Adoniran Barbosa E As Metamorfoses Do Samba De São Paulo

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Adoniran Barbosa E As Metamorfoses Do Samba De São Paulo Adoniran Barbosa. Caricatura. Adoniran Barbosa e as metamorfoses do samba de São Paulo Dmitri Cerboncini-Fernandes Doutorando em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), com passagem em 2008 pelo Centre de Recherche sur le Brésil Contemporain da École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris/França. dmitricf@usp.br Adoniran Barbosa e as metamorfoses do samba de São Paulo Dmitri Cerboncini-Fernandes RESUMO ABSTRACT Partindo do estudo da trajetória de Based on a study of Adoniran Barbosa’s Adoniran Barbosa, procuro reconstituir personal trajectory, I attempt to reconstruct as modificações e os percalços do de- the changes and problems in the deve- senvolvimento das artes populares em lopment of the popular arts in São Paulo São Paulo a partir da década de 1930. from the 1930’s. Consequently, I intend to 1 Apud GOMES, Bruno. Ado- Conseqüentemente, busco redimen- reconfigure the way by which the musi- niran: um sambista diferente. Rio sionar a maneira pela qual a obra do cian’s work acquired diverse meanings de Janeiro: Martins Fontes/ Funarte, 1987, p. 21. Declara- referido sambista adquiriu diversos depending on the configuration of the ção de Adoniran Barbosa con- sentidos a depender da figuração en- specific domains of artistic activity. cedida a um jornalista na dé- cada de 1980. contrada nos domínios correlaciona- dos à atividade artística. 2 Cf. BOURDIEU, Pierre. A produção da crença. São Paulo: PALAVRAS-CHAVE: música popular bra- KEYWORDS: popular Brazilian music; Zouk, 2004, p. 19 e 20. As bi- sileira; Sociologia da Música; samba. Sociology of Music; Samba. ografias que tratam do sam- ba e de seus artistas trazem um repertório inesgotável de declarações desse viés. 3 São notáveis as condecora- ções recebidas por Adoniran ℘ nos últimos anos de sua vida e que se intensificaram após a sua morte (1982), tais como o busto erigido em praça públi- “As homenagens deveriam ter chegado bem antes. Eu não agüen- ca no bairro da Bela Vista, os enredos de escolas de samba to mais homenagens! Eu quero a minha parte agora, e, se possível, em que tinham como mote prin- dinheiro!”1. A frase que abre o texto, ao ser isolada de seu contexto e de cipal a sua figura, os discos comemorativos em homena- seu autor, soa no mínimo estranha ao ouvido do pesquisador. Acostu- gem aos seus 70 anos (1980), mados que estamos às diversas declarações monocórdias dos que pre- os shows realizados com as tendem êxito em domínios tidos como exclusivamente “culturais”, quais personagens ilustres do mun- do da música, a participação sejam, a denegação do interesse econômico e o rechaço aos proveitos em diversos programas tele- materiais2, deparamo-nos agora com palavras provindas de um perso- visivos, o respeito intelectual e acadêmico por sua obra (ar- nagem que estaria agindo feito um outsider fora de época, em desacordo tigos diversos, dissertações de com a posição que ocupava naquela configuração. Mais incompreensí- mestrado, cinco biografias di- vel ainda tal situação se torna ao revelarmos o nome do autor da frase e ferentes, testemunho de An- tônio Cândido em contra- o momento glorioso atravessado por ele: trata-se de Adoniran Barbosa capa de disco), as nomencla- em uma entrevista na fase final de sua vida, período máximo de reco- turas de praças e vias públi- 3 cas etc. Creio que a alcunha nhecimento e homenagens . Adoniran traz de chofre determinada insa- recebida da parte de um de tisfação em uma etapa deveras festiva, transmitindo ao exegeta certa seus biógrafos resume a cris- dose dificilmente explicável de ressentimento. Frases indigestas como esta, talização de sua situação no período da declaração acima no entanto, costumam ser consideradas não-representativas na carreira selecionada: “o patriarca do de consagrados vilões e heróis. Tomemos como contra-exemplo — a samba paulista”. Ver CAM- POS JÚNIOR, Celso de. Ado- Adoniran, é claro — a declaração de outro consagrado, seu contempo- niran: uma biografia. São Pau- râneo carioca de samba: “Não me interesso em fazer uma coisa que o lo: Globo, 2004, p. 525. povo saia cantando, mas que ele sinta a minha obra, isso é o que me 208 ArtCultura, Uberlândia, v. 11, n. 18, p. 207-226, jan.-jun. 2009 interessa mesmo. Faço samba, música para você guardar dentro de si eternamente, no seu coração, e não apenas na sua coleção de discos”.4 Aqui se encontra o discurso poético, elegante, que vislumbra um lucro eterno, no devir, típico daqueles que produzem e que não necessa- Artigos riamente desejam a remuneração imediata mundana ou a glória mo- mentânea. É a típica frase que abre ou dá o desfecho emocionante às biografias, contrastando-se obviamente com a declaração crua de Adoniran, de que “não agüentava mais homenagens”. Ainda que um exército de biógrafos e acólitos tente conferir outros sentidos a este e a outros “lapsos” do maioral do samba paulista por meio das mais variegadas exegeses, um espectro permaneceria rondan- do a “pureza” de sua obra. Por outro lado, uma pretensa análise apres- sada poderia simplesmente classificar Adoniran junto a um pólo “co- mercial” do samba, pois sua finalidade explícita seria a de obter lucros econômicos e momentâneos5. Contudo, Adoniran Barbosa foi elevado pela crítica em geral a um status equânime ao de Cartola, o de maior sambista da história de seu estado natal, o “mais autêntico representan- te do samba paulista6”. Penso que uma visada que não afaste de ante- mão as contradições encontradas no percurso de qualquer agente e que não hesite em recolocá-lo nas distintas posições ocupadas em sua traje- tória sócio-biográfica é o que distingue a compreensão histórico-socioló- gica da simples interpretação descontextualizada do amante. Tentarei, dentro dos limites desta exposição, desvendar, inserindo Adoniran nas diversas figurações por que passou, alguns dos sentidos possíveis — mas 4 Cartola, em entrevista con- não últimos — vivenciados por esse artista ao longo de sua trajetória, cedida ao jornal A Gazeta de Vitória (ES) em edição do dia que também é, de um modo ou de outro, a do samba paulistano. 09 de maio de 1978. 5 Cf. BOURDIEU, Pierre, op. Adoniran e as periclitações iniciais cit., p. 72. 6 ROCHA, Francisco. Adoniran Adoniran Barbosa, pseudônimo de João Rubinato (1910-1982), fi- Barbosa poeta da cidade: traje- tória e obra do radiador e lho de imigrantes italianos semi-analfabetos fugitivos da fome na Euro- cancionista — os anos 50. Dis- pa, tentaria a todo custo a entrada no meio artístico em sua mocidade. sertação (Mestrado em Histó- Não houve dúvidas para ele em relação à qual atividade desempenha- ria Social) – FFLCH-USP, São Paulo, 2001, p. 119. ria: estabelecer-se como cantor de rádios, à moda daqueles cartazes cari- 7 7 Esclareço que utilizo neste ocas que tanto sucesso faziam na época . Tendo abandonado os estudos artigo as informações conti- ainda no primeiro grau primário, o “filho vagabundo” foi colocado pelo das nas cinco biografias dis- pai, de acordo com suas próprias palavras, para trabalhar aos 13 anos poníveis de Adoniran Barbo- sa (KRAUSCHE, Victor. Ado- de idade. Caçula de uma família de sete filhos e irresponsável como tal, niran Barbosa: pelas ruas da ci- Adoniran desde cedo demonstrou certo rechaço ao trabalho físico, dei- dade. São Paulo: Brasiliense, 1985; MOURA, Flávio e NI- xando de lado razoáveis empregos conseguidos por intermédio de seus GRI, Alexandre. Adoniran: se o familiares. Em 1931, com 21 anos, tenta sua primeira séria investida vi- senhor não tá lembrado. São sando à entrada no mundo artístico. Sem possuir contatos de qualquer Paulo: Boitempo Editorial, 2002; GOMES, Bruno, op. cit.; espécie com pistolões que pudessem lhe garantir um “passaporte” para MUGNAINI JR., Aírton. Ado- o meio radiofônico, Adoniran participa de um conhecido concurso de niran: dá licença de contar... São Paulo: Editora 34, 2002 e calouros na rádio Cruzeiro do Sul. CAMPOS JÚNIOR, Celso de, Na década de 1930 em São Paulo, a tentativa de estabelecimento op. cit.). De longe, o melhor, de uma vida de artista através de participações em rádio era vista com mais completo e bem funda- mentado trabalho biográfico preocupação pelas famílias “honestas”, como a do pai de Adoniran, tra- dentre os cinco existentes so- balhador braçal e rude inconformado com as peripécias do filho. Ambi- bre Adoniran é o de CAMPOS JÚNIOR, Celso de, op. cit., ente lúmpen em formação, a sociabilidade do “artista popular” compre- base principal dos dados por endia a freqüência a certa boêmia, um desregramento social e atitudes mim utilizados. ArtCultura, Uberlândia, v. 11, n. 18, p. 207-226, jan.-jun. 2009 209 8 Apenas em 1934 cinco no- avessas aos padrões tidos como corretos. A relatada primeira tentativa vas emissoras foram funda- das nesta cidade. Cf. CAM- de Adoniran de acesso ao meio radiofônico fracassa rotundamente. É POS JÚNIOR, Celso de, op. eliminado de cara e desencorajado por não possuir a voz requerida pe- cit., p. 31. los padrões da época. Mesmo assim, permaneceria com sua idéia, pas- sando a insistir por mais uma chance em várias das emissoras que flores- ciam8, quase todas localizadas no centro da cidade. Vendedor experi- mentado no convencimento alheio, Adoniran procura por diversas ve- zes persuadir o pessoal responsável pelas programações radiofônicas. Com a vida artística em suspenso após diversas negativas e críticas ao seu tom de voz, Adoniran resolve atirar para outros lados: a compo- sição e o que mais viesse pela frente. Compõe uma marchinha carnava- lesca e concorre ao primeiro prêmio organizado pela imprensa em tal quesito. É agraciado em 1935 com a conquista desse concurso: melhor marcha do ano. Com influência confessa das canções em voga no Rio de Janeiro, Adoniran assim sai pela primeira vez do semi-anonimato, aos 25 anos. Apoiado nesta conquista, consegue um emprego na recém-inau- gurada rádio São Paulo, sendo logo dispensado, todavia.
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