A CIDADE QUE MAIS CRESCE NO MUNDO São Paulo Território De Adoniran Barbosa
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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001 A CIDADE QUE MAIS CRESCE NO MUNDO São Paulo território de Adoniran Barbosa MARIA IZILDA SANTOS DE MATOS Professora do Departamento de História da PUC-SP. Entre suas obras destacam-se: Melodia e sintonia em Lupicínio Rodrigues; Dolores Duran: Experiências boêmias em Copacabana; Meu lar é o botequim. Resumo: Estas reflexões focalizam a produção musical e a trajetória artística de Adoniran Barbosa, privilegiando os anos 40, 50 e 60. Suas composições são identificadas como uma forma de estar e se apropriar da cidade, e nelas emergem experiências urbanas intensas e emocionais, rastros de memória afetiva da São Paulo de outros tempos. Palavras-chave: São Paulo; música; Adoniran Barbosa. le é a voz da cidade”, dizia Antonio Cândi- Na administração de Prestes Maia foi estabelecido um do sobre Adoniran. Em suas músicas captu- novo desenho urbano – o Plano Avenidas – que procura- ra-se uma memória afetiva da cidade de ou- va ampliar o centro comercial, como também era claro o “E1 tros tempos e sua produção é uma construção de memó- incentivo ao mercado imobiliário e o estímulo ao cresci- ria possível para a cidade, portanto seletiva na escolha dos mento da cidade e sua verticalização.2 territórios urbanos e de seus personagens, permitindo per- As construções cresciam, migrantes do Nordeste e do ceber as múltiplas experiências urbanas na São Paulo que, interior do Estado de São Paulo chegavam em número sig- cada vez mais, nos anos 40, 50 e 60, assumia as relações nificativo e ajudavam a erguer a cidade, contribuindo para de cidade-progresso. a mistura que se caracterizava pelos contrastes, ambigüi- A urbanização acelerada caracteriza São Paulo nesse dades, incorporações desiguais e combinações inquietan- período; o intenso crescimento transformaria a cidade em tes. Formava-se um mosaico de grupos étnicos e seus des- uma metrópole moderna. Nesse processo coexistiam per- cendentes, que simultaneamente desejavam se incorporar manências, demolições e construções, ampliavam-se obras e diferenciar, e davam novas sonoridades à cidade, im- públicas e novos territórios passavam a ser definidos, novas pregnando-a de múltiplos sotaques e várias tradições.3 áreas comerciais e financeiras, além da reterritorialização Com a intensificação industrial e comercial, quar- da zona do meretrício e da boêmia. teirões e bairros diferenciavam-se segundo a predomi- Os planos de intervenção urbana, orquestrados nas ges- nância das atividades ali estabelecidas; ruas, vilas e tões de Fábio Prado (1935-38) e Prestes Maia (1938-45), cortiços/malocas povoados por migrantes mostravam a procuraram remodelar a cidade e tornaram viáveis novas latência de um espaço entre a casa e a rua em que ocor- áreas em expansão, como os projetos da Companhia City, riam trocas permanentes, estabelecendo relações dinâ- os jardins (Europa, Paulista, América), que traziam a micas, criando laços de solidariedade e estratégias de moderna maneira de viver. Convivia-se com muita novi- sobrevivência. dade, o Mercado Novo, o estádio Municipal do Pacaembu, No ano de 1954, São Paulo comemorou seu IV Cente- os novos viadutos do Chá, Major Quedinho e Martinho nário de forma emblemática e, dando tom às festividades, Prado, a Avenida 9 de Julho e a Biblioteca. Também se escolheu-se como slogan a frase “São Paulo – a cidade formaram novas periferias e a cidade crescia sem parar, que mais cresce no mundo”, síntese da exaltação ao pro- reconstruindo intensamente a relação centro-periferia. gresso, marca de ufanismo num quadro de apologia das 50 A CIDADE QUE MAIS CRESCE NO MUNDO: SÃO PAULO TERRITÓRIO... conquistas, triunfos e glórias dos paulistas. A “invenção” que seu crescimento procurasse estabelecer novas for- da paulistaneidade forjou-se na perspectiva do progres- mas de controle. so, do trabalho, nos signos da metrópole industrial e das A cidade de São Paulo transformava-se incessantemen- chaminés, pressupondo certas construções do passado: a te. Adoniran, um observador atento, captava, com um so- fundação da vila pelo jesuíta José de Anchieta, o palco da taque próprio (ítalo-paulistano-caipira), os flashes do co- independência, elegem-se como mito os bandeirantes, tidiano, as experiências de muitos que viveram esse identificando-os como “heróicos paulistas que desbrava- processo, nos cortiços, malocas e bairros como Brás, Be- ram os sertões e construíram a grandiosidade do território xiga, Barra Funda, Casa Verde. Esse observar a cidade nacional”. implicava o exercício de caminhar a pé (de dia e de noi- O ritmo da modernidade contaminava São Paulo, trans- te), aproximar-se, conversar, ouvir, atentar para as formando-a em um novo território repleto de automóveis, entonações, sintaxes, sonoridades e também se distanciar, ônibus, caminhões, buzinas, sons e odores, o ritmo acele- buscando a inspiração-reprodução concretizada nas com- rado dos transeuntes, o café no balcão, a pressa, a falta de posições. As canções podiam surgir de um caminhar pela tempo, os novos magazines, os modernos edifícios do cidade, como flaneur (é o caso de Saudosa maloca, 1951); centro novo cada vez mais altos. São Paulo assumia o em- a matéria modelar de suas músicas subentendia integrar- blema da modernidade, os arranha-céus e as chaminés, “a se com essas experiências pelo seu falar, não só presente cidade que não podia parar”, mas mantinha a sua garoa no sotaque ítalo-paulistano-caipira, mas também na me- como símbolo. lodia e no modo de cantar, específicos da cultura urbana O viver moderno de São Paulo trouxe transformações paulista. culturais e nos significados das experiências, mas sem que Os anos 50 são caracterizados por uma certa euforia, outras formas de vivência tenham desaparecido: mantive- particularmente vivenciada em São Paulo. Durante o go- ram-se residuais, convivendo com experiências emergen- verno JK (1955-60), a cidade conviveu com a aceleração tes (Williams, 1992), sendo possível reconhecer um campo da industrialização, entrada do capital estrangeiro, moder- em comum entre os sujeitos históricos que as vivenciavam. nização da produção, ampliação de certos bens de consu- Estabelecia-se uma tendência, uma espécie de vetor co- mo, em particular os automóveis, tornando a sociedade mum homogeneizador que criava a impressão de que os mais veloz, também mais conectada pelo rádio e particu- elementos da modernidade predominavam de modo ab- larmente mais visual com a penetração lenta da TV e mar- soluto, contudo fatores tradicionais exerciam ações regu- cada por um número crescente de cinemas e teatros.5 ladoras, podendo-se dizer que não ocorria uma simples substituição de padrões, mas a redefinição dos elementos NA SONORIDADE DA ERA DE OURO DO RÁDIO tradicionais, um ajustamento que comportava, ao mesmo tempo, resistência e/ou inconformismo (Cândido, 1982). Os anos 40 e 50 são conhecidos como a “era de ouro do Essas modificações pautaram-se por novas vivências rádio” no país. Nesse período, as rádios expandiram-se por cotidianas, nas quais se constituíram novas organizações todo o país e passaram a ocupar um espaço cada vez maior do tempo-espaço, e originaram-se outras formas de ho- na vida das pessoas, informando, divertindo e emocionan- mens e mulheres apreenderem os fenômenos que viven- do, somadas à circulação nacional do disco, às publicações ciavam. Não que todos compulsoriamente tenham passa- especializadas, ao cinema americano e nacional.6 do a viver de acordo com esses padrões e absorvido as Nesses anos, o rádio divulgava um samba que se di- perspectivas de vida que se formaram, mas as imagens versificava rítmica e poeticamente,7 sua cadência mais tra- desse novo ideal de vida não deixaram de ser sonhadas, dicional começou a ser substituída segundo os novos gos- desejadas e incorporadas por uns e refutadas por outros. tos.8 O samba de meio-de-ano dominava a noite. Assim, O crescimento urbano era tenso de nostalgia,4 de uma um mercado musical (fonográfico e radiofônico) se esta- cidade que não podia mais se recuperar, cujas memórias belecia e generalizava, no qual o popular, em transforma- se alimentavam de lembranças vagas e telescópicas: que- ção, convivia com a música internacional na dinâmica da bra de valores tradicionais, destruição de vínculos oralidade no cotidiano citadino em ebulição (Wisnik, afetivos, amizades, vizinhanças, cadeiras na calçada, 1983). serestas na garoa, feiras e festas, destruição de espaços Em São Paulo, a rádio surge fundada por Assis e territórios. Uma cidade que tentava escapar, por mais Chateaubriand (Tupi), unindo-a aos jornais. Em 1940 ha- 51 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001 via um total de 12 emissoras, nos anos 50 já eram 17, com de urbana. Freqüentava as lojas de música do centro, ponto destaque para a líder de audiência, a Record, que teve de encontro de interessados, pois começava a fazer músi- participação ativa no Movimento Constitucionalista de cas. Também tentou o teatro e, sem muito sucesso, arris- 1932. cou-se em programas de calouros. No seu apogeu, além da rádio-novela e do rádio-jor- Por sugestão de Antonio Rago, tentou a Rádio Fontoura, nal, havia programas de auditório, tanto musicais como ainda nos seus primórdios, na qual passou a cantar com humorísticos, todos com boa audiência. O trabalho nas Laurindo de Almeida, João do Banjo e Aragão do Pan- rádios contava com artistas de circo, teatro, e também deiro. Em 1933, fruto de muita insistência, consegue seu anônimos, cantores e aventureiros. primeiro contrato como cantor e depois como locutor. A rádio em São Paulo mantinha conexões com as emis- Dessa época, datam seus primeiros sambas: Minha vida soras do Rio de Janeiro, particularmente com a Rádio se consome e Teu orgulho acabou. Mas em 1934 se des- Nacional, e os sucessos circulavam nacionalmente, mas tacou quando obteve o 1º lugar no concurso carnavalesco também se veiculava toda uma produção de caráter regio- da Prefeitura de São Paulo, com a marchinha carnavales- nal, atingindo mais diretamente a informação, o humor e ca Dona boa.10 o gosto musical local.