UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS CAMPUS DO SERTÃO CURSO DE LICENCIATURA EM PEDAGOGIA

NATÁLIA BARBOSA DA SILVA

A ESCOLA EM “RITMO E POESIA”: UMA ANÁLISE DO RAP “ESTUDO ERRADO” DO RAPPER GABRIEL “O PENSADOR”

DELMIRO GOUVEIA-AL 2019

NATÁLIA BARBOSA DA SILVA

A ESCOLA EM “RITMO E POESIA”: UMA ANÁLISE DO RAP “ESTUDO ERRADO” DO RAPPER GABRIEL “O PENSADOR”

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Pedagogia da Universidade Federal de Alagoas – Campus do Sertão como parte dos requisitos para a obtenção do título de Graduada em Pedagogia.

Orientadora: Profa. Ma. Beatriz Araújo da Silva

DELMIRO GOUVEIA-AL 2019

Dedico esse trabalho a minha mãe Maria Lúcia Barbosa da Silva, por ser a melhor mãe que alguém pode ter, por sempre estar lá para mim, acreditar na minha capacidade, me incentivar, apoiar e por ser a bússola que me guia na direção certa.

AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente a Deus e aos espíritos de luz por me darem força e me guiarem nessa caminhada. À minha família por sempre me apoiar e incentivar, em especial aos meus pais, as minhas irmãs Aline e Gabriela, a minha avó Severina e as minhas tias Marli e Zilda, vocês não tem ideia do quanto são importantes para mim. Eu amo vocês. Às minhas colegas do GLEI (Grupo de Leitura em Estudos da Infância) Ana Paula, Claudiana, Geovania, Alana, Thaís, Lisa e Tainara, projeto de extensão do qual fui colaboradora durante mais de um ano, a coordenadora e professora Suzana Libardi por ter me aceitado no grupo, pela aprendizagem e companheirismo durante esse tempo, meu muito obrigada! À minha turma de pedagogia 2014.2 que adotou o lema “PEDAGOGIA TAMBÉM É DIFÍCIL”, vocês fazem parte da minha história guardarei a todos no meu coração, sentirei falta imensamente dos nossos cafés da manhã. Ao meu grupo de trabalhos e amigas Rita, Patrícia, Claudiana e Maria Saúde, estivemos fazendo trabalhos desde o 1° período juntas, vocês são muito especiais para mim meninas. Ao Centro Acadêmico de Pedagogia Nísia Floresta, do qual fui membro durante um ano, e as minhas colegas do CAPED, pelo aprendizado durante esse período e pela oportunidade de representar os demais discentes do curso e poder fazer parte do movimento estudantil, entendo sua importância tanto dentro da Universidade quanto fora dela. A todos os professores da Universidade Federal de Alagoas, Campus do Sertão que me ensinaram muito mais que conteúdos curriculares, mas me auxiliaram a enxergar o mundo com outros olhares, possibilitando que eu me construísse e descontruísse enquanto pessoa e profissional. Em especial à Laíse Soares, Eva Pauliana, Ana Rosa, Ana Cristina, Maria Aparecida, Adriana Deodato, Ivamilson Barbalho, Marcos Paulo, Givanildo Silva e Rodrigo Pereira. À Lilian Bárbara com quem dei os primeiros passos para a realização deste trabalho. E por ter me indicado a Bia para orientação. Às minhas BFF‟s (Best Friends Forever) Maria Jussara (Sara) e Maria Jucimara (Mara) por estarem sempre me ajudando em todos os momentos, pelas risadas e choros, cafés da manhã, dias assistindo Netflix e computadores emprestados. Obrigada meninas pela amizade, vocês são incríveis!

À Profa. Ma. Beatriz Araújo da Silva, orientadora deste trabalho sem a qual não seria possível realizá-lo, minha gratidão pela paciência, orientação, compromisso, competência, respeito e amizade, por ser além de uma orientadora alguém com quem poderia conversar. Bia você é maravilhosa. À Banca Examinadora deste trabalho por terem aceitado o convite para compor a mesma, pelas colocações e contribuições feitas e que só vieram a somatiza-lo e enriquece-lo, fiquei extremamente feliz por vocês serem os examinadores. A todos que direta ou indiretamente contribuíram para este trabalho e a tudo que me fez desviar do caminho, o que só me deu mais força para prosseguir.

A época em que vivemos é uma época de tramas, de redes, e não de fios. Na atualidade não existem receitas demarcadas ou lineares para educar, em nenhuma área do conhecimento e muito menos na arte. A música, como a maior parte das disciplinas, deve ser ensinada por maneiras diretas, abertas, transversais e interdisciplinares, que permitam integrar os diferentes aspectos da pessoa, do mundo, do conhecimento, Porque a música, como costumamos repetir, não pode continuar sendo considerada como uma atividade de caráter meramente estético, pois trata-se de uma experiência multidimensional, um direito humano, que deveria estar ao alcance de todas as pessoas, a partir de seu nascimento, e por toda a vida.

Violeta Hemsy de Gainza Buenos Aires, abril de 2008. Em apresentação do livro “Tramas e Fios: Um ensaio sobre música e educação.”

RESUMO

Este trabalho tem como objetivo principal compreender como a música, em especial o Rap pode ser utilizado como elemento de discussões educacionais e auxiliar na aprendizagem. Para tanto discorrermos a cerca da interdisciplinaridade como um meio pelo qual a música pode ser utilizada dentro da sala de aula. Os objetivos específicos foram: discutir o papel da música como elemento educativo para a formação de pessoas críticas e reflexivas, analisar o Rap “Estudo Errado” do rapper Gabriel o pensador, identificar os elementos do Rap e sua importância na formação de identidades. A pesquisa de cunho qualitativo consiste na análise do Rap “Estudo Errado” lançado no ano de 1995 pelo rapper Gabriel o pensador. Para a análise do Rap utilizados os estudos de Merriam (1964) e Gil (2002). O referencial teórico conta ainda com os estudos de Brandão (2007), Silva (1999), Saviani (1999), Foucault (1996), entre outros. A partir da análise foi possível perceber como por meio do Rap é possível dialogar a educação, entendendo sua função social crítica e reflexiva podemos afirmar que o rap também constrói educação.

Palavras-chave: Educação. Interdisciplinaridade. Música. Rap. Sociedade.

ABSTRACT This work aims to understand how music, especially Rap can be used as an element of educational discussions and help in learning. In order to do so, we must deal with interdisciplinarity as a means by which music can be used within the classroom. The specific objectives were: to discuss the role of music as an educational element for the formation of critical and reflective people, to analyze Rap Rap's "Study Wrong" rapist Gabriel the thinker, Identify the elements of Rap and their importance in the formation of identities. The qualitative research consists of the analysis of Rap "Study Wrong" released in the year 1995 by rapper Gabriel the thinker. For the analysis of Rap used the studies of Merriam (1964) and Gil (2002). The theoretical reference also counts on the studies of Brandão (2007), Silva (1999), Saviani (1999), Foucault (1996), among others. From the analysis it was possible to perceive how through Rap it is possible to dialogue education, I understand its critical and reflexive social function we can affirm that rap also builds education.

Keywords: Education. Interdisciplinarity. Music. Rap music. Society.

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO...... 13 2 PARCERIA ENTRE ESCOLA E MÚSICA: DOS CAMINHOS, ÁS POSSIBILIDADES...... 16 2.1 O olhar interdisciplinar da música no âmbito educacional...... 21 2.2 Diálogos entre música, educação e escolarização...... 27 3 A COMPOSIÇÃO DO RAP NA HISTÓRIA...... 31 3.1 Rap, educação e sociedade: diálogos e denúncias...... 33 3.2 O Rap na escola, o Rap faz escola: discutindo música educação e escolarização...... 38 3.3 Entre discotecagens e conhecimentos: o Rap como suporte pedagógico para discutir educação e escolarização...... 41 4 SOLTANDO O SOM E O VERBO: UMA ANÁLISE DO RAP “ESTUDO ERRADO”, DO RAPPER GABRIEL “O PENSADOR”...... 44 4.1Metodologia...... 44 4.2 Caracterização da pesquisa...... 44 4.3 Instrumentos de análise...... 45 4.4 É possível pensar a escola através da música “Estudo Errado” do rapper Gabriel, O Pensador? ...... 45 ENCERRRANDO A BATIDA OU CONSIDERAÇÕES FINAIS...... 56 REFERÊNCIAS...... 58

13

1 INTRODUÇÃO

Dialogar Rap1 e educação, por muitas vezes, possibilitam reflexões tanto em relação ao estilo musical mencionado, quanto a problematização acerca de sua função social dentro da sociedade. Compreende-lo enquanto elemento agregador ao ensino/aprendizagem é permitir que estes se deem por um caminho diferenciado, mas não menos significativo. Entendendo que a educação não acontece somente no ambiente escolar, mas também em outras instâncias. O Rap está inserido na escola e também nesses espaços, ainda que ele não seja utilizado como aporte metodológico dentro da sala de aula, ele está presente através daqueles sujeitos que estão dentro da escola se identificam com esse gênero musical e fazem uso deste, seja com qual função for. O interesse pelo estudo dessa temática surge tendo como base esse aspecto, da presença da música nos mais variados espaços ainda que não se perceba, o Rap é escolhido entre tantos os gêneros musicais em razão de todos os aspectos presentes no mesmo, bem como de uma afinidade pessoal com o ritmo. A escolha deste Rap dentro tantos outros, em específico, parte do princípio de que este trata diretamente de temas referentes a educação, discorrendo acerca de seus elementos centrais (o ensino, a aprendizagem, os métodos, o conteúdo, o processo avaliativo, o/a aluno/a e o professor/a), outra razão que justifica a escolha do Rap Estudo Errado para análise é que este, mesmo sendo lançado a mais de duas décadas aborda temas ainda tão atuais que é como se a música tivesse sido lançada recentemente, pois ainda nos deparamos com as mesmas problemáticas expostas neste Rap. Sendo assim adotamos como problema de pesquisa o seguinte questionamento: Como o Rap Estudo Errado do rapper Gabriel o pensador pode contribuir para (RE) pensar o espaço escolar? A partir dessa pergunta o Rap é tomada para análise. Desta forma, nossa intenção é apresentar, de maneira a contribuir com a discussão acerca da educação, intermediando o Rap como aporte metodológico somatório, entendendo sua função e criticidade, além de refletir e apresentar outro prisma de um estilo musical ainda marginalizado na sociedade, apresentando-o como suporte também pedagógico, mostrando que o Rap discute a educação e a esta também pode ser dialogada por meio do Rap. Para isso, utilizamos a música do rapper Gabriel o pensador como componente articulador junto a educação escolar, as formas como esta acontece e tudo aquilo com que se

1 O Rap é um gênero musical que possui uma variedade de estilos. Dentre eles há o Rap romântico, gospel, político, gangster Rap, Rap for fun, Rap uder ground. O estilo de Rap que discutimos neste trabalho é aquele que possui suas raízes fixas no movimento hip-hop, que tem como base a luta contra-hegemônica e a transmissão de mensagens de positividade (LOUREIRO, 2015). Para maiores informações ver: https:youtu.be/ULCeh6bpUnk.

14

relaciona. Temos por objetivo geral compreender como a música em especial o Rap pode ser utilizado como elemento de discussões educacionais e auxiliar na aprendizagem. Já os objetivos específicos correspondem a; discutir o papel da música na formação de pessoas críticas e reflexivas; analisar o Rap Estudo errado2 do rapper Gabriel o pensador, e identificar os elementos presentes no Rap e sua importância na formação de identidades. Deste modo será dado destaque a interdisciplinaridade como um possível trajeto para a introdução da música enquanto prática pedagógica, entendendo que essa perspectiva permite uma maior abertura para que esta seja ponte dialógica entre as disciplinas. Desse modo é interessante debater sobre os conhecimentos adquiridos com o uso da música como metodologia educativa, com foco no gênero musical Rap, compreendendo sua gênese, arcabouço cultural, social e educacional. Em razão disso, discorremos sobre o Rap enquanto subsídio contributivo a uma educação que vise formar sujeitos que pensem “fora da caixinha”3, devido suas origens enquanto discurso de protesto e exteriorização de uma realidade marcada por mecanismos de exclusão, descriminalização, racismo e marginalização, o Rap em grande parte ainda carrega esse teor de criticidade e reflexão. Por meio deste trabalho é possível conhecermos suas origens, suas caraterísticas, como ele chegou ao Brasil e principalmente vislumbrar a gama de conhecimentos que esse gênero possibilita no tocante a educação e a escolarização. Pensar o Rap como elemento educativo é também vislumbrar a elaboração de um Currículo que dê abertura a essa proposta, entendendo que este é (...) ponto central de referência na melhoria da qualidade do ensino, na mudança das condições da prática, no aperfeiçoamento dos professores, na renovação da instituição escolar em geral e nos projetos de inovação dos centros escolares (SACRISTAN, 2000, p.32).

A inserção do Rap na educação pode vir justamente para englobar essas ações, uma vez que seu uso no tocante ao fazer pedagógico, provoca uma mudança nos modos de construir e

2 Estudo Errado recebeu diversas críticas quando foi lançada do cenário musical por parte dos professores e educadores. No ano de 2014 em entrevista a BBC Brasil, Gabriel foi perguntado sobre quais mudanças faria na letra do Rap caso fosse escreve-la levando em consideração o atual cenário. Diante da pergunta ele afirmou que: "Mais do que imaginar uma escola ideal, seria ideal a gente transformar a escola a partir das dúvidas, das curiosidades dos alunos em relação à realidade fora da sala de aula. Tanta informação que uma criança hoje recebe na internet, na televisão…tudo isso gera milhões de questões que já não se enquadram dentro do que é passado pelo MEC, dentro das disciplinas. (...)Minha crítica na letra 'Estudo Errado' era justamente em relação a essa distância do conteúdo do que era passado nas matérias para a vida real. Ver entrevista na íntegra em: https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/08/140828_salasocial_eleicoes_educacao_pensador_rm. Acesso em: 30de março de 2019. 3 Referimo-nos aqui á uma educação que promova o desenvolvimento da consciência crítica e reflexiva, possibilitando que os sujeitos sejam capazes de compreender e discutir temas sob um olhar mais amplo, entendendo os fatores que os envolvem não se fechando em sua forma de pensar e sim dando abertura a novos pontos de vista.

15

adquirir saber, modifica a dinâmica social escolar, produz uma aprendizagem mais significativa, pois engloba conteúdos disciplinares e conhecimento de mundo através de um método diferenciado. Portanto propomos neste escrito tendo como norteador o Rap, uma educação mais humanizadora4 que considere a realidade e os saberes dos sujeitos, que promova, valorize e respeite a diversidade em todas as áreas, que reflita sobre seu processo de construção ao mesmo tempo em que se descontrua e se renove, e que tenha como objetivos possibilitar experiências de conscientização, autonomia, reflexão e criatividade. Pois “(...) cabe, também, à educação a responsabilidade de abrir as portas da mente e do coração e de apontar horizontes de construção partilhada de sociedades humanas (BRANDÃO, 2002, p.22 apud ECCO e NOGARO, 2015, p.2)”. O presente trabalho trata-se de uma pesquisa bibliográfica de natureza qualitativa, que utilizou como instrumentos de análise, a análise do discurso de Foucault (1996), a classificação de leitura de Gil (2002) e a classificação da música feita por Merriam (1964). Posto isto, o presente trabalho está organizado em três seções, além da introdução e considerações finais, a primeira seção “Parceria entre escola e música: dos caminhos as possibilidades” traz as funções que a música exerce na sociedade, apresentando-a como um veículo somatizador ao processo de ensino/aprendizagem e debatendo sua inserção no espaço escolar por meio de uma perspectiva interdisciplinar. A segunda seção aborda o Rap como um elemento de denúncia e critica social, sendo um discurso produzido por sujeitos que foram e são invisibilizados, e passam a ter voz por meio deste, também é trazida uma leitura referente a sua genealogia e aos aspectos que dizem respeito ao campo curricular. A terceira seção traz a análise da música, a metodologia utilizada para análise, descrevendo a caraterização do trabalho e os resultados obtidos. E por fim, as considerações finais.

4 Termo atribuído a Paulo Freire (1921-1997) para designar uma educação voltada a emancipação dos sujeitos.

16

2 PARCERIA ENTRE ESCOLA E MÚSICA: DOS CAMINHOS ÀS POSSIBILIDADES

A música é celeste, de natureza divina e de tal beleza que encanta a alma e a eleva acima da sua condição. Aristóteles

O que é música? Muitas definições são dadas a mesma. Para Clifton, traduzido por Freitas (1997:24 apud BORGES, 2003, p.1) a “Música é um arranjamento ordenado de sons e silêncios cujo sentido é presentativo ao invés de denotativo. (...) música é a realização da possibilidade de qualquer som apresentar a algum ser humano um sentido que ele experimenta em seu corpo”. Já Moraes (1991 apud BORGES, 2003, p.1) traz que a “música é uma maneira peculiar de sentir e pensar, que propõe novas maneiras de se fazê-lo.” Entendemos que não há uma definição unívoca quando o objetivo é conceituar a música e que variadas concepções trazem elementos integrantes que acabam por enriquecer também desse termo. Sendo assim como afirmado por Brito (2013) o importante é compreender a ideia central da linguagem musical que se traduz na forma de combinar som e silêncio na criação da música. Assim, como não há um conceito único sobre música (pois ela é definida de diferentes formas pelos estudiosos e outros sujeitos que a apreciam), cronologicamente, seu surgimento não tem um mote temporal definido, uma vez que a configuração do que é considerado música pode atravessar e ultrapassar os sujeitos em múltiplas possibilidades e conceitos acerca de partitura, ritmo, melodia, entre outros, sob a compreensão de sua presença em nossa dinâmica cotidiana e em sua variedade de estilos e sonoridade. O que se pode ter certeza é que a música, senão é a mais antiga expressão de arte, é uma delas. Mário de Andrade, em seu livro Pequena história da música (2015) argumentou que o que se pode concluir acertadamente é que seus componentes, o som e o ritmo, acompanham diacrônica e sincronicamente a história da humanidade. Constituindo noções naturais e presentes em todos os espaços, o som e o ritmo, podem ser vistos também como complementares e integrantes do corpo humano. Foi na Grécia Antiga que a palavra música originou-se, advindo de “mousiké”, que segundo sua etimologia deriva-se da palavra “mousa” (“musa”). Na Mitologia Grega as musas são deusas das formas de arte e do conhecimento que inspiravam os seres humano: a poesia, a dança, a música e o conhecimento são mousiké – arte das musas. Sendo assim a música é

17

uma das mais antigas e valiosas formas de expressão da humanidade […]. Antes de Cristo na Índia, China, Egito, e Grécia já existia uma rica tradição musical. Na antiguidade os filósofos gregos consideravam a música como uma dádiva divina para o homem (FERNANDES apud ANDRADE, 2012, p.8).

Com esse recorte, compreendemos que trazer a música como um mote discursivo é falar de humanidade não somente produtora de ritmos e sons, mas como refletora e socializadora dessas expressões. Nietzsche (1844-1900), filósofo e escritor alemão, chegou a afirmar que “sem música, a vida seria um erro” (2001, p.11). Tal afirmação concede à música um status elevado e questiona uma existência onde a mesma é interpretada enquanto fundamental e necessária para a vivência dos sujeitos. De fato, a música está relacionada, intrinsecamente, com a sociedade em múltiplas funcionalidades. Allan Merriam (1964) antropólogo e etnomusicologo norte-americano em estudo denominado “The anthropology of music” (A antropologia da música) formulou a chamada “teoria da etnomusicologia”, na qual busca dialogar a música como um campo de estudos tão importante como qualquer outro. Por meio desses estudos o autor estabeleceu um sistema de classificação da música conforme as funções que apresentam na sociedade. O autor também faz uma distinção quanto à empregabilidade dos termos uso e função, embora estas estejam atreladas. De acordo com Merriam (1964)

[...] função é a contribuição que uma atividade parcial faz à atividade total da qual faz parte. A função de uma prática social particular é a contribuição que ela faz à vida social total, como funcionamento do sistema total. Tal aspecto deduz que um sistema social ... tem um certo tipo de unidade, que podemos falar a partir de uma unidade funcional. Podemos defini-la como uma condição na qual todas as partes do sistema social trabalham juntas com um grau suficiente de harmonia ou consistência interna, isto é, sem produzir conflitos persistentes que não podem ser solucionados nem regulados (p.11).

As funções da música representam a empregabilidade e os fins a que está relacionada. Oportunizando que esta possa ser utilizada para outros meios além da apreciação estética. Estas também podem nortear a discussão a respeito da representatividade da música na escola e como ela contribui para a aprendizagem. Assim Merriam (1964) classificou as funções que a música exerce na sociedade em dez categorias sociais principais que são: 1) função de expressão emocional; 2) função de prazer estético; 3) função de divertimento; 4) função de comunicação; 5) função de representação simbólica; 6) função de reação física; 7) função de impor conformidade às normas sociais; 8)

18

função de validação das instituições sociais e dos rituais religiosos; 9) função de contribuição para a continuidade e estabilidade da cultura; e 10) função de contribuição para a integração da sociedade. Neste trabalho aprofundaremos três das funções sociais categorizadas por Merriam (1964) para dialogar com o nosso problema de pesquisa, entendendo que essas funções interpelam discursos e a música é ponte dialógica para que isso aconteça. Assim sendo, destacamos a função de expressão emocional, compreendendo que por meio da música são exteriorizadas sentimentos e ideias presentes, ou não, no discurso dos sujeitos na qual através dela é possível expressar a criatividade e o descontentamento ante determinadas situações. Já a função de comunicação aborda a música como um elemento que traz uma mensagem, mas para que ela comunique algo, é necessário compreender o idioma no qual ela está inserida. A função de representação simbólica é citada como componente de discussão que entende a música enquanto figura de representação social, estando presente nas sociedades a música cumpre essa função através das ideias e emoções expressas nas letras, ou por meio de seus vários componentes. Seguimos o pressuposto de que essas três categorias estão inter- relacionadas e melhor se adéquam ao propósito deste trabalho. Ao entender as variadas possibilidades existentes quando abordamos a música enquanto temática, discorremos sobre ela também como um instrumento político e social, ressaltamos a potencialidade reflexiva que esta oportuniza no contexto societário e de inferência sob as ações humanas, na medida em que proporciona aos sujeitos a formação e elucubração a respeito de temáticas e saberes críticos e conscientizadores, somatizando suas formas de relacionar-se individual e coletivamente. Mencionada essas atribuições sobre a música, nos indagamos sobre a viabilidade de seu usufruto enquanto instrumento de erudição no espaço escolar. Para isso, analisamos quais as ferramentas necessárias e as problemáticas existentes no que diz respeito a sua utilização enquanto recurso didático para o ensino e aprendizagem. Considerando a música, além de outras concepções, como um componente social, cultural e histórico e tendo, dentre as suas funcionalidades, a capacidade de alcançar os mais diversos sujeitos nos mais variados espaços, é possível considerá-la enquanto um recurso para se pensar a escola e a educação. Cogitar a música como uma parceira do processo educativo nos leva a refletir qual a melhor maneira de estabelecer um elo entre ambos, visando uma compreensão ampla daquilo que se conhece ou se quer conhecer.

19

A perspectiva interdisciplinar é um caminho para estabelecer relações entre esses dois setores, já que a interdisciplinaridade busca romper com a fragmentação dos saberes, tendo por finalidade unir as disciplinas através das afinidades que compartilham.

A definição da palavra interdisciplinaridade nos dicionários é o que é comum a duas ou mais disciplinas. Conforme podemos constatar, a busca por receitas fórmulas e modelos de toda a espécie (COIMBRA, 2000, p.52) surgiram há quatro décadas, aproximadamente para tentar responder às inquietações teóricas e práticas que vêm acompanhando o desenvolvimento do saber atualmente (FISCHER, 2014, p. 117, grifos meus).

Uma educação que compreenda a importância de formar sujeitos em uma pluralidade de sentidos, oferece a esses sujeitos da aprendizagem as oportunidades de entender e refletir melhor o mundo em que vivem. Propor uma educação interdisciplinar através da música pode ser uma forma inteligente, dinâmica, atrativa e prazerosa de promover aprendizagens integrais, além de possibilitar nos sujeitos o desenvolvimento de consciência crítica e reflexiva. Já que A música auxilia na aprendizagem de várias matérias. Ela é componente histórico de qualquer época, portanto oferece condição de estudos na identificação de questões, comportamentos, fatos e contextos de determinada fase da história. Os estudantes podem apreciar várias questões sociais e políticas, escutando canções, música clássica ou comédias musicais. O professor pode utilizar a música em vários segmentos do conhecimento, sempre de forma prazerosa, bem como: na expressão e comunicação, linguagem lógico matemática, conhecimento científico, saúde e outras. Os currículos de ensino devem incentivar a interdisciplinaridade e suas várias possibilidades. […] A utilização da música, bem como o uso de outros meios, pode incentivar a participação, a cooperação, socialização, e assim destruir as barreiras que atrasam a democratização curricular do ensino. […] A prática interdisciplinar ainda é insípida em nossa educação. (CORREIA, 2010, p.140 grifos meus).

No destaque à importância da interdisciplinaridade, mencionamos a importância do diálogo entre as disciplinas sem o esvaziamento de suas características e componentes, no qual a compreensão perpassa sobre o aporte que é construído a partir de uma abordagem interdisciplinar pode promover uma articulação maior entre o que se aprende e o que se ensina sem o esvaziamento da identidade dos saberes, aproximando e contextualizando o conhecimento enquanto continuidade e não como blocos fragmentados de ensino- aprendizagem. O conhecimento restrito acerca do tema ou uma ideia equivocada sobre o que é interdisciplinaridade, a pouca ou nenhuma colaboração entre os agentes da educação podem ser alguns dos fatores que dificultam a inserção da interdisciplinaridade na educação,

20

entendendo que esta precisa ser inclusiva e dialética, pois a execução de uma prática interdisciplinar na educação exige comprometimento, participação e cooperação por parte dos profissionais da educação visando uma exitosa vivência no percurso de ensino-aprendizagens de educadores e aprendentes. Entendendo que a realidade se apresenta de uma forma complexa e multidimensional na sociedade vigente, é necessário que possamos compreendê-la e explicá-la contemplando as suas dimensões de forma integral. Para isso, é imprescindível que se tenha em mente que todos os acontecimentos se interconectam numa complexa teia se atravessam e/ou se complementam. Um exemplo é a percepção de que o conhecimento está diretamente ligado a diferentes campos do saber e esses saberes, mesmo que diferentes, estão ligados entre si não apenas como aportes necessários, mas como configurações de políticas curriculares e educacionais estabelecidas no contexto educacional brasileiro. Sendo assim, mesmo que se necessite conhecer apenas um campo do saber é preciso entender que nenhuma forma de conhecimento é inteira por si só, mas que, através da dialeticidade compartilhada, criam-se novas formas de apreender sobre o mundo, pois a aquisição de saberes acontece por meio da interlocução entre estes, o sujeito e o mundo, sendo um fruto e uma resposta proveniente dessa ação (CHARLOT, 2000). Em síntese, é o que pretendemos com esse trabalho, discorrer sobre viabilidade da aplicação da música enquanto subsídio pedagógico gerador de aprendizagens amparando-se sob o viés interdisciplinar, visto que a música não se restringe a um único campo do saber. Não há uma fórmula que descreva exatamente como a interdisciplinaridade deve ser introduzida no âmbito educacional e sim projetos, ideias e proposições acerca de sua contribuição na busca de um ensino mais abrangente comprometido com os sujeitos e a realidade. Estabelecer um trabalho interdisciplinar através da música implica mudanças de posições, comportamentos e atitudes, exigindo abertura para o desenvolvimento de uma prática pedagógica diferenciada. Por vezes essa mudança pode causar certo estranhamento e resistência, visto que rompe com modus operandi já estabelecidos e cristalizados nos espaços de escolarização em detrimento de outras demandas novas formas de ser e fazer.

21

2.1 O olhar interdisciplinar da música no âmbito educacional

Uma coisa boa sobre a música é que quando ela bate você não sente dor. Bob Marley

Uma das funções da música como nos descreve anteriormente Merrian (1964) é a de expressão emocional, transmissão de sentimentos, de ideias, empatias, entre outras. Por isso, referenciamos uma frase de Bob Marley5 que mencionou que, quando a música bate não se sente dor, porquê ela não nos agride (no sentido físico), ela nos toca, nos atravessa enquanto sujeitos de formas diferentes. E essa travessia com melodias, ritmos, sons e silenciamentos acaba por demarcar na história sua importância e protagonismo singular. Na antiguidade, a música ocupava um lugar de destaque sendo ensinada na Grécia Antiga ao lado de disciplinas como matemática e filosofia. Até mesmo Platão (427 a.C – 347 a.C), um dos principais filósofos do momento histórico mencionado, escreveu sobre a importância de se trabalhar com a música no livro III da República, delegando-a como instrumento primordial da educação, uma vez que para Platão a música tem o poder de tocar a alma dos indivíduos. Sendo assim, uma educação musical ou educação pela música tem por objetivo auxiliar os sujeitos, especialmente os jovens, no desenvolvimento da racionalidade. Deste modo, entendemos que a música tem a capacidade de transformar os sujeitos não só por ampliar sua visão de mundo, mas possibilitar uma mudança de vida. Isso pode ser percebido através de projetos sociais em comunidades6 e presídios7 das grandes cidades

5Robert Nesta Marley, mais conhecido como Bob Marley (Saint Ann, 6 de fevereiro de 1945- Miami, 11 de maio de 1981) foi um cantor, guitarrista e compositor jamaicano, o mais conhecido músico de reggae de todos os tempos, famoso por popularizar o gênero. Grande parte do seu trabalho lidava com os problemas dos pobres e oprimidos. Ele foi chamado de “Charles Wesley dos rastafáris” pela maneira com que divulgava a religião através de suas músicas. Disponível em: https://.letras.com.br/biografia/bob-marley. Acesso em 18 de agosto de 2018. 6Os projetos sociais que ofertam um ensino de música mudam a vida de milhões de brasileiros oferecendo uma oportunidade de profissionalização nesse seguimento, possibilitando que os horizontes desses sujeitos muitas vezes precários em razão das condições de vida sejam ampliados. Para maiores estudos sobre projetos comunitários sociais ver: WEILAND, Renata Lizana. Relações entre projetos comunitários e a música na perspectiva de profissionais da área musical em Curitiba. Algumas contribuições da psicologia social comunitária e da educação. 112f. Tese (Doutorado em Educação) – Curso de Pós-graduação em Educação Setor de Educação, universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2010. 7Implementações de projetos sociais no universo carcerário são ainda muito escassas em nosso país, o que se pode afirmar é que sua existência é fundamental para a ressocialização dos sujeitos presentes naquele espaço, sendo ainda uma prática humanizadora, sobretudo em um ambiente no qual os sujeitos estão privados de liberdade. Ainda que não sejam oferecidos projetos sociais voltados para a música neste ambiente e mesmo que esses sujeitos não estejam em convívio social por assim dizer, a música está presente neste espaço em especial o Rap enquanto elemento de discurso da realidade vivida.

22

brasileiras, que têm como metodologia integrante e fundamental o ensino de música. Faz-se necessário problematizá-la dialogicamente, percebendo-a como aporte significativo no que diz respeito ao ambiente educacional enquanto potencialidade metodológica que pode auxiliar-nos a fazer a leitura do mundo e desenvolver aptidões de forma plural e integral. As diferentes linguagens artísticas são meras opções para a ativação dos mecanismos de criação, reflexão e fruição. A música é uma das opções. Deve ser usada conforme a conveniência de cada situação e, sempre que possível, integrada a outras linguagens. (PENNA, 1990, p. 74 apud CATÃO, 2010, p.10)

O que acontece é que ainda que se fale em um ensino dinâmico, atrativo, reflexivo, que utiliza inúmeros recursos, formas tradicionalistas de ensino ainda imperam, centralizando a preocupação principal no ensino do conteúdo secularizando, muitas vezes, uma reflexão sobre o mesmo, o que nos remete à ideia de escola tradicional do século XX, na qual o professor detentor do conhecimento tinha como responsabilidade transmitir os saberes sistematizados aos sujeitos da aprendizagem, a quem caberia receber o conteúdo passivamente, desconsiderando as vivências e realidades sociais dos educandos. Diferentemente da tendência Pedagógica Liberal Tradicional8, as Tendências Pedagógicas Progressistas como a Libertadora, Libertária e Crítico Social dos Conteúdos abrem maiores oportunidades para a música enquanto metodologia somativa no percurso de ensino-aprendizagem em razão de seu caráter sócio crítico, uma vez que essas tendências objetivam entender as realidades sociais e o lugar ocupado pelos sujeitos neste espaço, com vistas a incentivar a luta por uma sociedade com relações mais igualitárias. Saviani (1999) aponta que o ensino tradicional é ainda muito presente nas escolas. Tal afirmação nos leva a refletir sobre a sua origem enquanto instituição de ensino. Ainda que a escola seja um advento da modernidade, pois o modelo escolar tal qual conhecemos na atualidade, teve início no século XVII fruto das mudanças9 ocorridas neste período que

8As Tendências Pedagógicas são divididas em duas categorias; Liberais e Progressistas. A tendência pedagógica liberal compreende os conteúdos como sendo fundamentais para a aprendizagem desconsiderando ou dando pouca importância as experiências vivenciadas pelos educandos nesse mesmo processo. Já a Tendência Liberal Progressista visa formar sujeitos críticos que reflitam sobre sua realidade e as relações de dominação existentes assim como suas causas, por meio de uma metodologia participativa e de temas advindos da experiência dos alunos. Disponível em: QUEIROZ, Cecília Telma Alves Ponte de. MOITA, Filomena Maria Gonçalves da Silva Cordeiro. Fundamentos sócio-filosóficos da educação. Campina Grande; Natal: UEPB/UFRN, 2007. 9 No curso do século XVII, estimulada não só pela revolução cultural e educativa do humanismo, pelas tensões da Reforma e da Contra Reforma, pela crise da tradição escolástica, assim como pela revolução burguesa e pela ascensão do estado centralizado e burocrático moderno, que postulam a formação dos técnicos, os quais necessitam de conhecimentos específicos e de específicos requisitos morais (fidelidade, responsabilidade, dedicação á “coisa pública”), a escola também foi se renovando profundamente e assumindo a feição de escola moderna: minuciosamente organizada, administrada pelo estado, capaz de formar o homem-cidadão, o homem técnico, o intelectual, e não mais o perfeito cristão ou o bom católico, como ocorria ainda na escola dos anos Quinhentos, quase toda nas mãos da igreja. (CAMBI, 1999, p. 304-305)

23

contribuíram para que a escola funcionasse de modo diferente da escola dos anos D (quinhentos) é inegável que muito se reproduz e pouco se contextualiza nos espaços formais de educação, pois sabendo que suas raízes são tradicionalistas, aspectos advindos de sua origem encontram-se presentes no contexto atual sendo naturalizados e reproduzidos. Mesmo com o acontecimento da Escola Nova10 e a tentativa de incorporação de novas técnicas e métodos de ensino, é inegável que características tradicionais permaneceram e talvez permaneçam por um longo tempo já que, apesar de todas as críticas à identidade da escola tradicional, seria incoerente considerá-la inútil, compreendendo que apesar de suas características, reconhecemos que ela desenvolveu nos sujeitos algum tipo de aprendizagem. O que pretendemos aqui explanar é que, no contexto hodierno da sociedade do conhecimento, com o destaque tecnológico de rápido acesso à informação e da eclosão das minorias populacionais que estão conseguindo ocupar espaços e legitimá-los na luta pelo reconhecimento dos seus direitos, espera-se que os indivíduos sejam capazes de tecer argumentações coerentes sobre os mais diversos assuntos. Neste aspecto, destacamos a escola enquanto instituição sistemática de formação da cidadania como responsável por ofertar um ensino que proporcione aos sujeitos uma formação para além do mercado de trabalho e explanação dos conteúdos de maneira isolada através de um ensino que desenvolva nos sujeitos a capacidade de refletir, levantar hipóteses e estabelecer relações entre os mais diversos motes curriculares. Analisando os componentes curriculares, propomos uma configuração que busque estabelecer conexões entre os diferentes campos de conhecimento. Para tanto, apoiamos uma perspectiva interdisciplinar entre escola e música como temática fundamental presente na LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação 9.394/96) a qual tratava a música como conteúdo obrigatório no inciso 6 do artigo 26, dada pela lei 11.764/2008. Após a redação dada pela lei 13. 278/2016, a música passou a ser uma das linguagens que integram o ensino de Artes, este obrigatório no ensino infantil, fundamental e médio. A mudança na redação do texto entende a música não como um campo de estudos próprio e sim como um dos componentes da arte, sendo assim não é vista uma necessidade de separação entre essas instâncias.

10A Escola Nova surge ao final do século XIX, foi um movimento que propôs uma nova configuração de ensino questionando a visão que a escola tradicional tinha sobre a criança, amparando-se fundamentalmente nos avanços da Biologia e Psicologia. Tendo como objetivo a mudança das concepções e práticas pedagógicas dos educadores. Por meio de novas metodologias, ideias e do aluno como sujeito central da aprendizagem. Disponível em: www.educabrasil.com.br/escolanova. Acesso em: 19 de agosto de 2018.

24

A Base Nacional Comum Curricular, documento responsável por nortear a elaboração dos currículos escolares, traz a música como uma das linguagens da Arte, juntamente com Dança, Teatro e Artes Visuais. Descrevendo-a como (...) expressão artística que se materializa por meio dos sons, que ganham forma sentido e significado no âmbito tanto da sensibilidade subjetiva quanto das interações sociais como resultado de valores diversos estabelecidos no domínio de cada cultura (BRASIL, 2017, p.194).

De fato, o som é um elemento integrante da música, mas nem para todos os sujeitos sua materialidade se faz por meio deste, considerar a música como um ordenado de sons é entender que sujeitos que não são capazes de ouvir não podem apreciar ou vivenciar a música, quando na verdade para eles, a mesma é apresentada de outra forma11. Sendo assim, é importante refletir sobre essas visões reducionistas a respeito dos componentes curriculares e ampliar os horizontes dos sujeitos da aprendizagem que possuem singularidades e particularidades, não vivenciando a aprendizagem de forma equânime, é imprescindível que o currículo contemple as faces que permeiam essa discussão, promovendo circunstâncias exitosas para os sujeitos que estão imersos nesse contexto. Tendo em vista que os conteúdos escolares são organizados por um currículo que define os conhecimentos aos quais os sujeitos durante seu processo de escolarização terão acesso, consideramos o currículo escolar não somente como teorias, mas como composição de saber, discurso e identidade por meio dos livros didáticos e documentos oficiais tal qual sua organização com enfoque disciplinar, onde há uma relação hierárquica entre as disciplinas e os conteúdos que são explanados sem que haja um elo entre eles e outros saberes. Pois, como bem descrevem as teorias críticas, o Currículo é um campo construído baseado em relações de dominação, sendo assim um território de poder e perpetuação de relações sociais (SILVA, 1999). Faz-se necessário a reflexão sobre os significados dados ao Currículo, já que o mesmo, em linhas gerais, abarca designações educacionais diferenciadas, de modo que está interligado com variados conceitos e falas, seja a partir da discussão ligada aos conteúdos e métodos de ensino e aprendizagem, ao planejamento pedagógico dado ao ensino, às configurações de discurso, identidade, etc. ou apenas aos fazeres e diretrizes escolares. Isto posto, entendemos

11 O projeto Sons do silêncio vivência a música de um modo diferente, nele ela chega aos sujeitos pela pele, por meio da vibração, das passagens do timbre (grave ou agudo) através da mudança das notas. A música é literalmente sentida, permitindo assim que os sujeitos que não podem ouvir á apreciem de outro modo. Porque a música também pode ser inclusiva, basta que ações sejam direcionadas para que isso aconteça. Para maiores informações acesso: http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2016-10/projeto-sons-do-silencio- ensina-surdos-tocar-instrumentos-musicais. Acesso em 28 de março de 2019.

25

o Currículo como um conjunto de saberes e experiências educacionais organizadas e planejadas com vista a desenvolver nos sujeitos consciência acerca de sua realidade, expansão de seu universo cultural e contribuição em seu processo de formação identitária. Deste modo, concordamos com Silva (1999) quando afirma que falar de Currículo é

[…] saber qual conhecimento deve ser ensinado. […] Qual tipo de ser humano desejável para um determinado tipo de sociedade? Será a pessoa racional e ilustrada do ideal humanista de educação? Será a pessoa otimizadora e competitiva dos atuais modelos neoliberais de educação? Será a pessoa ajustada aos ideais de cidadania do moderno estado-nação? Será a pessoa desconfiada e crítica dos arranjos sociais existentes preconizada nas teorias educacionais críticas? […] No fundo das teorias do currículo está, pois, uma questão de – “identidade” ou de – “subjetividade” (SILVA, 1999, p.14-15).

O Currículo, enquanto campo de estudo, aponta como a educação é compreendida ao longo da história. Sendo assim, as teorias curriculares estão interiormente vinculadas aos modos de ser de cada época, ao mesmo tempo que possuem uma identidade própria e contribuem para a construção de novas identidades, o currículo é subjetivo a medida em que se baseia nos pressupostos e ditames de uma parcela da sociedade para atender as necessidades educacionais de uma maioria. A proposta de um Currículo que tenha a música como um veículo condutor do conhecimento não é novidade, já que este é uma extensão e exteriorização da cultura nada mais natural que a música venha a ser utilizada como recurso. Além de sua utilização enquanto suporte na aprendizagem, é necessário que o Currículo indique caminhos para que sua inserção aconteça de forma satisfatória. Um caminho possível para que isso aconteça, e também o meio pelo qual dialogamos este escrito, é abordado na Base Nacional Comum Curricular, a qual tratamos anteriormente em relação a música. A base também discute o tema da interdisciplinaridade, retratada como uma decisão a ser tomada frente a organização dos conteúdos curriculares, o documento possui 600 (seiscentas) páginas, que dizem respeito as três modalidades de ensino da educação básica (educação infantil, ensino fundamental e médio) e o trabalho interdisciplinar é citado três vezes ao longo do texto. Primeiro na seção relativa a base e os currículos, posteriormente nas seções referentes a língua inglesa e a matemática. O que nos leva a questionar as razões da interdisciplinaridade além de em um panorama geral ser abordada excepcionalmente em duas disciplinas, dá á entender que elas permitem maior abertura para essa perspectiva em comparação com seus pares, o que não condiz com a realidade. Outro ponto importante a ser destacado na base é que ela não traz nenhuma

26

definição do que é interdisciplinaridade. Como um documento norteador curricular é imprescindível que os conceitos e definições acerca dos temas tratados na BNCC sejam trazidos, um dos motivos disso é que a base também é material auxiliar do (a) professor (a) e eles (as) devem ser capazes de compreender as perspectivas apresentadas e isso só é possível quando há clareza naquilo que é proposto. Retomando o debate acerca da música, entendemos que ela leva os indivíduos a uma identificação, seja com o ritmo, com a melodia e/ou com a realidade descrita nas letras. E é sob essa perspectiva de problematizar e compreender a realidade que trazemos o Rap como temática integrante, buscando através deste ritmo musical debater sobre a situação educacional e escolar, visto que esse gênero pauta-se em temáticas que envolvem problemas de ordem social, histórica, cultural, política e econômica, entre outras. Para realizar esse movimento dialógico, utilizamos a música do artista Gabriel, o pensador Estudo Errado (1999) para contextualizar, discutir e refletir a escola e seus processos educacionais, abordando elementos presentes no contexto escolar e contemplados pela canção, acordando as possíveis causas das situações descritas na música e como a mesma pode ser um meio para problematizar a escola enquanto instituição social de ensino, que tem por responsabilidade formar sujeitos para a vida, uma vez que, de acordo com Freire, “quando o homem compreende sua realidade, pode levantar hipóteses sobre o desafio dessa realidade e procurar soluções. Assim pode transformá-la e com seu trabalho pode criar um mundo próprio: seu eu e suas circunstâncias” (FREIRE, 2002, p.30). A educação pode ser discutida através da música sobretudo por meio do Rap, com criticidade, de forma substancial, informativa e precípua. Dessa forma, ela é trazida como uma ferramenta pedagógica suplementar para pensar, questionar, discutir e buscar modificar não só o espaço escolar, mas as diversas esferas sociais. Pois, A música é uma forma pedagógica de enriquecer e elaborar os conhecimentos. Desta maneira o educador deve buscar meios em sua disciplina para inserir a música, tendo em vista, que é um elemento metodológico criativo e atrativo. Portanto se torna um recurso que facilita o ensino e a aprendizagem dos educandos […] funcionaria como uma chave para abrir as diversas possibilidades que o aluno traz dentro de si, e que pode compartilhar com seu próximo (CORREIA, 2009, p.65 apud SILVA e PIRES, 2014, p.2).

Por esse motivo, tratar a música no espaço escolar e os elementos que a compreendem enquanto trajetória do ponto de vista educacional é aqui descrito como um componente importante no processo educativo, percebendo sua amplitude discursiva e a necessidade de realizá-la sob o ponto de vista pedagógico, mas compreendendo outras esferas de

27

possibilidades. Pois, além das oportunidades pedagógicas que a música oferece, ela auxilia no direcionamento e execução de outras atividades. Muito foi discutido até aqui sobre a música enquanto instrumento auxiliar de criação e construção de conhecimento. Dentre os tipos de músicas existentes, neste trabalho nossa atenção em especial está voltada para o Rap, em razão da identidade que este estilo abrange, tendo em vista seu contexto histórico, arcabouço social, identitário, cultural e educativo.

2.2 Diálogos entre música, educação e escolarização.

Onde quer que haja mulheres e homens, há sempre o que fazer, há sempre o que ensinar, há sempre o que aprender. Paulo Freire (1996, p.70)

A partir da leitura norteadora de Paulo Freire (1996) e da compreensão que tem os em relação à educação em seus mais diversos aspectos, entendemos que a mesma ultrapassa questões de gênero, devendo estes serem por ela contemplados. Na sociedade plural em que vivemos ofertar uma educação que não discuta questões de gênero e outros aspectos ligados às vivências e dinâmicas sociais é compactuar com as desigualdades e os estigmas educacionais existentes, desconsiderar a pluralidade dos sujeitos, atendo-se puramente aos conteúdos presentes na proposta curricular. Atitudes assim não condizem com o que se espera ou com o que se entende por educação. Mas afinal o que é, de fato, educação? De acordo com o Dicionário Aurélio Eletrônico (2018), educação é “um conjunto de normas pedagógicas tendentes ao desenvolvimento geral do corpo e do espírito”. Conceituar educação não é uma tarefa simples, pois quando pensamos em educação é mais comum perceber discussões que estejam conectadas com a educação formal. Porém, dialogar educação enquanto mote discursivo é não limitá-la às normatizações pedagógicas e nem se desfazer delas. É oportunizar uma simbiose de experiências e relação com o saber em que o ato de educar possibilite um devir, quer seja nos espaços formais ou informais de educação. Concordamos com Brandão quando afirma que A educação existe onde não há a escola e por toda parte pode haver redes de estruturas sociais de transferência de saber de uma geração para a outra onde ainda não foi sequer criada a sombra de algum modelo de ensino formal e centralizado (BRANDÃO 2007, p.13).

28

Como bem salientado pelo autor, a educação é um processo amplo que não está concentrado em um único espaço, mas em ambientes distintos, feita pelos mais diversos sujeitos com o objetivo de compartilhar conhecimentos, não sendo necessário que a instituição escolar formal seja a única para que a educação aconteça. Destacamos a importância de se pensar a educação em ambientes informais – que tem objetivos diferentes da escola enquanto instituição formal de educação, pois os conhecimentos produzidos e adquiridos nestes espaços não são sistematizados e sim provenientes da socialização entre sujeitos ali presentes (LIBANÊO 2002, apud PEREZ 2013). A educação formal tem a função de possibilitar aos sujeitos o acesso aos conhecimentos sistematizados, que são os conhecimentos produzidos por estudiosos, pesquisadores e cientistas, mas também está imbuída da responsabilidade de fornecer valores, condutas e normas sociais a esses sujeitos. É depositada na educação a responsabilidade de mudança da sociedade, atribuindo-lhe a função transformadora. Sempre que pensamos em uma sociedade mais justa, igualitária e livre das mazelas que a assolam, atribui-se à educação a responsabilidade de ser a chave para essa modificação. Ao pensarmos assim, devemos considerar que, por trás desta chave, sujeitos que compõe e fazem educação estão envolvidos em suas mais diversas configurações. Moura (2017) afirma que A ideia de que para cada escola que se abre, fecha-se uma cadeia, lamentavelmente, não se tem constituído como uma verdade, pois os grandes criminosos e malfeitores da humanidade não foram homens de pouca instrução, ao contrário eram homens de elevada erudição ( p.14).

Ao mesmo tempo em que a educação como colocado pelo autor não é a salvadora do mundo, ela exerce papel fundamental na formação da cidadania, do mercado de trabalho, para a emancipação humana, podendo ser considerada um componente de mudança para/nos sujeitos. E não são os sujeitos que transformam o mundo? Ao pensar na educação como agente transformador, é preciso que se leve em consideração que tipo de educação está sendo ofertada a esses sujeitos, sobretudo na escola pública, responsável pela educação de grande parte da população, especialmente aquela parte pertencente à classe trabalhadora. Na sociedade capitalista em que vivemos, onde relações de dominação imperam, é essencial que a escola pública seja um espaço que discuta e problematize essas questões. Discorrer sobre a escola pública enquanto instituição social tal qual a conhecemos hoje, é levar em consideração aspectos referentes ao seu surgimento. Fruto de reivindicações da classe trabalhadora e vista pela burguesia como um artifício de combate aos levantes

29

populares, a escola foi vislumbrada pela elite como um meio de controle da camada popular. Com o objetivo de instruir os sujeitos e perpetuar relações de subordinação (ARROYO, 2003). A ideia de escola que se tem na atualidade diverge de tais objetivos vislumbrados em tempos anteriores. Ainda que haja lacunas entre a educação das massas e da elite e que esta ainda detenha os mesmos objetivos para uma conservação da sociedade por intermédio das políticas educacionais engendradas, o que se anseia é que a escola pública proporcione aos sujeitos uma gnose de saberes profusos, saberes esses que devem ser contemplados independentemente se são ou não elencados no currículo escolar, pois a escola é um fragmento da sociedade e isso precisa estar integrado nos conteúdos socializados em sala de aula. Na entrevista para a Revista Pensar a Prática, José Carlos Libâneo propôs quatro objetivos necessários à escola enquanto lócus de conhecimento. Em suas palavras, este mencionou Eu venho propondo quatro objetivos para a escola de hoje. […] eles formam uma unidade […]. O primeiro deles é o de preparar os alunos […] para a vida numa sociedade tecno-científica-informacional. […] Para isso, é preciso investir na formação geral, isto é, no domínio de instrumentos básicos da cultura e da ciência e das competências tecnológicas e habilidades técnicas requeridas pelos novos processos sociais e cognitivos. Na prática, refiro-me a conteúdos […] que propiciem uma visão de conjunto das coisas, capacidade de tomar decisões, de fazer análises […]. Em segundo lugar, proponho o objetivo de proporcionar meios de desenvolvimento de capacidades cognitivas e operativas, ou seja, ajudar os alunos nas competências do pensar autônomo, crítico e criativo. Este é o ponto central do ensino atual, que deve ser considerado em estreita relação com os conteúdos, pois é pela via dos conteúdos que os alunos desenvolvem a capacidade de aprender […]. O terceiro objetivo é a formação para a cidadania crítica e participativa. As escolas precisam criar espaços de participação dos alunos dentro e fora da sala de aula em que exercitem a cidadania crítica. […] O quarto objetivo é a formação ética. É urgente que os diretores, coordenadores e professores entendam que a educação moral é uma necessidade premente da escola atual. Não estou pregando o moralismo […] Estou falando de uma prática de gestão, de um projeto pedagógico […] que programe o ensino do pensar sobre valores. […] Em resumo, eu proponho investir na capacitação efetiva para empregos reais e na formação do sujeito político socialmente responsável (LIBÂNEO, 1998, p. 4-5).

O autor propõe uma escola que forme sujeitos em uma multiplicidade de aspectos: 1) compreender a vida em uma sociedade marcada por rápidos avanços científicos e tecnológicos; 2) estimular o intelecto, o raciocínio, capacidade de dedução, criatividade, criticidade; 3) incutir nos sujeitos a noção de cidadania, para que, há exerçam de forma consciente; e 5) formar indivíduos para agir de acordo com princípios éticos. A proposta de

30

Libâneo (1988) é de imprescindível contribuição para vislumbrar a escola como um espaço que tem uma responsabilidade tamanha na construção dos indivíduos enquanto sujeitos aptos intelectualmente e socialmente tendo em vista que o que se almeja é formar sujeitos integrais. Dados, portanto, as finalidades aos quais a escola deve servir, é primordial a busca de meios para a realização desses objetivos, com vistas a oferta de um ensino em que os conhecimentos não se tornem, um emaranhado de informações desconexas. Desta forma, é necessário criar novas maneiras de produzir e transmitir conhecimento. Enquanto fenômeno presente na sociedade desde tempos remotos e sendo parte da vida dos sujeitos desde seu nascimento, a música é trazida neste escrito com um caminho dialógico para atender aos objetivos propostos pela escola, além de ser uma alternativa de transmissão do conteúdo escolar mais dinâmica e interdisciplinar e menos tediosa apontando a importância da pesquisa e da identidade docente pesquisadora no cotidiano dos ambientes de educação e escolarização para refletir a escola e sua estrutura, tendo em vista que ainda existem aspectos que dificultam a inserção de novas formas de criar e construir conhecimento no ambiente escolar. No capítulo seguinte discutiremos a construção histórica do Rap, delineando seu surgimento no cenário brasileiro e elencando a viabilidade de sua utilização enquanto instrumento pedagógico para refletir sobre a escola, a educação e o processo de escolarização, tomando como ponto de partida a premissa de que a escola pode discutir o rap, mas o rap também pode discutir a escola.

31

3 A COMPOSIÇÃO DO RAP NA HISTÓRIA

Preconceito sem conceito que acontece à nação Vimos no descaso mesmo após a abolição Mais de 500 anos de angústia e sofrimentos me acorrentaram Mas não meus pensamentos Me fale quem tem o poder quem pra condenar quem pra censurar alguém. MV Bill

Neste capítulo trataremos das origens do Rap, seu arcabouço histórico e cultural enquanto discurso de sujeitos que foram marginalizados. Dialogaremos trechos de raps que como forma de mostrar as possibilidades de analises educacionais que este gênero proporciona. Etimologicamente, a palavra Rap é uma sigla para a expressão inglesa rhtytm and poetry (ritmo e poesia). Constantemente a origem desse gênero musical é atribuída ao bairro do Bronx na cidade de Nova York (EUA), nos anos de 1970. Contudo ao se falar de rap e outros gêneros musicais é imprescindível abordarmos que, estes se constituem da mistura de ritmos, sons e instrumentos de diversos povos e culturas. Diferentes versões são dadas quanto a origem do Rap. Teperman (2015) em seu livro “Se liga no som: as transformações do Rap no Brasil” atribui a gênese do Rap aos povos africanos, afro-americanos e latinos. Atrelando-os á dois momentos históricos distintos. Para autor, o surgimento do Rap está atrelado a diáspora negra que acontece com o início do regime escravocrata nas Américas, onde de milhares de sujeitos, advindos de todas as regiões do continente africano, são retirados de suas terras com o propósito de suplantar esse regime. Entrando em contato a partir desse momento com as tradições musicais dos povos norte-americanos. Esses povos africanos trazidos as Américas revolucionaram e contribuíram para a criação de gêneros musicais como reggae, , soul, , blues, rock assim como Rap. O segundo momento decisivo ao surgimento do Rap aconteceu após o final da segunda guerra mundial, quando saídos da Jamaica, Porto Rico e Cuba, milhares de sujeitos pobres saíram para os Estados Unidos, buscando melhores condições de vida. Ao chegarem, fixaram- se nas periferias das grandes cidades, em razão dos baixos custos de vida e oferta de emprego nas proximidades. Nesse ambiente os povos das ilhas caribenhas passaram a ter contato com

32

os povos latinos e com os afro-americanos, estabelecidos em solo norte-americanos há várias gerações, sendo estes descendentes dos povos africanos que ali foram trazidos pela escravidão. O bairro do Bronx, localizado na ilha de Manhattan em Nova York, foi um dos bairros que recebeu diversos imigrantes. Essa região no inicio da década de 1970 encontrava-se abandonada e degradada. A violência urbana era crescente assim como as disputas entre gangues, bem como a falta de opções culturais. No bairro a população era de maioria negra e as cenas dos conflitos raciais12 ocorridos na década de 1960, ainda permeavam a mente dos norte-americanos. A origem do Rap este fortemente ligada a luta da população negra, segundo Lindolfo Filho (2007) por volta da década de 20 na Jamaica, iniciava-se um período de desenvolvimento econômico com abertura de setores fabris, possibilitando aumento da classe operaria do país Nesse cenário, muitos jovens migraram do interior do país para os centros urbanos, tendo como foco a busca por oportunidades de trabalho que lhes permitisse uma mudança de vida. Porém, esses jovens não detinham formação ou conhecimento nas áreas de oferta de emprego. Deste modo, a rua tornou-se o lugar para expressarem suas emoções diante das oportunidades escassas. Foi na rua que muitos desses jovens nomeados como “rude boys” vivenciaram experiências de miséria e violência. Aparentemente eles eram identificados pela presença de dreadloks (longas tranças realizadas em cabelos crespos), pelas roupas largas pelo uso de um vocabulário repleto de palavras com um tom mais agressivo e gírias (TEODÓSIO, 2012, p.22).

O Rap é parte do movimento hip-hop que agrega o break (danças com passos robóticos), o grafite (pintura, feita com spray), o DJ (o disc-jóquei) e o rapper (ou MC, mestre de cerimônias). O DJ e o rapper (ou MC) formam a parte musical da cultura hip hop. De acordo com Zeni (2004), a conscientização para alguns membros do movimento constitui-se como um quinto elemento do movimento. Essa conscientização esta presente essencialmente no reconhecimento do movimento enquanto luta história contra racismo, patrimônio cultural negro e valorização descendência. Hip hop é uma expressão inglesa, que quer dizer pular mexer os quadris. Sua origem é atribuída ao DJ África Bambaataa em fins dos anos de 1960, para caracterizar as festas de rua

12 A década de 1960 nos Estados Unidos marca um período de intensa luta, protestos e mobilizações pelo fim da segregação racial e busca de igualdade de direitos civis, com destaque ao “movimento negro” liderados por Martin Luther King, Malcon X,o “Black Panters” (Panteras Negras) e “Black Power”.

33

ocorridas no Bronx na cidade de Nova York. Essas festas eram frequentadas essencialmente por jovens negros, o soul era a música tocada, esse gênero algum tempo depois evolui para o funk, um ritmo com uma batida mais forte, desses dois ritmos é que é derivado o Rap. James Brown é o nome mais conhecido do funk, são em seus shows, no final dos anos 60, que surgem os primeiros passos do ritmo que iria se conhecido mais tarde como break (Zeni, 2004). No Brasil, as primeiras manifestações do ritmo surgiram em São Paulo em meados da década de 1980 por aqui já aconteciam os chamados bailes blacks13, compostos pelo funk e soul desde a década de 70. Zeni (2004) afirma que o Rap no Brasil nasceu como canto improvisado com o intuito de acompanhar o break. O canto era feito com o auxilio de latas, palmas e beat box. Como era feito de improviso durante as apresentações de break, o Rap era chamado de “tagarela”. No final da década de 1980 surgem os primeiros de Rap nacional. em grande parte tratavam-se de coletâneas de diferentes grupos e estilos. Dentre eles O som das ruas, Situation rap, Ousadia do rap, Consciência black e Hip Hop – Cultura de rua. Cultura de rua trazia dos faixas de Thaíde e DJ Hum, intituladas “Corpo fechado” e “Homens da lei”. Nas duas canções os rappers falam mal da policia e discutem a vivência dos sujeitos na cidade de São Paulo. Esses raps são considerados os primeiro de estilo reflexivo e de atitude.

3.1 Rap, educação e sociedade: entre diálogos e denúncias14

Observando evolução radical de meus irmãos, percebi o direito que temos como cidadãos, de dar importância a situação protestando para que achemos uma solução.

Thaíde e DJ Hum. Sr. tempo bom.

13 De acordo com Félix (2005, p.18 apud TEODÓSIO, 2012, p.19) os bailes black, são lugares de práticas políticas, pois, nesses bailes, as pessoas constroem suas próprias identidades. O público que frequenta os bailes black não vai ao baile somente para ouvir músicas e dançar, mas também porque lá todos se sentem entre iguais não discriminados. Esse tio de entretenimento é vivenciado como um momento alternativo ao racismo cotidiano, pois nesse ugar não se reporia a hierarquia social presente no cotidiano. 14 O Rap não é somente um gênero musical ele é fruto de uma luta histórica da população negra, por isso discuti- lo envolve denúncias, suas raízes estão ancoradas a um contexto social de busca por melhores condições de vida dessa população, surgindo como um desabafo, um grito de vozes que foram silenciadas.

34

Como vimos no início deste capítulo o Rap surge em meio a um contexto social, marcado por intensas lutas pelos direitos da população negra, sendo veiculado enquanto instrumento de denúncia das desigualdades vivenciadas por esses povos. Nele os sentimentos, as ideias e as experiências são exteriorizados sob a forma de versos cantados ritmicamente. Como dialogado no início deste trabalho, a música exerce uma função de comunicação na sociedade, mesmo que não esteja escrita em norma culta padrão da língua, sua função de comunicar é exercida. Pois cada compositor ou músico tem uma intencionalidade quando escreve ou canta uma música, a relevância e os usos que cada sujeito dá a esta ou aquela música em particular estão associadas a sua identidade individual bem como as experiências vividas, os sentimentos e emoções que aquela canção evoca, além do arcabouço cultural que o mesmo detém. A música é utilizada como um marcador da sociedade, assim como as fotografias, os textos, os vídeos, é possível estudar dados contextos históricos da sociedade por meio da música. O surgimento de um gênero musical marca uma época e as transformações ocorridas nelas, tomando como ponto de partida a genealogia do Rap, seu surgimento marca uma luta contra o racismo, a segregação e a violência contra a população negra, como afirmado por Kellner (2001) O Rap transmitia as experiências e as condições dos americanos negros que viviam em guetos violentos e, assim, se transformou num poderoso veiculo de expressão política, traduzindo a raiva dos negros diante da crescente opressão e da diminuição das oportunidades de progresso, quando a simples sobrevivência passou a ser um grave problema (KELLNER, 2001, p.231). A identidade musical do Rap se traduz pelas denúncias que o mesmo traz, ainda que seja possível falar de todos os assuntos por meio dele, as músicas de Rap que traduzem as mazelas sociais, a política, a busca por melhores condições de vida e igualdade, são as mais predominantes no cenário musical no que diz respeito ao gênero, os grandes nomes do Rap como os grupos Racionais MC`s, Facção central, os rappers Emicida, MV Bill, Marcelo D2 e Gabriel “O pensador”, tratam essencialmente desses temas em suas músicas. Para dinamizar a discussão sobre o Rap e suas possibilidades interdisciplinaridades começamos com um destaque que, consideramos importante compreendendo a esfera do Rap e sua conexão com a educação. Desta forma, iniciaremos citando uma música que nos permita nortear essa reflexão. Em 1999 o grupo de Rap DLN15 (Defensores da Liberdade Negra)

15 DLN é um grupo de Rap de Campinas, seu cd foi lançado de forma independente, a música Quadro educacional faz parte do álbum Chave para a liberdade (1999). A faixa está disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=nP7coE-X4SA.

35

lançou um cd no qual está incluído a música “Quadro educacional” que possui a seguinte letra:

O sistema não quer ver crianças da periferia. Pobre, carente, „um delinquente‟, dentro de uma sala de aula, uma faculdade estadual, particular, Não, não, não, não! Ele não quer ver a parte „podre‟ do país, estudar, se formar, ter ideias ativas, criticar a mídia, impor seu ponto de vista. Não querem, não querem, não querem e nunca vão deixar, Porque o ensino e a informação são as armas mortais para o povo pobre. Desmentir as falcatruas mostradas pela televisão. [...] Somos todos cidadãos de papel, com direitos na teoria, mas na prática não! Pense no futuro, pense na educação! DLN O discurso presente na música trata a educação como forma de emancipação, da tomada de consciência de mecanismos que alienam os indivíduos como a mídia, questiona as relações de poder existentes, como a ausência de oportunidades de estudos para a população pobre, tocando no que diz respeito as desigualdades sociais. Sendo assim a educação é o objeto de desejo traduzido na ideia de que esta transforma a realidade dos sujeitos, modificando sua mentalidade e instituindo novos modos de ser, ao mesmo tempo em que a educação é desejo ela também é poder, pois controla e separa. Revelando como nos afirma Foucault (1996) o binômio existente nos discursos entre desejo e poder:

[...] o discurso – como a psicanálise nos mostrou – não é simplesmente aquilo que se manifesta (ou oculta) o desejo; é também aquilo que é o objeto do desejo; e visto que isto a história não cessa de nos ensinar- o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mais aquilo, por que, pelo que se luta, poder do qual nos queremos apoderar (FOUCAULT, 1996, p.10). As letras de Rap em sua maioria problematizam temas não buscam somente discorrer sobre estes e sim provocar o leitor ou ouvinte, a se questionar enquanto sujeito, presente em uma sociedade onde discursos são produzidos a todo o momento. Nenhum discurso é neutro, toda a ação discursiva tem uma intencionalidade, que por vezes não é percebida por parte dos sujeitos que dele se apropriam, é nesse contexto que a apropriação da linguagem de forma negligente se torna perigosa. Entendendo que o discurso é a consolidação das ideias saídas do plano intelectual para a realidade concreta, é poderoso à medida que, sua utilização pode servir com o propósito de perpetuar relações de dominação, subordinação e discriminação, ao mesmo tempo em que pode atuar como elemento emancipatório, os discursos adentram em todas as esferas sociais,

36

[...] nas fábricas, nas escolas, nos lares, nos programas televisivos, nas conversas cotidianas, nas universidades, nas academias de ginástica, nos hospícios, nas prisões, nos jogos de videogame, nas marcas e nas campanhas publicitárias, nas páginas dos jornais, sem limitar-se a nenhuma dessas maquinarias (FERREIRA E TRAVERSINI, 2017 p. 210).

Não sendo estáticos ou imutáveis, os discursos transitam nos espaços ao mesmo tempo em que transformam-se, sendo validados ou invalidados pelos sujeitos, atribuídos ou não como vontade de verdade (FOUCAULT, 1996). Os discursos são subjetivos à medida que, a nem todo discurso é atribuído poder, assim como o que é verdade para uns, pode não ser para outros. É importante respaldo ao validar determinadas formulações discursivas, entendendo, que por traz de cada uma delas diferentes ideologias estão presentes. A história nos mostra exemplos de quão poderoso pode ser o discurso, tanto como elemento de promoção de igualdade, ou justificativa para atos cruéis. Por isso que o Rap, enquanto aporte teórico metodológico, é tão significativo, porque é uma forma de discurso que permite refletir sobre outras formulações discursivas. Retomando como analise do Rap mencionado acima, quando os autores relatam o sistema como responsável pela exclusão da população pobre a uma educação de qualidade, entendemos que a educação é a responsável por possibilitar que sujeitos percebam com um olhar analítico as composições discursivas que permeiam seu entorno. Horizontes de possibilidades educacionais são vislumbradas por meio do Rap, o que torna possível não só dialogar a educação com vistas a uma prática conscientizadora, mas permite que os sujeitos por meio dela se tornem autores de sua própria história. Um exemplo disso é a música “Favela do Jaraguá“16escrita por Mc tribo e Allison17, que é morador da favela do Jaraguá em Maceió, Alagoas que sofreu um processo de desapropriação por parte da prefeitura da cidade, na música é descrita o processo de retirada dos moradores assim como as características do lugar. A letra diz o seguinte:

Deixa eu ser feliz, eu ser criança Deixa por favor eu viver minha esperança

16 No ano de 2015, a Justiça Federal atendeu ao pedido da prefeitura de Maceió para desapropriação da favela do Jaraguá, cerca de 150 famílias residiam na localidade. Com a desapropriação do lugar as famílias tiveram de ser realocadas temporariamente para abrigos. Segundo a prefeitura da cidade na localidade onde se encontra a favela serão construídos um mercado de comércio de pescado e um museu e urbanização da orla de Jaraguá. http://g1.globo.com/al/alagoas/noticia/2015/06/comeca-operacao-para-desocupar-favela-de-jaragua-em- maceio.html. 17 Nando Rozende, mais conhecido como Mc tribo é um rapper, educador e produtor musical alagoano, fundador e vocalista da banda Favela Soul. Allison é jovem que era morador da favela do Jaraguá e tinha treze anos no momento que ocorreu a desocupação. A ideia de criar o Rap surgiu durante uma oficina de hip-hop. O convite para gravar a música surgiu logo depois. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ZON3bwtW3SU.

37

Praia sol e mar, esse é meu lugar Favela do Jaraguá Eu vim da favela eu sou do Jaraguá O meu povo é sofrido e eu vim para falar Desse tal sistema que chegou para esculachar Esse sistema chegou para atrasar Derrubou a favela botou nois foi pra lavrar Com muitos moradores e crianças para cuidar

MC TRIBO E ALISSON

A música “Favela do Jaraguá” surge da experiência pessoal do Allison, de sua reflexão enquanto sujeito morador de uma favela em processo de desapropriação e da interpretação das formulações discursivas que culminaram nesse resultado. É um Rap que tem como base um discurso de poder que retira sujeitos do lugar onde vivem. Os autores evidenciam, em um primeiro momento, o desejo de ser criança e depositam sua felicidade na esperança de um futuro que é expresso por meio do sentimento de pertencer a um determinado ambiente, no caso a favela citada, em seguida discutem sobre o sistema que desapropriou diversos moradores entre os quais estão incluídas crianças como ele. O que nos leva mais uma vez refletir sobre o lugar socialmente dado aos sujeitos que residem na periferia das grandes cidades, ou de quaisquer outros que não residam nos grandes centros urbanos. O Rap escrito por Allison e MC Tribo traz outra possibilidade de sua utilização em sala de aula, que não somente a análise do discurso presente no mesmo, e sim permite pensarmos no rap também como elemento que permite aos sujeitos criarem uma linguagem própria, a escrita de letras de rap pode ser uma forma de dar voz aos estudantes e escutar suas ideias Entender a voz do estudante é lidar com a necessidade humana de dar vida ao reino dos símbolos, linguagens e gestos. A voz do estudante é um desejo, nascido da biografia pessoal e da história sedimentada; é a necessidade de construir-se e afirmar-se em uma linguagem capaz de reconstruir a vida privada e conferir-lhe um significado, assim como de legitimar e confirmar a própria existência no mundo. Logo, calar a voz de um aluno é destituí-lo de poder (GIROUX e MCLAREN, 2003, p. 137 apud LUZ, 2012, p.80).

Escutar as vozes dos alunos é uma das maneiras de validar os seus saberes, e quando se valida algo, este passa a ter status de importância, e se atribui então poder, poder esse que não deve ser utilizado como meio de subordinação sore outrem, mas como forma de mostrar a contribuição que cada sujeito pode trazer por meio de suas ideias e permitir seus protagonismos na educação é um dos caminhos para a compreensão desse processo, pois o

38

ensinar e o aprender também se dão pelo social e não apenas pelo caminho metodológico. Freire (1996) é um grande defensor da liberdade do estudante de se expressar, enquanto sujeito pensante, que aprende ao mesmo tempo em que produz conhecimento. Nesse movimento de aprender e produzir saberes o Rap vem como estratégia de desenvolvimento de uma práxis que alia o conhecimento advindo da experiência dos sujeitos ao conhecimento cientifico, as letras de músicas de Rap são textos culturais, que expressando uma realidade vivida, um desejo ou uma crítica possuem cientificidade humana, pois são feitas por pessoas além de uma cientificidade intelectual expressa nas referências feitas a personagens, espaços, tempos e nos usos dados a linguagem.

3.2 O Rap na escola o Rap faz escola: discutindo música, educação e escolarização

Rap é poesia ... Arte e movimento... inspiração de repente de momento. Nossa cultura é rica sem igual, já dei o meu recado, ponto final. Emicida

Rap é poesia, poesia cantada, arte que movimenta não só o corpo mas a mente, que inspira, não só os sujeitos que cantam ou escrevem e sim todos aqueles que, de algum modo se sentem tocados pela música. Na história da humanidade, a música sempre exerceu uma função primordial no “desenvolvimento do ser humano, seja no aspecto religioso, moral e social, o que contribuiu para a aquisição de hábitos e valores indispensáveis ao exercício de sua cidadania” (LOUREIRO, 2011, p. 5 apud LIMA E MELLO, 2013, p.99). Na escola, a música entra enquanto componente curricular do ensino das artes, mas será que de fato a música está presente no espaço da sala de aula? Ao nos debruçarmos sobre está questão percebemos que sua utilização, enquanto aporte teórico metodológico possui maior respaldo junto a educação infantil em comparação com os demais níveis de ensino. Nessa modalidade de ensino, a música está fortemente associada a corporeidade, presente na reprodução dos gestos narrados e na demarcação dos períodos de tempo (música para chegada, alimentação, higiene, entre outras), bem como suporte de condução de atividades, na rotina. O conhecimento aqui é dialogado por meio da ludicidade, da aprendizagem por meio da afetividade, do belo, da criatividade e da imaginação. É necessário que assim como na educação infantil, a música também seja utilizada nos anos escolares subsequentes como metodologia educativa interdisciplinar, pois como Freire (2000),

39

Sonhamos com uma escola que, sendo séria, jamais vive sisuda. A seriedade não precisa ser pesada. Quanto mais leve é a seriedade, mais eficaz e convincente é ela. Sonhamos com uma escola que, porque é séria, se dedique ao ensino de forma não só competente, mas dedicada ao ensino e que seja uma escola geradora de alegria. O que há de sério, até de penoso, de trabalhoso, nos processos de ensinar e aprender, de conhecer, é não transforma este “que fazer” em algo triste. Pelo contrário, a alegria de ensinar e aprender deve acompanhar professores e alunos em suas buscas constantes. Precisamos é remover os obstáculos que dificultam que a alegria tome conta de nós e não aceitar que ensinar e aprender são práticas necessariamente enfadonhas e tristes. É por isso que eu falava de que o reparo das escolas, urgentemente feito, já será a forma de mudar um pouco a cara da escola do ponto de vista também de sua alma (FREIRE, 2000, p.37 apud MOREIRA et al, 2014, p.50).

Seguindo o desejo expresso por Freire (2000) de uma escola menos monótona, mais dinâmica e que tome o processo de ensino e aprendizagem como algo não doloroso e obrigatório (no sentido de ser forçado a aprender), depositamos no ensino das artes (em especial da música) como sendo uma das formas de alteração desses mecanismos que engessam o ensino e a aprendizagem, permitindo que ambas floresçam sobre motes de leveza, atratividade e paixão (pela descoberta dos novos conhecimentos que não cessam em surgir). Para nos auxiliar na construção de uma escola que tenha em seu cerne os preceitos até aqui dialogados e retomando como base a importância da música nesse processo, é importante entendermos como a música, focalizada aqui no rap encontra-se no contexto educacional. De acordo com Bentes (2004), Muitos compositores, como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Djavan, tiveram as letras de suas canções exploradas em conteúdo e forma [na escola]. Os consagrados compositores da MPB são quase sempre eleitos como bons exemplos de criação poética. No entanto, é rara a presença de letras de rap nos livros didáticos, apesar de o rap ser um tipo de canção urbana muito conhecido e popular entre jovens e adultos que moram em grandes cidades (BENTES, 2004, p. 172-3 apud FONSECA, 2011, p.25 ).

Há aqui uma distinção relacionada a exploração da música enquanto conteúdo escolar, a separação se dá por meio do status consentido ao gênero musical. De certo os grandes nomes da MPB possuem obras de natureza poéticas ricas no que diz respeito ao aspecto linguístico- cultural. O problema aqui é a valorização de um único gênero musical quando, todos os outros oferecem igualmente oportunidades de letramentos. A presença escassa do Rap nos materiais didáticos revela o lugar dado socialmente a essa linguagem poética, quando este é na realidade um aglutinador de saberes. A produção

40

poético-musical do Rap auxilia “para que o aluno desenvolva noções de interpretação de textos escritos e orais, e possivelmente contribua com a produção de textos (FONSECA, 2011, p.35)”. Contudo, o Rap ainda é um gênero musical estigmatizado, rotulado como marginal, no qual o estigma que estamos nos referindo é pautado a partir de uma leitura em que

Os gregos, que tinham bastante conhecimento de recursos visuais, criaram o termo estigma para se referirem a sinais corporais com os quais se procurava evidenciar alguma coisa de extraordinário ou mau sobre o status moral de quem os apresentava. Os sinais eram feitos com cortes ou. fogo no corpo e avisavam que o portador era um escravo, um criminoso ou traidor uma pessoa marcada, ritualmente poluída, que devia ser evitada; especialmente em lugares públicos (GOFFMAN, 2004, p.5)

O estigma surge assim como uma forma de expor e separar os sujeitos em bons e maus. Essa atribuição também foi dada ao Rap, enquanto ritmo e voz da periferia, este já foi constantemente desvalorizado e atribuído como gênero marginal. Contudo essa visão vem mudando graças a transformação da mentalidade dos sujeitos, e aos estudos que buscam mostrar outra vertente do gênero, desta vez enquanto principio de saber. O lugar dado aos diferentes estilos musicais é algo que acompanha as transformações da sociedade e a evolução do pensamento humano. A música erudita ou clássica durante um longo período histórico restringia-se (e ainda o faz) a uma determinada classe ou elite, utilizada como sendo sinônimo de “música boa”. Quando interrogados quanto a essas questões, pode-se argumentar que a escola tem como responsabilidade possibilitar aos sujeitos uma miríade de saberes e experiências aos quais os não teriam acesso em outros espaço ou como afirma YOUNG (2007) a escola tem como principal função a oferta de conhecimento poderoso. Diante das problemáticas que esta apresenta em um primeiro momento pode parecer utópico ou até mesmo irrelevante levar em consideração essas questões, sobretudo quando a formação instrumentalizada mercadológica é tão presente no nosso ensino. Se nos debruçarmos sobre a história de outros gêneros musicais como o veremos que originalmente este fora depreciado devido a suas raízes, nascido das manifestações realizadas pelos escravizados ao som de tambores e batuques, manifestando sua cultura, resistência e desejo de liberdade. Rap e Samba são músicas de origem negra (como grande maioria dos gêneros musicais) durante seu surgimento, ambas em sua função de representação simbólica e expressão

41

emocional retratavam a luta e resistência do povo negro, o desejo liberdade e a necessidade de serem ouvidos e ter seus anseios atendidos. Essa é mais uma questão que a escola pode problematizar, historicamente qual o lugar dado ao negro e a população pobre na sociedade.

3.3 Entre discotecagens e conhecimentos: o Rap como suporte pedagógico para discutir educação e escolarização Não tenho sabença, pois nunca estudei, apenas eu sei o meu nome assiná. Meu pai, coitadinho, vivia sem cobre e o fio do pobre não pode estudá Patativa do Assaré

Com base no recorte acima, é possível construir uma ponte dialógica entre o Cordel e o Rap, ambos trazem como características o uso de rimas e da linguagem informal. Podendo serem utilizados para expressar experiências de vida e críticas sociais. O que pode ser comprovado no trecho do cordel de Patativa do Assaré, onde narra sua experiência com a educação, ao mesmo tempo em que faz uma crítica a essa mesma educação que segrega a população pobre. A escola é o lugar da sabedoria, que o autor afirma não ter, em razão da falta de oportunidades, ao mesmo tempo em diz não possuir sabedoria o autor á expressa ao ter consciência do lugar dado a população menos favorecida na sociedade, demonstrando deter outro tipo de conhecimento diferente, mais tão importante como aquele presente no currículo escolar, o saber advindo da vivência, da leitura feita da realidade do mundo. Buscamos neste trabalho discutir possibilidades de inserção do Rap no ambiente escolar, para tanto se faz necessário debatermos sobre o Currículo. No entanto, dialogar sobre ele não é tão simples quanto possa parecer, compreendendo que existem especificidades e uma série de questões estão envolvidas. Quando tratamos deste tema primeiro precisamos entender qual sua finalidade e as teorias e mecanismos responsáveis por sua atuação. É na década de 20 nos Estados Unidos que o Currículo passa a ser considerado um campo de estudos e pesquisas e até hoje inúmeros debates são travados a respeito das teorias curriculares existentes. Quando pensamos qual Currículo desejável para as nossas escolas, é necessário responder a uma pergunta, qual o tipo de sujeitos e sociedades queremos formar? Se desejamos promover uma educação que não meramente instrua os sujeitos, mas que o norteei na busca de soluções para os problemas e conflitos existentes, que ajude a entender qual o seu papel na trama das ações sociais, devemos ter em mente um currículo multicultural

42

pensado em promover a valorização das diferenças culturais existentes sem que haja uma sobreposição entre as mesmas. Em um processo de reflexão é possível percebermos que, a cultura e os saberes valorizados pelo Currículo e posteriormente pela escola são aqueles produzidos pelas camadas tidas como de maior prestígio social, os saberes e a cultura da população negra, indígena, do campo e periférica são constantemente invisibilizados. Quando deveria ser reponsabilidade da escola

[...] potencializar o diálogo multicultural, trazendo para dentro de seus muros não somente a cultura valorizada, dominante, canônica, mas também as culturas locais e populares e a cultura de massa, para torná-las vozes de um diálogo, objetos de estudo e de crítica (ROJO, 2009, p. 115 apud FONSECA, 2011, p.26).

Quando a escola prioriza uma cultura ou um saber em detrimento de outro, ela silencia vozes e discursos, promove desigualdades e contribui para a conservação da mesma, tendo um sentido contrario a qual deveria destinar-se. Deste modo a escola funciona como um instrumento de conservação social (BOURDIEU, 2003) a medida que é o capital cultural das classes sociais menos “favorecidas” é desconsiderado. Deste modo além de uma educação multicultural defendemos a inserção de um currículo que discuta as relações de poder existentes, não centralizada na diferenciação econômica dos sujeitos, mas também presente no âmbito da sexualidade, gênero, etnia, raça ou crença religiosa, um currículo que busque formar sujeitos conscientes e críticos. A inserção do Rap como suporte pedagógico permite dar voz e refletir sobre muitos discursos silenciados, abrindo espaço para questões aquém do conteúdo programático, promovendo um ensino mais crítico, já que o rap possui em sua identidade histórico cultural um caráter de denúncia. O Rap é uma narrativa de sujeitos conscientes daquilo que lhes foi e é negado, do lugar a eles atribuídos e de uma afirmação de identidade

o Rap, independentemente do seu ritmo acelerado, ensurdecedor, representa um instrumento político de uma juventude excluída. Independentemente do seu conteúdo (...), muitas vezes indica uma ação pedagógica de jovens em processo de escolarização ou mesmo evadidos da escola. Quem observa o seu conteúdo (...), vai encontrar uma leitura da vida social, do “fazer” da sociedade, comparada a muitos cientistas sociais que apenas superam esses jovens na linguagem culta e específica do universo científico (ANDRADE, 1999, p.86).

Contudo, o Rap não se restringe necessariamente a juventude, a identificação com o gênero musical não está restrita a fronteiras etárias, mas com as experiências de vida e os

43

conhecimentos de cada sujeito, uma criança ou um idoso pode reconhecer-se em determinada canção, essa é a magia da música ela perpassa fronteiras e atravessa os sujeitos. Como descrito por Andrade (1999) o Rap é construído a partir de um contexto social vivido, no qual uma leitura dessa realidade e de outras é discutida, possuindo o mesmo valor tal qual fosse referenciada por estudiosos. Ao nos depararmos com tal afirmação, uma questão nos vem a mente. Tendo o conteúdo trazido nas letras de rap, igual relevância comparada aos questionamentos trazidos pelos cientistas sociais, quais os motivos ou argumentos utilizados para a não inserção do Rap no currículo escolar? Podemos inferir que uma das razões da não inclusão ou utilização do rap como aporte teórico metodológico em sala de aula, provém da desvalorização de sua origem histórica enquanto cultura negra, periférica e marginalizada. A escola tende a valorizar o saber erudito, a norma culta da língua, tanto em seus usos em termos de oralidade quanto de escrita e o Rap por não ser escrito em norma culta da língua portuguesa valorizando os dialetos18 específicos da população periférica e conter algumas vezes xingamentos é desconsiderado como um instrumento promotor de aprendizagens, pois busca-se que os sujeitos tenham acesso ao saber erudito, aquilo que eles não aprendem em outros ambientes, a escola não está preocupada em trazer os conhecimentos do lugar onde os indivíduos vivem para a sala de aula , estes ele já sabe, para ela o mais importante é imbuí lo de novos saberes, quanto ela deveria erguer uma ponte entre os mesmos. No próximo capítulo discutiremos a letra do Rap Estudo Errado do rapper Gabriel o pensador, tomando como norte para a análise a classificação das funções da música feita por Merriam (1964).

18 O dialeto é produto dos processos de transição da língua, é uma particularidade, pode ser um resquício, pode conter apenas as matrizes linguísticas que lhe deram origem, mas está sempre transitando através da língua oficial, que o considera sempre uma ameaça à tradição, às regras, ao status quo mantido pela língua padrão. (FERNANDES et. al. 2013, p.81-2). Disponível em: FERNANDES, Márcia Regina. VOGES, Márcia Cristina Neves. FRANZEN, Bruna Alexandra. Língua e Dialeto: uma discussão teórica sobre a variação e o preconceito. Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI. Letras - Língua Portuguesa e Respectiva Literatura (LED0168) - Prática do Módulo III. 30/11/2013.

44

4 SOLTANDO O SOM E O VERBO: UMA ANÁLISE DO RAP “ESTUDO ERRADO” DO RAPPER GABRIEL “O PENSADOR”

Nesta seção iremos apresentar os instrumentos utilizados no desenvolvimento deste trabalho, que tem como objetivo geral compreender como a música em especial o Rap pode ser utilizado como ferramenta de discussões educacionais repensando assim o espaço escolar e o seu entorno. Para tanto utilizamos como análise o Rap Estudo Errado (1995) do rapper Gabriel “O pensador”.

4.1 Metodologia

A pesquisa se deu a partir da análise do Rap Estudo Errado do rapper Gabriel, O Pensador, que discute a educação e temas á ela relacionados. Trata-se de uma pesquisa de caráter qualitativo, a qual

(...) responde a questões muito particulares. Ela se preocupa, nas ciências sociais, com um nível de realidade que não pode ser quantificado. Ou seja, ela trabalha com o universo dos significados, motivos, aspirações, crenças, valores, e atitudes (MINAYO, 1994, p. 21).

Por isso, esse trabalho possui essa natureza, buscando entender os desejos, as crenças, os valores, as normas, atitudes, os motivos, significados e procedimentos presentes na educação e expressos no Rap.

4.2 Caracterização da pesquisa

O presente trabalho trata-se de uma pesquisa bibliográfica, que difere-se da revisão bibliográfica (esta necessária a todo o trabalho acadêmico) pois a pesquisa bibliográfica é por si só um tipo de pesquisa. Para Gil (2002) A pesquisa bibliográfica é desenvolvida com base em material já elaborado, constituído principalmente de livros e artigos científicos. Embora em quase todos os estudos seja exigido algum tipo de trabalho dessa natureza, há pesquisas desenvolvidas exclusivamente a partir de fontes bibliográficas. Boa parte dos estudos exploratórios pode ser definida como pesquisas bibliográficas. As pesquisas sobre ideologias, bem como aquelas que se propõem à análise das diversas posições acerca de um problema, também costumam ser desenvolvidas quase exclusiva mente mediante fontes bibliográficas (p.44).

45

A pesquisa bibliográfica corresponde neste escrito a uma análise sobre as questões que envolvem a educação, expressas no Rap Estudo Errado do rapper Gabriel o pensador.

4.3 Instrumentos de Análise

O referente escrito traz a análise de discurso presente em uma letra de Rap. Para Foucault (1996) A análise do discurso, assim entendida, não desvenda a universidade de um sentido; ela mostra à luz do dia o jogo de rarefação imposta, com um poder fundamental de afirmação. Rarefação e afirmação, rarefação, enfim, da afirmação e não generosidade contínua do sentido e não monarquia do significante [...] (p.70).

Assim práticas discursivas envolvem investigação frente a como estas se organizam e quais resultados causados por esta ser como é. Além da análise de discurso também utilizamos como instrumentos de pesquisa a classificação de leitura feita por Gil (2002). A primeira etapa foi realizada a partir de uma leitura de cunho exploratório com o propósito de averiguação de obras e a viabilidade de sua utilização, foram lidos resumos de livros, artigos, teses, dissertações e monografias, tomando como base o tema de pesquisa e os objetivos propostos. Em seguida, realizamos uma leitura seletiva tendo como objetivo definir o material que contribui com a finalidade da pesquisa. Por fim, seguimos com a análise e interpretação das fontes bibliográficas. O último procedimento de análise utilizado consiste na classificação das funções da música feita por Merriam (1964) dialogando no início deste escrito na página 16, das dez funções sociais principais destacamos cinco delas para compor este escrito são elas:  Função de expressão emocional  Função de comunicação  Função de representação simbólica

Sendo assim, prosseguiremos com análise do Rap Estudo Errado como um aporte musical que oportuniza conhecimentos e propicia que os sujeitos reflitam sobre a realidade do ambiente educacional, dialogando sobre diferentes perspectivas, entre elas interdisciplinarmente a música.

4.4 É possível pensar a escola através da música “Estudo Errado” do rapper Gabriel, O Pensador?

46

Rima é Ação De Unir O útil Ao Agradável Minha Escolha De Vida, Meu Prazer Inexplicável Rimar, é Crer Pra Mim Que Ainda Existe Esperança é A Arte Marginalizada Que Quer Ver Mudança... Emicida

Gabriel Contino, mais conhecido como Gabriel O Pensador, é um compositor, cantor de Rap, escritor e ativista social, nascido em 1974 na cidade do . Gabriel diferisse de uma parcela significativa dos rappers por ser um rapaz branco e de classe média, chegou a ser criticado pelos mesmos por isso. Desde o início de sua carreira as letras de suas músicas são voltadas a críticas sociais um dos pilares ao qual o Rap esta alicerçado. Seu interesse pela música surge desde cedo quando ainda era estudante de Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio de janeiro 1992 ao lançar uma fita demo com a música “Tô Feliz (Matei o Presidente)”. No ano seguinte em decorrência do sucesso da música é contratado pela e lança seu primeiro cd intitulado “Gabriel o pensador” ganhando notoriedade no cenário musical e nas rádios do país com os sucessos “Loraburra”, “Retrato de um Playboy” e “Lavagem Cerebral”. Outros álbuns foram lançados Ainda é só o começo (1995), Quebra cabeça (1997), Seja você mesmo (Mas não seja o mesmo), Nádegas a Declarar (2002), Cavaleiro Andante (2005) e Sem Crise (2012). O álbum Ainda é só o começo (1995) traz duas faixas como destaque “FDP” e “Estudo Errado” ambas com teor crítico ferrenho. Estudo Errado é um Rap com duração de cinco minutos e doze segundos onde Gabriel o pensador narra, descreve e argumenta sobre a escola, seus métodos, conteúdos e os sujeitos inseridos naquele espaço. Após a descrição da biografia do rapper, nossa análise será iniciada, a partir do título da música Estudo Errado. O nome já dá uma ideia do que será abordado na letra. Diante disso a música começa com a chamada feita pela professora, para registrar a presença dos alunos, ritual típico nas salas de aula e segue com os versos:

Eu tô aqui pra quê? Será que é pra aprender? Ou será que é pra sentar, me acomodar e obedecer?

Nessas três primeiros frases são trazidos questionamentos a respeito de qual é a função da escola, ensinar os sujeitos conhecimentos ou disciplina-los?

47

Aprender vem do latim apprendere significa de acordo com o dicionário online de português (2019); “passar a ter conhecimento sobre; instruir-se: passar a possuir habilidade técnica (em)”. É um verbo comumente associado à escola tanto que, quanto nos indagados a respeito de qual a importância de frequentar esse ambiente uma das respostas que formulamos é a de que, é importante ir à escola para aprender, para adquirir conhecimentos. No entanto, é importante ressaltar que a escola não é o único lugar, onde o saber é assimilado. Aprendemos todos os dias e em todos os espaços. A diferença entre o saber que a escola proporciona em relação a outros lugares como a igreja, a família e o trabalho é que nela se produz um tipo de aprendizagem específica, organizada sistematicamente e com objetivos previamente determinados, um espaço de transmissão de uma cultura mais elaborada (MELLO e FARIAS, 2010). Parafraseando a ideia de Young (2007) a escola tem como responsabilidade o ensino de conhecimento poderoso, no sentido de que este tipo de conhecimento permite novos modos de agir e refletir frente as questões sociais e, consequentemente, educacionais. Além da aquisição de conhecimentos a escola nos disciplina dociliza nossos corpos Foucault (1987), através de meios educacionais

[...]por exemplo, a fila, a carteira, o treino para a escrita, os exercícios com dificuldades crescentes, a repetição, a presença de tempo e num espaço recortados, a punição pelo menor desvio de conduta, a vigilância por parte de um mestre ou monitor, as provas, os exames, os testes de aprendizagem e de recuperação, o treinamento dentro de padrões de normas fixos. E mais, os resultados dos esforços pedagógicos sendo permanentemente avaliados por critérios eles padronizados, leva a uma simples análise de boletins, que sirva para medir os casos que desviam, portanto serve para marcar, excluir, normatizar (ARAÚJO, 2002, p.79)

Isso acontece em razão da sociedade moderna ser técnica/cientifica e a escola enquanto instituição social, cultural e histórica está sujeita as mudanças ocorridas em seus setores, acabando por ter de adaptar-se e dirigir seus esforços ao atendimento de suas necessidades. Qual a necessidade do sistema capitalista no tocante a educação? Imbuir os sujeitos de conhecimentos que o auxiliaram a desenvolver uma função dentro do mercado de trabalho. Em resposta aos questionamentos feitos pelo rapper nesse início da música podemos argumentar que os sujeitos estão sim na escola para obter conhecimento, mas a escola também é um ambiente que ensina obediência.

48

Isso faz parte do Currículo oculto, que são os conhecimentos que são disseminados subliminarmente, os ensinos das normas sociais e concepções de conduta. Obedecer é uma norma escolar, uma vez que dentro desse ambiente seguem-se rituais pré-determinados. Diante disso mais a frente à música segue com a seguinte estrofe:

Tô tentando passar de ano pro meu pai não me bater Sem recreio de saco cheio porque eu não fiz o dever A professora já tá de marcação porque sempre me pega Disfarçando, espiando, colando toda prova dos colegas E ela esfrega na minha cara um zero bem redondo E quando chega o boletim lá em casa eu me escondo

Não passar de ano é considerada uma falta grave, passível de punição física. Em uma leitura de Foucault (1987) a punição é uma forma de manter controle sobre o corpo dos sujeitos. Isso é exatamente o que o pai do narrador faz, usa a punição sobre o corpo como um meio para controlar a ação de seu filho, e exigir com que este passe de ano. Além da punição com que o narrador tem de lidar dentro de casa, caso não cumpra a ordem de seu pai, a escola também o pune, por meio de medidas disciplinares (ficar sem recreio), resultantes do não cumprimento das normas (não fazer o dever). Para Foucault (1987) as punições existem para que o sistema disciplinar possa obter êxito e estas recaem sob aspectos do

[...] tempo (atrasos, ausências, interrupções das tarefas), da atividade (desatenção, negligência, falta de zelo), da maneira de ser (grosseria, desobediência), dos discursos (tagarelice, insolência), do corpo (atitudes „incorretas‟, gestos não conformes, sujeira), da sexualidade (imodéstia, indecência) (p.171-172).

Através do discurso foucaultiano e do trecho do rap explicitado na página anterior podemos argumentar que as medidas disciplinares recaem em todas as ações consideradas como desvio de conduta. Para o autor a prova, instrumento avaliativo que também é retratado no Rap, é utilizada como um meio disciplinar em razão de buscar “cada vez mais uma comparação perpétua de cada um com todos, que permite ao mesmo tempo medir e sancionar” (FOUCAULT, 1987, p. 178). Deste modo, a prova é um instrumento que tem como funções medir, averiguar e punir os sujeitos. Essa última função é utilizada pela professora no trecho do Rap presente na página anterior, em resposta a “cola” do aluno ela o pune com nota zero na prova. Logo em seguida, o Rap segue com os seguintes versos:

49

Eu quero jogar botão, vídeo-game, bola de gude Mas meus pais só querem que eu "vá pra aula!" e "estude!" Então dessa vez eu vou estudar até decorar cumpádi Pra me dar bem e minha mãe deixar ficar acordado até mais tarde Ou quem sabe aumentar minha mesada Pra eu comprar mais revistinha (do Cascão?) Não. De mulher pelada A diversão é limitada e o meu pai não tem tempo pra nada E a entrada no cinema é censurada (vai pra casa pirralhada!)

Podemos inferir que a função de representação emocional, está presente nos desejos expressos, do filho em querer brincar e dos pais em querer que ele estude. O estudo é descrito sob os motes da Escola Tradicional, visto aqui na ação de memorizar o conteúdo. Para um bom desempenho há uma recompensa, estabelecendo assim uma relação de estímulo e resposta. Ao cinema atribuímos a função de representação simbólica de entretenimento, esta limitada devido sua censura. A relação da família também é um ponto discutido no recorte acima, na frase: “o meu pai não tem tempo pra nada” fica expresso como as relações familiares influenciam nos modos de ser e agir da criança dentro do espaço escolar. Vivemos em uma sociedade moderna, novas dinâmicas de organização familiar foram construídas, em razão das mudanças sociais, econômicas, culturais, temos nos dias atuais modelos familiares diferentes de tempos atrás. A própria relação da família com o trabalho mudou, os pais ou responsáveis, trabalham cada vez mais, isso acaba por diminuir o tempo de convívio com os filhos. Quanto a isso, Prestes (2005) afirma que

A educação dos filhos assume um caráter de maior permissividade junto aos pais, com as mudanças ocorridas na estrutura familiar, permitindo maior liberdade aos filhos, esquecendo que eles necessitam de apoio e educação. Nesta dinâmica familiar, temos visto a crescente “crise de gerações”, a dificuldade no relacionamento pais/filhos, no estabelecimento de laços familiares” (PRESTES, 2005, p.35apud MORAIS, s/d, p.6).

A família é fator essencial em todas as áreas do processo de desenvolvimento dos sujeitos juntamente com a escola. Estas devem trabalhar em comunhão no estabelecimento de um projeto pedagógico que atenda os anseios e necessidades de ambas as partes. Diante disso, o rapper continua sua narração, trazendo:

A rua é perigosa então eu vejo televisão (Tá lá mais um corpo estendido no chão) Na hora do jornal eu desligo porque eu nem sei nem o que é inflação - Ué não te ensinaram?

50

- Não. A maioria das matérias que eles dão eu acho inútil Em vão, pouco interessantes, eu fico pu.. Tô cansado de estudar, de madrugar, que sacrilégio (Vai pro colégio!!) Então eu fui relendo tudo até a prova começar Voltei louco pra contar:

Na primeira frase é discutida a violência19 presente nas ruas, tendo em vista que este Rap foi escrito há mais de duas décadas, a criminalidade que o rapper se refere era menor na época se comparada aos dias atuais. Os perigos presentes nas ruas que impedem que as crianças brinquem livremente nas calçadas são usados como justificativa para assistir televisão, que acaba por noticiar essa mesma violência, da qual se está tentando fugir.

[...] a violência e a falta de segurança são apontadas como fatores que impedem a escolha do lazer das pessoas, contribuindo para que fiquem reféns de suas próprias residências, aumentando o já elevadíssimo número de indivíduos que tem na casa o seu principal equipamento de lazer (MARCELLINO et al, 2006, p. 60 apud SILVA E NUNES, 2008, p.7).

Neste recorte da música, a função de expressão emocional discutida está presente na mudança de comportamento do sujeito diante da violência vivida, que o leva a tomar medidas cautelosas frente a está, a fim de evitá-la, em consequência como afirma Marcelino (et al 2006) a casa passa a ser um espaço de entretenimento. À televisão, atribuímos a função de expressão de comunicação, informando os sujeitos sobre os mais variados temas entre eles a violência e a inflação, este último o narrador afirma não entender, por essa razão a desliga. Sua ação acaba por desencadear um questionamento: “Ué não te ensinaram?”, a qual responde que não. Em seguida, apontamos a função de expressão emocional, dialogada por meio dos sentimentos de revolta, desinteresse e até mesmo raiva frente aos conteúdos presentes nas disciplinas escolares e lecionados dentro da sala de aula. O debate trazido aqui pelo rapper está ancorado no Currículo Oficial escolar no que as disciplinas trazem como conhecimento. Esse é um tema bastante discutido no que diz respeito a educação, pois é possível questionar acerca de quais são os conhecimentos necessários na

19 No ano de 1995 o Brasil registrava uma taxa de 23,8 homicídios a cada 100 mil habitantes. O mapa da violência produzido no ano de 2018 mostra um dado de 62.517 assassinatos cometidos no país em 2016. Colocando o Brasil em uma escala de violência 30 vezes maior que o continente europeu. Só nos últimos 10 anos 553 mil mortes violentas foram registradas correspondendo a 153 mortes ocorridas diariamente. Disponível me: WAISELFISZ. Júlio Jacobo. Mapa da Violência 2012 os novos padrões da violência homicida no Brasil. E também no site: https://oglobo.globo.com/brasil/atlas-da-violencia-2018-brasil-tem-taxa-de-homicidio-30-vezes- maior-do-que-europa-22747176. Acesso em 01 de abril de 2019.

51

formação dos sujeitos com vistas a desenvolvê-lo em suas múltiplas capacidades, permitindo ainda que ele consiga atribuir sentido naquilo que é estudado, algo que não acontece no recorte anterior da música, resultando em uma aprendizagem escolar enfadonha, pois “o processo de aprendizagem depende da razão que motiva a busca de conhecimento” (KUPFER, 1995, p.79 apud PEZZINI e SZYMANSKI, s/d, p.2 ). O ato de estudar no texto descrito corresponde a uma ação com um único propósito definido passar na prova. Em seguida, segue o refrão do Rap. Manhê! Tirei um dez na prova Me dei bem, tirei um cem e eu quero ver quem me reprova Decorei toda lição Não errei nenhuma questão Não aprendi nada de bom Mas tirei dez (boa filhão!) Quase tudo que aprendi, amanhã eu já esqueci Decorei, copiei, memorizei, mas não entendi Quase tudo que aprendi, amanhã eu já esqueci Decorei, copiei, memorizei, mas não entendi

Nesse trecho do Rap é possível perceber a presença da função de representação social de comunicação que vista por meio do diálogo presente entre o narrador (filho) e seus pais, ao quais ele informa sua nota na prova, bem como sua situação no tocante a aprendizagem. A função de representação simbólica está presente através da prova que simboliza se ouve ou não aprendizagem, é por meio dela que os resultados são quantificados e reduzidos a duas palavras, aprovação e reprovação. Como exposto no recorte a prova é muitas vezes falha e produz falsos resultados positivos uma vez que mostra um resultado que não condiz com a realidade. O rapper ainda utiliza de ironia enquanto figura de linguagem em para expressar seu descontentamento frente ao método de aprendizagem aqui é submetido, este correspondente as Tendências Pedagógicas Tradicionais de ensino que enfatizam a repetição constante dos conteúdos de aprendizagem através da memorização, o famoso “decoreba”. utilizado para passar nas provas. A memorização é responsável pela fixação do conteúdo pelo cérebro. Decorar não é algo ruim, é parte integrante para que a aprendizagem aconteça, discorre aqui é a memorização enquanto método pedagógico, não como componente do saber. A crítica que ele faz é em relação a um ensino “com caráter mecânico, artificial, desatualizado dos conteúdos próprios da escola tradicional (SAVIANI, 1999, p.74). Ainda em relação ao tema da memorização presente na música, temos:

52

Decoreba: esse é o método de ensino Eles me tratam como ameba e assim eu não raciocino Não aprendo as causas e consequências só decoro os fatos Desse jeito até história fica chato Mas os velhos me disseram que o "porque" é o segredo Então quando eu num entendo nada, eu levanto o dedo Porque eu quero usar a mente pra ficar inteligente Eu sei que ainda não sou gente grande, mas eu já sou gente E sei que o estudo é uma coisa boa O problema é que sem motivação a gente enjoa

Novamente, o rapper dialoga sobre a metodologia de ensino, que não o reconhece enquanto sujeito dotado de inteligência e acaba por limitar sua capacidade de pensar. A frase eles me tratam como ameba e utilizada em sentido figurado para reforçar a ideia do rapper, e em sua função de representação emocional para expressar os seus sentidos diante da realidade descrita. O ensino narrado no trecho da música acima é fragmentado, reduzido a fatos soltos, o que culmina em tornar as disciplinas desinteressantes, como estratégia para fugir da metodologia descrita, ele levanta a mão para perguntar o que não entendeu e “perguntar “é o início da aprendizagem. “... o que o professor deveria ensinar [...] seria, antes de tudo, ensinar a perguntar. Porque o início do conhecimento, repito, é perguntar. E somente a partir de perguntas é que se deve sair em busca de respostas Freire, (1985, p. 46).” O rapper afirma ter plena consciência de que é um cidadão mesmo que ainda não seja adulto, ele sabe que a educação é um direito, os versos são escritos para mostrar o seu desagrado frente a todo um contexto situacional, ao longo da música ele vai fazendo sugestões que ele acredita serem soluções para melhoria do ensino. O estudo é descrido como algo bom, mas que necessita de mecanismos que o tornem interessante, oportunizando que o estudante lhe atribua sentido. Sendo assim a música prossegue a partir do seguinte trecho: O sistema bota um monte de abobrinha no programa Mas pra aprender a ser um ingonorante (...) Ah, um ignorante, por mim eu nem saía da minha cama (Ah, deixa eu dormir) Eu gosto dos professores e eu preciso de um mestre Mas eu prefiro que eles me ensinem alguma coisa que preste - O que é corrupção? Pra que serve um deputado? Não me diga que o Brasil foi descoberto por acaso! Ou que a minhoca é hermafrodita Ou sobre a tênia solitária. Não me faça decorar as capitanias hereditárias!! (...)

53

Nesse recorte do Rap dialogamos duas das funções de representações sociais, sendo a primeira de representação emocional expressa na fala do gostar dos professores. A segunda é a função de comunicação presente na sugestão de alocação e saída dos temas para estudo. O narrador dá entender que os conteúdos escolares, não contribuem para retirá-lo da ignorância, e expressa o desejo de que o currículo priorize a socialização dos mesmos junto ao contexto social. Quanto a isso, Lopes (2000) argumenta que

[...] a vivência do cotidiano escolar nos tem evidenciado situações bastante questionáveis neste sentido. Percebesse, de início, que os objetivos educacionais propostos nos currículos dos cursos apresentam confusos e desvinculados da realidade social. Os conteúdos a serem trabalhados, por sua vez, são definidos de forma autoritária, pois os professores, via de regra, não participam dessa tarefa. Nessas condições, tendem a mostrar-se sem elos significativos com as experiências de vida dos alunos, seus interesses e necessidades (p. 41).

O Currículo está sempre no cerne da questão pedagógica, sobretudo nos dias atuais, com a implantação das novas reformulações curriculares. Falar sobre este envolve ideologias, política, cultura enfim todo um projeto de sociedade. Por isso que debater sobre ele é tão importante, porque o Currículo é aquilo que nos forma, nossa educação escolar é também, entre outros fatores, resultado do Currículo ao qual fomos expostos. Continuando, a música explana o seguinte:

Vamos fugir dessa jaula! "Hoje eu tô feliz" (matou o presidente?) Não. A aula Matei a aula porque num dava Eu não aguentava mais E fui escutar o Pensador escondido dos meus pais Mas se eles fossem da minha idade eles entenderiam (Esse num é o valor que um aluno merecia!)

Retomando a ideia de Foucault (1987) no livro “Vigiar e Punir”, a escola assume características de prisão, como a expressa na frase: vamos fugir dessa jaula, dentre as muitas características que assemelham essas duas instituições sociais o autor cita, os muros, a disciplina e a punição frente aos desvios de conduta. A frase "Hoje eu tô feliz" (matou o presidente?) é uma referência a música tô feliz (matei o presidente), canção que lançou o rapper no cenário musical, o personagem principal era o ex-presidente Fernando Collor de Melo que na época tinha passado por um processo de impeachment e renunciado ao cargo. A música foi lançada no ano de 1990, e censurada no

54

ano seguinte, pois segundo o juiz que expediu o mandado de retirada das rádios, o Rap incitava o assassinato de um presidente da república. O trecho do Rap da página anterior também apresenta funções sociais da música. A função de representação emocional é dialogada por meio da felicidade que o narrador exprime ao faltar à aula, assim como na reflexão que o mesmo faz na frase Esse num é o valor que um aluno merecia!). Essa mesma frase é utilizada em outro Rap do cantor intitulado 157 Nada especial, mas na sentença a palavra aluno é trocada por professor (Esse num é o valor que um professor merecia!). Dando prosseguimento a música temos:

Íííh... Sujô (Hein?) O inspetor! (Acabou a farra, já pra sala do coordenador!) Achei que ia ser suspenso mas era só pra conversar E me disseram que a escola era meu segundo lar E é verdade, eu aprendo muita coisa realmente Faço amigos, conheço gente, mas não quero estudar pra sempre!

O rapper da à impressão de que ele está cantando a música dentro da sala de aula/ ou na escola, como resultado acaba indo para sala do coordenador, o qual durante o diálogo afirma que a escola é o seu segundo lar. O que é um afirmação falaciosa, a escola não é uma extensão da casa nem da família dos (as) alunos (as), essas instituições tem objetivos próprios diferentes, ao denominar a escola como segundo lar do (a) estudante, atribui-se funções a esta que não lhe dizem respeito. A escola e a família devem sim trabalhar juntas em um regime de colaboração. A LDB, em seu Art.2º, afirma que

A educação, dever da família e do estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (BRASIL, 2019, p.27).

Sob esse prisma, escola e família tem o compromisso de educar os sujeitos em um regime de colaboração. Criando um ambiente de respeito, participação, engajamento e confiança com vistas ao desenvolvimento educacional dos sujeitos em sua plenitude. O Rap continua com

Encarem as crianças com mais seriedade Pois na escola é onde formamos nossa personalidade

55

Vocês tratam a educação como um negócio onde a ganância, a exploração, e a indiferença são sócios Quem devia lucrar só é prejudicado Assim vocês vão criar uma geração de revoltados Tá tudo errado e eu já tou de saco cheio Agora me dá minha bola e deixa eu ir embora pro recreio

Em um primeiro momento apresentamos a função de representação emocional expressa no desejo de um novo tratamento para como a criança. A função de representação simbólica é dialogada logo em seguida, expressa na representatividade da escola como instituição que constrói a personalidade dos sujeitos. A educação na letra é descrita como uma empresa que visa lucros e explora seus empregados, os quais são responsáveis pelos ganhos obtidos, e ao invés de obter créditos por isso, só são prejudicados. Podemos inferir que nesse trecho o rapper refere-se as bases governamentais que tratam da educação, que constituem as leis do sistema educacional, definem as bases curriculares, os repasses de verba para esse setor enfim a estrutura que compõe a educação no país. Na frase Quem devia lucrar só é prejudicado pensamos que o rapper aqui refere-se aos estudantes, já que ele dialoga enquanto aluno presente no espaço escolar, lucrar aqui poderia ser no sentido de adquirir saber, mas o que acontece é o contrário e o sistema o prejudica. Encerrando temos

Juquinha você tá falando demais assim eu vou ter que lhe deixar sem recreio! Mas é só a verdade professora! Eu sei, mas colabora se não eu perco o meu emprego

Nestes últimos versos o rapper dá nome ao personagem da música que é repreendido e ameaçado com castigo pela professora por expressar sua opinião, a mesma sabe que ele está correto em suas observações, mas também é vítima desse sistema e se vê incapaz de mudar essa situação. Um exemplo disso pode ser visto na história recente com a ameaça da Lei 7.800/2016 conhecida como Lei da Mordaça, que tentou silenciar e criminalizar os professores que expressassem seus anseios e concepções em qualquer base seja ela política religiosa, ideologica ou moral, bem como proibir a ideologia de gênero (termo que não existe) e os usos dos termos “gênero” e “orientação sexual”. Felizmente a proposta não foi aprovada.

56

ENCERRANDO A BATIDA OU CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo constatou a importância do Rap enquanto elemento contributivo a aprendizagem por meio de uma orientação curricular interdisciplinar, como forma de educar os sujeitos visando o estabelecimento de conhecimentos que dialoguem com a realidade. Entendemos que através do Rap é possível estabelecer um diálogo com a educação, visando a construção de sujeitos conscientes, críticos e reflexivos. Compreendemos que o Currículo é um dos atores principais para o estabelecimento desta perspectiva e que é necessário discutir as questões históricas, sociais, culturais e econômicas que o envolvem, constituem e o quanto estas influenciam sua construção sob motes mais democráticos e inclusivos. Percebemos que por meio do Rap Estudo Errado do rapper Gabriel o pensador, é possível dialogar a escola, buscando repensar as práticas existentes em seu cerne e como os sujeitos que se fazem presentes naquele espaço são afetados por tais, entendendo que é necessário dar voz aos sujeitos a quem a ação da aprendizagem e direcionada. As funções sociais da música vem como elementos para se pensar como está pode ser utilizada dentro da sala que aula, bem como para discutir qual lugar ocupa na escola. A junção dos aportes e referencias teóricos nos levam a refletir que a música, permite uma gnose de saberes que podem ser dialogados sob diversos primas função, analise de discurso e interdisciplinaridade, está última também pode ser dialogada em um ação conjunta com os demais. Por meio da análise, percebemos o quanto o Rap pode contribuir no debate sobre a educação e escolarização e repensar o processo pelo qual estas se dão, vislumbrando que sua contribuição enquanto aporte interdisciplinar pode se dar por diferentes aspectos, assimilando que a música possui funções de representação sociais e que estas contribuem para descrever, caracterizar, e refletir diante de situações, sentimentos, lugares, sujeitos, objetos entre outros. Concluímos que o Rap enquanto elemento histórico considerado marginalizado, traz consigo toda uma gama de conhecimento e arcabouço cultural que se inter-relacionam aos saberes produzidos e explorados no âmbito educacional e que a escola tem por responsabilidade trazer esse olhar crítico sobre si mesma e o seu entorno, como nos mostra o referencial teórico apresentado neste trabalho com Freire (2000), Saviani (1999) e Libâneo (1998). Percebemos que os documentos oficiais como a LDB e a BNCC trazem o tema da música e da interdisciplinaridade, mas não são suficientes para que estas sejam abordadas

57

dentro da sala de aula, a legislação é um começo, mas o envolvimento de todos os sujeitos que compõe a educação é que garantem ou não que o uso de uma metodologia funcione. Neste trabalho discutimos questões pertinentes em relação à escola aquilo que esta aborda, e o que queremos que contemple, atribuindo a música essencialmente ao Rap como um elemento de interlocução entre os saberes escolares e o conhecimento e a reflexão de mundo. Portanto é necessário que o tradicionalismo educacional ceda lugar a novas perspectivas elencando aqui a interdisciplinar, com vistas ao desenvolvimento de uma pedagogia mais efetiva. Portanto, acreditamos que este trabalho pode contribuir para desmistificar conceitos e para refletir sobre novas formas de construir saberes, entendendo que os conhecimentos e aprendizagem renovam-se e que é necessário dialogar o conhecimento cientifico junto ao conhecimento de mundo e isso pode ser feito com música enquanto suporte pedagógico e interdisciplinar em que o currículo escolar é percebido e estudado de maneira prismática e somativa na intenção de contribuição para a educação brasileira.

58

REFERÊNCIAS

ARROYO, Miguel G. Pedagogias Em Movimento – o que temos a aprender dos Movimentos Sociais? Currículo sem Fronteiras, v.3, n.1, pp. 28-49, jan/jun 2003.

ARAÚJO, Inês Lacerda de. Da “pedagogização” à educação: acerca de algumas contribuições de Foucault e Habermas para a filosofia da educação. Revista Diálogo Educacional, Curitiba, v. 3, n.7, p. 75-88, set./dez. 2002.

ANDRADE, Anielly da Silva. A música como instrumento facilitador da aprendizagem na educação infantil. Universidade Estadual da Paraíba. Centro de Humanidades Osmar de Aquino. (TCC). Guarabira-PB. 2012.

ANDRADE, Mario. Pequena história da música. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.

BORGES, Cândida. Música, tempo e outros conceitos. Rio de Janeiro, 2003.

BOURDIEU, Pierre. A escola conservadora as desigualdades frente a escola e a cultura . In escritos de educação, Petrópolis: Vozes, 2003.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é educação. São Paulo: Brasiliense,2007. – (Coleção primeiros passos; 20).

BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Disponível em: www.planalto.gov.br/civil_03/ato2007-2010/2008/lei/l1769.htm. Acesso em 07/11/2017.

BRITO, Teca Alencar de. Música na educação infantil. [fotos Michele Mifano] – São Paulo: Peiropólis, 2003.

CHARLOT, Bernard. Da relação com o saber: elementos necessários para uma teoria. trad. Bruno Magne. – Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 2000.

CAMBI, Franco. História da Pedagogia. Tradução de Álvaro Lorencini. – São Paulo: Editora UNESP 1999, - (Encyclopaidéia)

CATÃO, Virna Mac-Cord. Música e escola: um estudo sócio histórico sobre musicalização. Revista UNIABEU, Belford Roxo. v. 3., n. 5, 2010.

59

CORREIA, Marcos Antônio. A função didático-pedagógica da linguagem musical: uma possibilidade na educação. Educar, Curitiba, n. 36, p. 127-145, 2010. Editora UFPR.

ECCO, Idanir. NOGARO, Arnaldo. A educação em Paulo Freire como processo de humanização. EDUCERE XII Congresso Nacional de Educação. 2015

FISCHER, Catarina Justus. Percepção musical e vocal: problemas e reflexões. Revista da FUNDARTE, Montenegro, p.45-63, ano 17, nº 34, agosto/dezembro. 2014.

FONSECA, Ana Silvia Andrea da. Versos violentamente pacíficos: o rap no currículo escolar. Tese (doutorado) – Campinas, SP: [s.n.], 2011.

FERREIRA, Tania Maria Ximenes. Hip Hop educação: mesma linguagem, múltiplas falas. – Campinas, SP [s.n.], 2005.

FERREIRA, Mauricio dos Santos e TRAVERSINI, Clarice Salete. Análise foucaultiana do discurso como ferramenta metodológica de pesquisa. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 38, n. 1, p. 207-226, jan./mar. 2013. Disponível em: http://www.ufrgs.br/edu_realidade. Acessado em 08 de janeiro de 2019.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 3° edição: São Paulo 1996. ISBN: 85-5-01359- 2.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: o nascimento da prisão; tradução de Raquel Ramalhete. Petropólis, vozes, 1987. 288p.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários a prática educativa. São ______. Educação e mudança. 26. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.São Paulo: Paz e Terra, 1996. (Coleção Leitura).

GIL, Antônio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 4. Ed. – São Paulo: Atlas 2002.

GOFFAMAN, Erving. Estigma. Tradução: Mathias Lambert. 2004

GRANJA, Carlos Eduardo de Souza Campos. Musicalizando a escola: música, conhecimento e educação. São Paulo: Escrituras Editora, 2006.

60

HUMMES, Júlia Maria. As funções do ensino de música na escola, sob a ótica da direção escolar: Um estudo nas escolas de Montenegro. (Dissertação). Porto Alegre. 2004.

______Porque é importante o ensino de música? Considerações sobre as funções da música na sociedade e na escola. Revista da ABEM. n°11. 2004.

LIBÂNEO, José Carlos. Perspectivas de uma pedagogia emancipadora face ás transformações do mundo contemporâneo. Revista Pensar a Prática, Goiás, v. 1, p. 1-22, jan./jun. 1998.

LIMA, Cynthia da Silva. MELLO, Leila Mara. A importância da música no processo de aprendizagem. Ciência Atual. Rio de Janeiro. Volume 1. 2013.

LOPES, Antonia Osima. Planejamento do ensino numa perspectiva de educação. In: VEIGA, Ilma Passos Alencastro. Repensando a didática, 16ª. Ed. Campinas: Papirus, 2000. P.158

LUCK, Heloísa. Pedagogia interdisciplinar: fundamentos teórico-metodológicos. 16 ed. Petropolis, RJ: Vozes, 2009.

LUZ, Márcia Gomes Eleutério da. Narrativas musicais na construção de identidades e processo educacional. nº de folhas (175). Dissertação de Mestrado em Educação – Universidade Estadual de Maringá. Orientador: Teresa Kazuko Teruya. Maringá, 2012.

MERRIAM, Allan. The Anthropology of Music. Evanston: Northwestern University Press, 1964.

MINAYO, Maria Cecília de Souza. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 23. Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.

MOURA, Gercinaldo. Escolarização e Educação: da convergência à divergência. Revista Cientifica da FASETE – Ano 1. n. 01. 2017.

MOREIRA, Ana Claudia. SANTOS, Halinna. COELHO, Irene S. A música na sala de aula - a música como recurso didático. UNISANTA Humanitas – p. 41-61; Vol. 3 nº 1, (2014).

MORAIS, Jaqueline Dario Toledo de. O Brincar em família e o desenvolvimento do Ensino e Aprendizagem nas crianças. Disponível em:

61

https://www.portaleducacao.com.br/conteudo/artigos/psicologia/o-brincar-em-familia-e-o desenvolvimento-do-ensino-e-aprendizagem-nas-criancas/27859. Acesso em:01 de abril de 2019.

NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos ou como filosofar como o martelo. Curitiba: Hemus, 2001.

PEZZINI, Clenilda Cazarin. SZYMANSKI, Maria Lidia Sica. Falta de desejo de aprender: Causas e Consequências.

PLATÃO. A república. Tradução: Erico Corvisiere. Editora Nova Cultural Ltda. Edição Integral. Titulo Original: flAATQNOZ rIOAOTEIA. São Paulo. Copyright © 1997. Círculo do Livro Ltda.

PERES, Deives. Modalidades de educação e o trabalho do professor: Do contexto histórico da educação formal aos saberes e práticas contemporâneas da educação não formal. Revista Contemporânea da Educação, vol.8, n.16, agosto/dezembro de 2013.

SANCHOTENE, Ângela Beatriz Crivellaro. Funções da música no Ensino fundamental: Um olhar sobre cinco escolas estaduais de Porto Alegre/RS. (Dissertação de Mestrado) Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 2006.

SAVIANI, Dermeval. Escola e democracia: teorias da educação, curvatura da vara, onze teses sobre educação e política. Campinas, Autores Associados, 1999. (Coleção polêmicas do nosso tempo; v. 5)

SACRISTÁN, J. Gimeno. O currículo: uma reflexão sobre a prática. 3. ed. Porto Alegre: ArtMed, 2000.

SILVA, Ademir José da; PIRES, Mateus Marchesan. As letras de rap como recurso metodológico no ensino de Geografia e na percepção do espaço vivido. Cadernos PDE, Paraná. v. 1, p. 1-15, 2014.

SILVA, Gilda Olinto do Valle. Capital cultural, classe e gênero em Bourdieu. INFORMARE - Cad Prog Pós-Grado CioInf., v.l, n.2, p.24-36, jul./dez. 1995.

62

SILVA, Junior Vagner Pereira da. NUNES, Paulo Ricardo Martins. Cidade, a criança e o limite geográfico para os jogos/brincadeiras. Licere, Belo Horizonte, v.11, n.3, dez./2008

SILVA, T. T. Documentos de identidade: uma introdução as teorias do currículo. Belo Horizonte: Auténtica, 1999.

TEODÓSIO, Marcela Dias. O Rap e suas ressignificações. (Dissertação de Mestrado). Universidade Federal de São Carlos: UFSCar. São Carlos. 2011. 131f.

TEPERMAN, Ricardo. Se liga no som: as transformações do rap no Brasil. - 1a ed. - São Paulo: Claro Enigma, 2015. - (Coleção Agenda brasileira)

VIDON, Geyza Rosa Oliveira Novais. A narratividade do hip hop e suas interfaces com o contexto educacional. Tese de doutorado. Universidade Federal do Espirito Santo. Vitória (ES), 2014.

YOUNG, Michael. Para que servem as escolas? Educ. Soc., Campinas, vol. 28, n. 101, p. 1287-1302, set./dez. 2007.

ZENI, Bruno. O negro drama do rap: entre a lei do cão e a lei da selva. Estudos Avançados 18 (50), 2004.

Endereços eletrônicos https://www.letras.mus.br › Hip Hop/Rap › Mv Bill › Só Deus Pode Me Julgar https://www.letras.mus.br › Hip Hop/Rap › DLN › Quadro Educacional https://www.letras.mus.br › Hip Hop/Rap › Thaíde & DJ Hum › Sr. Tempo Bom https://www.letras.mus.br › Sertanejo › Patativa do Assaré › O Poeta da Roça https://www.pensador.com/frase/MTA1MzM https://www.vagalume.com.br/emicida/porque-eu-rimo.html https://www.letras.mus.br › Hip Hop/Rap › Gabriel O Pensador › Estudo Errado