100 anos de adoniran A arte de falar errado As mil facetas do compositor “Táubuas” e “revórveres” eram propositais nas letras que foi a voz de de Adoniran Barbosa. Foram os erros no português que Fotos: reprodução provocaram atritos entre Se o sinhô não tá lembrado dá licen- ça de contá: este ano Adoniran Bar- o compositor e a ditadura bosa completaria 100 anos. Ele nas- militar. Um disco de 1973, com ceu João Rubinato em 6 de agosto músicas gravadas nos anos de 1910, na cidade de no 1950, teve algumas canções interior paulista, mas se transformou vetadas. A linguagem coloquial no compositor que melhor traduziu de composições como a alma paulistana dos bairros ope- do Arnesto e Tiro ao Álvaro foi rários, da garoa fria da madrugada considerada de "péssimo gosto" e o espírito dos bares e dos amores pela censura. A condição para boêmios. O dialeto marcante de liberar as músicas era corrigir os suas letras era a fala dos imigrantes erros na pronúncia e gramática. de alguns bairros populares, prin- Adoniran não abriu mão das cipalmente da zona leste de São letras originais e as músicas Paulo, que rompeu essas barreiras vetadas não foram regravadas geográficas e passou a ser ouvido em qualquer agrupamento de amigos, naquele ano. dedilhado por toda parte onde sua música se fizesse presente. Comemorar o centenário de Adoni- mava confeccionar e presentear os pela Record. Nos anos cinquenta e ran Barbosa é destacar uma trajetória amigos. Ator, cantor e compositor, sessenta tinha o programa de maior ampla e diversificada. Uma série de poucos artistas conseguiram tradu- sucesso da rádio paulista: o Histórias eventos e lançamentos – um musical zir tão bem a cidade de São Paulo em das malocas (1955), onde interpre- dirigido por Rubens Ewald Filho, personagens e canções. “Adoniran é tava Charutinho, um malandro programas para a TV e o relança- um ícone da sonoridade paulistana malsucedido e desocupado. “Seus mento da biografia, escrita por Celso tanto quanto a Avenida Paulista ou o tipos eram inspirados em pessoas Campos Jr. – devem relembrar o ar- Parque Ibirapuera são referências da comuns, falas e entonações de dife- tista que nasceu multimídia. Merece cidade. Ele consegue expressar em rentes territórios da cidade”, conta destaque o Portal Adoniran, ideali- suas músicas o que é se sentir pau- Izilda Matos, que publicou, em zado por sua filha Maria Helena Ru- listano”, afirma Maria Izilda Santos 2007, A cidade, a noite e o cronista: binato Rodrigues de Sousa, e a Casa de Matos, historiadora da PUC-SP. São Paulo e Adoniran Barbosa. Ado- de Adoniran, projeto de um museu, niran era, acima de tudo, um ob- ainda em fase inicial, que pretende Poesia das malocas Mais conhecido servador atento. Ele caminhava na catalogar um acervo riquíssimo com pelas músicas, Adoniran trabalhou cidade, conversava, ouvia, e, a partir partituras, discos, letras de músicas, em televisão e cinema, mas foi no rá- dessas vivências, criava seus perso- antigos programas de rádio e até as dio que atingiu seu auge como artis- nagens. “O ser ator acabou impri- miniaturas que Adoniran costu- ta. Ele se aposentou como rádio-ator mindo elementos que se tornariam

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7_Cultura_32_p58a68.indd 58 27/07/10 21:39 fundamentais para o compositor”, A cidade como musa Em Saudosa ma- novo sentido. “Hoje Saudosa maloca complementa Matos. É da cidade loca é explícita a nostalgia do tempo foi incorporada pelo Movimento dos que vem o sotaque inconfundível, que passou: Saudosa maloca, malo- Trabalhadores Sem-Teto (MTST), uma síntese de elementos da orali- ca querida/...donde nós passemos como uma espécie de hino”, conta dade de imigrantes, negros e nordes- os dias feliz de nossas vida. “Como Izilda Matos. “Quando vão fazer al- tinos que conviviam na capital. um flaneur que capta, observa, tal- guma manifestação eles cantam essa Nas composições, melancolia e de- vez o papel do compositor seja ser música, dando-lhe um sentido forte- núncia eram combinadas com hu- um sujeito histórico do seu tempo, mente político. Ao permitir inúme- mor, com a melodia contagiante e, antenado, que capta tensões, sensi- ras reinterpretações, sua música e sua por que não, uma boa dose de do- bilidades, emoções e as transforma arte, centenárias, continuam atuais. çura. É um humor sempre ligado canções”, acredita Izilda. Por conta Sobretudo, porque nos encontramos ao cotidiano das grandes cidades: disso ele permanece atual para as na cidade que ele descreve. Quando despejos, demolição, desemprego, novas gerações. Saudosa maloca foi fala da cidade de São Paulo, Adoniran desencontros. Nesse sentido foi im- gravada por Adoniran em um tom descreve também o cotidiano de tan- portante a contribuição de Osvaldo de denúncia, era uma música triste tas outras grandes cidades, das trans- Moles, compositor, parceiro de Ado- e nostálgica. De acordo com a his- formações constantes, da mistura de niran tanto nos programas de rádio, toriadora da PUC, na época em foi culturas, dos desencontros, da pressa quanto nas letras de várias músicas. lançada, em 1955, a música não fez para não perder o trem, da e De acordo com Izilda Matos, a traje- muito sucesso. Somente quando foi do cortiço, do trabalho necessário e tória política de Osvaldo Moles, liga- gravada pelo grupo Demônios da da preguiça desejada. Muito além do da a partidos de esquerda, conferia às Garoa, em 1965, em um tom irôni- “filho único”, de Arnesto ou Iracema, suas letras esse teor de crítica à cidade co e bem humorado (o grupo intro- a cidade é a grande personagem na que exibia sinais de progresso, mas duziu palavras que dão ritmo para a obra de Adoniran, ela é sua musa. com grandes contrastes. Progresso composição) a música estourou. que não chegava para todos, excluin- Elis Regina também gravou a música Patrícia Mariuzzo do, em particular, os moradores da (1978) em um tom mais lento e triste “saudosa maloca”. “Era a denúncia fazendo com a que canção ganhasse de uma cidade em construção-des- truição, com movimento e ritmo assustadores”, afirma a historiado- Samba na caixinha de fósforo ra. “A cidade mostrava-se violenta João Rubinato, filho de imigrantes italianos, não em seu crescimento, criando uma terminou o curso primário. Em 1932 se tornou visão idílica de um tempo perdido cantor-ambulante, utilizando uma caixinha de diante do progresso, um tipo de in- fósforo. No ano seguinte, conseguiu seu primeiro conformismo que se aproxima da contrato como cantor e depois locutor de rádio. Em resistência e aponta a denúncia e, ao mesmo tempo, apregoa a paciência”, 1934 teve seu primeiro trabalho de destaque ao explica a historiadora. São exem- vencer o concurso carnavalesco da prefeitura de plos de composições com esse pano São Paulo com a marchinha Dona boa. Nas décadas de 1940 e 50 atinge seu de fundo, Abrigo de vagabundos, O auge como rádio-ator. Na verdade Adoniran só gravou seu primeiro disco em despejo da favela e Iracema que morre 1974, após o grande sucesso de Trem das onze. Durante as comemorações atropelada por não se adaptar ao no- dos 450 anos da cidade de São Paulo, a TV Globo fez um concurso junto à vo ritmo da cidade. Para ela diz Ado- população da capital que elegeu a música como a que mais representava a niran: O chofer não teve curpa, Ira- cidade. Trem das onze foi gravada em francês, espanhol, italiano e hebraico. cema/Paciên­cia, Iracema, paciência.

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