55 3 Som, Telenovela E Receptor: Hipóteses O
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55 3 SOM, TELENOVELA E RECEPTOR: HIPÓTESES O objetivo central desta pesquisa, como já anotamos, é um estudo da relação entre o som da telenovela e a audição desse som por parte do receptor. A telenovela insere-se dentro do vasto universo audiovisual como um produto específico da televisão. No Brasil, a audiência diária de um capítulo da telenovela das oito da Rede Globo pode superar os 60 milhões de telespectadores, o que significa que quase a metade da população do País está ligada ao aparelho de TV acompanhando um mesmo produto audiovisual. Dentro do universo televisivo, a telenovela estrutura o som de forma particular. Falas, sons, músicas e silêncios são combinados na trilha sonora que junto com a imagem apresentam uma história, uma narração. O receptor ouve essa trilha ao assistir para poder acompanhar a história; sem ela, talvez, a compreensão do que é contado seria impossível. Mas a questão central do trabalho é justamente detectar qual o lugar do som na telenovela e qual sua relação com o receptor. Perguntamo-nos, então, como se apresetam os elementos sonoros e como esses elementos são ouvidos, interpretados, reelaborados e usados pelo receptor. Apontar respostas para estes questionamentos serve-nos como ponto de orientação na pesquisa. 3.1 A Telenovela A telenovela, na forma que a conhecemos hoje, nasce, no Brasil, em julho de 1963, no Rio de Janeiro e em São Paulo, quando começa a ser transmitida a primeira novela diária da televisão brasileira, seu título 2-5499 ocupado . Antes desta, foram realizadas centenas de telenovelas que não eram, porém, apresentadas diariamente. A primeira telenovela, Sua vida me pertence , 1951 (TV 56 Tupi de São Paulo), era apresentada ao vivo, com dois capítulos por semana e teve uma duração de dois meses. O estilo narrativo da telenovela foi uma herança do folhetim do século XIX, no qual história de ficção era contada em capítulos diários, publicados na parte inferior das páginas dos jornais. O jornalista francês Émile de Girardin teve esta idéia na década de 1830, ao imaginar uma forma de aumentar a venda de seu jornal, La Presse . A partir daí, o estilo de narração fragmentada foi passando de um meio para outro até chegar à TV. O cinema teve seus "folhetins" cinematográficos, mas foi no rádio, a partir de 1930, nos Estados Unidos, que o estilo tomou dimensão na cultura de massas através das soap-operas, as quais eram folhetins adaptados para o rádio. O gênero passou então para Cuba e irradiou-se para toda a América Latina. Quando a TV se inicia no Brasil nos anos 50, o folhetim começa também a ser adaptado ao novo meio, passa aos teleteatros e às novelas com dois ou três capítulos por semana, até atingirem hoje o chamado "padrão Globo de produção" de telenovelas, o qual não só é sustentado por uma infra-estrutura técnica, tecnológica e econômica, mas também por uma estrutura de realização depurada através de anos, contando com uma equipe técnica e artística de alto desempenho profissional. Na atualidade, uma telenovela tem uma duração média total de seis meses no ar, com seis capítulos por semana, de segunda a sábado, contando com aproximadamente 180 capítulos, cada um durando de 50 a 60 minutos, divididos, por sua vez, em 4 ou 5 blocos de 10 a 15 minutos, separados por intervalos comerciais. 57 Durante seis meses um grupo de 40 ou mais personagens vivem histórias de amor, ódio, poder, glória, riqueza, pobreza, encontros e desencontros. A história tem um grupo de cinco a dez personagens pricipais que comandam as tramas básicas. As outras personagens ao mesmo tempo que participam das tramas básicas ganham pequenas tramas que enriquecem a história e oferecem para o autor um sem número de possibilidades para encurtar ou esticar a narração. O roteirista Aguinaldo Silva (autor das duas telenovela que vamos trabalhar adiante) desvenda a técnica geral de criação dessas histórias: "Então sempre acontece aquele momento em que você, o autor, descobre que a novela acabou. E esse momento é justamente o capítulo 80. Então, a saída, o segredo, é fazer duas novelas. Existe a hitória que acaba no capítulo 80 e, a partir desse capítulo, começa outra novela. Se não for assim, do 80 ao 130 você vai ter de ficar repetindo e enchendo lingüiça. Então veja como a coisa funciona: no capítulo 80 a novela acaba, você descobre todos os segredos, os personagens mudam todos de posição, quem é amigo vira inimigo e quem é inimigo vira amigo. E aí começa tudo de novo" (Silva, 1992: 25). As telenovelas ocupam um lugar privilegiado no horário nobre da televisão brasileira (das 18 às 22 horas). Na atualidade, junho de 1994, em São Paulo podem ser assistidas seis telenovelas diferentes nesse horário: no SBT, Éramos Seis , às 19h45 com reapresentação às 21h45; na Globo, Tropicaliente às 18h00, A Viagem às 18h50 e Fera Ferida às 20h30; na Record, A Revanche (telenovela venezuelana) às 20h30, e na Manchete, 74.5 - Uma Onda no Ar às 21h30. O intruso quase que exclusivo deste horário na programação destas emissoras são os telejornais noturnos. O que indica, por um lado, uma imposição televisiva do formato telenovela por parte das emissoras e, por outro lado, uma preferência de 58 audiência por parte dos receptores. É um caminho de mão dupla que, como já observamos, não se restringe ao poder autoritario do meio, nem a uma "passividade alienada" do receptor, há um jogo de circularidade comunicacional entre emissor-receptor que permeia o fenômeno televisivo da telenovela. O interesse específico deste trabalho é o som dessas telenovelas: como ele se apresenta diariamente no aparelho de TV; como se configura pelas falas, sons, músicas e silêncios; quais as relações do som com a imagem e com a história. Já anteriormente, em nosso trabalho de mestrado, observamos como, em termos gerais no contexto televisivo, a telenovela apresentava uma grande quantidade de ocorrências de falas e músicas, quando os sons e/ou efeitos sonoros eram utilizados, bem como o pouco uso do silêncio. Tomando como base esse trabalho, aliada com nossa própria experiência empírica de receptor, consideramos fundamental a verificação do possível desequilíbrio dos elementos sonoros da telenovela. 3.2 O receptor Ao falar de 60 milhões de telespectadores diários, uma hipótese geral aponta o possível sucesso irrefutável da telenovela, ou seja, ela satisfaz de maneira fácil e concreta a um dos prazeres mais antigos do homem: o prazer de ouvir, ver, ler narrativas, o prazer de conhecer histórias reais ou irreais da vida alheia. Este prazer dota de sentido os milhões de romances escritos, os milhares de filmes realizados e grande parte das informações jornalísticas. O narrador, como afirma Walter Benjamin, dilui-se em múltiplos formatos no mundo hoje. A telenovela configura-se, assim, como uma forma depurada do universo audiovisual da arte de 59 narrar, da arte do "você sabe o que aconteceu com...". A telenovela oferece a possibilidade de acompanhar diariamente uma longa história ou, em uma terminologia mais popular, diríamos que se trata de acompanhar um grande "causo" ou uma divertida "fofoca". A telenovela é uma grande narração na qual o receptor não tem nenhum compromisso aparente. São histórias que parecem não afetar de forma direta a vida de quem as assiste. Porém, o prazer de assistir uma telenovela abrange no seu âmbito todo o universo vivido de cada receptor. Como já anotamos, os mitos, o passado, as leituras diferenciadas a partir da vida cotidiana do receptor perpassam cada narração. "É indubitável que o estudo da recepção, no sentido em que estamos discutindo, quer resgatar é a vida, a iniciativa , a criatividadde dos sujeitos; quer resgatar a complexidade da vida cotidiana como espaço de produção de sentido; quer resgatar o caráter lúdico de relação com os meios; quer romper com aquele racionalismo que pensa a relação com os meios somente em termos de conhecimento ou de desconhecimento, termos ideológicos; quer resgatar além do caráter lúdico, o caráter libidinal, desejoso, da relação com os meios" (Martín- Barbero, 1991). Nesta perspectiva de análise, o receptor de telenovela dota de significado a história que assiste a partir de sua apropriação e reelaboração nos usos e nas mediações. O som da telenovela, contudo, é um elemento participante deste processo. Na prática cotidiana de assistir telenovela, o receptor é um ser que ouve (e vê). E essa audição confunde-se dentro da própria cotidianidade já que a telenovela faz parte das atividades diárias do receptor. O som da telenovela deve conviver com o som do espaço onde está o aparelho de TV, configurando-se como um som a mais 60 na paisagem sonora. Assim, cabe perguntar até que ponto esse som participa das práticas de recepção. E, já que ele desempenha um papel fundamental nos audiovisuais, então o que o som da telenovela oferece ao receptor e o que o receptor oferece ao som, qual sua mediação? "Las mediaciones son pues ese 'lugar' desde donde es posible comprender la interacción entre el espacio de la producción y el de la recepción: lo que se produce en la televisión no responde únicamente a requerimientos del sistema industrial y a estratagemas comerciales sino también a existencias que vienen de la trama cultural y los modos de ver" (Martín-Barbero, 1992: 20). No âmbito da vida cotidiana do receptor, o som da telenovela deve representar um papel importante tanto ao interior da história contada quanto à própria vida do receptor. Devemos indagar então as práticas de assistência, seus usos cotidianos, para poder entender a audição de uma telenovela, tendo como parâmetro as relações entre a audição focalizada e a audição periférica, já que se o som da televisão pertence a uma paisagem maior, devem existir algumas trocas de focalização do ouvido no ato de assistir, sem deixar de lado a própria complexidade interna da trilha sonora que obriga a um novo exercício de focalização.