igor. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2000. 83 trabalho de Victória Namestnikov El Murr, em meio a publicações russas e algumas obras de referência geral em línguas latinas ou inglês.

O comentário de Soares à tradução não faz menção alguma à situação escandinava, descrevendo rapidamente a formação da Rússia de Kiev como produto apenas dos povos eslavos, sem sequer a menção dos varegues163 e devendo muito mais ao comentário consagrado de Likhatchov, em edição de 1967164, e à “Historia de La URSS165” do que à diminuta produção brasílica sobre o tema.

A tese de Margulies seria publicada em 1971 pela Bloch como “Os Judeus na História da Rússia166” – nome evidentemente mais atrativo em termos de mercado. Historiograficamente, é trabalho que mais incorporaria as ideias de Eurípedes sobre o normanismo, ainda que os varegues consistam em parte pequena da obra – o primeiro capítulo, apenas.

Neste, é interessante notar que o autor não se detém nas questões e implicações historiográficas do normanismo na historiografia russa. O máximo que o autor propõe- se a discorrer sobre a questão é um parágrafo explicativo, no próprio sumário:

“Este capítulo trata de um curioso e razoavelmente desconhecido Estado russo, criado pelos normandos nos territórios depois transformados em Rússia, estado gerado e gerido pelos grupos germânicos,o que até os nossos dias aborrece a oficial historiografia soviética,embora o fato ocorresse há mais de mil anos”167.

Transparecem nesse resumo algumas ideias subjacentes ao trabalho: uma oposição entre genéricos, quase monolíticos, grupos “eslavos” e “germânicos” (no prefácio o autor irá enfatizar tal oposição enquanto um “antagonismo (...) eslavo-latinos contra os franco-germanos”) e uma certeza de falta de necessidade de discussão historiográfica – como afirmamos a pouco, Margulies se porta em relação à questão como se o normanismo seja um fato dado, consumado, comprovado e longe de qualquer dúvida.

163 SOARES, 12. 164 Listada em suas referências como “LIKHATCHOV, Dmitri S. Slovo o polku Igoreve. Gueroítcheskii prólog rússkoi literatury (O canto da campanha de Igor. Prólogo heroico da literatura russa). Leningrado, Izdátelstvo “Khudójestvennaia literatura”, 1967.” 165 HISTORIA DE LA URSS. Moscou: Instituto de Historia de la academia de Ciências de la URSS & Editorial Progreso, 1977. 166 MARGULIES, Marcos. Os judeus na história da Rússia. Rio de Janeiro: Edições Bloch, 1971. 167 MARGULIES, “Sumário”. 84

Partindo da divisão norte-sul da Rus no medievo, com um núcleo ao norte em Novgorod e outro ao sul em Kiev, ele defende – novamente como fato dado e sem maiores discussões historiográficas - um gerenciamento estrangeiro no primeiro estado russo e uma superioridade dos primeiros em relação aos segundos, ao menos no quesito mercantil. Em suas próprias palavras:

“Gerados pelos interesses comerciais dos povos mercantilmente evoluídos – os normandos ao norte e os bizantinos no Sul (...) ”168.

Margulies irá reafirmar constantemente o papel dominante dos varegues em relação aos eslavos orientais e mesmo o domínio dos mesmos em relação a outros mercadores a percorrer a região, incluindo os judeus – que se tratam do foco central de seu livro169. Para ele, os escandinavos “no Ocidente contruíram a Inglaterra e no Oriente a Rússia”170, ainda que afirmando a rápida assimilação dos mesmos nas populações com as quais lidavam e a ausência de vestígios posteriores nos próprios estados.

Dessa forma, seu trabalho endossa ponto a ponto o normanismo “clássico”: desde o chamado dos varegues na crônica nestoriana, aos nomes escandinavos dos governantes171 e os tratados bizantinos172.

1.8 A historiografia ocidental e da antiga Cortina de Ferro

Designações como “Europa Oriental”, países da antiga Cortina de Ferro ou antigo “Bloco Oriental”, ainda que bastante difundidas e empregadas, já não mais se sustentam de forma cabal, em particular ao se tratar de suas historiografias locais.

As especificidades e subdivisões culturais encontradas nos mesmos são marcantes, e suas relações institucionais com a Rússia e URSS são igualmente diversas.

Os países bálticos (Estônia, Letônia e Lituânia) possuem passado de rancor e disputa ideológica com a União Soviética, e sua historiografia medieval reflete tal circunstância.

168 MARGULIES, 15. 169 Idem, 18. 170 Idem, 20. 171 Idem, 23. 172 Idem, 26. 85

Concomitantemente, na Estônia e Letônia ocorreu contato intenso com a Escandinávia em épocas já anteriores ao próprio período viking, e a historiografia contemporânea da região considera a temática normanista como ponto já resolvido, inclusive ultrapassado, em um cenário nacional agravado pela dificuldade de fundos e estímulo à pesquisa173.

Anti Selart chamará a questão de “relevante” apenas nos anos 50 a 60 e ligada na Estônia soviética enquanto reação ao livro “Nordische Mission, Revals Gründung und die Schwedensiendlung in Estland”, de Paul Johansen, publicado em 1951 em Estocolmo174, o que demonstra inclusive uma falta de paridade e atualização de parte dos acadêmicos do Báltico em relação aos recentes desenvolvimentos da controvérsia na Rússia.

Com o final da URSS, outras nações de substrato eslavo como Polônia e Tcheco-eslováquia abandonariam as tentativas pan-eslavistas de explicar o desenvolvimento antigo de suas sociedades como atingidos pelos eslavos isoladamente, antes aceitando – muitas vezes apressadamente – quaisquer tentativas de conexão com a Europa Ocidental, em movimento paralelo à expansão da Comunidade Europeia para o leste175. Em tal contexto de recém-aberto debate, o normanismo assume retomado vigor, não sem embate com as velhas ideias.

A Polônia teve lugar de destaque na discussão normanista. Três dos principais acadêmicos a discutir a questão e influenciar a situação da mesma tiveram origem polonesa: Henryk Łowmiański (1898-1984), Henryk Paszkiewicz (1897-1979) e Jòzef Sȩkowski176.

Łowmiański foi autor de obras de grande volume; destacam-se Prusy pogańskie (1935) (Os antigos prussianos), “Zagadnienie Normanow w genezie panstw slowianskich (1957)” (O problema dos normandos na gênese os estados eslavos), Początki Polski (6 vol), Studia nad dziejami Słowiańszczyzny, Polski i Rusi w wiekach średnich (1986).

173 SELART, A. Saksa doktorike. Meie Mommsen. Akadeemia, 18(8), 1836 -1849. 2006.; ϹЄЛАРТ, А. Начало городской жизни в средневековой Ливонии и Руси. Балтия в контексте Северного пространства. От Средневековья до 40-х годов XX века / Институт всеобщей истории РАН. - М.: Изд-во Института всеобщей истории РАН (ИВИ). 2009. С. 84-102; Troca de emails com profs. Drs. Anti Selart e Dr. Heiki Valk, da Universidade de Tartu, em janeiro de 2014; Entrevista pessoal com prof. Dr. Andrejs Vasks na Latvijas Universitate, julho de 2013. 174 Anti Selart; Email pessoal para André Muceniecks em 17/01/2014. 175 BARFORD, P.M. The Earl Slavs. Ithaca & New York: Cornell University Press, 2001. P. 282. 176 ZAKHARII, 76. 86

Łowmiański discordava da derivação de Rus de Ruotsi, argumentando que talvez “Rus” tivesse a ver com o antigo nórdico rauð, “vermelho”. Nas línguas eslávicas haveria o cognato em termos derivados de “rusy”, que significaria avermelhado, amarronzado, pendendo para o vermelho, significando alguma característica territorial ou, como sugeriria o norueguês Håkan Stang, pessoas com o cabelo avermelhado.

Para Łowmiański, o termo Rus surgira no médio Dnieper; aplicaria-se depois ao estado ali e surgido e mais posteriormente, generalizado, aplicaria-se com uma conotação mais étnica e social. Mais posteriormente, aventaria a hipótese de que implicaria uma organização militar originada na região do Ladoga, consistindo de elementos mistos eslavos, escandinavos e fino-úgricos, mas com predomínio eslávico. destarte, Łowmiański enquadrou-se, ainda que de forma matizada, no espectro anti- normanista da controvérsia.

Em breve retornaremos a Paszkiewicz.

Falta, por fim, uma análise da historiografia da qual nós propriamente mais bebemos em nossa pesquisa; a historiografia anglo-saxã, no sentido de se expressar em língua inglesa. Longe de ser formada apenas de estudiosos anglo-americanos, é formada também em grande parte de russos, ucranianos e poloneses emigrados para Estados Unidos, Reino Unido e Escandinávia, que produziram a maior parte da historiografia acessível e influente no ocidente.

Nesse grupo inserimos o já mencionado Paszkiewicz, os Riasanowsky, George Vernadsky, Omeljan Pritsak, Wladyslaw Duczko, Simon Franklin, Jonathan Shepard e Thomas Noonan.

Afirmamos anteriormente que Vernadsky, apesar de normanista “declarado”, não aceita como corretas algumas pressuposições caras aos normanistas “clássicos”. Dentre estas, destaca-se sua discordância da etimologia do nome Rus enquanto derivação do escandinavo Rhodslagen e fino-úgrico Ruotsi.

Antes, adota a ideia, de origem e matiz anti-normanista, de uma conexão meridional do nome, oriundo de Ros. Vernadsky associa-o a diversos hidrônimos originários de populações antigas das estepes como Rukh-As ou Roc-As, mais especificamente ao nome ΄ρωϛ (hros). Seu primeiro expositor foi Diakonov, que analisa o Pseudo-Zacharias Rhetor, de 555. Tal fonte, segundo Diakonov, citaria certos Hros 87 como populações nomádicas húnicas do norte do Cáucaso.

Já citamoa a pouco que essa ideia foi desacreditada e mesmo ridicularizada por Omeljan Pritsak177, que demonstra que o relato, na verdade, é uma versão oriunda do médio-persa da história de Alexandre com um erro de cópia, na qual os consortes das amazonas, gigantes, são citados como “heróis”, empregando o termo ήρωϛ (heros).

Já Henryk Paszkiewicz (1897-1979), apesar de polonês por nascimento, migrou para a Inglaterra, onde publicou suas obras de maior relevância, tornando-se medievalista de renome e influência no mundo anglo-saxão no campo dos estudos referentes à Europa Oriental.

Nos anos pós-guerra publicaria sua trilogia: The Origin of Russia (George Allen & Unwin LTD, London 1954), The Making of the Russian Nation (Longmann & Todd, London 1963) e The Rise of Moscow's Power (niedokończony, wydany pośmiertnie, East European Monographs 1983). De grande interesse no Ocidente, e publicada em inglês (apesar de Paszkiewicz tê-la escrita em polonês) sua trilogia enfrentou problemas para ser divulgada na Polônia, Cortina de Ferro e URSS, por razões doutrinárias e pela inclinação normanista de Paszkiewicz, vindo a ser publicada apenas após a década de 1990 (1996, 1998 e 2000) em polonês, após esforços na recuperação de seus manuscritos.

Os pontos de vista de Paszkiewicz e, em grande parte, a forma como os colocou, geraram considerável polêmica e resistência da parte dos autores russos. Paszkiewicz nunca tentou fazer concessões ou amenizar quaisquer áreas mais sensíveis de suas idéias; declara sem qualquer problema que os eslavos do Ilmen eram incapazes de se organizarem e foram dominados pelos escandinavos.

Ainda mais polêmicas foram suas declarações sobre a própria natureza dos russos, que misturam um nacionalismo polonês com raízes em movimentos como o sarmatismo e não disfarçam um discurso eslavista, exclusivista e mesmo racista. Paszkiewicz afirma que os russos foram fino-úgricos que adotaram a língua eslávica após a cristianização. destarte, os varegues dominaram uma população fino-úgrica que se tornaria “russa”, e não um povo eslávico178. Paszkiewicz cria, dessa forma, suas

177 PRITSAK, 06. 178 PASZKIEWICZ, Henryk. Origins of Russia. London: George Allen & Unwin., 1954. pp. 155s. 88 próprias ideis de superioridade racial – de eslavos e escandinavos sobre fino-úgricos, no entanto - ao mesmo tempo exaltando seu povo de origem e rebaixando os russos.

O predomínio normanista no Ocidente foi atacado sistematicamente pelos Riasanovsky, particularmente Nicholas, o filho (1923-2011). Autor de “A History of Russia”(1963), um dos livros mais influentes e mais reeditados no contexto norte- americano179, Riasanovsky criticaria de forma mais específica e contundente a supremacia e parcialidade da historiografia no Ocidente que tratava da questão em artigo publicado no Russian Review de 1947180. Riasanovsky criticava o que chamou de “standard normanist explanation”181. Seu principal debatedor seria Paszkiewicz, e a discussão entre os acadêmicos foi considerada por Klejn e outros autores como a “terceira onda” de debates normanistas.

Autores contemporâneos e posteriores à discussão, dentre os quais o próprio Vernadsky, Omeljan Pritsak, Jonathan Sheppard, Simon Franklin, Thomas Noonan e Wladislaw Duczko desenvolvem pontos de vistas mais amplos e matizados.

Chamar-lhes “normanistas” é arriscado, subjetivo. Todos consideram a existência tanto do componente escandinavo como do eslávico fundamentais no surgimento da Rusde Kiev. Ideias tais quais “superioridade/inferioridade” cultural, “evolução cultural” e similares encontram-se já bastante circunscritas e datadas.

Destarte, se por “normanista” é correto enquadrar qualquer acadêmico que considere que tenha havido a presença escandinava nas origens da Rus de Kiev, então todos estes autores o são e, com exceção de um ou dois nomes, a historiografia ocidental inteira o será, bem como a maior parte da produção russa recente.

Se “normanista” implica aceitar a cartilha estabelecida, que inclui a origem do nome, e mesmo uma situação de domínio e superioridade cultural, o leitor necessitará vasculhar a bibliografia mais antiga a fim de satisfazer os critérios.

Por fim, retornaremos, no capítulo seguinte, a discutir a presença escandinava no território da antiga Rus. É impossível ao acadêmico contemporâneo desacreditar que

179 A última edição, a 8ª, foi atualizada por um antigo estudante seu, Mark Steinberg: RIASANOVSKY, Nicholas & STEINBERG, Mark. A History of Russia. New York, 2010 [1963]. 180 RIASANOVSKY, Nicholas. The Norman Theory of the Origin of the Russian State. In: Russian Review. Vol. 07, n01. 1947. P.97. 181 RIASANOVSKY, 1947: 96. 89 tais movimentos existiram, ou mesmo que possuíram relevância. Argumentos relativos à escassez de material arqueológico não mais se sustentam; o emprego de tal informação, no entanto, estará sempre sujeito à subjetividade do autor, ao contexto no qual ele escreve, e não serão poucas as vezes que tal produção estará sujeita à legitimação de ideologias e situações políticas. 90

Mapa 01: Austrvegr e Garðaríki. Do autor. Elaborado com a ferramenta MapMaker Interactive, da National Geographic Education. 91

CAPITULO 2: A CULTURA MATERIAL

2.1 Os Escandinavos no leste – O testemunho da Cultura Material

Pela escassez de fontes escritas na Alta Idade Média, tanto na Rus quanto Escandinávia, a construção de uma história do período viking em tais contextos beneficia-se com o uso extenso da Cultura Material, em uma acepção arqueológica do termo. Segundo tal conceito, poderíamos definir Cultura Material como qualquer criação, vestígio, alteração ou construção produzida pela ação humana. Tal definição é válida desde construções e criações intencionais (i.e. a construção de um edifício ou de um salão; uma estela rúnica, com conteúdo escrito ou não; uma ferramenta) como a alteração do meio-ambiente dada pela ação humana (i.e. o desmatamento de determinadas áreas; a drenagem de um pântano)182. Há de se notar que tal ampliação do conceito de fonte primária e emprego das mesmas não diferem muito das definições propostas por Jacques LeGoff em sua “Nova História”. Discutimos extensamente anteriormente a hipótese normalista e sua resistência da parte de autores principalmente na Rússia, URSS e Ucrânia. Também demonstramos que parcela considerável dessa argumentação anti-normanista fundamenta-se em uma suposta ausência de material arqueológico demonstrando uma expansão escandinava a leste. Não analisaremos os sítios escandinavos em solo eslávico, em alguma espécie de tentativa de argumentação normalista. Como já discutimos anteriormente, tal afirmação e tais argumentos baseados em ausência são questionáveis e não se sustentam. A despeito da existência de extenso material escavado em gorodi – termo usado extensivamente na bibliografia para se referir às cidades fortificadas eslávicas, como Novgorod e Kiev - daremos ênfase a duas séries de material que, por possuírem diversos testemunhos da mesma natureza, permitem o traçar de comparações mais seguras. Tratam-se também de materiais que possuem natureza dupla no sentido interpretativo, permitindo tradicionalmente seu emprego tanto pelo campo da arqueologia quanto da História. Trata-se do testemunho numismático amparado pelos achados arqueológicos em solo russo e o testemunho das estelas rúnicas. Como afirmado em nossa introdução, partes consideráveis desta seção apoiar-se-

182 BEZERRA DE MENESES, Ulpiano. A cultura material no estudo das sociedades antigas. In: Revista de História, 115 (Nova Série), 1983. pp.112s. 92

ão em bibliografia secundária; não temos a pretensão de apresentar um trabalho arqueológico ou numismático; antes, de provermos, nesta seção, um apanhado contextual baseado nas diferentes formas da Cultura Material que embase nosso estudo sobre o emprego do contexto viking pelos eruditos dos séculos posteriores. No entanto, a parte final deste capítulo, dedicada ao estudo das estelas rúnicas, foi efetuada com a análise direta, de nossa parte, das próprias estelas, complementando assim a sessão com um estudo baseado nos testemunhos primários.

2.1.1 A numismática

O estudo numismático dos escandinavos em relação ao leste apresenta algumas peculiaridades e exclusividades em relação à forma como a numismática é normalmente estudada. No campo geral da numismática, as moedas são estudadas em relação a diversos fatores. Tratando-se de objetos portáteis fabricados em material durável, de produção repetida, dimensões controladas e valor simbólico reconhecido entre grupos sociais pela representação de uma autoridade compartilhada, são muitos aspectos que podem ser estudados por meio delas: a tecnologia, a economia, o comércio, mesma a política e sociedade. Seu valor é normalmente dado de forma simbólica; sua emissão se dá por uma autoridade pública reconhecida, sua confecção e impressão se dão de formas controláveis e fiscalizáveis. Dessa forma, em diversas ocasiões no tempo e espaço foram emitidas moedas cujo “valor intrínseco (enquanto mercadoria) era negligenciável, sem qualquer relação com o valor da mercadoria no lugar da qual deviam circular” 183. O material e peso não eram os responsáveis diretos pelo valor da moeda, mas sim a autoridade pública que executou sua impressão e emissão. No testemunho numismático que nos interessa referente aos escandinavos em Austrvegr e Garðaríki, esta característica essencial das moedas não possui significado algum. Os grandes objetos de interesse para escandinavos eram os dirhams muçulmanos – moedas cunhadas em prata pelo mundo árabe. O interesse era o material e peso dos mesmos; estas moedas eram avaliadas, portanto, pelo valor intrínseco que possuíam, e não simbólico. A autoridade que as confeccionou não era (re) conhecida, o simbolismo e

183 FRÉRE, Hubert. Numismática: uma introdução aos métodos e à classificação. Tradução e adaptação de Alain Costilhes e Maria Beatriz Borba Florenzano. São Paulo: Sociedade Numismática Brasileira & Louvain-la-Neuve (Bélgica): Séminaire de numismatique Marcel Hoc, 1984.p. 17. 93 matemática nelas gravadas não fazia sentido ao escandinavo184. Os escandinavos obtinham moedas de prata com comerciantes muçulmanos, trocando-as principalmente por peles obtidas no norte. Esse comércio era efetuado principalmente em Itil, capital dos Khazar, na embocadura do Volga, ou mesmo posteriormente mais ao sul, nas regiões dos atuais Irâ e Iraque. A Rússia e a Escandinávia tinham escassez de depósitos de prata, e moedas de prata ocidentais, carolíngias, eram raras185. Dessa forma, os dirhams muçulmanos eram uma fonte de prata que propiciava distinção social, riqueza e poder186. Não obstante tais singularidades, entretanto, tais moedas ainda assim podem indicar outra série de informações. O quesito de datas é relativo. Pode-se obter por meio do testemunho dado através de séries, mas não de moedas isoladas. Podem-se presumir datas-limite da cunhagem e circulação das moedas, mas não datações absolutas. Pode-se saber com precisão os locais de origem e as casas de cunhagem. A observação das proveniências cruzada com as datações seria de grande utilidade para estudos históricos políticos dos califados árabes do período em questão, mas foge totalmente do nosso escopo. A despeito do simbolismo diverso, o fato de encontrar-se grande quantidade de depósitos de moedas podem nos trazer informações sobre o imaginário, crenças e hábitos mentais dos escandinavos em questão. Ainda que os dirhams não trouxessem efígies e rostos gravados, a atitude corrente escandinava de enterrar tesouros de prata pode ter origem religiosa, e não meramente de entesouramento. Não há uma elaboração unívoca sobre o mundo após a morte entre os escandinavos, e nem se trata de nosso propósito aqui nos adentrar muito no assunto. Dentre muitos autores que tratam de temas ligados à religiosidade escandinava pré- cristã, nos chamam a atenção os conceitos organizados por Hilda Ellis: Ellis teoriza sobre a existência de duas concepções básicas de vida pós-morte: uma de outra vida após a destruição do corpo, e a outra de uma vida na terra, ou embaixo dela; segundo esta última concepção o homem falecido continuaria vivendo em seu local de enterramento, como si ali fosse uma casa, e ainda usufruindo de suas

184 WILSON, David. The Vikings and their origins: Scandinavia in the First Millenium. London: Thames and Hudson, 1970. P.102. 185 BARFORD, 181. 186 NOONAN. Thomas. Why the vikings came first to Russia? In: The Islamic World, Russia and the Vikings, 750-900: The Numismatic Evidence. Variorum Collected Studies Series, 595. Ashgate, 1998. Pp. 346-347. 94 possessões ali187. É razoável, portanto, pressupor uma conexão do entesouramento com tais concepções religiosas, que, destarte, providenciam bens para o falecido bens em sua vida post-mortem.

2.1.1.1 As Fontes

O acesso às coleções de dirhams encontradas nas regiões de Austrvegr e Garðaríki é dificultado pelas décadas de isolamento entre a URSS e o Ocidente. A principal forma de acesso a estas informações são por meio de autores com trânsito nos meios acadêmicos do leste da Europa e do Ocidente, como Thomas Noonan188 e, mais recentemente, Matheus Bogucki189. É necessário, portanto, se salientar que o estudo numismático, ao menos enquanto parte de nosso estudo maior, é um estudo baseado na interpretação acadêmica “canônica”, e não em uma análise das próprias coleções numismáticas. Tal estudo deve ser feito à parte, de formas que não cabem no escopo deste trabalho.

187 ELLIS, Hilda Roderick. The Road to Hel: A Study of the Conception of the Dead in Old Norse Literature. New York: Greenwood Press, 1968. 65. 188 Thomas Noonan publicou por mais de duas décadas material e análises da evidência numismática na Rússia Europeia e Báltico. É impossível não nos referirmos a ele extensamente: NOONAN, Thomas. Pre- 970 dirham hoards from and Latvia, I: Catalog. In: Journal of Baltic Studies, 8:3, 1977(a), 238- 259; Pre-970 dirham hoards from Estonia and Latvia, II: General considerations. In: Journal of Baltic Studies, 8:4, 1977 (b), 312-323; Pre-970 dirham hoards from Estonia and Latvia, III: An examination of the ninth century hoards. In: Journal of Baltic Studies, 9:1, 1978(a), 7-19; Pre-970 dirham hoards from Estonia and Latvia, IV: An analysis of the hoards buried between 900 and 970. In: Journal of Baltic Studies, 9:2, 1978 (b) 99-115; Ninth-century dirham hoards from Northwestern Russia and the Southeastern Baltic. In: Journal of Baltic Studies, 13:3, 1982, 220-244; A dirham hoard of the early eleventh century from northern Estonia and its importance for the routes by which dirhams reached Eastern Europe CA. 1000 A.D In: Journal of Baltic Studies, 14:3, 1983, 185-201; Dirham hoards from medieval . In: Journal of Baltic Studies, 23:4, 1992, 395-414; The Islamic World, Russia and the Vikings, 750-900: The Numismatic Evidence. Variorum Collected Studies Series, 595. Ashgate, 1998 (a).; Ninth-Century Dirham Hoards from European Russia: a Preliminary Analysis. In: The Islamic World, Russia and the Vikings, 750-900: The Numismatic Evidence . Variorum Collected Studies Series, 595. Ashgate, 1998(b); Why the vikings came first to Russia? In: The Islamic World, Russia and the Vikings, 750-900: The Numismatic Evidence. Variorum Collected Studies Series, 595. Ashgate, 1998(c). 189 BOGUCKI, Mateusz. The Beginning of Dirham Import to the Zone and the Question of Early Emporia. In: LUND HANSEN, Ulla, BITNER-WRÓBLEWSKA, Anna (eds.). Worlds Apart? Contacts Across the Baltic Sea in the , Network - 2005-2008, Det Kongelige Nordiske Oldskriftselskab Państwowe Muzeum Archeologiczne (Copenhagen (et al.), 2010), pp. 351- 361. 95

2.1.1.2 Os khazares e os árabes

O contexto de origem dos Dirhams auxilia grandemente na compreensão das suas diversas proveniências, bem como nos possíveis meios de chegada dos mesmos ao norte, além do estabelecimento de balizas cronológicas. É importante o destaque de que a proveniência dos dirhams no norte é o Oriente Médio, e não a Ásia Central190. destarte, é-nos necessário adentrarmos, ao menos de forma limitada, o mundo muçulmano de então.

Entre 602 e 628 ocorre à chamada guerra “Bizantina-Sassânida”, que marcará o fim do império persa sassânida. Em seu primeiro estágio, de 602 a 622, os persas terão sucessos constantes. Durante o governo de Heráclio ao trono bizantino (610-641), a situação muda. Em 627, auxiliados também pelos khazares, as forças de Heráclio invadem o próprio território dos sassânidas, que pagam tributo por paz.

Após esta guerra tanto os bizantinos quanto os persas estavam exauridos. Os islâmicos saíram favorecidos. Os primeiros esquadrões árabes a adentrar o território persa não foram vistos como uma ameaça pelo governante Yazdegerd III e pelo vice-rei Rostam-e Farokhzad. A organizada cavalaria pesada persa, efetiva contra os regimentos bizantinos, não o era contra os camelos leves árabes. O uso de elefantes inicialmente teve sucesso, mas logo veteranos árabes que já haviam combatido contra os bizantinos na Síria (que também os usavam) trouxeram o conhecimento de como lidar com eles.

Com a morte de Maomé em 632 e a disputa subsequente pelo poder, surge o primeiro dos quatro califados da história muçulmana – o califado Rashidum - , que parte para uma série de campanhas militares e conquistas, sob a liderança inicial do califa entre 632-634, Abu Bakr (Abdullah ibn Abi Quhafa), sogro de Maomé, e subsequente do califa Umar (ʿUmar ibn al-Khaṭṭāb), morto em 644.

Após uma inicial invasão da Mesopotâmia em 633, em 636 deu-se um marco da conquista árabe, com a chamada “Batalha de Qadisiyyah”, que foi chave para a conquista árabe do Iraque, e que também viu uma aliança entre os persas com os bizantinos, através do casamento da filha de Heráclio com Yazdegerd. Em um processo complexo e marcado por revézes, a Mesopotâmia foi conquistada pelos árabes entre 636

190 NOONAN, Thomas. Ninth-Century Dirham Hoards from European Russia: a Preliminary Analysis. In: The Islamic World, Russia and the Vikings, 750-900: The Numismatic Evidence . Variorum Collected Studies Series, 595. Ashgate, 1998(b).P. 51. 96 a 638. Entre 638 e 639, a Armênia – então, possessão bizantina é invadida, sendo completamente conquistada em 642191.

Entre 638 e 641 ainda ocorrerão constantes reides dos persas na região da Mesopotâmia. A província do Khuzistão é conquistada pelos árabes em 641. Porém o califa Umar desejava paz – os árabes ainda viam os persas com temor. Após um breve período de paz, a Pérsia é conquistada entre 642 e 644, sendo que na segunda metade do século VII já tinham assegurado controle da Transcaucasia. Os anos seguintes foram palco das chamadas “guerras árabe-khazar”. Destacam-se duas: a primeira, em 652, quando os árabes foram derrotados pelos Khazares na cidade Khazar de Balanḡar, e a segunda, entre 708 a 737192-193.

Na segunda guerra ocorreram vitórias de ambos os lados; entretanto, travavam- se raides em ambas as vertentes do Cáucaso, ocorrendo poucas batalhas decisivas. Em 730 o príncipe khazar Barjjk efetuou uma excursão até o noroeste do Irã, derrotando os Umíadas em Ardabil e matando seu governante, mas sendo morto no ano seguinte em Mosul194.

Um ponto marcante dá-se em 737, quando os árabes, liderados por Marwan ibn Muhammad (o futuro califa umíada Marwan II), efetuam uma campanha mais significativa contra os khazares. Derrotam-nos no Cáucaso do norte, chegam a ocupar a capital khazar Atil e perseguem o Kagan até a região de Burtas, no baixo Volga, aonde o convencem a se render e se converter ao Islamismo. Após isso Marwan retorna à Transcaucásia, e o Kagan recupera sua independência 195.

Nenhum dos dois lados conseguiu, portanto, submeter o Cáucaso inteiro, e a situação não era sustentável. Para os Khazares ficou claro o perigo que era a guerra contínua com os árabes, tendo tido suas forças destruídas e seu governante humilhado. Quanto aos árabes, ficou claro que não era suficiente derrotar as forças khazares: o adequado seria ocupar seu território196.

A situação muda com a chamada “Revolução Abássida”, quando o califa al-

191 SAUNDERS, J.J. A History of Medieval Islam. London & New York: Routledge, pp.50-53. 192 SAUNDERS, J.J, 50-58. 193 MAKO, Gerald. The possible reasons for the Arab-Khazar Wars. In: ALLSEN, Th.T., GOLDEN, P.B., KOVALEV, R.K.. & MARTINEZ, A.P. (eds). Archivum Eurasiae Medii Aevi (17). Wiesbaden: Harrassowitz Verlag, 2010. P.45. 194 MAKO, 47. 195 NOONAN, 1998 (b) 51. 196 MAKO, 56s. 97

Mansur inicia uma política de “detenté” com os khazares em 760. A situação de problemas econômicos, sociais, religiosos e políticos passados pelo califado favorece o estímulo à paz e comércio em detrimento das guerras e conquistas.

A oferta de “détente” é aceita de imediato pelos khazares, e o governador de Arminiyah é ordenado por Mansur a casar-se com a filha do Kagan. A despeito de outra batalha gerada pela invasão de forças khazares no Azerbaijão e Arran em 799/800, as hostilidades dão lugar ao comércio entre 760 e 800, e a preocupação dos khazares no campo militar se dá mais em relação aos bizantinos.

O rei Joseph bem Aaron, dos khazares (khagan ou bek – há disputa sobre seu status), governando aproximadamente entre 950 e 960, escreve ao rabino judeu Abu Yusuf (Hasbai ibn Shaprut), de Córdoba, que os Khazares protegiam o Cáspio (e consequentemente, os árabes) de ataques dos Rus197.

2.1.1.3 Rotas e cronologias

O estudo dos depósitos de dirhams, sua distribuição geográfica e datação, têm propiciado reconstituições plausíveis do desenvolvimento das rotas comerciais escandinavas com o Oriente Próximo. O desenvolvimento da Arqueologia e acúmulo de dados têm trazido segurança a hipóteses elaboradas próximas da década de oitenta acerca dos primeiros movimentos escandinavos a leste. Thomas Noonan198 apresenta os estudos numismáticos compreensivos mais detalhados sobre tais movimentações, fundamentado em grande parte em bibliografia soviética inacessível aos pesquisadores ocidentais. Seus estudos buscam responder à pergunta de por que os escandinavos aventurarem-se no interior da Rússia, e acabaram por tornar-se referência para os estudos subsequentes. Comparativamente com Inglaterra e França, a Rússia de norte era razoavelmente pobre materialmente na transição entre os séculos XIII e IX. Dessa forma, a atração que as ilhas britânicas e o Ocidente, em particular seus monastérios desprotegidos, exerciam sobre os vikings é facilmente compreendida, mas não os porquês de escandinavos aventurarem-se na Rússia, considerando que a Escandinávia era mais rica materialmente do que a própria Rússia.

197 NOONAN, 1998 (b): 51s. 198 NOONAN. 1998 (c): 346-347. Ver nota 188 e as referências bibliográficas para uma listagem completa. 98

I. O Báltico: Austrvegr

O movimento escandinavo na Rússia foi de início, um subproduto da atividade Escandinava no Báltico Oriental, que remontava há séculos antes do início do Período Viking e incluía tanto a execução de expedições rápidas de saque e comércio como de própria habitação e construção de ocupações. Do Báltico Oriental e da própria Suécia, o acesso à região do Ladoga era facilitado. A “rota de leste”, o “caminho para leste”, são traduções possíveis para o termo “Austrvegr”, que pode ser aplicado às próprias rotas per si, ou à própria região báltica-oriental. Nos séculos V e VI as principais populações a comerciarem com a região de Garðaríki vinham do Báltico. A quantidade de depósitos de moedas na região da antiga Prússia e nas regiões eslávicas ocidentais mostram movimentos iniciais da parte de bálticos e eslavos ocidentais no que toca ao comércio e circulação de dirhams. No VI século um grupo escandinavo possivelmente teria residido na foz do Daugava199, nas proximidades ou na própria Daugmale (vide Mapa 02), fortificação no curso do Daugava que também assumiu papel de entreposto comercial. Arbman efetua descrição interessante do local. Daugmale dominava o trecho de navegação mais árdua do Daugava e, apesar de suas fortificações, fora queimada quatro vezes.200 Mas a confunde com Dünaburg (atual Daugavpils), localizada aproximadamente 200 km para o sul no curso do Daugava e construída apenas no século XIII. Ellis-Davidson efetua confusão envolvendo também a Daugavpils, considerando que uma citação de Saxo Grammticus trate da mesma201. Saxo, no entanto, viveu e escreveu antes da construção de Daugavpils, o que leva a pressupor que a fortificação do Daugava a qual ela se refere é Daugmale.

199 VERNADSKY. Ancient Russia. A History of Russia, Volume I. New Haven and London: Yale University Press, 1964. 6ºed [1943].p.266. 200 ARBMAN, Holger. The Vikings. London: Frederick Praeger, 1961. p. 96. 201 ELLIS-DAVIDSON, Hilda. Commentary. In: SAXO GRAMMATICUS, The History of the Danes. Tradução: FISCHER, Peter. II Vols. Woodbridge, Suffolk: Boydell & Brewer, 2006.[1979-80]. P.31 99

Mapa 02: Austrvegr e seus ramais

Legenda: 1 Ramo maior do Austrvegr 2 Rotas aquáticas locais principais 3 Presumida fronteira étnica balto - fino-úgrica 4 Colinas fortificadas e centros de poder 5 Cemitérios com enterramentos escandinavos 6 Entrepostos comerciais em colinas fortificadas

Fonte: VALK, Heiki. The Vikings and the Eastern Baltic. In: BRINK & PRICE (eds.). The Viking World. Routledge, 2008. p.486.

100

Essa circulação primitiva de Dirhams fora o impulso inicial, a atração primeva a dirigir escandinavos, principalmente os svear, para as regiões de leste. A despeito de vestígios no Golfo da Finlândia, a principal região de influência escandinava e que exemplifica a influência e interesse no leste nesses séculos iniciais é a Kúrland, em particular nas proximidades de Grobiņa (hoje na Letônia) e Apuole (hoje na Lituânia) (vide Mapa 02). Há grande quantidade de achados de origem ou conexão escandinava em Kúrland também em outros locais nas proximidades de Grobiņa: Priediens II, Porāni e Rudzukalns II, datados do período de Vendel, possuem conexões na região da atual península de Kaliningrado202. As escavações e obras de Birger Nerman demonstraram o estabelecimento de Svear e Gotar na região por um período aproximado entre os anos de 600 e 800. O estabelecimento dos Svear é marcadamente militar. Entretanto, os vestígios de povoamentos dos oriundos de Gotland apresentam características mais marcadamente comerciais, apresentando inclusive a presença de mulheres, possivelmente famílias203. O cruzamento com fontes escritas é possível. As fontes propriamente escandinavas apresentam problemas no que tange a uma historicidade estrita, factual, abrindo espaço para as discussões referentes ao entrelaçamento entre história e misto, fato e ficção, historicidade e narrativa. Entretanto, a Vita anskarii, de Rimbert, arcebispo de Bremen, traz uma narrativa aparentemente mais cronística e factual, que ao menos corrobora a presença sueca na Kurland em tais séculos. A crônica ofereceu muito material para a formulação das hipóteses de Berman, é a situação toda é um exemplo feliz de Arqueologia Histórica. Ainda por Rimbert temos a informação de que ocorrera uma rebelião da parte dos kurs, que expulsaram os svear, seguida de um domínio mais fundamentado em extorsão de impostos da parte dos daneses. Dessa forma, é plausível a hipótese de que to século VII reis suecos tenham tido uma possessão na Kurzeme. Nesse mesmo século já havia contatos entre escandinavos e habitantes da região de Ladoga, então majoritariamente fino-úgrica, mas interagindo comercialemente com poucos mercadores escandinavos, baltos e saami, mas ainda não os povos eslávicos204. No começo do século VIII supostamente Livonia e Estonia eram parte do reino de Ivarr,

202 ANDROSHCHUK, 517s. 203 NERMAN, Birger. Funde und Ausgrabungen in Grobiņa, 1929. In: Congressus Secundus Archaeologorum Balticorum Rigae, 19.-23. VIII. 1930. Riga, 1930. pp.195-206. 204 DUCZKO, 64. 101 rei da Suecia de sul e Dinamarca205. Após a consolidação do poder no litoral, gradativamente os escandinavos passariam a explorar mais profundamente o interior (vide Mapa 03). Nessas primeiras duas décadas do século VIII ocorreram modificações no sistema comercial de longas distâncias entre o Báltico e o mundo islâmico, em movimento derivado do crescimento dos mercados islâmicos e khazares ao sul e consequente aumento de demanda de produtos setentrionais, dos quais se destacavam peles, mas também escravos. Dessas décadas datam os primeiros vestígios de um comércio envolvendo prata, como se depreende da datação de depósitos de dirhams encontrados não apenas na Rússia de Noroeste, mas na própria Suécia, Pomerania e Mecklenburgo; a concentração dessa prata nesse período inicial, entretanto, dá-se principalemente nas regiões dos eslavos ocidentais206. O caminho do Daugava provia de início a melhor opção para a exploração das regiões de leste, consistindo na rota mais natural; provavelmente terá sido o primeiro caminho a pavimentar o avanço Escandinavo na Rússia rumo a um mercado lucrativo, a despeito do grande número de portagens e cachoeiras necessárias para se transpor. Os habitantes das margens do Daugava, Baltos e fineses, ofereciam pouca unidade e eram esparsos. Os varegues não teriam tido problemas em primeiro comerciar e depois dominar207. Nas partes superiores do rio, nas proximidades da posterior Polotsk, já encontrariam-se alojados povos eslávicos, mas aparentemente não muito organizados. Kerner e Vernadsky defendem que nesse período inicial os escandinavos teriam passado diretamente sem se deter pela região de Novgorod, chegando à região com as nascentes tanto do Daugava quanto do Dnieper, próximo às nascentes do Volga208(vide Mapa 03). Em relação ao Dnieper, uma expansão inicial não teria ido de imediato muito longe ao sul, já que a região teria grupos de lituanos e eslavos melhor organizados e capazes de oferecer melhor resistência.

205 VERNADSKY. 266. 206 DUCZKO, 63. 207 Ibidem. 208 VERNADSKY, 268. 102

Golfo de Riga

Volga

Daugava (Düna/Zapadnaya Dvina)

Dniepr

Mapa 03: Principais rios ligados à Rota do Daugava. Do autor. Feito com a ferramenta “Mapmaker Interactive”, da National Geographic (TM)..

103

II. A Rus de norte: Ladoga

Seja pelas dificuldades impostas pelos nativos ou por características geográficas, fica notório pelo estudo da Cultura Material que as principais rotas comerciais a serem desenvolvidas pelos escandinavos em Garðaríki tenderiam a dirigir-se mais para o norte, atravessando o Golfo da Finlândia. A despeito do grande número de vestígios encontrados também pela rota que cruza o Daugava, é clara a maior relevância que a rota setentrional assumiria; e, de fato, como já afirmado anteriormente, houvera já contato pré-histórico a perpassar a região. A prata dos Dirhams enquanto motor comercial irá contribuir na geração de um sistema econômico particular na futura região de Garðaríki. Paulatinamente os escandinavos vão apropriando-se das rotas e meios propícios a esse comércio, diminuindo cada vez mais a necessidade de intermediários. Dessa forma, sua penetração na Rússia pelos rios é gradual. Os primeiros entrepostos comerciais ficam nas proximidades do Golfo da Finlândia, Lago Peipus/Pskov e Lago Ladoga (vide Mapa 01), na cidade chamada pelos escandinavos de Aldeigja – a Staraia Ladoga dos eslávicos, na qual existem vestígios de contatos com escandinavos, ainda que em menor grau, desde a idade do ferro209. A população inicial de tais regiões é majoritariamente fino-úgrica, com componente balto relativamente alto, mas decrescente. Há registro de contatos pré- históricos com populações da Suécia Central via ilhas Åland, e vestígios arqueológicos de objetos escandinavos nas regiões além do Volga, em Perm210. Os eslavos orientais também gradualmente irão conquistando o norte, desalojando as populações nativas e misturando-se com elas. Como já discutido em seção anterior, argumenta, segundo informação mista arqueológica e linguística (no campo da toponímica) que a região de expansão dos povos Bálticos teria chegado até as proximidades da atual Moscou. Os estudos linguísticos igualmente demonstram o grau de influência e mistura sofrido e exercido pelos eslavos orientais em relação aos povos fino-úgricos. Igualmente, estudos etnográficos demonstram o grau de influência báltica encontrado nas populações eslávicas da Bielorússia atual – influência que, não obstante deve muito ao período da República Polaco-Lituana na Idade Moderna, possui substrato pré-histórico. Este complexo processo de controle econômico escandinavo e expansão

209 ANDROSHCHUK, 520. 210 DUCZKO, 65. 104 territorial eslávica não permite uma postura totalmente exclusivista no que toca à controvérsia normanista. É adequado, entretanto, dar suporte à idéia que o desenvolver inicial da Rus ocorreu em um processo no qual uma minoria escandinava passava gradualmente a deter um monopólio econômico sobre uma população principalmente eslávica. Entretanto, o nível cultural e tecnológico de ambas não era tão distinto. As localidades mais importantes nesta fase serão Gniozdovo, próxima a Smolensk e à região de encontro da fonte dos grandes rios (Daugava, Dniepr e Volga) e Staraia Ladoga, ao norte (vide Mapa 04). A última consiste na única cidade de alguma significância de fato de toda a Rússia de Noroeste no período medieval primitivo. De acordo com os estudos arqueológicos, desenvolveu-se na metade de século VIII211. Os soviéticos datavam os escandinavos em Ladoga entre 840 e 850, mas o registro arqueológico sugere uma ocupação, na verdade, no extrato mais antigo, entre 750 a 830. O achado mais pertinente a esse respeito é uma coleção de 26 ferramentas de ferreiro, de origem Escandinava ou Norte-européia (Báltica?) em uma oficina datada pela dendrocronologia da década de 760212. A probabilidade maior é de que um empório sazonal escandinavo tenha sido fundado próximo a 750, e que a ocupação por um grupo permanente de escandinavos tenha se dado a partir do início do século IX, quando um cemitério puramente escandinavo passou a funcionar nos arredores de Ladoga213. Os escandinavos foram atraídos para Ladoga pelo surgimento de dirhams, valorizados pela falta de fontes de prata tanto na Rússia quanto na Escandinávia. A análise dos depósitos de dirhams na Rússia e no Báltico sugere que eles, a despeito do conhecimento prévio, pré-histórico, ali chegaram com interesses comerciais mais amplos, e mesmo intuitos de residência ao final do século VIII, logo crescendo em número e regularidade; o vestígio arqueológico atesta sua presença, seja na forma de pentes, calçados, têxteis, broches, um cajado com inscrições rúnicas e mesmo jogos214.

211 NOONAN 1998 (c), 346. 212 Ibidem. 213 Ibidem. 214 DUCZKO, 69s. 105

Ladoga Golfo da Finlândia

Lago Peipus (Pskov)

Para Kiev e Bizâncio

Mapa 04: Principais rios ligados aos movimentos escandinavos na Rus na região do Alto Volga. Do autor (feito com MapMaker Interative – National Geographic)

106

Parte razoável desses dirhams chegaram à Rússia com propósito de pagamento às populações das bacias do Volga e do Dniepr por produtos locais, em particular peles. Entretanto um percentual alto de tais moedas, talvez até da ordem de 36%, era reexportado para o Báltico215.O tráfico regular de dirhams entre Rússia e Escandinávia via Ladoga se iniciou no princípio do século IX, constituindo-se em evidência adicional da presença escandinava em Ladoga bem antes de 840.

III. Rostov, Suzdal e Murom

Seja vindo pelo ramo do Austrvegr do Daugava ou da região de Ladoga, a próxima área a ser atingida seria a de Rostov, Suzdal e Murom (vide Mapa 04), na qual se encontra quantidade considerável de achados tipicamente escandinavo como fíbulas ovais e espadas216. O acesso inicial a esta área deu-se, de acordo com Vernadsky217, através do rio Kotorosl, tributário do Volga que chegava até às proximidades de Iaroslav. A etapa seguinte fora o lago Nero, aonde se situa Rostov (vide Mapa 04). Há uma portagem ali para o rio Nerl, que é um tributário do Kliazma – por sua vez tributário do Oká. Dessa forma os varegues teriam chegado na bacia do Oká. Também para Vernadsky218, os Escandinavos devem ter chegado a exercer um domínio sobre os fineses da região de Rostov e Suzdal já no século VIII. De fato, Sarskoie Gorodichtche contém os vestígios mais antigos da presença escandinava na região do Volga219.

IV. Os povoamentos pareados

Existem pares de povoamentos ou entrepostos comerciais com duas camadas distintas no próprio local, ou que demonstram ter sucedido um ao outro em uma localidade geográfica próxima. Esta circunstância é bastante sugestiva no sentido da existência de povoado autóctone balto ou fino-úgrico com influência escandinava sucedido por um povoamento eslávico, enquadrando-se no processo de expansão eslava para as terras do norte, que se deu a partir da segunda metade do século X220.

215 NOONAN 1998 (c), 346. 216 VERNADSKY, 268. 217 VERNADSKY, 269. 218 Ibidem. 219 DUCZKO, 190. 220 DUCZKO, 189. 107

Dentre tais povoamentos pareados destacam-se Gniozdovo/Smolensk, Timerevo / Iaroslav e Sarskoie Gorodichtche/Rostov (vide Mapas 03 e 04). O caso de Sarskoie Gorodichtche/Rostov é emblemático dessa situação: As escavações em Sarskoie Gorodichtche iniciaram-se em 1854, sendo conduzidas pelo conde Alieksiei Uvarov. Entre os achados encontraram-se objetos de origem escandinava e ocidental, incluindo uma espada Carolíngia com a inscrição latina “Lun fecit” e dois depósitos de dirhams. Outro depósito de dirhams da vizinhança possuía inscrições rúnicas.

Os achados escandinavos datam do século IX em diante. O registro indica também a coexistência pacífica de fino-úgricos (meria) e varegues nos séculos IX e X. Há um predomínio de inumações.

O sítio demonstra que a cidade entrou em declínio a partir do século X. Por datação dendrocronológica, sabe-se que o pavimento mais antigo de Rostov data de 963, sendo interessante notar a concordância entre o declínio de Sarskoie Gorodichtche muito próximo ao início do florescimento de Rostov – desta feita, com um caráter mais notoriamente eslávico.

No caso de Gniozdovo / Smolensk, o declínio da primeira coincide com a emergência de Smolensk no início do século XI221. Há número considerável de achados arqueológicos tipicamente escandinavos em Gniozdovo, incluindo vestígios funerários de cremações em barcos222.

Figura 02: Espada em estilo viking escavada em 1950 em Gniozdovo. Início do X. Fonte: Гнёздовский археологический комплекс, 2001.

221 АВДУСИН, Д.И. К вопросу о происхождении Смоленска и его первоначальной топографии: Смоленску 1100 лет. Смоленск, 1967. Pp. 71s. 222 ANDROSHCHUK, 526. 108

V. Rumo ao sul: Bizâncio e Serkland

O desenvolvimento dessa rede econômica escandinava, ensaiado na região báltica e iniciado nas regiões fino-úgricas do norte da Rússia, vai disseminando-se para o sul e leste. O gradual eliminamento de intermediários leva os escandinavos a desenvolverem uma rota comercial direta com os Khazares que, habitando a região ao norte do Cáucaso, são os intermediários com o mundo muçulmano produtor dos Dirhams. O poderio dos khazares não foi passível de ser subjugado pelo pequeno número de escandinavos no início do processo, sendo conquistado apenas em séculos posteriores por uma Rus já de caráter bastante eslávico e nativo. Dessa forma, a principal via comercial que se estabeleceria pelos escandinavos levava-os diretamente ao comércio com os Khazares. Seguia a região do Ladoga até o Volga. Na área de Bolghar trocavam-se peles e cêra pelos dirhams.

Bolghar

Para o mundo Khazar e árabe (Serkland) Volga

Mapa 05: A Região de Bolghar e o entreposto com os Khazares Do autor.

A obtenção desses produtos nativos levou ao desenvolvimento simultâneo de outra rota comercial, dirigida ao sul – desta feita, via o Dniepr e a região das fontes dos grandes rios (vide Mapa 04). É nesta área que a relação escandinava-eslávica será o impulso formador da Rus. A fim de obter matéria-prima para troca por dirhams com os 109

Khazares, mais a leste, os escandinavos desenvolveram uma extensa rede de obtenção de tributo das populações locais, fossem fino-úgricas, bálticas ou eslávicas. As tribos eslávicas orientais, maioria populacional do contexto, têm papel de destaque na situação, gradualmente substituindo as populações nativas fino-úgricas e bálticas mais setentrionais. Os extratos mais antigos escavados nos empórios comerciais demonstram uma presença escandinava forte, bem como fino-úgrica. As camadas mais superiores e recentes, por sua vez, vão demonstrar cada vez mais a presença do elemento eslávico. Resta ainda um aspecto relevante nesse contexto do contato com Bizâncio que os escandinavos terão em sua marcha para o sul. A riqueza e os atrativos materiais e culturais de Bizâncio formaram uma impressão duradoura e poderosa na mentalidade escandinava. Ocorre mesmo a formação da chamada “guarda varegue”, um corpo de elite de guarda-costas formada principalmente por varegues, a serviço dos governantes de Bizâncio. A participação nesta guarda de elite será elemento de honra para diversos dos personagens escandinavos, sejam fictícios ou reais, e encontrará eco nas fontes de séculos posteriores, como trataremos mais detalhadamente no capítulo 04. Dessa forma, sob o ponto de vista mais estritamente econômico de análise, fortalecido pelo estudo numismático, é possível delinear-se uma rede complexa de rotas comerciais e de atrativos para os Escandinavos no leste. Um movimento modesto de início, entremeado de intermediários, vai gradualmente desenvolver uma estrutura que incorporava as rotas da Escandinávia via Golfo da Finlândia/Ladoga e Daugava, do Volga rumo aos Khazares e do Dnieper rumo a Bizâncio. Um sistema que desenvolverá uma forte estrutura social e econômica de caráter étnico misto, com predominância inicial de gerenciamento escandinavo, e posterior eslavização, tanto da estrutura de poder como das populações nativas das regiões envolvidas. Esse sistema gerará um imaginário persistente na memória escandinava, que atrairá muitos aventureiros, guerreiros e mesmo pregadores, e fornecerá temática para uma ampla formulação intelectual, em particular nos séculos XIII e XIV, período no qual a Rus de Kiev já estará em decadência, o poderio Khazar foi destruído pelos Rus, e as estepes do sul da Rússia são varridas por movimentos nômades das estepes, já não mais bloqueados pela força dos Khazares. O próprio relacionamento dinástico entre as elites dirigentes escandinavas e russas demonstrará a perenidade das relações entre Escandinávia e Rus. 110

O início desse sistema deu-se quando outros povos do Báltico além dos Escandinavos foram atraídos para Ladoga e sua prata islâmica. Provavelmente os maiores responsáveis por muitos depósitos de dirhams do início do século IX das costas das atuais Alemanha e Polônia foram eslavos ocidentais (ou eslavos do báltico) 223. Mas ainda que muitos povos bálticos tenham sido atraídos para Ladoga, à evidência disponível sugere fortemente que os escandinavos foram os únicos desses a se aventurar no interior da Rússia em busca da fonte dessa prata224. Em 839 os varegues estavam tão familiarizados com o interior da Rússia e seus rios que chegaram por ali até Constantinopla. Isto indica que levou apenas uma geração, entre aproximadamente 800-840, para que os escandinavos descobrissem como viajar para o sul através da Rússia usando as grandes vias aquáticas da Europa Oriental225. Dessas décadas em diante desenvolver-se-ia uma nova fase de expansão.

2.2 As estelas rúnicas

As estelas rúnicas são testemunhos materiais, iconográficos e de caráter escrito, ainda que formulaico, sobre as ações escandinavas a leste no período viking. Fornecem informações sobre a proveniência dos varegues, seus destinos, o conhecimento e terminologia geográficos sobre o leste, dentre muitas outras informações sobre o período viking. Os aspectos geográficos e etnográficos de algumas estelas foram de certa forma empregada nesse trabalho no capítulo 3, item 3.1, “Quadro etno-linguístico de Austrvegr e Garðaríki entre os séculos VIII e XIII”. Apresentaremos agora, de forma mais detalhada, tal série de fontes, portanto, extraindo das mesmas informações pertinentes em nossa tentativa de construção de um quadro plausível das relações entre Escandinávia, Austrvegr e Garðaríki no período viking.

223 NOONAN 1998 (c), 346. 224 Ibidem. 225 Ibidem. 111

2.2.1 Sobre as estelas rúnicas

O significado de Runa nas línguas escandinavas está ligado a “mistério”, “segredo”226. Possivelmente trata-se de um cognato oriundo das línguas bálticas ou mesmo fino-úgricas, nas quais os significados do termo transitam próximos a “falar”, “cantar”227. Há mais de uma série de agrupamento de caracteres que chamamos de “rúnicos”, incorporando povos germânicos da Europa continental, nas ilhas britânicas e principalmente na Escandinávia. Todos tem em comum o fato de serem meios de expressão próprios de populações de língua germânica, em suas diversas ramificações. Assim como a maioria dos alfabetos europeus, a origem longínqua da escrita rúnica remonta ao alfabeto fenício. Do mediterrâneo, tal sistema de escrita inovador, baseado em fonemas simples (ao invés de sílabas e/ou conceitos como nas escritas hieroglíficas, ideográficas e cuneiformes) percorreu um longo caminho por diversas terras, tomando diversas formas e influências, tornando-se a forma de expressão de número incontável de povos. No caso das populações germânicas a opinião de maior aceite, desenvolvida simultaneamente por Marstrander e Hammarströmm entre as décadas de 1920 e 1930, considera as runas como caracteres derivados de alfabetos da região norte da Itália e da Etrúria, implicando assim certo parentesco da escrita rúnica com o próprio alfabeto latino - do qual posteriormente sofreu influências e incorporou alguns caracteres228. Tal derivação teria se dado em período no qual as inscrições do norte da península itálica não estariam ainda extintas, a despeito da existência e predomínio do latim, e ocorreu pelo contato de alguma tribo germânica (os Marcomanni, para Marstrander; os Cimbri, para Altheim e Trautmann) com povos norte itálicos, provavelmente célticos. Tal afirmação não é de difícil confirmação. Basta notar a própria semelhança de muitos dos caracteres rúnicos com os caracteres capitais do alfabeto latino. Por exemplo o “F”, “U”, “R”, o “I”, o “M” (em algumas derivações), o “S”, o “T”, o “B”, e assim por diante. Na maior parte dos casos é possível traçar a conexão epigráfica, demonstrando conexões entre caracteres que, à um olhar simples, dificilmente seriam aparentados.

226 SPURKLAND, Terje. Norwegian Runes and Runic Inscriptions. Woodbridge: The Boydell Press, 2005[2001].p. 03. 227 O termo empregado para os diversos cantos do Kalevala, épico finês, por exemplo, é “runo”. Em letão, língua báltica indo-europeia, o verbo runat significa “falar”. 228 ELLIOT, 1963: 06s. 112

Tabela 01: “Runes and North Italic letters”. Obtido em: ELLIOT. Runes: an introduction. Manchester: at the University press, 1963, p.08.

Existem evidências arqueológicas de que a escrita rúnica era conhecida já no século II229. Seu uso se estendeu por toda a Idade Média, e em alguns casos foi paralelo ao emprego do alfabeto latino. Na região sueca da Dalecarlia, seu uso foi registrado ainda na Idade Moderna.

229 SPURKLAND, 2005: 04. 113

O alfabeto rúnico é conhecido como “fuþark” ou variantes deste nome (como “futhorc”). Deve-se à ordem mais comum em que os fonemas dessas escritas são listados: f, u, þ, a, r, k, h, n, i, a, s, t, b, m, l, R. Há diversos variantes do fuþark, de acordo principalmente com o número de caracteres e um critério cronológico; tais variantes, entretanto, não consistem em entidades fechadas. É possível se encontrar testemunhos materiais que empregam caracteres mistos de conjuntos distintos. Sua primeira forma é chamada de antigo fuþark. Esta modalidade, bem como suas variantes, foi empregada tanto na Europa continental (entre os séculos II-IX) quanto na Escandinávia (nos séculos VII-VIII). Possuía basicamente 24 caracteres:

Figura 03: “Den utnordiska runraden”. Obtido em JANSSON, Sven. Runinskirfter i Sverige. Uppsala: Esselte Herzogs, 1984. P. 13.

Entre os séculos VIII e IX as modificações nas línguas germânicas foram acompanhadas por mudanças também nas formas de escrita, que acarretaram uma simplificação e diminuição no número de caracteres, reduzidos para 16. Esta nova forma foi chamada de Novo fuþark, e foi empregada primordialmente na Escandinávia, principalmente nas Estelas rúnicas. Possui duas variantes, chamadas “runas normais”, ou de “ramas/pernas compridas”, e “Runas de ramas/pernas curtas”:

Figura 04: “Den 16-typiga runradens två varianter: Normalrunor, Kortkvistrunor”. Obtido em JANSSON, Sven. Runinskirfter i Sverige. Uppsala: Esselte Herzogs, 1984. P. 28.

114

Outro grupo de variações importante é chamado de fuþork anglo-saxão, ou inglês. Continha entre 26 a 33 caracteres dependendo da região e variante (Thames, Vienna, Codex Othonis, Ruthwell, etc.). Foi empregado principalmente entre os séculos V-XI na Inglaterra anglo-saxã, registrando escritos em antigo inglês e antigo frísio.

Tabela 02: “Old English futhorcs and the Ruthwell runes”. Obtido em: ELLIOT. Runes: an introduction. Manchester: at the University press, 1963, p.39.

115

Existem diversas outras variantes; por exemplo, as chamadas “runas marcomânicas”, empregadas no continente entre os séculos VIII-IX, as “medievais”, encontradas na Escandinávia dentre os séculos XII-XV, e as dalecarlianas, usadas na Suécia tão tardiamente como o período compreendido dentre os séculos XVI-XX. Esses grupos possuem características dos grupos descritos acima. E, por fim, há de-se salientar que em alguns casos, principalmente nas Ilhas Britânicas, ocorre o emprego de caracteres de sistemas agrupados como distintos pelos acadêmicos – por exemplo, mistura de runas anglo-saxãs e escandinavas230.

2.2.2 A distribuição das inscrições rúnicas

Há cerca de 6.000 inscrições rúnicas na Escandinávia, aproximadamente a metade em monumentos de pedra231. O restante é encontrado principalmente em objetos de madeira, mas também de metal e osso, como ferramentas, armas, moedas, sinos de igreja e pias batismais. O uso da escrita provavelmente não foi restrito aos extratos mais elevados da sociedade. Esta ideia de restrição é passada por uma soma de fatores: o melhor estado de conservação das inscrições monumentais, registrada em pedra, e erigidas por pessoas de recursos; relatos de origem aristocrática, como o contido na Egils saga Skalagrímssonar, no qual o skaldr e aristocrata Egil corrige um uso errôneo da escrita rúnica, com propósitos mágicos, feito por alguém de extrato social inferior – uma passagem muito rica para discussões sobre letramento, conflitos culturais e sociais, e mesmo religiosidade. Por fim, a ideia preconcebida de que a escrita está sempre associada a um extrato social “superior”. Entretanto, há de se notar que o entalhe de uma inscrição rúnica – que consiste principalmente de traços horizontais – necessita apenas de uma faca ou objeto cortante e um pedaço de madeira. Foram encontrados muitos objetos contendo atividades do cotidiano, possíveis contratos de venda, objetos com o nome de seu dono, que revelam um uso mais difundido do que se imagina. Um paralelo interessante pode ser traçado com ao achado de cartas e bilhetes escrito por crianças em carta de bétula na cidade de Novgorod, na Rus de norte. Cidade de antigo predomínio escandinavo acrescenta elementos interessantes à discussão do

230 RENTERGHEM, Aya Van. And Now for Something Completely Different? Runic Confusion Now and Then. Comunicação apresentada na seção 823 no International Medieval Congress of Leeds, 08/07/2014. 231 ZILMER, 2005: 38. 116 letramento nas regiões de contato multicultural ou ditas “periféricas” da Europa no medievo. A discussão sobre letramento no medievo assume mais de uma conotação. Em termos mais estritos, remete ao conceito de um certo grau de conhecimento e emprego do latim; uma pessoa letrada, “litteratus”, o é em contraposição ao “illiteratus”, o “laicus”, e nesse campo pode ser designada uma pessoa que, ainda que não conhcendo o latim faça uso de outra forma de escrita – por exemplo, a rúnica232. Letramento, entretanto, pode implicar no conhecimento de uma escrita – seja latina ou não233. De fato, tal conceito mais amplo apresenta-se como muito mais adequado no caso das regiões escandinavas que presenciaram o emprego de escrita por séculos antes da inserção da cultural cristã e latina. Nos séculos após a conversão à Cristandade, entretanto - e é nesse período no qual as estelas rúnicas em particular tiveram maior florescimento – as duas formas de escrita, latina e rúnica, coexistiram. Entretanto, com propósitos, funções e limitações diversas. Os meios de escrita, por exemplo, delimitam grandemente o emprego da mesma. O custo de pergaminhos e ferramentas envolvidas na confecção de manuscritos torna seu uso bastante circunscrito a atividades de maior vulto, de relevância institucional ou religiosa em um contexto cristão-latino. Tal não se dá, no entanto, com o entalhe de runas, que pode ser efetuado em material de fácil acesso como pedaços de madeira com o emprego de ferramentas de igualmente fácil obtenção - como uma faca. Arqueologicamente, a escrita é uma tecnologia, uma técnica. Como tal, seu domínio apresenta vantagens a seu portador, àquele que a domina. destarte, pode ser empregada como forma de dominação e poder. Nesse sentido, o domínio da escrita, o letramento assume um papel de atividade cultural, de uma prática; uma habilidade, um padrão de comportamento que se apresenta associado a ideologias desenvolvidas em resposta a esses mesmos padrões de comportamento234. O relato da Egilssaga, por exemplo, pode revelar ao estudioso nuances interessantes das sociedades escandinavas, como a gradual concentração de poder e

232 BAUML, Franz H. Varieties and Consequences of Medieval Literacy and Illiteracy. Speculum, 55, 1980, pp. 237-265; CLANCHY, M.T. From memory to written record: England 1066-1307. Oxford: Blackwell, 1993. Pp.224-252. 233 STOCK, Brian. The Implications of Literacy: Written Language and Models of Interpretation in th Eleventh Centuries. Princeton: at the University Press, 1983. P.06. 234 LERER, Seth. Literacy and Power in Anglo-Saxon Literature. Lincoln: University of Nebraska Press, 1991. P. 22. 117 terras da parte de elites, e a tentativa das mesmas de se assegurar para si o domínio de técnicas que garantam privilégios. O emprego de duas escritas distintas, oriundas de contextos culturais tão diversos, apresenta ainda maior número de variantes e torna a questão mais complexa e multifacetada. Terje Spurkland prefere empregar o termo “runacy” ao invés de “literacy”; considera o uso de “runic literacy” uma idiossincrasia, pela referida dualidade e complexidade cultural envolvida em seu emprego. Tal dualidade implicaria em diversidade de expressões, de meios, de contextos comunicativos e de comunidades textuais. Dessa forma, não haveria, em contextos normais, a intersecção entre tais formas de “letramento”235. Poderíamos acrescentar diversos casos de anormalidade – por exemplo, o uso de formas latinas com caracteres rúnicos -, mas tais circunstâncias fogem ao nosso escopo. Por fim, é possível que o número de objetos com escritas rúnicas tenha sido muito maior, indicando um letramento - ou seu equivalente rúnico – mais amplo. A natureza perecível do material no qual foram confeccionadas – na maior parte das vezes, madeira – restringe o acesso que temos à esta informação. As variantes no próprio meio também são significativas dentro da própria Escandinávia. A Noruega apresenta um número considerável de inscrições em bastões e meios do cotidiano236, em contraste com o pequeno número de estelas encontradas em seu território. A maior parte do material que possuímos consiste em estelas runícas – monumentos erigidos em pedra contendo inscrições no futhark, em sua maioria no novo futhark, de 16 caracteres. Traduzimos como “estela rúnica” o termo sueco “runstenar”, no inglês “runestone”. Optamos por “estela” ao invés de “pedra” ou “rocha” por tratar- se de termo já de amplo uso na arqueologia ao referir-se a monumentos de pedra contendo inscrições ou representações, considerando que “pedra” ou “rocha” não passam uma dimensão adequada à natureza de tais artefatos. O costume de se erigir e entalhá-las começou no período das migrações, mas floresceu do final do X ao início do XII (+- 970-1170). Possui-se perto de 2.300 inscrições desse período, distintas dos períodos anteriores e posteriores237.

235 SPURKLAND, Terje. Literacy and ´Runacy´in Medieval Scandinavia. In: ADAMS, Jonathan & HOLMAN, Katherine (eds.). Scandinavia and Europe 800 – 1350: Contact, Conflict, and Coexistence. Turnhout, Belgium: Brepols, 2004. P. 344. 236 SPURKLAND, 2004: 334. 237 SAWYER, Birgit. 2008[2000]: 11. 118

As inscrições das estelas mais antigas são contrastantes, díspares, difíceis de agrupar por generalizações: algumas, mais longas, são obscuras, com o conteúdo variando grandemente, e algumas possuem fórmulas mágicas. As estelas posteriores são mais similares entre si, tanto em forma quanto em conteúdo. Suas inscrições são geralmente claras e factuais, bastante similares entre si na linguagem, fórmulas e conteúdo. A maior parte das estelas dos séculos X e XI foram erigidas para pessoas mortas. Praticamente todas inscrições iniciam-se com uma fórmula memorial contendo quem erigiu a estela – o patrocinador - e em memória de quem foi erigida – o homenageado. Em cerca de 90 % dos casos há alguma relação de parentesco entre ambos238. Frequentemente as estelas providenciam informações adicionais do patrocinador ou homenageado: status social, títulos, viagens no estrangeiro, feitos militares, causa e local de morte. Algumas inscrições terminam com o nome do entalhador. Feitiços, encantos e invocações de deuses pagãos são muito raros. Ocorrem na Dinamarca mas são excepcionais na Suécia aonde, ao invés disso, cruzes e orações cristãs são muito comuns, especialmente na região de Uppland. Apenas 10% das estelas referem-se a movimentos vikings. Destas, mais que 3/4 fala de vikings caídos nas regiões de leste. O restante das estelas trata de questões do cotidiano, herança e memória. Feitiços, encantos e invocações de deuses pagãos são muito raros. Ocorrem na Dinamarca mas são excepcionais na Suécia aonde, ao invés disso, cruzes e orações cristãs são muito comuns, especialmente na região de Uppland.

238 SAWYER, Birgit. 2008[2000]: 59-68 119

Diversas estelas desapareceram, e por vezez outras são descobertas, muitas vezes fortuitamente, em obras ou escavações. Sua distribuição geral, porém, dada a frequência e o padrão das estelas descobertas, não deve ser diversa do que se conhece: 50 na Noruega, 200 na Dinamarca medieval, (incluindo Halland, Blekinge e Skane, hoje na Suécia) e pelo menos 1.800 na Suécia medieval, sendo mais que a metade deste número na região de Uppland.

Mapa 06: Distribuição das estelas rúnicas na Suécia e Noruega por Km2 (Fonte: Sveriges nationalatlas, p.45)

A datação é incerta ao tratar-se de inscrições individuais. Há certos consensos aproximados quanto a datações regionais de cunho mais genérico. Na Dinamarca (com exceção de Bornholm) a maior parte das estelas data do final do século X ao início do XI. Em Västergötland e Östergötland as estelas são de certa forma contemporâneas com as danesas, sendo que no restante da Suécia um pouco mais recentes. Em Uppland (e Bornholm) as estelas foram erigidas apenas já passadas algumas décadas do século XI, sendo que em alguns lugares o costume perdurou ainda no século seguinte. Uppland possui a maior concentração de estelas rúnicas239. As estelas rúnicas são fontes de informação para diversas disciplinas acerca do período viking. Providenciam informações sobre linguagem e ortografia, arte e poesia, nomes de lugares e pessoas, conhecimento geográficoe etnológico, artesãos especializados, disseminação do Cristianismo.

239 SAWYER & SAWYER, 10. 120

Há ainda uma necessidade de estudos mais generalistas que incorporem as especificidades regionais, que se concentram normalmente em aspectos como linguagem, forma das runas, layout e ornamentos, deixando de notar que alguns aspectos são caracteristicamente regionais. As explicações sobre a curta duração do costume de se erigir estelas rúnicas, bem como sua distribuição desigual nos territórios escandinavos não possuem um consenso, ou uma teoria geral explicativa. No geral, as teorias explicativas defendem a existência de necessidades sociais às quais as Estelas rúnicas respondem. Segundo tal linha de raciocínio a distribuição desigual das estelas poderia mostrar que em algumas regiões as mesmas não eram necessárias. Apresentamos a seguir algumas linhas explicativas que têm sido elaboradas sobre a temática:

a) MOLTKE e JANSSON: a teoria “clássica” – estelas rúnicas enquanto “Monumentos da Era Viking”. As estelas rúnicas seriam “monumentos das viagens vikings”: Frutos da atividade viking, as estelas refletiam o gosto pelas expedições vikings, comemoravam a elas e àqueles que nelas pereceram. Com o final do período viking, o costume das estelas também esmoreceria240. Ainda que grande parte das estelas sejam explicitamente comemorativas, tal explicação é insatisfatória – ainda que as estelas de viagens tenham definido os parâmetros e a “moda” para as demais, não se explica porque no final do período viking houve a explosão súbita de estelas em diversos lugares da Escandinávia e em tão grande número. Os historiadores tendem a dar mais atenção às estelas que comemoram os que morreram no estrangeiro, passando a impressão que tais estelas são típicas, enquanto consistem em apenas 10 por cento do número total de estelas rúnicas241. A maior parte das estelas fala de pessoas que viveram e morreram em casa, consistindo um corpus de evidência ainda muito negligenciado pelos historiadores. Informações pontuais sobre uma ou outra pessoa da qual não se sabe nada (exceto que erigiu uma estela) são insignificantes a não ser que o corpus seja considerado como um todo.

240 JANSSON, 1984: 42s. 241 SAWYER & SAWYER, 12. 121

b) Von FRIESEN (1928), LJUNGBER (1938), PALME (1958), GRÄSLUND (1987), LARSSON (1990), WILLIAMS (1996) - mudança religiosa:

O processo de cristianização é um fator explicativo importante para o costume de ereção de estelas rúnicas, pois o costume reflete também a transição de costumes fúnebres pagãos para cristãos. Existem três vertentes explicativas principais nesta linha, não necessariamente excludentes: b.1) O costume atendia à necessidades emocionais entre os recém-conversos que, a despeito de terem enterrado seus parentes em novos locais (adros), queriam honrá-los em lugares tradicionais, como em casa, em uma estrada, ou num local de assembleia. Explicação de caráter psicológico, pode explicas parcialmente o fenômeno; b.2) algumas estelas foram movidas muito cedo dos seus lugares originais para adros, ou mesmo usadas na construção de igrejas – sugere-se que foi a própria falta de espaço nos adros para enterramentos cristãos que criou a necessidade de erigir uma estela rúnica cristã. Em Uppland a construção de igrejas e cemitérios cristãos demorou um longo tempo, e ali as estelas podem ter funcionado como lápides cristãs em cemitérios pagãos (Gräslund); b.3) As estelas rúnicas provavelmente também compensavam o abandono de costumes de enterramento com bens e pompa em um período transicional, quando o enterro cristão seria visto como cerimônia muito simples; Existem muitas situações na linha da mudança religiosa que necessitam de explicação. A explicação da conversão religiosa não explica, por exemplo, a distribuição desigual e as poucas homenagens às mulheres. 7% das estelas contém comemorações dirigidas à mulheres, e em metade destas as mulheres são comemoradas junto com homens. Em contrapartida, os túmulos femininos da Idade do Ferro são mobiliados ricamente e têm proporção bem mais alta de adornos.

c) Peter e Birgit SAWYER242: as Estelas rúnicas enquanto “sintoma de crise” A explicação de Peter e Birgit Sawyer para o fenômeno de disseminação das estelas rúnicas as explica enquanto um “sintoma de crise”. Birgit Sawyer é autora de uma das obras mais completas e influentes no campo de estudo das estelas rúnicas. destarte, suas ideias merecem espaço à parte.

242 SAWYER & SAWYER, 14. 122

Segundo os Sawyer provavelmente o início do costume, ao menos entre o século X tardio ao XI inicial, foi lançado por Haraldr dente-azul, que erigiu largo memorial em Jelling para seus pais. Ainda que longa e elaborada, a inscrição parece ter determinado o padrão, e dado o prestígio de Haraldr em toda a Escandinávia, não é surpreendente que seu monumento fosse tão influente. A Estela de Jelling tornou-se um símbolo tanto da transição do paganismo para Cristianismo quanto do desenvolvimento de novas formas de governo. A maior parte das estelas daneses espalham-se por áreas sob o controle de Harald ou seu filho Sven, e nas regiões aonde o crescente poder real danês se firmava, as pessoas parecem ter seguido o padrão individual nos moldes de Jelling. A discussão de especificidades em Götaland, Svealand, Uppland e região dos lagos Malar leva os Sawyer a argumentar que, efetuando-se estudos caso a caso, as estelas rúnicas são sintomas de mudança dramática, e que esta hipótese lançaria luz nas condições econômicas e sociais do tempo. É uma linha argumentativa que reflete parte de suas obras, e que privilegia uma ruptura com conjunturas antigas.

d) GREN (1994), ANDRÉN (2000), JESCH (2001), NIELSEN (2003), ZILMER (2005): As estelas rúnicas enquanto sistemas de comunicação Esta ideia não exclui as demais explicações. Frequentemente mistura-se com as outras, ou faz parte de componentes significativos das mesmas. A ideia de que as estelas rúnicas sejam meios de comunicação é, de certa forma, evidente, seja na análise de aspectos comemorativos ou legislativos (i.e. de herança). A proposição defendida mais especificamente por Gren sobre o aspecto comunicativo das estelas rúnicas enfatiza que as estelas consistiriam em meios duradouros e expressivos de comunicação, em particular no sentido de que constituiriam em respostas poderosamente materializadas a problemas e desafios enfrentados pelas pessoas. A ideia de Gren não é exclusiva às estelas rúnicas, sendo desenvolvida com a base em exemplos da pré-história (monumentos megalíticos) até as catedrais do gótico europeu. Gren centraliza sua explicação em uma única estela rúnica, desenvolvendo uma explicação psicológica. No caso de uma aplicação mais ampla de suas ideias, seria necessário extrapolar cada estela rúnica como resposta a uma tensão social específica, o que aproximaria sua ideia à teoria do “sintoma de crise” dos Sawyer. 123

A despeito da limitação da teoria de Gren, Zilmer expande sua ideia e compara com outras proposições de Jesch, Nielsen e Andrén, que enfatizam aspectos comunicacionais das estelas. Em suma, a ênfase dada insere-se de que não apenas a mensagem textual das estelas comunica algo. Seu tamanho, localização, estilo artístico, dentre outras características ligadas à fisicalidade e à imagética são características que comunicam diferentes mensagens, tão significativas quanto o conteúdo explicitamente textual243.

2.2.3 A História Social e as estelas rúnicas

Em adição às informações geográficas, religiosas, polítcas e de caráter mais técnico, há ainda uma vertente a ser mais explorada no campo das estelas rúnicas que trata do estudo de relações sociais. As estelas foram memoriais não apenas dos mortos, mas também dos que as erigiram. Os patrocinadores são quase sempre mencionados em primeiro lugar e a relação entre ele (ou ela) e o homenageado é definida quase que universalmente, demonstrando claramente sua relevância. Podem ser notados certos princípios em relação a quem comemora quem (normalmente parentes mais próximos e companheiros), com algumas variações regionais significativas, demonstrando que os patrocinadores tinham certo interesse no que o morto tinha tido ou teria direito244. Tais interesses eram normalmente reinvidicações, pessoalmente ou em nome de outros, menores, a herdar terras, bens ou status (como o rank ou título de thegn). Alguns patrocinadores tinham o direito de dividir o que tinha sido possuído conjuntamente, como em casos de em casamento ou parceria. É provável que esses memoriais refletissem, ao menos parcialmente, os costumes de herança da pessoa que os patrocinavam. As novas condições de responsabilidade e propriedade após a morte de um parente ou parceiro determinavam não apenas quem comemorava, mas também a ordem de nomeação dos patrocinadores nomeados, bem como o cuidado com que suas diferentes relações com o falecido eram especificadas.

243 ZILMER, 2005: 45s. 244 SAWYER & SAWYER, 13. 124

Birgit Sawyer245 alega a existência de dois padrões principais de herança: a) Uppland: diversos patrocinadores são nomeados, incluindo mulheres; b) Dinamarca (tendência também em Noruega e Götaland): patrocinadores individuais são mencionados, há poucas mulheres. Outras regiões escandinavas mostrariam traços de ambos padrões em diferentes graus. A herança partilhável (diversos patrocinadores, típica de Uppland) consistiria no costume mais comum mais tardiamente, e a não-partilhável (um patrocinador, exemplar na Dinamarca), primitivamente. A explicação dada por Sawyer para tais divisões encontraria amparo nas diferentes estruturas de poder organizadas nos reinos escandinavos, que incluem a própria estruturação monárquica e institucionalização da Cristandade. Os daneses foram muito cedo governados por reis capazes de concentrar um poder mais centralizado, que possivelmente tomavam medidas para que as terras por eles distribuídas aos seus principais homens não fossem divididas. As regiões suecas possuíram processo de centralização monárquica muito mais tardio, gradativo e multi- facetado. Pode-se levantar também uma explicação alternativa à questão do poder central. Uma alegação de herança levantada por patrocinadores múltiplos pode refletir simplesmente uma reinvidicação que pode ser feita por todos patrocinadores. Em contrapartida, patrocinadores individuais teriam uma reinvidicação que não podia ou não deveria ser dividida, como uma posição enquanto agente real, ou a residência principal de um proprietário de terras, normalmente reservada ao filho mais velho. As questões ligadas à heranças, propriedades, e exibição monumental de tais reinvindicações levantam outras questões, ligadas às explicações dos fenômenos das estelas rúnicas. Não se sabe ao certo porque, em determinado período, foi necessário que se erigissem tais memoriais e por que tornariam-se tão marcadamente similares entre si.

245 Idem, p.14. 125

2.2.4 As estelas rúnicas e o leste

A terminologia geográfica referente às populações de Austrvegr já foi referenciada anteriormente nesse trabalho. Como, já afirmado, a discriminação terminológica geográfica é bastante acurada, e emprega termos que não apenas refletem bastante satisfatoriamente as divisões étnicas e geográficas das regiões a leste como também continuam em uso nos séculos posteriores, tanto em obras de cunho geográfico quanto narrativo. As estelas de interesse para nossos propósitos enquadram-se na parcela das estelas “vikings”, que comemoram homens mortos em expedições ao estrangeiro. Como já citado acima, o número total das estelas vikings perfaz aproximadamente 10 por cento do número total de estelas rúnicas. Aqui, referimo-nos enquanto “estelas vikings” às estelas que contém referências a expedições de caráter viking, ou navegação; as estelas que Jansson emprega enquanto “Monumentos do período viking”. Ao referirmos as estelas que lidam especificamente com vikings no oeste, o faremos de forma específica. Na ausência, portanto, de especificação, empregamos tal conceito genérico, apresentado na introdução deste trabalho. A análise e catalogação das estelas rúnicas é padronizada pelo sistema do projeto Samnordisk runtextdatabas. Iniciado em 1986 na Universidade de Uppsala, Suécia, o projeto atualmente disponibiliza a transcrição das inscrições para o antigo nórdico e versões para o sueco e o inglês de todas as inscrições rúnicas encontradas – não limitando-se, portanto, às estelas rúnicas, e empregando um sistema de banco de dados que pode ser baixado e instalado no computador do pesquisador, chamado de Rundata. Segundo o sistema do Samnordisk runtextdatabas, empregam-se abreviaturas das províncias suecas seguido de um número de registro (i.e. Sö = Södermanland; U = Uppland). No caso de outros países, as abreviações são dos próprios países escandinavos (i.e. Dinamarca = DR) ou X seguido da abreviação do país (i.e. X Ua = Ucrânia). A discriminação acurada das províncias suecas não é devida apenas à criação do projeto na Suécia, mas sim ao grande predomínio das estelas rúnicas em território sueco e necessidade de maior precisão. A publicação de novos achados de estelas rúnicas é feita pela Fornvännen, publicação quadrimestral da Academia Real de Letras em Estocolmo, Suécia fundada em 1906 e especializada no campo de Arqueologia e arte medievais. 126

Dessa forma, diferentemente dos achados numismáticos, as informações das estelas rúnicas são de fácil acesso para pesquisadores de todas as regiões do mundo desde o advento da Internet. Numerações alternativas esporadicamente são empregadas. Destas, destaca-se a numeração empregada por Elena Melnikova em uma série de publicações referentes às estelas rúnicas de leste, iniciadas antes da organização do Samnordisk runtextdatabas. As publicações a citar inscrições catalogadas por Melnikova empregam a terminação Mel seguida do número, mas tal procedimento têm caído em desuso com a inserção das mesmas no Samnordisk runtextdatabas. Tal desuso também ocorre com a listagem própria da obra de Blöndal, publicada em 1978 e republicada em 2007246. As estelas rúnicas suecas consistem em aproximadamente 1800 exemplares. As estelas vikings, segundo Sawyer, cerca de 10% deste total. Contando-se caso a caso das estelas encontramos um número de 177. É possível dividir ainda estas estelas vikings em subséries, de acordo com o critério geográfico das localidades de morte do comemorado, ou então de acordo com a comemoração de um mesmo indivíduo (ou indivíduos ligados a ele). Algumas estelas possuem nomes que não apresentam consenso em sua leitura, como o caso já referido da U 439, cujo termo –askalat é lido como “Aistland” ou “Serkland”. Em alguns casos nomes próprios são considerados por alguns autores como referência a locais, como no caso da U 1087, que Blöndal lista entre as estelas varegues pela circunstância de que o comemorado possui o nome Garðar247. Dessa forma, em adição à circunstância da descoberta de novas estelas, todos os cálculos e números são inerentemente aproximações.

246 BLÖNDAL, Sigfús. The Varangians of Byzantium: An aspect of Byzantine military history translated, revised and rewritten by Benedikt S. Benedikz. Cambridge: At the University Press, 2007 [1978]. 247 BLÖNDAL, 2007: 225. 127

U 439:

Transcrição para o antigo nórdico do Samnordisk runtextdatabas: “Hærlæif ok Þorgærðr letu ræisa stæin þenna at Sæbiorn, faður sinn. Es styrði austr skipi með Ingvari a Æistaland(?)/Særkland[i](?).”

Versão (nossa) para o português: "Hærleif e Þorgærðr tiveram esta pedra erigida para Sæbjörn, seu pai. Que guiava a leste um barco com Yngvarr para Eistland(?)/ Serkland(?)"

Figura 05: U 439. Desenho de Johann Bureaus em 1595. Localizada originalmente no palácio de Steninge, perdeu-se. Em destaque, as runas lidas como “-skalat”.

É procedimento comum referir-se a “Estelas varegues” ao se falar das estelas comemorando escandinavos viajando ou caídos nas regiões de leste, mas existem subdivisões em tal definição mais genérica. Em relação ao critério geográfico, as subdivisões das estelas varegues são as seguintes:

a) As estelas varegues per si acabam por referir-se apenas aos termos Austr, Austrvegr, Gardar, Garðaríki, ou variantes dos mesmos, normalmente ligados aos territórios da Rus, ou empregando designações genéricas de leste (“austr”). Dentre estas, enumeramos as seguintes: U 153, U 154, U 209, U 283, U 366, U 504, U 636, U 687, U 898, Sö 33, Sö 34, Sö 92, Sö 121, Sö 126, Sö 130, Sö 148, Sö 171, Sö 216, Sö 308, Sö 338, Vs 1, Vs Fv1988;36, Ög 8, Ög 30, Vg 135, Vg 184, Vg 197, Öl 28(58), G 114, G 220, G 280, Dr 108, N 62, X UaFv1914;47. Esta série perfaz um total de 34 artefatos, consistindo em aproximadamente 29,8% do total das estelas varegues e 19,1% das estelas vikings. Inserimos em nossa contagem a estela X UaFv1914;47, encontrada na ilha de Berezani, atual Ucrânia, por 128 conter inscrições rúnicas e tratar-se de artefato da mesma categoria das outras estelas rúnicas. A U 504 fala de um homem que navegava tanto para leste quanto oeste, razão pela qual contamo-la em ambas listagens, mas a inserimos na somatória total das estelas enquanto apenas um artefato. U 504:

Transcrição para o antigo nórdico do Samnordisk runtextdatabas:

“Kætilfastr ræisti stæin þenna æftiR Asgaut, faður sinn. SaR vas vestr ok austr. Guð hialpi hans salu.”

Versão nossa: “Kætilfastr erigiu esta rocha em memória de Asgautr, seu pai. Ele foi para oeste e leste. (Que) Deus ajude sua alma.”

Figura 06: U 504 – Ubby, Uppland. Foto segundo licença livre da “Creative Commons”

b) Estelas da Grécia: estelas que possuem referências à Grekland, termo escandinavo empregado para Bizâncio. Dada a grande popularidade da guarda varângia e da possibilidade de carreira, feitos militares ou comércio com Bizâncio, há um número considerável de tais estelas. São elas: U 73, U 104, U 112, U 136, U 140, U 201, U 270, U 358, U 374, U 431, U 446, U 518, U 540, U 792, U 922, U 956, U 1016, U 1087, Sö Fv1954;20; Sö 82, Sö 85, Sö 163, Sö 165, Sö 170, Sö 345, Ög 81, Ög 94, Vg 178, Sm 46, G 216. 129

Perfazem um número de 30 artefatos, cerca de 26,3% das estelas varegues e 16,8% das estelas vikings . U 792:

Transcrição para o antigo nórdico do Samnordisk runtextdatabas:

“Karr let ræisa stæin þenna at Horsa(?), faður sinn, ok Kabbi(?)/Kampi(?)/Kappi(?)/Gapi (?) at mag sinn. Fo[r] hæfila, feaR aflaði ut i Grikkium arfa sinum.”

Versão (nossa) para o português: "Karr teve esta pedra erigida para Horsa(?), seu pai, e Kapi (?) para seu parente. Viajou de froma competente, ganhou riqueza no estrangeiro, na Grécia, para seu herdeiro.” Figura 07: U 792 – Ulunda

c) Estelas do Báltico: referem-se às regiões bálticas dos territórios das atuais Letônia, Estônia e Finlândia. São elas: U 180, U 214, U 346, U 356, U 439, U 533, U 582, U 698, Sö 39, Sö 198, Gs 13, Vg 181, G 135, G 319. Um total de 14 artefatos, 12,7% das estelas varegues e 7,9% das estelas vikings. Em Grobiņa, atual Letônia e sítio de grande importância nos estudos escandinavos, foi encontrada uma estela pictórica na década de 80. Enquanto artefato arqueológico, é de valia na ênfase nos movimentos escandinavos na área. Entretanto, não listamo-la entre as estelas rúnicas por ser estela de outra natureza, não contendo inscrições rúnicas, mas pictogramas. Estelas nesta categoria foram encontradas principalmente em Gotland e outras áreas do Báltico, aparentando tratar-se de produtos 130 específicos da arte de Gotland exportados para uma ou outra área de influência e/ou colonização.

d) Estelas da Lombardia: Quatro estelas encontradas na Lombardia são por vezes enquadradas entre as estelas varegues por se considerar como fruto de atividades de varegues em Bizâncio. São elas: U 133, U 141, Sö Fv1954;22, Sö 65. Apenas 3,6% das estelas varegues, e 2,2% das estelas vikings.

Há duas séries de estelas mencionando indivíduos específicos que a erudição considera tratarem-se das mesmas pessoas dados principalmente os referenciais geográficos. São as estelas de Yngvarr e Freygeirr:

a) Estelas de Yngvarr: Há um número considerável de estelas, ou fragmento das mesmas (entre 26 a 28) com referência direta ou circunstancial a Yngvarr, chefe que liderou expedição rumo à Serkland. Ainda referente a tal expedição possui-se a Yngvarrs Saga, escrita provavelmente no século XIII, que reconta o evento de forma fantástica. Tal expedição terminou em desastre, e muitos de seus participantes são comemorados por meio de estelas rúnicas. São elas: U 439, U 644, U 654, U 661, U 778, U 837, U 1143, U Fv1992;157, Sö 9, Sö 96, Sö 105, Sö 107, Sö 108, Sö 131, Sö 173, Sö 179, Sö 254, Sö 277, Sö 279, Sö 281, Sö 287, Sö 320, Sö 335, Vs 19, Ög 145, Ög 155. Blöndal considera também que as estelas U 785, listada por ele como estela 13, e referindo-se a um falecido em Serkland248, bem como a estela Sö 131, listada por ele como 4249, fariam parte da série de Yngvarr. Não se levando em consideração estas estelas pela ausência de consenso acadêmico, temos 26 estelas de Yngvarr, 23,6% das estelas varegues e 14,6% das estelas vikings.

248 BLÖNDAL, 2007: 225. 249 BLÖNDAL, 2007: 227. 131

U 778:

Transcrição para o antigo nórdico do Samnordisk runtextdatabas:

“Þjalfi ok Holmlaug létu reisa steina þessa alla at Banka/Bagga, son sinn. Er átti einn sér skip ok austr stýrði í Ingvars lið. Guð hjalpi ônd Banka/Bagga. Áskell reist. “

Versão (nossa) para o português: “Þjalfi e Holmlaug tiveram todas estas rochas erigidas para Banki/Baggi, seu filho. Ele sozinho possuía um barco, e navegou para o leste com a tropa de Yngvar.

Que Deus ajude o espírito de Banki's/Baggi's. Áskell entalhou. “

Figura 08: U 778 - Localizada no pórtico da Igreja de Svinnegarn

b) Estelas de Freygeirr: Freygeirr fora provavelmente um chefe que executou expedições na região báltica. Referem-se a ele as seguintes estelas: Gs 13, Dr 216, U 518, U 611, U 698, U 1158 A estela U 698 é comumente também listada entre as estelas do Báltico, segundo proposição de Omeljan Pritsak250. Contém a referência de um homem morto na Livônia. É interessante notar a existência de uma estela danesa, a Dr 216. Tal estela é em estilo RAK, consistindo numa das mais antigas fontes a citarem a Suécia. Se a é correta e tais estelas referem-se ao mesmo indivíduo, então Freygeirr nascera na Dinamarca, e falecera na Suécia. As 6 estelas de Freygeirr representam aproximadamente 5,5% das estelas varegues, e 3,4% das estelas vikings.

250 PRITSAK, 1981: 399. 132

DR 216:

Transcrição para o antigo nórdico do Samnordisk runtextdatabas:

“Asraþr ok Hildu[ng]R/Hildv[ig]R/Hildu[lf]R resþu sten þænsi æft Fraþa/Fræþa, frænda sin sin, æn han was þa fækn(?) wæRa, æn han warþ døþr a Sweþiuþu ok was fyrst(?) i(?) Friggis(?) liði(?) þa alliR wikingaR.”

Versão para o português (do autor): “Asraþr e Hild[ung] ? erigiram esta rocha em memória de Fræþa, Figura 09: DR 216. Exposta no museu nacional seu parente [ ... ] ele morreu na dinamarquês. Foto de Christian Bickel, disponibilizada sob licença livre Suécia e foi primeiro (?) na tropa (Creative Commons). (?) de Freygeirr [.... ] de todos os vikings”.

Somando-se o total das estelas varegues, incluindo as estelas da Lombardia, desduplicando-se a referência a Freygeirr nas estelas do Báltico e desconsiderando-se as duas adições de Blöndal às estelas de Yngvarr, chegamos a um número de 114 estelas varegues, 64% do total das estelas vikings. Uma contagem aproximada das estelas vikings a oeste nos leva às seguintes proporções: a) Estelas vikings de oeste: contendo referências à locais da Europa mencional, ou simplesmente mencionando que o comemorado fora em expedição viking (“í 133 víkingr”). Ainda apresentam uma definição terminológica centrada em uma dualidade exclusiva viking=oeste/ varegue=leste. São elas: U 439, U 363, U 504, U 611, U 668, Sö 14, Sö 53, Sö 62, Sö 106, Sö 137, Sö 159, Sö 164, Sö 173, Sö 217, Sö 260, Sö 319, Ög 68, Ög 83, Ög 111, ÖG Fv1970;310, Vg 61, Vg 197, Sm 10, Sm 42, Sm 51, G 370, Dr 266, Dr 330, Dr 334, Dr 216. Um total de 30 artefatos. Aqui inclui-se a Dr 216, mencionada entre as estelas de Freygeirr. O número de estelas sem referência geográfica abre a possibilidade de que nem todas refiram-se à localidades da Europa Ocidental, havendo a possibilidade de conter participantes de expedições a leste. A U 504 exemplifica clara e explícitamente a participação de vikings tanto a leste como oeste. Essa estela também é listada entre as estelas varegues. Contando-se o número de 30 estelas, entretanto, chega-se a 16,8% das estelas vikings, e 46,9% das estelas de oeste.

Sö 319:

Transcrição para o antigo nórdico do Samnordisk runtextdatabas:

“Finnviðr(?) gærði kuml þessi æftiR GæiRbiorn, faður sinn. Hann varð dauðr vestr.”

Versão (nossa) para o português: “Finnviðr(?) fez estes monumentos para/em memória de Geirbjôrn, seu pai. Ele morreu no oeste.”

Figura 10: Sö 319 - Localizada no solar de Stäringe, para aonde foi movida. Oriunda de Sannerby 134

b) Estelas da Inglaterra: U 194, U 241, U 344, U 539, U 616, U 812, U 978, U 1181, Sö 46, Sö 55, Sö 83, Sö 160, Sö 166, Sö 207, Vs 5, Vs 9, Vs 18, Gs 8, Ög 104, Ög Fv1950;341, Sm 5, Sm 27, Sm 29, Sm 77, Sm 101, Sm 104, Vg 20, Vg 187, Dr 337, Dr 6, N 184. Somam 31 estelas, 17,4% das estelas vikings gerais e 48,4% das estelas vikings de oeste . c) Estelas de Jarl Hakon: as estelas U 16, U 617 e Sm 76 contém referências a Jarl Hakon. Três artefatos, apresentam pouca relevância estatística, consistindo em aproximadamente 1,7% das estelas vikings gerais e 4,7% das estelas vikings de oeste. As estelas vikings de oeste, sem retirar-se a Dr 216, perfazem, portanto, 64 artefatos, aproximadamente 36% do total das estelas vikings, contra os 64% das estelas varegues.

135

2.3 Análises: a Cultura Material, o Período Viking e o leste

Como já afirmamos, a estatística pertinente não pode propiciar números exatos e imutáveis, mas a proporção quase que dobrada da quantidade de estelas varegues em relação às estelas vikings de oeste é evidente. Tal dado per si, entretanto, precisa ser considerado em meio a diversos fatores. Dentre esses, destacamos as frequências das regiões de origem das estelas rúnicas (vide Tabela 03). A maior parte das estelas vikings procedem de Uppland e Södermanland, seguidos de Östergotland, segundo padrão que combina com a proveniência geral das estelas rúnicas em sua totalidade. Öland, entretanto, que possui elevada quantidade de Estelas Rúnicas por área, contém apenas uma estela viking.

Alguns tênues padrões regionais podem ser delineados, coerentes com a interpretação histórica tradicional. A pequena quantidade de artefatos na Dinamarca possuem um número maior de estelas inglesas, enquanto que Gotland possui uma maioria absoluta de estelas varegues, contendo também uma estela da Grécia e duas do Báltico.

Mapa 07: As províncias suecas. Do autor. Feito com a ferramenta “Mapmaker Interactive” da National Geographic. 136

Tipo/ Região Varegues per si Grécia Báltico Lombardia Yngvarr Freygeirr Vikings de oeste Inglaterra Haakon Total Uppland 9 18 8 2 8 4 5 8 2 64 Södermanland 11 7 2 2 15 11 6 54 Östergötland 2 2 2 4 2 12 Småland 1 3 6 1 11 Västergötland 3 1 1 2 2 9 Gotland 3 1 2 1 8 Dinamarca 1 1* 4* 1 6* Västmanland 2 1 3 6 Gästrikland 1* 1* 1 2* Noruega 1 1 2 Öland 1 1 Alemanha (Schleswig) 1 1 Ucrânia 1 1 Letônia Estela - Pictórica de Grobiņa** 177 Tabela 03: Distribuição geográfica das Estelas Vikings. As áreas rachuradas indicam picos das frequências

* A Gs 13 aparece tanto na série de Estelas do Báltico quanto das de Freygeirr. Dessa forma, foi contada como apenas uma. Procedemos da mesma forma em relação à Dr 126, listada tanto enquanto uma estela viking de oeste quanto de Freygeirr. ** Conforme discutido no tópico das estelas do báltico, a estela pictórica de Grobiņa não foi inserida na contagem.

137

Tal distribuição harmoniza-se com a pressuposição tradicional de uma ênfase entre os dinamarqueses e noruegueses nas expedições vikings a oeste e Ilhas Britânicas, e dos vikings suecos e de Gotland a leste, em particular as relações de Gotland com o Báltico. Entretanto, outras distribuições fogem desse padrão e sugerem outras hipóteses. A Noruega possui um exemplar varegue e um inglês. Gästrikland possui um exemplar do Báltico/Freygeirr e uma estela da Inglaterra. Västergötland e Östergötland apresentam uma distribuição praticamente igual entre estelas de leste e oeste, inseridas as subdivisões regionais, e Småland demonstra uma propensão forte para oeste. Dessa maneira, o quadro geral demonstra de fato uma forte inclinação entre os vikings suecos para o leste, mas tal inclinação apresenta uma concentração específica em Södermanland, Uppland e Gotland. Os suecos das demais regiões apresentam uma distribuição quase que uniforme entre leste e oeste, com leve predomínio para o leste, com exceção de Småland. Entretanto, o número de estelas vikings nas outras regiões suecas é muito menor, e a amostragem não é estatisticamente suficiente para conclusões definitivas. Por hora, parece adequado pressupor que os vikings das demais regiões suecas encontravam-se ativos tanto a leste quanto a oeste. Possuímos poucas estelas rúnicas das demais regiões, mas parece razoável a proposição de que esta circunstância possa ser aplicada também aos vikings de Noruega e Inglaterra. É significativo que das únicas duas estelas vikings da Noruega, uma seja varegue. Tal fase da análise deixa uma aparência inicial de que o movimento a leste foi empreitada fortemente concentrada entre os suecos da região dos lagos Malaren e Gotland. No entanto, a escrita histórica posterior inserirá o leste de papéis significativos que levam a repensar os quadros de exclusividade e duplicidade simples nos campos de ação “varegue” e “viking”. A especificidade e distribuição desigual das estelas rúnicas pode induzir a conclusões não de todo seguras. Não obstante, o cruzamento das informações com os subsídios dados pela numismática e arqueologia parecem fortalecer e preencher o quadro de um movimento a leste instigado pela prata muçulmana e inicialmente entremeado de intermediários. Gradativamente os escandinavos eliminarão as intermediações e se aventurarão cada vez mais a leste, com controle cada vez maior das fontes de riquezas, 138 desenvolvendo sistema complexo que afetará o próprio desenvolvimento posterior da história da Rus. Os suecos serão peça-chave em tais processos. Porém, seus resultados a longo prazo serão sentidos nas mentalidades escandinavas como um todo. Analisaremos, a seguir, as contruções escritas realizadas pelos historiadores posteriores, todos dos locais mais ocidentais dos reinos escandinavos, e que revestem o leste com significados arraigados nesta tradição de séculos de relações entre Escandinávia e Leste.

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Capitulo 3: O LESTE ENQUANTO CONSTRUÇÃO GEOGRÁFICA

“É inútil lembrar, endereçando-me aos fenomenólogos, que o espaço cotidiano, o espaço do primeiro estrato natural, do “mundo da vida”, é apenas quase euclidiano, e isso localmente: ele não é certamente homogêneo, nem mesmo isótropo, ele tem um alto e um baixo, os trilhos da estrada de ferro convergem na distância, a direção de qualquer demo situado entre Ática e Atenas e única e privilegiada pelos habitantes do demo. (...) o espaço (...) só é quase contínuo no sentido de Aristóteles, da divisibilidade – pois esta última não pode ser levada longe demais. Assim que a reflexão começa, o mundo da vida se revela problemático” (Cornelius Castoriades)251

3.1 Preliminares: múltiplas acepções de leste

Um passo obrigatório - quiçá um tanto óbvio - em um estudo que pretende tratar com um termo primariamente ligado a uma direção geográfica é uma compreensão inicial de que forma o sistema de referenciamento geográfico se apresenta em sua forma mais cotidiana, pragmática e simples; em suma, de que forma o conhecimento e a terminologia geográficos, ao menos no que toca às referências e coordenadas, se apresenta nas fontes escandinavas sem o acúmulo de imaginário, ideologia e narrativa. É perfeitamente possível e necessário o questionar a validade de tal proposição; enquanto construto da imaginação humana, todo sistema de ideias deriva de categorias mentais específicas e culturais; algumas dessas categorias por certo apresentam maiores elaborações que outras; por vezes certas construções encontram-se mais marcadamente entremeadas de elementos evidentes na natureza, de forma a minimizar a ação da elaboração humana sobre os mesmos. Seria possível efetuar alguma espécie de “dissecação”, de discriminação de elementos “simples”, “complexos”, “mais” ou “menos” elaborados culturalmente? A despeito da dificuldade da tarefa, do complexo problema de se abordá-la de forma objetiva – e da própria possibilidade da objetividade, conforme já discutimos no primeiro capítulo desta tese – nos parece razoável efetuar uma diferenciação entre os sistemas simples de direcionamento geográfico – e nesta categoria enquadramos o próprio sistema cardinal, mas também o cabedal básico terminológico geográfico

251 CASTORIADES, Cornelius. Figuras do Pensável: as Encruzilhadas do Labirinto. Volume VI. Rio de Janeiro: Civilização Basileira, 2004. Pp.402s. 140 empregado para referência e direção – e elaborações que, apesar de se basearem ou empregarem elementos de tais sistemas, a eles adicionam dimensões que o transcendem. Um exemplo simples de tal diferenciação pode ser observado em três empregos do termo austr, “leste”, no antigo nórdico (itálicos nossos):

(...) austr í Jamtaland ok Helsingjaland ok Vestrlönd (...) “(para o ) leste, em Jamtaland e Helsingland e (para) o ocidente (...)” (Egils Saga Skallagrímsonar, Cap. 04252)

(...) um sumarit í Austrveg (...) No verão, para Austrvegr (Egils Saga Skallagrímsonar, Cap. 46253)

En hann var farinn í Austrveg at berja troll “Mas ele tinha ido para o leste/o caminho oriental para destruir trolls.” (Edda Menor, Codex uppsaliensis, Cap. 26254)

Todas as passagens são pressupostamente da autoria de um mesmo indivíduo, Snorri Sturlusson. A primeira, encontrada na Saga de Egil, indica nada além da direção per si; “para o leste”. A leste do narrador, um leste apenas posicional, localizam-se Jamtaland e Helsingland; para oeste, estão outras regiões imediatamente enumeradas. Aqui o personagem é a referência, a direção, descritiva, é apenas indicativa, e mesmo relativa, válida para apenas seu observador. O segundo caso, empregado na mesma Egils saga, é o uso de um composto do termo, “Austrvegr”, empregado no capítulo 46. Nesta ocasião Egil e seu irmão Thórolfr iniciam expedição para Kúrland. Nesse uso do termo, o “vegr” fica mais compreensível: pelas imediações de Kúrland passa um dos grandes ramais da rota rumo a Kiev e Bizâncio; “Austrvegr”, o “caminho de leste”. De fato, a nomenclatura será empregada com frequência nesse sentido, e assumirá a conotação mais ampla das regiões a leste do Báltico, em particular os atuais Países Bálticos e Finlândia. Tal uso composto não adiciona apenas o termo “vegr” ao simples “austr”; em adição, incorpora toda uma gama de significados ao mesmo – no caso, adicionando a ele uma conotação geográfica e mesmo etnográfica. Por fim, a terceira passagem encontra-se na Edda em prosa, na qual lemos novamente o termo “Austrvegr”. Aqui o termo aglutinará ainda uma dimensão adicional

252 In: JÓNSSON, Finnur (ed). Altnordische Saga-Bibliothek 3. Halle: Niemeyer, 1924. 253 Idem. 254 In: PÁLSSON, Heimir (ed.). The Uppsala Edda. University College London: Viking Society for Northern Research, 2012. 141 em seu significado. No caso em questão, o deus Þórr estava a leste, nas regiões de leste, no caminho de leste, a lutar contra gigantes. Aqui é evidente ou pressuposto para o leitor que a leste há gigantes; nesse sentido, nesta direção, localiza-se Jottunheimr, a terra dos gigantes. Em adição à referência simples de direção, em adição à região etno-geográfica, adiciona-se um terceiro significado. Desta feita, um construto mítico, uma localidade do imaginário, bem como toda uma gama de narrativas, personagens e peculiaridades que confluem ali. O último significado estará mais em voga nas fontes mais tardias, em particular nas Fornaldarsögur, quando se tornará mais saliente nas narrativas que Austrvegr é ponto de passagem para as dimensões ainda mais a leste, bordejantes das áreas míticas, de Jottunheimr, das Planícies de Glasir, de Geirrodland. Temos, aqui, portanto, um termo básico ao qual se adiciona não apenas um composto, mas gamas distintas e amplas de significados, que discriminaremos de forma mais pontual nos capítulos seguintes. Neste capítulo lidaremos especificamente com a dimensão inicial, referencial e mais simples de leste enquanto direção geográfica. Para tanto, traçaremos um panorama genérico sobre o conhecimento e representações primárias geográficas que transparece nas fontes primárias islandesas e escandinavas – que, como veremos em breve, não necessariamente são monolíticos e concordantes. Em seguida, apresentaremos um quadro detalhado dessas mesmas regiões de Austrvegr – na acepção de “caminho de leste” discriminadas nas fontes escandinavas, incluindo-se aqui as estelas rúnicas.

3.1.1 O sistema cardinal e a terminologia

O sistema cardinal e suas derivações se entrelaçam no cotidiano e no vocabulário da maioria das culturas dos tempos contemporâneos. De forma similar à contagem e mensuramento do tempo, ainda que não de maneira tão interiorizada e arraigada, consiste em um sistema conceitual de propósitos práticos que, principalmente por suas implicações cotidianas, é assimilado e considerado como um fato dado, a um ponto em que é impossível para um indivíduo que se considere “educado”, “civilizado”, enfim, devidamente aculturado, privar-se de conhecê-lo, ainda que minimamente. Como discute Norbert Elias de forma magistral, é por demais estranho ao homem moderno, e assim o foi aos primeiros etnólogos e antropólogos, encontrar pessoas em culturas ditas “primitivas” ou menos avançadas que desconheçam sua 142 própria idade. Poderíamos traçar um paralelo, ainda que de menor peso, ao pensarmos acerca da localização e terminologia espacial255. Enquanto sistema conceitual, entretanto, qualquer sistema de orientação, por maior difusão que encontre e por mais baseado que esteja em fenômenos naturais e dados empíricos – e aqui podemos incluir trajetória do Sol (leia-se: percepção de uma trajetória do Sol – nem sempre considerada como tal) e dos astros, depósitos minerais e norte geográfico magnético absoluto - localiza-se na esfera da Cultura, antes que da Natureza. Certamente que não entraremos detalhadamente aqui em tal discussão, mas fica evidente a necessidade de se considerar o sistema de orientação geográfico enquanto produto de criação da razão humana e do acúmulo e transformação de saber, como algo que está sujeito aos contextos específicos temporais nos quais é formulado, empregado e reformulado. O sistema cardinal, por mais que se baseie em e estabeleça coordenadas absolutas, é passível de relativização – ao menos, por meio da criação de variantes ou mesmo na forma de sua utilização. Um exemplo claro é a convenção de apontamento de direção ao norte. Por mais que tal convenção tenha se desenvolvido por conseguinte à uma determinante empírica do norte absoluto e da bússola apontando para o mesmo - por sua vez fundamentados na existência de concentração de minerais em determinada parte da crosta terrestre -, no decorrer dos tempos a percepção de tais absolutos, a compreensão das mesmas e as representações de tal circunstância empírica sofrem alterações de matizes estritamente culturais, mais especificamente a dominância e hegemonia das culturas ocidentais do hemisfério norte em âmbito mundial. Note-se, por exemplo, na representação cartográfica dos sistemas gráficos derivados de tais coordenadas, que os mapas da Antiguidade e do Medievo não necessariamente trazem as imagens com o norte nos quadrantes superiores como o fazem os mapas contemporâneos; de fato, como logo demonstraremos, tal circunstância é rara. Mapas do mundo islâmico traziam o norte para baixo e o sul – ou sudeste - para cima e existiram tendências diversas cartográficas entre os próprios europeus ocidentais.

255 É evidente que devemos muito aqui, sem possibilidade de referir apenas uma simples passagem, às reflexões de Norbert Elias. A referência ao homem que desconhece sua idade encontra-se, de qualquer forma, na página 10 da edição que consultamos, mas devemos muito mais ao autor do que apenas a leitura desta página. Vide: ELIAS, Norbert. Sobre o tempo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998 [1984]. 143

Mesmo contemporaneamente, a representação da América à esquerda e Eurásia e África à direita não é unânime e possui variações nas diversas esferas culturais do globo. Em breve retornaremos com mais detalhe na representação gráfica, depicção geográfica e confecção de mapas.

3.1.2 O Sistema de orientação geográfica e espacial no medievo escandinavo

É relevante se debruçar previamente na terminologia referente aos sistemas geográficos e espaciais empregados pelos Escandinavos no medievo. A nível bibliográfico é possível encontrar discussão e reflexão sobre os sistemas de orientação espaciais empregados pelos escandinavos, em particular no que toca às relações entre Islândia e Noruega. Sobre o leste, entretanto, a situação é mais exígua. O grosso da bibliografia discute o conceito de leste, quando o discute especificamente, no que chamamos de leste “situacional”, ou “direcional”. Tal discussão possui um forte viés linguístico, à medida que deriva de termos e modificações dos mesmos, sendo necessária uma discussão e explanação específica dos significados de direção e localização no antigo nórdico. O caráter relativo e bastante distinto temporalmente de nosso presente de tais formas de orientação e expressão geram estranheza ao olhar contemporâneo, de forma que autores como Tatjana N. Jackson, ao comparar tais formas de expressão com o sistema cardinal, as divide por vezes como “corretas” (se equivalem às distâncias indicadas cardinalmente) e “incorretas” (se não se adequam ao sistema cardinal, ainda que empreguem termos do mesmo256. O sistema e a nomenclatura cardinais escandinavos derivam de uma tradição germânica mais ampla. De forma geral a nomenclatura – *nor-, *austrō-, *sun-, *wes- influenciou a antiga terminologia latina – septentrionalis/borealis, orientalis, australis/meridionalis, occidentalis, ainda que as formas latinas subsistam em termos derivados257. O sistema básico escandinavo de quatro coordenadas cardinais (norðr – norte, austr – leste, suðr-sul, vestr - oeste) desenvolveu-se na Noruega baseado no contorno da

256 JACKSON, T. Old Norse System of Spatial Orientation. In: Saga Book 25, 1998. Pp. 72s. 257 POKORNY. Julius. Indogermanisches etymologisches Wörterbuch, 2 Bände. Francke Verlag: Bern und München, 1958. Verbetes: “au-3(aṷe); ṷē”,“aṷes-“, “sāṷel-, suṷél-, sṷel-, sūl-“. 144 costa norueguesa e na observação dos astros, dado o desconhecimento da bússola258. Especula-se sobre a possibilidade de que os nomes germânicos antigos tenham sido empregados para o que consideramos pontos intermediários, envolvendo uma rotação de 45º259. Entretanto, a observação das direções norueguesas baseadas no desenho costeiro ajuda a compreender melhor a situação. É possível encontrar termos que parecem por vezes peculiares ou “estranhos” à mente acostumada ao sistema de coordenadas cardinais absolutas como, por exemplo, o termo landnorðr, empregado para “nordeste”, mas que pode ser traduzido ao pé-da-letra como “para o norte via terra”, enquanto que útnorðr, “para o norte indo para fora”, representava a direção de oeste ou noroeste – consistindo nas rotas possíveis a serem tomadas se o observador tomasse em consideração a geografia e costa norueguesas. Tal uso de vocabulário não está limitado aos residentes da Noruega; antes, incorporou-se no vocabulário do antigo nórdico. Observemos uma passagem escrita novamente por Snorri Sturlusson, um islandês, na Ynglingasaga, parte inicial da Heimskringla:

“Af hafinu gengr langr hafsbotn til landnorðrs, er heitir Svarta-haf”

“Do mesmo mar uma longa reentrância marítima se estende em direção ao nordeste, e é chamada de Mar Negro”

(Heimskringla, Ynglingasaga, 01260. Tradução e grifo nossos)

O trecho em questão encontra-se na descrição do mundo habitado, mas descreve região longe da costa norueguesa: o Mar Negro. O uso para nordeste, no entanto, é landnorðr261. Há o sistema referencial designado por Kirsten Hastrup262 como “ultimate”, no sentido de que indica o objetivo final, último, a ser atingido pelo viajante. Esta forma

258 LEONARD Stephen. Language, Society and Identity in early Iceland. Wiley-Blackwell, 2012. P. 161. 259 Ex.: o mesmo radical para austr-, “leste”, e “australis”, “meridional”, no latim. Vide: POKORNY, op.cit, “aṷes-”; WEIBULL, Lauritz. De gamle nordbornas väderstrecksbegrepp. Scandia 01, 1928; EKBLOM, R. as Geographer. Studia Neophilologica 14, 1941-2; ______. Den forntida nordiska orientering och Wulfstans resa till . Förnvännen. 33, 1938; SKÖLD, Tryggve. Isländska väderstreck. Scripta Islandica. Isländska sällskapets årsbok 16, 1965. 260 JÓNSSON, Finnur (ed). Heimskringla: Nóregs konunga sögur. Copenhagen: Gads, 1911. P.04. 261 Landnorðr – no genitivo, landnorðs. 262 HASTRUP, 55. 145 de expressão é mais marcadamente linguística, empregando expressões, advérbios e modificadores de sentido indicativos de proveniência e destino. Tal sistema de referências em antigo nórdico centraliza-se em três formas básicas de expressão, que denotam direção, localidades e origens que, a grosso modo, podem ser expressos simplificadamente como “(dirigindo-se) para algum lugar”, “em algum lugar”, “(vindo) de algum lugar”263. A adição de sufixos a advérbios concede nuances específicas que se assemelham a esse sistema tripartite: o sufixo –i implica descanso em algum lugar específico, enquanto advérbios com sufixo –an irão indicar movimento partindo de algum lugar264. Alguns advérbios são modificados apenas de uma forma dual; norðr, por exemplo, significa “norte”, “para o norte”, enquanto norðan significa “(vindo do) norte’, mas a maioria dos advérbios acaba por se enquadrar no sistema ternário de localização. O uso do sufixo –an precedido da preposição fyrir cria uma frase preposicional que indica uma posição relativa em relação a outra, fixa: fyrir norðan heiðina significa “(a) norte dos pagãos”. Fyrir norðan acabou tornando-se uma expressão idiomática, significando “no norte”265. Esse tipo de construção generalizou-se também para as outras posições geográficas. Ainda no início da Ynglingasaga, temos um exemplo simples de seu uso:

(...) heitir fyrir austan Ásíá, en fyrir vestan kalla sumir Európá, en sumir Énéa.

(...) a leste é chamada Ásia, e a oeste é chamada por alguns Europa, por alguns Enea. (Heimskringla, Ynglingasaga, 01266. Tradução e grifo nossos)

Esse sistema conceitual é muito forte nas fontes primárias, criando expressões específicas dependendo dos sentidos e localidades, e enfatizando grandemente um sistema de localização geográfica que chamamos de “relativo”, “situacional” ou “direcional”, mas que com o decorrer do tempo acaba por assumir uma circunstância mista, na qual a relativa localização dos pontos entre si gradualmente assume conotações fixas, idiomáticas. A coordenada que assume maior importância não é a

263 LEONARD, 157. 264 LEONARD, 158. 265 LEONARD, 158. 266 In: JÓNSSON, 1911: 04. 146 localidade per si (i.e., a Noruega ou a Islândia), mas, antes, a posição relativa das localidades em questão entre si. As localidades fixas empregadas mais frequentemente nesse sistema são a Islândia e a Noruega. Viajar da Noruega para a Islândia seria escrito em sua forma completa em antigo Nórdico como að fara frá Noregi út til Íslands. Entretanto, seu uso mais comum é o abreviado, að fara út. Literalmente, em português, “sair/ir/dirigir- se/viajar para fora”. O sentido contrário, da Islândia para Noruega, é usualmente indicado como að fara útan: “vir de fora”, expressão empregada largamente nas sagas e na produção legal267. Tal sistema possui origem óbvia com os noruegueses que, tendo colonizado a ilha da Islândia, empregarão seu ponto de partida (a Noruega) como “dentro”, e a Islândia como “fora”. Entretanto, mais de um século após a colonização da Islândia, e quando a mesma já se encontrava com caminhos distintos da Noruega, os próprios islandeses continuavam a usar as mesmas formas de coordenadas. Ainda que se dirigissem da Islândia para a Noruega, sua forma de expressão é de dirigir-se do “fora” para o “dentro”, que evidencia uma continuidade do conceito original direcional, mas somada a uma modificação intrínseca do mesmo: a relatividade e até mesmo “etnocentridade” do conceito original norreno sofreará uma sutil transformação, na qual as expressões indicativas de pontos relativos entre si acabam por assumir conotações fixas, específicas e intrinsecamente ligadas a localidades específicas e imutáveis. Outro exemplo da transformação, readaptação e, de certa forma, ressignificação da terminologia geográfica, é o caso da divisão da Islândia em quadrantes ou “quartas” (fjórðungar), efetuada em 965 A.D.268 Esta divisão foi efetuada num sistema de base cardinal, contendo outras peculiaridades de referência geográfica. O viajante que se dirigia ao quadrante sul (baseado em um sistema cardinal) da Islândia dirigia-se, de forma absoluta, para o oeste. Entretanto, o uso linguístico empregado era de dirigir-se ao sul 269. Em adição a tais nuances, há-se ainda de notar casos nos quais o autor emprega o sistema de coordenadas cardinais de forma mais óbvia, referenciando o destino imediato para onde o personagem da narrativa dirige-se. Dessa forma, o itinerário de

267 LEONARD, 159. 268 JACKSON, 73. 269 LEONARD 162; JACKSON, 73. 147 alguém na Noruega que se dirige para a Suécia pode ser descrito como “viajou para leste”.

3.1.3 Sagas dos antigos islandeses e sagas dos reis – a primazia da direção geográfica simples270

Esta forma de referenciamento geográfico simples pode ser encontrada por toda a produção escrita escandinava medieval, como se espera de uma terminologia empregada amiúde. Há de se destacar, no entanto, uma série específica de fontes na qual as nuances do sistema podem ser percebidas com maior propriedade, tanto devido à própria forma de linguagem e estilo mais frequente como pelas próprias características geográficas e de cenário específicas à modalidade; de tal gênero procedeu parcela considerável dos extratos de fonte e exemplos linguísticos examinados até então. Referimo-nos às chamadas Islendigasögur, as sagas islandesas por excelência, muitas vezes traduzidas apenas como “sagas”, “sagas familiares” ou, em uso mais recente iniciado por Theodore Andersson271 e difundido por Else Mundal, Torfi Tulinius e outros acadêmicos como “sagas dos antigos islandeses”272. Ao lado das grandes obras históricas, as Islendigasögur tiveram papel fundamental, provavelmente ainda maior, na forma narrativa islandesa, sobre os acontecimentos e personagens do passado. Saga (pl. sögur) é um termo empregado muito genericamente para formas narrativas islandesas. Provém do antigo nórdico segja, verbo que significa “dizer”, “falar” ou, por si só, “conto” ou “história”, e incorpora narrativas em prosa acerca de algum personagem, família ou região. Apesar do gênero per si ser composto em prosa, há com grande frequência conteúdo poético veiculado em seu meio, em particular na poesia escáldica. Mas existem outras modalidades de saga, e a definição de distinções literárias precisas entre as diversas modalidades das mesmas pode ser tarefa complexa e nem sempre satisfatória. Conquanto as diferenças entre alguns tipos de saga – por exemplo, entre as

270 Boa e resumida referência ao tópico pode ser encontrada em ÓLASON, Vésteinn. Family Sagas. In: McTURK, Rory. (Ed.). A companion to Old Norse-Icelandic Literature and Culture. Oxford: Blackwell Publishing, 2006 [2005]. pp. 101-118. 271 ANDERSSON, Theodore. The Growth of the Medieval Icelandic Sagas (1180-1280). Ithaca & London: Cornell University Press, 2006. 272 MUNDAL, Else. Introduction. In: MUNDAL, Else (ed). Dating the Sagas: Reviews and Revisions. Copenhagen: Museum Tusculanum Press, 2013. P.01. 148

Íslendingasögur e as Fornaldarsögur – possam ser marcantes, há um número elevado de categorias que não se enquadram nesses ou nos outros grandes grupos, ou gêneros. Certamente esta circunstância não exclui o emprego de critérios de categorização, que são relevantes, úteis e que provêm auxílio na compreensão mais precisa da produção escrita islandesa medieval. As Íslendingasögur descrevem principalmente os eventos ocorridos no primeiro século da comunidade islandesa entre 930 e 1030 (por vezes contendo partes introdutórias que lidam com os eventos na Noruega e Islândia no período principal de colonização, entre 870 e 930). Sua datação é razão de debate. “Dating the Icelandic Sagas”, de Einar Sveínsson, escrito em 1958 e publicado pela Viking Society for Northern Research, é obra referencial nesse sentido273. Sveínsson critica o procedimento de antigos editores, tradutores e estudiosos das sagas como Guðbrandur Vigfússon, marcado pela subjetividade e que atribuíam qualidades como “tom” e “caráter” às narrativas, os quais empregavam como critérios para datação e apreciação274, e discutirá o emprego de evidências históricas275, datação dos manuscritos276, relações entre as diversas sagas277, evidências literárias e linguísticas278, e mesmo o que chama de critérios “artísticos”279 – critérios que, de certa forma, retomam usos que o próprio Sveínsson criticou anteriormente, mas que admite que podem ser úteis quando adicionados aos demais. Seus critérios para datação serão ainda empregados, resumidos e discutidos por muitos autores. Else Mundal os resume como a) relação literária entre as próprias sagas; b) datação pela observação de eventos e condições do próprio autor refletidos na saga; c) qualidade artística do texto280; Tulinius os discute em profundidade, ressaltando que poucas adições têm sido feitas a eles281, com a exceção do trabalho já referido de Theodore Andersson, que encaminha a situação da datação das sagas para uma

273 SVEÍNSSON, Einar. Dating the Icelandic Sagas: an Essay in Method. Viking Society for Northern Research: London, 1958. 274 SVEÍNSSON, 39s. 275 Idem, 50. 276 Idem, 11. 277 Idem, 76. 278 Idem; 76s; 96s. 279 Idem. pp. 115ss; pp. 40. 280 MUNDAL, Else. The Dating of the oldest Sagas about Early Icelanders. In: MUNDAL, Else (ed). Dating the Sagas: Reviews and Revisions. Copenhagen: Museum Tusculanum Press, 2013. P.41. 281 TULINIUS, Torfi. Dating Eyrbyggja Saga: The Value of “Circumstancial” Evidence for Determining the Time of Composition of Sagas about Early Icelanders. In: MUNDAL, Else (ed). Dating the Sagas: Reviews and Revisions. Copenhagen: Museum Tusculanum Press, 2013. P.130. 149 discussão do desenvolvimento de gênero literário282. Nos tempos contemporâneos a tendência acadêmica tem sido a atribuição de datas cada vez mais recentes para as Íslendingasögur, situando a datação de suas primeiras formas no século XIII, a partir de 1230 ou 1240283. Podemos listar entre elas, a Egils saga, a Njáls saga, Kormáks saga, Viga- Glums saga, Gísla saga, Grettir saga, Eyrbyggja Saga, Laxdæla Saga, Heiðarvíga saga, dentre muitas outras. São por vezes divididas internamente em mais categorias, como sagas familiares, sagas de localidades ou de clãs, sagas de skaldar. Estas sagas contêm narrativas realistas, feita em tom sóbrio e imparcial: o autor dá tanto a acontecimentos importantes quanto a corriqueiros o mesmo tom narrativo, recurso que confere grande impacto à medida que as consequências das ações importantes acontecem. Seu herói ou personagem principal pode ser um fora da lei, um skáldr, ou alguma entidade mais genérica, como uma família ou mesmo uma região da Islândia. Seus personagens não são completamente maus ou completamente bons; por vezes, um personagem obviamente heroico e virtuoso deve lutar com outro de igual valor a fim de compensar alguma ofensa a sua honra. A despeito da forma dominante em prosa, poemas são muito empregados, em particular nas sagas cujos personagens principais são skáldar, como a Egils saga e a Kormáks saga, constituindo-se em recursos importantes na apresentação de pensamentos dos personagens. O enredo centraliza-se em um ou mais conflitos, normalmente causados por alguma ofensa de honra a alguém. À medida que a parte procura sua compensação, partidos e alianças vão sendo formados e o conflito inicial pode crescer e gerar outras retaliações e ofensas secundárias. Normalmente a saga termina quando as partes são conciliadas. Geograficamente, circunscrevem-se à própria Islândia e regiões com as quais seus habitantes mantêm contato mais direto, como a Escandinávia propriamente dita, Irlanda, as Ilhas Britânicas e do Atlântico Norte. Referências à Bjarmaland ou Austrvegr são pontuais e raras, como os acontecimentos narrados na Egils saga sobre Bjarmaland e Kúrland. A natureza, o “tom”, o uso da linguagem – as características formais desse

282 ANDERSSON, 2006. 283 MUNDAL, 35. 150 gênero são razões que colaboram para um uso mais recorrente e marcado de uma terminologia, senão desprovida de componentes ideológicos e imaginários extra, ao menos mais focada na linguagem cotidiana. Também é importante a ênfase de que esta modalidade de escrita, largamente apreciada não apenas pelos seus receptores, mas também pela crítica posterior, veio a ser considerada pela historiografia como uma “fase de ouro” da escrita medieval islandesa, a chamada “era dos Sturlungs” (da qual faz parte também Snorri). Uma larga porcentagem de autores da posteridade – e não apenas de viés historicista – consideraria a produção escrita posterior a tal era como decadente, e seus antecessores enquanto passos “preparatórios” para a mesma. Retornaremos à tal discussão no capítulo 5. Esta forma de expressão linguística é similar ao encontrado em outras fontes; de nosso interesse particular será a obra de Snorri Sturlusson, no capítulo 4, que assimilaria em grande parte tal forma literária.

3.1.4 Os mappaemundi e as formas pictográficas da representação geográfica

A forma narrativa será o principal veículo de transmissão de ideias em nosso contexto de estudo, inclusive nos aspectos referentes à representação geográfica. Há uma segunda natureza de fontes que não pode ser subestimada ou deixada de lado, e que acrescenta dimensões não esperadas à compreensão da mentalidade geográfica no medievo da Escandinávia. Aqui referimo-nos à confecção de mapas e outras formas de representação pictórica do conhecimento geográfico que, como veremos muito em breve, são exemplos de alta relevância na compreensão da assimilação do conhecimento geográfico de outros âmbitos culturais no contexto da Escandinávia e Islândia, particularmente no século XIII. Por tratarmos especificamente do norte, podemos reduzir o número de manifestações pictóricas ao grupo específico dos chamado “Mappaemundi”, que consistem na forma principal encontrada nos manuscritos islandeses. Possuem-se poucos Mappaemundi no contexto escandinavo medieval. As informações contidas nos mesmos concordam razoavelmente com as veiculadas na produção escrita, e permitem pressupor certo consenso, ou ao menos uma uniformidade do conhecimento geográfico. 151

Antes, porém, de se analisar tais fontes, precisamos traçar algumas considerações sobre as próprias tradições cartográficas antigas e medievais, tendo-se em mente que não é plenamente possível tecer derivações simplistas e inequívocas das influências sofridas pelos Escandinavos no quesito conhecimento geográfico, mas que os mesmos sofreram as mais diversas influências, que se somaram ao próprio conhecimento acumulado pelos próprios, desde as eras pré-históricas. Exímios navegadores e exploradores pragmáticos por muitos séculos, mais do que qualquer outro povo europeu os escandinavos incorporaram conhecimentos e habilidades de navegação e orientação oriundos das mais diversas proveniências. Às descobertas e criações propriamente nativas, escandinavas, devem ser adicionadas influências não apenas de tradições europeias, mas também do mundo árabe e muçulmano.

3.1.4.1 Um breve panorama das tradições cartográficas

Mapas da autoria dos primeiros e mais influentes geógrafos gregos como Anaximandro (ca. 610-546 a.C.), Hecateu de Mileto (ca. 550 – 476 a.C.), Posidônio (150-130 a.C.) e Ptolomeu supostamente localizam a Europa, o norte, no quadrante superior do mapa, a África (“Líbia”) à esquerda e Ásia à direita. Entretanto, o acesso que se tem a seus mapas é dado através apenas de reconstruções feitas principalmente após o século XIX. O enquadramento do norte no quadrante superior em boa parte de tais mapas é, provavelmente uma das muitas adaptações e alterações efetuadas nos mapas da Antiguidade que inseriram conhecimento, informações, preconceitos e mesmo ideologias dos tempos do historicismo e positivismo284. A influência de tais geógrafos, suas descrições e metodologias é milenar e pode ser notada tanto no desenvolvimento da posterior cartografia ocidental quanto na equivalente do mundo islâmico. Entretanto, tal influência se deu não apenas na forma de representação meramente espacial. Antes da mera percepção e descrição empírica, o dado idealizado, o conceito e a representação matemática e geométrica constituem-se nos elementos de maior relevância na tradição cartográfica helênica285.

284 BRODERSEN, Kai. Cartography. In: DUECK, Daniela & BRODERSEN, Kai. Geography in . Cambridge: at the University Press, 2012. p.101. 285 JONES, Alexander. Ptolomy´s Geography: Mapmaking and the Scientific Enterprise. In: TALBERT, Richard J. Ancient Perspectives: Maps and Their Place in Mesopotamia, Egypt, Greece, and Rome. Chicago: At the University Press, 2012. Pp. 114, 117. 152

De fato, o homem da antiguidade preferia textos, descrições e tratados idealizados286, em detrimento de mapas, o que, por si só, possui seu peso na própria elaboração de mapas nas obras de tais autores e um direcionamento específico na confecção dos mesmos. Uma das vertentes mais ilustres a beber de tais tradições, em particular de Ptolomeu e do próprio Aristóteles287, a cartografia antiga e medieval islâmica se fundamentará basicamente no trabalho de três geógrafos: Abū Zayd Ahmad ibn Sahl al- Balkhī (morto 322 a.H./ 934 a.D.), Abū al-Qāsim Muhammad ibn Hawqal (479 a.H./1086 a.D.) e Abū Ishāq Ibrāhīm ibn Muhammad al-Fārisī al-Işţakhrī (957 a.D.). A maior parte dos trabalhos de outros geógrafos deriva ou é influenciada de alguma forma principalmente pelos trabalhos de Ibn Hawqal e Al Işţakhrī. A obra de Al-Balkhī, intitulada Ṣuwar al-aqālīm foi ampliada posteriormente por Al Işţakhrī que, por sua vez, passou pelo mesmo processo sob a pena de Ibn Hawqal, o que tem levado ao desenvolvimento da ideia de uma “escola de geógrafos de Balkhī”288. Os mapas de al-Işţakhrī e Ibn Hawqal são bastante similares entre si, tendo que provavelmente o segundo evidentemente sido bastante influenciado pelo primeiro. Os demais mapas, incluindo aqui o bastante conhecido e influente mapa circular de al-Idrīsī (1099-1165/66 a.D.), derivam grandemente da obra desses dois autores. De fato, o mapa conhecido como da autoria de al-Idrīsī provavelmente foi uma inserção em sua obra, “O livro das curiosidades”, escrito por volta de 1020 a 1050 a.D., e extensamente copiado por ocasião de 1150, quando Roger II, da Sicília, efetuou um compêndio geográfico.

286 BRODERSEN, 109s. 287 RAPOPORT, Yossef & SAVAGE-SMITH, Emilie. The Book of Curiosities and a Unique Map of the World. In: TALBERT, Richard & UNGER, Richard (eds.) Cartography in Antiquity and the Middle Ages: Fresh Perspectives, New Methods. Bril: Leiden, , 2008 P.122. 288 TIBBETS, Gerald R. The Balkhī School of Geographers. P. 108. In: HARLEY & WOODWARD (eds.). The History of Cartography. Vol. II, Book I: Cartography in the Traditional Islamic and South Asian Societies. Chicago: at the University Press, 1987.; STOCK, Günter & NEUWIRTH, Angelika. Europa im Nahen Osten – Der Nahe Osten in Europa. Akademie Verlag GmbH: 2010. P.144. 153

Figura 11: Mappamundi de Al Işţakhrī (977 a.D.). Oxford, Bodleian Library. MS Ouseley 373 fols 3b- 4a.

Em todos esses mapas, o norte fica direcionado para o canto inferior direito, sendo que no topo da página encontra-se o sudoeste. Há outras características que os diferenciam grandemente das tradições europeias; poderíamos citar, por exemplo, o centro do mundo que, ao invés de Jerusalém, encontra-se na Caaba289, bem como as vertentes de mapas zonais que continham sete zonas climáticas (as kishvarr), explicitadas em meio de círculos pelo mapa – no mapa de Al Işţakhrī, destacadas em círculos vermelhos: a primeira, na India, a segunda na Arábia e Abissínia; terceira em Egito e Síria, quarta no Irã, quinta na Ásia Menor e terras dos aş-Şaqāliba, sexta na terra dos Turcos e de Gog e Magogue, e culminando com a sétima, na China290.

289 BORGOLTE, Michael. Christliche und muslimische Repräsentationen der Welt. Ein Versuch in transdisziplinärer Mediävistik. Berlin-Brandenburgische Akademie der Wissenschaften, Berichte und Abhandlungen, Bd. 14.) Berlin, 2008. Pp.104s. 290 BORGOLTE, 100. 154

Figura 12: O Mappamundi circular de al-Idrīsī. (1099-1165/66 a.D.). Obtido em: IBN FADLAN. STONE & LUNDE (trad.). Ibn Fadlān and the Land of Darkness: Arab Travellers in the Far North. Penguin Books, 2012.

155

3.1.4.2 Os Mappaemundi291

Os Mappaemundi formam um conjunto de mapas característicos do medievo ocidental. Basearam-se nos mapas da Antiguidade, adaptando-os para a Cristandade medieval. Antes de buscarem trazer dimensões, distâncias e coordenadas específicos, retratavam eventos significativos da História Cristã. Seu propósito primário, portanto, era a instrução dos fiéis, e este mesmo sentido pode ser encontrado nos mapas da Antiguidade como, por exemplo, o mapa de Eumenius, datado de A.D. 297. Um Mappaemundi não consiste necessariamente em uma depicção gráfica do mundo; o termo pode ser empregado, por exemplo, significando uma descrição verbal ou algum sentido metafórico. Os mapas medievais possuirão também uma função histórica e narrativa, podendo ser vistos como análogos às narrativas medievais que retratam eventos separados no tempo mas dispostos na mesma cena. Os mapas enquanto ferramenta, com a função específica de auxílio a navegação, e decorrentes necessidades de precisão, serão desenvolvidos a partir do século XIII por italianos e sicilianos. Receberão o nome de “Portulanos”. Destarte, é possível elencar, a nível de técnica de composição, três métodos de compilar a informação cartográfica, coexistentes na Baixa Idade Média: - Os empregados nos já citados portulanos: enquanto primeiras cartas náuticas, eram construídas baseadas nos contornos do Mediterrâneo e limitadas pelas próprias formas do suporte (velum, etc); - Os mappaemundi parecem ter sido baseados no conceito de que haveria uma quantidade limitada de informação a ser inserida em uma área circunscrita e definida, seja oval, retangular ou redonda. Esta área é por vezes seccionada ou dividida em seções esquemáticas;

291 As informações de cunho genérico para esta seção foram obtidas basicamente nas duas maiores obras de referência na temática: a) WOODWARD, David. Medieval Mappaemundi. In: HARLEY, J.B. & WOODWARD, David (eds.). The History of Cartography. Volume I: Cartography in Prehistoric, Ancient, and Medieval Europe and Mediterranean. Chicago: at the University Press, 1987. & b) EDSON, Evelyn. Maps in Context: Isidore, Orosius, and the Medieval Image of the World. In: TALBERT, Richard & UNGER, Richard (eds.) Cartography in Antiquity and the Middle Ages: Fresh Perspectives, New Methods. Bril: Leiden, Netherlands, 2008. pp. 219-236. Conquanto o último trabalho esteja mais atualizado e insira questões importantes à discussão como, por exemplo, o próprio questionamento sobre a validade de classificações dos Mappaemundi segundo critérios contemporâneos, o valor da obra de Woodward perdura, consistindo o mesmo na base para o segundo. Informações pontuais serão citadas a parte. 156

- Um terceiro método define uma rede regular de paralelos e meridianos, nos quais a informação geográfica seria inserida.

3.1.4.3 O desenvolvimento e histórico dos mappaemundi

Cronologicamente, é possível diferenciar três principais períodos de tradição dos Mappaemundi. De Lactâncio (ca.240-320) a Gregório, o Grande (ca. 540-604), o período tardo- antigo greco-romano e patrístico (ca.400 – ca. 600) consistirá no período de gestação das principais tradições cartográficas medievais. Durante a Renascença carolíngia (VIII-XII) ocorrerá produção acelerada de livros e manuscritos nos monastérios e consequente proliferação, bem como aperfeiçoamento técnico, dos mapas. Será um período chamado por alguns autores como “ the Age of Church cartography”292. Entre os séculos XII a XIII haverá uma chamada de “Renascença do século XII”293, quando às presentes tradições adiciona-se um influxo de conhecimento árabe e dos clássicos gregos. Como acabamos de afirmar, as três tradições fundamentais, que influenciaram toda a produção de mapas no medievo e continuaram a coexistir no restante da Idade Média até o Renascimento surgiram no primeiro período, da Antiguidade Tardia. São as tradições advindas de Macrobio, Orosio e Isidoro. Na confecção dessas tradições cartográficas ocorreu uma complexa interação de diversas correntes de pensamento. Em particular, duas vertentes de escritos geográficos confluirão e influenciarão a produção de mapas no medievo: o pensamento clássico greco-romano (Macróbio, Martianus Capella, baseados em Plínio e Pomponius Mella e nas tradições de Pitágoras a Posidônio) e o pensamento da Igreja (reações mistas ao saber pagão e científico; S. Damião não via utilidade na Ciência, mas S. Jerome – 340- 420 parece ter compilado mapas da Palestina e Asia). Conquanto haja um consenso internacional na classificação dos Mapas medievais como um todo, definido em 1949 segundo proposição de Marcel Destombes no XVI Congresso Internacional Geográfico em Lisboa, os critérios de classificação

292 Apud BAGROW, History of Cartography, 42, note 55. In: WOODWARD, p. 299. 293 Apud HASKINS, of the Twelfth Century, note 50. In: WOODWARD, p. 299. 157 especificamente relativos aos Mappaemundi variam. Simar294 (1912), Andrews295 (1926), Uhden296 (1931), Destombes297 (1964), Arentzen298 (1984), Woodward299 (1987) e Dalché (1993)300 propuseram parâmetros diversos. Dalché criticaria os sistemas de Destombes e Andrews, mas não o de Woodward, por lidar com mapas anteriores aos estudados pelo último301. Tendo em vista os desenvolvimentos históricos descritos acima, empregamos a classificação de Woodward, que se baseia tanto no mesmo quanto nas classificações de autores anteriores. De fato, a despeito da publicação em 2008 da obra monumental “Cartography in Antiquity and the Middle Ages”, editada por Richard Talbert e Richard Unger302, o trabalho de Woodward permanece referência, inclusive para o supracitado trabalho. Seu sistema propõe a diferenciação dos mappaemundi enquanto zonais, esquemáticos - também chamados de tripartites, o que inclui os difundidos mapas T-O -, quadripartites e transicionais303, e não é a única forma passível de ser encontrada. No entanto, parece-nos a mais abrangente e adequada aos nossos próprios propósitos de classificação das fontes da Escandinávia.

294 SIMAR, Theophile. La geographie de l'Afrique Centrale dans l'antiquite et~au Moyen-Age. In: Revue Congolaise 3 (1912-13). pp. 1-23, 81-102,145-69,225-52,289-310,440-41. 295 ANDREWS, Michael Corbet. The Study and Classification of Medieval Mappae Mundi. In: Archaeologia 75 (1925-26). pp. 61-76. 296 UHDEN, Richard. Zur Herkunft und Systematik der mittelalterlichen Weltkarten. In: Geographische Zeitschrift 37 (1931), pp. 321-40. 297 DESTOMBES, Marcel (ed.) Mappemondes A.D. 1200-1500: Catalogue prepare par la Commission des Cartes Anciennes der Union Geographique Internationale. : N. Israel, 1964. 298 ARENTZEN, Jorg-Geerd. Imago Mundi Cartographica: Studien zurBildlichkeit mittelalterlicher Welt- und Okumenekarten unter besondererBerucksichtigung des Zusammenwirkens von Text und Bild. Miinstersche Mittelalter-Schriften 53, Munich: Wilhelm Fink, 1984. 299 WOODWARD, David. Medieval Mappaemundi. In: HARLEY, J.B. & WOODWARD, David (eds.). The History of Cartography. Volume I: Cartography in Prehistoric, Ancient, and Medieval Europe and Mediterranean. Chicago: at the University Press, 1987. Pp. 286-299. 300 DALCHÉ, Patrick Gautier. De la glose à la contemplation: Place et fonction de la carte dans les manuscrits du Haut Moyen Âge. In: Testo e Immagine nell ´Alto Medioevo, Settimane di Studio del Centro Italiano di Studi sull´Alto Medioevo. Spoleto: Presso la Sede del Centro, 1994. XLI, pp. 700-704. 301 Idem, ibid. 302 TALBERT, Richard & UNGER, Richard (eds.) Cartography in Antiquity and the Middle Ages: Fresh Perspectives, New Methods. Bril: Leiden, Netherlands, 2008. 303 WOODWARD, 1987: 295. 158

3.1.4.4 A tradição de Macróbio (ca. 395-436): os mapas zonais

O Mappamundi de Macróbio será conhecido por seu nome ou como zonal. Deriva de seu comentário ao Sonho de Scipio, de Cicero (51 a.C.), que trabalha conceitos e informações de Posidônio (ca. 135 – 51/50 a.C.), Crates de Mallos (ca. 168 a.C.) e Erastótenes (ca. 275-194 a.c., empregando conceitos de Pitágoras. Resumidamente, é um mapa que divide o globo em zonas climáticas, habitadas ou não, por meio de latitudes. Esse mapa irá empregar o conceito grego de um continente antípoda, localizado no hemisfério sul, em sua zona temperada. Cada um dos continentes – inclui-se aqui Eurasia e África enquanto um macro- continente, sendo o antípoda o outro – possuiria respectivamente, no sentido do pólo para a linha equatorial, uma zona inabitada fria, uma zona temperada e uma zona inabitada quente. Nessa última zona ambos os hemisférios encontrar-se-iam, sendo banhadas por um oceano intermediário. Martianus Capella (fl 410-39) popularizaria esse tipo de mapa em seu “Casamento de Filologia e Mercúrio”.

Figura 13: Mappamundi de Macrobius – Cópia de Johannes Eschuidus, In: Summa Anglicana, 1489. Paris, Badius, 1519. Reimpressão da edição de 1515. James Ford Bell Library, Tamanho original: 14 x 14 cm. 159

3.1.4.5 Paulo Orósio (ca.383- post 417)

A obra de Orósio difere de Macróbio e Martianus por ser diretamente dirigida contra os pagãos. Seu texto não contém nenhum mapa, nem o menciona; as opiniões acadêmicas dividem-se e há argumentos favoráveis tanto no sentido de que, ao escrever sua obra, Orosio teria em uso algum Mappamundi quanto no sentido contrário. É clara a influência que a obra de Aggripa teve no trabalho de Paulo Orósio. Entretanto, a despeito de reconstruções do suposto mapa de Aggripa, a própria natureza pictórica de seu trabalho permanece em disputa304. Não obstante seu emprego ou não de alguma representação pictórica do mundo, o fato inconteste é a influência que sua obra teve nas obras posteriores a referirem-se a Geografia e história, e na própria confecção de mapas pelo medievo. Supostamente foram influenciados por seu trabalho mapas famosos como o Anglo-Saxão “Cotton” (século X), e o Mappamundi de Hereford (século XIII). Na ausência de um mapa de sua própria lavra, toda argumentação de influência em outro mapa permanece em aberto.

3.1.4.6 Isidoro (ca. 560-636)305

A tradição de mapas inaugurada por Isidoro de Sevilha principalmente em suas Etymologiae e em De natura rerum será indubitavelmente a mais longeva e influente por todo o medievo; em um levantamento de Destombes, mais de 660 exemplos de mapas derivados de sua tradição foram encontrados por todo o medievo306. Não se possui um exemplar de mapa original de sua própria lavra, mas é perfeitamente possível compreender-se o formato do mesmo pela tradição derivada. São os chamados mapas T-O, que dividem a terra em três partes, com Jerusalém no centro do mundo. O “T”, no caso, é formado pelas massas aquáticas do mar Mediterrâneo na área superior, o rio Nilo à direita e o rio Don (Tanais, em grego) à esquerda. O “O” é a esfera circundante dos oceanos, na qual o “T” está enquadrado.

304 MERRILIS, A.H. History and Geography in . Cambridge, 2005. P.72. 305 Uma profusão de mapas isidorianos, com respectivas referências, pode ser obtida no site: Último acesso em 23/10/2014. 306 WOODWARD, 301. 160

Nesta modalidade de mapa a Ásia é colocada na parte superior, com a Europa à esquerda e a África à direita. Tal circunstância é explicada por várias razões como, por exemplo, a localização do Paraíso na Ásia, bem como a zona supostamente mais propícia climaticamente à habitação humana. Essa divisão reflete a própria divisão bíblica descrita no capítulo 10 do livro do Gênesis e retomada por Isidoro, dos filhos de Noé: Shem, Kham e Jaffet. Isidoro disporia os descendentes de Shem na Ásia, os de Jaffet na Europa e os de Kham, na África307.

Figura 14: Mapa isidoriano em T-O. In: De Natura Rerum. Florença, Biblioteca Medicaea-Laurenziana, Plut.29.39, f.19v. Século XIII. Obtido em: EDSON, 2008: 225.

307 EDSON, Evelyn. Maps in Context: Isidore, Orosius, and the Medieval Image of the World. In: TALBERT, Richard & UNGER, Richard (eds.) Cartography in Antiquity and the Middle Ages: Fresh Perspectives, New Methods. Bril: Leiden, Netherlands, 2008. p. 226. 161

3.1.4.7 De Beda a Lambert de Saint-Omer (ca. 700-1100): o surgimento dos mapas “Beatos”

Outra importante tradição cartográfica é a classificada por Woodward como “quadripartite”, mas referida comumente como os mapas “Beatos”308. Tal modalidade pode ser compreendida como uma derivação dos mapas T-O isidorianos, ou como uma mistura dos mesmos com os zonais macrobianos. Conteriam os 3 continentes, mais um “antípoda” além mar, normalmente no hemisfério sul; seu formato era retangular, e é possível discernir uma marcada influência estética e gráfica moçárabe. São mapas chamados de “evangelísticos”, mostrando os apóstolos nos cantos da Terra309. Tal tradição foi desenvolvida por Beatus de Liébana – ca. 730-800, que viveu na região da atual Cantabria, então reino das Astúrias, em seu Comentário do Apocalipse escrito por volta de 776. Não se possui uma cópia de seu suposto mapa original, mas o número de cópias e desenvolvimentos do mesmo também permitem pressupor com precisão sua forma e definem um grupo e tradição bem claros. Uma das cópias mais difundidas e conhecidas dessa modalidade de mapas é encontrada na cópia do monastério de Saint Sever. Escrito no século XI, aproximadamente nas proximidades de 1040, visto que Gregori de Montaner, abade que encomendou a obra, o foi entre 1028 a 1072.

308 RICOBOM. Introdução ao histórico da Cartografia e das concepções da forma da Terra. V.2. Departamento de Geografia, UFPR: Curitiba, 2008. Pp.03-14. 309 WOODWARD, 304s. 162

Figura 15: “Mapa do Mundo, de Beatus de Saint Sever”. O mapa é uma cópia do século XI feita na abadia franca de Saint Sever, da obra original (o comentário do Apocalipse) de Beato de liébana, monge das Astúrias do século VIII. Imagem de “Patrimonio Editiones”.Colagem nossa. Dados do manuscrito orginal: Bibliothéque Nationale de France. Ms. Lat.8878. Século 11, Ca. 1038.310

Tal classificação é uma simplificação de um quadro mais complexo, multifacetado e frequentemente marcado por tradições locais e específicas, mas resume suficientemente as linhas gerais necessárias à nossas análises subsequentes.

310 http://patrimonio-ediciones.com/en/facsimil/the-saint-sever-beatus Último acesso em 26/07/2014. 163

3.1.5 A cartografia na Scandia e Islandia medievais

Feito tal apanhado geral cartográfico, é hora de voltarmos ao contexto específico da Escandinávia. É possível se afirmar a existência de uma tradição de pensamento e depicção geográficos que datam desde os tempos pré-históricos entre os povos escandinavos e seus ancestrais. Suas formas, entretanto, diferem grandemente do que se compreende posteriormente por “Cartografia”, bem como seus objetivos. Gudmund Schütte argumentaria em 1920, em artigo publicado na Scottish Geographical Magazine, ter encontrado representações de constelações em representações pré-históricas na Dinamarca, mais especificamente nas estelas de Venslev e Dalby311, mas há dificuldades em tal interpretação, principalmente porque as supostas marcas nas pedras e nas constelações não coincidem entre si tão perfeitamente quanto o autor argumenta312. Um artigo igual, em francês, foi publicado no ano seguinte na “La Nature”, na França, por certo “Schönfeld”313, mas Schütte provavelmente foi o autor original, não apenas pela data anterior, mas também pela existência de diversas outras publicações de sua lavra sobre a temática cartográfica, em particular sobre mapas de Ptolomeu314. Não obstante a dúvida que repousa em tais modalidades de inscrições, é possível se encontrar representações referentes à própria cosmologia, como um exemplo da Árvore da Vida (no período viking e medieval chamada de “Yggsdrasil”) encontradas em Lökeberg315, e representações cosmológicas em vários níveis, encontradas no primeiro milênio A.D. principalmente em estelas pictóricas da ilha de Gotland316. Quanto ao período medieval, a Escandinávia apresenta uma notável escassez de mapas em meio a uma considerável quantidade de manuscritos: de aproximadamente

311 SCHÜTTE, Gudmund. Primaeval Astronomy in Scandinavia. In: Scottish Geographical Magazine, n.04 (1920): 244-254. 312 SMITH, Catherine Delano. Cartography in and the Mediterranean. In: HARLEY, J.B. & WOODWARD, David (eds.). The History of Cartography. Volume I: Cartography in Prehistoric, Ancient, and Medieval Europe and Mediterranean. Chicago: at the University Press, 1987. Pp.82s 313 A referência completa: SCHÖNFELD, M. L´astronomie préhistorique em Scandinavie. La Nature, no2444, 81-83. 05/02/1921 314 Destacam-se “Ptolemy´s maps of northern Europe: a reconstruction of the prototypes”, publicado pela Royal Danish Geographical Society em 1917, e os posteriores “A ptolemaic riddle solved”, de 1952, e “Ptolemy´s maps and life”, do mesmo ano. 315 SMITH, 87. 316 Idem, 91. 164

8000 manuscritos islandeses, apenas três incluem mapas – cinco mapas ao todo, mais um mapa do século XII originário provavelmente de Lund. Desses mapas, conhecem-se quatro cópias posteriores317. O pequeno número de mapas não indica um desconhecimento ou falta de interesse geográfico. O número de textos em prosa é significantemente maior: aproximadamente quatro cosmografias – das quais vinte e cinco cópias foram encontradas, diversos itinerários, mas o mais importante, muita informação e referência geográfica dispersa em toda a produção escrita, seja nas sagas, obras de cunho histórico e de entretenimento318. Os navegadores do norte e do Báltico não adquiriram o hábito de usar mapas na navegação até muito tempo depois dos seus equivalentes mediterrâneos – no século XVI, quando o uso de Portulanos já era prática corrente no sul, tal costume ainda era desprezado pelos mais antigos setentrionais319. Os cartógrafos e navegadores mediterrâneos, por sua vez, pragmáticos, tinham por hábito enfatizar e retratar as regiões nas quais tinham contato frequente ou interesse comercial. destarte, poucos Portulanos retratavam o Báltico e a Escandinávia até os séculos XIV e XV, sendo que um número ainda menor com razoável fidelidade320. É mister ter-se em conta o contexto de tais séculos, que inclui o domínio econômico da Liga Hanseática entre os séculos XIII-XVI, conflitos pela hegemonia política entre os reinos escandinavos e as cidades germânicas (que, dentre outras consequências, colaborará no estabelecimento da União de Kalmar em 1397) e os próprios efeitos da peste negra321 – todos colaboradores no sentido de que o norte europeu e a região báltica manteriam posição periférica em relação à Europa do Mediterrâneo322. Quanto à própria retratação da Islândia e das ilhas do Atlântico, a mesma circunstância se repete. Há discussão sobre qual a primeira retratação cartográfica da

317 SIMEK, Rudolf. Altnordische Kosmographie: Studien und Quellen zu Weltbild und Weltbeschreibung in Norwegen und Island vom 12. bis zum 14. Jahrhundert. Berlin: Walter de Gruyter & Co, 1990. P. 60 318 SIMEK, Rudolf. Scandinavian World Maps. In: FRIEDMAN, John Block & FIGG, Kristen Mogg (eds.). , Travel and Exploration in the Middle Ages: An Encyclopedia. Rotledge, 2000.Pp. 537s. 319 CAMPBELL, Tony. Portolan Charts from the Late Thirteenth Century to 1500. In: HARLEY, J.B. & WOODWARD, David (eds.). The History of Cartography. Volume I: Cartography in Prehistoric, Ancient, and Medieval Europe and Mediterranean. Chicago: at the University Press, 1987. p.409. 320 CAMPBELL, 415. 321 MORTENSEN, Lars Boje & BISGAARD, Lars. Medieval Urban Civilization and its North European Variant. In: BISGAARD, Lars, MORTENSEN, Lars Boje & PETTITT, Tom (eds.). Guilds, Towns, and Cultural Transmission in the North, 1300-1500. Odense: University Press of Southern Denmark, 2013. P. 09. 322 MORTENSEN & BISGAARD. 08. 165 mesma em Portulanos, sendo as opiniões mais correntes a carta de Bertran em 1482 (segundo Winter) ou a ligeiramente mais antiga, de Bartolomeu de Pareto, em 1455. Há um mapa retratando a Vinland, mas tal é controverso e não há consenso sobre sua datação. Até o século XVII todos os outros mappaemundi escandinavos, bem como os relatos e escritos em prosa, veiculam a ideia de que a Groenlândia fora um continente, ligado a leste com a Sibéria e a oeste com a Vinland. O mapa da Vinland, no entanto, mostra-a como uma ilha, concepção bastante recente. Não há nenhum padrão T-O, o norte fica na parte superior – enfim, o mapa é muito provavelmente de autoria mais recente (ver Figura 16).

Figura 16: O mapa da Vinland. Obtido em GRAHAM-CAMPBELL, James. Os Viquingues: origens da Cultura Escandinava. Vol. II. Madrid: Edições de Prado, 1997. P.177.

O mapa mais antigo medieval propriamente escandinavo é originário de Lund, mas atualmente está depositado em Berlin, aonde consta como Berlin MS.theol.Lat.149, fol.27r.323 T-O, segundo a tradição salustiana, porém sem iconografia alguma. Escrito por uma mão germânica, traz poucos nomes na Europa: apenas Roma, Bari, Achaia, Constantinopole, Grecia, Cologne, England, Dacia e Suithia324. Indica de seu autor um

323 Informações, mas sem a foto disponibilizada, em 324 SIMEK, 2000: 538. 166 conhecimento ou formação clássicos, e conexões entre Lund, Cologne e England, por outro lado. Três dos cinco mappaemundi islandeses são zonais, climáticos ou macrobianos: dividem a região setentrional e habitável da Terra em três continentes (Asia, Europa e África). Encontram-se depositados na Arnemagnean Collection, no manuscrito AM 736 I 4to 1v (início do XIV). Há uma cópia efetuada no século XVIII na Copenhagen Kongelige Bibliotek, sob o registro Ny Kongelige Samling Nks 359, 4to, p.15, bem como uma registrada como AM 732b, 4to, 3r, do início do século XIV. O manuscrito Gks 1812, 4to325 contém três mapas. O primeiro, no fólio 11v, consiste em um pequeno mapa do século XIII, registrado como “Gamle Kongelige Samling MS Gks 1812, 4to, 11v”. Depositado na Copenhagen Kongelige Bibliotek e copiado no século XVII para o AM 252, fol. 59v., não mostra a divisão zonal. Esse mapa é uma cópia de alguns mapas similares no tratado cosmográfico “De filosofia mundi”, escrito c.1130 por William de Conches. O texto foi adaptado dele, e nele está incorretamente atribuído em alguns manuscritos a Beda. O mesmo manuscrito contém dois mapas T-O. O primeiro, copiado em AM 252, fol, 58r, é extremamente simples. Contém a divisão dos três continentes com seus nomes apenas, consistindo no centro de um diagrama maior que contém direções cardinais, ventos, estações, idades do homem, meses do ano e signos do zodíaco respectivos. O outro exemplar é de maior interesse aos nossos propósitos. Está copiado no AM 252, fol, 62r. Em página dupla (5v-6r), contém mais de 100 nomes, cerca de 70 dos quais são nomes de países, quase todos em latim. Esse mapa mostra similaridade com algumas das cosmografias e listas citadas anteriormente, mas não há uma ligação clara de autoria entre eles. Carl Christian Rafn datou-o por volta do ano 1150326; Kristian Kålund, de ca. 1250327.

325 Descrição e informações do manuscrito em . Último acesso em 21/10/2014. 326 RAFN, Carl Christian (ed). Antiquités Russes d'après les monuments historique des anciens et des Islandais Scandinaves. Copenhague, 1850-1852, vol. 1. 327 KÅLUND, Kristian (ed). Landalýsingar m.fl.. In: Alfræði íslenzk 3. Copenhague: Møller, 1917s. 167

Figura 17: O Mappamundi islandês do Gks 1812, 4to, 5v-6r. Obtido em PRITSAK, Omeljan. The Origin of Rus.

A estruturação deste Mappamundi é bastante simples. O esquema T-O apresenta-se meramente como o parâmetro geral de organização, divindindo os continentes em três áreas separadas pelo Mediterrâneo, Egito e Don (“Tanakvisl”), não havendo nenhuma tentativa de representação das localidades via um sistema de coordenadas matemático-geográficas, tampouco alguma tentativa de depicção gráfica dos locais. As localidades estão representadas apenas por seus nomes, inclusive os rios e mares. Os quatro cantos possuem as direções cardinais em antigo nórdico e latim: austr/oriens, suðr/meridies, occidens/vestr e norðr/septentrio. A disposição geral do mapa, com o sul para o alto, apresenta semelhança mais com as tradições cartográficas árabes do que propriamente com as do medievo ocidental, que normalmente apresentam a Ásia no canto superior; aparentemente, temos um modelo T-O ocidental inserido em uma estrutura ao menos influenciada pela cartografia islâmica. 168

Entretanto, é de se destacar que, nos pontos de intercecção entre os dois folios, tanto no canto superior quanto inferior, existem duas seções separadas, espécie de tabelas, contendo informações pouco usuais em mapas T-O:

a) Intersecção entre Ásia e África: Suðr Meridies (euro)? (dies)? Estas calida. Iuuenta calor (spiritus)

b) Intersecção entre Ásia e Europa (logo abaixo de “Biarmar habitavit hic.”): (Norðr)? Septentrio Circius qui et troacias Hiemps frigida De crepita frigus corporis

A mesma circunstância dá-se nos outros pontos cardinais; na área a leste, na Ásia, encontram-se as seguintes inscrições:

Septemtrio Aquilo qui et boreas; Vvlturnus qui et calcias. Sub solanus. qui et afeliotes. Eurus Ver tepidu(m) Infancia tepor sangvinis. Asia

Enquanto que, no oposto, ao ocidente, pode-se ler o seguinte:

Auster qui et nothus. Euro nothus Affricus qui et libs. Zephirus. qui et fauonius. Corus qui et ariestes. Autumnus humidus Senecta humor aqua

Tal espécie de informação, em particular a de natureza climática (ie. “Autumnus humidus”, “outono úmido”), é muito mais comum nos mapas zonais, demonstrando uma influência dos mesmos, acentuada pela divisão circular, em particular na Ásia. Todo esse esquema está inserido em uma série de círculos concêntricos. As informações e nomes contidos no círculo central são as localidades geográficas; a metade do mapa contendo a região da Ásia, mais detalhada, possui ainda dois outros níveis, nos quais regiões mais amplas são descritas. Por exemplo, o nível mais central contém localidades como “Calldea” e “Babilon” (nome que se repete em outra área); o 169 nível superior contém “Mesopotamia”, e o nível ainda superior a ele locais como “Parthia”, “Media”, o que apresenta uma espécie de organização em províncias e localidades internas a estas em espécies de grupos contendo subgrupos, mas acaba por não se apresentar de forma tão precisa. Nas regiões da África e Europa todos os nomes de localidades estão inseridos no círculo central. Nos níveis superiores estão as indicações de continente (“AfRica” e “EuRopa”) O fólio 5v é totalmente preenchido pela Ásia. Nessa seção, podem ser lidas algumas breves descrições e explicações latinas acerca do clima, já citadas há pouco, e os seguintes nomes:

Monstras328, India, Massagete, Caspies, Colci, Seres, Bactria, Hircania, Armenia, Parthia, Media, Persidia, Carmania, Caria, Frigia, Troia, Pamphilia, Hiberia, “Tigris fluuius”, Mesopotamiam, “Charra ciuitas Abrahe”, “Asia minor”, Isauria, “Cilicia ciuitas Thar(s)us”, Cappadocia, Commagena, Palestina, Cesarea, Sidon, Tyrus, Assiria, Calldea, Babilon, Evfrates, “Arabia ibi est mons Syna id est”, Horeb, Ptholomais, Philistea, “Libanus mons”, Madianite, Iudea, “Hebron ibi sepulltus est Adam primus”, Galathia, Nazareth, Hierusalem, Galilea, Hiericho, Egiptus, Babilon, Syria, Ascalia, Iopen, Alexandria, “Tanakvisl fluuius maximus”, “Nilus flumen Egipti”.

Há uma grande riqueza de tradição bíblica e clássica. Os nomes listados incluem não apenas cidades e países, como Jerusalém, Babilônia e Tróia, mas também elementos topográficos e hidrográficos: Libanus mons – Montes Líbanos, localizados ao norte da Judéia, Tanakvisl fluuius maximus – o Don, incluindo aqui o único nome em antigo nórdico329 em tal seção do mapa. Os comentários, inclusive, permitem-nos ter vislumbres e suposições sobre a natureza das discussões relativas ao conhecimento bíblico e clássico dos eruditos islandeses: a especificação de Cilicia ciuitas Thar(s)us nos demonstra a preocupação do(s) autor(es) do mapa em especificar qual Tarsís está em questão, a Társis-Tarso, local de nascimento do apóstolo Paulo, próxima à região da Cilicia, ou a Társis- Tartessos dos fenícios, localizada no estrito de Gibraltar, para onde supostamente rumava o profeta Jonas.

328 Segundo Rafn nas Antiquités Russes, vol. II, p.392, “Monstrosa”. 329 O rio Don – Tanais para os autores gregos, Tanakvisl para os escandinavos. 170

O nome “Babilon” é encontrado duas vezes no mapa. Em uma delas, está na região na qual se espera encontrá-lo, numa lista que inclui Assiria, Calldea, Babilon e Evfrates. Na outra aparição, no entanto, está colocado ao lado de Egiptus, abaixo de Hierusalem e acima de Nilus flumen Egipti. Poderíamos nos perguntar se porventura, antes de um erro, não se trata de uma interpretação teológica envolvendo o simbolismo de Babilônia como cidade da perdição e mal, conectando o ao Egito, lugar do cativeiro de Israel. Quanto ao folio 6r, é preenchido na parte superior pela África e na inferior, pela Europa. Enquanto a área da Ásia, já referida, apresenta-se bastante completa com nomes de locais retirados das tradições clássica e bíblica, o mapa não é tão preciso nos continentes restantes. Na Europa a nomenclatura é razoavelmente precisa, refletindo bem a divisão geográfica dos séculos XII e XIII, mas trazendo pouco detalhe sobre a região Báltica e do próprio norte da Europa; o próprio Mar Báltico não é citado. Quanto ao texto na África traz poucas localidades e precisão; os poucos nomes, com um número relativamente grande de acontecimentos, derivam também da tradição clássica. Segue a seguir uma transcrição do folio 6r, que contém os continentes da África e Europa. Encontra-se em itálico os nomes cuja direção da escrita foi alterada ou rotacionada para possibilitar a leitura em nosso meio de transmissão. As proporções e distâncias, entretanto, foram mantidas com precisão, inclusive a divisão das palavras em linhas: 171

Occidens vestr Auster qui et nothus. Euro nothus Affricus qui et libs. Zephirus. qui et fauonius. Corus qui et ariestes. Autumnus humidus Senecta humor aqua AfRica EuRopa Hic s(unt) Normannia Tile Island solitu- E Brittannia dines thi Vasconia o inacces pia Hispania sibiles (et) arene usque, huc

Libia prouincia Garamannia Ibernia Affrice que est Getulia ibi in- Anglia Scocia Norvegie Bia(r)ma(r) circa Cirenen fantes ludunt Parmo Gautland habitavit hic. montes330 serpentib(us) Sviþioð Gallia Frisia Gaulo insula ibi Danmorc Rvsia

Mediterranum Mare Fra(n)cia] Saxonia nec serpens nasci- tur nec uiuit La(n)gobardia Numidia Roma Mauritanie.III. Kio Italia Pentapolis régio Eronei331 Apulia ibi sunt v urbes Constantinopolis Trogita prouincia Sparta Tracia ibi in uenitur carbu(n)- Scithia Grecia culus igneus (et) al- frigida

ter exacontalit(us).LX.

colorib(us) micans Misia Bizancena fruc- tissima terra

Há poucas regiões que se referem ao mundo escandinavo. No mundo atlântico, em áreas distintas encontramos Tile/Island (Islândia), Ibernia (Hibernia - Irlanda), Anglia, Scotia (Inglaterra e Escócia). Na Escandinávia propriamente dita temos um

330 Para Kålund, o correto seria “Pireneus”. In: Landalýsingar m.fl.. In: Alfræði íslenzk 3. Copenhague: Møller, 1917s. 331 “Nômades”. 172 agrupamento de Norvegie (Noruega), Gautland (a região meridional da Suécia, Gotaland), Sviþioð (nome para a Suécia dos Svear, a norte de Gotaland) com Rvsia (Rus), enquanto que a Dinamarca (Danmorc) está listada entre Frisia e Saxonia. A Biarmaland encontra-se separada, com uma pequena descrição: Bia(r)ma(r) habitavit hic. No âmbito da Rússia, temos poucos nomes: Eronei, significando “nômades”, Kio, para Kiev e, próximo a uma Sparta, temos Scithia frigida, a “Cítia fria”. A própria Constantinopla está agrupada com cidades do Mediterrâneo, e não associada ao mundo de Rus. Esta disposição de localidades, forma de organizá-la, inclusões e omissões permitem-nos traçar algumas conclusões sobre as pessoas envolvidas na produção do mapa, e mesmo em relação a sua datação. Em primeiro lugar, o mapa é evidentemente um instrumento de instrução, de materialização de conceitos, ao invés de um meio de localização. A instrução, no caso, refere-se ao conhecimento das tradições bíblica e clássica. A profusão de dados de ambas as tradições é bastante evidente, seja na meticulosa caracterização da Ásia ou na livresca apresentação africana. Não há uma ênfase nas próprias terras de origens escandinavas. Conquanto haja a divisão sueca entre Gotaland e Sviþioð, a especificidade escandinava quase se encerra por aí. E o conhecimento sobre Escandinávia e adjacências demonstrado ali está entremeado de interpretações clássicas; note-se que a Islândia é apresentada com o nome de Tile (Thule), a ilha setentrional dos navegadores gregos sobre cuja natureza a discussão perdura até os tempos contemporâneos. Já-se teorizou sobre uma localização exata, sobre um conhecimento prático de tal ilha, identificando-a ora com a Islândia, ora com as Ilhas Britânicas, ou como mera estória de um lugar fantástico, setentrional, cercado de monstros e gelo. O autor do mapa, no entanto, identifica-o claramente com sua própria ilha. Quanto à Rússia, é notável estar listada conjuntamente com Noruega e Suécia, em contraparte ao ajuntamento da Dinamarca com as regiões germânicas continentais. Mas aqui também há o influxo do saber bíblico-clássico a uma tradição mais especificamente escandinava, e a identificação de Scithia frigida remete-nos à esta mistura de tradições e regiões ao lermos autores como Snorri, que chamaram a Rússia, ou a região a norte do Mar Negro, de Sviþioð, a “fria”, ou a “grande”:

173

En norðan at Svarta-hafi gengr Svíþjóð in mikla eða in kalda Ao norte do Mar Negro se encontra Sviþioð, “a grande”, ou “a fria”.

(Heimskringla, Ynglingasaga, 01332. Tradução e grifo nossos)

A terminologia para as regiões cardinais e a inserção das regiões escandinavas é efetuada de forma tênue em tal mapa. “Leste” é identificado majoritariamente com a Ásia; à Europa (destarte, à Escandinávia) resta a inserção entre oeste e norte. Não se pode encontrar nuances terminológicas e maneirismos do antigo nórdico em tal terminologia. Austrvegr e Garðaríki são sequer mencionadas; o Báltico não está retratado, tampouco outros rios significativos da Rus, com exceção do Don – que o é pela sua relevância no costume dos mapas T-O. Biarmaland também está, dessa forma, em um simples norte, sem matização, sem as incorporações literárias e conceituais sobre os Bjarmar, ainda que contendo uma inscrição. Tal, no entanto, coloca-os em patamar similar às descrições de outras partes do mundo: “aqui habitavam os Bjarmar”; descrição distante, do outro, de um diverso mundo, de uma outra realidade. Em suma, o conhecimento que se obtém da cartografia medieval escandinava revela-nos antes o que ele nos traz sobre o aprendizado erudito escandinavo das tradições ocidentais islâmicas do que propriamente no conhecimento geográfico específico escandinavo, em particular no que toca ao leste. Para discerni-lo mais claramente, teremos de nos centrar em outras modalidades de fontes, metodologias e recursos, que é o que faremos a seguir.

332 JÓNSSON, Finnur (ed). Heimskringla: Nóregs konunga sögur. Copenhagen: Gads, 1911. P.04. 174

3.2 Quadro etno-linguístico de Austrvegr e Garðaríki entre os séculos VIII e XIII

A região da Rússia européia era habitada por diversas populações de filiações étnicas e linguísticas diversas no período das expansões eslávicas e escandinavas no norte da Rússia (séculos VIII-IX). Os principais grupos autóctones da região vinculavam-se ao ramo Fino-úgrico da família linguística Uralo-Altaica e ao subgrupo báltico da família indo-européia. Atualmente grande parte desses grupos foi extinguida e/ou absorvida, como o antigo prussiano, ou possui idiomas em estado de extinção, como o Livio, Vote, Vepse e o antigo curônio. O número de referências nas fontes escritas é pequeno, e por vezes a interpretação arqueológica é controversa. Algumas das denominações empregadas nas fontes escritas modificaram-se ao longo dos tempos, assumindo conotações diferentes e mesmo indicando populações diversas, como o caso do termo “Eistland”. Outras assumiram significados diversos de cunho político e mesmo nacionalista, como no caso de Permia/Bjarmaland. Dessa forma, faz-se necessário um estudo mais detalhado do quadro etno-linguistico do contexto de forma a se agregar contribuições dos estudos históricos, arqueológicos, antropológicos e linguísticos. Ao tratar do leste físico, geográfico, bem como os povos que nele habitavam, as fontes escandinavas diferenciam as regiões de Austrvegr e Garðaríki (vide Mapa 01). Por Austrvegr, em um sentido mais estrito etno-geográfico, ficavam compreendidas as regiões de norte e leste do Mar Báltico que atualmente incorporam a Finlândia, os Países Bálticos (Estônia, Letônia e Lituânia) e a antiga região da Prússia, atualmente a região administrativa russa de Kaliningrad. Garðaríki incorporava mais propriamente o território da atual Rússia europeia, Bielorússia e Ucrânia. Nos séculos XIII-XIV o significado de seu nome fica associado a “Reino das cidades”, devido ao grande número de fortificações e paliçadas com os quais os escandinavos ali se deparavam. Entretanto, no período viking a quantidade de fortificações não era significativa, o que causa problemas interpretativos quanto à origem do nome ao deparar-se com o mesmo (ou variantes) em estelas rúnicas do século XI. Bjarmaland é citada à parte, e incorpora muito do fantástico, do desconhecido, do outro. É citada como parte do leste, mas diferentemente das regiões de Austrvegr, não se encaixa perfeitamente na mentalidade e nos costumes escandinavos. É a 175 incorporação do outro, a região limítrofe entre o conhecido e desconhecido, o natural e o sobrenatural, o crível e o fantástico, o dominado e o incontrolável. Seus habitantes são sempre antagonistas que amiúde empregam magia e recursos sobrenaturais contra o herói ou personagem principal da narrativa. Sua linguagem é incompreensível. Seus deuses, estranhos e diferentes. Em alguns casos, particularmente na Gesta Danorum, os finni, “finlandeses”, são com frequência citados em conjunto com Bjarmaland. Há por volta de seis trabalhos em Antigo Nórdico contendo descrições geográficas da Europa, todas derivadas de duas redações principais de uma descrição encontrada no capítulo 4 do livro 14 das Etimologias de Isidoro. A estas descrições as fontes acrescentam as localidades do mundo setentrional. A primeira redação é encontrada na Heimslýsing, encontrada no Hauksbók (AM544) e escrita no século XIII, e na Upphaf. A segunda redação é representada pelo Landafraedi e o Tocius orbis brevis discriptio. No que toca à Europa de Norte e Leste, a Ǫrvar-Odds saga, no capítulo 30, apresenta uma listagem muito similar à da Heimslýsing e, inclusive, mais completa que ela, com a adição de nomes encontrados apenas na Upphaf333. A listagem apresentada na Ǫrvar-Odds saga não possui pretensões de um tratado geográfico; antes, apresenta uma listagem de exércitos que veio em suporte a Kvillanus/Ögmundr, o adversário de Oddr. Todas estas redações apresentam uma reelaboração da já reelaborada versão de Isidoro da genealogia bíblica, conectando as cidades da Rus à genealogia de Noé, via seu filho Yaffet, seguido de Magog. Quanto aos nomes das cidades da Rus, a Heimslýsing e a Ǫrvar-Odds saga apresentam a mesma listagem, e apresenta similaridade grande com a descrição apresentada na própria Póviest vriémennikh liet. Vejamos a listagem das localidades:

- Na Heimslýsing: “Hia Garðariki liggia lond þessi [a.] Kirialir, Refalir, Tafeistaland [b.] Virland, Eistland, [c.] Lifland, Kurl [and], [d.] [e.] Erml [and], Púlinaland334.”

333 PRITSAK, 520; 529. 334 Heimslýsing. In Hauksbók. AM 544, 4°, f.3v. Ed. JÓNSSON, Finnur. P. 155. 176

- Na Ǫrvar-Odds saga, redação A/B335: “þar var ok mikill herr af Kirjálalandi ok Rafestalandi, Refalandi, Virlandi, Eistlandi, Líflandi, Vitlandi, Cúrlandi, Lánlandi, Ermlandi, ok Púlinalandi.”

Havia também uma grande horda (vinda) de Kirjálaland e Rafestaland, Refaland, Virland, Eistland, Lífland, Vitland, Cúrland, Lánland, Ermland, e Púlinaland (Ọrvar-Odds Saga, 30, redação A/B. Tradução nossa)336

É importante ressaltar que os autores de tais fontes agrupam as localidades por critérios quase que estritamente geográficos. A despeito da relevância da linguagem ao se tratar da etnicidade no medievo, as localidades em tais listas são apresentadas em agrupamentos regionais que por vezes contém grupos etno-linguísticos distintos, mas habitantes de regiões limítrofes como, por exemplo, os kurs e os Livônios da Letônia atual – por sua vez, compreendidos nos grupos etno-linguísticos balto-indo-europeu e fino-úgrico. Descrições, sejam de cunho mais “fictício” na Gesta Danorum de Saxo Grammaticus, seja de cunho mais cronístico, como na Henrici Chronicon Livoniae, apresentam também quadros interessantes das interações entre tais populações – novamente, de forma que não se apega a critérios etno-linguísticos. Saxo Grammaticus, ao apresentar a lista de povos do norte que combateram na Batalha de Bravalla junto de Dinamarqueses de um lado ou Sueco do outro, apresenta kurs e estonianos no campo dos suecos, e livônios no campo dinamarquês. De forma bastante etnográfica, no entanto, Saxo cita amiúde os Finni em conjunto com os Biarmi, enfatizando diferenças peculiares em relação aos escandinavos – como, por exemplo, o que ele descreve de “nomadismo”. A Henrici Chronicon Livoniae narra sobre as alianças entre kurs e estonianos de Saarema. Feitas tais considerações, fica a lembrança de que as categorizações etno- linguísticas contemporâneas possuem caráter instrutivo e didático, mas não devem ser tomadas como fatores exclusivos ou dominantes na interpretação das dinâmicas sociais do medievo.

335 Acerca da Ǫrvar-Odds saga , manuscritos e redações, vide capítulo 05. 336 In: RAFN, C.C. (ed.) Fornaldarsögur Nordrlanda. Vol. II. Kaupmannahöfn, 1829. 30 K; p. 294. 177

3.2.1 Fino-úgricos

O termo de cunho etno-linguístico “fino-úgrico” refere-se aos grupos humanos de uma das subdivisões da grande família linguística Urálica. Sua expansão geográfica dá-se por todo o norte Eusasiático, e sua unidade com o grupo Altaico é objeto de discussão337. O ramo fino-úgrico possui duas grandes subdivisões, fino-permiano e úgrico que, por sua vez, subdividem-se ainda mais. No recorte de interesse às relações escandinavas e eslavas no medievo, as populações fino-úgricas em questão pertencem ao subgrupo fínico com suas divisões entre fino-báltico, e inclui diversas populações da: a) região norte da atual Rússia Européia, muitos extintos ou em perigo de, como os Vepsi, Voti, Kareli; b) região báltica, incluindo as diversas tribos de finlandeses e estonianos e os livonianos da Letônia) e proto-saami (que compreendem os Saami – denominados popularmente como “lapões”)338. O grupo etno-linguístico do ramo fino-úgrico da família uralo-altaica pode ser considerado como o mais próximo que temos condição de definir enquanto “autóctones” da Europa setentrional e Norte-oriental. Os territórios antigamente habitados pelos mesmos eram muito extensos, tendo sido grandemente reduzidos. Parte considerável de regiões habitadas antigamente por populações de fala fino-úgrica é atualmente habitada por grupos indo-europeus (germanos, baltos e eslavos) e turcos. No contexto do Norte da Rússia européia os grupos fino-úgricos de maior destaque são o ramo balto-finês. Desses, atualmente sobrevivem os livônios, estonianos, finlandeses (dentro dos quais, os kareli) e lapões (saami). No período de escrita da Póviest vriémennikh liet a região entre o Golfo da Finlândia e o Mar Branco era habitada por outros grupos aparentados entre si: Vepsi, Votes e Kareli. Os povos fino-úgricos referidos nas fontes escandinavas e estelas rúnicas são: Na Finlândia: - Finnland, Finnmark: o nome que empregamos para a Finlândia propriamente dita, “terra dos finnar”, traz uma peculiaridade com a significação atual. O termo “Finnland” pode ser empregado para a atual região sul-ocidental da Finlândia, Suomi em finlandês,

337 MARCANTONIO, Angela (org). The Uralic Language Family: Facts, Myths and Statistics (Publications of the Philological Society). Oxford: Wiley-Blackwell, 2002. pp.21ss, 35ss, 48ss. 338 DÉCSY, Gyula. Einführung in die Finnisch-Ugrische Sprachwissenschaft. Wiesbaden: Otto Harrassowitz, 1965. 178

Sum´ em antigo russo. É um termo encontrado nas estelas rúnicas G 319 e U 582339. Porém “Finnar” é empregado geralmente nas sagas para os Sáami, e não para finlandeses; Samland, a Lapônia, é destarte referida como “Finnmark”. Em Saxo Grammaticus, Finnmarchia. Uma exceção parece ocorrer no capítulo 09 da Óláfs saga ins helga quando, em um reide, Óláfr Haraldsson ataca Finnland, o texto em prosa cita os Finnar, mas a poesia, os Finnlendingar340.

- Tafeistaland/ Rafestaland: “terra dos preguiçosos”341: Região conhecida como a província da Tavastia, na Finlândia de centro-sul; Häme em finlandês e Yam em antigo russo. O termo é empregado na Ǫrvar-Odds saga (como Rafestaland), na Hemslýsing, p.155, 1.21, e na estela rúnica Gs 13.

- Kirjaland: Karelia. Termo atestado na Heimslýsing (como Kirialir), na Ǫrvar-Odds saga (Kirjalaland). É possível que a estela U 180 refira-se a Vyborg da Karelia (Viipuri), ou a Viborg da Jutland.

- Bálagarðssíða: Referência rara, parece se referir à costa sul da Finlândia, rumo ao Golfo da Finlândia342. Aparece no capítulo 09 da Óláfs saga ins helga, no capítulo 119 da Njáls Saga e no capítulo 07 da Hálfdanar Saga Eysteinssonar. O que, per se, consiste em distribuição interessante, por se tratar de três gêneros distintos de saga: uma Könungasaga, uma Íslendigasaga e uma Fornaldarsaga.

Na Estônia: A Estônia contém quatro referências certas, mais duas dúbias em inscrições rúnicas varegues, bem como uma descriminação terminológica bastante acurada. Tal circunstância deve-se possivelmente à importância da rota comercial passando pelo Golfo da Finlândia e o norte da Estônia – a região estoniana de Virumaa, que inclui a costa norte do país, é a que possui maior referenciação nas estelas rúnicas (três

339 МЕЛЬНИКОВА, 1976: 201; ДЖАКСОН. 340 AALTO, Sirpa & LAAKSO, Ville. Karelia, Finland and Austrvegr. In: Á austrvega: Saga and East Scandinavia. Preprint papers of The 14th International Saga Conference. Uppsala, 2009. p.07. 341 PRITSAK, 359. 342 ZILMER, Kristel. Learning about Places and People: Representations of Travelling Connections and Communication situation in the Sagas of Icelanders. In: Sagas and Societies - Conference at Borgarnes, Iceland, 2002. P. 01. 179 ocorrências).

- Virland: região costeira setentrional estoniana. Em estoniano, Virumaa, a região pode ser satisfatoriamente equacionada com a região de Narva citada na Póviest vriémennikh liet. Referenciada nas estelas U 346, U 356 (contém a mesma mensagem e foram confeccionadas pelo mesmo artesão) e U 533, bem como na Heymslýsing e na Ǫrvar- Odds saga (30). Virumaa foi a região estoniana com maior contato escandinavo no período viking, devido à sua localização próxima ao Golfo da Finlândia, que a colocava diretamente no principal ramo do Austrvegr.

- Rifaland/ Refaland: termo que se refere à região da Revalia, sendo Reval o nome medieval para a atual capital da Estônia, Tallinn. É um termo não encontrado nas estelas rúnicas, mas nas fontes medievais, como de se esperar. Encontra-se Refalir na Heimslýsing e Rifaland na Ǫrvar-Odds saga (30).

- Eistland/Estland: Eistland é um termo genérico para Estônia propriamente dita. Deve- se atentar para a circunstância de que termo similar fora empregado em Tácito e na tradução de Alfredo de Orósio para a região mais meridional e de caráter etno- linguístico muito diverso da Prússia Oriental (listadas no século XIII nas regiões de Samland e Ermland, e nas fontes anglo-saxônicas também como Witland, serão discutidas adiante). O termo é encontrado amplamente nas fontes escandinavas, incluindo sagas, as fontes geográficas mencionadas (Ọrvar-Odds 30), os trabalhos de cunho mais universal de Saxo e Snorri, e na estela Vg 181. A estela U 439 possui o termo “–skalat”, interpretado como Aistland ou Serkland343 – interpretações bastante díspares, portanto344. Na Póviest vriémennikh liet os estonianos são chamados de chud. Pritsak345 considera que as estelas U 446 e Sö 45 possuam referências à Eistland por meio do nome próprio Æist-fari, “o que viaja para os Æisti”, mas é interpretação dúbia. Poderíamos sugerir o significado “o que viaja para leste”, por exemplo.

343 Serkland é termo que pode significar a região além Volga, no mundo muçulmano, ou a região os Khazares, às margens do Mar Cáspio. Como veremos no capítulo 04, por vezes o nome é empregado para África, à medida em que se conecta com os islâmicos. 344 A interpretação que –skalat é aistland é endossada por Melnikova (МЕЛЬНИКОВА , 1977: 201). Tal estela faz parte das chamadas “Estelas de Yngvarr”, série de estelas que referem-se à expedição de grande alcance ao leste efetuada por Yngvarr , que terminou em desastre nas proximidades do Cáspio, e que iniciou-se no Báltico Oriental. Sua argumentação centraliza-se na interpretação de que a expedição de Yngvarr partira da Estônia. Omeljan PRITSAK (p.362) considera tal interpretação errônea. 345 PRITSAK, 362. 180

Os estonianos possuem papel proeminente nas narrativas escandinavas, portando-se de forma muito similar aos próprios vikings oriundos de tais regiões, travando comércio e alianças ou lutando com os mesmos. Uma das elaborações mais significativas envolvendo aos estonianos está na Heimskringla (século XIII), que contém a captura e escravidão do ainda menino Olaf Tryggvason, posteriormente Olaf I da Noruega, por vikings estonianos. Vendido e criado como escravo por um estoniano chamado de Klerkon, passa nas mãos de outros donos, até ser comprado por seu tio Sigurðr Eiriksson e ser levado para crescer em Garðaríki.

- Aðalsýsla e Eysýsla: Aðalsýsla é um termo para aregião costeira ocidental estoniana. Eysýsla refere-se à a ilha estoniana de Saaremaa, no Golfo de Riga346. Pritsak e Melnikova (1977: 201) consideram que a estela U 518 traga referência à ela por meio de “isislu”. O Rundata apresenta a mesma localidade enquanto a ilha de Selaön, no lago Malaren, Suécia. Muitas das referências literárias aos estonianos são feitas a estonianos específicos de Saaremaa, muitas vezes em conjunto com os baltos kurs. Saxo Grammaticus emprega o termo “Rotala” ao se referir à costa norte-ocidental estoniana, na altura de Haapsalu.347

- Rüno: Há uma possível referência à ilha de Rüno, no Golfo de Riga, na estela Vs 22, mas a interpretação é dúbia e a estela, bastante danificada348.

- Lifland – normalmente listada juntamente com as regiões de etnicidade báltica (kurir e semgallir), habitantes da atual Letônia. Refere-se aos Livônios, que habitavam as regiões setentrionais da Curlândia e da atual Letônia. Atualmente, consistem em minoria étnica no norte da província de Kurzeme (Curlândia), na Letônia. O termo é listado nas estelas rúnicas U 698, Sö 38 e em muitas fontes escritas tradicionais, incluindo a Gesta Danorum de Saxo Gramaticus, a Heimslýsing e a Ǫrvar-Odds saga. Na Póviest vriémennikh liet são listados como liv. O maior conhecimento que se tem de seus costumes se dápor meio da Chronicon Livoniae, escrita no século XIII por Henri da

346 MÄGI, 2011: 194; FINLAY, Alison & FAULKES, Anthony (trads.) Heimskringla University College London: Viking Society for Northern Research, 2011. Pp.235 & 240. 347 FISCHER, Peter. On Translating Saxo. In: FRIIS-JENSEN, Karsten (ed.). Saxo Grammaticus: a Medieval Author between Norse and Latin Culture. Museum Tusculanum Press: Copenhagen,1981. p.62. CHRISTIANSEN, 1997: 111. 348 МЕЛЬНИКОВА, Е.А. Скандинавские рунические надписи: Тексты, перевод, коммент.; АН СССР, Ин-т истории СССР. – Москва : Наука, 1977. 206. 181

Livônia – provavelmente um clérigo germânico. - Domesnes, Domesnäs, Tumisnis: o cabo de Kolkasrags349, na atual Letônia, localizado à entrada do Golfo de Riga, entre a costa letã e a ilha estoniana de Saaremaa, é citado na Sö 198. A região de Kolka é, ainda atualmente, um dos últimos locais com residentes livônios, tratando-se de área protegida pelo governo letão.

3.2.2 Os Baltos

Atualmente apenas na Letônia e Lituânia, bem como em colônias de tais etnias em outros países, existem descendentes dos antigos baltos indo-europeus. A partir do período medieval os países bálticos sofreram contínua dominação de potências estrangeiras, em particular escandinavos, germânicos e, por fim, eslavos, possuindo seu território original drasticamente reduzido. O conhecimento de seu passado é fragmentário e ocupa pouco espaço nos estudos interessados em escandinavística e eslavos de leste, havendo pouquíssimos trabalhos acessíveis a pesquisadores ocidentais a preencher tal lacuna. Especificamente temos apenas “The ”, de Marija Gimbutas, bem como uma parte considerável em sua obra “The Europe”, e “Foreword to the Past: A Cultural History of the Baltic People”, de Endre Bojtar, destinada ao tópico. “The Balts”, entretanto, apesar de empregado por acadêmicos do Ocidente como manual, é considerado ligeiramente defasado em alguns aspectos arqueológicos por especialistas nos próprios países bálticos, em particular na Lituânia350. Trabalhos conjuntos entre acadêmicos dos Países Bálticos e da Escandinávia têm surgido, entretanto, aos poucos clarificando melhor a situação, em particular no campo dos estudos arqueológicos, e há um crescimento constante na produção de periódicos também acessíveis via internet, providenciando melhor divulgação e compreensão de contextos até então não estudados pelo meio acadêmico brasileiro. As referências nos autores clássicos aos povos bálticos são muito poucas, e a identificação étnica dos mesmos não é absoluta. Gimbutas assume que os “Neuri” de Heródoto seriam Baltos, em seu ramo oriental351, mas a identificação não é inequívoca. Os “aesti” de Tácito, entretanto, são considerados com maior consenso como

349 МЕЛЬНИКОВА, 1977: 200. 350 BOJTAR, Endre. Foreword to the Past: A Cultural History of the Baltic People. Budapeste: Central European University Press, 1999 [1997]. p.58, nota 18. 351 GIMBUTAS, Marija. The Balts. London: Thames and Hudson, 1963. pp.97-102. 182 populações bálticas ocidentais, habitando a região circundante da atual península de Kaliningrado e os territórios da antiga Prússia Oriental e sul da Curlândia. Os territórios habitados pelos povos bálticos, em seu ramo oriental, estendiam-se no passado até as proximidades das atuais Moscou e Yaroslav. Tal hipótese é fundamentada na comparação das culturas arqueológicas e, em principal, na análise de topônimos feita por Buga (entre 1913 e 1924) nos rios da Bielo-Rússia, Vasmer (em 1932) nos distritos de Smolensk, Tver (Kalinin), Moscou e Chernigov, e de Toporov e Trubachev (em 1962) na bacia do Dnieper. O extenso estudo de Toporov e Trubachev demonstrará uma origem báltica para o nome de mais de 1000 rios na bacia do Dnieper, oferecendo fortes evidências para uma ampla expansão dos povos na antiguidade nas regiões das atuais Bielo-Rússia e Rússia européia352. Endre Bojtar apontará críticas importantes à definição territorial com base nos hidrônimos. Dentre elas, a relatividade de um suposto “conservadorismo” na manutenção dos nomes de rios353. Entretanto, mantém a ideia da região aproximada de expansão báltica antes da chegada de migrantes eslavos para o norte (vide Mapa 08).

Legenda: 1. Nomes bálticos frequentes; 2. Nomes bálticos infrequentes; 3. Nomes bálticos raros e questionáveis.

Mapa 08: Locais com toponímia báltica.

Fonte: BOJTAR, Endre. Foreword to the Past: A Cultural History of the Baltic People. Budapeste: Central European University Press, 1999 [1997].p.54.

352 ТОПОРОВ, В.Н., ТРУБАЧЕВ, О.Н., 1962. 353BOJTAR, 54. 183

Barford defende a identificação dos povos baltos com uma área aproximada das Culturas arqueológicas Kievana, no período romano e Tumshmlya-Bansherovo, Kolochin e Balachino, na primeira metade do século VI A.D354. Temos, dessa forma, uma região hipotética (porém consensual) de habitação báltica que coincidia com a região de florestas do norte europeu e circundando a região sul e oriental do Báltico, bordejando a oeste os povos germânicos, a sul proto-eslavos e povos das estepes e a norte e leste populações não indo-européias de idiomas fino- úgricos. Por conseguinte, os povos bálticos foram particularmente afetados com as expansões eslávicas, tanto dos eslavos de leste para o norte da Rússia nos séculos VIII e IX quanto dos eslavos ocidentais que chegaram às costas bálticas no século VI. As fontes escritas sugerem que nesse processo de expansão eslávica o ramo báltico oriental ficou isolado do ramo ocidental pelos eslavos de leste. A referência nesse sentido é dada pela Póviest vriémennikh liet, ao citar a resistência dos povos chamados de Galindoi, que Gimbutas identifica como baltos, aparentemente separados de outros povos e de similaridade etno-linguística, e que iriam migrar para a região leste das atuais Letônia e Lituânia. Nota-se que entre as tribos prussianas do século XIII a região mais limítrofe e meridional era chamada de “Galinda”. A identificação entre esses galindos e os das proximidades de Moscou não é totalmente inequívoca. A própria etimologia do termo pode apresentar conclusões diversas. Termos bálticos similares (letão “gals”, lituano “galas”) possuem campo semântico relativo a “fim”, “término”, e, dessa forma, é razoável pressupor que regiões limítrofes, fronteiriças ou distantes poderiam receber nomes com tal terminologia. Os grupos de relevância específica no contexto de primórdios da Rus são principalmente três: diversas tribos prussianas habitando as regiões da atual península de Kaliningrado, as tribos lituanas, dentre as quais incluem-se os samogícios, e as tribos letãs, das quais destacam-se kurs, zemgálios e latgálios. Conquanto as fontes russas e germânicas refiram-se com frequência às tribos lituanas, as fontes escandinavas, sejam de forma escrita tradicional ou na forma de estelas rúnicas, não o fazem nunca, antes enfatizando os kurs (kurir) e zemgálios (semgallir), com os quais travavam maior contato.

354 BARFORD, 394s, “Map I” e “Map II”. 184

Mapa 09: Tribos bálticas no século XIII Fonte: GIMBUTAS, Marija. The Balts. London: thames and Hudson, 1963. P.23.

A terminologia encontrada nas fontes escandinavas e estelas rúnicas para populações baltas são a seguinte:

Na Letônia: Os povos habitantes no território da atual Letônia são referenciados em sete inscrições rúnicas dos varegues, em adição às fontes escritas. Duas referências aos livônios (descritos juntamente aos povos fino-úgricos acima), quatro aos semgallir, uma à região do Venta, na Kurzeme, e uma à entrada do Daugava. É o maior número de 185 referências em inscrições rúnicas aos povos do báltico, principalmente aos semgallir. Vernadsky endossa a ideia de que a Rota comercial escandinava passando pelo Daugava teria sido anterior à Rota pelo Golfo da Finlândia. De fato, os contatos escandinavos, em particular com a Kúrland, são atestados primeiramente na Vita Anskarii, escrita no século IX, mas datam de séculos antes. Entretanto, os contatos com as próprias regiões estonianas aparentam ser igualmente antigos, ainda que não tão intensos. De qualquer forma, as terras baltas e livônias foram as primeiras áreas de interesse sueco no leste, e propulsoras para os movimentos posteriores mais amplos. Tal circunstância justifica o relativamente grande número de referências à região da atual Letônia. Posteriormente, a rota que passava o Daugava tornaria-se um ramo secundário do Austrvegr, em comparação com à rota mais setentrional que cruzava o Golfo da Finlândia, mas sem perder de todo sua relevância.

 Semgallir: o povo da província de Zemgale dos letões, chamada Semigalia nas fontes latinas, Semgola na Póviest vriémennikh liet. Os semgallir habitavam os territórios ao sul do Daugava, etnograficamente categorizados dentre os baltos orientais. Seu idioma é um dos principais constituintes do letão atual. A composição de seu etônimo, Zemgale, indica a localização de uma terra de fronteira – zeme, “terra”, gals – “limite, fim, fronteira”, e pode sugerir tal localização tanto como a região fronteiriça aos lívios do norte como a tribo letã mais meridional, ainda que tais afirmativas sejam especulativas. A Chronicon Heinrici Livoniae, escrita no século XIII por um eclesiástico germânico, narra os eventos do século XII, por ocasião da conquista germânica da região da Livônia. Ali os semgallir aparecem como as últimas populações a serem conquistadas e cristianizadas. Alguns de seus costumes (como a decapitação de inimigos no campo de batalha) parecem impactar ao cronista, que dedica bastante espaço aos mesmos, mas as alianças e identificações étnicas dos mesmos não ficam claras. Aparentemente, pela crônica, as relações com os kurs eram amigáveis, diferentemente da situação com estonianos e lituanos, mas o caráter pontual de tais alianças não nos permite considerações absolutas que elucidem em definitivo a etimologia. São citados nas estelas Sö 198, Sö 327, possuem uma referência dúbia (proposta por Brate) na Sö 110, bem como em uma caixa de cobre encontrada 186

em Sigtuna (R 173)355. Apesar das referências relativamente frequentes nas inscrições rúnicas, as referências escritas aos semgallir nas fontes tradicionais são mais raras. São listados na Heimslýsing e na Ǫrvar-Odds saga (30), e apenas citados duas vezes na Gesta Danorum, nos livros 5 e 7. No último caso, ambas as referências são de passagem e ligadas à história de Starkatherus, sendo os semgálios citados em conjunto com outros povos do Báltico (kurs e sembi na primeira, kurs e eesti na segunda); na primeira referência os mesmos se revoltam contra o domínio danês e são conquistados por Starkatherus. A segunda é o poema final do herói, no qual cita suas conquistas, listando ali o episódio narrado anteriormente.

 Kúrland: a região de Kurzeme, na atual Letônia, e o ducado histórico da Curlândia, possessão nos tempos da República Polaca-Lituana que chegou a obter possessões coloniais na Gâmbia e Caribe na Idade Moderna. No período viking as regiões dos kurs possuíam cinco divisões centralizadas em fortificações (Pilsats, Megova, Duvzare, Ceklis e Piemare), chegando até a costa norte da atual Lituânia. Os Kurs (kurir nas fontes escandinavas, kors na Póviest vriémennikh liet) são as populações - juntamente com os estonianos e bjarmar - mais citadas nas fontes escritas escandinavas. Suas referências são as mais longas e mesmo factíveis, algumas delas memoráveis, como a descrição do cativeiro do skaldr Egill Skalagrímsson na Egils saga, escrita no século XIII provavelmente por Snorri Sturlusson. Também emblemática é a referência já citada, bastante antiga, da Vita Anskarii de Rimbert, escrita no século IX, que conta sobre um suposto período de domínio dos suecos sobre os kurs. A Chronicon Henrici Livoniae traz informações sobre os kurs no século XII, principalmente táticas militares e costumes funerários dos mesmos por ocasião de expedições de ataques marítimos aos cruzados e no cerco efetuado por eles a Riga, interrompido para o cumprimento da cremação de seus mortos. Nos séculos XII e XIII os kurs estavam frequentemente associados à estonianos de Saaremaa, executando expedições vikings pelo báltico, capturando escravos e bens (incluindo sinos de igrejas, principalmente na Suécia).

355 МЕЛЬНИКОВА, 1977: 208; PRITSAK, 364. 187

Aparentemente até então, a julgar pelas referências textuais, possuíram diversos períodos de domínio ou pagamento de tributo da parte de Escandinavos entremeados por revoltas e momentos de liberdade. Em algumas ocasiões aparentam ser parceiros de escandinavos, seja em contatos comerciais ou expedições vikings. A categorização étnica dos kurs do período viking enquanto baltos não foi feita sem disputa. De fato, foi razoavelmente comum classificá-los enquanto uma tribo fino-úgrica, ideia que esporadicamente volta à tona, principalmente da parte de autores finlandeses e estonianos. Um dos argumentos mais fortes nesse sentido é o número considerável de termos de origem fino-úgrica que transparecem nos tratados do século XIII no idioma dos kurs, como sua própria denominação, “kur”, que pode significar “grou” nos idiomas fino-úgricos, “kiligunden” (região administrativa), “maleva” (unidade do exército). Esse nível de argumento é usual em obras de popularização científica, como do historiador amador Edgar Valter Saks356. Há argumentos considerados a nível mais acadêmico. Um deles é a denominação até o século XIX da ilha estoniana de Saaremaa como “Kurasaar”, “Ilha dos Kurs”. Marika Mägi efetua um paralelo com a situação na Estônia de Saarema, chamada de Eysýsla, em contrapartida à costa Ocidental, como Adalsýsla.357 Esta identificação é aceita por poucos, e deve ser considerada como uma idiossincrasia a mais em categorizações e divisões étnicas das populações (não apenas) do medievo. De fato, os kurs serão uma das tribos constituintes dos letões da Idade Moderna e Contemporânea; o substrato e os cognatos fino- úgricos na língua letã advém do idioma dos livônios, não da língua dos kurs. Em adição, o istmo da Curônia, entre a Prússia Oriental e a Lituânia, foi habitado até o século XIX pelos Kursenieki, descendentes dos antigos kurs, e seu idioma era claramente balto, sendo que a discussão mais séria academicamente dividiu-se no sentido de classificá-lo enquanto idioma balto oriental, ligado ao letão e ao lituano, ou ocidental, ligado ao prussiano antigo358. Os sítios arqueológicos de Grobiņa (atual Letônia) e Apuole (atual

356 SAAKS, Edgar. Eesti viikingid. 2005, pp. 31-34. 357 VUORELA, 206; MÄGI, 2011: 194. 358 STONKUTĖ, Loreta. Kuršininkų tarmės lituanizmai. In: Studentu zinātniskās Konferences «Aktuāli baltistikas jautājumi» tēzes. Latvijas Universitātes Filoloģijas fakultātes, 2002. Pp.43s. 188

Lituânia), escavados por Birger Nerman na década de 1920, dão suporte à relações antigas dos mesmos com a Escandinávia, principalmente os Svear e a ilha de Gotland, desde o século VII359. Na Gesta Danorum de saxo Gramamaticus os kurs (“curetes”) são citados nos livros 1,2,3,5,6,8,9,11 e 14, incluindo episódios relevantes como o cativeiro de Hadingus, no livro I, e a batalha de Bravalla, no livro 8. É interessante notar que, de forma contrastante com a relativa abundância de referências nas fontes de ordem mais tradicional, a única possível referência à terra dos kurs em estelas rúnicas encontra-se na G 135, e fala sobre um homem morto em Vindau – Vendava. No período em questão os kurs se encontravam em processo de expansão ao norte, habitado por livônios, e não é possível saber com exatidão se a referência ao Venta implicaria em alguma relação com os kurs ou com os livônios da Kurzeme.

Na Antiga Prússia:  Sámland/Lanland, Ermland, Vitland: regiões da Prússia Oriental, tribos baltas indo-européias. A esta região foi aplicado o termo “Aistland” por historiadores da antiguidade (em particular na Germania de Tácito) e a versão anglo-saxônica de Orósio feita por Alfredo, bem como a viagem de Othere, relatado também por Alfredo, o que gera confusão com a Eistland – Estônia, de caráter diverso, entretanto. Quando as sagas e Snorri Sturlusson referem-se a “esti”, normalmente o fazem tendo em mente estonianos. As correspondências com topônimos bálticos são Sámland – Semba; Ermland – Varme (Warmia). Marika Mägi argumenta por uma possível mistura de terminologias étnicas, defendendo a possibilidade de que o uso de “Samland” possa, por vezes, implicar na Kurzeme360, mas trata-se de uma posição bastante isolada. A região da Prússia oriental continha algumas das maiores concentrações de depósitos de dirheims do mundo islâmico. Noonan e Bogucki defendem que habitantes das costas eslavas do báltico, bem como antigos prussianos, tenham sido os primeiros intermediários no comércio de dirheims

359 NERMAN, Birger. Funde und Ausgrabungen in Grobiņa, 1929. In: Congressus Secundus Archaeologorum Balticorum Rigae, 19.-23. VIII. 1930. Riga, 1930. pp.195-206. 360 MÄGI, 2011: 194. 189

entre os mundos islâmico e escandinavo361. A região abrigou um dos primeiros entrepostos comerciais do período viking, a cidade de Truso. Localizada no lago Druzno, atualmente no local encontra-se a cidade de Elbing/Elblag. O local foi ativo como parte da rota do âmbar e, no período viking, como localidade-chave na redistribuição dos dirhams vindos das regiões de leste, tendo despertado o interesse escandinavo de descobrir as regiões de proveniência de tal prata e precipitado a própria expansão escandinava na região da posterior Rus. Há uma referência à Samland em caracteres rúnicos na já citada caixa de cobre encontrada em Sigtuna (R 173)362. “Witland” é empregado na Ǫrvar- Odds saga e na viagem de Othere relatada pela crônica de Alfredo (em inglês antigo). As demais regiões são citadas também na Heimslýsing e na Ǫrvar-Odds saga. Saxo Grammaticus cita-os como “sembi”, nos livros 6,8,9,10 e 11. Em um dos poucos casos de constância em sua narrativa, em praticamente todas as citações os sembi estão em conjunto com os Kurs (em 4 das 5 citações, normalmente rebelando-se contra daneses) e em oposição aos sclavi.

Lituânia?

A ausência de referências aos lituanos não terá passado desapercebida ao leitor mais atento e informado. De fato, as fontes escandinavas não se referem aos mesmos. Esta ocorrência explica-se pela ausência de costa marítima – ocupada pelos kurs, prussianos, zemgálios, lívios e estonianos – mas também pela natureza diversa de contatos entre lituanos e seus povos vizinhos no período viking. Diferentemente de seus vizinhos costeiros, as diversas tribos lituanas tiveram menor contato com a Escandinávia e maior com Polônia, as demais tribos bálticas e os eslavos de leste. Os contatos com o mundo escandinavo foram, dessa forma, intermediados por seus vizinhos. Os próprios territórios lituanos ficavam à margem das grandes rotas comerciais que ligavam a Escandinávia à Eurásia, e sua geografia,

361 BOGUCKI, Mateusz. The Beginning of Dirham Import to the Baltic Sea Zone and the Question of Early Emporia. In: LUND HANSEN, Ulla, BITNER-WRÓBLEWSKA, Anna (eds.). Worlds Apart? Contacts Across the Baltic Sea in the Iron Age, Network Denmark-Poland 2005-2008, Det Kongelige Nordiske Oldskriftselskab Państwowe Muzeum Archeologiczne (Copenhagen (et al.), 2010), pp. 351- 361. 362 МЕЛЬНИКОВА, 1977: 208; PRITSAK, 364. 190 abundante em florestas e pântanos, certamente não colaborou para a diminuição de seu isolamento. A despeito desse isolamento, por ocasião das cruzadas setentrionais e a expansão germânica para o leste os lituanos foram capazes de se organizar em uma monarquia forte e expansionista, com a originalidade de manterem com suas crenças pagãs ancestrais. O paganismo oficial lituano apenas perderia seu lugar por ocasião da unificação das coroas polaca e lituana, e na idade moderna a Polônia-Lituânia consistirá no estado territorial mais extenso e múltiplo da Europa.

3.2.3 Baltos e Fino-Úgricos

A relação entre baltos e fino-úgricos parece ter sido de particular influência mútua. No campo da linguística os empréstimos e influências são extensos, desde o campo de terminologia de ferramentas e tecnologias até de relações familiares363. Estudos dos Haplogrupos de DNA demonstram também uma relação particular de miscigenação de entre os habitantes da Letônia e Lituânia com os povos fino-úgricos da Estônia e Finlândia, em particular no predomínio demonstrado do haplogrupo N do cromossomo Y, dominante entre as populações de etnicidade fino-úgrica, ao lado do haplogrupo R1a, comum entre populações da Europa Setentrional (em particular na Noruega), Oriental (com frequências variando por volta de 50% de predomínio entre poloneses, ucranianos, bielorussos e russos) e das estepes364. É razoável a suposição de um núcleo original populacional provavelmente pequeno de fala indo-européia, com afinidade genética com outras populações de falares da mesma família, como eslavos e germanos, que se difundiu rumo ao norte, interagindo e miscigenando-se com as populações locais.

363 GIMBUTAS, 33-36. 364 LAITINEN, Virpi, LAHERMO, Päivi, SISTONEN, Pertti, SAVONTAUS, Marja-Liisa. Y- Chromosomal Diversity Suggests that Baltic Males Share Common Finno-Ugric-Speaking Forefathers. In: Human Heredity. 2002. 53: 68ss. 191

3.2.4 Bjármaland

Figura 18: Biarmia, na Carta Marina de Olaus Magnus (1539)

Traduzida frequentemente por Pérmia ou Perm, esta região apresenta problemas e discussões por décadas no que tange sua localização e composição étnica. As fontes escandinavas de forma mais genérica colocam-na na foz do Vína (o Dvina setentrional), ou seja, nas margens do Mar Branco. Olaus Magnus em sua “Descrição dos povos Setentrionais”, já no século XVI, afirma, baseando-se explicitamente em Saxo, a existência de duas áreas em Bjarmaland, “Biarmia ulterior” e “Biarmia citerior”. Em seu mapa, a “Carta Marina” (ver Mapa 4), localiza uma só “Biarmia” ao norte do que descreve como “Lacus Alba”, em região que 192 pode ser identificada claramente com a Península de Kola. Nota-se a compreensão do Mar Branco como um lago, acerca da qual é interessante a observação da região em um mapa contemporâneo:

Mapa 10: Mar Branco, Península de Kola e Oceano Ártico. Do autor.

A causa de dissensão nesta identificação é a circunstância de que a região não coincide com a “Grande Pérmia” da Rússia, mais ao leste e sul. E em algumas das Fornaldarsögur o caminho para Bjarmaland é feito dirigindo-se para Austrvegr, ou seja, pelo Báltico Oriental. As colocações de Alan S. C. Ross em 1930, com adições em 1940, 1978 e 1981365 (nesta última data, de Michael Chesnutt) permanecem ainda norteando a abordagem da questão. O outro estudo mais amplo feito sobre a questão é da pena de Mervi Koskela Vasaru, em 2009, e, apesar de não se referir ao último, chega a conclusões similares366. O debate assume ainda contornos mais complexos e apresenta maiores discordâncias com a entrada do quesito de etnia na discussão.

365 ROSS, 1981. 366 KOSKELA VASARU, Mervi. Bjarmaland. Phd thesis, University of Oulu, 2009; ______. Bjarmaland and Interaction in the North of Europe from the Viking Age until the Early Middle Ages. In: Journal of Northern Studies. Vol 06, N.02, 2012. Umeå. 193

A viagem de Othere é a fonte mais antiga a referir-se aos Bjarmar. São ali chamados de Beormas, e a descrição da viagem parece aplicar-se bem a populações que residiam às margens do Mar Branco, e como tais são localizados na Carta magna de Olaus Magnus. Uma série de sagas e fontes escandinavas vai referir-se a jornadas à Bjarmaland. Normalmente os seus habitantes são antagonistas dos escandinavos, e recorrem ao uso de magia em suas batalhas. Em particular Saxo Grammaticus e as fornaldarsögur colocam ênfase nos bjarmar enquanto antagonistas, bem como na sua habilidade em manipular o sobrenatural. Com sua ênfase especial no aspecto de narrativa de entretenimento e incorporação do fantástico, o aspecto mágico dos bjarmar é sempre salientado nestas narrativas. Um tipo especial de referência é aquela na qual um personagem dos bjarmar descende de um humano e de um ser sobrenatural (normalmente um/a gigante/a). É dessa maneira que é explicada a concepção de Ogmund, nêmesis de Ọrvar-Oddsem sua saga. Os bjarmar são bons e gerais exemplos do “outro” na narrativa escandinava. A Ǫrvar-Odds saga, em sua forma longa, traz como primeiro grande feito de Odd sua viagem à Bjarmaland. Aliás, Odd sempre será lembrado em ocasiões posteriores da narrativa como Odd, “o que foi até Bjarmaland”. Ali ele demonstra a dificuldade de compreensão no campo linguístico e de costumes. Necessita de intérprete da língua dos bjarmar, que é colocada por meio da fórmula “semelhante ao barulho dos pássaros”, e necessita de intérprete dos próprios costumes e hábitos dos homens ali. Sua divindade é chamada de “Jomali”, que é cognato com o termo fino-úgrico para “deus”, “Jumal”, e não encontra ressonância ou equivalência no panteão escandinavo.

Há duas formas de abordagem empregadas na definição de quem são os bjarmar. A mais comum procura sua identidade etno-linguistica. Os indicativos para esta definição se baseiam nos parâmetros geográficos dados pelas fontes, algumas descrições pontuais e esparsas de costumes e a referência ao deus “Jomali”. Esta referência em particular, feita duas vezes apenas, dá o argumento da filiação linguística fino-úgrica dos Bjarmar, em conjunto com a evidência mais tênue e disputada da etimologia do próprio nome *perm. Segundo esta primeira abordagem, existem quatro possibilidades étnicas para os 194

Bjarmar:  Lapões (saami) – são os Finnar das fontes escandinavas, citados há pouco. Segundo os argumentos de Vasmer (que se fundamentam basicamente no campo da linguística e análise de topônimos, é importante salientar), a distribuição antiga dos saami incluiria áreas ao sul do Mar Branco (incluindo a foz do Dvina setentrional) e a área a nordeste do lago Onega. Entretanto, como Ross salienta, Othere descreve os Saami em sua viagem como os Terfinnas, a seguir passando para os Beormas, os quais descreve como outras populações. É pouco provável que o autor fosse descrever duas a mesma população seguidamente por duas nomenclaturas diferentes, e poderíamos fazer facilmente uso do mesmo argumento para a descrição dos saami como finnar nas fontes escandinavas, ou mesmo de frequentes ocasições aonde finnar e bjarmar são citados um próximo ao outro. Via de regra as fontes que descrevem a viagem à Bjarmaland via o norte da Noruega descrevem primeiramente encontros com os Finnar, e posteriormente com os Bjarmar. Um exemplo claro disto dá-se na própria Ǫrvar-Odds saga, e é circunstância lógica ao considerar os habitantes de norte da Noruega e península de Kola os lapões, pelos quais os viajantes precisam passar antes de chegar ao Mar Branco. Outro argumento contra a identificação de Bjarmar com Saami é a referência, ainda de Othere, que os Beormas praticam agricultura e possuem modo sedentário de vida. Ainda que pontual, é referência significativa, ao ser feita em contraposição a um modo nômade atribuído aos Terfinnas / Finnar. Fica excluída, portanto, a identificação de Bjarmar com Saami.

 Komi Os Komi são os habitantes dos distritos russos aos quais se aplica o termo “Grande Pérmia”, e aonde a própria cidade de Perm encontra-se. Atualmente distribuem nos governos de Vyatka, Vologda, Perm' e Arkhangelsk'. Os Komi são as próprias populações as quais o termo Perm é aplicado; constituem com os Udmurt o ramo Komi-Permyak da família linguística fino-úgrica. Vasmer é o único proponente de peso para esta identificação. Para ele, os Bjarmar/Beormas seriam Antigos Permianos (Zyrian-Komi). Ele apresenta evidência toponímica de uma distribuição mais ampla rumo a oeste e norte em tempos anteriores, incluindo territórios que não influem em nossa discussão como Olonets, Novgorod, Vologda, 195

Vyatka, Perm', Kazan e Kostroma. O material dado referente à região de Arkhangelsk, que engloba os distritos de Arkhangel, Kholmogory, Onega, Shenkursk, Pinega, Mezen e Pechora, entretanto, são de interesse à nossa discussão. O argumento principal colocado por Ross367 contrário à identificação de Bjarmaland com os Perm, entretanto, é que sua expansão rumo ao norte seria posterior ao século XI. No século em questão os Komi ainda estariam unidos com os Udmurt sob domínio Búlgaro-Turco, no período chamado “Permiano primitivo”. Alguns argumentos secundários (e questionáveis) apresentados em conjunto são: a ausência de material arqueológico de origem escandinava, ou de imitação escandinava entre os Komi (argumento de Tallgren), a despeito da existência de coleção ampla e bem-catalogada de antiguidades permianas; a natureza de cognatos entre as línguas komi e balto-fínicas (particularmente carélio e vepse) sugere que um possível contato entre as mesmas teria dado-se apenas em região bem mais ao sul do Mar Branco (argumento de Uotila); Othere descreve as línguas dos Terfinnas e Beormas como mutuamente inteligível, ou muito semelhante. Por certo esse critério é bastante subjetivo; o grau de semelhança entre duas línguas fino-úgricas a um observador de fala germânica- indo-européia dificilmente pode ser mensurável. Entretanto, é relevante destacar que, dentre os subgrupos da família linguística fino-úgrica, a distância entre o ramo komi-permiak e o saami é significativa. Já o saami e o ramo balto-fínico são notoriamente próximos, e tal distância era consideravelmente menor há um milênio atrás. Ao argumento soma-se ainda a referência ao deus Jomali – termo evidentemente Balto-fínico e, por fim, o argumento de que os Komi nunca habitaram a península de Kola, após o que Ross chega à conclusão de que os Komi não podem ser os Bjarmar das fontes escandinavas. O decorrer da história russa assistiu o desenvolvimento de um principado de Perm que, nos séculos X-XI pagaria tributos a Novgorod, mas que no decorrer dos séculos XV-XVI e sua cristianização, tornar-se-ia vassalo de Moscou, tendo desfrutado de relativa independência até o século XV. Movimentos nacionais posteriores aos séculos XIX incorporariam o imaginário de sua história, incluindo a homônima Bjarmaland, em construções de identidades, nacionalismos, justificativas e ideologias, frente a um Império Russo unificador e totalitário.

367 ROSS, 1981: 54. 196

 Vots (ou vatja) Sugestão apresentada por Jaakola e desconsiderada de imediato por Ross368 já em 1940. Referidos na PVL como chudi, no século XIII habitavam as proximidades de Novgorod e do Ladoga369. No período entre-guerras sua população era próxima apenas a um milhar de pessoas, de distribuição limitada aos arredores de São Petersburgo (então, Leningrado). Em 1956, contavam apenas com 25 pessoas370. No censo de 2010 o número de falantes aumentara para 68 indivíduos371.

 Kareli: o aspecto ocupacional Esta é a opção de maior peso ao tentar se enquadrar os bjarmar em uma etnia específica. Entretanto, esta hipótese está ligada a uma interpretação mais ampla do significado de etnicidade. A evidência linguística e toponímica, incluindo discussões que incluem as fontes primárias russas, aponta uma ocupação de áreas da península de Archangelsk e das margens do Mar Branco até o Dvina Setentrional pelos kareli372. De fato, toda a monografia, já citada acima, “The Terfinnas and Beormas of Othere” de Alan Ross, tem como objetivo principal o demonstrar a identificação dos Terfinnas com os Sami (lapões) e os Beormas/Bjarmar com os kareli. A identificação, entretanto, foi colocada em questionamento principalmente pela historiografia soviética, pelas razões já apontadas acima da região russa de Perm, localizada mais a leste e sul do Mar Branco e habitada pelos Komi. A solução desse impasse requer uma análise mais cuidadosa associada a um conceito de etnicidade mais amplo. Esta abordagem da questão é relativamente mais recente, mas tem conseguido um maior consenso. A identificação dos Kareli do norte enquanto os Bjarmar associada com a existência posterior da região de Perm dentre os Komi só pode ser conciliada considerando o aspecto ocupacional do termo *perem; aspecto que Chestut373 designaria como “um modo de vida”. Perem deriva de uma raiz fino-úgrica, e aplicar-se-a a mercadores peripatéticos e

368 ROSS, 1981: 55. 369 VUORELA, 146s. 370 VUORELA, 145. 371 Ethnologue. Obtido em: < http://www.ethnologue.com/language/vot> Último acesso em 11/11/2014. 372 ROSS, 1981: 56s. 373 CHESTNUT, 75. 197 caçadores, estabelecidos mais ao sul e habituados a explorar os recursos das regiões setentrionais que bordejavam o Mar Branco (em particular a obtenção de peles), bem como seus moradores nômades e que não apresentavam defesa organizada efetiva. Tal ideia, que recebeu maior atenção e divulgação com a republicação da monografia de Ross com as atualizações de Chesnut, baseia-se principalmente no estudo de 1956 do finlandês Kustaa Vilkuna, que analisou o uso do termo Permi, empregado por carélios operando em grupo de mercadores através da Finlândia, Suécia do norte e Finmark. Tal designação de grupo seria atestada ainda no século XVI, por ocasião de problemas gerados por tais Permi ao governo sueco. Encontraria um exemplo paralelo de uso misturado de ocupação étnica com atividade profissional pela acepção que o termo Saksa assumiu no finlandês, de “Germânia” para “mercador”374. Uma questão é inatacável: o contexto do norte da Rússia foi povoado por muitas populações de fala fino-úgrica, de grau maior ou menor de semelhança mútua, e que deixaram substratos consideráveis no próprio idioma e dialetos russos setentrionais375. Igualmente, o campo de argumentos muito precisos com bases linguísticas abre espaço para historicismo e cientificismo, e deve ser utilizado com cuidado. Parece-nos mais adequada a suposição mais largamente aceita contemporaneamente de que as populações com as quais os escandinavos travavam contato e que chamavam de bjarmar eram kareli em sua grande maioria, e que a denominação derivou de fato de um aspecto ocupacional. Isto não gera uma contradição com a circunstância de que os carélios, em uma acepção que nos soa mais marcadamente étnica, são referidos como tais nas fontes escandinavas. Entretanto, a natureza exclusiva desta etnicidade kareliana deve ser relativizada, e aberta num sentido de que certo amálgama de populações fino-úgricas certamente ocorreu na região, fechando a porta para especulações nacionalistas modernas.

374 apud VILKUNA, 649ss. In: CHESTNUT, 78. 375 SAARIKIVI, Janne. Substrata Uralica: Studies on Finno-Ugrian Substrate in Northern Russian Dialects. Tartu: Tartu University Press, 2006. 198

CAPITULO 4: O LESTE ENQUANTO PRODUTO DE REFLEXÃO HISTÓRICA

Até o presente ponto de nossa discussão esperamos ter deixado claro que, a despeito da discussão inflamada que esporadicamente ressurge na Rússia e Ucrânia contemporâneas sobre o papel Escandinavo em seus primórdios, esta mesma presença é confirmada por uma miríade de fontes de diversas naturezas, incluindo fontes escritas de cárater tradicional e a Cultura Material, esta última por meio da análise numismática e arqueológica, incluindo aqui o fenômeno de disseminação das estelas rúnicas pelo território do que é hoje entendido como Suécia. Também demonstramos que a teoria normanista ou algum de seus espectros consiste na posição acadêmica preponderante no Ocidente, exemplificando também tal circunstância por meio da análise de Cultura Material, mas esperamos não ter incorrido de forma radical em suas pressuposições, salientando que, a despeito do papel exercido por escandinavos nos primeiros passos da Rus, não é possível se diminuir a criatividade e influxo dos eslavos orientais em sua formação. Dando prosseguimento a nossos propósitos iniciais é mister analisarmos daqui em diante de que formas tais movimentos ao leste produziram marcas na historiografia e produção escrita escandinava no medievo, nos séculos imediatamente posteriores a tal expansão. É esse objetivo que cumpriremos na seção a seguir. Neste capítulo discutiremos de início autores que se propuseram a escrever histórias de grande escopo, tentando inserir suas nações e povos em um contexto mais amplo, mundial. Para os mesmos, o leste assumirá nuances específicas e ideológicas, que pretendemos demonstrar aqui. Os autores que se prestam a tal propósito são o islandês Snorri Sturlusson e o danês Saxo Grammaticus. Em seguida, observaremos uma manifestação diversa da produção escrita que, ainda que se sirva das mesmas matérias-primas - relatos orais, tradições folclóricas e conhecimento livresco - molda tais elementos com propósitos e resultados distintos. Falamos aqui das Fornaldarsögur, em especial a Ọrvar-Odds Saga. Iniciaremos esta seção com uma apresentação breve do contexto de produção intelectual desenvolvido na Escandinávia e Islândia do século XIII, procedendo de imediato à análise das fontes primárias.

199

4.1 A produção escrita na Escandinávia e Islândia no medievo

As décadas de 1170 a 1230 concentram um período de marcante aumento na produção escrita na Escandinávia continental e Islândia. A despeito do aumento considerável de contatos com outras nações europeias, incluindo as ilhas britânicas e o continente, que propiciaram modelos literários e a influência do Cristianismo, é necessária a ênfase de que o aumento exponencial literário foi precedido por uma tradição oral fortemente consolidada, acompanhada de aspectos culturais circundantes que garantiam aos mantenedores de tal tradição prestígio e privilégios sociais376-377. Aos principais responsáveis por esta transmissão de conhecimento e poesia chamou-se de skaldar, “escaldos”378, indivíduos que improvisavam e compunham poemas segundo intrincadas métricas pré-estabelecidas e empregos de motivos mitológicos. Tais homens foram amiúde personagens principais ou de destaque em muitas Íslendingasögur, algumas das quais receberam seus nomes, como a Saga de Kormak e a Saga de Egil. Como já afirmado, indivíduos com tais habilidades dispunham de meios suficientemente garantidos de prestígio nos salões de jarls e reis, encontrando honra e suporte de seus líderes enquanto simultaneamente revestiam-se de importância fundamental na transmissão do conhecimento sobre o passado. A historiografia recente têm demonstrado, por meio de abordagens ligadas à outras ciências sociais, diversas facetas de tal sistema, que incluía uma cultura de dádivas e trocas – os salões de chefes e líderes que proviam bons presentes eram frequentados por melhores escaldos379, e complexas formas de acúmulo e troca de capitais380. Tal produção intelectual e literária possui forma e objetivo diversificados, incluindo obras de menor porte como sagas de scaldos, heróis e famílias, sagas de tempos legendários, obras escritas no vernáculo, lidando com assuntos laicos e regionais, até histórias com maiores pretensões e trabalhos em molde cristão, incluindo

376 SAWYER &SAWYER, 2003; pp. 219-224; 230-238. 377 WANNER, Kevin. Snorri Sturlusson and the Edda: The Conversion of Cultural Capital in Medieval Scandinavia. University of Toronto Press, 2008. 378 “Skáldr” significa “poeta” em antigo nórdico. O termo é de início genérico para qualquer tipo de poeta, mas tornou-se de adoção específica para os que tratavam com a poesia “escáldica” encontrada nas sagas e fontes islandesas antigas, regida por regras e parâmetros específicos. SKÁLD. WHALEY, Diana Edwards. In: PULSIANO, Phillip et al. (Eds.). Medieval Scandinavia: An Encyclopedia (Garland Encyclopedias of the Middle Ages). New York: 1993. 379 WINROTH, Anders. The Conversion of Scandinavia: Vikings, Merchants, and Missionaries in the Remaking of Northern Europe. Yale University Press: New Haven & London, 2012. pp.42s. 380 WANNER, Op. cit. 200 um espelho de príncipes (o Konungs skuggsjá, composto na Noruega, em antigo nórdico), as obras históricas de Snorri Sturlusson e Saxo Grammaticus – esta última, escrita em latim. Na região da Suécia tal processo deu-se de forma diversa. A despeito de não ter passado por tal “florescimento literário” nos séculos XII e XIII, os suecos produziram um número maior de crônicas e obras escritas na Idade Média tardia, bem como em sua transição para o período moderno. Soma-se a sua situação peculiar a já discutida disseminação das estelas rúnicas, em grau não equiparado na Dinamarca e Noruega. Nesses séculos Escandinávia e Islândia possuem consolidados ou em processo avançado de consolidação um número considerável de centros de produção intelectual e erudita, providos de livros, capital humano – frequentemente provido de formação em centros no exterior, principalmente Paris e Inglaterra -, em adição a formas ideológicas cristãs razoavelmente enraizadas. Lund, na Dinamarca – atualmente, na Suécia -, aglutinou erudição em torno de si, primordialmente da parte de seus eclesiásticos. Alguns dos eruditos daneses de maior destaque foram autores como Saxo Grammaticus (ca.1150-1220), Sven Aggesen (1140/50? - ?), o próprio arcebispo Absalão (ca. 1128-1202) e Anders (1167-1228), seu sucessor no arcebispado de Lund. O último, citado por Saxo Grammaticus no Prefacio da Gesta Danorum, é descrito como alguém que estudara “em França, Itália e Bretanha”. Gunnar de Viborg (1152-1251), autor do Código Legal da Jutândia, primeira legislação escrita da Dinamarca é nome também merecedor de destaque381 dentre outros referidos por Arnold de Lübeck (morto 1211/1214), autor da Chronica Slavorum382.

Rei Arcebispo Eskil (ca.1100-1181) Valdemar I (1157-1182) Absalão (ca. 1128-1202): Bispo em Roskilde: 1158-1192 Arcebispo em Lund: 1178-1202 Knut IV (1182-1202) Valdemar II (1202-1241) Anders Sunesson (1167-1228) Arcebispo em Lund: 1202-1228

Tabela 04: Os reis Valdemares e os arcebispos na Dinamarca do século XIII. Do autor.

381 JANSEN & HANSEN 02ss. 382 DAVIDSON, Commentary, 11. 201

Na Islândia destacavam-se não apenas um, mas diversos centros de saber; as escolas nas catedrais de Haukadalr, Hólar e Skálholt merecem menção, mas principalmente Oddi, o centro de erudição mais consolidado no território islandês e de onde sairiam diversos bispos para Skálholt. Dentre os oriundos de lá podemos citar Saemundr Fróði (1056-1133), o “estudado”, o próprio Jón Loftsson (1124-1197), que adotou Snorri, como discutiremos mais adiante, seu filho Pál Jonsson (1155-1211), bispo em Skálholt, anteriormente estudante em Londres, aonde adquirira “grande saber”, segundo a Byskupa sögur383, São Thorlákr (1133-1193), também bispo em Skálholt, estudara em Paris e Londres, dentre outros eruditos. Foi o ambiente de Oddi que propiciou a Snorri Sturlusson o conhecimento e meios necessários para sua grande produção escrita, ainda que e debata sobre a natureza do que exatamente era ensinado ali. Em Haukadalr estudara Ari Þorgilsson inn Fróði (1067-1148), autor do Íslendigabók, que narra a colonização da Islândia, e provavelmente do Primeiro tratado Gramático (ca. 1160). Houve uma atribuição de sua autoria à própria Heimskringla, que não é aceite pelos acadêmicos, e que será comentada mais adiante. O processo de adequação e inserção da erudição escandinava no meio europeu ocidental foi marcado pela produção de considerável quantidade de material a lidar com períodos recuados nos tempos pagãos da Escandinávia. As formas de se lidar com tal passado pagão foram múltiplas e variadas. Na Islândia as sagas apresentam-no de maneira sóbria, cronística, desapaixonada e bastante pessoal. Saxo Grammaticus e Snorri Sturlusson, ao escreverem obras de maior abrangência, inseriram tal passado em uma linha mais ampla, conectiva dos tempos pagãos ancestrais ao presente cristão. Tradicionalmente, e mesmo dentre muitos autores contemporâneos, considera- se tal contexto como um momento de estímulo ao antiquarismo, de tentativa de resgate de tradições e imaginários, que corriam o risco de serem suplantados e esquecidos frente ao fortalecimento da tradição cristã. Esta interpretação vem sido problematizada de forma diversa em tempos mais recentes em obras como “Snorri Sturluson and the Edda”, de Kevin Wanner. O autor apresenta o emprego do passado, das formas poéticas e dos mitos antigos como formas

383 Byskupa sögur 1948: I 263. 202 de ganho e preservação de capital cultural – assumindo por completo as acepções de Bordieu - diante de um contexto cada vez mais internacionalizado, no qual os salões e cortes enchiam-se de formas poéticas estrangeiras. Nesse contexto a compreensão e apreciação dos versos escáldicos era limitada a poucas pessoas e, consequentemente, o prestígio, influência e alcance do próprio Snorri era diminuído, em medida proporcional à grande capacidade e conhecimento demonstrados pelo mesmo nas formas de composição antigas384. A despeito da maior relevância e significado das obras de Saxo Grammaticus e Snorri Sturlusson, tais autores não foram os únicos, tampouco primeiros a escreverem histórias (ou tentativas de) de suas nações. Na Dinamarca foram escritas histórias, crônicas ou obras de tal caráter antes de Saxo Grammaticus e a Gesta Danorum. Por exemplo, a Gesta Suenomagni regis et filiorum eius et passio gloriosissimi Canuti regis et martyris que, apesar de ter sido escrita pelo monge inglês Ælnoth em 1120, tratava da vida de S. Knut e seus irmãos. Se tomarmos em consideração um escopo e interesses mais amplos, a Chronicon Roskildense consiste na primeira obra que pode receber a nomenclatura de uma “história” danesa, tendo sido escrita nas proximidades de 1140. Entre 1170 a 1220, encontramos não apenas a Gesta Danorum de Saxo Grammaticus, mas também três obras da autoria de Sven Aggesen385: um tratado legal, uma história política e uma linhagem régia386. De forma similar às circunstâncias envolvendo a Gesta Danorum de Saxo Grammaticus, não se sabe o nome exato da história escrita por Sven Aggesen. O título Compendiosa regum daniae historiae, “História resumida dos reis da Dinamarca”, é encontrado no texto editado por Stephanius em 1642. Christensen, em sua tradução de 1992 para a Viking Society foi Northern Research adota-o e o traduz como “A short history of the kings of Denmark”. Como tais títulos evocam, trata-se de uma história bastante breve, ainda mais se comparada à extensão da Gesta Danorum – na qual provavelmente se baseou em algumas de suas partes iniciais387. O casal Sawyer apresenta uma divisão didática das obras escandinavas, agrupando autores segundo ideologias políticas. Sven Aggesen (na Dinamarca) e a

384 WANNER, 2008. 385 SAWYER & SAWYER, 2003: 221. 386 CHRISTIANSEN, 1992: 04. 387 CHRISTIANSEN, 1992: 22 203

Sverris saga (na Noruega) defenderiam ideais políticos teocráticos, de forma contrária à Gesta de Saxo Grammaticus (Dinamarca) e Theodoricus, na Noruega, que defenderiam ideais da própria Reforma gregoriana e em suporte à primazia da Igreja. Por sua vez, o islandês Snorri traduziria bem a voz da aristocracia. Estas diferenças de concepções políticas estariam ligadas às proveniências dos autores, ou aos núcleos de poder aos quais os mesmos estariam ligados. Snorri advém de um contexto islandês no qual o conflito entre a tentativa do rei da Noruega em concentrar poder e restringir a autonomia dos islandeses bate de frente com as próprias tentativas de maior autonomia dos chefes locais da Islândia. Na Dinamarca, Saxo Grammaticus estava diretamente sob comissão dos arcebispos de tradição reformada na igreja danesa: Absalão e Anders Sunesson; já Sven Aggesen fora oriundo da família Thurgot da Jutlândia, tradicional defensora dos privilégios do rei em relação à Igreja. Ora, é necessário cuidado na confecção de correspondências unívocas tão claras e simples. Tomemos o caso específico de Sven Aggesen. Querelas familiares não consistem, em contexto algum, em processos simples e unívocos. O simples pertencimento à família dos Thrugut não define necessariamente a posição política de Sven. Destaquemos o óbvio: a defesa de uma concepção teocrática, à medida em que defende o rei enquanto enviado à Terra, reforça o seu poder e autonomia em relação a Igreja e o coloca em posição igual ou superior à ela, consistindo em contradição com as ideias da reforma e os preceitos resumidos no Dictatus papae, que defendem exatamente inverso, e um poder mais concentrado na mão dos religiosos. Os Thugut e Sven Aggesen supostamente comungam de tal posição teocrática. Ora, da mesma família saíra anteriormente Eskil. O arcebispo reformador escandinavo. Devemos salientar que as memórias do arcebispo, escritas em seu exílio em Clairvaux, sugerem que ele não se encontrava exatamente em bons termos com seu irmão Aggi (pai de Sven), e suas posições políticas e religiosas podem explicar parte considerável de tal mal-estar. Em suma, correspondências simples são úteis, mas perigosas. Podem explicar, mas podem esconder, e é necessário um olhar mais cuidados e aprofundado caso a caso. Retornemos à difusão de obras escritas. Ainda Peter e Birgit Sawyer388 explicam esta concentração de escritos como reflexo da consolidação do poder real

388 SAWYER & SAWYER, 2003: 230. 204 norueguês e danês; a escrita histórica consistiria, nesses casos, de um “sintoma de crise” das antigas estruturas e uma necessidade de fixação escrita do que se perdia. O estímulo inicial fora a necessidade de legitimação do poder real após períodos longos e turbulentos de guerra civil. Tal descrição também contém um elemento simplificante da situação, ainda que razoavelmente fundamento, e a questionaremos adiante. Em suas linhas gerais, no entanto, esta estrutura explicativa provê razões compreensíveis para a diminuição da escrita de cunho histórico na Dinamarca após a década de 1230. No contexto subsequente já terá ocorrido uma consolidação mais efetiva do poder real associado a consequentes mudanças nas estruturas sociais e de poder, que incluíram fortalecimento da Igreja e da aristocracia, em conjunto com a realexa. Destarte é também possível encarar a explosão de manifestações escritas enquanto respostas distintas e de matizes diversas apresentadas por igualmente diversos extratos e grupos sociais às demandas das mudanças sócio-políticas ocorridas em seu tempo.

4.2 Snorri Sturlusson (1179-1241) e a tradição islandesa

4.2.1 Histórico389

Snorri é indubitavelmente o autor mais prolífico e influente do qual se possui autoria confirmada no contexto escandinavo. A Sturlunga Saga detalha boa parte de sua vida, passando um retrato de uma existência rica, atribulada, ambígua e interessantemente similar às narrativas que ele próprio escreveu.

Sturla Þoŕðarsson ------Guðný Böðvardóttir Þoŕðr Sighvátr Snorri Böðvar Sturla Órækja Tabela 05: Genealogia de Sturla Þoŕðarsson. Do autor.

389 As informações acerca de Snorri Sturlusson podem ser encontradas na Sturlunga Saga, uma coleção de várias sagas de autorias diversas efetuada no século XIII. A título de praticidade empregaremos aqui MAGNUSSON, Magnus & PÁLSSON, Hermann (trads). King Harald’s saga: Harald Hardradi of – from Snorri Sturluson. Translated with an introduction by Magnus Magnusson and Hermann Pálsson. New York : Dorset Press, 1986.Pp. 15-19. 205

Snorri nasceu em Hvamm, localizada no oeste da Islândia, em 1179, da família dos Sturlungar, filho de Sturla Þoŕðarsson e Guðný Böðvardóttir. Dentre seus ancestrais, tanto da linhagem paterna quanto materna, constam nomes proeminentes da história islandesa, como Snorri, “o sacerdote”, sobre o qual se pode ler na Harald Saga, Gudmund “o poderoso”, personagem de destaque na Njals saga, Egil Skalagrimsson, escaldo de grande fama que daria seu nome à Egils saga e Markus Skeggjason, poeta e legislador do Alþingr390 (morto em 1107). Snorri foi criado pelo aristocrata Jón Loftsson (1124-1197), na escola de Saemundr Fróði (Saemundr, “o estudado”) em Oddi – como demonstrado pouco acima, centro de maior destaque intelectual na Islândia de então e local que propiciaria a ele acesso a toda tradição histórica e literária disponível a um islandês do século XIII. Jón Loftsson foi neto do rei Magnus III, “o descalço” (berfœtt) da Noruega, por parte de sua mãe Thora, filha ilegítima do mesmo, e foi criado na Noruega. Os homens de Oddi orgulhavam-se de seus vínculos com as dinastias reais norueguesas a ponto de, em 1190, uma eulogia ser composta em homenagem a Jón, ligando sua linhagem à casa real norueguesa desde Halfdan, o negro. Em suma, Snorri cresceu em um ambiente de simpatia ao rei da Noruega e que lhe provia grandes estímulos e possibilidades intelectuais. Sua adoção deu-se como forma de resolver um feudo entre seu pai Sturla e Jón, consistindo em acordo particularmente vantajoso para Sturla, que possuía menor influência e poder. Sem tal situação dificilmente Snorri teria tido acesso ao saber que acumulou e sistematizou no decorrer dos anos. Entre 1197 e 1215, Snorri acumulou terras, riquezas e influência em diversas regiões da Islândia. Em 1215, aos 36 anos de idade, foi eleito legislador do Alþingr, em grande parte devido à sua já desenvolvida fama como poeta. Até então Snorri desenvolve particularmente a chamada “poesia de corte”, cultivada pelos islandeses nas cortes reais escandinavas, com métricas intrincadas, porém, já em seu período final. Passa três anos nesta posição e é nesse período que sua trajetória política será intensificada e entrelaçada com as disputas de poder, no processo centralizador real na Noruega e Islândia.

390 Espécies de reuniões, ajuntamentos ou assembleias formadas por homens livres, de caráter principalmente jurídico e legislativo, e comuns entre os povos de origem germana. Os þingi definiam a aplicação das leis, banimento de criminosos, mas foi, por exemplo, um þingr que votou a adoção do Cristianismo na Islândia, quando se reuniu (circunstância não tão comum) um Þingr geral, ou AlÞingr. ALÞINGI. BYOCK, Jesse. In: PULSIANO, Phillip et al. (Eds.). Medieval Scandinavia: An Encyclopedia (Garland Encyclopedias of the Middle Ages). New York: 1993, p.10. 206

Em 1218 viaja para a Noruega a convite do rei Hákon Hákonarsson (então com 10 anos de idade) e seu regente, Jarl Skuli. No ano seguinte viaja à Suécia, sendo bem recebido na corte de outro Jarl; desta feita, Jarl Hakon, “o louco” - para o qual Snorri já compusera anteriormente um poema que lhe rendeu generosos presentes. Nesta ocasião Snorri comporá outro poema, nomead Andvaka, em honra à viúva do mesmo. Estabelecerá também contato com o legislador Eskil Magnusson e sua esposa Kristina Nilsdottir Blake, circunstâncias prováveis nas quais Snorri tenha informado-se mais detalhadamente sobre a história sueca. Os regentes noruegueses intitulam Snorri como skutilsvein, um título similar ao de cavaleiro. Tal movimento tem caráter político, bem inserido nas estratégias de extensão da autoridade real norueguesa à Islândia, aproveitando-se da posição-chave de Snorri junto ao Alþíngr. Snorri retorna à Islândia em 1220. Em agradecimento aos seus patronos noruegueses, compõe o poema Háttatal (“lista de métricas”), composto de 102 estrofes, nas quais ele ilustra as diversas métricas da poesia escáldica, e com o qual encerra a Edda menor. Em 1222 é novamente feito legislador do Alþíngr, posição na qual permanece até 1231. É significativo notar que, até então, Snorri é visto por seus próprios familiares como defensor e simpatizante da monarquia, posição que lhe rendeu uma série de conflitos. Esta posição deve ser levada em consideração na leitura de análise que, como referimo-nos anteriormente, classificam simplisticamente Snorri como um porta-voz da aristocracia islandesa. As disputas políticas entre alguns goðar na Islândia e entre os próprios Sturlungar acentuam-se entre os anos de 1222 a 1231. Ocorre uma cisão entre os Sturlungar; de um lado cooca-se Sighvatr, irmão de Snorri, com seu filho Sturla, em oposição a Snorri com seu sobrinho da parte de Þoŕðr, Böðvar. Supõe-se que Snorri tenha escrito a Heimskringla nos anos próximos a 1230. Em 1232 ele não mais é legislador do Alþíngr. O rei Hákon da Noruega convida os goðar da Islândia a irem para a Noruega, para, supostamente, mediar suas disputas. Snorri retorna à Noruega em 1237, mas comete um erro político e, ao invés de apoiar ao rei Hákon, julga que seria mais proveitosa uma aliança com jarl Skuli. Nos anos seguintes, Snorri retorna à Islândia (1239), em meio a uma intensificação de conflitos, principalmente com Gissur Þorvaldsson, enquanto na Noruega o rei Hákon ocupa-se em seus próprios conflitos com jarl Skuli. 207

Skuli é morto em 1240. Quanto a Snorri, seria morto em sua própria residência em Reykholt por Arni “Beiskur”, em 1241. A união da Islândia com a Noruega será ratifica pelo Alþíngr apenas em 1262, após a continuidade de disputas, tanto interinas quanto com a Noruega. As obras de Snorri consistem na Edda menor, talvez a Egil saga391 e a Heimskringla. É de nosso interesse a análise de partes específicas da Edda menor e da Heimskringla, que é o que faremos a seguir.

4.2.2 A Heimskringla

Trata-se de uma coletânea de sagas que apresentam os reis da Noruega, precedidas por um início evemerista; se inicia com a dinastia mítico-fundadora dos Ynglingar, traçando uma linha contínua de Óðinn até Magnus Erligsson, morto em 1184. Possui caráter eminentemente histórico e narrativo, numa busca de harmonizar as tradições míticas com a sequência cronística de reis, histórica propriamente dita. O nome significa, literalmente, “círculo do mundo”. São as duas primeiras palavras do texto, “Kringla heimsins”, e passaram a ser usadas como título da obra a partir do século XVII. A principal característica da Heimskringla é o sequenciamento de uma série de sagas em uma única obra, coerente, linear e, podemos acrescentar, ambiciosa. O manuscrito mais antigo da obra é chamado de “Kringla” (Lbs fragm 82), que data de ca. 1258-1264. Restou apenas uma folha, mas o mesmo foi copiado por Ásgeir Jónsson no século XVII. Trata-se do manuscrito no qual a maior parte das edições se baseiam. Outros manuscritos incompletos são o AM 39 fol (ca. 1300) e o Codex Frisianus (AM 45 fol ca. 1300-1325) – também chamado de Fríssbók. Ambos bastante similares ao Kringla392. Em relação à sua autoria, não há referência explícita no texto ou nos manuscritos existentes. A autoria de Snorri foi creditada em 1551, na tradução para o dinamarquês feita por Peder Claussøn Friis e Laurents Hanssøn, e têm-se aceito a ideia

391 A atribuição da autoria da Egils Saga Skalagrímssonar à Snorri Sturlusson foi proposta por Gruntvig primeiramente em 1818 em sua tradução da Heimskringla, mas ganhou força após a tradução de Sigurður Nordal em 1933. Não é aceite de forma plena e consensual. Diversos autores, dentre eles CORMACK (2001) e BOULHOSA (2005) questionam-na, em discussão similar à própria discussão sobre a atoria da Heimskringla. 392 FINLAY & FAULKES. 2011: xiii. 208 de que os mesmos tinham acesso a manuscritos agora perdidos que continham a autoria expressa, com poucas exceções. Jon Gunnar Jørgensen vê tal crença num manuscrito predido como pouco convincente, sugerindo que a alegação da autoria de Snorri da parte de Friis e Hanssøn fundamamentam-se menos na tradição datada dos tempos medievais do que na discussão acadêmica do próprio século XVI. Salienta que um dos manuscritos da obra, o Codex Frisianus (F), atribui a autoria a Ari Þorgilsson inn Fróði, e que Friis e Hanssøn deliberadamente teriam desconsiderado tal atribuição393. Jonna Louis-Jensen (1997)394, Alan Berger (1999)395, Margaret Cormack (2001)396 e Patrícia Pires Boulhosa (2005)397 também questionam a autoria de Snorri. Em adição aos problemas levantados por Jørgensen, adicionam questões envolvendo a autoria individual e coletiva no medievo. São, no entanto, poucas vozes dissonantes em meio a uma tradição bem estabelecida que aceita de bom grado a autoria de Snorri Sturlusson, nem que por conveniência398.

4.2.3 A Edda menor

A Edda menor, também chamada de Edda em prosa, ou Edda de Snorri, é uma obra que não pode ser classificada em gêneros conhecidos. Ela contém uma coletânea significativa de mitologia escandinava (Gylfaginning – o “engano de Gylfi”), uma espécie de ars poética scáldica (Skáldskaparmál), e um poema em homenagem ao rei norueguês (Háttatal), precedidos por prólogo que é obra prima de evemerismo. Não existe um manuscrito que contenha a Edda de Snorri completa. Os principais manuscritos são o Codex Regius (GKS 2367 4to; 1ª metade do XIV, também chamado de Konungsbók), o Codex Uppsaliensis (DG 11 4to; 1º quarto do século XIV), o Codex Wormianus (AM 242 fol, metade do XIV) e o Codex Trajectinus (MSS 1374,

393 JØRGENSEN, Jon Gunnar. Snorre Sturlesøns Fortale paa sin Chrønicke: Om kildene til opplysningen om Heimskringlas forfatter. Gripla 9, 1995. Pp.45–62. 394 LOUIS-JENSEN, Jonna. Heimskringla: Et værk af Snorri Sturluson?. In: Nordica Bergensia, 14, 1997. Pp. 230-245. 395 BERGER, Alan J. Heimskringla and the Compilations. In: Arkiv för nordisk filologi, 114, 1999. Pp.05-15. 396 CORMACK, Margaret. Egils saga, Heimskringla and the Daughter of Eiríkr blóðøx. In: Alvíssmál, 10, 2001. pp.66s. 397 BOULHOSA, Patricia Pires. Icelanders and the Kings of Norway: Mediaeval Sagas and Legal Texts. Leiden and Boston: Brill, 2005. Pp.08-10. 398 JÓNSSON, 1911; WANNER, 2008: 26ss; FINLAY & FAULKES, 2011: vii s. 209 cópia feita no século XVI de um manuscrito do século XIII, conhecido também como Trektarbók) 399. Os manuscritos não concordam totalmente entre si, sua relação é complexa e alguns também trazem outras obras. Dentre os principais se destacam o Codex Regius e o Codex Uppsaliensis. O Codex Regius é o mais completo, e normalmente é utilizado para as edições da Edda. O Codex Uppsaliensis, no entanto, é mais antigo, contém menos inserções e é mais condensado que o Codex Regius. O Codex Wormiamus possui uma versão bastante extendida do Prólogo, contendo inserções com referências bíblicas e a deuses gregos, mas também contém outros materiais relativos à poesia, incluindo o Primeiro Tratado Gramatical. Uma das primeiras Stemma foi proposta por Van Eeden no final do século XIX, com acréscimos de Finnur Jónsson na década de 1930:

Figura 19: Van EEDEN, Stemma. In: JÓNSSON, Finnur (ed.). Edda Snorra Sturlusona: Udgivet efter håndskrifterne. Nordisk Forlag: København, 1931 P. XXXVII.

Segundo tal interpretação, uma versão original “P” teria dado origem a duas outras redações, respectivamente x e z. Enquanto x originaria o Codex Wormianus (W) em um ramo e o Regius (R) e o Trajectinus (T) em outro, a redação z daria origem ao Codex Uppsaliensis (U). Muitas outras proposições foram colocadas ao longo dos tempos sobre a situação, mas não cabe aqui discutirmos uma a uma. Uma tese geralmente aceita é de que todos os manuscritos baseiam-se em um exemplar perdido, e duas posições contraditórias são dominantes: ou Codex Uppsaliensis foi uma versão encurtada do Codex Regius, ou este foi uma versão ampliada daquele400. Pálsson é partidário de uma terceira opção, baseada na tese de doutoramento de Friedrich Müller, defendida em 1941 e intitulada Untersuchungen zur Uppsala-Edda.

399 ROSS, Margaret Clunies. A History of Old Norse Poetry and Poetics. Woodbridge: Boydell & Brewer, 2012[2005]. P.151. 400 PÁLSSON, 2012: xlii. 210

Segunda esta teoria, o próprio Snorri escrevera duas versões da Edda, que teriam dado origem às duas principais redações conhecidas através de U e R401. A edição de Finnur Jónsson, baseada primariamente no Codex Regius é, antes de uma edição de um dos códices, um reflexo da tentativa do mesmo de se chegar a uma forma arquetípica ou original, objetivo que tem sido considerado impossível402. Em relação à autoria, a Edda é atribuída a Snorri no Codex Uppsaliensis, no qual se lê em sua página inicial:

Este livro se chama Edda. Ele foi compilado (seiti saman) por Snorri Sturlusson da maneira que está ordenado aqui.

(Codex Uppsaliensis, Cabeçalho do f.2r, p.1. Tradução e itálico nossos) 403

No próprio DG 11 4to, um cabeçalho no Háttatal nomeia novamente Snorri enquanto seu autor. O tratado gramatical contido no W cita o Háttatal, também afirmando a autoria de Snorri. Há outras referências medievais a sua autoria; a Hákonar Saga e o Terceiro tratado gramatical citam o Háttatal, afirmando a autoria de Snorri Sturlusson, e o manuscrito AM 748 I b 4to, fragmentário, atribui a autoria de Snorri ao Skáldskaparmál404. Arngrímur Jónsson (1568-1648) foi o primeiro a propôr de forma consistente a autoria de Snorri na Edda, e esta viria a ser bem aceita pelas gerações subsequentes405. A existência de interpolações, mistura de textos antigos e de outros autores, no entanto, é tema que frequentemente volta à pauta, dadas diferenças consideráveis dentro do próprio texto e em alguns manuscritos. O trecho que nos interessa em particular, o Prólogo, é de longe a parte da Edda com maiores discordâncias entre os diferentes códices, e que mais viria a levantar hipóteses sobre autorias diversas. Em breve voltaremos a discutí-lo em detalhes. Quanto aos propósitos de Snorri em escrever a Edda, há dois postulados que são veiculados pela grande maioria dos acadêmicos que já os estudaram; o primeiro é a afirmação de que Snorri organizou a Edda fazendo um trabalho de antiquarista,

401 PÁLSSON, 2012: xliii. 402 FAULKES,Anthony (ed.) Edda: Prologue and Gylfaginning. University College London: Viking Society for Northern Research, 2005. P. xxx. 403 “Bók þessi heitir Edda. Hana hefir saman setta Snorri Sturluson eptir þeim hætti sem hér er skipat.”. In: PÁLSSON, 2012:.06. 404 FAULKES. 2005: xiv. 405 Idem, xiv. 211 construindo uma coletânea de mitos e formas poéticas efetuadas por um indivíduo interessado na preservação do passado islandês. O segundo associa a vida de Snorri com a Era dos Sturlungs e enfatiza as dualidades e contradições entre um homem avarento, ambicioso, político astuto e com sede de poder, em contrapartida ao homem das letras, do saber, interessado na escrita poética e histórica. Estas ideias podem ser encontradas desde os autores do século XIX, passando por traduções mais voltadas a um público geral como a de Brodeur em 1916, até autores contemporâneos como Anthony Faulkes406. Kevin Wanner é voz dissidente. Em seu livro407, estuda a Edda de Snorri à luz das ideias de Bordieu, interpretando a mesma enquanto uma tentativa da parte de Snorri de preservar suas próprias formas de capitais; seu conhecimento do passado e das formas poéticas e sua habilidade em empregá-las paulatinamente perdiam espaço em razão das modificações sofridas pelas sociedades da Islândia e da Escandinávia. Sua poesia não era mais compreendida; os mitos nos quais suas figuras de linguagem baseavam-se não eram mais conhecidos. Dessa forma, sua própria habilidade e, podemos dizer, arte, não eram reconhecidos, tampouco lhe traziam retorno em termos de prestígio, poder e influência. A composição da Edda fora, antes de uma obra de objetivo antiquário, um modo de tentar reverter a situação. Provavelmente o poema Háttatal fora composto primeiramente; as seções explicativas, contendo a coletânea de formas poéticas e os mitos que as sustentavam provavelmente foram compostas depois. O prológo seria adicionado ainda posteriormente, consistindo em uma explicação racionalizada e evemerista do autor sobre os mitos ali inseridos.

406 FAULKES, 2005: xvi. 407 WANNER, 2008. 212

4.2.4 As interpretações histórico-geográficas da Heimskringla e da Edda Menor

O início da Ynglingasaga, na Heimskringla, nos apresenta a compreensão de mundo de seu autor – que, conforme discutimos acima, não temos certeza se foi Snorri - e o conhecimento geográfico acumulado pelo mesmo:

Diz-se que o círculo da terra no qual a raça humana habita está dividido/cortado por muitas reentrâncias; dessa forma grandes mares correm adentrando a terra, (vindos do) oceano. Assim é sabido que há um grande mar que vai Narvesund (Gibraltar), e até Jerusalém.

Do mesmo mar uma longa reentrância marítima se estende em direção ao nordeste, e é chamado de Mar Negro (Svartahaf); divide as três partes da terra: a leste é chamada Ásia, e a oeste é chamada por alguns Europa, por alguns Enea. Ao norte do Mar Negro se encontra Svíþjóð, a Grande, ou a fria; a Grande Svíþjóð é chamada por alguns homens de não menor que a Grande Serkland; outros a comparam à Grande Bláland.

A parte norte de Svíþjóð fica desabitada em virtude da geada e do frio, assim como a parte sul de Bláland devido ao calor do sol.

Em Svíþjóð existem muitos grandes domínios, e muitas raças de homens, e muitas línguas: ali há gigantes, e ali há anões, e ali há homens azuis, e há todo tipo de criaturas estranhas, ali há imensas bestas selvagens, e temíveis dragões.

No lado sul das montanhas que ficam na orla externa de todas as terras habitadas corre um rio chamado Svíþjóð, que é corretamente chamado pelo nome de Tanais; mas foi anteriormente chamado de Tanakvísl, ou Vanakvísl, e que deságua no Mar Negro.

(as terras/o país) no Vanakvísl foi chamado de Vanaland, ou Vanaheimr; e o rio separa as três partes do mundo: a parte oriental é chamada de Ásia, e a ocidental Europa.

(Heimskringla, Ynglingasaga, 01. Versão nossa) 408

408 Kringla heimsins, sú er mannfólkit byggvir, er mjọk vágskorin; ganga họf stór ór útsjánum inn í jọrðina. Er þat kunnigt, at haf gengr frá Nọrvasundum ok alt út til Jórsalalandz; af hafinu gengr langr hafsbotn til landnorðrs, er heitir Svarta-haf. Þá skilr heimsþriðjungana: heitir fyrir austan Ásíá, en fyrir vestan kalla sumir Európá, en sumir Éneá. En norðan at Svarta-hafi gengr Svíþjóð in mikla eða in kalda; Svíþjóð ina miklu kalla sumir menn eigi minni en Serkland it mikla; sumir jafna henni við Bláland it mikla; inn nørðri hlutr Svíþjóðar liggr óbyggðr af frosti ok kulða, svá sem inn syðri hlutr Blálandz er auðr af sólarbruna. Í Svíþjóð eru stórheruð mọrg; þar eru ok margs konar þjóðir ok margar tungr: þar eru risar ok þar eru dvergar, þar eru ok blámenn, ok þar eru margs konar undarligar þjóðir, þar eru ok dýr ok drekar furðuliga stórir. Ór norðri frá fjọllum þeim, er fyrir útan eru byggð alla, fellr á um Svíþjóð, sú er at réttu heitir Tanais, hon var forðum kọlluð Tanakvísl eða Vanakvísl; hon kømr til sjávar inn í Svarta-haf. Í Vanakvislum var þá kallat Vanaland eða Vanaheimr. Sú á skilr heimsþriðjungana: heitir fyrir austan Ásíá, en fyrir vestan Európá. In: JÓNSSON, 1911: 04. 213

A passagem nos revela a incorporação de um saber geográfico medieval amplo, veiculado não apenas no Mappamundi islandês e nos itinerários, mas nos tratados geográficos medievais e demais mappaemundi da Europa Ocidental. Snorri, Ari, ou quem quer que tenha sido seu autor assimila e reproduz textualmente as concepções de mundo e terminologias macrobianas de zonas climáticas habitadas e desabitadas, especificamente a diferenciação específica de uma zona fria e uma desabitada quente:

A parte norte de Svíþjóð fica desabitada em virtude da geada e do frio, assim como a parte sul de Bláland devido ao calor do sol.

A terra é por ele descrita como tripartite: “(...) divide as três partes da terra (...).

Tal concepção evoca de imediato a tripartição tão frequente no medievo, derivada de Isidoro de Sevilha e espelhada inclusive na confecção dos mapas T-O, segundo qual a Terra seria habitada pelos filhos de Noé: Shem, Kham e Yaffet que povoariam, respectivamente, Ásia, África e Europa. Esta divisão é o parâmetro organizacional empregado no Mappamundi islandês por nós analisado no capitulo anterior. No entanto, a forma como o autor prossegue na narrativa da Ynglingasaga não espelha esta divisão ou, ao menos a adapta:

(...) a leste é chamada Ásia, e a oeste é chamada por alguns Europa, por alguns Enea. Ao norte do Mar Negro se encontra Svíþjóð, a Grande, ou a fria; a Grande Svíþjóð é chamada por alguns homens de não menor que a Grande Serkland; outros a comparam à Grande Bláland.

A divisão em Ásia e Europa é refletida nas direções cardinais de leste e oeste. Entretanto, ao invés de prosseguir para sul, o texto continua descrevendo o norte: “Ao norte do Mar Negro se encontra Svíþjóð, a Grande, ou a fria”. Para complicar a situação, a África e a divisão das águas presentes nas concepções isidorianas são transformadas em produtos específicos dessa obra: se na primeira tradição os braços divisórios das águas são o Mediterrâneo e o Tanais/Don, 214 aqui o Mar Negro assume o papel do Mediterrâneo, enquanto o Tanais/Don permanece em sua função. A África é citada, porém comparativamente, e assumindo um sentido diverso; ao comparar a grande Svíþjóð, em termos de tamanho à Grande Bláland, particularmente citando-a também como “a fria”, o autor está adaptando a ideia macrobiana e grega do continente Antípoda em uma zona climática diversa. Bláland é o termo empregado para a África, significando “terra azul”. Serkland, como já visto nos Capitulos 02 e 03, pode se referir às terras além do Mar Cáspio ou o mundo Islâmico. Dessa forma, a divisão tripartite da terra e a divisão em zonas climáticas macrobianas apresentam-se enquanto ideias externas ao conhecimento do autor, possivelmente conceitos não de todo dominados por ele. É possível também que o autor da Heimskringla, tendo conhecimento das tradições geográficas ocidentais e islâmicas – tendo-se em mente que os mapas islâmicos também empregarão, ainda que de forma muito distinta, conceitos de “zonas climáticas”, delas discorde e simplesmente prefira expor a sua visão de como mundo se organiza. Não é de todo surpreendente que a região circunscrita a Bizâncio e à Rus tomem maior importância em sua história do que o Mediterrâneo, dados os eventos que posteriormente ele narrará, envolvendo a migração dos ancestrais dos Escandinavos, ponto ao qual retornaremos brevemente, bem como o histórico escandinavo na Rus.

4.2.5 O prólogo da Edda Menor

Se recuarmos temporalmente na produção cuja autoria esta mais claramente associada a Snorri Sturlusson e atentarmos para o prólogo da Edda, encontraremos uma divisão do mundo organizada de forma muito mais livresca, mas uma situação infinitamente mais complexa. Cada um dos principais manuscritos da Edda traz o Prologo de forma diversa e muito já se discutiu sobre o trecho. A versão mais longa é a contiga no Codex Wormianus. O trecho a seguir é o contido no Codex Regius, que contém menos interpolações que W, mas não está tão condensado como U:

O mundo foi dividido em três partes. Do sul em direção a oeste pelo Mar Mediterrâneo está a parte chamada África. Sua região meridional é quente e castigada pelo sol. A segunda região começa no oeste e continua a norte pelo mar; é chamada de Europa ou Enea. Sua 215

região norte é tão fria que nenhuma grama cresce e ninguém pode sobreviver ali. Do norte e (indo) para a parte oriental até o sul, ali é chamada de Ásia409.

(Edda menor, Codex Regius. Prólogo; seção 2.Versão nossa)

A passagem está plenamente de acordo com as tradições geográficas medievais ocidentais e a concepção tripartite de mundo; chega à precisão de delinear subdireções; “do sul em direção a oeste”, “começa no oeste e continua a norte”, “do norte / para o continente oriental (...)”. Estão discriminados África, Europa - cujo próprio nome da tradição greco-romana, Enea, é dado, e a Ásia. A concepção zonal e de regiões desabitadas também está inserida no trecho, incorporada na África e ao norte da Europa. Em suma, uma descrição que cabe perfeitamente à tradição de Isidoro e que insere satisfatoriamente concepções macrobianas. No Codex Wormiamus há uma grande inserção entre a primeira parte do Prólogo, que contém uma breve descrição da criação do mundo e da queda do homem, e a parte concernente à divisão da Terra em três partes. O princípio de tal inserção dá-se da seguinte forma:

Em sua velhice Noé dividiu o mundo com seus filhos. Planejou para Kham a parte oeste, para Yaphett a parte norte, e para Shem a parte sul410

(Edda Menor, Codex Wormianus. Prólogo. Versão Nossa)

De início, a passagem parece um contrasenso, visto que coloca Kham a ocidente e Shem para sul. Pelo contrário, o decorrer do trecho trará uma reflexão e elaboração consideráveis sobre o texto bíblico; a continuidade da narrativa dissertará

409 “Veröldin var greind í þrjár hálfur. Frá suðri í vestr ok inn at Miðjarðarsjá, sá hlutr var kallaðr Affríca. Hinn syðri hlutr þeirar deilðar er heitr ok brunninn af dólu. Annarr hlutr frá vestri ok til norðrs ok inn til hafsins, er sá kallaðr Evropá eða Enea. Hinn nyrðri hlutr er þar kaldr svá at eigi vex gras ok eigi má byggja. Frá norðri ok um austrhálfur allt til suðrs, þat er kallat Asíá.” In: FAULKES, 2011: 04. 410 “Í elli sinni skiptir Nói heiminum með sonum sínum. Ætlaði hann Cham vestrhálfu, en Japheth norðrhálfu, en Sem suðrhálfu”. In: “The extended Prologue to Gylfaginning from Codex Wormianus [W] with the extended portions highlighted in red”. Obtido em: Edição crítica e análise contidas na tese de doutoramento de Tarin Willis: < http://homepages.abdn.ac.uk/cgi-bin/cgiwrap/wag017/mg- new.cgi?t=1&idl=1&nf=1&w=go&w=sm.1>. Último acesso e 12/11/2004. 216 sobre o desenvolvimento dos homens, o crescimento de seu conhecimento e soberba, e de que forma os descendentes de Kham habitariam a parte destinada a seu irmão, Shem. A inclusão posterior da referência à construção de Sinnear pelos mesmos demonstra reflexão sobre o capítulo 10 do Gênesis, particularmente o verso 10, quando se afirma que os descendentes de Kham teriam construído Sinnear, na Mesopotâmia. É difícil harmonizar os textos, adições e discordâncias. A depreender-se pelas inserções do Codex Wormianus, seu autor possui concepções cosmológicas próprias, não necessariamente equivalentes às veiculadas nas outras partes do Prólogo. De fato, esta mão demonstra uma elaboração bíblica a nível de alguém letrado teologicamente, diversamente do leigo Snorri. Mais adiante, no próprio W, a genealogia apresentada será consideravelmente extendida. Nos outros códices ela vai dos reis de Tróia aos deuses escandinavos – evemerizados enquanto humanos de grandes feitos. Aqui, ela se extende rumo ao passado, de Príamo até Saturno, de forma encontrada em outras fontes e autores do medievo ocidental como Honorius Augustodunensis, De imagine mundi III e o chamado “Primeiro mitógrafo”411, demonstrando conhecimento adicional da tradição letrada. Se nos parece bastante evidente que as inserções feitos no Prólogo em W não devem ter sua origem em Snorri, não nos parece tão clara a mesma situação no que se refere ao Prólogo em suas versões menores. A questão da autoria de Snorri no prólogo da Edda e na Heimskringla influencia decisivamente na interpretação dos extratos de fonte analisados até então. Caso considere-se Snorri o autor tanto da Heimskringla quanto do Prólogo da Edda, como compreender tal diferença de concepção em duas obras escritas em períodos razoavelmente próximos pelo mesmo indivíduo? Podemos levantar a hipótese de uma maturação e desenvolvimento de uma visão cosmológica da parte do próprio Snorri, que pode ter se modificado e incorporado outras visões do mundo desde sua viagem a Escandinávia até seu retorno à Islândia. Poderíamos alegar, de forma diametralmente oposta, que ou Snorri, ao criar sua cosmologia, partiu do conhecimento livresco disponível ao erudito comum do medievo ocidental, dirigindo-se a uma adaptação própria sua do mesmo, ou que, partindo de um conhecimento circunscrito geográfico do meio islandês, gradualmente tomou conhecimento e domínio da tradição geográfica europeia mais ampla.

411 FAULKES, Anthony. Descent from the Gods. In: Mediaeval Scandinavia 11, 1978-89. P.12. 217

Outra explicação, de longe favorita para os mitólogos, é a que foram feitos adendos e interpolações por outrem no Prólogo. Assim a passagem não seria inteiramente da pena de Snorri e conteria elementos de outros autores, principalmente no que toca ao emprego da tradição cristã e greco-romana. Tal explicação se insere na discussão não resolvida sobre o nível do conhecimento de latim e da tradição clássica da parte de Snorri e, como demonstramos acima, é válida ao menos em alguns manuscritos, como o Codex Wormianus. Julgamos conveniente pressupor a autoria de Snorri também no Prólogo da Edda, ainda que não estejamos tão certo quanto à mesma na Heimskringla. Já afirmamos que as inserções do Codex Wormianus devem ser de outra mão; certamente destoam grandemente do texto como um todo. Quanto ao núcleo do Prólogo, não é problema pressupormos que, a despeito de um tratamento diferente da tradição – como em breve discutiremos, não há um impedimento que Snorri tenha tomado uma atitude dupla de contar os mitos nórdicos em uma seção e analisá-los no prólogo da obra. A despeito das divergências e mudanças entre os códices, a primeira passagem transcrita é comum a todas as versões. A concepção livresca tripartite do mundo é afirmada. As interpolações do Wormianus omitem o leste na divisão do mundo. As outras passagens, comuns aos demais códices, entretanto, associam-no à Ásia e caracterizam-no da seguinte forma - citamos aqui techo do Codex Regius, ao falar da Ásia: Tudo nesta parte do mundo é belo e excelente, e a terra produz ouro e pedras preciosas. Ali é também o meio do mundo; e assim como a terra nesta região é mais bela e melhor de todas as maneiras que os outros lugares, assim também as pessoas ali são abençoadas com todas as dádivas: sabedoria e força, beleza e toda forma de habilidade.412

(Edda menor, Codex Regius. Prólogo; seção 2.Versão nossa)

Uma concepção ligada à tradição clássica e, particularmente, cristã. O texto contém uma clara emulação do simbolismo que gira em torno do Éden no Gênesis, e na Cidade Celestial do Apocalipse, como por exemplo nas referências da produção de

412 “Í þeim hlut veraldar er ọll fegrð ok prýði ok eign jarðar ávaxtar, gull ok gimsteinar. Þar er ok mið verọldin; ok svá sem þar er jọrðin fegri ok betri ọllum kostum en í ọðrum stọðum, svá var ok mannfólkit þar mest tignat af ọllum giptum, spekinni ok aflinu, fegrðinni ok alls kostar kunnustu”. In: FAULKES, 2011: 04. 218

“ouro e pedras preciosas”. Há uma série de versos bíblicos que podem ser origem de alguns termos como “(...) todas as bênçãos: sabedoria e força, beleza, e toda forma de habilidade”, tornando difícil uma associação única. As ideias expressas no versículo de Gênesis 02:08 e no capítulo 21 do Apocalipse – que trata da Jerusalém celestial - são fundamentais nas associações e criação de tradições que ligam o leste ao paraíso, a utopias e similares, de forma demasiadamente ampla e disseminada na Cristandade Medieval413 para ser discutida aqui. A localização do Éden é claramente referida no texto bíblico como no Oriente:

“E plantou o SENHOR Deus um jardim no Éden, na direção do Oriente, e pôs nele o homem que havia formado”.

(Gn. 02:08; Bíblia Sagrada; Versão Almeida Revista e atualizada)

Esse sentido, dotado de matiz religiosa, pode encontrar alguma contraparte ou eco distante em tradições nativas escandinavas, mas por meio de significativa ressignificação. Citamos no capítulo anterior uma referência da Edda, não do Prólogo, mas do Gylfaginning. Nessa seção Snorri conta diversos mitos escandinavos. Em um deles, Þórr está ausente de Ásgarðr, pois (...) ele tinha ido para o leste/o caminho oriental para destruir trolls”414. Atkinson defende a ideia de que na cosmologia escandinava antiga haveria uma associação do leste com o reino dos mortos, de Austrvegr como região similar a Hell. Para tanto, além da passagem supracitada e de estudos de Turville-Petrie que associam criaturas míticas a Austrvegr, ele emprega diversas das inscrições nas estelas rúnicas referindo-se aos mortos no leste415. Não se trata de uma ocorrência isolada, ainda que a conexão não seja totalmente clara e necessite de intermediações. Algumas das narrativas de viagem à terra dos mortos tratam da ida aos domínios de Geirröðr416. Em algumas partes das Fornaldarsögur, como no capítulo 23 da Ọrvar-Odds Saga e nos capítulos 5 e 11 da Þorsteins saga Víkingssonar, os domínios de Geirröðr estão localizados

413 RIBEIRO, Maria Eurydice de Barros Ribeiro. O Inferno e o Paraíso: Cartografia e Paisagem (Sécs. XII-XV). In: História Revista. Dossiê: Idade Média. 5(1/2); jan./dez., 2000. P.25. 414 “(…) en hann var farinn í Austrveg at berja troll”. In: PÁLSSON, 2012: 60. 415 ATKINSON, Hugh. Upp ek þér verp ok á Austrvega: death overseas and the dead in the East. Comunicação apresentada na XIV Saga Conference, “Á Austrvega”, 2008. 416 ELLIS, 1968: 171. 219 inequivocamente no leste – um leste materializado, enunciado após a enumeração de outros domínios conhecidos de Austrvegr e Garðaríki. Adicionano-se também as discussões pertinentes às estelas rúnicas apresentadas no capítulo 02 desta tese, a hipótese de Atkinson parece-nos plausível, ainda que em necessidade de maior verificação. Conforme já discutido, há uma pequena porcentagem do total das estelas que lida com expedições vikings. Dessa, uma parcela considerável trata do leste; igualmente, tomando-se a amostra como um todo, porcentagem razoável contém referências a mortos. Destarte, abre-se o espaço para a discussão sobre a função memorial em relação aos mortos, inserindo-se uma dimensão religiosa além; porém perdura a necessidade de se analisar de forma balanceada toda a evidência das estelas, incluindo os percentuais de outras séries que lidem com temáticas similares. A questão permanece em aberto. Retornando à Edda, fica evidenciada a associação do leste a um imaginário geográfico advindo da tradição cristã, com nuances no campo do religioso, e que pode ser entrelaçado com conceituações cosmológicas de tradições mais antigas da Escandinávia. A contraparte clássica fornecida pela passagem dar-se-á na continuidade do texto, ao traçar a genealogia dos deuses no paganismo escandinavo com o emprego do conceito evemerista.

4.2.6 O Evemerismo

Por evemerismo compreende-se uma forma hermenêutica desenvolvida desde o helenismo segundo a qual os deuses seriam homens cujos feitos foram amplificados pela passagem do tempo e a tradição mítica. Recebeu seu nome do helênico Euhemeros, do século III a.C., mas formas similares de interpretação foram usadas por autores anteriores a ele como o próprio Heródoto, e continuariam sendo empregadas por autores dos mais distantes contextos na antiguidade e do medievo, incluindo Clemente de Alexandria, Isidoro de Sevilha e Roger Bacon. Pode também ser chamado de uma interpretação histórica, ou mesmo hitoricizante, da mitologia. Na introdução da Heimskringla, em conjunto com o prólogo da Edda menor e sua primeira parte (Gylfaginning), temos uma elaboração erudita e coerente da parte de Snorri - e de quaisquer outros autores que tenham feito ao texto - que liga as divindades escandinavas dos tempos pagãos aos reis dos séculos XII e XIII, numa linha 220 genealógica contínua e, podemos até mesmo dizer, racional. Os deuses do paganismo escandinavo são descritos como homens notáveis, heróis e reis da antiguidade que adquiriram proeminência no norte devido às suas características excelentes. Na Ynglingasaga a narrativa se sucede à há pouco apresentada descrição do mundo. Após afirmar a divisão tripartite do mesmo e citar o rio Tanais/Don (Tanakvisl/Tanaquisl), o autor continua:

(o país) para leste do Tanaquisl na Ásia foi chamado Ásaland ou Ásaheimr, e a cidade capital daquela terra foi chamada Ásgarðr. Naquela cidade houvera um chefe que era chamado Óðinn; ali foi um grande lugar para sacrifício. Foi costume ali que doze sacerdotes do templo deviam tanto dirigir os sacrifícios como também julgar as pessoas. Eles foram chamados de díar, ou dróttnar; a eles servia e obedecia todo o povo. Óðinn foi um grande e bem-viajado guerreiro, que conquistou muitos reinos. Ele era tão bem-sucedido em cada batalha que a vitória estava do seu lado; era a crença de seu povo que a vitória pertencia a ele em cada batalha (...) Seu povo também estava habituado, estivessem em perigo em terra ou mar, a chamar o seu nome, e pensavam que sempre eles teriam conforto e auxílio por meio dele, pois pensavam que aonde ele estivesse a ajuda estaria por perto. Ele geralmente viajava tão longe que passava muitas temporadas em suas jornadas417.

(Heimskringla, Ynglingasaga, seção 2. Versão nossa)

Aqui o uso do leste, da Ásia, é associado primariamente à tradição mítica nórdica, e ao lugar de maior ressonância da mitologia escandinava: Ásgarðr, a cidade dos deuses. Snorri esvazia o conteúdo mítico de tal faceta, racionalizando-o e definido-o geograficamente. Os próprios nomes das divindades e do continente facilitam sua transposição: a família principal dos deuses, da qual Óðinn é o líder inconteste, é a família dos Æsir. Nada mais natural que seja feita a associação entre Ásaland/

417 Fyrir austan Tanakvísl í Ásíá var kallat Ásaland eða Ásaheimr, en họfuðborgin, er var í landinu, kọlluðu þeir Ásgarð. En í borginni var họfðingi sá, er Óðinn var kallaðr; þar var blótstaðr mikill. Þat var þar siðr, at xii. hofgoðar váru œztir; skyldu þeir ráða fyrir blótum ok dómum manna í milli; þat eru díar kallaðir eða dróttnar; þeim skyldi þjónostu veita ok lotning alt fólk. Óðinn var hermaðr mikill ok mjọk víðfọrull ok eignaðist mọrg ríki; hann var svá sigrsæll, att í hverri orrostu fekk hann gagn; ok svá kom, at hans menn trúðu því, at hann ætti heimilan sigr í hverri orrostu(...) Svá var ok um hans men, hvar sem þeir urðu í nauðum staddir á sjá eða á landi, þá kọlluðu þeir eiga nafn hans, ok þótti jafnan fá af því fró; þar þóttusk þeir eiga alt traust, er hann var. Hann fór opt svá langt í brott, at hann dvalðisk í ferðinni mọrg misseri. In: JÓNSSON, 1911: 04s. 221

Ásaheimr, “terra dos aesir” com a Ásia. O discurso evemerista mais completo e elaborado de Snorri, entretanto, se dá na Edda, em seu prólogo. Seu início dá-se com a própria paráfrase do texto bíblico:

O Deus todo poderoso criou no princípio os céus e a terra e tudo o que neles há, e no fim criou duas pessoas, Adão e Eva, e deles vieram clãs, cujos descendentes multiplicaram-se e espalharam-se pelo mundo todo (...) mas a grande maioria voltou-se para os desejos deste mundo e negligenciou os mandamentos de Deus418”.

(Edda menor, Codex Regius. Prólogo. Versão nossa)

Prossegue dando continuidade à narrativa do dilúvio, ao repovoamento da Terra e à repetição da desobediência a Deus. O que se passa a seguir é uma reflexão extremamente racional das explicações míticas. Posteriormente, na Gylfaggining, Snorri mostrará como as narrativas cosmológicas escandinavas pagãs descreverão a formação do mundo através do cadáver do gigante Hímir; de seus ossos vieram as montanhas, de seu cérebro as nuvens, de sua carne a terra e assim por diante. Aqui, no prólogo, Snorri busca compreender como se desenvolvera tal forma de explicação natural. Tal discurso é dado após a narrativa do dilúvio e da repetição dos erros dos homens que, não obstante, teriam sido agraciados por Deus com a sabedoria. É por meio do uso dessa sabedoria que Snorri faz a ponte para a descrição a seguir:

Ele também lhes deu a sabedoria para compreender todas coisas terrenas e todas as partes separadas que pudessem ser vistas no céu e na Terra. As pessoas pensaram sobre estas coisas, imaginando o que poderia significar que a terra e os animais e os pássaros eram de alguma forma similares, ainda que suas naturezas fossem diferentes. Uma das características da Terra é que, quando as altas montanhas são cavadas, jorra água, e mesmo em vales profundos não é necessário cavar muito fundo em busca de água. O mesmo é verdade nos animais e nos pássaros, cujo sangue está igualmente perto da superfície na cabeça e nos pés. Uma segunda característica da terra é que grama e flores florescem todo ano, mas no mesmo ano tudo esvanesce e cai. Assim é com os animais e os pássaros: cabelo e penas crescem neles, mas cada ano caem. A terceira característica da Terra é que quando

418 “Almáttigr guð skapaði í upphafi himin ok jọrð ok alla þá hluti, er þeim fylgja, og síðarst menn tvá, er ættir eru frá komnar, Adam ok Evu, ok fjọlgaðist þeira kynslóð ok dreifðist um heim allan. (...) en myklu fleiri snerusk eptir girndum heimsins ok óræktu guðs boðorð (...)”. In: FAULKES, 2005: 03. 222

ela é aberta ou cavada, a grama cresce sobre o solo que está mais próximo à superfície. As pessoas pensam nas rochas e pedras como comparáveis aos dentes e ossos das criaturas vivas. Assim eles entendem que a Terra é viva e tem vida própria. Eles também sabem que, em termos de anos, a Terra é maravilhosamente velha e poderosa por sua própria natureza. Ela dá nascimento a todas as coisas vivas e declara propriedade sobre tudo o que morre. Por esta razão, eles deram a ela um nome e traçaram suas origens a ela419. (Edda menor, Codex Regius. Prólogo.Versão nossa)

É por meio do desenvolvimento de raciocínios similares que Snorri partirá à explicação da origem dos deuses. Seu raciocínio é bastante analítico, preciso, nem um pouco dado à alegorias ou misticismo. O máximo de concessão à que Snorri se permite é no campo da teologia, sempre em volta de questões bem-estabelecidas como a criação do mundo por Deus e o desvio dos homens em relação ao seu criador. A mesma forma de arrazoamento é aplicada à explicação do surgimento de Óðinn, Þórr, Sif e outras divindades nórdicas. Descendentes dos homens de Troia que, segundo o Prólogo, está localizada no centro do mundo, esses homens espelham as qualidades que foram atribuídas de início ao continente da Ásia, posteriormente à cidade de Tróia, culminando em si mesmos. Releiamos passagem já citada:

Tudo nesta parte do mundo é belo e excelente, e a terra produz ouro e pedras preciosas. Ali é também o meio do mundo; e assim como a terra nesta região é mais bela e melhor de todas as maneiras que os outros lugares, assim também as pessoas ali são abençoadas com todas as dádivas: sabedoria e força, beleza e toda forma de habilidade.420

(Edda menor, Codex Regius. Prólogo; seção 2.Versão nossa)

419 “Miðlaði hann ok spekðina svá at þeir skilðu alla jarðliga hluti ok allar greinir þær er sjá mátti loptsins ok jarðarinnar. Þat hugsuðu þeir ok undruðusk hverju þat mundi gegna, er jọrðin ok dýrin ok fuglarnir họfðu saman eðli í sumum hlutum ok var þó ólík at hætti. Þat var eitt eðli að jọrðin var grafin í hám fjalltindum ok spratt þar vatn upp ok þurfti þar eigi lengra at grafa til vaz en í djúpum dọlum. Svá eru ok dýr ok fuglar, at jafnlangt er til blóðs í họfði ok fótum. Ọnnur náttúra er sú jarðar, at á hverju ári vex á jọrðinni gras ok blóm ok á sama ári fellr þat allt ok fọlnar. Svá eru ok dýr ok fuglar, at þeim vex hár ok fjaðrar ok fellr af á hverju ári. Þat er hin þriðja náttúra jarðar þá er hon er opnuð ok grafin þá grœr gras á þeiri moldu er efst er á jọrðunni. Bjọrg ok steina þýddu þeir á móti tọnnum ok beinum kvikenda. Af þessu skilðu þeir svá at jọrðin væri kyk ok hefði líf með nokkurum hætti, ok þat vissu þeir at hon var furðuliga gọmul at aldartali ok máttug í eðli. Hon fœddi ọll kvikvendi ok hon eignaðisk allt þat er dó. Fyrir þá sọk gáfu þeir henni nafn ok tọlðu ættir sínar til hennar.” In: FAULKES, 2011: 03. 420 “Í þeim hlut veraldar er ọll fegrð ok prýði ok eign jarðar ávaxtar, gull ok gimsteinar. Þar er ok mið verọldin; ok svá sem þar er jọrðin fegri ok betri ọllum kostum en í ọðrum stọðum, svá var ok mannfólkit þar mest tignat af ọllum giptum, spekinni ok aflinu, fegrðinni ok alls kostar kunnustu”. In: FAULKES, 2011: 04. 223

A descrição no Prólogo não coincide em todos os pontos com outras estórias do restante da obra, ou mesmo em outras obras. Aqui, Þórr é neto do rei Príamo de Tróia - associada ao nome Tyrkland, terras dos Tyrks, mas foi levado para a Trácia, Trakíá - que o Prólogo associa ao nome nórdico Þrúðheim. Da sua descendência viria Óðinn que, por sua vez, se assentaria na Suécia e daria origem aos governantes das outras nações do norte. Um de seus descendentes seria Gylfi, rei dos suecos que assumirá papel proeminente na próxima parte da Edda, a Gylfaginning. No Gylfaginning a situação é diversa. Gylfi interroga aos deuses, que lhe contam a origem e o fim de tudo; aqui, os mitos e tradições, racionalizados e explicados anteriormente no Prólogo, são narrados em uma forma mais próxima à tradição escandinava pré-cristã. Não apenas o tom narrativo passa por modificações significativas. As relações entre os personagens também sofrem alterações. No mito veiculado pelo Gylfaginning Óðinn reina em Ásgarðr, é apresentado como Allföðr (pai de todos), e é pai, não descendente de Þórr. Snorri apresenta-o dando continuidade a um relato que descreve detalhadamente a cosmologia e cosmogonias antigas escandinavas, incluindo a criação do mundo a partir do corpo morto do gigante Ymir. Existem três correntes teóricas principais que ganharam destaque na interpretação desses textos. A escola historicizante, inaugurada pelos arqueólogos Petersen (1849-1896) e Salin (1861-1931) e adotada largamente pelos germanistas posteriores421, viria a defender que as narrativas de Snorri refletiram a memória de eventos que de fato teriam ocorrido. No caso em questão, movimentos germânicos do período das migrações a partir do século IV das regiões do Don e do Mar Negro através da Germânia e Escandinávia. Die gelehrte Urgeschichte im altisländischen Schrifttum de Andreas Heusler (1908)422, que estudaria os eventos ligados aos troianos e à Tyrkland nos escritos de Snorri e Ari, daria origem à escola da Gelehrte Urgeschicht.423. A grosso modo esta escola - muito influente por décadas posteriores - procura traçar os passos da construção de uma “pré-história germânica” por um pensamento erudito islandês dos séculos XII-

421 Obras emblemáticas: PETERSEN, Karl Nikolai Henry. Om Nordboernes Gudedyrkelse og Guderto i Hedenold: Em antikvarisk Undersøgelse. Købnhavn: C.A. Reitzels Forlag, 1876 & SALIN, Bernhard. Studier tillägnade . Stockholm: Norstedt, 1903. 422 HEUSLER, Andreas. Die gelehrte Urgeschichte im altisländischen Schrifttum. Verlag der Königlich Preußischen Akademie der Wissenschaften: Berlin, 1908. 423 “Pré-história ensinada”. 224

XIII que bebe de outros historiadores europeus, como Fredegarius Scholasticus (ca.658- 661), Pseudo-Fredegarius (da Gesta Francorum, ca.727), Isidoro de Sevilha e Geoffrey de Monmouth424-425. Por fim, outra corrente interpretativa de relevância é a escola da mitologia comparativa, ou estruturalista, representada por Georges Dumézil, que incorpora a mitologia escandinava ao esquema tripartite indo-europeu. Dumézil (1992)[1970] defendia uma posição diametralmente oposta ao historicismo de, entre outros autores, Paul Hermann. Alguns pontos significativos em sua trajetória, com impacto em sua aplicação no estudo de Snorri, são as publicações de Mythes et dieux des Germains - Essai d'interprétation comparative (1939), Loki (1948), Les Dieux des Germains, essai sur la formation de la religion scandinave (1959), Du mythe au roman, la Saga de Hadingus et autres essais (1970)426.

4.2.7 Snorri e a “Matéria de Roma”

Jean Bodel (1165-1210) classificou os ciclos literários medievais nas chamadas “matérias”: a Matéria da Bretanha, concernente ao Rei Artur, a Matéria de Roma, que incorporaria temas da Antiguidade Clássica, e a Matéria de França, centralizada em Carlos Magno. Dentro da “Matéria de Roma” desenvolveu-se uma linha peculiar interpretativa ligada à Guerra de Tróia. As conexões e genealogias entre os autores e obras não é totalmente clara. No entanto, duas obras, supostamente traduções para o latim de antigos originais gregos, foram fundamentais para o desenvolvimento de tais formas escritas. São elas a Dictys Cretensis Ephemeridos belli Trojani (século IV) e Daretis Phrygii de excidio Trojae historia (século V-VI) 427. Ambas são bastante semelhantes, contando a destruição de Troia. Um exemplo de trabalho que as empregou enquanto fontes ou inspiração é o “Le Roman de Troie” de Benoît de Sainte-Maure. Porém a influência de tais obras no medievo não está limitada à “Matéria de

424 PRITSAK, 227-237. 425 SEE, Klaus von. Europa und der Norden in Mittelalter. Universitätsverlag C. Winter: Heidelberg, 1999. P.276. 426 Indicamos BOULHOSA, Patrícia Pires. A mitologia escandinava de Georges Dumézil: uma reflexão sobre método e improbabilidade. Revista Brathair, 6(2), p. 3-31, 2006 como boa síntese das críticas dirigidas a Dumézil no campo da escandinavística. 427 D´ARCIER, Louis Faivre. Histoire et géographie d’un mythe. La circulation des manuscrits du De excidio Troiae de Darès le Phrygien (VIIIe-XVe s.). Paris: École nationale des Chartes, 2006. P.03. 225

Roma”. De fato, ela perpassa a Antiguidade Tardia e a Alta Idade Média. Há relatos históricos escritos tanto séculos antes do desenvolvimento dos ciclos literários em Francia quanto contemporâneos a eles. Torna-se um expediente frequente ligar o destino de refugiados de Troia ou seus descendentes ao passado das nações europeias; D´Arcier afirma que as únicas exceções ao uso de tal expediente são os autores espanhóis e irlandeses,428 afirmação com a qual discordamos - em breve mostraremos, por exemplo, que ela não se aplica a Saxo. Ao Dictis Cretensis e o Daretis Phrygii, devemos adicionar a própria Eneida de Virgílio enquanto fonte de inspiração para uma série de autores europeus429. O primeiro emprego das origens troianas para um povo europeu é efetuado pelo Pseudo-Fredegário (c. 727), que o aplica aos francos430. Um caso relevante para a historiografia escandinava é a obra Historia Regum Britaniae de Geoffrey of Monmouth (ca.1100-1155) – esta última, note-se, mais ligada à “Matéria da Bretanha” do que à “Matéria de Roma”, mas que bebe igualmente da história de Troia. No livro I de sua Historia Regum Britanniae, Geoffrey of Monmouth conta que após a guerra de Tróia, Eneas refugiou-se na Itália. Seu bisneto Brutus seria banido, mas algum tempo depois fora conduzido pela deusa Diana para uma ilha no ocidente, que ele nomeia “Britannia”, segundo o seu próprio nome. Às margens do Thames fundaria a cidade de Troia Nova, posteriormente renomeada para Londinium – a London atual. Há indícios fortes de que em vários momentos Geoffrey of Monmouth tenha empregado a Eneida de Virgilio431. Esta digressão literária e histórica nos é necessária porque toca diretamente na questão da transmissão da temática para a Escandinávia. Geoffrey de Monmouth é considerado uma das fontes e modelos principais para a Gesta Danorum de Saxo Grammaticus432, cujo próprio domínio do latim nos dá mostras de conhecimento de Virgílio433. Entretanto há na Islândia uma tradução de provavelmente da metade do século

428 D´ARCIER, 14. 429 MOLCHAN, George Gregory. Translating Arthur: The Historia Regum Britaniae of Geoffrey of Monmouth and Roman de Brut of Wace. Doctoral´s dissertation: Louisiana State University, December 2013. P.76. 430 D´ARCIER, 14. 431 MOLCHAN, 76. 432 ELLIS-DAVIDSON, 2006: 09, 53, 56, 72, 92, 160. 433 Idem, pp.01, 05-08, 142. 226

XIII434 para o vernáculo, da Daretis Phrygii de excidio Trojae historia. A obra veio a ser chamada de Trójumanna Saga – “Saga dos homens de Troia”. Ela se enquadra no gênero conhecido como Riddarrasögur, ou “Sagas cavalheirescas”, que normalmente consistem em traduções de Chansons-de-Geste e literatura cortesã para o antigo nórdico. Esta obra possui ao menos três redações. A primeira, mais antiga, presente no Hauksbók, recebeu por tal razão o seu nome; as outras duas, provavelmente mais tardias, quiçá do século XIV435, foram chamadas de “alfa” e “beta”. Enquanto a versão do Hauksbók é bastante próxima à Daretis Phrygii, encontram-se nas outras redações influências de autores latinos, provavelmente a Ilias latina e a Heroides de Ovídio436. Em vista de tal variedade de redações e origens, não há possibilidade segura de se conhecer quais foram as fontes exatas de Snorri Sturlusson, tampouco as obras que o mesmo possuía a sua disposição; sequer se sabe com certeza qual fora o seu conhecimento de latim437. É possível que tivesse acesso às traduções efetuadas dos gregos, quiçá da Eneida. É igualmente possível que tenha se valido de alguma tradução das mesmas para o antigo nórdico, tendo esta tradução conexão ou não com a Trójumanna saga. Quanto às diferenças de paternidade ou descendência entre Óðinn e Þórr encontradas no Prólogo e na Gylfaginning, julgamo-las poucas para atestar uma paternidade diversa ao Prólogo – ao menos em uma suposta redação arquetípica, do qual provavelmente a contida no Codex Uppsaliensis seja a mais próxima. O projeto da Edda como um todo é similar à construção de camadas sucessivas; seu núcleo, seu centro, é o Hattatál. Para compreendê-lo, o leitor precisa de dois campos do conhecimento bastante diversos: o conhecimento das métricas, fórmulas e métodos de composição poética e o conhecimento dos mitos que provêm temas e toda a base para este cabedal linguístico. Por fim, o Prólogo é um complemento perfeito para o trabalho, explicando os mitos que, por sua vez, auxiliavam na compreensão dos recursos linguísticos e poéticos e do próprio Hatattál.

434 LOUIS-JENSEN, Jonna (ed.). Trójumanna saga: the Dares Phrygius version. Copenhagen: C.A. Reitzel, 1981. Pp. L–LVI. 435 LOUIS_JENSEN, Idem. 436 ELDEVIK, Randi Claire. The Dares Phrygius Version of Trójumanna saga: A Case Study in the Cross-cultural Mutation of Narrative. Doctoral dissertation. Harvard University, 1987-88. pp. 06s. 437 WANNER, 2008; PÁLSSON, Heimír (ed). Introduction. In: The Uppsala Edda. University College London: Viking Society for northern Research, 2012, p. xiv. 227

Dadas as tradições europeias que ligam origens das nações a imigrantes de Tróia, e dadas as próprias semelhanças fortuitas, na maior parte das vezes superficiais, entre nomes como Tróia e Þórr, Sibila e Sif, Trácia e Þrúðheim, Ásia e Ásgarðr, as tradições medievais, cristãs e, principalmente, clássicas, fornecerão os parâmetros através dos quais os mitos serão explicados e racionalizados. Desta feita, o procedimento de trocar as relações familiares entre Óðinn e Þórr apresenta-se como plenamente aceitável e compreensível.

4.2.8 Austrvegr e Garðaríki na Heimskringla: o ciclo de Óláfr Tryggvason, S.Óláfr, Magnus o bom e Haraldr Harðraði

Nas fontes discutidas até então há predominância de reelaboração clássica e bíblica das visões de leste, em detrimento do conhecimento geográfico e formulações mais propriamente escandinavas. Austrvegr e Garðaríki estão ausentes em tais fontes e em nossa discussão até o momento, com a pequena excessão discutida a pouco sobre a possível associação de Austrvegr à terra dos mortos. Alguns autores alegarão um desconhecimento e ignorância sobre o leste da parte dos autores islandeses, e mesmo noruegueses438. Não podemos concordar de todo com a afirmação, mas em comparação com o conhecimento dos daneses e, principalmente suecos, a afirmação possui certo fundamento. A Heimskringla apresenta informação relevante sobre o leste, que iremos analisar agora. Desta feita, não o leste extremamento reelaborado e ressignificado dos Prólogos, mas o leste de Austrvegr e Garðaríki. Categorizamos esta informação em duas categorias principais: a) informações dinásticas, contextuais, étnicas e geográficas; b) o ciclo dos noruegueses refugiados em Garðaríki.

a) informações dinásticas, contextuais, étnicas e geográficas: A Heimskringla nos traz nomes de reis, relações dinásticas e de parentesco, locais de governo, informações sobre comércio e economia, informações geográficas.

438 AALTO & LAAKSO, 2009: 06. 228

Temos nomes de governantes de Garðaríki: Valdimarr/Valdamarr, Allogia e Jarisleifr, Vissavaldr, bem como informações de parentesco dos mesmos como nomes de esposas e filhos: Ingigerd, Ellisif, Valdemar, Vissivaldr, Holte e Boldr. Encontramos nomes de localidades bastante específicos à Austrvegr: Aðalsýsla, Eysýsla, Bálagarðssíða, o rio Vína, bem como informações sobre as rotas comerciais com Garðaríki e os Finnar, além dos produtos trocados em tais rotas e a maneira com que tal comércio se dava. Entremeados na narrativa, há ainda marcados estereótipos étnicos sobre os fino- úgricos, e uma descrição de costumes religiosos dos Bjarmar.

b) o ciclo dos noruegueses refugiados em Garðaríki. Óláfr Tryggvason, Óláfr Magnusson, Magnus o bom e Haraldr Harðráði têm a característica em comm de terem obtido exílio e refúgio em Garðaríki. Com exceção de Óláfr Magnusson, todos passaram a infância e/ou parte da juventude ali.

4.2.9 Garðaríki como local de refúgio

Na Ólafs saga Tryggvasonar439 é impossível desvincular seu protagonista da região de leste. O início de sua história é contado nos capítulos 05 a 07. Capturado por vikings estonianos aos três anos de idade, Óláfr passou seis anos como escravo na Eistland440. Seu tio Sigurdr Eiriksson, a serviço de Valdimarr (Wladímir) de Holmgard (Novgorod), vem à Eistland coletar impostos, descobre-o, compra-o e o leva consigo para Novgorod, ocultando seu parentesco com o menino441. Algum tempo depois no mercado em Novgorod Óláfr reconhece Klerkon, o viking estoniano que o comprara e matara seu pai adotivo. Mata-o com um machado e pede ajuda a Sigurðr, que o leva para abrigo com a rainha Allogia442. Sigurðr revela à rainha a genealogia e sangue real de Óláfr e a necessidade que o mesmo tem de proteção, visto a existência de inimigos na Escandinávia. A rainha pede ao rei que o acolha, e Óláfr passa nove anos com o “Rei Valdimarr”443. O autor volta à Óláfr apenas no capítulo 21. Estimado pela rainha e pelo rei,

439 Saga de Óláfr Tryggvason. 440 Ólafs saga Tryggvasonar, Capítulo 05. “OT”, nas citações subsequentes. 441 OT, 06. 442 OT, 07. 443 OT, 07.. 229 adquire fama e torna-se chefe e guerreiro. Certos homens invejosos fizeram a cabeça do rei contra Óláfr, e Valdimarr não o trata tão bem quanto antes. Óláfr decide partir para a Escandinávia, fazendo-o com a benção da rainha. No capítulo 31 Óláfr converte-se ao Cristianismo e é batizado em Syllingar – “Sicília”, após previsões de um vidente e sua cura milagrosa após uma batalha. O capítulo 90 nos provê de mais alguns nomes. Jarl Eirikr faz uma expedição em Austrvegr. Atinge os domínios do rei “Valdamarr” e toma Aldeigjuborg (Ladoga). Passaria cinco anos nesta expedição e, segundo a saga, quando deixou Garðaríki efetuou reides em Aðalsýsla e Eysýsla. Os nomes da saga – tanto pessoais como topônimos - são bem conhecidos em outras fontes. Sua elaboração na Heimskringla transparece a existência de contatos íntimos entre as aristocracias da Rus e da Escandinávia, incluindo Noruega. O autor, no entanto, possui conhecimento limitado dos eventos; Allogia, evidentemente recordação do nome Olga, aparentemente na saga é consorte do “Rei” Valdimarr – escrito posteriormente na mesma saga como “Valdamarr”. Valdimarr é Vladímir I, príncipe de Novgorod entre 970-978 e grão-príncipe de Kiev de 978 a 1015. Porém, filho de Olga. Seu próprio local de governo não é citado pelo autor. Há de se notar, entretanto, uma precisão nos nomes ligados à Austrvegr: Aðalsýsla e Eysýsla são nomes bastante específicos respectivamente da costa ocidental estoniana e da ilha de Saaremaa. A partir da Óláfs saga ins Helga444 a informação do autor torna-se mais verossímil e acurada. Nesta saga e nas seguintes – de Magnus, o bom, e de Haraldr Harðráði, o governante da Rus é Iaroslav – Jarisleifr, no antigo nórdico. Ele casa-se, no capítulo 95, com Ingigerd, filha do rei sueco Óláfr – evento que se deu, de fato, em 1019. A saga lista os filhos do casal: Valdemar, Vissivald, Holte e Bold, sendo que o capítulo 17 da Haralds saga Harðráða acrescenta à lista Ellisif, que, como adiciona o autor, era conhecida como Elizabeth. Iaroslav I, o sábio, teve com Ingigerd da Suécia os seguintes filhos, por ordem de nascimento: Vladimir, Iziaslav I, Anastasia, Sviatoslav II, Vsevolod I, Elizabeth, Anne, Viatcheslav e Igor445.

444 “Saga Óláfr, o santo”. 445 PVL, 299s. 230

Iaroslav foi filho de Vladimir. Por ocasião da morte de seu pai, em 1015, tornou- se co-regente em Novgorod, enquanto seu irmão Sviatopolk tomava o poder em Kiev, após diversas disputas nas quais os outros irmãos foram mortos – dentre os quais, Boris e Glieb, primeiros santos da Rússia446. Com a ajuda de varegues Iaroslav venceu Sviatopolk em 1019, tomando o poder tanto de Novgorod quanto de Kiev447. Iaroslav iniciou também a codificação legal na Rus, a chamada “Russkaia pravda”448. Em 1030 Iaroslav construiu na Estônia o forte de Iuriev na antiga vila de Tarbatu, que viria a ser conhecida posteriormente como Tartu, coletando a partir de lá tributos das tribos estonianas vizinhas449. Retornando à saga, no capítulo 191 o rei Óláfr vai para a Rus com seu filho Magnus após revoltas na Noruega contra ele. Ali é recebido por Jarisleif e sua esposa Ingegerd. O rei lhe oferece o reino da Bulgaria450, mas Óláfr decide retornar à Noruega451, após um sonho premonitório452. Magnus fica com Jarisleifr e Ingegerd, que providenciam cavalos e outros recursos necessários. De fato, sabe-se que Iaroslav proveu refúgio para Óláfr no ano de 1028453. A saga é encerrada após a morte de Óláfr. Einar Tambaskelfer e Kalf Arnalson mandam mensagens para Jarisleifr, pedindo que Magnus vá para a Noruega assumir o trono. Jarisleifr os convida a buscá-lo na própria Novgorod454. Após isto a Saga de Magnus, o bom, narra brevemente em seu primeiro capítulo o seu retorno para a Noruega, saindo de Novgorod via Ladoga; o exílio de Magnus na Rus fora contado antes, na saga de seu pai. O ciclo é encerrado com a Haralds saga Harðráða. Meio irmão de St. Óláfr, Haraldr escapou da batalha de Stiklestad, na qual aquele morrera. Tinha 15 anos, tendo encontrado refúgio na Rus, novamente sob a proteção de Jarisleifr455. Harald passa vários anos ali, viaja e faz expedições nas regiões circundantes, e vai para Constantinopla456.

446 MARTIN, Janet. Medieval Russia: 980-1584. Cambridge: at the University Press, 1996[1995]. Pp.22- 26. 447 Idem, 44. 448 Idem, 71. 449 Idem, 43s. 450 Óláfs saga ins Helga, 198. “OS” nas próximas citações. 451 OS, 202. 452 OS, 199. 453 MARTIN, 44. 454 OS, 265. 455 Haralds saga Harðráða, capítulo 01. Citada como “HH”. 456 HH, 02. 231

A saga nos dá o nome de mais de um imperador, iniciando por Michael “Catalactus” e a imperatriz, “Zoe”. O contexto é complexo, chamado por Vryonis de “interlúdio burocrático do século XI”457 e há uma sucessão de governantes. Miguel IV, o Paflagônio, foi casado, de fato, com Zoe Porfirogênita, e governou Bizâncio de 1034 a 1041458. O apelido dado pela saga, no entanto, provavelmente refere-se a Miguel V, “Kalaphates”, sobrinho de Miguel IV e filho adotivo de Zoe, que governou apenas quatro meses entre os anos de 1041 a 1042459. O governo deu-se após isto com a coregência de Zoe e seu novo marido, Constantino IX, “Monomachos” – também citado na saga, no capítulo 13. A saga nos diz que Harald participou três vezes do costume de “poluta-svarf”, que permitia que a guarda varegue tomasse parte do tesouro do imperador quando este morresse460 – o que implica numa troca de três imperadores, e recuaria a chegada de Harald a Bizâncio ao imperador Romano III, morto em 1034, já que Constantino IX morreria apenas em 1055461. Harald juntou-se à Guarda dos Varegues, da qual foi feito chefe462. Efetua expedições em Serkland, que a Saga equaliza com “África” – aqui, enfatizando Serkland enquanto terra Sarracena. Passou anos ali, e enviava a riqueza que adquiria para Jarisleifr463. Harald efetua muitos ataques a castelos na Sicília464, informação coerente com o período, no qual os governantes de Bizâncio tentavam retomar o controle da ilha, tomada pelos islâmicos465. O capítulo 09 cita dois islandeses que estavam com Haraldr na guarda varegue. Um deles, Haldor, foi ancestral de Snorri Sturluson. Haraldr retorna com eles e com os demais varegues para Constantinopla e depois ruma para Jerusalém466. Ouvindo que seu sobrinho Magnus tornou-se rei na Noruega, deseja retornar. Após intrigas em Constantinopla, é preso pelo Imperador.467 Tem uma visão de St.

457 VRYONIS, Spero. Bizâncio e Europa. Lisboa: Editorial Verbo, s/d. [London, 1967]. 458 VRYONIS, 08. 459 Idem. 460 HH, 13. 461 VRYONIS, 08. 462 HH, 03. 463 HH, 05. 464 HH, 06. 465 ANGOLD, Michael. Bizâncio: a ponte da Antiguidade para a Idade Média. Rio de Janeiro: Imago, 2002 [2001]. p. 125. 466 HH, Caps. 11 & 12 467 HH, 13. 232

Óláfr, e foge com a ajuda de milagres468. Por fim, volta para Novgorod com Jarisleifr469, casando-se com sua filha Ellisif (Elisabeth)470. Em todas estas passagens relacionadas à época de Iaroslav há lugares comuns como visões, sonhos e artifícios. Os nomes no geral estão de acordo com outras fontes conhecidos, havendo poucas discrepâncias – no narrado até agora, a única dificuldade é Jarisleifr em Novgorod. Na altura do retorno de Haraldr para a Rus, Iaroslav já governava em Kiev. Em todas estas sagas há a repetição do tema de um norueguês de sangue real que foge, ou é levado por seu pai ou protetor para Garðaríki e lá encontra abrigo, proteção e mesmo oportunidades. A atitude do autor em relação à Garðaríki é benevolente no geral. Arriscamos a sugerir que Garðaríki assumirá um papel de extensão da Escandinávia propriamente dita. A extensão em que há identificação ou reconhecimento de diferenças é dúbia. Na Óláfs saga Tryggvasonar, o distanciamento parece maior: Sigurðr, ao encontrar Óláfr no mercado de escravos, percebe “que ele devia ser estrangeiro”471. No capítulo 21, tendo ele crescido e adquirido respeito e comando, temos o seguinte comentário:

Mas aconteceu, como geralmente pode acontecer, que quando estrangeiros chegam ao poder ou em grande fama que ultrapassam os nativos, que muitos eram invejosos de quão querido ele era para o rei, e não menos para a rainha472.

O próprio Óláfr, no entanto, em suas viagens após sair de Garðaríki, usa o nome “Óli”, “Ali” ou “Ole”, e afirma ser russo (“gerzkr”473). Encontramos esse artifício – em parte justificado devido ao desejo do mesmo de se ocultar dos seus inimigos e comum em várias sagas – nos capítulos 31, 32, 46 e 47. Nas sagas seguintes, no entanto, não há referências similares. Antes, o que encontramos – também presente na Óláfs saga Tryggvasonar, são estereótipos em relação aos povos fino-úgricos.

468 HH, Caps. 14 & 15. 469 HH, 16 470 HH, 17. 471 (...) at sá myndi þar útlendr”. Ólafs saga Tryggvasonar, Capítulo 07. 472 En varð þat, sem optliga kann verða, þar er útlendir menn hefjask til ríkis eða til svá mikillar frægðar, at þat verði umfram innlenzka menn, at margir ọfunduðu þat, hversu kærr hann var konungi ok eigi síðr drótningu (...). Óláfs saga Tryggvasonar In: JÓNSSON, 1911: 21K., 119. 473 “(... ) Óla ok kvazk vera gerzkr.”. Óláfs saga Tryggvasonar In: JÓNSSON, 1911: 31 K., 125. 233

Na batalha final de Ólafr Trygvassonar há um arqueiro cujo nome é “Finnr”, ou que é saami (“finnar”): “Então o jarl falou para o homem que alguns chamavam Finnr, apesar que alguns diziam que ele era Finskr – ele era o melhor arqueiro.”474 A vinculação das duas ideias (bom arqueiro e finskr) poderia ser casual, não fosse sua repetição na Óláfs saga ins Helga, no capítulo 82:

Havia um homem das terras altas chamado Finn, o pequeno, e alguns diziam que ele era da raça (ætt) dos finnar; ele era um homem muito pequeno, e de pés tão rápidos que nenhum cavalo podia ultrapassá-lo; ele era um corredor muito bem exercitado especialmente com sapatos de neve, e atirador com o arco475.

Outras citações associam os finnar com prática de mágica e artes sorrateiras, como é comum em outras sagas e outras séries de fontes escandinavas. No capítulo 07, os finnar conjuram espíritos contra os noruegueses; no capítulo 83, o há pouco mencionado Finn, o pequeno, insere ervas na bebida dos homens do rei, aumentando exponencialmente seu efeito. Por fim, na própria batalha na qual S. Óláfr é morto476, o skaldr Sigvatr cantaria que o rei provara da “habilidade mágica dos finnar”477. 4.2.10 Conclusões parciais

Nas obras islandesas do século XIII de cunho histórico é possível se delinear duas fontes principais de conhecimento referente ao leste: a tradição escandinava de conhecimento do Báltico e adjacências e a tradição medieval ocidental formada a partir de erudição grego-romana e bíblica. As partes das obras citadas dotadas de cunho de instrução, apresentação ou explicações genéricas possuem uma elaboração mais marcada pela tradição bíblica e clássica. Nesse caso situam-se o Prólogo da Edda e Ynglingasaga, e a referência a Austrvegr e Garðaríki é praticamente nula. Em relação às narrativas e sagas dos islandeses a situação diverge, havendo o predomínio da tradição de natureza mais notadamente escandinava. Nesta situação enquadram-se as sagas que compõem a Heimskringla e trechos da Edda em prosa.

474 “Þá mælti jarl við þann mann, er suimr nefna Finn, em sumir segja, at hann væri finzkr – sá var inn mesti bogmaðr”. Óláfs saga Tryggvasonar In: JÓNSSON, 1911: 108 K., 179. 475 Maðr er nefndr Fiðr lítli, uplenzkr maðr, em sumir sehja, at hann væri finzkr at ætt; hann var allra manna minztr ok allra manna fóthvatastr, svá at engi hestr tók hann á rás; hann kunni manna bezt við skið ok boga (...).Óláfs saga ins Helga. In: JÓNSSON, 1911: 82 K., 244. 476 OH, 228. 477 “fjọlkunnigra Finna”. 234

O leste é um instrumento poderoso na tentativa de conexão das duas tradições ao fornecer uma localização geográfica para o centro do mundo e as regiões de origens. Nesta reelaboração, feita de forma evemerista, a tradição bíblica ganha mais força do que as demais. Passaremos a seguir a observar a situação apresentada na obra de Saxo Gramamticus, na Dinamarca. 235

4.3 Saxo Grammaticus e a Gesta Danorum

Ao nosso conhecimento, Saxo Grammaticus é autor de apenas uma obra, a Gesta Danorum. Esta verdadeira História foi composta no período da forte dinastia dos Valdemares, sob encomenda e patronato do arcebispo Absalão, sucessor de Eskill em Lund e, possivelmente depois, sob seu sucessor e sobrinho, Anders Sunesson. Diferentemente de Snorri, sabe-se pouco acerca de Saxo, e o que se sabe é em grande parte conjectural. Praticamente toda a informação relevante acerca de Saxo, seja informação de fato ou trate-se de conjunturas, foi enumerada por Paul Johansen de forma hipercrítica, e resumida de formas mais convenientes e moderadas nos prefácios às traduções de inglesa de Elton e Zeeberg, sendo que pouco podemos acrescentar de novo nesse sentido e incorremos no risco de repetição, tanto dos citados autores quanto de nós mesmos. No prefácio da Gesta Saxo afirma que seu pai e avô teriam servido a Valdemar I. É improvável, portanto, que ele mesmo tenha nascido antes de 1150. O argumento sobre a datação de sua morte nas proximidades de 1220478é frágil. Tem por base principal de que foi por razão de sua morte que Saxo não teria narrado os eventos da vida de Valdemar II, principalmente sua conquista da Estônia. As proximidades de 1185 são mais aceites de forma geral como o início da escrita da obra, e os últimos eventos nela narrados ocorreram em 1187479. Acerca da origem de Saxo, há a possibilidade de que seja proveniente da Zelândia. O início do argumento é relativamente fraco, tendo recebido mais peso pela tradição de seus editores dos tempos de Pós-Renascimento e Reforma Protestante: o discurso de Saxo, e, supostamente, seu “tom”, não poupariam elogios aos Zeelandeses, sendo a região por vezes referenciada enquanto o “centro da Dinamarca”, mas a citação a esta referência é a única evidência contemporânea, do próprio texto de Saxo.

A tradição renascentista dará continuidade a esta ideia. A crônica da Jutlândia, escrita em 1431, atribui sua origem à Zelândia, assim como seu título Grammaticus480. A primeira edição da Gesta de 1514, pelo bispo Urnes, o cita como zeelandês, de forma que pode implicar um conhecimento geral e banal de tal proveniência. O nome “Gesta

478 ELLIS-DAVIDSON, 2006, p. 12 479 Idem, p.10. 480 ELTON: Preface; ELLIS-DAVIDSON, 2006:10s. 236

Danorum” é empregado pela primeira vez na Crônica da Zelândia, que também refere- se a Saxo como Cognomine Longus (apelidado o “comprido”, o “alto”).

Da relação entre Sven Aggesen e Saxo Grammaticus sabe-se igualmente pouco.

O avô de Saxo Grammaticus teria servido a Valdemar I (provavelmente, portanto, após 1157), mas o pai de Sven foi morto em guerra em 1132. Dessa forma, Saxo provavelmente era bem mais jovem que Sven.

Ainda assim é citado pelo mesmo como seu associado (contubernalis). Contubernalis é traduzido ao pé-da-letra como “companheiro de tenda”, e tal citação da parte de Sven levantou a hipótese de que Saxo fora um guerreiro ou um soldado.

Porém contubernalis pode ser traduzido de inúmeras formas, como, por exemplo, “colega” ou “companheiro”481, tornando bem mais provável, que Sven e Saxo tenham sido eclesiásticos.

Karsten Friis-Jensen482 identifica Saxo como um cânon de Lund que testemunhou alguns títulos/decretos em 1180/3 e 1197/1201. Esta hipótese é mais aceita do que a que considera Saxo como um deão de Roskilde. Segundo idéia difundida pelo bispo Lave Urne, da própria Roskilde, Saxo seria certo provoste que teria viajado a Paris em 1165. Tal data encontraria um Saxo Grammaticus demasiadamente idoso483 e trata-se, portanto, de má compreensão do bispo Lave Urne ou mesmo má fé, no sentido de trazer atenção ao seu próprio bispado, mas não é nossa tarefa julgar o mesmo.

No Praefatio da Gesta Saxo descreve a si mesmo como alguém a serviço de Absalão, como o “último de seus seguidores”484. É de fato possível encontrar o nome “Saxo” em uma lista de clérigos na catedral de Lund. No caso, o dito cujo seria um acólito, o grau mais baixo entre os cânons. Não podemos ter certeza da identificação, no entanto. De fato, “comitum suorum extremo” é uma mera e comum fórmula de submissão, não implicando, de fato, em uma pista segura485.

Há ainda no monastério de Søro uma nota deixada pela vontade de Absalão. Segundo ela, ele enviara a quantia de dois marcos e meio de prata, emprestada ao seu clericus Saxo. Saxo também deveria devolver ao monastério de Søro os dois livros que

481 CHRISTIANSEN, 1992: 2s. 482 FRIIS-JENSEN, K. Was Saxo a Canon of Lund? In: Cahiers de l´Institut du Moyen-âge Grec et Latin, lix, 1989, pp.331-357. 483 ELTON, Preface. 484 “Comitum suorum extremo”. In: GESTA DANORUM. Praefatio. 485 FRIIS-JENSEN, 1989: 332. 237 o arcebispo emprestara a ele. Possivelmente eram dois códices de Valério Maximo e Justino, que foram presenteados à biblioteca em Søro por Absalão, e que foram autores cuja influência é claramente perceptível na Gesta Danorum486.

Também não se sabe com exatidão aonde Saxo teria estudado. A opção pelo modelo de obra e o costume danês eclesiástico à época levantam a possibilidade de um tempo no exterior, quiçá Paris ou alguma outra localidade franca. O próprio Saxo afirma no Praefatio que o arcebispo em sua época, Anders, teria estudado em Paris, Bologna e Oxford.

Em suma, em meio a uma profusão de referências a eclesiásticos chamados Saxo em décadas distintas, é possível criar a imagem de um Saxo nascido ou proveniente da Zeelândia, descendente de uma família aristocrática ou de guerreiros. Possivelmente estudara no exterior, o que reforçaria uma origem de uma família com alguns recursos, ou ao menos, oriunda do extrato dos pequenos proprietários livres.

Seria, no entanto, um clérigo, possivelmente cânon em Lund, e, a despeito de sua autoreferida posição, falsa modéstia ou mero topos, de consistir em um dos “menores”, tratava-se um indivíduo de reconhecida capacidade literária e domínio da produção escrita clássica, a ponto de ter para si o encargo de tarefa importante das mãos de um dos maiores líderes de seu século.

Quanto à sua obra, o nome dado pelo próprio autor é desconhecido. “Gesta Danorum” é denominação posterior. Sua primeira impressão deu-se em 1514 por Jodocus Badius Ascensius em Paris, da edição de Christiern Pedersen, trazendo o título “Danorum Regum heroumque Historiae”. Esta edição tornou-se a base para todas as versões e edições posteriores. Existem alguns fragmentos mais antigos, dos quais o mais extenso é o fragmento de Angers (Ny kgl. Saml. 4to, 869 g.), que contém anotações atribuídas ao próprio Saxo e contém parte do livro I. Outros fragmentos datam de 1275 e são menores. Tratam-se dos fragmentos de Lassen, contendo o livro VI, de Kall-Rasmussen, contendo o livro VII - ambos são agrupados como “BD” - e de Plesner (“E”; contém o livro XIV). Com exceção do manuscrito de Angers, todos os fragmentos encontram-se depositados na Biblioteca Real da Dinamarca, em Copenhague, sob registro Ny kgl. Saml. Fol. 570.

486 ELTON: Preface; ELLIS-DAVIDSON, 2006:10s. 238

Legenda: ______Relação modelo-cópia (texto completo, ou excertos)

------Transformação deliberada (epítome,revisão, tradução ) …………………………………..… Contaminação ocasional, variações de leitura relatadas

A Fragmento de Angers - Ny kgl. Saml. 4to, 869 g. a Edição de Paris, 1514 BD Frags. de Lassen (Ny kgl. Saml. Fol. 570) + Kall-Rasmussen (Ny kgl. Saml. Fol. 570.) b Codex de Caspar Barth (perdido) C Fragmento de Laverentzen c Colação de C E Fragmento de Plesner - Ny kgl. Saml. Fol. 570. F Chronicon Sialandiae f Codex usado por F (perdido) g Codex de Birger Gunnersen (perdido) j Compendium Saxonis - Add. 49 2o K Albert Kranz k Codex usado por K (perdido) O Peder Olsen o Codex usado por Peder Olsen (perdido) p Cópia de g usada para impressão de a (perdida) s Edição e comentário de Stephanius, de 1645 t Tradução de Christiern Pedersen (perdida) v Tradução de A.S. Vedel, 1575 x Arquétipo medieval (perdido)

Figura 20: Stemma – Gesta Danorum. In: BOSERUP, Ivan. The Angers Fragment and the Archetype of Gesta Danorum. In: FRIIS-JENSEN, 1981. P. 10

239

O texto de 1514, chamado de “Edição de Paris” (a) é, no entanto, o único testemunho completo que temos do trabalho de Saxo. Muito de discutiu se o suposto arquétipo (X) foi escrito totalmente pelo próprio Saxo, ou se houve interpolação de algum editor do século XIII487. Boserup é da posição de que o testemunho do manuscrito de Angers dá suficientes indícios de que o próprio Saxo foi responsável pela escrita de sua obra como um todo, na forma em que foi reproduzida posteriormente488. Esta posição tem, até o presente momento, encontrado boa acolhida no meio acadêmico. A figura 20 contém Stemma que representa bem o consenso acadêmico sobre a questão. O nome “Gesta Danorum” data de 1342. Foi encontrado na Chronica Jutensis, também conhecida como Compendium Saxonis, que consistiu em uma versão resumida da Gesta Danorum, constando aproximadamente de um quarto de seu tamanho. As versões e edições posteriores da Gesta empregavam nomes diversos; o título passou a ser empregado mais genericamente a partir do século XIX. Quanto à edição de Pedersen, foi feita com uma cópia antiga do texto encontrada com o arcebispo de Lund Birger Gunnerssen. A identificação imediata do gênero literário precisa ser feita tendo em vista outras características que não apenas o título. O nome, concedido no século XIV e difundido contemporaneamente, associa seu conteúdo com as Chansons-de-Geste, datadas do século XII e que fazem parte de um escopo literário mais amplo, que inclui temáticas relativas à cavalaria e à sociedade cortesã, mas que possuem características formais distintas e estão particularmente circunscritas à região da Francia. Certamente tal difusão de idéias fez-se também na Dinamarca, em particular devido ao número de clérigos que estudava em Francia e no estrangeiro, oferecendo um modelo literário adequado aos propósitos de Saxo. Como já afirmamos, influência similar ocorreu na própria Islândia, ainda que posteriormente, com as Riddarasögur. Porém não é adequado classificar a Gesta Danorum como uma Chanson-de- Geste, apesar do nome atribuído a ela – como já vimos, por sua posteridade. Ainda assim, não descartamos a possibilidade de que Saxo tenha se inspirado, ao menos parcialmente, em obras do gênero, ou influenciadas por ele. Alguns dos elementos caraterísticos dessa modalidade são encontrados na

487 BOSERUP, Ivan. The Angers Fragment and the Archetype of Gesta Danorum. In: FRIIS-JENSEN, 1981. P. 09. 488 BOSERUP, 25. 240

Gesta Danorum. Primeiramente, a temática épica e os feitos de um povo e de heróis. O povo é o danês. Os heróis são vários, normalmente reis e heróis em sentido bélico, mas que via de regra espelham o principal herói da Gesta, que é o arcebispo Absalão. A exaltação de ambos - tanto o povo danês quanto o arcebispo-herói - encontra-se explícita no Praefatio. Em relação à linguagem, não se pode afirmar da mesma forma. A Gesta Danorum é escrita em latim, não em vernáculo, contrariamente às Chansons-de-Geste. O ato de cantar os feitos dos heróis por meio de formas poéticas – comum às Chansons-de-Geste - é comum em toda a Gesta Danorum, mas não se presta para classificá-la no gênero, visto espelhar tradições escandinavas antigas – como a escáldica. Saxo reivindica para si o papel de tradutor, de alguém transmite que os cantares e tradições de seu povo. Acerca da sacralização dos guerreiros e da visão da aristocracia por um viés clerical, a Gesta Danorum apresenta material exemplar, tanto por conter narrativas de Cruzadas propriamente ditas quanto por derivá-las do passado mítico. A temática das Cruzadas contra os eslavos ocidentais permeia toda a Gesta Danorum: de forma explícita entre os livros X-XIV, e de forma esquemática, ideológica e velada nos livros de I a IX489. A Gesta Danorum apresenta um constante agrupamento de feitos históricos e narração cronística com tradições míticas na tentativa de alinhá-las de forma razoavelmente lógica em uma linha genealógica pré-estabelecida. É possível que tanto Saxo quanto Sven tenham se baseado em alguma genealogia na qual foram acrescentando material externo. Nesse agrupamento e ordenação de fontes, o material oriundo das memórias dos arcebispos seria colocado de maneira semelhante ao originário de tradições míticas. Quando o material oriundo de outras tradições não se ajusta harmonicamente aos relatos de testemunhas oculares ou aos quais Saxo atribua maior valor, como os de Absalão, os por ele próprio vividos, ou ao próprio material considerado como pertencente ao campo da “história” avalizada, como por exemplo Beda, Saxo racionaliza os mitos antigos, procurando torná-los plausíveis aos seus olhos e aos de seu leitor. A exemplo de Snorri e a tradição islandesa, Saxo recorre ao evemerismo. Saxo, a despeito de ser um escritor comissionado, não apenas transcreve o que

489 MUCENIECKS, 2008: 51; 57-61; 102-104. 241 lhe é dito, nem reproduz simplesmente certa posição política. Com frequência profere juízos claros de valor sobre uma história que acabou de narrar. Entretanto, ao se observar a forma como ele a narra, ou os episódios posteriores a ela, o leitor percebe claramente que sua idéia é exatamente oposta. Na própria narrativa da trajetória de seu patrono Absalão alguns entrevêem a possibilidade de que, para Saxo, o arcebispo se ocupasse demasiadamente com os assuntos mundanos e laicos490. A escolha dos personagens-fonte para as narrativas também revela parâmetros próprios, individuais. A grande maioria dos heróis, vilões e demais personagens da Gesta possuem paralelos em sagas, poemas e narrativas. Raramente, porém, Saxo conta uma tradição de forma similar às outras fontes escandinavas. Em algumas circunstâncias nas quais se possui narrativas mais completas – como a Edda de Snorri - Saxo por vezes inverte o papel entre protagonista e antagonista. Temos um exemplo claro no mito de Balderus/Balðr, do qual temos outra versão em Snorri. Saxo inverte o papel de Balðr, transformando-o em vilão e transferindo suas características boas para o adversário Hotherus/Höðr – que, por sua vez, é apenas um joguete nas mãos de Loki na narrativa da Edda de Snorri. A própria planificação entre “mau” e “bom”, evidente em Saxo, não possui tal dimensão de certo e errado nas narrativas da Edda. Alguns dos episódios aos quais Saxo apresenta maior cuidado de elaboração por muitas vezes não centralizam sua atenção nos reis, mas, em algum herói paralelo à narrativa do rei; este, dessa forma, ainda que o suposto protagonista, oferece interesse secundário para o leitor frente ao herói. O arcebispo Absalão faleceu em 1202. Saxo provavelmente concluiu a escrita da Gesta entre 1215 a 1219491; ano no qual foi construído por Valdemar o forte de Tallinn, na Estônia492. O Praefatio cita a campanha de Valdemar no Elba, mas cala sobre a na Estônia. Eric Christiansen assume uma data limite de 1215, e argumenta que após a expedição de 1206 de Valdemar à Estônia “Saxo, que ainda escrevia sua Gesta nesta

490 SAWYER & SAWYER, 2003: 225; CHRISTIANSEN, 1997: 60s. 491 CHRISTIANSEN, 1997: 110. 492 URBAN, William. The Baltic Crusade. Chicago: Lithuanian Research and Studies Centre, 1994. Pp. 124s. 242

época, foi avivando sua narrativa com fábulas de como os ancestrais do rei tinham povoado a Rússia e conquistado o Daugava, os Estonianos e os fineses”493. Após o falecimento do arcebispo o curso do trabalho parece ter mudado. É uma ideia bem aceita de que Saxo escreveu primeiramente os últimos livros (X-XVI) da Gesta, tendo iniciado posteriormente a escrita dos primeiros (I-IX), que veiculam as origens dos daneses e os tempos de paganismo494. Há considerável contraste entre as duas partes da obra, e o procedimento de praxe têm sido dividi-las como parte mítica (I- IX) e “histórica” (X-XVI), a última baseada nas memórias de Absalão (ver Tabela 06).

Arcebispo Rei Livros escritos Aspecto geral Absalão Valdemar I X-XVI Crônica da Dinamarca; Feitos de Absalão; & Knut IV as cruzadas na Slavia Anders Sunesson Valdemar II I-IX “Pré-História” da Dinamarca; evemerismo dos mitos do norte Anders Sunesson Valdemar II Prefácio Descrição geral do trabalho e do mundo; agradecimentos e homenagens Tabela 06: A Gesta Danorum: a ordem dos livros em contexto (do autor)

A despeito dessa divisão é possível encontrar unidade em ideologias e propósitos em ambas as partes, por mais diferentes que pareçam entre si. Nesse sentido diversos autores identificaram esquemas e ordenações específicas na Gesta: Inge Skovgaard-Pedersen (1975)495 defende uma divisão quadripartite na obra: os livros I-IV, contém o mundo antes do nascimento de Cristo; os V-VIII, o período anterior à conversão da Dinamarca; os livros IX-XII narram o crescimento na igreja danesa e XIII a XVI, o estabelecimento dos arcebispados; Kurt Johannesson (1978-1981) identificou uma elaboração crescente na gesta Danorum que apresenta as Quatro Virtudes Cardinais496 e Sigurd Kværndrup defendeu (2004) a existência de doze princípios e uma emulação de “Feitos e ditos memoráveis”, de Valério Máximo497.

493 CHRISTIANSEN, 1997: 110s 494 ELLIS-DAVIDSON, 2006: 11. 495 SKOVGAARD-PEDERSEN, I. Gesta Danorums genremæssige placering. In: BOSERUP, Ivan (ed). Saxostudier. Copenhagen: Museum Tusculanum, 1975. Pp. 20-29. 496 JOHANNESSON, 1981: 121. 497 KVÆRNDRUP, 2004: 28. 243

4.3.1 O Evemerismo de Saxo

O evemerismo na Gesta Danorum de longe recebe a atenção dos estudiosos de sua contraparte na Edda e na Ynglingasaga. Sob considerações meramente estilísticas, seu texto apresenta uma elaboração muito distinta da dos autores islandeses e pode, por vezes, ser de difícil compreensão e interpretação. Em contraposição ao predomínio da escola da Gelehrte Urgeschichte na Heimskringla e Edda em Prosa, a forma interpretativa mais difundida sobre o tema em Saxo foi feita por Georges Dumézil em Du mythe au roman, de 1970, que analisa-o sob a ótica dos estudos mitológicos, mais especificamente o material contido no livro I, referente a Hadingus. Existem dois episódios específicos no livro I nos quais Saxo Grammaticus apresenta explicações evemeristas. Dumézil chama-os de “Digressões mitológicas”. O primeiro dos episódios disserta sobre três raças de feiticeiros (mathematici): gigantes, magos e o cruzamento de ambos. Os gigantes possuíam grande tamanho, mas os poderes dos mágicos eram superiores. O resultado do cruzamento entre as duas raças produziu descendentes que não possuíam nem o tamanho dos gigantes, nem as artes dos mágicos. Todos vieram a ser chamados de deuses. O episódio está inserido após a abertura da narrativa sobre Hadingus e a descrição de como o mesmo foi adotado por gigantes após a morte de seu pai [1.5.1]. Dumézil procura explicar a passagem estruturalmente, com base em comparações entre gigantes e homens e os ases e vanes da mitologia escandinava498. A interpretação nos parece razoável, a despeito das ressalvas de Boulhosa499, e pode ser pensada paralelamente com os mitos de criação escandinavos aos quais temos acesso por meio de Snorri, nos quais gigantes e deuses estão presentes. O que nos parece, entretanto, como Dumézil também nota500, é que o episódio do cruzamento das raças possa conter alguma reminiscência do capítulo 06 do livro do Gênesis, que narra o cruzamento das filhas dos homens com seres sobrenaturais; algumas traduções inclusive enfatizam a existência de gigantes. Não nos deteremos nesse episódio, que aos nossos propósitos serve apenas de forma acessória, no sentido de explicar parcialemente a metodologia hermenêutica de

498 DUMÉZIL. Do mito ao romance: a Saga de Hadingus. São Paulo: Martins fontes, 1992. pp.101s. 499 BOULHOSA, 2006. 500 DUMÉZIL, 1992: 103. 244

Saxo. Seu evemerismo assimila tradições distintas e procura coaduná-las em uma narrativa explicativa, também racionalizada. No caso, os objetivos do adendo mítico se prestam para explicar o emprego de gigantes na narrativa posterior, bem como os poderes apresentados pelos mesmos. Também é útil na narrativa para demonstrar como seres habilidosos receberam adoração da parte dos homens como deuses. A segunda digressão mitológica, no entanto, merece mais de nossa atenção. Leia-mo-la com cuidado:

1. Nesta época, um tal de Othinus recebia através de toda a Europa a qualificação mentirosa de deus; mas era em Uppsala que ele residia a maior parte do tempo e honrava muito especialmente esta cidade como sua residência ordinária, seja por causa da apatia de seus habitantes, seja por causa da aprazível localização. Desejosos de prestar uma homenagem à sua majestade divina, os reis do Norte mandaram reproduzir a imagem dele numa estátua de ouro que enviaram a Bizâncio como expressão de seu respeito nas mais caracterizadas formas de religião. Além disso, enfiaram densos e pesados braceletes nos braços da estátua. Exultante com tão considerável homenagem, ele foi extremamente sensível à afeição dos expedidores. Mas sua mulher Frigga, para poder mostrar-se em seus mais belos adornos, convocou ferreiros e fez retirar todo o ouro da estátua. Othinus mandou enforcá- los, colocou a estátua sobre um pedestal e, pelo arttifício de um espantoso sortilégio, deu-lhe o poder de falar quando alguém tocasse nela. Mas Frigga não se deu por vencida: colocando a elegância de seus enfeites acima da dignidade de seu marido, ela prostituiu-se com um de seus servidores. Graças a ele, Frigga conseguiu derrubar a estátua e aproveitou para o seu luxo pessoal o ouro que tinha sido supersticiosamente dedicado a um culto público. Ela não teve o menor escrúpulo em abandonar-se ao seu impudor para melhor satisfazer sua avidez, essa mulher indigna de ser esposa de um deus. O que poderei acrescentar aqui, senão que um tal deus era, no fundo, bem digno de tal esposa? Tão grande era nesse tempo o erro do qual os mortais eram meros joguetes! Assim, Othinus, sob o impacto da injúria que a esposa lhe infligira, não sentiu menos o dano sobre sua imagem do que sobre o seu leito. Profundamente ferido por essas duas irritantes vergonhas e obedecendo a um nobre sentimento de honra, decidiu exilar-se, pensando que assim apagaria a mácula da afronta sofrida. 2. Com a partida de Othinus, um certo Mithotyn, célebre por seus sortilégios, que faziam crer que sua força lhe era insuflada por um dom celeste, aproveitou a ocasião para outorgar-se também uma pretensa divindade e, envolvendo os espíritos bárbaros nas trevas de um novo erro, induziu-os, pela fama de seus sortilégios, a celebrarem cerimônias em sua homenagem. Dizia ele que não se podia apaziguar a cólera dos deuses e redimir as faltas cometidas contra a majestade deles através de sacrifícios globais e confusos; por conseguinte, proibiu que se lhes dirigissem pedidos coletivamente e estabeleceu, para cada uma das divindades, oferendas distintas. 245

Com o regresso de Othinus, Mithotyn renunciou ao socorro de seus sortilégios e foi esconder-se em Fiônia501, mas os habitantes lançaram-se sobre ele e mataram-no. Mesmo depois de morto, suas vergonhosas práticas continuaram se manifestando, pois todos aqueles que se aproximavam de seu túmulo, ele os matava de morte súbita, e causou tantas calamidades após seu desaparecimento que parecia que a morte de Mithotyn tinha de deixar lembranças quase mais pavorosas do que a vida dele, como se quisesse encontrar culpados para fazê-los expiar seu assassinato. Em meio a esses infortúnios, os habitantes retiraram o cadáver dele da tumba, decapitaram-no e furaram-lhe o peito com uma estaca: foi a salvação deles. 3. Depois disto, Othinus, a quem a morte de sua mulher restituíra sua antiga glória, redimindo, de certa maneira, a mácula causada em sua divindade, retornou do exílio, e todos aqueles que, em sua ausência, tinham ostentado títulos e recebido honras de deuses, foram obrigados a renunciar a estes, dizendo que nada disso lhes pertencia; e, pelo fulgor reparado de sua majestade, dispersou como trevas os grupos de mágicos que se haviam formado e forçou-os por uma ordem não só a deporem suas qualificações divinas, mas ainda a abandonarem a pátria, avaliando corretamente que era preciso expulsar da terra aqueles que tinham tão escandalosamente usurpado o céu502. (SAXO GRAMMATICUS. Gesta Danorum, Livro I. Tradução de Álvaro Cabral, In: DUMÉZIL, 1992. Pp.117s).

501 A ilha dinamarquesa de Fyen. Para Henrik Schück, seria no país dos Finni. 502 Dan 1.7.1 (p. 25,1 ) [1] Ea tempestate cum Othinus quidam Europa tota falso divinitatis titulo censeretur, apud Upsalam tamen crebriorem deversandi usum habebat eamque sive ob incolarum inertiam sive locorum amoenitatem singulari quadam habitationis consuetudine dignabatur. [2] Cuius numen Septentrionis reges propensiore cultu prosequi cupientes effigiem ipsius aureo complexi simulacro statuam suae dignationis indicem maxima cum religionis simulatione Byzantium transmiserunt, cuius etiam brachiorum lineamenta consertissimo armillarum pondere perstringebant. [3] Ille tanta sui celebritate gavisus mittentium caritatem cupide exosculatus est. [4] Cuius coniunx Frigga, quo cultior progredi posset, accitis fabris aurum statuae detrahendum curavit. [5] Quibus Othinus suspendio consumptis statuam in crepidine collocavit, quam etiam mira artis industria ad humanos tactus vocalem reddidit. [6] At nihilominus Frigga, cultus sui nitorem divinis mariti honoribus anteponens, uni familiarium se stupro subiecit; cuius ingenio simulacrum demolita aurum publicae superstitioni consecratum ad privati luxus instrumentum convertit. [7] Nec pensi duxit impudicitiam sectari, quo promptius avaritia frueretur, indigna femina, quae numinis coniugio potiretur. [8] Hoc loci quid aliud adiecerim quam tale numen hac coniuge dignum exstitisse? [9] Tanto quondam errore mortalium ludificabantur ingenia. [10] Igitur Othinus, gemina uxoris iniuria lacessitus, haud levius imaginis suae quam tori laesione dolebat. [11] Duplici itaque ruboris irritamento perstrictus plenum ingenui pudoris exsilium carpsit eoque se contracti dedecoris sordes aboliturum putavit. Dan 1.7.2 (p. 25,23 ) [1] Cuius secessu Mithothyn quidam praestigiis celeber, perinde ac caelesti beneficio vegetatus, occasionem et ipse fingendae divinitatis arripuit barbarasque mentes novis erroris tenebris circumfusas praestigiarum fama ad caerimonias suo nomini persolvendas adduxit. [2] Hic deorum iram aut numinum violationem confusis permixtisque sacrificiis expiari negabat ideoque iis vota communiter nuncupari prohibebat, discreta superum cuique libamenta constituens. [3] Qui cum Othino redeunte, relicta praestigiarum ope, latendi gratia Pheoniam accessisset, concursu incolarum occiditur. [4] Cuius exstincti quoque flagitia patuere, siquidem busto suo propinquantes repentino mortis genere consumebat tantasque post fata pestes edidit, ut paene taetriora mortis quam vitae monumenta dedisse videretur, perinde ac necis suae poenas a noxiis exacturus. [5] Quo malo offusi incolae egestum tumulo corpus capite spoliant, acuto pectus stipite transfigentes; id genti remedio fuit. Dan 1.7.3 (p. 25,36 ) [1] Post haec Othinus, coniugis fato pristinae claritatis opinione recuperata ac veluti expiata divinitatis infamia, ab exsilio regressus cunctos, qui per absentiam suam caelestium honorum titulos gesserant, tamquam alienos deponere coegit subortosque magorum coetus veluti tenebras quasdam superveniente numinis sui fulgore discussit. [2] Nec solum eos deponendae divinitatis, verum etiam deserendae patriae imperio constrinxit, merito terris extrudendos ratus, qui se caelis tam nequiter ingerebant. 246

Detter e Dumézil explicam o episódio em termos mitológicos, demonstrando os componentes ali assimilados: a Guerra dos Æsir e Vanir, que contém o episódio da cabeça de Mímir, o colar de Brísingamen, o mito de Njọrðr e Skáði503. De fato, é perfeitamente possível encontrá-los na digressão; Hadingus, elaborado conforme o deus Njọrðr é o personagem principal do livro; na mitologia de Snorri, Njọrðr adentra a família dos Æsir através de uma guerra que se dá entre as duas famílias de deuses. O ponto que nos interessa, no entanto, é o que a passagem nos demonstra sobre a elaboração de leste na Gesta Danorum. Para isso, precisamos recorrer à comparação com as fontes islandesas. Em ambos possuímos uma temática similar e uma hermenêutica evemerista no lidar com os mitos e na criação de histórias de origem. A Heimskringla e o Prólogo da Edda Menor vinculam as origens de seus povos ao Oriente, mais especificamente à Ásia Menor, à Tróia. Óðinn está presente nas narrativas, e residirá posteriormente em Uppsala. O que o relato de Saxo nos traz nesse sentido, per se? Os personagens Othinus (evidentemente uma transcrição ou adaptação do nome Óðinn), Mythothyn – “falso/mítico” Óðinn e Frigga. Othinus é reverenciado em Uppsala e governa em Bizâncio. O paralelo geográfico e temático com os Prólogos islandeses é óbvio. Porém, ele se encerra nesses níveis. Não há uma narrativa da guerra de Tróia, sequer uma Tróia – Saxo fala em Bizâncio; não há uma narrativa de migração. Em seu lugar, temos uma intriga palaciana entre um ser – ambiguamente tratado na primeira sentença como falso deus – “(...) falso divinitatis titulo censeretur (...)”, mas ao mesmo tempo um falso deus mais digno, ou merecedor de honrarias, do que o outro que usurpa sua posição, e que ao final da situação recupera o “fulgor” de sua antiga “majestade divina” (numen, -inis). Há dados acessórios, como os preconceitos de Saxo – que serão mostrados e repetidos exaustivamente em livros posteriores – sobre o sexo feminino são incorporados em Frigga, apresentada como uma adúltera que cede à luxúria do ouro. Ora, a explicação da proveniência dos daneses é colocada por Saxo anteriormente, na primeria linha da Gesta:

503 DUMÉZIL, 1992: 121s. 247

“Os daneses traçam seus inícios a Dan e Angul, filhos de Humblus, que foram não meramente os fundadores de nossa raça, mas também seus guias. Dudo, entretanto, que escreveu uma historia da Francia, acredita que os daneses fluíram dos danais e foram nomeados segundo eles”504

(SAXO GRAMMATICUS. Gesta Danorum, Livro I. Versão nossa).

Saxo liga conscientemente a história de origem dos daneses a Dudo de S. Quentin, autor da Historia Normannorum, associando “danês” aos “danais”, nome dado aos helênicos na Ilíada. Pouco depois na passagem cita à Beda, autor da Historia ecclesiastica gentis Anglorum, ao refletir sobre o destino de Angul e a origem dos ingleses. Esta passagem explica a genealogia, mas não o porquê do esvaziamento do sentido mais comum ao medievo Ocidental da “Matéria de Roma”. Tampouco explica porque Saxo, tendo já recorrido a outra fonte explicativa, insere a narrativa que contém versão diferente, e de forma tão transfigurada. Há diversos problemas nesta situação, bem como na nossa interpretação. O principal é que não podemos definir um arquétipo exato, escandinavo, que trace a origem de Óðinn à Tróia. Possuímos uma longa tradição de escrita histórica Medieval Ocidental e uma derivação da mesma em solo Islandês que o fazem, mas a existência de tal tradição não obriga Saxo a empregá-la, especialmente se no início do livro empregou outra história de origem, ainda que mais simples. A formação de Saxo Grammaticus e alguns dos elementos da narrativa, no entanto, são por demais similares à tradição da “Matéria de Roma” para pressupormos que Saxo não a conhecia. Ele simplesmente optou por empregar apenas elementos acessórios da mesma. Em outros tópicos da mitologia ele o faz semelhantemente; citamos a pouco o mito de Balðr como exemplo. Cremos, no entanto, poder sugerir ao menos duas hipóteses razoáveis, conectadas à nossa temática, que ajudam a compreender as seleções efetuadas por Saxo nesse episódio.

504 1.1.1: [1] Dan igitur et Angul, a quibus Danorum coepit origo, patre Humblo procreati non solum conditores gentis nostrae, verum etiam rectores fuere. [2] Quamquam Dudo, rerum Aquitanicarum scriptor, Danos a Danais ortos nuncupatosque recenseat. 248

4.3.2 O leste na Gesta Danorum

A primeira hipótese é que a “Matéria de Tróia” não oferece sentido para o leste em Saxo Grammaticus, e o Oriente não incorpora, dessa forma, signicados de origem no mesmo sentido que nos Prólogos islandeses, incluindo os imaginários sacros referentes ao Paraíso e à Nova Jerusalém. Há pouco espaço para interpretação bíblica – não apenas no livro I, mas por toda a Gesta. É de certa forma surpreendente encontrar um número maior de referências teológicas e derivações de interpretações bíblicas nas obras históricas dos autores islandeses, supostamente leigos, do que na obra de um eclesiástico danês que escreve comissionado por um arcebispo. Eric Christiansen expõe pensamento similar quanto às inclinações espirituais ou políticas de Saxo: “He was interested in the spiritual regeneration of the heathen Slavs, but much more interested in the political regeneration of Denmark, and he seems to have believed that both aims were equally acceptable to God. He was writing at a time when Denmark was a powerful and prosperous kingdom, and his concern was to give this kingdom a past as glorious as the present”505.

Destarte, se desejamos entender os sentidos que o leste pode assumer na Gesta Danorum, devemos fazê-lo de forma coadunada com a ideologia política defendida por Saxo. No momento, é pertinente retornarmos à fonte e observar em maior detalhe como Saxo se refere à região, no seu Prólogo, ao discriminar os povos da Escandinávia:

“Após o que, para o nascente também se encontra um ajuntamento de múltipla diversidade de barbárie”506-507

Para Saxo, em sua linguagem rebuscada e carregada de sinônimos e qualificantes, o leste é um “ajuntamento de múltipla diversidade de barbárie”. A descrição da região de tal forma no Praefatio é significativa, em particular se levarmos em consideração a ideia de sua composição posterior aos demais livros da Gesta. Nesse caso, a consideração é ponderada, fruto de anos de trabalho e escrita e da criação de conceitos e preconceitos bastante solidificados na mente do autor. É fruto das

505 CHRISTIANSEN, 1997: 65s. 506 “Post quam ab ortu quoque multiplex diversitatis barbaricae consertio reperitur” (0.2.10) 507 Ou “de povos bárbaros”. 249 próprias experiências ouvidas e vividas pelo mesmo com seus sucessivos patronos, Absalão e Anders, ambos viajantes para o leste. O primeiro entre os Sclavi, o segundo nas regiões do Báltico Oriental, incluindo Riga no Daugava, a região do norte da Estônia e a expedição de Valdemar na mesma. Na circunstância pouco provável de a escrita do prefácio ter-se dado anteriormente à composição dos demais livros da Gesta, a descrição vaga e depreciativa não necessariamente implica em desconhecimento da região descrita. Por certo uma datação muito antiga para o prefácio excluiria os tempos experimentados pelo arcebispo Anders Sunesson no Báltico Oriental, fonte certa de informações de primeira mão para Saxo, mas também tal arrazoamento é baseado em conjectura. De fato, Saxo revela maior conhecimento das regiões do Báltico do que os autores islandeses. As regiões e povos que são citados no transcorrer da Gesta Danorum e que podem ser enquadradas no “leste”, nesta região de “diversa barbárie”, são: Em Austrvegr: Curetes (kurs – livros 1,2,3,5,6,8,9,11 e 14), Eesti (estonianos – livros 6,8,14 e 16), Rotala (Haapsalu, Estônia – 2.1.7), Livi (livônios – livros 8 e 14 – no ultimo caso, o nome “Livonem” aparece juntamente com o nome de um indivíduo, como um apelido), Sembi (prussianos – livros 6,8,9,10 e 11); semgali (zemgálios – livros 6 e 8). Em Garðaríki: Holmgardia (Holmgard/Novgorod – livro 5) e Cønogardia (Konungard/Kiev – livro 5) Paltisca (Palteskja/Polotsk, livro 2.1.7 ) – 37, 42; Ruscia (Rus - livros 2,3,5,6,7,8,9,11,12 e 14). Na Região Ártica: Skritfinnia (Saami, Praefatio), Finmarchia, Finni (Saami - livros 1,3,5,7,9,10); Biarmi (Bjarmar – livros 5, 6, 8 e 9). Os Sclavi fogem de nosso recorte. Aparecem em todos os livros, com exceção do 1 e 4, e são objeto constante das atenções dos daneses, principalmente nos livros finais da obra. Há algumas referências ao Helesponto (livros 1, 8 e 9); são ligadas à eventos no Báltico Oriental, à Kurland e aos Semgallir, aos livônios, à Scithia, à Rutenia e até mesmo à Biarmia, bem como à temática de – que, como veremos em breve, foi transferida para o rei Frotho III. A região apresenta-se ressignificada enquanto a rota dos Varegues aos Gregos, que passava pelos Rios Daugava, Dnieper, o Mar Negro e, finalmente, ao Hellesponto de fato.

250

4.3.3 A Temática do Conselheiro

Num estudo que se iniciou com a observação do leste das passagens da Gesta Danorum, defendemos em 2008 a existência de um motivo narrativo que repetir-se-ia com frequência na Gesta Danorum, e que nomeamos como “A Temática do Conselheiro”508. Esta temática propicia uma estrutura teórica que suporta ideologias teocráticas mesmo em livros que supostamente sequer mencionam o Cristianismo. O esquema das Virtudes Cardinais, defendido por Johannesson 509, é essencial para compreendê-la. Entre os livros I a IV Saxo apresenta gradualmente quadros de virtudes. Usando diversos exempla, ele mostra personagens que possuem uma ou duas virtudes, mas que são deficitárias das demais. Somos apresentados aos feitos de Gram e Hadingus, homens cheios de Fortitudo, porém carentes de Prudentia; somos entretidos com os artifícios de Amlethus, supremo no uso da Prudentia, mas severamente desprovido de Temperantia e, dessa forma, incapaz de manter suas conquistas alcançadas por meio de sua astúcia.

Livro Virtude enfatizada Personagem exemplificador I Fortitudo (força, resistência – tanto física quanto Gram, Hadingus moral) II Iustitia, munificiencia (justiça encaminhando-se para Frotho, many others munificência, liberalidade) III Prudentia (sabedoria, conhecimento, inteligência, Amlethus (cheio de Prudentia) astúcia) IV Temperantia/Constantia (temperança, resistência, Amlethus (deficient em perseverança, estabilidade) Constantia)

Tabela 07: O desenvolvimento do esquema das Virtudes Cardinais (Do autor. Baseado em Johanesson, Kurt: Komposition och värdsbild i Gesta Danorum, 1978 & Kværndrup, Sigurd: The composition of Gesta Danorum and the place of geographical relations in its worldview, 2004)

A partir do Livro V há uma clara modificação na narrativa. O leitor subitamente encontra personagens mais complexos que os reis e heróis vistos até então. Os reis são fracos, falhos, tolos. Contudo, diferentemente da maior parte de indivíduos apresentados nos primeiros livros, esses novos demonstram mudança e desenvolvimento.

508 MUCENIECKS, 2008: 62-64; ______. The ´Thematic of the Counselor´ in the Gesta Danorum and the Strengthening of the Danish Hegemony in the Medieval Baltic Area. Paper apresentado no International Medieval Congress of Leeds. Leeds, 2014. 509 JOHANNESSON, 1978 & 1981. 251

Algumas vezes esse crescimento é um bocado cru, carente de polimento. O mau rei é confrontado, geralmente com um estrangeiro. Seus conselheiros anteriores são a principal razão de suas fraquezas e comportamento inadequado. O estrangeiro enfrenta- os, toma seus lugares e vem a ser o verdadeiramente sábio conselheiro que o rei necessita. Após tais altercações, o rei abandona seus enganos do passado e conduz a Dinamarca em caminhos gloriosos e prósperos. Os livros nos quais encontramos tal estrutura mais desenvolvida são os livros V, com o rei Frotho III e o conselheiro Ericus Dissertus, bem como os desenvolvimentos posteriores encontrados nos livros VI a VIII, que se focam na história do herói Starcatherus que, tendo vivendo o equivalente temporal de diversas vidas, é capaz de retificar os caminhos do rei Frotho IV, bem como atuar nas vidas de diversos reis após isto, dentre muitos feitos e desfeitos.

Rei Conselheiro Livro Gram Bessus I Hadingus Homem caolho (lembra Óðinn) I Frotho III Ericus Dissertus (“Erik, o eloquente”) V Frotho IV e outros reis Starcatherus VI-VIII Knut Lavard Temática em desenvolvimento XIII Valdemar I Absalão (protótipo do conselheiro) XIV-XVI

Tabela 08: o desenvolvimento da Temática do Conselheiro na Gesta Danorum. Do autor.

Ainda que esses dois personagens consistam no ápice da ideia do conselheiro, podemos identificar o desenvolvimento do tema em outros livros. De fato, esta temática não é nova de todo no mundo setentrional. É possível encontrar narrativas similares na Hrolf Kraki saga e na Historia apollonii Regis Tyri, por exemplo, e seus elementos se prestam a análises estruturalistas tais quais as desenvolvidas por Vladimir Propp em seus trabalhos acerca dos contos folclóricos510. Outras partes da Gesta Danorum, em particular seus livros I e XIII, trazem-nos ecos da temática do conselheiro. No livro I lemos sobre primeiros reis da Dinamarca, Gram e Hadingus. O primeiro envolve-se em uma disputa poética com uma dama a quem ele deseja. Ele é totalmente incapaz, entretanto, de enfrentar a situação. Incapaz de falar corretamente, incapaz de argumentar. Sua salvação é apresentada nas palavras de seu amigo Bessus, que também o auxilia em outras situações, mas particularmente na disputa poética.

510 PROPP, Wladímir Yakovlevitch. Morfologia do Conto Maravilhoso. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. [Moscou, 1976]. 252

No mesmo livro o leitor deleita-se com a narrativa de Hadingus. De longe mais elaborada que a história de Gram, a de Hadingus passa por desenvolvimentos interessantes – como, por exemplo, uma grande similaridade com o mito do deus Njörōr, visto há pouco. Em seus inícios, ele é mentoreado por uma gigante, Harthgrepa. Nesta fase de sua vida, Hadingus não é apresentado enquanto um bom exemplo. Ele é seduzido por uma gigante que, como se não fosse o suficiente, pratica magia negra para antever o futuro. Esta fase é encerrada com a morte de Harthgrepa e a captura de Hadingus na Kurland. Em seu cativeiro, ele recebe conselho de um velho homem, claramente representando a Óðinn disfarçado. Nesse ponto, Hadingus personifica a fortitudo, iniciando uma vida de vitórias, frequentemente ajudado pelo velho homem. Em ambos os casos o rei é claramente apresentado como deficiente e até mesmo fraco e patético, enganado por seus inimigos e pelas circunstâncias. A situação desesperada somente pode ser transposta com a ajuda de um sábio, um conselheiro. No caso de Hadingus há ainda a comparação das duas fases de sua vida, que aponta inequivocamente para a necessidade de um conselheiro verdadeiro e sábio. O livro XIII, já na parte “histórica” da Gesta Danorum, apresenta a história de Knut Lavard, enganado e capturado por seus inimigos. O início do livro conta a historieta de um jovem que, a despeito do aviso de seu instrutor, foi morto por um cavalo. O fechamento da ideia é apresentado no livro XIV em diante, que contém o núcleo da vida do arcebispo Absalão. Não há qualquer mínima possibilidade de dúvida sobre quem seja o herói nesses livros. De forma alguma é o rei Valdemar, mas sim o bispo, posteriormente arcebispo, Absalão. Dessa forma, o que parece a princípio uma referência pontual, uma narrativa isolada da vida de um arcebispo, evolui para um tema principal. Esta ideia, entretanto, não é uma simples glorificação de seu patrono e suportador Absalão; antes disso, é uma forte defesa das instituições representadas pelos homens na narrativa. O que Saxo mostra ao leitor é que não é suficiente ao rei ser forte. Ele necessita de ser sábio, e de ter homens ainda mais sábios a aconselhá-lo. Certamente a única instituição que pode prover toda esta quantia de sapiência, sob o ponto de vista de um clérigo do século XIII, é a Igreja Romana. Há anda uma nuance importante a ser apresentada. Não há uma dominância total, clara, de uma instituição sobre a outra. Não é esse o intuito das narrativas de Saxo. 253

É possível inclusive se destacar o perigo de uma posição aberta e marcadamente gregoriana; o manuscrito de Angers que, de acordo com a crítica genética possivelmente trata-se de um autógrafo do próprio Saxo, nos provê incômoda informação: em meio ao texto que conhecemos como a Gesta Danorum “oficial”, aparentemente há modificações e adições com o intuito de espelhar feitos dos Valdemares, indicativos da vulnerabilidade do próprio Saxo. A supremacia dos homens sábios, os eclesiásticos, sobre os lutadores e políticos é clara na mente de Saxo, mas parece ser igualmente claro para ele que há a necessidade de cooperação. Não é possível separar a monarquia e o arcebispado; em uma versão dualística das Ordens feudais, oratores e belatores precisam cooperar a fim de alcançar uma nação forte, sob a direção divina.

4.3.4 O Imperium de Frotho e a Hegemonia dos Valdemares

O livro V é um ponto focal e de particular relevância na Gesta Danorum como um todo. Em uma das pouquíssimas ocasiões nas quais Saxo provê datas ou periodizações mais específicas, nesse caso a narrativa ocorre nas proximidades temporais do próprio nascimento de Cristo, o que vai se revestir de importância especial no enredo. Quanto aos esquemas discutidos a pouco das Virtudes Cardinais e da Temática do Conselheiro, o livro V é o primeiro no qual um conselheiro – no caso, Ericus Dissertus – é apresentado revestido de todas as Virtudes Cardinais. O rei em questão, Frotho III, será lembrado em sua morte como “o mais ilustre de todos os reis do mundo511”. É por meio dos conselhos de Ericus que o rei Frotho III, até então imerso em uma vida cheia de vícios e falhas, é transformado no governante que além de pacificar a Dinamarca constrói um Imperium no norte. Os territórios conquistados pelos daneses incluem a Noruega, Sclavia, Órcades, Estônia, Curlândia, Aland, Rutenia (são citadas Holmgardia e Conungardia – Novgorod e Kiev), Saxonia, Jämtland e Hälsingland512, A narrativa é similar à Hervara Saga, principalmente a Batalha entre Godos e Hunos, e contém elementos da Res Gestae de Amiano Marcelino, da Getica de

511 (...) toto orbe clarissimi regis (...). 512 Províncias do norte e centro da Suécia, respectivamente. 254

Jordanes, e da Historiarum adversum paganos de Paulo Orósio. Os daneses e seus aliados assumem o papel dos Godos, enfrentando os hunos aliados aos Ruteni. O papel do rei godo, Ermanaric, é transferido para Frotho III.

Segundo Saxo, “o reino de Frotho incluía a Rússia ao nascente e fazia fronteira com o rio Reno ao poente”513. O rei será um pacificador, governando em paz por trinta anos ininterruptos, e a justificativa para tanto é a coincidência com o nascimento de Cristo:

“Nesta mesma época, o autor da Salvação, dedicadamente e pela graça, suportou a condição humana, vindo ao mundo publicamente e à vista dos mortais, enquanto os fogos de guerra eram apagados e a terra gozava um período da mais calma tranquilidade. Considerou-se que a extensa magnitude dessa paz, a mesma e ininterrupta em todas as partes do mundo, atendeu antes ao divino nascimento que a um príncipe terrestre, e que por um ato celestial esta rara dádiva de tempo significou que o criador do tempo estava entre nós.514”

A ideia da coincidência da paz mundial com um Imperium de alcance igualmente mundial e o nascimento Cristo não é nova. Em adição à citação bíblica de que Cristo viera na “plenitude dos tempos515”, temos uma construção histórica – que, como já discutimos em capítulo anterior, foi bastante duradoura no medievo – da pena de Paulo Orósio. Encontramos termos muito semelhantes no livro VII, capítulo XX de sua Historiarum adversum paganos:

1Assim, no ano 752 da fundação de Roma, pela 3ª vez, César Augusto encerrou pessoalmente as portas do Templo de Jano. Sem dúvida, do Oriente ao Ocidente, do Norte ao Sul e ao longo de todo o litoral banhado pelo Oceano, todas as nações tinham se harmonizado e alcançado a paz universal (...) 5Ora, Cristo nasceu nesse ano, i.e., no ano em que César Augusto consertou uma paz muito sólida e autêntica – em ordem ao plano estabelecido por Deus. Essa paz serviu como escrava o advento de Cristo. E no nascimento de Cristo, os Anjos exultando cantaram para os homens que os ouviam: Glória a Deus nas alturas e paz na

513 “Frothonis regnum, Rusciam ab ortu complectens, ad occasum Rheno flumine limitatum erat” 514 (5.15.3) “[1] Per idem tempus publicae salutis auctor mundum petendo servandorum mortalium gratia mortalitatis habitum amplecti sustinuit, cum iam terrae, sopitis bellorum incendiis, serenissimo tranquillitatis otio fruerentur. [2] Creditum est tam profusae pacis amplitudinem, ubique aequalem nec ullis orbis partibus interruptam, non adeo terreno principatui quam divino ortui famulatam fuisse, caelitusque gestum, ut inusitatum temporis beneficium praesentem temporum testaretur auctorem” 515 Gálatas 04:04:V indo, pois, a plenitude do tempo, Deus enviou seu filho (...). In: Bíblia Sagrada. Tradução: Almeida revista e atualizada. 255

terra aos homens de boa vontade... Neste mesmo tempo, Augusto, a quem se concedera o supremo mando de todas as coisas, não tolerou que lhe chamassem senhor dos homens (sendo ele um dos mortais). Mais ainda: não lhe sofru o ânimo que lhe chamassem SENHOR nos dias em que, entre os homens, nasceu o verdadeiro Senhor de todo o gênero humano. Também neste mesmo ano de 752ab.U.c, o mesmo César Augusto, a quem Deus predestinara para este tão grande mistério, foi o primeiro que mandou fazer o recenseamento de cada uma das províncias do seu Império e registrar o número de todos os que o povoavam. E isto precisamente quando Deus se dignou não só ser visto como Homem mas também assumir a natureza humana.”

(Paulo ORÓSIO, História Contra os pagãos. Livro VI, capítulo 22 Tradução: CARDOSO, José)516.

Há outros elementos menores que também podem indicar uma relação entre os textos, como certa emulação da cardinalidade na delimitação de limites, mas que podem igualmente ser fortuitos517.

O episódio nos fornece um conceito mais apurado de qual significação e relevância o leste pode se revestir na ideologia de Saxo Grammaticus: trata-se claramente da construção de uma hegemonia danesa no Báltico.

4.3.5 O leste e as cruzadas setentrionais

O contexto danês do século XIII fornece a Saxo um cenário perfeito, que providencia lugares e funções para todos os poderes envolvidos na situação: as Cruzadas Setentrionais. Os inimigos, os agentes: todas as peças estão providenciadas nestas expedições, todos os conflitos, refletidos. Também o acordo entre Igreja e Estado encontra seu lugar em tais empreendimentos.

516 1 Itaque anno ab urbe condita DCCLII Caesar Augustus ab oriente in occidentem, a septentrione in meridiem ac per totum Oceani circulum cunctis gentibus una pace conpositis, Iani portas tertio ipse tunc clausit. (...) 5 Igitur eo tempore, id est eo anno quo firmissimam uerissimamque pacem ordinatione Dei Caesar conposuit, natus est Christus, cuius aduentui pax ista famulata est, in cuius ortu audientibus hominibus exultantes angeli cecinerunt Gloria in excelsis Deo, et in terra pax hominibus bonae uoluntatis. eodemque tempore hic, ad quem rerum omnium summa concesserat, dominum se hominum appellari non passus est, immo non ausus, quo uerus dominus totius generis humani inter homines natus est. 6 eodem quoque anno tunc primum idem Caesar, quem his tantis mysteriis praedestinauerat Deus, censum agi singularum ubique prouinciarum et censeri omnes homines iussit, quando et Deus homo uideri et esse dignatus est. tunc igitur natus est Christus, Romano censui statim adscriptus ut natus est (Paulus Orosius, historiarum adversum paganos libri vii) 517 Discutimos a questão e tais passagens mais profundamente e em conjunto com a Temática do conselheiro em MUCENIECKS, 2009. Capítulo 05, pp.123-142.. 256

A primeira fase de tais cruzadas deu-se nas proximidades de casa, nas terras eslávicas; sua maior preocupação foi a segurança da vizinhança e a consolidação das instituições. Nesse estágio a cooperação com os saxões e o Império é necessária. O herói é Absalão, lutador contra os eslavos. A aliança com os germânicos é pesadamente criticada pelo Grammaticus. Os livros XIV a XVI descreverão de forma bastante detalhada os acontecimentos da ocasião. O registro é feito quase que ao pé da letra, em uma estética e forma cronística e clara. Ainda que cheia de sententia e julgamentos. Pode-se encontrar também nos livros míticos, entretanto, ecos desse contexto. Quiçá algumas das passagens mais dramáticas do livro V, e particularmente VI, são dedicadas a denegrir os saxões; a aliança de Frotho IV com esta gente e a adoção de alguns de seus usos é, para Saxo, falando pela boca do herói Starcatherus, um dos piores feitos já perpetrados pelo rei. O cerimonial da corte, infiltrado nos salões daneses, è demonstração para Saxo de como os saxões seriam (em suas próprias palavras) “efeminados”, “viciados”, entre outras qualificações denegridoras, refletindo claramente as tensões ocorrendo dentro da igreja danesa contra a dominação dos costumes imperiais. A segunda fase das Cruzadas Setentrionais deu-se nas praias orientais do Báltico. Neste ponto, a política danesa enfrenta situações diferentes. Os personagens são outros. O rei agora é Valdemar II; o arcebispo, Anders Sunesson. Os eslavos foram pacificados e agora fazem parte do reino danês, que busca expansão e hegemonia sobre o Báltico, principalmente na Estônia e em partes da Kurland. O relacionamento com os nativos é diverso, cheio de contrastes. Ainda que Saxo apresente a área no prefácio como uma região de disseminada “barbárie”, esses bárbaros não parecem consistir em vilões do mesmo grau de vilania dos saxões. O livro VIII apresenta a batalha de Bravalla, que afetou, segundo o autor, todos os povos e raças do norte. Nesta batalha as alianças descritas por Saxo refletem relacionamentos complexos entre os povos setentrionais e o claro desconforto relativo aos seus vizinhos meridionais, germânicos. Em uma passagem que reconta uma amplamente difundida tradição sobre a batalha, Saxo apresenta os daneses em decadência. Seu rei é cego, literalmente. Seus aliados são saxões, eslavos e livônios. O inimigo é encabeçado pelos suecos, seguidos por campeões da Noruega, Islândia e mesmo da Rutenia, mas com o exército fortalecido por flancos de curlandeses e estonianos. O julgamento de Saxo é positivo em relação 257 aos suecos e seus aliados; para ele, eles mostravam a “superioridade dos homens do norte” em relação a saxões e eslavos. O próprio livro V, há pouco observado, mostra como facilmente elementos dessa barbárie tornam-se úteis sob a égide danesa. Os elementos constitutivos do cenário estão presentes na maioria dos livros da parte mítica. A narrativa de Hadingus no livro I, na qual o mesmo necessita da ajuda do conselheiro, acontece na Kurland. A segunda vida, regenerada, de Frotho III, depois do aconselhamento bem sucedido de Ericus Dissertus, é marcada pelo paralelo com as conquistas de Ermanaric, o godo, e está fortemente fundamentada nos domínios orientais, assim como a trajetória de seu sucessor518. A circunstância dos daneses lutando na Estônia e mesmo o tempo passado por Anders Sunesson em Riga, na Livônia, é refletida principalmente nos livros míticos. Se eles foram de fato escritos após a parte dedicada a Absalão, faz perfeito sentido o número de ocorrências relacionadas ao Báltico Oriental, ainda mais ao se notar a conexão do cenário com a Temática do Conselheiro. Nesta fase da política danesa a consolidação interna foi efetuada com sucesso e os principais objetivos dos daneses estão focados na hegemonia sobre o Báltico, conquistando os povos nativos e entrando em conflito com os germânicos, não mais aliados, mas os principais opositores naquele campo. Concluindo, devemos salientar a coerência e harmonia encontrada na Gesta Danorum quando a mesma é lida observando-se os principais padrões nela instilados por seu autor. Um projeto que inicialmente fora uma crônica, biográfica e simples, assumiu o papel de História de uma nação e, como tal, viria a refletira as condições de um país buscando a hegemonia em todo o Báltico, quiçá a própria tentativa de criação de uma nova forma de Império.

518 Note-se que nos contos relativos a Dietrich de Bern que contém material sobre Ermanaric, este sofre nas mãos de um mau conselheiro. 258

4.4 Algumas conclusões prévias; Saxo, Snorri, o autor da Heimskringla e o leste: educar e instruir

Já enfatizamos a limitação das informações sobre Saxo Grammaticus; o que se sabe discutimos logo acima. Também demonstramos que a codicologia tem provido razoáveis referências na determinação da fidelidade e da existência de poucas alterações no texto latino da Biblioteca real da Dinamarca em relação à sua própria escrita. O achado do manuscrito de Angers, datado do início do século XIII, com espaços para inserções e “testes” com as formas poéticas é considerado unanimemente da própria pena de Saxo ou alguém de quem o mesmo se valia – evidentemente, circunstância bastante rara e surpreendente. A comparação com os demais manuscritos tem demonstrado a fidelidade das edições modernas ao suposto “original”. Destarte, na Gesta Danorum podemos encontrar um tratado bem atribuído a uma mente individual, a quase que uma mente artística - em suma, podemos ter a ousadia de pensar em questões como a individualidade e autoria, em uma obra do medievo. Se corretas as pressuposições endossadas por tantos acadêmicos, incluindo Elton e Fischer, sobre a ordem de composição dos livros da Gesta e a "mudança de ideia" de Saxo após a morte de seu primeiro patrono, temos então o vislumbre de um historiador, de um aspirante a poeta, de um clérigo que, não obstante comissionado com possivelmente pesadas restrições, foi capaz de imprimir uma genialidade e originalidade toda próprias em sua obra, originalidade esta que não se desfigurou em uma disforme "mentalidade" ou "autoria" comum, em um simplista reflexo de seus tempos. Em contrapartida, sabemos muito sobre a vida de Snorri - ainda que por meio de uma única fonte, a Sturlunga Saga, que evidentemente passa uma versão unívoca de sua vida. No entanto, os manuscritos da Edda são diversos, possuem diferenças consideráveis entre si, provavelmente possuem a adição de muitas mãos e cabeças. Em relação à própria Heimskringla, demonstramos os questionamentos existentes em relação a sua autoria da parte de Snorri. O sabor de tais obras, sua própria originalidade, no entanto, perdura. Porém, dessa originalidade depreende-se uma cautela para o estudioso, ao menos no quesito autoria. Tratamos com um autor inigualável e genial, dotado de incongruências e disparidades, mas ao mesmo tempo o quanto dessas mesmas incongruências e disparidades se devem a interpolações é incerto e permanecerá objeto de discussão indefinida. 259

Por certo que estas diferenças e tal incerteza sobre a autoria não desabonam o valor da fonte primária. De fato, a existência de mais de uma mente por traz da Edda e/ou da Heimskringla nos fornece a preciosa qualidade de uma obra que pode, a despeito da originalidade, singularidade e genialidade de seu autor primário, conter mais marcadamente elementos que podem ser atribuídos com menor medo a uma espécie de mentalidade coletiva, refletindo mais de um sentimento e identificação cultural - ainda que de extratos específicos da sociedade na qual foi escrita - do que se poderia pensar ao lidar-se com uma obra de autoria única em toda a sua extensão. Saxo Grammaticus, Snorri Sturlusson e o autor da Heimskringla efetuaram esforços consideráveis na construção de suas obras históricas, no sentido de traçar linhas históricas contínuas do passado mítico ao presente em que escrevem. Snorri Sturlusson em particular vai desenvolver uma linha interpretativa elaborada, segundo a qual a primeira dinastia de reis escandinavos, dos Ynglingar, descenderia de Óðínn. Inicialmente um personagem de vulto da antiguidade, originário de Tróia (assim como Þórr), viria a ser adorado pelas populações setentrionais como deus. Nesta interpretação, o leste assume papel das origens, e veicula as tradições clássica grego-romana, Medieval Ocidental e Bíblica, mas faz pouco uso da cosmologia escandinava e conhecimento empírico sobre o Oriente. O autor da Heimskringla é capaz de inserir ainda em sua obra o conhecimento empírico de noruegueses e islandeses sobre o Báltico Rus e adjacências. Saxo Grammaticus escreverá de forma mais ideológica de forma a sustentar uma posição favorável à supremacia do arcebispado em seu contexto, mas também traz traços claros de elaboração e assimilação de diversas tradições, dentre as quais a escandinava, a greco-romana e, em menor grau, a cristã. Nesse caso, os deuses também são apresentados como homens que receberam adoração indevida, e as localidades desse mundo mítico são assimiladas às locações conhecidas, seja via conhecimento geográfico empírico ou baseado em fontes greco- romanas e cristãs, ou na própria tradição literária escandinava. Como exemplo desse uso, temos o uso freqüente da localidade do Hellesponto, que Saxo associa diretamente à rota dos varegues aos gregos. O leste, para Saxo Grammaticus, é campo de expansão para os daneses, é sua área hegemônica, e sua história imprimirá tal ideologia nos passados mais distantes. Ambos os autores procuraram construir cenários verossímeis, nos quais 260 pudessem inserir todas as tradições das quais beberam – fossem tradições nativas, bíblicas, da Europa Ocidental ou Clássicas. Através do crivo de suas próprias razões, empregaram os elementos que mais se apresentassem como convenientes, quiçá coerentes, na escrita de suas próprias histórias. O uso e acesso a tais tradições e a existência de modelos de histórias universais não podem esconder, entretanto, uma circunstância pouco comum no meio medieval, mas que gradativamente tomará maior fôlego nos séculos vindouros: a autoria individual. Encerramos tal seção salientando que em todas essas obras é possível se delinear uma carcaterística marcante em comum, que será contraposta na seção a seguir; tratam- se de obras com objetivos de instruir, de educar, de transmitir conhecimento avalizado. Ao adentrarmos o mundo das Fornaldarsögur e da Ọrvar-Odds Saga nos depararemos com um uso bastante diverso do passado e de tal conhecimento geográfico. Não mais fatores da instrução e piedade, tais obras terão como objetivo primário o distrair, o entreter. E em tal objetivo, o leste possuirá papel de destaque. 261

CAPÍTULO 5: A ỌRVAR-ODDS SAGA E AS FORNALDARSÖGUR - O LESTE E A

NARRATIVA DE ENTRETENIMENTO

5.1 As Fornaldarsögur

A produção declaradamente “histórica” não esgota o material escrito lidando com o leste. De fato, o maior conjunto de fontes a lidar com tal área é formado por uma série bastante distinta de produção literária, uma série na qual elementos como entretenimento, performance e o lúdico assumem papel tão ou mais importante em alguns casos do que a própria narrativa histórica. Em tais obras o passado provê, antes de tudo, o contexto narrativo, o cenário, a ambientação propícios a tal gênero. De certa forma desenvolve-se uma associação entre maior plausibilidade de execução de feitos fantásticos com a maior antiguidade ou distanciamento temporal em relação ao seu autor. O propósito específico de escrita – no caso, o entreter – não exclui o entrelaçamento dessa produção com aquela destinada à instrução. Como veremos em breve, há uma conexão orgânica entre agrupamentos de fontes que à primeira vista não possuem nada em comum à parte de serem produções escritas do medievo escandinavo. O gênero que enquadra fontes as sagas a lidar com o fantástico e o maravilhoso foi chamado de Fornaldarsögur norðurlanda, o que significa literalmente “sagas antigas das terras do norte”. Normalmente citadas apenas como Fornaldarsögur, são traduzidas com frequência como “sagas legendárias” ou “Sagas dos tempos antigos”. Essa caracterização é posterior à escrita das mesmas, datando do século XIX, e não fecha de forma absoluta a série. Carl Christian Rafn, em sua coletânea “Fornaldar Sögur Nordrlanda”, publicada em três volumes em Copenhaguen, em 1829 e 1830, efetuou a seleção de trinta e uma sagas que considerava enquadrarem-se no critério recém-criado. Posteriormente mais cinco foram adicionadas à lista, mas há uma série de manuscritos que ainda carecem de maior análise e que poderiam ser enquadradas em tal categoria. Tulinius, por sua vez, considera uma lista de vinte e cinco Fornaldarsögur, o que já 262 deixa claro que há dissenso e o critério de gênero não é tão fechado519. Além da narrativa de eventos anteriores à colonização da Islândia (com algumas exceções, das quais a principal é a Yngvar Saga viðforla), as Fornaldarsögur são caracterizadas por uma forma narrativa centralizada no fantástico, na aventura e no exótico, com um grande uso de temáticas míticas e lendárias. O cenário básico dos acontecimentos é a Escandinávia, e não a Islândia. Não há consenso em relação à sua datação; a Yngvar Saga viðforla, datada do século XIII, é a mais antiga da série, que, em sua maior parte, situa-se entre os séculos XIV-XV520 – o que faz as Fornaldarsögur formas de saga bastante recentes. Dessa forma, apesar de narrarem eventos anteriores à colonização da Islândia, possuem uma distância temporal mais significativa dos eventos que narram e consistem em fontes tardias. Já tratamos das Íslendigasögur em outro capítulo; de tom mais sóbrio e comedido, narradas de forma marcadamente realística, com poucas intervenções do sobrenatural e com muitas informações de cunho histórico e mesmo cronístico, são consideradas pela tradição historicista como o ápice da produção literária islandesa medieval, e como tal serviram de parâmetro de comparação para outras séries de saga. Nesta breve caracterização já fica evidente ao leitor a preferência e valorização que foi dada no decorrer dos estudos sobre Escandinávia medieval às Íslendigasögur e a depreciação a que as Fornaldarsögur foram submetidas. Como parte desse fenômeno podemos citar não apenas propensões historicistas, uma divisão estrita entre “história” e “mito”, mas também a criação de uma tradição que definiu que o tom narrativo escandinavo, em sua forma mais pura, em seu período mais “clássico” e notável, seria aquele passado pela narrativa das Íslendigasaga; enfim, um critério acerca da própria qualidade artística das sagas, também empregado em outras situações díspares como, por exemplo, a datação das mesmas521. Um dos argumentos mais predominante e recorrente na justificativa de tais critérios de valor é construído baseado no contexto de escrita das Fornaldarsögur, alegando que as mesmas teriam sido produzidas em período de decadência literária, por

519 DRISCOLL, Mathews James. A new edition of the Fornaldarsögur Norðurlanda: Some basic question. In: BAMPI & FERRARI (eds.) Editing Old Scandinavian texts: Problems and perspectives. Trento, 2009. p.01. 520 PALSSON, Hermann & EDWARDS, Paul (trads). Vikings in Russia: Yngvar's Saga and Eymund's Saga. Edinburgh: Polygon, 1990 [1989].p. 02. 521 MUNDAL, Else. The dating of the oldest sagas about early icelanders. In: MUNDAL, Else (ed.). Dating the Sagas: Reviews and Revisions. Copenhagen: Museum Tusculanum Press, 2013. p.46. 263 sua vez causado pelos processos políticos envolvendo a Islândia e a Noruega522. Em contrapartida as Íslendigasögur, escritas em sua maior parte até o século XIII, refletiriam ainda o período áureo literário islandês medieval, em conjunto com as obras de Snorri Sturlusson. O fortalecimento da monarquia norueguesa e a subsequente submissão da Islândia, em 1262, ao monarca da Noruega, foi situação traumática e verdadeira ruptura em uma sociedade desde o seu início fundamentada, ainda que de forma relativa, na igualdade entre seus pares523. Tais argumentos são datados, coerentes com o historicismo, suas questões e questionamentos metodológicos, estéticos e formais. As gerações mais recentes de acadêmicos, dentre os quais se pode citar Mathew Driscoll, Torfi Tulinius, Margaret Ross, têm levantado novas questões relativas à pertinência do estudo das Fornaldarsögur. Não enquanto produto de decadência literária – antes, enquanto respostas artísticas, literárias e históricas específicas de uma sociedade em processo de profunda transformação524. Há linhas diversas de argumentação a se empregar ao se levar em consideração o valor intrínseco das Fornaldarsögur enquanto vislumbres de uma época. A própria linguagem de escrita das mesmas, constrastante com as Islendigasögur, em tom mais leve e muitas vezes bem-humorado, fez com que as Fornaldarsögur se tornassem populares na Islândia, desde a data de sua escrita até o próprio século XIX; o número de cópias e manuscritos efetuados nesses quatro séculos atesta particularmente bem a situação525. destarte, as Fornaldarsögur consistem também formas específicas literárias voltadas para o próprio entretenimento. Em adição, as Fornaldarsögur preservam, a despeito de sua estrutura em prosa, grande quantidade de inserções poéticas. Uma das métricas mais frequentemente empregadas é a fornyrðislag, mais ligada à tradição édica do que à escáldica, como no caso das Islendigasögur.526 O gênero veicula, dessa forma, conhecimento e fontes

522 DRISCOLL, Matheus. Late Prose Fiction (lygisögur). In: McTURK, Rory (ed.). A companion to Old- Norse Icelandic Literature and Culture. Oxford: Blackwell Publishing, 2007. P. 196. 523 BYOCK, Jesse. Viking Age Iceland. London: Penguim books, 2001. Capítulo 04. 524 ROSS, Margaret Clunie. Introduction. In: ______(ed). Old Icelandic Literature and Society. Cambridge: at the University Press, 2000. P. 03 525 LESLIE, Helen. The death songs of Örvar-Odds Saga. Tese de doutorado. Bergen University, 2012. P. 232. 526 TULINIUS, T. Sagas of Icelandic (Fornaldarsögur). In: McTURK, Rory (ed.) A companion to Old-Norse Icelandic Literature and Culture. Oxford: Blackwell Publishing, 2007. P. 448. 264 primárias sobre os tempos antigos de forma mais abundante e qualificada do que as próprias Islendigasögur. O cenário e o âmbito geográfico básico das Fornaldarsögur são a Escandinávia antes da colonização da Islândia. Porém, seu escopo é muito mais amplo. Em conjunto com tais regiões factuais do mundo nórdico, a narrativa se dá em localidades do fantástico escandinavo, como Jotunheimr (a terra dos gigantes), as Planícies de Glasir, Geirrodland e mesmo regiões das tradições greco-romana e cristã resignificadas, como a Palestina e o Rio Jordão. Parte dessas localizações e definições geográficas se sustentam em conhecimento acumulado e pensado por autores anteriores.

5.1.1 Datações e subdivisões

Torfi Tulinius defende em diversas obras uma datação mais recuada para as Fornaldarsögur, como a primeira metade do século XIII. Argumenta que há temáticas tratadas em comum com as Íslendigasögur, como preocupações com herança e linhagem, porém em forma deliberadamente ficcionalizada. Ele as chama de primeira manifestação de “ficção consciente” na prosa islandesa527. Lönnroth528 considera o grupo das Fornaldarsögur um gênero híbrido de tradição heroica, mito, folclore e romance do continente, e que não seria recomendável se efetuar distinções de categoria dentro das mesmas. A linha interpretativa de Pálsson e Tulinius529 diferencia dois polos temáticos nas Fornaldarsögur: o primeiro, de temática trágico-heróica, includiria dentre outras a Ragnars saga loðbroka, a Volsunga Saga e a Hervarar saga ok Heiðreks530. Esse grupo se vincularia à antiga tradição heroica transmitida principalmente em forma poética, e tende a apresentar um final trágico, com uma narrativa que extende-se frequentemente por várias gerações531. Um ponto de transição da temática para uma aventureira seria

527 TULINIUS, T. The Matter of North: The Rise of Literary Fiction in Thirteenth-Century Iceland. Odense: at the University Press, 2002 [1995]. pp.48-55. 528 LÖNNROTH, Lars. Fornaldarsagans genremässiga metamorfoser: Mellan Edda-mytoch riddarroman. In: LASSEN, Annette & JAKOBSSON, Jakobsson & NEY, Agneta (eda.). Fornaldarsagornas struktur och ideologi : Handlingar från ett symposium i Uppsala 31.8-2.9 2001. Publicado em 2003. p.44. 529 TULINIUS, 2007: 448s. 530 PÁLSSON, Hermann & EDWARDS, Paul. Legendary Fiction in Medieval Iceland. Reykjavík: University of Iceland, 1970. Pp.36ss. 531 TULINIUS, 2007: 448s. 265 exemplificado pela Ọrvar-Odds Saga e a Hrólfs saga Gautrekssonar, as quais data nos finais do século XIII. Por fim, o período final das Fornaldarsögur caracterizar-se-ia por uma temática “aventureira-cômica”, exemplificado pela Bosa Saga e a Gongu-Hrolf saga532. Nesse grupo, chamado genérica e mesmo coloquialmente por Pálsson como “viking romances”533, a ação toma parte no mundo do período viking, seus heróis não são necessariamente de linhagem real ou aristocrática, e a história normalmente possui um “final feliz“534. Ainda conforme Tulinius535, o ponto de transição de temáticas coincidiria com o surgimento das riddarasögur e com a transformação da Islândia de região livre para subordinada. Um sintoma dessa transição seria o interesse mostrado nas narrativas na questão referente ao poder real e sua expansão – conceito remodelado em um contexto pseudo-cavaleiresco nas riddarasögur, para os recém-vassalos islandeses da Noruega. É importante notar que as opiniões de Tulinius, em particular a questão da datação, estão longe de obter um consenso, não obstante sua qualidade. Entretanto, seja sua datação aceita ou não, pode se citar um consenso, exemplificado por Mitchell536, entre a erudição mais recente acerca da característica das Fornaldarsögur enquanto formas narrativas de revitalização cultural do norte legendário. Tal circunstância é válida tenham sido as Fornaldarsögur escritas seja no ápice do período de perda de independência islandesa, como argumenta Tulinius, seja nos séculos XIV e XV, como defende a opinião mais corrente – em ambas as circunstâncias, ocorrem adaptações à nova situação política, que insere a Islândia num quadro mais amplo europeu. Um ponto da argumentação de Tulinius é de particular interesse ao se considerar o próprio valor estético e literário das Fornaldarsögur: como Tulinius demonstra, elas contêm quantidade consideravél de poesia tradicional, édica e característica da literalidade oral, “pré” escrita e cristã. Ele considera que, de acordo com sua argumentação para uma data mais recuada para as mesmas, as Fornaldarsögur provavelmente consistiriam em uma forma de continuidade dessa mesma tradição. Se mantivermo-nos firmes ao critério mais difundido para a datação posterior

532 PÁLSSON & EDWARDS, 1970: 69ss. 533 PÁLSSON, Hermann & EDWARDS, Paul. Seven Viking Romances. London: Penguin Books, 1985. P.14. 534 TULINIUS, 2007: 449. 535 TULINIUS, 2002[1995]: 44-65. 536 MITCHELL, Stephen. Heroic Sagas and Ballads. London: Ithaca, 1991. Pp.132-136. 266 das Fornaldarsögur, entretanto, esta quantidade de poesia édica que as mesmas veiculam deve ser considerada sob outro prisma. Certamente uma linha contínua de permanência, uma continuidade inalterada entre as duas tradições literárias, não pode ser sustentada. Entretanto, esse uso de tal poesia implica em um resgate nesta modalidade de saga de uma tradição literária mais antiga, falando contrariamente aos critérios que denigrem tal tradição mais recente. Tal resgate de tradições antigas é bastante coerente com a argumentação de Ross e Driscoll, e demonstra um intuito consciente de preservação da tradição édica. Podemos argumentar mais além: o uso da poesia édica nas Fornaldarsögur é um uso muito coerente de fontes literárias para uma modalidade que pretende escrever sobre os tempos recuados, pois emprega e readapta a forma literária em voga nesses tempos passados. Como já afirmamos no início desta tese, a Íslendigasögur e as Fornaldarsögur, possuidoras de formas e estéticas muito diversas, lidam com a mesma matéria-prima, o passado, em contextos diferentes e subsequentes. Ambos os usos são igualmente válidos, e a menor factualidade das Fornaldarsögur não deprecia o seu valor enquanto fonte histórica, sendo anacrônico depreciá-las em relação às Íslendigasögur.

5.2 A Ọrvar-Odds Saga

5.2.1 Manuscritos e redações

Diferentemente de outras obras analisadas aqui até então, as Fornaldarsögur, e a Ọrvar-Odds Saga especificamente, na qual centralizaremos nossa atenção, possuem um número muito grande de cópias e manuscritos que atestam sua popularidade e difusão. Dado o descrédito que receberam no século XIX, há, em contraste, uma pequena quantia de edições e traduções, número que vem aumentando nas últimas décadas. Segue uma lista dos manuscritos que contém o texto completo, ou partes da Ọrvar-Odds Saga, com seus respectivos locais de depósito:

267

* Advocates Library, Edinburgh: MS 21.5.2 (1755-1758, Dinamarca; contém extratos); * Stofnun Árna Magnússonar í íslenskum fræðum, Reykjavík: AM 172 b fol.; AM 173 fol.; AM 340 4to; AM 342 I-II 4to; AM 343 a 4to; AM 344 a 4to; AM 344 b 4to; AM 471 4to; AM 552 q 4to; AM 567 IV 4to; AM 591 i 4to; AM 738 4to; AM 109 a 8vo; AM 109 a 8vo; * Bibliothèque Sainte-Geneviève, Paris: MS. 3713; MS. 3724; * British Library, London: BL Add. 11108; BL Add. 11161; BL Add. 11174; BL Add. 11174; BL Add. 11174; BL Add. 6121; BL Add. 6121; BL Add. 6121; * Bodleian Library, Oxford: Ms Boreal 116; * Det Kongelige Bibliotek, Copenhagen: GKS 1006 fol.; Kall 243 fol.; Kall 611 4to; NKS 1689 4to; NKS 1707 4to; NKS 1709 4to; NKS 1791 4to; NKS 1792 4to; NKS 1793 4to; NKS 1793 4to; * Kungliga biblioteket, Stockholm: Papp. 4to nr 32; Papp. 4to nr 56; Papp. 4to nr 80; Papp. fol. nr 102; Papp. fol. nr 103; Papp. fol. nr 17; Papp. fol. nr 73; Papp. fol. nr 89; Papp. fol. nr 98; Perg. 4to nr 7; * Landsbókasafn Íslands, Reykjavík: ÍB 51 fol.; ÍB 384 4to; ÍBR 58 4to; JS 627 4to; JS 634 4to; JS 635 4to; Lbs 221 fol.; Lbs 221 fol.; Lbs 325 fol.; Lbs 381 fol.; Lbs 633 fol.; Lbs 152 4to; Lbs 677 4to; Lbs 942 4to; Lbs 999 4to; Lbs 1172 4to; Lbs 1492 4to; Lbs 1540 4to; Lbs 1582 4to; Lbs 1626 4to; Lbs 1971 4to; Lbs 5158 4to; Lbs 893 8vo; Lbs 1010 8vo; Lbs 1366 8vo; Lbs 2146 8vo; Lbs 4460 8vo; * Riksantikvarieämbetet, Stockholm: Forn Sagor om Ketill Häng, Grim Ludenkind och Pile Odder; * Riksarkivet, Stockholm: Säfstaholmssamlingen I Papp. 11; * Héraðsskjalasafn Skagfirðinga, Akureyri: HSk 2 4to; * Trinity College Library and Royal Irish Academy, Dublin: MS 994; * Universitetsbiblioteket, Oslo: UB 255 fol.; UB 303 4to; * Universitetsbibliotek, Uppsala: Westin 86; * The Icelandic Collection, Elizabeth Dafoe Library, Winnipeg, Canada: Winnipeg MS 8vo.537

Tal lista, compilada pelo projeto “Stories for all time: The Icelandic Fornaldarsögur”, mantido pela “Velux foundation” e coordenado por Mathew Driscoll, exemplifica bem a complexidade da situação. A Ọrvar-Odds Saga possui um número grande de manuscritos, 81 conhecidos até o momento; copiados em um período de quatro séculos, possuem redações diferentes. A erudição do século XIX separa três grupos de redações principais, a “curta”, a “intermediária” e a “longa”.538 Em termos de manuscritos, existem quatro mais relevantes e representativos, que contém tais redações: redação S (de “short”; Perg. 4tpo

537 Lista obtida no projeto “Stories for all time: The Icelandic Fornaldarsögur” Último acesso em 11/11/2014. 538 FERRARI, Fulvio: Ǫgmundr: The Elusive Monster and Medieval 'Fantastic' Literature. In: RUGGERINI, Maria E. (ed.): Studi anglo-norreni in onore di John S. McKinnell. 'He hafað sundorgecynd', Cagliari 2009.p368. 268 nr 7; 43v-57r:20; 1300-1324539) mais antiga redação e manuscrito; redação M (de “middle”; AM 344 a, 4to; 1r-24v; 1350-1400540); redação “A” (AM 343, 4° membr; 59v-81v; 1450-1475541) e redação “B” (AM 471, 4° membr.; 61r-96v; 1450-1500542). Entre S e A/B há uma distância temporal de mais de um século no qual a saga sofreu consideráveis alterações543. As edições são escassas; há duas edições críticas principais: de Boer, de S, datada de 1892544, e Guðni Jónsson, de A/B, de 1943545. A tradução de Pálsson foi feita com base em A/B. Há ainda a chamada versão “E” (AM 173 fol.546), considerada uma variante de A/B, mas não editada, e que tem sido negligenciada pelos eruditos547. A edições da Fornaldarsögur Norðrlanda de Rafn, de 1829, utiliza como manuscrito primário o GKS 2845 4to., e variantes dos manuscritos GKS 1005 fol., AM 309 4to, AM 62 fol. e AM 202 i fol. Ao citarmos trechos da saga, empregaremos trechos de S, da edição de Boer, de A/B de Guðni Jónsson, e da tradução de Pálsson e Edwards548.

5.2.2 A profecia e as conexões da Ọrvar-Odds Saga com a produção histórico- geográfica

O autor da redação S baseou-se em alguma tradição pré-existente; Saxo Grammaticus já escreveria anteriormente sobre um “Arvaraddus” no início do século XIII. É possível que esta primeira redação tenha sido escrita sob a influência de narrativas hagiográficas, incluindo a Saga de St. Olaf. O personagem principal, Ọrvar-Oddr (Odd ”das flechas”), possui uma atitude

539 http://fasnl.ku.dk/browse- manuscripts/manuscript.aspx?sid=UABlAHIAZwAuACAANAB0AG8AIABuAHIAIAA3AA2 540 http://fasnl.ku.dk/browse- manuscripts/manuscript.aspx?sid=QQBNACAAMwA0ADQAIABhACAANAB0AG8A0 541 http://fasnl.ku.dk/browse- manuscripts/manuscript.aspx?sid=QQBNACAAMwA0ADMAIABhACAANAB0AG8A0 542 http://fasnl.ku.dk/browse- manuscripts/manuscript.aspx?sid=QQBNACAANAA3ADEAIAA0AHQAbwA1 543 BANDLE, 1990: 60. 544 BOER, R.C.(ed.). Ọrvar-Odds Saga. Altnordische Saga-Bibliothek 2. Halle: Niemeyer, 1892. 545 VILHIÁLMSSON, Bjarni & JÓNSSON, Guðni (eds). Fornaldarsögur Norðurlanda. Reykjavík, 1943-1944, vol. 1, 165-187. 546 http://fasnl.ku.dk/browse- manuscripts/manuscript.aspx?sid=QQBNACAAMQA3ADMAIABmAG8AbAAuAA2 547 FERRARI, 2009: 368. 548 PÁLSSON, Hermann & EDWARDS, Paul (trads). Seven Viking Romances. London: Penguin Books, 1985. Tradução para o inglês. 269 negativa em relação à religião pagã. Recebe, em sua juventude, a profecia de uma adivinhadora (vọlva) sobre o seu futuro, segundo a qual viveria uma vida extremamente longa, mas seria morto por seu cavalo na casa onde passara sua juventude. Oddr mata seu cavalo, enterra-o profundamente e abandona o lugar, tendo uma vida de viagens e lutas em meio à qual se converte ao Cristianismo e torna-se rei de Húnaland, na redação S, e de Garðaríki, nas redações A/B/E. Nostálgico, retorna ao seu antigo lar para descobrir, surpreso, que as modificações no solo trouxeram à caveira do cavalo à superfície. Uma serpente sai de dentro dela e pica Odd, que morre. Taylor (1921s549), Stender-Petersen (1934)550, Nora Chadwick (1946)551 e Fulvio Ferrari (2009)552 enfatizaram a similaridade de enredos encontrados na Ọrvar-Odds Saga e a história de Oleg, encontrada na Povest vremenikh lét nas entradas concernentes aos anos 911-912. Segundo a PVL, Oleg foi filho de Rurik, tendo subido ao governo de Kiev entre os anos de 870 a 879. Em 912, após ter unificado e tomado tributo de diversas tribos eslavas e fino-úgricas e finalmente atacado Constantinopla, bem como obtido um tratado com os Bizantinos, a crônica conta o seguinte:

“Assim Oleg governou em Kiev, e viveu em paz com todas as nações. Veio o outono, e Oleg pensava sobre seu cavalo, que ele fez com que fosse bem alimentado, ainda que nunca tivesse sido montado até o momento. Pois em certa ocasião ele inquiriu aos mágicos e adivinhos sobre qual seria a causa de sua morte. Um dos mágicos respondeu: ‘Oh, príncipe, é por meio de seu garanhão que você ama e cavalga que você encontrará sua morte’. Oleg então refletiu e decidiu que nunca mais montaria seu cavalo ou mesmo olharia para ele novamente. Dessa forma, ele deu ordens que o cavalo deveria ser alimentado apropriadamente, mas nunca levado em sua presença. Assim, ele permitiu que se passassem anos até que atacasse os gregos. Depois que ele retornou à Kiev se passaram quatro anos, mas no quinto ele pensou sobre seu cavalo, através do qual os mágicos haviam antevisto que ele encontraria sua morte. Convocou, assim, seu escudeiro sênior e perguntou sobre o destino do cavalo sobre o qual ele ordenara que fosse bem alimentado e cuidado. O escudeiro respondeu que ele estava morto. Oleg riu e escarneceu do mágico, exclamando: ‘Adivinhadores cnam inverdades, e suas palavras são desprezíveis e falsas. Este cavalo

549 FERRARI, 2009: 368. 550 CHADWICK, Nora. The begginnings of Russian History: An Enquiry into Sources. Cambridge: at the University Press, 1946. P. 206; FERRARI, 2009: 368. 551 CHADWICK, 146; 157. 552 FERRARI, 2009: 368. 270

está morto, mas eu ainda estou vivo’. Assim ele ordenou que um cavalo fosse selado. ´Deixe-me ver seus ossos´, disse. Ele cavalgou até o local aonde os ossos descarnados e a caveira estavam. Desmontando de seu cavalo, ele riu e enfatizou: ´Então, eu supostamente deveria receber minha morte dessa caveira?´. E ele pisou a caveira com seu pé. Mas uma serpente rastejou dela e mordeu-o no pé, e em consequência disto ele adoeceu e morreu.” 553

(Crônica Primária russa; 911: Capítulos 38 e 39. Versão nossa)

De fato, a semelhança é por demais forte para ser casual. Como lidar com a mesma, no entanto, tem dividido os supracitados pesquisadores. Ferrari alega que o autor empregou um motivo difundido – no caso, o da “profecia impossível”, que acaba se cumprindo - adaptando-o aos seus própositos e revestindo-o de significados específicos554. Um mero reemprego de motivo folclórico nos parece por demais tênue nesta circunstância, especialmente se levarmos em conta as proximidades contextuais. A PVL fala nesta passagem de um governante varegue, ou seja, de um viking no leste. Oddr é um viking que terá parte relevante de sua carreira no leste, a ponto de um de seus epítetos “é você o Oddr que foi para Bjarmaland?” e o seu governo de Húnaland darem- se no contexto. Consista em um motivo folclórico ou não, é um motivo que está ligado em pelo menos três narrativas no mesmo contexto: a PVL, a Ọrvar-Odds Saga e a Gesta Danorum.

5.2.3 Bjarmaland e o leste enquanto espaço liminar

Um número considerável das Fornaldarsögur tem parcela elevada de seu enredo ocorrendo em Austrvegr, Garðaríki e Bjarmaland. É comum a ação dar-se nos três locais, conterem estruturas narrativas esquemáticas, próprias de contos folclóricos, incluindo sistemas de iniciação de seus personagens. Dentre algumas sagas que incorporam estas características, destacamos a Bósa saga og Herrauðs, a Egils saga einhenda og Ásmundar berserkjabana, a Hálfdanar saga Eysteinssonar, a Þorsteins saga Víkingssonar, a Yngvars saga víðförla e a Ọrvar-Odds Saga, que nos proverá o

553 CROSS, S. & SHERBOWITZ-WETZOR, O.P (eds). The Russian Primary Chronicle: Laurentian Text. Translated and edited by Samuel Hazzard Cross and Olgerd P. Sherbowitz-Wetzor. Cambridge: The Mediaeval Academy of America, 1953p.69. 554 FERRARI, 2009: 368. 271 estudo de caso específico em nossas análises subsequentes. Há um uso disseminado de recursos humorísticos e do que chamamos de fantástico e maravilhoso, transpondo os limites afixados por Jacques LeGoff no Ocidente Medieval. Não nos é possível compreender de todo o efeito que estas sagas produziam em suas audiências. Ao leitor contemporâneo, elas provocam, muitas vezes, estranheza, distanciamento e estupefação. Diante de tais características, afigura-nos como recurso necessário para análise dessa série de fontes, e da Ọrvar-Odds Saga (A/B) especificamente enquanto representativa do gênero, o cabedal de ferramentas fornecido pela Antropologia, mais especificamente o que podemos depreender de sistemas e ritos de passagem. Nesse aspecto, as ideias de Von Gennep sobre ritos de passagem tiveram influência duradoura não apenas na Antropologia, mas também nas interpretações históricas e inclusive de outras formas de sagas escandinavas, seja diretamente ou através dos desenvolvimentos pelos quais passaram através dos trabalhos de Vitor Turner. Arnold Van Gennep explica os processos envolvidos em ritos de passagem com o desenvolvimento da ideia de liminaridade e de estados liminais, nos quais o indivíduo que passa pelo rito de iniciação sai de uma situação anterior, mas ainda não se encontra na situação na qual se dará sua reinserção social. As dimensões iniciais de tais ideias foram ampliadas, e vêm sido aplicadas em áreas diversas que incluem campos tradicionais da etnologia, como o estudo de povos ditos “primitivos”, mas também têm sido úteis na explicação de fenômenos da Antiguidade Oriental, Antiguidade Clássica e até mesmo o Ocidente Medieval e a Escandinávia Medieval555, como as situações de peregrinação556 e nos desenvolvimentos da Ordem Franciscana. Detectamos na Ọrvar-Odds Saga uma infinidade de situações que podem ser descritas e interpretadas como liminares, e as discutiremos mais profundamente a seguir. Podemos centralizá-las em torno do personagem principal, Oddr. De início, pretendemos refletir sobre o sistema que Van Gennep chama de “Passagem Material”. Determinados espaços prestam-se bem para situação liminares,

555 Destacamos o estudo de Anna Heiniger sobre o Dyradómr na Eyrbyggja saga, com a qual trocamos informações valiosas acerca da liminaridade e espaços liminares nas Sagas escandinavas. HEINIGER, Anna Katharina. Liminal Spaces and places in the Sagas. Comunicação apresentada no International Medieval Congress of Leeds. Leeds, 2014. 556 TURNER, Victor & TURNER, Edith L.B. Image and Pilgrimage in Christian Culture. New York: Columbia University Press, 1978. 272 consistindo em limites, delimitações e demarcações557. Portas, soleiras e pórticos são elementos recorrentes na delimitação de espaços distintos e constituem-se em elementos limiares por excelência. Da mesma forma se dá com as fronteiras. No último caso, pode haver objetos que especifiquem a interdição e a proibição de passagem. Em outros casos, fronteiras naturais representam os limites que não devem ser transpostos, sob pena de sanções no campo do sobrenatural558. Em alguns casos, como na Europa Medieval, onde haviam zonas cristianizadas separadas por vezes por faixas inabitadas, ou habitadas por povos de outros grupos religiosos, determinados espaços como mercados, campos de batalha, florestas e pântanos podiam assumir o papel de espaços liminares559. Observando-se a forma que Bjarmaland é retratada nas Fornaldarsögur em geral, e na Ọrvar-Odds Saga em particular, propomos aqui que a região assume um papel específico de espaço liminar e transitório. No caso em questão, não entre regiões materializadas no sentido habitual; antes, entre o mundo conhecido, natural e explorado, e as regiões marcadas pelo fantástico, pelos fenômenos mítico-religiosos e pelo inexplicado. Na Ọrvar-Odds Saga, Bjarmaland assume o papel de zona liminar no processo de iniciação do próprio Oddr, por imprimir em sua trajetória características que o acompanharão por toda a saga, até que ocorra outro processo liminar, em um outro espaço específico. A jornada de Oddr à Bjarmaland possui contrapartes em outras fontes já estudadas até agora: a Óláfs saga ins Helga e a Gesta Danorum. Em algumas circunstâncias específicas, é difícil de discernir se a jornada para Bjarmaland consiste em simplesmente um tema ou motivo, ou se os relatos que a contém possuem conexões entre si. O capítulo 133 da Óláfs saga ins Helga conta sobre uma expedição efetuada por Karli, que representaria o rei Óláfr, e certo Þórir Hundr. Fica acertado que cada um levará consigo 25 homens, mas Þórir leva 80, o que gera constante tensão entre Karli e os seus homens, sempre no receio de que venham a sofrer por causa de seu menor número – como de fato, acontece posteriormente.

557 Van GENNEP, Arnold. Os ritos de passagem. Petrópolis: Editora Vozes, 2013[1977]. P.33. 558 Van GENNEP, 34. 559 Idem, 35. 273

A descrição da jornada toda é bastante gráfica e precisa, explicitando elementos práticos sobre a navegação, natureza das mercadorias e procedimentos. Após o período de mercado, quando o acordo de paz com os nativos é encerrado, Karli e Þórir partem para saquear a área com seus homens. Þórir fala um pouco sobre os costumes locais:

“(...) quando um homem rico morria, todos os seus bens móveis eram divididos entre o homem morto e seus herdeiros. Ele pegava a metade, ou a terça parte, ou as vezes menos, e esta parte era carregada para as florestas e enterrada, algumas vezes sob um montículo, às vezes na terra, e ás vezes até uma casa era construída sobre ela560.”

(Heimskringla, Óláfs saga ins Helga, 133. Versão nossa).

Os vikings chegam a um lugar cercado e com guardas. Matam-nos, atravessam a cerca e chegam a um montículo no qual há terra, prata e ouro misturados, mas também uma imagem do deus Jómáli. Þórir ordena que ninguém roube ao ídolo, mas ele mesmo acaba por fazê-lo. Karli fará o mesmo e tenta retirar um ornamento de ouro do pescoço do ídolo. Bate muito forte com o machado e acaba decapitando a imagem. O barulho atrai aos Bjarmar, que partem em perseguição. No final, os vikings retornam aos seus barcos e, na viagem de retorno, Þórir acaba por matar Karli e atacar os seus homens. Parece-nos clara alguma ligação do relato apresentado, não apenas com a Ọrvar- Odds Saga, mas com outras Fornaldarsögur. Se o relato era conhecido oralmente, ou se a Ọrvar-Odds saga inspirou-se em certo grau na Ólafs saga helga, como já foi sugerido, permanece questão não resolvida, mas pela extensão em que viagens a Bjarmaland serão empregadas por outras Fornaldarsögur, e pelo número de elementos encontrados nelas que se concentram na Óláfs saga ins Helga, é bastante razoável que esta tenha provido uma base narrativa e informativa para muitas composições posteriores. Vejamos como se dá o mesmo relato na Ọrvar-Odds saga: Oddr nunca esteve em alguma expedição viking antes. Após sair de Berurjod, aonde crescera e enterrara seu cavalo Faxi a fim de enganar as profecias, parte para Hrafnista, aonde reside sua família de sangue. Seu irmão Gudmunðr e seu primo Sigurðr estão de partida para Bjarmaland no dia seguinte e, como os preparativos estão

560 “(...) að þannug væri háttað þá er auðgir menn ọnduðust að lausafé skyldi skipta með hinum dauða og ọrfum hans. Skyldi hann hafa hálft eða þriðjung en stundum minna. Það fé skyldi bera út í skóga, stundum í hauga og ausa við moldu. Stundum voru hús að ger”. Óláfs saga ins Helga. In: JÓNSSON, 1911: 133 K., 312 274 feitos, não permitem que Oddr os acompanhe. Após sonhos premonitórios, concordam com que Oddr vá. Oddr recebe de seu pai as Gusisnautar – “dávidas de Gusir”, flechas mágicas feitas por Sáami que acompanharão Oddr até sua próxima iniciação, e que serão vitais em muitas de suas batalhas. Os parentes viajam, passam por Finnmark – o tom da narrativa é cômico por vezes, e os vikings divertem-se ao verem as mulheres saami gritarem após serem roubadas. Todos chegam à Bjarmaland. O primeiro acontecimento está delimitado em um espaço liminal: os Bjarmar estão dentro de um salão, perfeitamente iluminado em todos os seus cantos. Os vikings, fora dele, na escuridão da noite. Para acentuar a distância que os separa, tanto espacialmente como em outras categorias, a narrativa enfatiza a alteridade, a principiar pela língua:

Você sabe algo da linguagem dessas pessoas? perguntou Oddr; não mais que o barulho dos pássaros, disse Asmund; você consegue entender algo dela?561.

(Ọrvar-Odds saga, Capítulo 04. Versão nossa)

É uma circunstância singular que em uma miríade de narrativas e sagas, a ênfase da diferença linguística seja tão pouco explorada. Mas o é. A própria saga de Oddr, posteriormente, trará eventos que ocorrem nas mais distantes partes do mundo, que incluem a Terra Santa, Francia, Garðaríki e terras do sobrenatural. Em nenhuma situação há constrangimento linguístico562. Parece um consenso entre os autores de saga que o mundo inteiro fala antigo nórdico. A referência à ”linguagem dos pássaros” não é isolada. Ela aparece também na Heimskringla, no capítulo 10 da Saga de Óláfr Kyrre, e também na lenda sobre Sigurðr e o dragão Fafnir. Em ambas evoca situações de mistério e do sobrenatural. Oddr, olhando pelas janelas, vê um homem servindo aos demais, que imagina que fale o nórdico. Transpassa o espaço liminal, e entra em uma área escura do salão, próxima ao pórtico. Quando o homem passa por ele, Oddr agarra-o pela cabeça e foge com o restante dos vikings.

561 "Skilr þú hér nokkut mál manna? sagði Oddr; eigi heldr en fuglaklið, sagði Ásmundr; eða þikist þú nokkut af skilja?" Örvar-Odds Saga, redação S. In: RAFN, C. Fornaldar sögur Norðrlanda. Kaupmannahöfn: Popp, 1829-1830, vol. I. 4 K., 175. 562 PÁLSSON & EDWARDS, 1970: 31s. 275

Oddr está correto em sua suposição, e dá-se o seguinte diálogo: “O que você pode me dizer que seria a pior peça que nós podemos pregar nos bjarmar?” disse Oddr. “Esta é uma boa questão”, ele disse. “Há um montículo mais adiante nos bancos do Vína, feito de duas partes, prata e terra. Um punhado de prata tem que ser deixado ali por cada homem que deixa este mundo, e a mesma quantia de terra para cada um que vem a ele. Você não pode pregar nos bjarmar um truque mais sujo do que ir até o montículo e carregar toda a prata563”.

(Ọrvar Odds saga, capítulo 04. Versão nossa)

A passagem é outra marca de alteridade, de desconhecimento e de falta de compreensão. Oddr faz perguntas sobre os nativos e seus costumes, ainda que com intenções negativas; tenta entendê-los e, de sua forma própria, obter informações sobre um grupo que se lhe afigura totalmente desconhecido. Em todos os sentidos, o narrador enfatiza como o bjarmar é o outro. O montículo com terra e metais misturados de imediato evoca a narrativa da Ólásf saga Helga. Ambas explicações são feitas em detalhe, com cuidado, apesar de divergirem grandemente. Pela tradição que se conhece de montículos funerários e paralelos na região, parece mais plausível que a explicação da Ọrvar Odds Saga consista numa invenção do seu autor. O restante da expedição resume-se em altercações e lutas com os nativos, nas quais estes sempre empregam recursos mágicos e, posteriormente, associar-se-ão aos Sáami. O único outro detalhe digno de maior nota, além dos recursos ao mágico, é uma referência fortuita a “armas de prata”. Somada ao montículo, somos tentados a sugerir que os ecos das antigas rotas comerciais em busca de prata islâmica façam-se se sentir tardia e desfiguradamente nestas narrativas, mas trata-se de uma conjectura de nossa lavra. Algumas características de Oddr são definidas nesta expedição à Bjarmaland: - A clava: Oddr esquece as Gusisnautar no barco e necessita improvisar uma arma. Usa um machado para fazer uma clava; juntamente com as Gusisnautar, a clava

563 "Hvat segir þú til," sagði Oddr, "hvat vér munum þess gera, at Björmum þykki verst?" "Þess er vel spurt, " sagði hann. "Haugr stendr upp með ánni Vínu. Hann er gerr af tveim hlutum, silfri ok moldu. Þangat skal bera gaupnir silfrs eptir hvern mann þann, sem ferr af heiminum, ok svá, er hann kemr í heiminn, ok jafnmikla mold. Þat munu þér svá gera, at Björmum mun verst þykkja, ef þér farið til haugsins ok berið féit í burt þaðan." Ọrvar-Odds Saga, redação A/B. Capítulo 04. In: VILHIÁLMSSON, Bjarni & JÓNSSON, Guðni (eds). Fornaldarsögur Norðurlanda. Reykjavík, 1943-1944, vol I. Citações subsequentes como “OS”, seguidas de número de capítulo. 276 será uma característica marcante de Oddr. Por ocasião de sua segunda iniciação, as Gusisnautar perderão seu poder e serão substituídas por outro jogo de flechas mágicas, mas a clava perdurará como sua arma contra seu último inimigo em Bjalkaland. - Seu nome, fama e profissão: é a partir da expedição dela que Oddr será conhecido como um viking e que adquirá fama que perpassará a de outro vikings. O qualificador dessa fama é Bjarmaland, e Oddr será conhecido como “Oddr, que foi para Bjarmaland um longo tempo atrás”. Os indivíduos de maior significado para Oddr empregarão o epíteto. A começar por Ögmundr , seu inimigo mortal:

“És tu Oddr”, disse Ögmundr, “que viajou para Bjarmaland um longo tempo atrás?”564

Sírnir, único indivíduo que sobreviverá às lutas com Ögmundr, e com quem Oddr fez pacto de irmandade de sangue:

Sírnir perguntou: “É este Oddr que foi para Bjarmaland?”565

Vignir, seu filho com a gigante Hildigunn:

Ele disse que se chamava Vignir, - “mas é você Oddr, que foi para Bjarmaland?”566

O rei Herrauðr, de Gardaríki, a quem Oddr substituirá como rei:

“Não és tu Oddr, que foi para Bjarmaland um longo tempo atrás?”567

- Seu nêmesis, Ögmundr “Eyþjófsbani” ou Ögmundr “flóki” (Ögmundr “matador de Eyþjófr” ou Ögmundr “tufo de cabelo/pêlo emaranhado”). Em S e M, Ögmundr Eyþjófsbani é um dos muitos seres sobrenaturais com os quais Oddr se depara. Após uma violenta batalha, na qual Oddr e Ögmundr concordam em deixar de lutar, Ögmundr mata traiçoeiramente a Þórðr, irmão de sangue de Oddr, e

564 "Ertu sá Oddr," sagði Ögmundr, "at fór til Bjarmalands fyrir löngu?" (OS, 13). 565 Sírnir svarar: "Er þetta Oddr sá, sem fór til Bjarmalands?" (OS, 19) 566 Hann kveðst Vignir heita, - "eða ertu Oddr sá, er fór til Bjarmalands?" (OS, 21) 567 "Ertu eigi sá Oddr, er fór til Bjarmalands fyrir löngu?" (OS, 27) 277 os restantes da irmandade, Oddr e Hjálmarr, não conseguem encontrá-lo mais. Para Ferrari, a função de Ögmundr nestas redações é efetuar um contraponto à invencibilidade de Oddr, mostrando alguém que pôde derrota-lo568. Em A/B/E, no entanto, Ögmundr assume uma dimensão totalmente nova, tornando-se no maior antagonista de Oddr e transformando o enredo da saga, à medida em que a maior parte de seus eventos acaba se entrelaçando entre a luta infindável entre os dois. Há um personagem novo inserido em A/B/E, que está conectado com o aumento do papel de Ögmundr, e é quem traz informações precisas sobre quem ele é: Rauðgrani, “Barba-vermelha”. Um tipo de figura comum nas sagas, é um homem que aparece e aconselha ao herói nas batalhas, evoca ao leitor as inúmeras aparições de Óðinn disfarçado, sendo de fato associado com ele no capítulo 23, ao não mais retornar. Há um Barba-Vermelha na Bárðar saga Snæfelsáss, também associado com Óðinn, mas de construção mais maléfica, algo entre uma divindade pagã e um ser mal que procura desviar aos cristãos da saga. O Barba-Vermelha da Ọrvar-Odds Saga é benevolente; misto de sábio e covarde, dá conselhos e muita informação útil para Oddr sobre Ögmundr. Aparentemente, esta é sua única função, pois sempre desaparece em batalha - fato que o narrador não deixa de notar, e que confere tom de comicidade em alguns pontos da saga569. É ele quem provê a seguinte explicação:

“Você quer que eu lhe diga”, disse Barba-Vermelha, “como Ögmundr veio a nascer, e eu espero que você perceba que não há forma de que ele seja vencido por homens mortais, se você se envereda por sua origem. Mas primeiro eu devo lhe explicar é que houve um rei chamado Harek, que governava Bjarmaland na época que você esteve ali em sua expedição, depois do que, como você se lembra, você fez um grande mal aos Bjarmar. Mal você tinha ido embora, os bjarmar pensaram ter sofrido as piores coisas, e quiseram, se possível, se vingar, e é dessa forma que eles agiram: Eles pegaram uma gigante que vivia debaixo de uma grande queda d´água, encheram-na de mágica e feitiçaria e colocaram-na na cama ao lado do rei Harek, de modo que ele teve um filho por meio dela; ele foi borrifado com água e chamado Ögmundr. Ainda criança pequena, ele não era como os mortais ordinários, como você pode esperar do tipo de mãe que teve - e, de qualquer forma, seu pai era um grande feiticeiro (blótmaðr) também.

568 FERRARI, 372. 569 FERRARI, 373. 278

Quando Ögmundr era da idade de três anos ele foi enviado para Finnmark, onde aprendeu toda sorte de mágica e feitiçaria, e tão logo ele dominou estas artes, retornou para Bjarmaland. Nesta época ele tinha sete anos e já estava tão grande quanto um homem adulto, imensamente forte e muito difícil de se lidar. Sua aparência não melhorara durante sua estadia com os finnar. Ele era tanto preto quanto azul, com longo cabelo preto, e tinha uns toscos tufos de pelo pendurados sobre os olhos, no lugar aonde sua testa devia estar. É por isto que ele se chama Ögmundr Flóki. Os bjarmar mandaram-no para matar você, ainda que eles tenham percebido que precisavam preparar o terreno com cuidado antes de lhe mandar para hell. O próximo passo que eles tomaram fora fortalecê-lo com bruxaria, de forma que ferro não possa mordê-lo, então levaram a cabo seus rituais e transformaram-no em um verdadeiro Troll, não havendo nenhum mortal parecido com ele”570.

(Ọrvar-Odds Saga, Capítulo 19. Versão nossa)

A narração segue por algum tempo ainda, contando sobre como Ögmundr ganhara seu outro apelido, mas o trecho nos é suficiente. Em A/B/E, Bjarmaland é central para todo o desenrolar do enredo da Ọrvar-Odds Saga, à medida em que o conflito que é central por toda a saga, isto é, as lutas entre Oddr e Ögmundr, são consequências diretas da expedição feita por Oddr ali. Ögmundr, ainda que tenha ganhado destaque tardiamente, harmoniza alguns elementos da saga: a profecia em relação a Oddr, que não permita que ele morra mas que implica em que ele perderá os seus queridos, encontra um bom balanceamento com a figura de Ögmundr que, além de ser instrumental na morte dos queridos de Oddr, é o lembrete de que ele não e totalmente invulnerável. A ênfase de A/B/E na disputa entre os dois substitui aspectos de inspiração possivelmente hagiográficas de S por um enredo aparentemente mais banal e simples; menos instrutivo, mas altamente entretenedor, o desenrolar da saga narra uma luta entre

570 "Viltu, at ek segi þér," kvað Rauðgrani, "hversu Ögmundr er til kominn, ok get ek, at þér þykki þá engi ván, at hann verði unninn af mennskum mönnum, ef þú veizt allan hans uppruna. En þat er þar fyrst af at segja, at Hárekr hét konungr, er réð fyrir Bjarmalandi, þá er þú fort þangat herferð, eptir því sem þú veizt, hvern skaða er þú gerðir þá Björmum. En er þú vart í burtu farinn, þóttust Bjarmar hafa raunillt af fengit ok vildu gjarna hefna, ef þeir gæti. Var þat þá tiltekja þeira, at þeir fengu eina gýgi undan forsi stórum, galdra fulla ok gerninga, ok lögðu í sæng hjá Háreki konungi, ok við henni átti hann son; sá var vatni ausinn ok nafn gefit ok kallaðr Ögmundr. Flestum mennskum mönnum var hann ólíkr þegar á unga aldri, sem ván var sakir móðernis hans, en faðir hans var þó inn mesti blótmaðr. Þegar er Ögmundr var þrévetr, var hann sendr á Finnmörk, ok nam hann þar alls kyns galdra ok gerninga, ok þá er hann var í því fullnuma, fór hann heim til Bjarmalands. Hann var þá sjau vetra ok svá stórr sem fullrosknir menn, rammr at afli ok illr viðskiptis. Ekki hafði hann batnat yfirlits hjá Finnunum, því at hann var þá bæði svartr ok blár, en hárit sítt ok svart, ok hekk flóki ofan fyrir augun, þat er topprinn skyldi heita. Var hann þá kallaðr Ögmundr flóki. Ætluðu Bjarmar þá at senda hann til móts við þik ok at drepa þik; þó þóttust þeir vita, at mikils mundi við þurfa, áðr en þér yrði í hel komit. Var þat þá enn tiltæki þeira, at þeir létu seiða at Ögmundi, svá at hann skyldi engi járn bíta atkvæðalaus. Því næst blótuðu þeir hann ok trylldu hann svá, at hann var engum mennskum manni líkr. (OS, 19) 279 dois seres que, por si só, encontram-se em situação liminares entre a mortalidade e o banal e o maravilhoso e sobrenatural. A mudança de ênfase entre as redações incorporou outro sistema de significações, que dão aspecto central à Bjarmaland. Destarte, a expedição de Oddr à Bjarmaland marca a primeira fase de sua vida, quando ele torna-se viking de renome. É um espaço liminal ampliado entre o mundo conhecido e as terras do imaginário, e é por esse espaço que Oddr sofrerá sua primeira iniciação.

5.2.4 O Homem-Casca

Há ainda outro ponto na redação A/B da Ọrvar-Odds Saga em que reconhecemos um momento específico de transição, acompanhado por sinais e elementos que o diferenciam de outros momentos da narrativa. Após a iniciação de Oddr em Bjarmaland é perfeitamente possível resumir a saga enquanto alterações sucessivas entre estados de luta e paz, distúrbio e descanso. Nestas lutas Oddr perdeu amigos e familiares combatendo vários vikings, combatendo Angantyr e seus irmãos, mas principalmente lutando contra Ögmundr. Nos momentos de descanso ele adquire novos aliados, passa por aventuras distintas, ganha equipamentos e até gera Vignir com uma gigante. Após a perda de seu filho no capítulo 22 e a morte de Gardar, no capítulo 23, Oddr volta para Gotaland com seu irmão de sangue Sirnir. Barba-Vermelha/Óðinn desaparecera, e Oddr entra em um período totalmente distinto em sua vida:

“Assim que o inverno passou, Oddr ficou muito desgostoso pelas misérias que Ogmunðr flóki trouxera sobre ele. Ele estava determinado a nunca mais arriscar a vida de seu irmão de sangue em luta com Ogmunðr, pois as perdas que ele sofrera já eram amargas demais, então ele decidiu-se e partiu por conta própria certa noite. Conseguiu arrumar transporte para onde precisava, viajando pelas florestas e regiões selvagens e errando por longas trilhas de montanhas, com sua aljava de flechas nas costas, atravessando um país após outro. Chegou o tempo em que ele foi forçado a atirar em pássaros para sobreviver. Ele prendeu casca de bétula em volta de seu corpo e em seus pés, e fez para si um grande chapéu com a casca. Ele se destacava bastante dos outros homens pois, além de ser muito maior que todos os demais, estava todo coberto de casca. Não há nada para se contar sobre ele até que emergiu da floresta, e encontrou povoados à vista. Viu uma grande fazenda ali, e outra menor, não muito longe. Veio à sua mente de ir à fazenda menor, 280

ainda que ele nunca tivesse feito nada como aquilo antes, e assim ele foi para a porta. Do lado de fora um homem estava cortando lenha, um pequeno homem de cabelo branco. O velho homem comprimentou amigavelmente o estrangeiro e perguntou seu nome. ´Eu me chamo Homem-Casca´, disse ele” 571

(Ọrvar-Odds Saga, capítulo 24. Versão nossa)

Victor Turner analisa uma forma específica de liminaridade enquanto fase e estado. Nesse sentido, podem ser distintas duas modalidades de ritos: ritos de elevação de status e ritos de reversão de status. Nos ritos de elevação de status o noviço atingirá um status que é definitiva e irreversivelmente superior ao anterior572. Para chegar ao status superior, entretanto, o aspirante precisa antes se humilhar e ser “generalizado”; ele separa-se da vida comum e submete-se a ritos liminares que o rebaixam rudemente antes de, após cerimônias de readmissão, ser instalado em sua posição de glória aumentada573. Quanto aos ritos de reversão de status, são ritos que normalmente seguem prescrições temporais, ligadas ao calendário. Uma característica comumente encontrada em ritos desse tipo é o mascaramento574. Aquele que se rebaixa é feito estruturalmente inferior; a máscara, que pode representar seres ctônicos, demônios ou outras entidades e forças, oculta sua fraqueza e o protege enquanto símbolo de força contra aqueles que estão estruturalmente superiores575. Discernimos nesse episódio da Ọrvar-Odds Saga basicamente um rito de elevação de status, havendo algumas características secundárias similares às

571 “En er Oddr kom heim til Gautlands með fóstbróður sínum, bauð Sírnir honum þar at sitja um vetrinn. Þat þekktist Oddr. Ok er á leið vetrinn, ógladdist hann fast. Kómu honum þá í hug harmar sínir, þeir er hann hafði fengit af Ögmundi flóka. Þó hugsast honum svá til, at hann mun eigi hætta lengr fóstbróður sínum til at berjast við Ögmund, því at hann þóttist þar stóra skaða hafa af fengit. Verðr þat þá hans ráð at leynast í burt einn á náttarþeli. Ferr hann þá at flutningum, þar sem þeira þarf við, en stundum ferr hann um merkr ok skóga, ok ratar hann harðla stóra fjallvegu. Hann hefir þá örvamæli sinn á baki sér. Ferr hann nú víða um lönd, ok kemr svá ráði hans, at hann hafði þat eitt til atvinnu sér, er hann skaut fugla fyrir sik. Hann spennir þá at sér um bol ok fætr næfrum. Síðan gerir hann sér næfrahött mikinn á höfuð sér. Er hann ekki öðrum mönnum líkr, meiri miklu en allir menn aðrir, er hann er allr þakinn næfrum. Nú er ekki sagt frá honum fyrr en hann kemr ór mörkum fram, ok sér hann, at heruð hefjast upp fyrir honum. Hann sér, at þar stendr einn bær mikill, en þar var annarr bær skammt frá. Þat kom honum í hug, at hann mundi snúa á inn minna bæinn; þat hafði hann aldri fyrr freistat. Hann gengr þar at dyrum. Þar var maðr fyrir dyrum ok klauf skíð. Sá var lítill vexti ok hvítr fyrir hærum.” Hann heilsar þeim vel, er kominn var, ok spurði karl hann at nafni. "Næframaðr heiti ek," sagði hann (…) (OS, 24). 572 TURNER, Victor W. O processo ritual: estrutura e antiestrutura. Petrópolis: Editora Vozes, 2013[1974]. P.156. 573 TURNER, 158. 574 TURNER, 160. 575 TURNER, 162. 281 encontradas em ritos de reversão. O ciclo “guerra e paz” característico da vida de Oddr após sua primeira iniciação em Bjarmaland passa por um momento de interrupção. Esta pausa deve ser distinguida dos outros momentos de descanso após a guerra – como o tempo com os gigantes, e mesmo o tempo de sua conversão - exatamente pelos elementos que associam os acontecimentos posteriores a formas rituais. Há elementos textuais claros nesse sentido, que lidam com declarações absolutas; primeiramente, Oddr decide “nunca mais” arriscar a vida dos que ele ama, de forma contrária ao seu discurso anterior de obstinada procura e perseguição a Ögmundr, não importasse o que custasse. Ao escolher entrar na pequena fazenda, Oddr decide fazê-lo “ainda que ele nunca tivesse feito nada como aquilo antes”; contraste a sua atitude altiva de até então. Mais característico, no entanto, é que Oddr muda de aparência e, principalmente, de nome. Ele cobre-se de cascas de bétula – em narrativa na qual é impossível não notar a comicidade da situação, tenta ocultar sua aparência anterior, mascara-se e muda de nome. Ele agora é o “Homem-casca”. À parte novamente o fator comicidade e entretenimento da saga nesse ponto, o próprio narrador continua a chamar Oddr não mais de Oddr, mas de “Homem-Casca”. Ele é recebido pelo fazendeiro Jólfr, que o recebe bem e indicará quais os caminhos a serem seguidos por Oddr nesta nova fase. Simbolicamente, mas de forma que afetará a narrativa posterior de forma prática, ele dá ao Homem-casca três novas flechas. Desta feita, flechas de pedra. Jólfr revela que conhece a identidade de Oddr, bem como que ele possui as dádivas de Gusir, e que elas serão insuficientes em certo momento. A comparação das flechas é representativa dessa nova fase da vida de Oddr; após Bjarmaland e até então, as dádivas de Gusir salvaram-no nas situações de maior perigo. No seu status posterior, serão insuficientes, e substitutas mais apropriadas devem ser providenciadas. O outro passo é informação: Jólfr fala a Oddr sobrea localidade, o rei Herrauðr, pessoas do salão, e sobre quem será o alvo de Oddr: Silkisif, filha do rei, sobre a qual Jólfr fala que “não há moça mais bela em toda a Garðaríki e além576”. Nesse ponto da narração, há um entrelaçamento de temáticas próprias das

576 (...) engi er önnur jafnfrið í Garðaríki ok viðar annarstaðar. (OS, 24) 282 narrativas folclóricas, nas quais é expediente comum que um rapaz, normalmente pobre, irmão mais novo e de menos oportunidades procure conquistar a mão de uma princesa inatingível. Esta temática não é o núcleo da narrativa, e a saga não pode ser reduzida a uma forma tão simples e estruturalizada, ainda mais levando-se em conta as reestruturações e elaborações pelas quais passou em suas diferentes redações. O tema da princesa ajudará na composição do quadro narrativo, fornecerá elementos úteis ao contar da história, mas não é seu objetivo. Ele colabora na construção dos eventos de passagem. Também pela referência aos atributos da beldade somos informados da terra aonde Oddr se encontra, que é Garðaríki – em S, o reino é Húnaland. Jólfr leva o Homem-Casca ao salão do rei Herrauðr, e dá-se início o processo de rebaixamento de Oddr:

- “Eu me chamo o Homem-Casca”, disse Oddr - “Quem é você, companheiro?” Disse o rei. - “Isto eu sei, disse ele, “Eu sou mais velho que qualquer coisa que você possa pensar, mas não tenho esperteza nem memória em minha cabeça. O que pede sempre quer escolher. Eu te peço, rei, abrigo pelo inverno”. O rei respondeu: “Você é hábil em algo?” - “Longe disso”, ele respondeu, “eu sou mais atrapalhado que qualquer outro homem”. - “Você é disposto a fazer qualquer coisa?” Disse o rei. - “Eu não sei como trabalhar, e sou muito preguiçoso para trabalhar”, ele disse. - “Isto não parece promissor”, disse o rei, “pois eu fiz um voto de só pegar homens hábeis”. - “Nada que eu fizer será do menor uso para qualquer um”, disse o Homem-casca. - “Você deve saber como coletar a caça, se outros atirarem”, disse o rei. “Talvez eu vá [caçar] alguma vez”. - “Onde devo me assentar?” Disse o Homem-casca. - “Deves se assentar no banco baixo perto da porta, entre os escravos e os homens livres”.577

577 Trecho de difícil versão por conter ditados e expressões idiomáticas. Segue a redação A/B, ed. Guðni Jónsson / Carl Rafn: "Ek heiti Næframaðr," sagði hann. " Hverr ertu, félagi?" sagði konungr. "Þat veit ek," sagði hann, "at ek em hvívetna eldri, ok er hvárki vitit né minnit heima hjá mér, ok hefik lengi legit úti á mörkum nær alla ævi mína. En bráð eru brautingja erendi, konungr, ek vil biðja þik vetrvistar." Konungr svarar: "Ertu at nokkuru íþróttamaðr?" "Þat ferr fjarri," sagði hann, "því at ek em óliprari en aðrir menn." "Nennir þú nokkuru?" sagði konungr. "Ek kann ekki at vinna, enda nenni ek ekki at vinna," sagði Næframaðr. 283

Não há razão aparente para Oddr responder como responde às questões; pede abrigo, mas a cada questão efetuada pelo rei, responde de forma negativa. O ato possui características de rito, de interpretação - é um esvaziamento total. Ele é velho, mas não sabe de nada; pede ajuda, mas não sabe fazer nada; quer trabalho, mas tem preguiça de trabalhar. Por fim, o rei coloca-o em uma posição liminar em todos os aspectos; Oddr deve assentar-se “entre os escravos e os homens livres”, não sendo enquadrado em nenhuma categoria, e “perto da porta”. Ora, como já discutido a pouco, portas, assim como fronteiras, são espaços liminares por excelência. Oddr é convidado pelos irmãos Óttar e Ingjaldr a sentar-se entre eles. Perguntam-lhe sobre outros países, reclamam de sua bolsa (que contém a aljava das flechas); por fim, oferecem dinheiro e roupas novas para que ele tire a casca. Sua resposta é sugestiva e simbólica: “eu não posso fazê-lo”, ele disse. “eu nunca vesti outras roupas, e enquanto viver, nunca o farei”. O Homem-casca nunca o fez e nunca o fará. Assim que trocá-las, ele deixará de sê-lo. Através dos dois irmãos, desajeitados e desprovidos de habilidades, Oddr passará por várias provas: de caçada (25), de arco-e-flecha (26), de natação – sempre coberto de casca - e, finalmente, de bebida – este último, entremeado com o compor poemas (27) – o competidor esvazia um chifre cheio de bebida e profere um poema. Supera aos dois melhores homens do rei, Sigurðr e Sjolfr, que também aspiram pela mão de Silkisif. Após cada prova, há uma breve troca de perguntas com o rei, por meio das quais o Homem-casca vai cedendo seu lugar a Oddr, “aquele que esteve em Bjarmaland”: Após a caça: O rei olhou para ele e disse: “És um grande arqueiro”. “Sim, senhor”, disse ele. “Porque estou acostumado a atirar em pássaros e animais para me alimentar”578

"Þá horfir allóvænt" sagði konungr, "fyrir því at ek hefi þess heit strengt at taka við þeim einum mönnum, at þeir sé at nokkuru íþróttamenn." "Aldri kann ek einn hlut at gera," sagði Næframaðr, "þann öðrum sé gagn at." "Kunna muntu at draga saman dýr, ef menn skjóta," sagði konungr. "Þá má vera, at ek fara til þess eitthvert sinn." "Hvar vísar þú mér til sætis?" sagði Næframaðr. "Þú skalt sitja utar inum óæðra megin, þar sem mætast þrælar ok frelsingjar." (OS, 24) 578 Konungr leit við honum ok mælti: "Bogmaðr ertu mikill." "Já, herra," sagði hann, "því hefi ek helzt vanizt at skjóta dýr ok fugla til matar mér." (OS, 25). 284

Após as flechas: “O primeiro tiro pode ter sido bom”, disse o rei, “mas este é muito melhor. Eu lhes digo, nunca vi um tiro como este.”579

Após a natação (Oddr nada com as cascas, mas prevalece sobre os demais): E agora o rei inquiriu: “E não é que não há outro esportista igual em tiro e natação?” “Viste todas as habilidades que tenho”, disse o Homem-casca. “Me chamo Oddr, se você quiser saber, mas eu não posso lhe falar nada sobre a minha família”580.

Finalmente, na competição de poemas Oddr conta todas suas aventuras até então. Na manhã seguinte está a lavar-se, e a casca em suas mangas apresenta-se gasta, deixando antever uma veste vermelha por baixo. Os irmãos tiram-na, mas Oddr não reclama, e levam a Oddr até o assento do rei, dizendo: “Parece que nós não temos apreciado totalmente quem nós entretemos neste inverno581”.

“Assim me parece”, disse o rei. “Mas quem é este homem que tem escondido sua identidade de nós?” “Eu ainda me chamo Oddr, como lhe disse um tempo atrás, filho de Grim Bochechas-Peludas de Hrafnista, no norte da Noruega”. “É você o Oddr que foi para Bjarmaland tempo atrás?” “Sou eu o homem que foi para lá”582 (itálico nosso)

A prova e as recompensas finais de conclusão desse processo ritual dar-se-ão nos capítulos seguintes, 28 e 29, nos quais Oddr parte para Bjalkaland, coletar impostos. Em caso de vitória, receberia a mão de Silkifif. A narrativa que se segue retoma temas elaborados na viagem à Bjarmaland e por vezes reproduzidos em pontos isolados da narração. Bjalkaland significa “terra das peles”. Seu governante, Álfr Bjálki, segundo S pagava tributo ao rei de Húnaland. Poderoso feiticeiro, Álfr Bjálki só pôde ser vencido com as flechas de pedra de

579 "Svá vel sem skotit var it fyrra sinn," segir konungr, "þá er nú miklu betr skotit, ok þat má ek segja, at aldrigi hefi ek sét jafnvel skotit." (OS, 26). 580 Ok nú spyrr konungr: "Hvárt ertu ekki öðrum mönnum líkr um íþróttir, bæði um skot ok sund?" "Sénar eru nú allar mínar íþróttir, er þessar eru," sagði Næframaðr; "ek heiti Oddr, ef þú vilt þat vita, en ek kann eigi greina fyrir þér um kyn mitt." (OS, 26). 581 “Þat ætlum vér, at vér vitum eigi allgerla, hvern vér höfum hér í fóstri haft” (OS, 27) 582 "Svá má vera," sagði konungr, "eða hverr er þessi maðr, er svá hefir dulizt fyrir oss?" "Nú heiti ek Oddr, sem ek sagða yðr fyrir löngu, sonr Gríms loðinkinna norðan ór Noregi." "Ertu eigi sá Oddr, er fór til Bjarmalands fyrir löngu?" "Sá er maðrinn, er þar hefir komit." (OS, 27) 285

Jölfr, que desaparecem após serem usadas. As dádivas de Gusir não foram capazes de vencê-lo, e desaparecem igualmente. Resta a Oddr derrotar a feiticeira que, de forma semelhante a Ogmunðr no capítulo seguinte atira flechas por todos os seus dedos. Seu templo é queimado e ela é morta com uma clava por Oddr. Oddr retorna para “Grikkjaríki” – claramente, um erro do redator, já que anteriormente é citada Garðaríki, assim como no capítulo 32, por ocasião da morte de Oddr. Em S, como já afirmamos, em ambas ocasiões o reino é Húnaland. Finalmente, ele ascende a uma posição maior do que a que possuía anteriormente: o rei Herrauðr falece e que sobe ao trono em seu lugar é o próprio Oddr. Já falamos sobre Ogmunðr nas seções anteriores, e aqui cabe o encerramento de sua participação no enredo. No capítulo conseguinte à subida de Oddr ao trono, ambos travam sua última batalha. Ogmunðr – agora chamado Kvillanus, e governante em Novgorod, reúne todos os reis de Austrvegr, em uma lista muito detalhada que inclui “Kirjálalandi, Rafestalandi, Refalandi, Virlandi, Eistlandi, Líflandi, Vitlandi, Cúrlandi, Lánlandi, Ermlandi”, e “Púlinalandi”583. Após grande mortandade ambos sobrevivem, e Ogmunðr foge. Não se passa muito tempo, no entanto, antes de que ambos sejam reconciliados:

Algum tempo depois Kvillanus mandou presentes caros para Odd, ouro e prata e muitos tesouros; e junto com tudo isto, palavras de amizade e ofertas de reconciliação. Então Oddr aceitou os presentes, pois ele era esperto o suficiente para perceber que Ogmunðr Matador- de-Eyþjof, ou Kvillanus, como ele se chamava agora, nunca poderia ser derrotado, sendo, como você pode dizer, tanto um fantasma quanto um homem. Não se sabe se eles tiveram quaisquer outros negócios futuros, então este é o fim de sua briga584.

(Ọrvar Odds Saga, Capítulo 30.Versão nossa)

O episódio de Homem-casca, encerrado com Bjalkaland espelha, portanto, o ocorrido na primeira iniciação de Oddr em Bjarmaland; todo o processo da narrativa aponta para um inequívoco rito de passagem de elevação de status, que completa a trajetória de Oddr e que resumimos na seguinte tabela:

583 Ver capítulo 03, páginas 173s. 584 Nokkurum tíma síðar sendir Kvillánus Oddi gjafir miklar bæði í gulli ok silfri ok marga góða gripi ok þar með vináttumál ok sættarboð. Þá Oddr þessar gjafir, því at hann fyrirstóð af sinni vizku, at Ögmundr Eyþjófsbani, sem þá nefndist Kvillánus, var ósigranligr, því at hann mátti eigi síðr kallast andi en maðr. Ok er eigi getit, at þeir hafi síðan nokkura hluti við átzt, ok lauk svá þeira skiptum. (OS, 30). 286

Bjarmaland O Homem-Casca/ Bjalkaland Tipo de rito Iniciação/ maturidade Aumento de status Flechas Dádivas de Gusir Flechas de pedra de Jólfr Status alcançado Viking Rei em Garðaríki Marcas posteriores Apelido; camisa Consortes Olvor, da Irlanda (12); Silkisif Hildigunn, a giganta. Papel de Ogmunðr Criado como nêmesis; Última batalha e desistência / (Apenas em A/B) precipitador da segunda apaziguamento iniciação Tabela 09: Paralelos das duas iniciações de Ọrvar-Oddr

5.3 As iniciações e o leste

Da análise dos episódios de iniciações e ritos de passagem pelos quais Oddr passa, chegamos à conclusão que o leste assume, em adição ao sentido de provedor de cenário e ambiente, a conotação de região limítrofe, liminar. De fato, o papel de Bjarmaland nesse sentido foi bem discutido e argumentado; a região incorpora uma gama considerável de imaginários que perpassa a mera dimensão das Fornaldarsögur, assumindo conotações limítrofes como religioso, o fantástico, o mítico e o desconhecido. Bjarmaland torna-se uma materialização, um lugar atingível do que se discute no campo do mito. O acréscimo inovador das Fornaldarsögur, das quais empregamos a Ọrvar-Odds Saga enquanto recorte exemplar, é a assimilação de tal sentido de Bjarmaland ao leste enquanto um todo, particularmente a Austrvegr e Garðaríki. Antevêem-se elementos dessa derivação e conotação em passagens como as discutidas na Gylfaginning, mas em contraposição a esta referência isolada em meio a um meio acadêmico evemerizado e ocidentalizado, as Fornaldarsögur nos oferecem este imaginário constante, reapropriado e amplificado. Esta reapropriação do material mítico não é feita com intuitos de instrução, ou da elaboração acadêmica geográfica das regiões de além. É um emprego de simbolismo e de conceitos presentes no imaginário coletivo empregados agora enquanto elementos de uma narratica cujo o propósito primário é o entreter ao invés do educar. 287

Concluímos nossos panoramas, portanto, com esta nova dimensão do qual o leste se reveste e que espelha uma situação que revela o próprio movimento intelectual e mental dos séculos XIII e XIV na Escandinávia, num sentido de bifurcação das formas literárias entre o factio e o fictio, entre o educativo e instruidor, e o fantástico, maravilhoso e voltado ao entretenimento e à diversão.

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6. CONCLUSÕES

O leste é apropriado de forma específica pelos historiadores e autores escandinavos dos séculos XIII e XIV. O modo de abordagem a ele é condicionado não tanto pela tradição e acúmulo de conhecimento propriamento escandinavos quanto pelo emprego de um conhecimento cristianizado e livresco mais geral ao Ocidente Medieval. Snorri – ou a tradição histórica islandesa que está por trás da Heimskringla e da Edda Menor - e Saxo Grammaticus divergem em suas formas de emprego do leste. São similares no uso de explicações evemeristas com intuito de conectar o passado mais antigo aos tempos próximos de si mesmo, mas diferem no conhecimento e conteúdos específicos veiculados em suas obras. Nesse aspecto, ambos têm em comum o expediente de dar primazia ao conhecimento bíblico e clássico. Snorri (ou seus interpoladores), a despeito de tão “purista” e nativo na forma que veicula informação da mitologia escandinava e das formas poéticas antigas, ao tratar do leste emprega uma tradição bastante alheia ao conhecimento escandinavo de leste. Se o tenta fazê-lo, o faz de forma tímida na Heimskringla – se é que foi o seu autor. O prólogo da Edda – ou os prólogos da Edda, dadas as diferenças dos manuscritos - adotam de forma muito completa as elaborações histórico-geográficas de autores do Ocidente Medieval como a visão tripartida, por vezes zonal, de mundo, a genealogia e divisão das terras segundo os filhos de Noé e uma linhagem descendente dos reis de Troia. O conhecimento específico e altamente detalhado das terras de leste que transparece nas estelas rúnicas, nas Fornaldarsögur, na Gesta Danorum e parcialmente na Heimskringla não tem lugar nesta elaboração histórica da Edda. Podemos associar o Mappamundi islandês a esta corrente de formulação ideológica, por carecer igualmente da especificidade das terras do Báltico, e abundar na transcrição de informação bíblica e greco-romana. Diferentemente, Saxo Grammaticus, apesar de recorrer à interpretação evemerista, é muito mais preciso na veiculação de informação do leste. Essa é compatível com localidades descritas na Fornaldarsögur e nas estelas Rúnicas. Apesar da suposta deturpação que Saxo Grammaticus efetua dos mitos escandinavos, ao tratar de geografia sua precisão – e podemos acrescentar, fidelidade ao seu tempo – é notória. 289

As descrições e narrativas das populações de leste são com frequência precisas; com maior regularidade ainda, fantasiosas e propagadoras de estereótipos encontrados na literatura de entretenimento, mas, ainda assim, precisas. A diferenças de contexto político na Islândia e Dinamarca são elucidativas para a compreensão do uso do leste. No caso Islandês, Austrvegr e Garðaríki são locais por demais distantes para serem inseridos na literatura séria ou mesmo na produção histórica. Pode-se dizer que são relativamente desconhecidos, quiçá insignificantes. Em particular, em uma Islândia sem projetos de expansão territorial ou centralização de poder. A ideologia islandesa sobre o leste vai conectar seu passado à distante temporalidade greco-romana. A distância temporal parece refletir a distância geográfica; o passado é, de certa forma, antiquário, e o máximo ao que o mesmo pode se prestar é na criação de histórias de origem vinculadas à realeza norueguesa - tópico inflamado na Islândia de então. O caso danês é totalmente distinto. O Báltico é o seu mar, o seu mundo. O leste, sua principal área de expansão e hegemonia. Seus povos, bastante conhecidos; as interações com os mesmos, frequentes. Os projetos ideológicos aqui são claros, e advogam a hegemonia da Dinamarca pelo Báltico. Os adversários dos daneses nesta empreitada, os germânicos – em Saxo, “saxões”, não são por acaso os antagonistas pela maior parte da obra. Destarte, o conhecimento de leste aqui transparece uma ideologia hegemônica e mesmo de criação nacional. A comparação com o império de Hermanarico, governante sobre miríades de povos do leste, não é fortuita. O leste, na contrução histórica islandesa e danesa, possui dimensão eminentemente ideológica, mas reflete as peculiaridades locais e o próprio nível do conhecimento regional sobre as regiões de oriente. Em alguns casos, é efetuada a substituição do conhecimento empírico e de primeira mão por um saber do medievo ocidental, calcado nas tradições bíblicas e greco-romanas. Tal circunstância não é surpreendente per si. Os moldes de construção histórica veiculados por Snorri e Saxo pouco têm de nativos. São formas importadas de um Ocidente Medieval genérico, carregando consigo conteúdo específico em adição à simples ideologias. Em relação às Fornaldarsögur, mais especificamente a Ọrvar-Odds Saga, demonstramos que o leste apresenta-se como região liminar, além de propiciar o 290 ambiente da narrativa. A terra de Bjarmaland incorpora imaginário difundido que a liga ao fantástico e o desconhecido, e as Fornaldarsögur transferem parte dessa construção para o leste como um todo, mais especificamente Austrvegr e Garðaríki. As regiões de leste adquirem o aspecto de materialização das regiões do imaginário. Há intersecções na veiculação de informação a leste entre os grupos de fontes estudados, principalmente entre a Gesta Danorum e as Fornaldarsögur. O que difere em ambas são os propósitos de seus autores, que gradualmente bifurcam-se entre a instrução e o entreter. Nota-se também que na produção escrita cujos propósitos são mais declaradamente de instrução o emprego de conceitos de leste da tradição Medieval Ocidental, Bíblica e Clássica ultrapassam as elaborações de cunho mais nativo, diferentemente do que se dá nas Fornaldarsögur que, se por um lado inserem muitas construções do medievo ocidental, o fazem dentro de um quadro e de visões de mundo claramente nórdicas. Demonstramos no decorrer desta tese que as elaborações de leste refletem o próprio movimento intelectual ocorrido na Baixa Idade Média Escandinava, que passa por uma gradual e irreversível separação entre o conhecimento de natureza instrutiva, educacional, informativa, e a produção criada com o intuito de entreter e divertir. Iniciamos este trabalho, porém, demonstrando as implicações políticas e sociais que uma temática do medievo pode assumir nos períodos moderno e contemporâneo ao determo-nos na Controvérsia Normanista e seus desenvolvimentos em várias historiografias, mas em particular na russa e soviética. Destarte, esperamos ter contribuído à escandinavística e eslavística, bem como aos estudos medievais, com uma análise fundamentada em um espectro amplo e completo de fontes primárias. Entretanto, esperamos ter demonstrado também que o trabalho do historiador não é neutro, por mais distante temporal e geograficamente que esteja seu objeto. A história lida com o passado, mas parte do presente, atende aos anseios do presente e a ele influencia.

291

7. BIBLIOGRAFIA

7.1 Fontes primárias

7.1.1 Fontes escritas tradicionais a) Colêtaneas BECKMAN, Natanel & KÅLUND, Kristian (eds). Alfræði íslenzk II: Rímtöl. Copenhague: Møller, 1914-1916. KÅLUND, Kristian (ed). Cod. Mbr. AM 194, 8vo. In: Alfræði íslenzk I. Copenhague: Møller, 1908. ______. Landalýsingar m.fl.. In: Alfræði íslenzk III. Copenhague: Møller, 1917s. JÓNSSON, Finnur (ed.). Hauksbók. 3 vols. Copenhagen: Thieles bogtrykkeri, 1892-6. RAFN, Carl Christian (ed). Antiquités Russes d'après les monuments historique des anciens et des Islandais Scandinaves. Copenhague, 1850-1852, vol. 1. b) Por autor ou título Ahmad Ibn Rustah: IBN FADLAN. STONE & LUNDE (trad.). Ibn Fadlān and the Land of Darkness: Arab Travellers in the Far North. Penguin Books, 2012. NATIONAL GEOGRAPHIC. v.167, n03. March 1985. Annales Bertiniani. Annales Bertiniani. Hannoverae. Imprensis bibliopolii Hahniani, 1883. p.21. In: Monumenta Germaniae Historiae. Scriptores rerum Germanicarum in usum scholarum separatim editi. Disponível também em: http://www.archive.org/stream/annalesbertinian00wait#page/n3/mode/2up em 22 de fevereiro de 2012. Constantino Porfirogênito. De administrando Imperio: Obtido em: . Último acesso em 10∕10∕2012. Traduções inglesas: DMYTRYSHYN, Basil (ed). Medieval Russia: A source book, 900-1700. The Dryden Press, 1973, pp.27s. STEPHENSON, Paul. Daretis Phrygii De excidio Trioae historia MEISTER, Ferdinand (ed). Daretis Phrygii De excidio Trioae historia. Leipzig: Teubner, 1873. Edda menor: Codex Regius, facsimile: Último acesso em: 10/11/2014. PÁLSSON, Heimir (ed.). The Uppsala Edda. University College London: Viking Society for Northern Research, 2012. EEDEN, Willem van, Jr (ed). De Codex Trajectinus van de Snorra Edda. Diss. Leiden University 1913. Leiden: Eduard Ijdo, 1913. 292

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7.1.2 Cultura material – estelas rúnicas a) Varegues: U 153, U 154, U 209, U 283, U 366, U 504, U 636, U 687, U 898, Sö 33, Sö 34, Sö 92, Sö 121, Sö 126, Sö 130, Sö 148, Sö 171, Sö 216, Sö 308, Sö 338, Vs 1, Vs Fv1988;36, Ög 8, Ög 30, Vg 135, Vg 184, Vg 197, Öl 28(58), G 114, G 220, G 280, Dr 108, N 62, X UaFv1914;47

b) Gregas: U 73, U 104, U 112, U 136, U 140, U 201, U 270, U 358, U 374, U 431, U 446, U 518, U 540, U 792, U 922, U 956, U 1016, U 1087, Sö Fv1954;20; Sö 82, Sö 85, Sö 163, Sö 165, Sö 170, Sö 345, Ög 81, Ög 94, Vg 178, Sm 46, G 216. c) Bálticas: U 180, U 214, U 346, U 356, U 439, U 533, U 582, U 698, Sö 39, Sö 198, Gs 13, Vg 181, G 135, G 319. d) Lombardas: U 133, U 141, Sö Fv1954;22, Sö 65. e) Yngvarr: U 439, U 644, U 654, U 661, U 778, U 837, U 1143, U Fv1992;157, Sö 9, Sö 96, Sö 105, Sö 107, Sö 108, Sö 131, Sö 173, Sö 179, Sö 254, Sö 277, 294

Sö 279, Sö 281, Sö 287, Sö 320, Sö 335, Vs 19, Ög 145, Ög 155. f) Freygeirr: Gs 13, Dr 216, U 518, U 611, U 698, U 1158 g) Oeste: U 439, U 363, U 504, U 611, U 668, Sö 14, Sö 53, Sö 62, Sö 106, Sö 137, Sö 159, Sö 164, Sö 173, Sö 217, Sö 260, Sö 319, Ög 68, Ög 83, Ög 111, ÖG Fv1970;310, Vg 61, Vg 197, Sm 10, Sm 42, Sm 51, G 370, Dr 266, Dr 330, Dr 334, Dr 216. h) Inglesas: U 194, U 241, U 344, U 539, U 616, U 812, U 978, U 1181, Sö 46, Sö 55, Sö 83, Sö 160, Sö 166, Sö 207, Vs 5, Vs 9, Vs 18, Gs 8, Ög 104, Ög Fv1950;341, Sm 5, Sm 27, Sm 29, Sm 77, Sm 101, Sm 104, Vg 20, Vg 187, Dr 337, Dr 6, N 184. i) Jarl Haakon: U 16, U 617 e Sm 76

7.2. Referências Bibliográficas

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8. APÊNDICES

Apêndice I: Constantino Porfirogênito, “De administrando Imperio”.

9 Περὶ τῶν ἀπὸ Ῥωσίας ἐρχομένων Ῥῶς μετὰ τῶν μονοξύλων ἐν Κωνσταντινουπόλει. Ὅτι τὰ ἀπὸ τῆς ἔξω Ῥωσίας μονόξυλα κατερχόμενα ἐν Κωνσταντινουπόλει εἰσὶ μὲν ἀπὸ τοῦ Νεμογαρδάς, ἐν ᾧ Σφενδοσθλάβος, ὁ υἱὸς Ἴγγωρ, τοῦ ἄρχοντος Ῥωσίας, ἐκαθέζετο, εἰσὶ δὲ καὶ ἀπὸ τὸ κάστρον τὴν Μιλινίσκαν καὶ ἀπὸ Τελιούτζαν καὶ Τζερνιγῶγαν καὶ ἀπὸ τοῦ Βουσεγραδέ. Ταῦτα οὖν ἅπαντα διὰ τοῦ ποταμοῦ κατέρχονται Δανάπρεως, καὶ ἐπισυνάγονται εἰς τὸ κάστρον τὸ Κιοάβα, τὸ ἐπονομαζόμενον Σαμβατάς. Οἱ δὲ Σκλάβοι, οἱ πακτιῶται αὐτῶν, οἱ Κριβηταιηνοὶ λεγόμενοι, καὶ οἱ Λενζανῆνοι καὶ αἱ λοιπαὶ Σκλαβηνίαι εἰς τὰ ὄρη αὐτῶν κόπτουσι τὰ μονόξυλα ἐν τῷ τοῦ χειμῶνος καιρῷ, καὶ καταρτίσαντες αὐτά, τοῦ καιροῦ ἀνοιγομένου, ἡνίκα διαλυθῇ ὁ παγετός, εἰς τὰς πλησίον οὔσας λίμνας εἰσάγουσιν αὐτά. Καὶ ἐπειδὴ ἐκεῖναι εἰσβάλλουσιν εἰς τὸν ποταμὸν τὸν Δάναπριν, ἀπὸ τῶν ἐκεῖσε οὗτοι εἰς τὸν αὐτὸν ποταμὸν εἰσέρχονται, καὶ ἀπέρχονται εἰς τὸν Κίοβα, καὶ σύρουσιν εἰς τὴν ἐξάρτισιν, καὶ ἀπεμπολοῦσιν αὐτὰ εἰς τοὺς Ῥῶς. Οἱ δὲ Ῥῶς σκαφίδια καὶ μόνα ταῦτα ἀγοράζοντες, τὰ παλαιὰ αὐτῶν μονόξυλα καταλύοντες, ἐξ αὐτῶν βάλλουσιν πέλλας καὶ σκαρμοὺς εἰς αὐτὰ καὶ λοιπὰς χρείας *** ἐξοπλίζουσιν αὐτά. Καὶ Ἰουνίου μηνὸς διὰ τοῦ ποταμοῦ Δανάπρεως ἀποκινοῦντες, κατέρχονται εἰς τὸ Βιτετζέβη, ὅπερ ἐστὶ πακτιωτικὸν κάστρον τῶν Ῥῶς, καὶ συναθροιζόμενοι ἐκεῖσε μέχρι δύο καὶ τριῶν ἡμερῶν, ἡνίκα ἂν ἅπαντα ἀποσυναχθῶσι τὰ μονόξυλα, τότε ἀποκινοῦσιν, καὶ κατέρχονται διὰ τοῦ εἰρημένου Δανάπρεως ποταμοῦ. Καὶ πρῶτον μὲν ἔρχονται εἰς τὸν πρῶτον φραγμόν, τὸν ἐπονομαζόμενον Ἐσσουπῆ, ὃ ἑρμηνεύεται Ῥωσιστὶ καὶ Σκλαβηνιστὶ "μὴ κοιμᾶσαι"· ὁ δὲ τούτου φραγμὸς τοσοῦτόν ἐστιν στενός, ὅσον τὸ πλάτος τοῦ τζυκανιστηρίου· μέσον δὲ αὐτοῦ πέτραι εἰσὶ ῥιζιμαῖαι ὑψηλαὶ νησίων δίκην ἀποφαινόμεναι. Πρὸς αὐτὰς οὖν ἐρχόμενον τὸ ὕδωρ καὶ πλημμυροῦν κἀκεῖθεν ἀποκρημνιζόμενον πρὸς τὸ κάτω μέρος ἦχον μέγαν καὶ φόβον ἀποτελεῖ. Καὶ διὰ τοῦτο μέσον αὐτῶν οὐ τολμῶσιν οἱ Ῥῶς διελθεῖν, ἀλλὰ πλησίον σκαλώσαντες καὶ τοὺς μὲν ἀνθρώπους ἐκβαλόντες εἰς τὴν ξηράν, τὰ δὲ λοιπὰ πράγματα ἐάσαντες εἰς τὰ μονόξυλα, εἶθ' οὕτως γυμνοὶ τοῖς ποσὶν αὐτῶν ψηλαφοῦντες ***, ἵνα μή τινι λίθῳ προσκρούσωσιν. Τοῦτο δὲ ποιοῦσιν οἱ μὲν πλώρᾳ, οἱ δὲ μέσον, οἱ δὲ καὶ εἰς τὴν πρύμναν μετὰ κονταρίων κοντοβευόμενοι, καὶ μετὰ τοιαύτης ἁπάσης ἀκριβείας διέρχονται τὸν τοιοῦτον πρῶτον φραγμὸν διὰ τῆς γωνίας καὶ τῆς ὄχθης τοῦ ποταμοῦ. Ἡνίκα δὲ διέλθωσι τὸν τοιοῦτον φραγμόν, πάλιν ἀπὸ τῆς ξηρᾶς ἀναλαμβανόμενοι τοὺς λοιποὺς ἀποπλέουσι, καὶ κατέρχονται εἰς τὸν ἕτερον φραγμόν, τὸν ἐπιλεγόμενον Ῥωσιστὶ μὲν Οὐλβορσί, Σκλαβηνιστὶ δὲ Ὀστροβουνιπράχ, ὅπερ ἑρμηνεύεται "τὸ νησίον τοῦ φραγμοῦ". Ἔστιν κἀκεῖνος ὅμοιος τῷ πρώτῳ, χαλεπός τε καὶ δυσδιέξοδος. Καὶ πάλιν ἐκβαλόντες τὸν λαὸν διαβιβάζουσι τὰ μονόξυλα, καθὼς καὶ ρότερον. Ὁμοίως δὲ διέρχονται καὶ τὸν τρίτον φραγμόν, τὸν λεγόμενον Γελανδρί, ὃ ἑρμηνεύεται Σκλαβηνιστὶ "ἦχος φραγμοῦ", εἶθ' οὕτως τὸν τέταρτον φραγμόν, τὸν μέγαν, τὸν ἐπιλεγόμενον Ῥωσιστὶ μὲν Ἀειφόρ, Σκλαβηνιστὶ δὲ Νεασήτ, διότι φωλεύουσιν οἱ πελεκᾶνοι εἰς τὰ λιθάρια τοῦ φραγμοῦ. Ἐν τούτῳ οὖν τῷ φραγμῷ σκαλώνουσιν ἅπαντα εἰς τὴν γῆν ὀρθόπλωρα, καὶ ἐξέρχονται οἱ ὡρι σμένοι ἄνδρες φυλάττειν τὴν βίγλαν μετ' αὐτῶν, καὶ ἀπέρχονται, καὶ τὰς βίγλας οὗτοι διὰ τοὺς Πατζινακίτας ἀγρύπνως φυλάττουσιν. Οἱ δὲ λοιποὶ τὰ πράγματα, ἅπερ ἔχουσιν εἰς τὰ μονόξυλα, ἀναλαμβανόμενοι, τὰ ψυχάρια μετὰ τῶν ἁλύσεων διὰ τοῦ ξηροῦ αὐτὰ διαβιβάζουσι μίλια ἕξ, ἕως ἂν διέλθωσι τὸν φραγμόν. Εἶθ' οὕτως οἱ μὲν σύροντες, οἱ δὲ καὶ εἰς τοὺς ὤμους βαστάζοντες τὰ αὐτῶν μονόξυλα εἰς τὸ τοῦ φραγμοῦ ἐκεῖθεν μέρος διαβιβάζουσιν· καὶ οὕτως ῥίπτοντες αὐτὰ εἰς τὸν ποταμὸν καὶ τὰ πετζιμέντα αὐτῶν ἐμβλησκόμενοι, εἰσέρχονται, καὶ αὖθις ἐναποπλέουσιν. Ἀπερχόμενοι δὲ εἰς τὸν πέμπτον φραγμόν, τὸν ἐπονομαζόμενον Ῥωσιστὶ μὲν Βαρουφόρος, Σκλαβηνιστὶ δὲ Βουλνηπράχ, διότι μεγάλην λίμνην ἀποτελεῖ, πάλιν εἰς τὰς τοῦ ποταμοῦ γωνίας τὰ αὐτῶν μονόξυλα διαβιβάσαντες, καθὼς καὶ εἰς τὸν πρῶτον φραγμὸν καὶ δεύτερον, καταλαμβάνουσι τὸν ἕκτον φραγμόν, λεγόμενον μὲν Ῥωσιστὶ Λεάντι, Σκλαβηνιστὶ δὲ Βερούτζη, ὅ ἐστιν "βράσμα νεροῦ", καὶ διαβαίνουσι καὶ αὐτὸν ὁμοίως. Καὶ ἀπὸ τούτου ἀποπλέουσι καὶ πρὸς τὸν ἕβδομον φραγμόν, τὸν ἐπιλεγόμενον Ῥωσιστὶ μὲν Στρούκουν, Σκλαβηνιστὶ δὲ Ναπρεζή, ὃ 312

ἑρμηνεύεται "μικρὸς φραγμός". Καὶ διαβαίνουσιν εἰς τὸ λεγόμενον πέραμα τοῦ Κραρίου, ἐν ᾧ διαπερῶσιν ἀπὸ Ῥωσίας οἱ Χερσωνῖται καὶ οἱ Πατζινακῖται ἐπὶ Χερσῶνα, ἔχον τὸ αὐτὸ πέραμα τὸ μὲν πλάτος, ὅσον τοῦ ἱπποδρομίου, τὸ δὲ ὕψος ἀπὸ κάτω ἕως ὅτου προκύπτουσιν ὕφαλοι, ὅσον καὶ φθάζειν σαγίτταν τοῦ τοξεύοντος ἔνθεν ἐκεῖσε. Ὅθεν καὶ εἰς τὸν τοιοῦτον τόπον κατέρχονται οἱ Πατζινακῖται, καὶ πολεμοῦσι τοὺς Ῥῶς. Μετὰ δὲ τὸ διελθεῖν τὸν τοιοῦτον τόπον τὴν νῆσον, τὴν ἐπιλεγομένην ὁ Ἅγιος Γρηγόριος καταλαμβάνουσιν, ἐν ᾗ νήσῳ καὶ τὰς θυσίας αὐτῶν ἐπιτελοῦσιν διὰ τὸ ἐκεῖσε ἵστασθαι παμμεγέθη δρῦν, καὶ θύουσι πετεινοὺς ζῶντας. Πηγνύουσι δὲ καὶ σαγίττας γυρόθεν, ἄλλοι δὲ καὶ ψωμία καὶ κρέατα, καὶ ἐξ ὧν ἔχει ἕκαστος, ὡς τὸ ἔθος αὐτῶν ἐπικρατεῖ. Ῥίπτουσι δὲ καὶ σκαρφία περὶ τῶν πετεινῶν, εἴτε σφάξαι αὐτούς, εἴτε καὶ φαγεῖν, εἴτε καὶ ζῶντας ἐάσειν αὐτούς. Ἀπὸ δὲ τοῦ νησίου τούτου Πατζινακίτην οἱ Ῥῶς οὐ φοβοῦνται, ἕως ἂν φθάσωσιν εἰς τὸν ποταμὸν τὸν Σελινάν. Εἶθ' οὕτως ἀποκινοῦντες ἐξ αὐτοῦ μέχρι τεσσάρων ἡμερῶν ἀποπλέουσιν, ἕως οὗ καταλάβωσιν εἰς τὴν λίμνην τοῦ ποταμοῦ στόμιον οὖσαν, ἐν ᾗ ἐστιν καὶ ἡ νῆσος τοῦ Ἁγίου Αἰθερίου. Καταλαβόντες οὖν οὗτοι τὴν τοιαύτην νῆσον, προσαναπαύουσιν ἑαυτοὺς ἐκεῖσε ἕως δύο καὶ τριῶν ἡμερῶν. Καὶ πάλιν τὰ αὐτῶν μονόξυλα, εἰς ὅσας ἂν λίπωνται χρείας, περιποιοῦνται, τά τε ἄρμενα καὶ τὰ κατάρτια καὶ τὰ αὐχένια, ἅπερ ἐπιφέρονται. Ἐπεὶ δὲ τὸ στόμιον τοῦ τοιούτου ποταμοῦ ἐστιν ἡ τοιαύτη λίμνη, καθὼς εἴρηται, καὶ κρατεῖ μέχρι τῆς θαλάσσης, καὶ πρὸς τὴν θάλασσαν κεῖται ἡ νῆσος τοῦ Ἁγίου Αἰθερίου, ἐκ τῶν ἐκεῖσε ἀπέρχονται πρὸς τὸν Δάναστριν ποταμόν, καὶ διασωθέντες ἐκεῖσε πάλιν ἀναπαύονται. Ἡνίκα δὲ γένηται καιρὸς ἐπιτήδειος, ἀποσκαλώσαντες ἔρχονται εἰς τὸν ποταμὸν τὸν ἐπιλεγόμενον Ἄσπρον, καὶ ὁμοίως κἀκεῖσε ἀναπαυσάμενοι, πάλιν ἀποκινοῦντες ἔρχονται εἰς τὸν Σελινάν, εἰς τὸ τοῦ Δανουβίου ποταμοῦ λεγόμενον παρακλάδιον. Καὶ ἕως οὗ διέλθωσι τὸν Σελινὰν ποταμόν, παρατρέχουσιν αὐτοῖς οἱ Πατζινακῖται. Καὶ ἐὰν πολλάκις ἡ θάλασσα μονόξυλον εἰς τὴν γῆν ἀπορρίψῃ, σκαλώνουσιν ὅλα, ἵνα τοῖς Πατζινακίταις ἀντιπαραταχθῶσιν ὁμοῦ. Ἀπὸ δὲ τὸν Σελινὰν οὐ φοβοῦνταί τινα, ἀλλὰ τὴν τῆς Βουλγαρίας γῆν ἐνδυσάμενοι, εἰς τὸ τοῦ Δανουβίου στόμιον ἔρχονται. Ἀπὸ δὲ τοῦ Δανουβίου καταλαμβάνουσιν εἰς τὸν Κωνοπάν, καὶ ἀπὸ τοῦ Κωνοπᾶ εἰς Κωνστάντιαν *** εἰς τὸν ποταμὸν Βάρνας, καὶ ἀπὸ Βάρνας ἔρχονται εἰς τὸν ποταμὸν τὴν Διτζίναν, ἅπερ πάντα εἰσὶ γῆ τῆς Βουλγαρίας. Ἀπὸ δὲ τῆς Διτζίνας εἰς τὰ τῆς Μεσημβρίας μέρη καταλαμβάνουσιν, καὶ οὕτως μέχρι τούτων ὁ πολυώδυνος αὐτῶν καὶ περίφοβος, δυσδιέξοδός τε καὶ χαλεπὸς ἀποπεραίνεται πλοῦς. Ἡ δὲ χειμέριος τῶν αὐτῶν Ῥῶς καὶ σκληρὰ διαγωγή ἐστιν αὕτη. Ἡνίκα ὁ Νοέμβριος μὴν εἰσέλθῃ, εὐθέως οἱ αὐτῶν ἐξέρχονται ἄρχοντες μετὰ πάντων τῶν Ῥῶς ἀπὸ τὸν Κίαβον, καὶ ἀπέρχονται εἰς τὰ πολύδια, ὃ λέγεται γύρα, ἤγουν εἰς τὰς Σκλαβηνίας τῶν τε Βερβιάνων καὶ τῶν Δρουγουβιτῶν καὶ Κριβιτζῶν καὶ τῶν Σεβερίων καὶ λοιπῶν Σκλάβων, οἵτινές εἰσιν πακτιῶται τῶν Ῥῶς. Δι' ὅλου δὲ τοῦ χειμῶνος ἐκεῖσε διατρεφόμενοι, πάλιν ἀπὸ μηνὸς Ἀπριλίου, διαλυομένου τοῦ πάγους τοῦ Δανάπρεως ποταμοῦ, κατέρχονται πρὸς τὸν Κίαβον.Καὶ εἶθ' οὕτως ἀπολαμβάνονται τὰ αὐτῶν μονόξυλα, καθὼς προείρηται, καὶ ἐξοπλίζονται, καὶ πρὸς Ῥωμανίαν κατέρχονται. Ὅτι οἱ Οὖζοι δύνανται τοῖς Πατζινακίταις πολεμεῖν.

Obtido em: . Último acesso em 10∕10∕2012.

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Apêndice II: Tabela de transliteração do Russo empregada pelo DLO (Departamento de Letras Orientais) da Universidade de São Paulo:

Alfabeto Transcrição para Registro Adaptação Fonética Cirílico Catalográfico ou Linguístico para Nomes Próprios А A A Б B B В V V Г G G, Gu antes de e, i Д D D Е E E, Ié Ё Io Io Ж J J З Z Z И I I Й I I К K K Л L L М M M Н N N О O O П P P Р R R С S S, SS (intervocálico) Т T T У U U Ф F F Х Kh Kh Ц Ts Ts Ч Tch Tch Ш Ch Ch Щ Chtch Chtch, sch (como em Ъ ́ ́ “Tatíschev”) Ы Y (omitido) Ь ́ Y Э É (omitido) Ю Iu É Я Ia Iu Ia