A Inscrição Da Diferença No Discurso Da Música Rap

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A Inscrição Da Diferença No Discurso Da Música Rap Anais do 6º Encontro Celsul - Círculo de Estudos Lingüísticos do Sul A INSCRIÇÃO DA DIFERENÇA NO DISCURSO DA MÚSICA RAP Fabiane Silva Pereira SANTOS (Universidade Estadual de Londrina) ABSTRACT: In this work will be analyzed the letters of “lôrabúrra” e “nádegas a declarar”, of Gabriel o Pensador, objectifying to verify the linguistic resources that lead to the exclusion of the Other. Moreover, the research searchs to investigate the marks of the discourse that disclose the contradictions of the enunciative voice. KEYWORDS: exclusion; woman; contradiction; preconception, heterogeneity 0. Introdução A produção de um discurso pressupõe um processo dialético, na medida em que outros discursos vão sendo projetados em seu interior, e nesse sentido, a linguagem opera como instrumento de interação. Nessa interação, as “formações imaginárias” designam o lugar que destinador e destinatário atribuem a si mesmo e ao outro, a imagem que eles fazem de seu próprio lugar e do lugar do outro (Brandão: 1991, p.34). Essa multiplicidade de vozes presentes no discurso ocasiona uma ruptura com a homogeneidade, revelando o caráter heterogêneo do discurso, o qual apresenta as contradições do sujeito enunciador que “(...) diz, pensa que sabe o que diz, mas não tem acesso ou controle sobre o modo pelo qual os sentidos se constituem nele.” (Orlandi: 2003, p.32). Considerando-se que “(...) não há neutralidade nem mesmo no uso mais aparentemente cotidiano dos signos” (Orlandi:2003, p.9), o sujeito enunciador, ao emitir seu discurso, produz efeitos de sentido diversos e acaba por formular sentidos que fogem ao seu controle. No interior de tal heterogeneidade surge o preconceito, através de procedimentos lingüísticos que conduzem à exclusão do “diferente”, isto é, aquele que representa o Outro do discurso. Tendo como objetivo a constatação de tais propriedades nos acontecimentos discursivos, o projeto “A construção da diferença na Análise do Discurso” busca investigar e analisar como ocorre tal procedimento no campo discursivo de interação e produção nos mais diferentes tipos de discurso: pedagógico, literário, religioso e midiático. Abordando o discurso da mídia, o “rap” será tomado como recorte no campo musical, e como corpus de análise, foram escolhidas as letras das músicas “Lôrabúrra” e “Nádegas a declarar”, do cantor e compositor Gabriel o Pensador. O rap – estilo musical nascido nos E.U.A, em meados das décadas de 80 e 90 – tem a denominação proveniente da expressão inglesa “Rythim and Poetry” (ritmo e poesia), pois consistia em rimar palavras sobre uma batida eletrônica. Em seu berço, o rap era exclusivamente um estilo do povo negro, era a música do gueto, dos bairros negros de Nova Iorque; feita por eles e para eles, como um produto da indignação perante a segregação e o preconceito racial da sociedade norte-americana. Nesse sentido, pode-se dizer que a exclusão social sofrida durante muitos anos pelos negros gerou a necessidade de união e, portanto, de constituir algo exclusivo e direcionado para a realidade que vivenciavam: o rap era, ao mesmo tempo, diversão e denúncia, prazer e desabafo diante das dificuldades cotidianas. Tal exclusividade, no entanto, ao longo dos anos foi diminuindo, e atualmente – tanto nos E.U.A quanto no mundo todo – o rap é um dos ritmos mais ouvidos. No Brasil, o rap chegou por influência norte- americana, porém, já não está restrito à realidade dos negros, pois ganhou caráter denunciativo e principalmente de crítica social. Na análise da letra em questão, deparamo-nos com uma forte crítica social em relação à exposição e banalização do corpo feminino. O compositor Gabriel, autodenominado “o Pensador”, apresenta- se como o sujeito enunciador do discurso e posiciona-se como um integrante das comunidades que vivem nos morros cariocas, buscando representar a “voz” desse povo. Entretanto, Gabriel o Pensador é um homem branco, filho de um médico e de socialite carioca, provindo de família de classe média alta que morava em condomínio de luxo. Essas informações já revelam uma contradição inicial, ainda que exterior à letra, pois, apesar de criticar “playboys” e “mauricinhos” em suas letras, a sua condição social acaba por enquadrá-lo no perfil econômico destes. Seus pensamentos, contudo, parecem diferenciá-lo de indivíduos que compõem a elite 2 brasileira. Graças à sua cor e à sua condição social, Gabriel sofreu mu ito preconceito, no início de sua carreira, pois o rap era visto como um ritmo pertencente à periferia. Mas este mesmo preconceito, ao invés de prejudicá-lo, tornou-o popularmente conhecido. Em suas letras, o sujeito enunciador acredita ser contestador e racional, todavia, seu discurso apresenta interdiscursividade, a qual possibilita a constatação do preconceito contra diferentes segmentos sociais, sobretudo contra a mulher, como pode ser verificado nas letras que compõem o corpus da presente pesquisa. Considerando que “os dizeres não são [...] apenas mensagens a serem decodificadas” mas “[...] efeitos de sentidos que são produzidos em condições determinadas e que estão de alguma forma presentes no modo como se diz, deixando vestígios que o analista de discurso tem de apreender” (Orlandi: 2003, p.30), através desta análise, objetiva-se demonstrar que o sujeito enunciador se contradiz em vários momentos, pois ao mesmo tempo em que tem a ilusão de ser porta-voz da verdade, ele deixa transparecer o Outro. Isso ocorre porque “a identidade discursiva se constrói na relação com um Outro presente lingüisticamente ou não no intradiscurso” (Brandão: 1991, p. 75). E o Outro, nas letras analisadas, embora tenha a mulher como elemento central, não se limita apenas a ela, já que no discurso de exclusão figuram também as figuras do “playboy” – que sustenta a mulher “burra”, “consumista” e vulgar (“Lôraburra”) – do “homem” que promove a mulher que busca ser famosa por meio da exposição apelativa de seu corpo; da cultura machista que serve de público- alvo para a performance de tais mulheres, além do telespectador que, ao dar audiência para esse tipo de programação veiculada na mídia, acaba por contribuir para a continuidade dessa tendência (“Nádegas a declarar”). 1. O Outro do discurso Segundo Fiorin (1994, p. 33) “o discurso constrói-se sobre o princípio da antítese e é, portanto, atravessado pela exclusão de seu outro. Nesse sentido, pode-se constatar, nas letras analisadas que, além da mulher, também o homem e o público telespectador, em geral, são apontados, pela voz enunciativa, como o Outro de seu discurso. Na letra da música “Nádegas a declarar”, o enunciador retrata um tipo de mulher que, segundo ele, busca se promover através da exposição do próprio corpo, e para isso, vai caracterizando o universo em que ela estaria inserida, ou seja, um espaço onde importa a imagem, através da exposição sensual do corpo (“[...] sua bunda é um sucesso / nádegas a declarar”; “arrebita a rabeta”) e a chance de se tornar conhecida na mídia, por meio dessa exposição. Já na letra da música “Lôrabúrra”, pela caracterização do espaço, constata-se que para esse tipo de mulher importa: a) a imagem através da exposição apelativa do corpo (“Bundinha empinada pra mostrar que é bonita”; “Só se preocupam em chamar a atenção, não pelas idéias, mas pelo burrão”; “A sua filosofia é ser bonita e gostosa”); b) o apego ao consumismo (“(...) e às vezes me interrogo se elas tão no mundo inteiro/ à procura de carros/ à procura de dinheiro”) e c) a valorização de valores ditados pelo mundo da moda (“Produzidas com a roupinha da estação/ que viram no anúncio da televisão”; “Só querem badalar/ Estar na moda, tirar onda, beber e fumar”; “Escravas da moda vocês são todas iguais/ Cabelos, sorrisos e gestos artificiais”). Além de criticar a exposição apelativa do corpo feminino - fator que torna a “lôraburra” uma “mulher-objeto” (“Lôraburra cê não passa de mulher-objeto) - o enunciador faz a associação dessa imagem “apelativa” com o sexo por interesse. Nesse sentido, tem-se a figura da mulher-objeto como aquela que se veste de maneira sensual e provocante para chamar a atenção dos homens, sobretudo dos mais ricos, pois estes podem manter sua condição de “consumis ta” (“À procura de carros/ À procura de dinheiro/ O lugar dessas cadelas era mesmo no puteiro”; “Apenas os otários aturam a sua laia/ E enquanto o playboy te dá dinheiro e atenção (...)”; “(...) idéias banais e como dizem os Racionais: ‘mulheres vulgares, uma noite e nada mais”) O sentimento, nesse contexto, não é levado em conta, pois as relações acontecem por interesses mútuos, ou seja, a mulher que oferece seu corpo - através do sexo - por dinheiro, ou pelos bens adquiridos por ele (vida com luxo), e o homem que deseja satisfazer seus desejos “carnais”. A figura do “playboy” se encaixa nesse perfil masculino, como citado pelo enunciador: “enquanto o playboy te dá dinheiro e atenção”. A mulher retratada em “Nádegas a declarar” também é criticada pela exposição de seu corpo: (“[...] Arrebita a rabeta / [...] e me diz, meu bem, o que mais que você tem” [...] / arrebita bem a bunda, vagabunda, que a bunda é tudo de bom que você tem”; “O que você tem de bom além do bumbum? Um 3 talento, algum dom? Ou as suas qualidades estão limitadas ao balanço dessa bunda arrebitada?”; “Lombo ambulante, burrão ignorante!!”. Da mesma forma, ela é apontada como mulher-objeto (“Mulher objeto em pleno ano dois mil”), na medida em que o enunciador faz uma associação entre a exposição do corpo de maneira sensual e o sexo, através do emprego de palavras como “piranha”( “Talvez você nem seja tão piranha/ mas qualquer concurso miss bumbum que tem, você se assanha”) – designativo de mulher que deita com vários homens – e “cama”, que remete à prática do sexo (“E se você tiver sorte [a bunda] pode ser seu passaporte para fama / Ou pra cama, pode ser seu ganha-pão”). Embora o discurso de exclusão, nas duas letras analisadas, tenha a mulher como principal foco, outros sujeitos do enunciado também representam o Outro no discurso.
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