Adoniran Barbosa E João Antonio – Música E Literatura: O Descarne Da Vida Humana

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Adoniran Barbosa E João Antonio – Música E Literatura: O Descarne Da Vida Humana Adoniran Barbosa e João Antonio – música e literatura: o descarne da vida humana Fernanda da Cunha Guedes Especialista em Literatura e História Nacional pela UTFPR. Profª do Ensino Fundamental da rede particular de ensino Juarez Poletto Doutor em Letras. Professor da UTFPR. Resumo: A presente pesquisa tem por objetivo analisar recortes de obras literárias de dois autores paulistas contemporâneos entre si. João Rubinato – Adoniran Barbosa – através das letras de algumas de suas músicas admitidas como registros poéticos de época e sociedade e João Antonio, com contos reveladores da marginalidade nas décadas de 50 e 60 em São Paulo. Com base na comparação dos textos escolhidos – Saudosa maloca, Abrigo de vagabundos, Agüenta a mão, João e Despejo na favela do primeiro e Malagueta, Perus e Bacanaço do segundo – discutimos os espaços marginais retratados e seus personagens como representantes da complexa sociedade que os produziu e ainda consome. Palavras-chave: conto, poesia musical, marginalidade, literatura e cultura de massa. 1. INTRODUÇÃO Desde as alterações na apreciação e recepção da arte erudita pós-revolução industrial no século XIX e com o impacto do movimento pop na segunda metade do século XX, a produção e a admissão das mais abrangentes manifestações artísticas encontram-se permeadas por uma nova realidade existencial, na qual as formas clássicas de crítica, valorização e aplicabilidade são obrigatoriamente revistas. Considerando esse novo panorama sócio-cultural, faz-se necessário agora, possivelmente mais que antes, conhecer e analisar os processos de recepção das artes mais que apenas em sua própria acepção estética, mas também na e pela sociedade, a fim de verificar e admitir seu papel na construção do cidadão frente às noções de sociedade e indivíduo que se apresentam. Através das manifestações culturais de massa (pós-movimento pop), é possível analisarmos e reconhecermos essa nova concepção cultural e sua função como arte social que ainda busca por identidade e estruturação nos meios acadêmicos. Atendendo às novas necessidades, a análise dos textos de canções populares, comparativamente com a prosa que retrata o espaço popular, figura como rica fonte de pesquisa ao trazer, para o plano acadêmico, antes fundamentalmente erudito, o comum, esboçando novas leituras artísticas e sociais em prol da cultura real de massa e sua valorização. Entender essas expressões artísticas em seus espaços é entender a arte marginal dessa sociedade consumidora e sedenta por novas representações de seus universos; e, enquanto representação, conduzir ao reconhecimento, à compreensão, ao questionamento e à valorização da realidade sócio-cultural para o cidadão- personagem que nelas figura. Objetiva-se, portanto, traçar um paralelo entre as construções de espaços marginais criados nas canções de Adoniran Barbosa e no conto “Malagueta, Perus e Bacanaço”, de João Antonio, a fim de caracterizá-los como representantes da sociedade produtora e consumidora de seu modelo, bem como a função social desempenhada por essas produções para os espaços a que se propõem. 2. DA ARTE MARGINAL À ANÁLISE ACADÊMICA Debruçando-se sobre as produções culturais urbanas, nas décadas finais do século XX, desde a revolução industrial do século XIX, é possível perceber as mudanças ocorridas nos campos sociais e artísticos como jamais se havia conseguido. Em âmbito nacional, a década de 50 funcionou como uma espécie de marco histórico-político possibilitador dessas alterações. A partir da eleição de Kubitschek (1955), da adoção do regime parlamentarista (1961) e da restauração do presidencialismo (1963), inaugurou-se a fase definida por Pedro Lyra como o início da “tragicomédia de erros” que o país viveria até hoje (LYRA,1995: p.21). Envoltos nessa nova realidade sócio-político-cultural que se anunciava, os autores João Antonio (prosador) e um outro João, conhecido popularmente como Adoniran Barbosa (músico), produziam, em suas artes, retratos do espaço marginal noturno e diurno dos guetos, subúrbios e bairros afastados do grande centro produtor paulista, povoados por personagens marcados pela realidade - tão contrária à ideologia depurativa em voga - e inseridos na chamada “cultura de massa” (MARICONI, 2002: p.7-24) que, após o golpe militar de 64, começou a viver seus dias de glória ao funcionar como veículo de transmissão das idéias contrárias ao regime, evoluindo para o que denominar-se-ia “arte marginal” nos anos 70. Segundo Mariconi (2002: p.25), a citada revolução industrial do século XIX abalara as concepções artísticas passadas e seguir-se-iam a ela ainda outras duas revoluções de mesma importância: “a modernista, nos anos 20, e a pop (entre 50 e 60), cujos impactos abalaram radicalmente as noções culturais, situando, por exemplo, o poema entre o livro e a canção”. Nesse momento, a música tomou as rédeas do processo de resistência que se seguiu durante os anos mais nebulosos do governo militar e mesmo depois de seu fim (década de 80). Ainda nos anos de chumbo, compositores como Chico Buarque e Caetano Veloso começaram a figurar no cenário músico-nacional, entretanto, suas composições só receberiam status poético-artístico após serem alvo de estudos acadêmicos, chegando a ser consideradas a grande renovação poética das décadas de 60 e 70 (SECCHIN,1996: p.101), a partir da divulgação nacional via festivais da canção. O samba, produto da miscigenação sócio-racial brasileira, tornou-se mais que apenas expressão folclórica de menor prestígio, funcionou como elemento de unificação do caráter nacional e manifestação da sensibilidade coletiva, contribuindo para a formação da identidade brasileira, resistindo aos tempos mais duros da europeização das artes e à ditadura militar, trocando, justamente nesse período, o meio marginal pelo idealismo do regime, representando mais que apenas a expressão sonora restrita à qual sempre esteve diretamente relacionado, preconceituosamente. A articulação entre a prática escrita e a musical começa a ser esboçada em 1922, no Prefácio Interessantíssimo de Paulicéia Desvairada. Nele a poesia era diretamente relacionada à teoria musical e o diálogo entre ambas era mostrado de forma a definir a combinação som e letra como a única a conter, simultaneamente, sonoridade e unidade semântica – teoria essa, defendida por Mario de Andrade, certamente embasada nos poemas homéricos e nos rapsodos existentes até o século XV. Seguindo a evolução natural do sistema sócio-político vigente, foi com Noel Rosa – que não por acaso provinha da elite – que as temáticas abordadas pelo gênero voltar- se-iam às figuras aqui entendidas como marginais. Ou seja, para alcançar espaço social, o mundo marginal passou primeiro pelo olhar exógeno da elite que o elevou à condição de arte, como já ocorrera com a proposta modernista dos anos vinte. Com relação à prosa do conto, encontramos em Pereira Lima (2004) a validação do então novo jornalismo literário como fornecedor das condições necessárias para o estabelecimento de um elo comum entre a escrita real e a ficcional, antes consideradas opostas. João Antônio é um exemplo típico do seu tempo de um jornalista-escritor, que deu ao conto a crueza do texto objetivo e o trato literário na linguagem coloquial. O caminho, portanto, não poderia ser outro que não o do realismo bruto, do debate entre as diferenças impostas pelo mundo pós-guerra e da crítica às relações sociais. O universo do trabalho sobrepondo-se à questão do “eu” passava a primeiro plano, as fronteiras entre o poético e o não-poético eram estreitadas, enquanto a preocupação com o consumo da produção se ampliava perante o binômio mercado/escritor, resultando na comunicação denúncia onde era preciso pensar e construir novas diretrizes artísticas capazes de abarcar amadurecimento estilístico e utilitarismo da arte em um mesmo campo. A tentativa de produção de uma arte a partir da massa e que dela pudesse se aproximar. Como cultura de massa adotamos a conjunção das propostas de Ferreira Gullar (2002), Ítalo Mariconi (2002) e Heloísa Buarque de Hollanda (1975) segundo as quais, o desenvolvimento industrial, o movimento pop e a democracia teriam munido os mais diferentes extratos sociais de material para a formação dos conceitos públicos de arte e de suas representações cada dia mais próximos do cotidiano. Dessa noção também deriva o conceito de marginalidade adotado, entendendo o marginal como grupo ou ser excluído do estrato burguês e de sua representação pelos produtos artístico-estéticos engajados que mesclam em si testemunho e ficção (BENOÎT: 2002, GULLAR: 1969 e LYRA: 1982). 3. DE UM JOÃO A OUTRO – DÁ LICENÇA DE CONTAR 3.1 João Rubinato - o Poeta da Cidade João Rubinato ou Adoniran Barbosa, como preferia ser chamado, era o mais novo de cinco irmãos e filho de imigrantes italianos. Cresceu imerso na cultura ítalo- brasileira, vivendo a realidade da opressão sofrida por seus iguais, as dificuldades financeiras trazidas pelo processo de industrialização, conviveu com figuras marginais, com expressões artísticas desvalorizadas, com a República de Vargas e com o rádio. Na juventude, deparou-se com os grandes casarões em vias públicas estreitas mudando-se para os espaços mais retirados (nasciam os subúrbios), dando lugar às avenidas largas e a novos prédios aos moldes estéticos parisienses. A sociedade paulistana (entenda-se, também, brasileira) reestruturava-se fornecendo as condições necessárias às reviravoltas que rapidamente sacavam anônimos em meio às multidões lançando-os à fama alavancada pelas emissoras de rádio, que haviam demonstrado todo seu potencial sócio-político durante a Revolução Constitucionalista de 1932 – exemplo desse fenômeno é o próprio compositor que se fez conhecido ao participar do programa Histórias das Malocas na Rádio Record. É muito pouco provável que a inspiração popular de que dispunha Adoniran também o tivesse conduzido à composição de letras consideradas engajadas. Observando seu deslocar pelo universo da marginalidade, é mais promissor crer que o interesse pelas questões sociais lhe tenha sido presenteado pelo tempo e que dele, conscientemente, tenha feito uso apenas em sua fase mais madura, quando a imagem de porta-voz dos oprimidos já estava concretizada por suas atuações no rádio, na televisão e no cinema.
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