Universidade Federal do Rio de Janeiro

A RAZÃO DA VERTIGEM: FIGURAÇÕES DA SUBJETIVIDADE NA POESIA DE

Suzanny de Araujo Ramos

Rio de Janeiro 2017 A RAZÃO DA VERTIGEM: FIGURAÇÕES DA SUBJETIVIDADE NA POESIA DE FERREIRA GULLAR

Suzanny de Araujo Ramos

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Doutora em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira).

Orientador: Professor Doutor Eucanaã de Nazareno Ferraz

Rio de Janeiro Fevereiro de 2017

CIP - Catalogação na Publicação

Ramos, Suzanny de Araujo d 175r A razão da vertigem: figurações da subjetividade na poesia de Ferreira Gullar / Suzanny de Araujo Ramos. -- Rio de Janeiro, 2017. 204 f.

Orientador: Eucanaã de Nazareno Ferraz. Tese (doutorado) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós Graduação em Letras Vernáculas, 2017.

1. Ferreira Gullar. 2. Poesia. 3. Subjetividade. 4. Percepção . 5. Materialidade. I. Ferraz, Eucanaã de Nazareno, orient. II. Título.

Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com os dados fornecidos pelo(a) autor(a).

Ao meu pai, Donato de Lima Ramos (in memorian), e à minha mãe, Lindinalva Araujo Ramos.

AGRADECIMENTOS

A Deus, pela força e sabedoria que me concedeu durante a realização deste trabalho.

Ao Professor Doutor Eucanaã de Nazareno Ferraz, pela confiança e orientação precisa.

À Professora Doutora Alva Martínez Teixeiro, pela generosa orientação e cordial acolhida durante o período do doutorado sanduíche.

Aos Professores Doutores Eduardo dos Santos Coelho e Eleonora Ziller Camenietzki, pelas valiosas sugestões durante o exame de qualificação.

Aos funcionários das Bibliotecas da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, do Centro Cultural do Banco do Brasil, da Universidade de Lisboa e da Biblioteca Nacional, pela atenção e ajuda na pesquisa do acervo.

À minha mãe, Lindinalva Araujo Ramos, pelo inestimável amor, apoio e incentivo.

À CAPES, pela bolsa de estudos.

RESUMO

RAMOS, Suzanny de Araujo. A razão da vertigem: figurações da subjetividade na poesia de Ferreira Gullar. Rio de Janeiro, 2017. Tese (Doutorado em Letras Vernáculas) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.

Se a pluralidade de vozes e de perspectivas estéticas são marcas fundamentais da poesia de Ferreira Gullar, a percepção da materialidade do mundo constitui-se como uma constante. Neste trabalho, investigamos como tal percepção expõe a urgência de uma procura – sempre recomeçada no espanto – do próprio ser. Trata-se, mais propriamente, de compreender como a apurada atenção ao mundo revela um sujeito em tensão, que, num jogo de espelhos, transfere à linguagem a inquieta necessidade de fundar um mundo e, nele, a si mesmo. Num primeiro momento, procuraremos reconhecer os procedimentos reflexivos que influem no próprio modo de ser da escrita de Ferreira Gullar; neste caso, o espanto e a intencionalidade reflexiva que atravessam sua obra. Em seguida, na tentativa de reconhecer as ressonâncias dessa subjetividade lírica, focalizaremos três momentos- chaves nos quais podemos vislumbrar o sistema de pensamento que demarca a poesia do autor, a saber: quando esteve ocupado da realidade da linguagem; a seguir, da realidade do social e do coletivo; e, por fim, de uma realidade material que, mediante a experiência sensível, se coloca ao sujeito como impulsionadora de um desejo de encontro e reconhecimento.

Palavras-chave: Ferreira Gullar; poesia; subjetividade; percepção; materialidade.

ABSTRACT

RAMOS, Suzanny de Araujo. Reason for vertigo: representations of subjectivity in Ferreira Gullar’s poetry. Rio de Janeiro, 2017. Tese (Doutorado em Letras Vernáculas) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.

If the plurality of voices and aesthetic perspectives are fundamental marks of Ferreira Gullar’s poetry, the perception of the world’s materiality is a constant. In this work, we investigated how this perception exposes the urgency of a search – always restarted in amazement – of the Self. Rather, it is a question of understanding how the close attention to the world reveals a subject in tension, who, in a play of mirrors, transfers to the language the restless need of founding a world and, in it, himself. Initially, we will seek to recognize the reflexive procedures which influence in the own way of being of Ferreira Gullar’s writing; in this case, the astonishment and the reflexive intentionality that are found throughout his work. Thereafter, in an attempt to recognize the resonances of this lyrical subjectivity, we will focus on three key moments in which we can glimpse the system of thought which defines the author’s poetry, namely: when he was occupied with the reality of language; then, of the reality of the social and the collective; and, finally, of a material reality which, by means of the sensitive experience, places the subject as the driving force of a desire for encounter and recognition.

Keywords: Ferreira Gullar; poetry; subjectivity; perception; materiality.

“A percepção se faz no tempo. O que percebo é apreendido, selecionado e decifrado oportunamente, segundo o que percebi antes. O mundo fluiria docilmente através de meu corpo se, por baixo desse surdo murmúrio, eu não percebesse uma estranheza que me leva a pensar o mundo, a me situar nele individualmente. A sua espontaneidade me nega e a minha interrogação me isola, porque eu me furto ao mundo para pensá-lo. Mas não me furto o suficiente para não lhe ouvir o nostálgico murmúrio. É preciso pensar espontaneamente o mundo, integrar o pensamento no fluir, pensar com o corpo.”

(Ferreira Gullar)

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO...... 10

2. A EXATA MEDIDA...... 17

2.1 Entre o espanto e a reflexão...... 32 2.2 A apreensão física do mundo...... 49 2.3 Expansão e reconhecimento...... 55 2.4 “Na muda carne das coisas”...... 62

3. DA REALIDADE DA LINGUAGEM...... 67

3.1 O espanto e a consciência criadora...... 74 3.2 Entre uma coisa e outra, o sujeito...... 82 3.3 A consciência desdobrada...... 94

4. O SUJEITO DUAL...... 113

4.1 O eu e o outro...... 117 4.2 O dentro e o fora...... 130 4.3 O passado e o presente...... 144

5. O REAL REVISITADO...... 150

5.1 Encontro e vertigem...... 157 5.2 O avançar da sensação...... 162 5.3 O perto e o distante...... 175

6. CONCLUSÃO...... 190

7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...... 194

1. INTRODUÇÃO

Eu é um fora.

Octavio Paz

Em seu ensaio “O sujeito lírico fora de si”, Michel Collot propõe uma reinterpretação do sujeito lírico que não mais o entende como “pura identidade”, conforme a concepção hegeliana do lirismo, mas numa estreita e indispensável relação com um fora. Dessa perspectiva, sustenta a hipótese de que “uma tal saída de si não é uma simples exceção, mas, pelo menos para a modernidade, a regra”. Se a modernidade, porém, “parece o consagrar à errância e à desaparição”, não é este o caminho que o autor sugere, perguntando-se, ao contrário, “se a própria verdade não reside precisamente em uma tal saída, que pode ser tanto ek-stase quanto exílio, e se a recente decadência do sujeito lírico não lhe daria uma nova chance” (COLLOT, 2004, p. 165). Dando prosseguimento a esse raciocínio, Michel Collot sustenta que:

Estar fora de si é ter perdido o controle de seus movimentos interiores e, a partir daí, ser projetado em direção ao exterior. Esses dois sentidos da expressão me parecem constitutivos da emoção lírica: o transporte e a deportação que porta o sujeito ao encontro do que transborda de si e para fora de si (COLLOT, 2004, p. 166).

Nesse sentido, o caminho da fenomenologia revelou-se um dos mais profícuos à compreensão dessa presença lírica, uma vez que

[...] não considera mais o sujeito em termos de substância, de interioridade e de identidade, mas em sua relação constitutiva com um fora que, especialmente em sua versão existencial, o altera, colocando

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a acentuação em sua ek-sistence, em seu ser no mundo e para outro (COLLOT, 2004, pp. 166-167).

Acompanhando essa orientação crítica, Michel Collot recupera e atualiza a fenomenologia hermenêutica de Maurice Merleau-Ponty, nomeadamente naquilo que o filósofo entende como uma “encarnação do sujeito”. Isto porque “a noção de carne permite pensar conjuntamente seus pertencimentos ao mundo, ao outro, à linguagem, não sob o modo de exterioridade, mas como uma relação de inclusão recíproca”. Projetando- se, portanto, mediante seu corpo, para “fora de si”, o sujeito lírico pode então “reaver sua verdade mais íntima” (COLLOT, 2004, p. 167). Mais que isso: “Abdicando todo significado e representação pré-estabelecida [sic], aceitando estar fora de si na abstração lírica do gesto de escrever, projetando-se na matéria das palavras e das coisas, o poeta se revela a si mesmo e aos outros” (COLLOT, 2004, p. 175). A essas reflexões, podemos acrescentar as palavras de Merleau-Ponty quando este observa, na sua Fenomenologia da percepção, que “a subjetividade não é a identidade móvel consigo: para ser subjetividade, é-lhe essencial, assim como ao tempo, abrir-se a um Outro e sair de si” (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 571). Por outro lado, mas partilhando da mesma reflexão, Gaston Bachelard ressalta em A poética do espaço que “é no âmago do ser que o ser é errante. Por vezes, é estando fora de si que o ser experimenta consistências. Por vezes, também, ele está, poderíamos dizer, encerrado no exterior” (BACHELARD, 1993, p. 218). Ora, esse é o movimento que reconhecemos na poesia de Ferreira Gullar (1930- 2016), cuja extensa e próspera trajetória esteve marcada por tensões e recomeços, compondo-se de diferentes modos e intensidades. Interessado nas questões pessoais e simultaneamente nos problemas de seu tempo, experimentar uma realidade externa a si revelou-se, desde o início, fundamental à sua experiência poética. No centro dela, orientando-a, o corpo, profunda e afetivamente expandido “entre coisas”, numa vigorosa “sede de compreensão do sensível” (KOVADLOFF, 1979, p. 209). Não por acaso o poeta iria eleger o espanto como o motivo gerador de seus poemas. Do latim expaventare, ex indica um movimento “para fora de” enquanto pavere é o que provoca admiração, assombro, pavor. No Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, a pesquisa do vocábulo traz em resposta as seguintes definições: 1. qualidade

11 do que é espantoso ou do que causa assombro; pasmo 2. medo, susto; 3. qualidade do que provoca admiração; maravilha; 4. acontecimento inesperado, surpreendente. De posse destas acepções, já pressentimos a natureza do espanto gullariano: mobiliza-se o sujeito para uma “saída de si”, o que só se dá em virtude de uma percepção prévia e involuntária que a realidade exterior lhe provoca. Chegamos, pois, à esfera central de nossas reflexões. Se a pluralidade de vozes e de perspectivas estéticas são marcas fundamentais da poesia de Ferreira Gullar, a percepção da materialidade do mundo constitui-se como uma constante. Neste trabalho, investigamos como tal percepção expõe na verdade a urgência de uma procura – sempre recomeçada no espanto – do próprio ser. Trata-se, mais propriamente, de compreender como a apurada atenção ao mundo revela simultaneamente um sujeito em tensão, que, num jogo de espelhos, transfere à linguagem a inquieta necessidade de fundar um mundo e, nele, a si mesmo. Duplo movimento, portanto: o de ressignificar o mundo externo e o interior do sujeito. Uma das vias possíveis para a compreensão desse movimento é pensá-lo, na esteira dos estudos de Alfredo Bosi (2003, p. 172) , ao lado de um agudo “sentimento do Tempo”: precário em si mesmo, “num corpo / que ele / de certo modo / nega / pois que esse corpo morre” (GULLAR, 2010c, p. 75), o sentido do sujeito só poderá ser melhor compreendido quando refletido num corpo outro, logo, “fora de si”. Esse interesse reflexivo se expande em diferentes modulações ao longo de toda a obra ao acompanhar a dinâmica de um pensamento que igualmente se amplia. Aliás, é uma prática comum do poeta o debruçar-se reiteradas vezes sobre os mesmos objetos, tornando-os verdadeiros símbolos fixos. Não obstante essa recorrência de temas, compreendemos que entender o sistema de pensamento que mobiliza a poesia de Ferreira Gullar não é tarefa simples. Ao contrário, estamos diante do desafio de como dizer essa poesia criticamente, de como traduzi-la na especificidade de sua múltipla e singular abordagem, focalizando seus feixes temáticos basilares, suas rupturas e continuidades, bem como seus principais conflitos e impasses, e a maneira como os mesmos foram (ou não) resolvidos no curso de sua trajetória. Assim, embora nossas reflexões partam da obra de estreia ‒ A luta corporal (1954) ‒ e se estendam até seu derradeiro livro ‒ Em alguma parte alguma (2010) ‒, nosso

12 interesse é menos o de demorar-nos sobre a especificidade de cada obra e de seus respectivos poemas e mais o de situar alguns eixos reflexivos capazes de nos dar uma perspectiva de conjunto. Estruturalmente, o trabalho será dividido em quatro capítulos. No primeiro deles, intitulado “A exata medida”, procuraremos reconhecer os procedimentos reflexivos que influem no próprio modo de ser da escrita de Ferreira Gullar. Nesse caso, interessam-nos o espanto e a intencionalidade reflexiva que atravessam a sua obra, entendendo-as como inseparáveis de seu fazer poético. Na sequência, abordaremos a apreensão física do mundo como um dos principais modos de acesso à realidade exterior. Considerando que Ferreira Gullar é um poeta físico, das sensações, sua experiência fenomenológica com o mundo como “sujeito encarnado” dá-se intimamente na carne, referenciando-se novamente aqui a fenomenologia de Merleau-Ponty. Iremos nos servir complementarmente dos termos “extravio” e “dispersão” – não em sentido negativo, adiantamos, mas, ao contrário, como condição do eu como corpo no mundo – para pensar o movimento em que o sujeito se expande nas coisas, no tempo. Também procuraremos situar essa preferência do poeta por uma realidade material que ele obsessiva e inquietamente perscruta. Em diversos momentos, recorreremos a posicionamentos críticos do próprio autor acerca de seu processo criativo, conforme expressou em diversas entrevistas e textos críticos, a fim de entendermos a dinâmica de seus poemas. O segundo capítulo, “Da realidade da linguagem”, contemplará um período particularmente interessante (porque inicial) da trajetória do autor, no qual esteve ocupado sobretudo dos problemas formais da linguagem. Perseguindo a “sintaxe vertiginosa” dos poemas de A luta corporal, sua obra de estreia, procuraremos apontar a formação de uma consciência criadora. Em seguida, será necessário pensar a experiência fenomenológica do sujeito “entre coisas”, reconhecendo nela a primeira figuração dessa subjetividade lírica que confronta, nas palavras, a impossibilidade de estabelecer de fato uma relação com o mundo. Acompanhando essas reflexões, julgamos que se faz necessário pensar como os problemas iniciais determinaram, nas experiências imediatamente posteriores, uma consciência desdobrada do problema poético. Neste caso, citamos o ciclo experimental que perseguiu o poeta por pouco mais de uma década e que compreende as seguintes

13 realizações: O vil metal, Poemas concretos e neoconcretos, Poemas espaciais, Livros- poemas, e, por fim, o Poema enterrado, espécie de síntese dessas experiências limites. Nosso interesse, porém, não será o de nos aprofundarmos em tais experiências, mas o de analisá-las somente naquilo em que refletem as questões da experiência anterior, bem como em algumas tomadas de posição face à problemática do sujeito. O terceiro capítulo, por sua vez, intitulado “O sujeito dual”, se concentrará na tentativa de reconhecer as ressonâncias dessa subjetividade lírica num momento muito particular da trajetória poética de Ferreira Gullar, a saber: quando esteve ocupado da realidade social e coletiva. Se tal experiência se deu no interior de um processo cultural e político do qual o poeta participou de maneira central e combativa, reconhecemos a partir daqui uma clara reorientação crítica de sua poesia. Partindo da dualidade de si mesmo, o mundo consequentemente desenhou-se ao sujeito como dual, movendo-se entre problemas individuais e coletivos (eu/outro), mas também entre espaços (dentro/fora) e tempos distintos (passado/presente). Além disso, uma escrita da cidade ganha forma a partir deste momento, revelando-se um espaço propício à explanação dessas dualidades. Com ela, inaugura-se também, pela primeira vez, a perspectiva do excesso e do “simultâneo” – que a linguagem, insuficiente por natureza, não pode abarcar – ao compreender que “uma coisa está em outra”. É nessa direção que caminhará o quarto e último capítulo, intitulado “O real revisitado”. Isto porque se antes o sujeito poético se conscientizara de suas dualidades, vemos agora uma necessidade profunda de aproximar uma realidade à outra. Traduzindo- as uma na outra, ele anula cada vez mais as dicotomias entre sujeito e objeto. Aparentemente, há aqui uma clara e decisiva redefinição do problema poético. Trata-se do autor cada vez mais próximo da realidade material das coisas e do mundo, procurando com ela estabelecer uma intimidade profunda, numa dinâmica de encontro e reconhecimento. De qualquer modo, é agora dos domínios da paisagem e da natureza-morta que o poeta mais se ocupa, abarcando desde os seres mínimos até a matéria cósmica. Sobre essa aproximação entre o perto e o distante, que aparece com mais insistência nas suas derradeiras obras, importa-nos pensar como ele extrapola, em algum momento, o mundo físico e adentra o mundo cósmico, pensando-os como suficientes entre si e ao mesmo tempo como dois espaços complementares.

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No que tange aos pressupostos teóricos, daremos especial ênfase à obra de Maurice Merleau-Ponty e, complementarmente, aos estudos sobre poesia e paisagem do crítico Michel Collot. Ambos nos parecem inestimáveis para a compreensão da tríade sujeito-mundo-linguagem com que Ferreira Gullar trabalha vigorosamente em sua poesia. Nessa mesma clave analítica, agregaremos em algum momento a relevância do pensamento de Gaston Bachelard, Michel Ribon, James Hillman e dos estudos sobre arte dos críticos Ernst Hans Gombrich, Georges Didi-Huberman e John Berger, que também privilegiam a experiência fenomenológica. Os estudos de Davi Arrigucci Jr. sobre a poesia gullariana como também aqueles que dedicou à poesia de e Carlos Drummond de Andrade, serão fundamentais para compreender algumas questões que estão no centro do processo criativo do autor. Para pensar a inquietude do eu, voltada para a matéria finita do corpo e para a inexorabilidade do tempo, valemo-nos das reflexões propostas por Regina Schöpke. Os textos de Alcides Villaça, Alfredo Bosi, Antonio Carlos Secchin, João Luiz Lafetá, também serão imprescindíveis para a compreensão dos diferentes momentos da trajetória do autor. Quanto à natureza da linguagem poética, recorreremos com especial ênfase à obra de Octavio Paz, que nos permite uma visão ampliada do fenômeno poético e, por isso mesmo, é fundamental para pensar a poética do autor. Ocasionalmente, iremos nos servir do pensamento de Alfonso Berardinelli, Hugo Friedrich, Michael Hamburguer e Paul Valéry. Acrescentou-se, ainda, sobre a compreensão dual do sujeito poético gullariano, os estudos de Theodor W. Adorno e Ernst Fischer. Desde já, podemos assinalar a relevância de algum diálogo com a produção crítica de autoria do próprio Ferreira Gullar, incluindo os textos publicados na Folha de S. Paulo, uma vez que estes não só reforçam a sua peculiar postura autocrítica como clarificam aspectos centrais de seu processo criativo. A estes estudos, devem se somar os textos pertencentes à fortuna crítica do poeta. Considerando a amplitude de vozes que essa poesia demarca, encontramos na experiência perceptiva do real uma espécie de eixo reflexivo central que não só orienta todos os outros, como também, e principalmente, faz do poema uma verdadeira “matéria- emoção”, conforme entende Michel Collot, e que diz respeito à materialidade da linguagem e à experiência sensível do mundo.

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Nessa transmutação da vertigem do mundo em linguagem, reconhecemos uma subjetividade lírica cada vez mais exposta, seja em meio às experimentações da linguagem, seja nas discussões sobre a realidade do social e do coletivo, seja na vertigem da experiência sensível com a realidade material. Em todas elas, há um claro interesse em não mais se restringir à limitada esfera de sua individualidade, e sim em abrir-se ao fora, ao outro, “pelo qual, saindo de si, o sujeito moderno, abrindo-se à alteridade do mundo, das palavras e dos seres, pode se realizar nesse desapossamento” (COLLOT, 2004, p. 176).

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2. A EXATA MEDIDA

Enfim, o que é o espanto que faz nascer o poema? É a súbita constatação de que o mundo não está explicado e, por isso, a cada momento, nos põe diante de seu invencível mistério. Tentar expressá-lo é a pretensão do poeta.

Ferreira Gullar

A epígrafe acima, articulando uma discussão sobre o modo de ser do poema, nomeadamente daquilo que o origina, isto é, de uma constatação prévia que ao poeta anima e, por conseguinte, reclama dele expressão, centraliza um dos aspectos nodais – posto que a engendra – da poesia de Ferreira Gullar, a saber: o espanto. De fato, desde o início, quando ainda se ocupava dos problemas de forma mais do que de expressão nos poemas de seu livro de estreia, A luta corporal (1954), o autor parece ter encontrado no espanto a exata medida para manter-se na esfera do inteligível. Assim, mesmo numa ambiência verbal que realmente parece “nos dar as chamas dum / exato / vácuo / VOCABULAR” (GULLAR, 2004b, p. 54), é possível reconhecer sem dificuldade a inscrição de algumas das muitas vozes e perspectivas estéticas que, na sua posterior recorrência ampliada, reverberariam de maneira definitiva no opus poético do autor. Chama a atenção, igualmente, o fato de que se por um lado sobressai nesses poemas de estreia uma espécie de vertigem da ausência, uma vez que era preciso lidar com caminhos estéticos ainda não muito bem definidos; por outro lado, parece ser muito clara a Ferreira Gullar a natureza dessa procura. Ou, conforme nos mostram os versos da série “Sete poemas portugueses”, que inaugura o livro: “Caminhos não há / mas os pés na grama / os inventarão // Aqui se inicia / uma viagem clara / para a encantação” (GULLAR, 2004b, p. 6). Ora, tomando-o no seu sentido mais imediato, e no contexto da poesia do autor, é quase impossível não associarmos o termo “encantação” ao espanto. É de fato na possibilidade de encantar-se, ou melhor, de ressignificar na linguagem um mundo já

17 aparentemente explicado que ele iria encontrar ao longo de uma extensa e profícua trajetória sua matéria de poesia. E isto, ao que tudo indica, como possibilidade de permanência de sua própria arte, sempre renovada no espanto e cada vez mais concentrada naquilo que de surpresa ou redescoberta se pode extrair da carga conceitual que pesa sob a realidade das coisas e do mundo. Dessa perspectiva, é interessante notar que, embora por reiteradas vezes Ferreira Gullar tenha sido enfático ao atribuir os espantos da vida como motivo gerador de seus poemas, quando direcionamos nosso olhar para estes, vemos que as referências ao citado fenômeno estão neles mais subentendidas do que necessariamente explícitas ao leitor, pois há, em toda a sua produção, apenas duas composições que aludem diretamente ao vocábulo “espanto”. O que fica claro, na verdade, é o modo como ele expõe na enunciação lírica a interiorização de um saber que reconhece em tal fenômeno não uma explicação do real, mas justamente que a realidade é inexplicável. Daí o esforço de reinventar lucidamente a matéria percebida numa experiência outra (mais particular e subjetiva) que, por sua vez, se aspira completa no poema. Quanto às duas únicas composições (acima referidas) que aludem diretamente ao espanto, cabe a nós situá-las. A primeira diz respeito ao famoso poema “Traduzir-se”, de Na vertigem do dia (1980). Nele, o sujeito poético, ao reconhecer-se dual – e o motivo reflexivo do poema será justamente o de explanar tais dualidades –, compreende a certa altura que: “Uma parte de mim / almoça e janta: / outra parte / se espanta.” (GULLAR, 2004b, p. 335). Uma parte, portanto, intimamente atrelada ao universo do habitual, do rotineiro; outra parte, condicionada à emoção do momento em que nesse mesmo universo do trivial uma inesperada novidade se revela. No que tange à segunda composição, referimo-nos ao poema “Relva verde relva”, do livro Em alguma parte alguma (2010), onde, à presença involuntária da memória, fulge indivisível: “Dentro de mim – mas onde? / no céu / da boca? debaixo / da pele? – / fulge de repente um largo verde esquecido”. Fulge, num átimo de tempo, a cidade em ruínas: “(o relâmpago me atinge agora numa cozinha da rua Duvivier)”; para, então, e de um modo conclusivo, reconhecer o sujeito que: “De tais espantos somos feitos.” (GULLAR, 2010c, p. 42). Cabe observar ainda que se a referência direta ao espanto se resume a esses dois poemas, há, por outro lado, ao longo de toda a obra, uma acentuada recorrência de

18 determinados vocábulos que indiretamente aludem a essa ideia. No conjunto, compartilham do mesmo caráter imprevisível e inesperado: “vertigem, “clarão”, “facho”, “lampejo”, “aparição”, “relâmpago”, “susto”, “ventania”. Por serem esclarecedores quanto à natureza do fenômeno, sobretudo acerca da relação vertiginosa entre o sujeito e a anima mundi, bem como naquilo que nos revelam a respeito de uma interferência do tempo e da memória, faz-se relevante revisitarmos aqui alguns de seus excertos, conforme aparecem em Toda poesia (2004). São eles:

“meu corpo multiplicado em fachos.” (p. 84)

“Não sei de que tecido é feita minha carne e essa vertigem / que me arrasta por avenidas e vaginas entre cheiros de gás / e mijo a me consumir como um facho-corpo sem chama” (p. 235)

“o relâmpago clareia os continentes passados” (p. 242)

“Desce profundo o relâmpago / de tuas águas em meu corpo, / desce tão fundo e tão amplo / e eu me pareço tão pouco” (p. 275)

“e o que da noite volte / volte em chamas / ou em chaga // vertiginosamente como o jasmim / que num lampejo só / ilumina a cidade inteira” (p. 336)

“Em que parte de mim ficou / aquela mancha azul? / [...] / um azul / que há séculos / numa tarde talvez / feito um lampejo surgiu no mundo / essa cor / essa mancha / que a mim chegou / de detrás de dezenas de milhares de manhãs / e noites estreladas / como um puído / aceno humano.” (p. 350)

“se dizes pêra, / acende-se um clarão / um rastilho / de tardes e açúcares / ou / se azul disseres, / pode ser que se agite / o Egeu / em tuas glândulas) / [...] / tudo isso em ti / se deposita / e cala. / Até que de repente / um susto / ou uma ventania / (que o poema dispara) / chama / esses fósseis à fala.” (pp. 453-454)

Como se vê, são todos esses arquétipos de uma aguda emoção que ao corpo inelutavelmente atravessa e, no sujeito, recupera a memória mais remota. Portanto, um tempo passado que se reacende no tempo presente, ressignificando-o. Essa emoção, aliás, pode muito bem ser entendida como a irrupção do espanto, proveniente na maioria das vezes de uma experiência exterior que recupera a memória afetiva e, em consequência,

19 não só intervém na realidade aparentemente banal e cotidiana a que alude, mas também, e principalmente, atua na própria psicologia do sujeito. Considerando, pois, a centralidade desse fenômeno, quando nos dispomos a repensar criticamente a produção poética do autor nos domínios da percepção da realidade em íntima relação com a construção de uma subjetividade lírica – escopo central desta pesquisa –, faz-se imediata a necessidade de nos ocuparmos da especificidade do espanto gullariano. Mais que isso: como força motriz que orienta seu processo criativo, desperta em nós o interesse de compreendê-lo em alguns (posto que são muitos) de seus possíveis desdobramentos; observando, em cada um deles, como influi de maneira direta em seus versos, bem como naquilo que determina em termos de uma postura crítica acerca do poético. Trata-se, nesse caso, de entendê-lo na sua natureza repentina e inconstante, mas também e sobretudo como gerador de um pensamento prévio, demorado e autoconsciente, considerando-se que, na concepção de Ferreira Gullar, “poesia não é improviso, mas algo de muito complexo” (GULLAR, 1998b, p. 383). Para ele, conforme indicou acerca de seus poemas de estreia, mas que sem dúvida alguma podemos estender à sua obra toda, “poesia e conhecimento, técnica poética e formulação verbal da experiência não se separam mas evoluem simultaneamente” (GULLAR, 2010a, p. 126). Ou, como afirmou peremptoriamente aos Cadernos de Literatura Brasileira, em setembro de 1998: “Eu só escrevo a poesia que merece nascer” (GULLAR, 1998a, p. 53). De posse dessas reveladoras assertivas, deflagra-se logo a disposição crítica na qual essa escrita está essencialmente engendrada. Como parte, aliás, daquilo que poderíamos pensar desde já como uma intencionalidade reflexiva que atravessa profunda e decisivamente a sua obra. Para confirmá-la, basta lembrar que em consonância à atividade como poeta destacam-se suas outras não menos relevantes facetas, sobretudo como crítico de arte e cronista. Nestes textos, comunica-nos a abrangência de seus espantos ao abordar variados assuntos que lhe convocam à reflexão, porém todos mediados pela mesma postura influente, provocadora e até mesmo polêmica com que defende suas ideias, dando-nos a ver o alcance de seu exercício crítico. A isto, inclusive, aplica-se o fato de que Ferreira Gullar sempre procurou, no curso de sua trajetória, afastar-se do caminho das verdades (à

20 primeira vista) definitivas, permitindo-se, caso necessário, repensar ou até mesmo mudar radicalmente seus pontos de vista. Acerca dessa postura interventiva que em paralelo à criação de seus poemas sempre o acompanhara, o autor se expressou em dois momentos de uma mesma entrevista concedida à Poesia sempre, em março de 1998. Disse ele: “Primeiro: com raras exceções, eu sempre escrevi ensaio com o objetivo de defender a minha poesia e a minha visão estética. Se você prestar atenção, estou sempre brigando e costumo dizer que minha ensaística é, na maioria das vezes, fogo de barragem para permitir que eu siga meu caminho” (GULLAR, 1998b, p. 412). Mais adiante, ao ponderar sobre o fato de sua obra não ser muito extensa, se considerados os anos de atividade poética, acrescentou: “Sou muito exigente como poeta e só escrevo quando movido por alta-tensão. Recuso tudo aquilo que julgo indigno de mim, de modo que minha obra completa pode também ser entendida como uma antologia crítica” (GULLAR, 1998b, p. 417). Em relação à primeira declaração, tal alcance crítico parece comprovar-se de fato quando, em texto publicado em 1958 no Jornal do Brasil, o poeta Manuel Bandeira não só sugeriu que os poemas concretos de Ferreira Gullar por não virem intitulados, poderiam ao menos ter sido numerados, a fim de orientar o leitor na compreensão dos mesmos; como, e principalmente, observou que por seu caráter esclarecedor o texto “Poesia concreta: palavra viva”, de autoria do próprio Gullar, “deveria ter sido juntado ao livro como prefácio” (BANDEIRA, 2008, p. xxxi). No que tange à segunda declaração, relativamente à exigência de algo que mobilize um estado de alta tensão para escrever o poema, podemos dizer que é novamente o próprio espanto em questão. Afinal, tal como em Carlos Drummond de Andrade, cujo “traço decisivo ou do modo de ser da obra é a exigência de uma mediação reflexiva para se chegar à poesia” (ARRIGUCCI JR., 2010, p. 16); em Ferreira Gullar é necessário que haja um impulso inicial que transcenda a clausura do mundo conceitual, fechado em si mesmo, e naquilo que tal descoberta ou mesmo redescoberta tem de estranho ou belo, suspenda em palavras a força da experiência. Em outros termos, é quando o abissal mistério da vida se transubstancia em poesia. Concentremo-nos, portanto, na especificidade do espanto gullariano.

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Preliminarmente, e em termos gerais, podemos associá-lo àquilo que a propósito do alumbramento em Manuel Bandeira, Davi Arrigucci Jr. (2002, p. 54) entendeu como uma “súbita manifestação do momento forte em que irrompe o poético”. De fato, como também declarou Emanuel de Moraes (1989, p. 174) em estudo sobre a poesia bandeiriana, “para que se dispusesse ao ato de criação, não bastava o seu querer puro e simples. Seria preciso que alguma força, vinda do seu íntimo, o impulsionasse e lhe impusesse a vontade criadora”. De modo semelhante observa-se na poesia de Ferreira Gullar. Isto porque ao aproximar-se (na sua essência) de tudo aquilo que não obedece à ordem do previsível, seu espanto revela-nos muito dessa projeção intempestiva em que o poeta, ao afastar-se de seu estado habitual – sobretudo quando descobre na matéria inesgotável do mundo novos modos de acesso para pensar e indagar a existência – se aproxima de um inesperado “estado de perplexidade” que exige dele expressão. Ou quando, com igual intensidade e sem que necessariamente as solicite, imagens que já lhe são conhecidas voltam sob novas acepções de sentido (e por vezes carregadas de afeto) e ampliam de modo significativo o processo cíclico de indagar-se e/ou traduzir- se. Exemplar, nesse sentido, é o imprevisível e reiterado espanto diante da inesperada captação do cheiro de jasmim que lhe “lesiona / as narinas” (GULLAR, 2010c, p. 33); ou da natureza-morta de frutas “que ao nosso / lado viajam / para o caos” (GULLAR, 2004b, p. 316). Quanto ao sentido dessa percepção do poema como fruto do inesperado, ou melhor, da emoção aleatória, parece-nos evidente nos versos iniciais de “Nasce o poema”, do livro Barulhos (1987), que cabe aqui recuperar:

há quem pense que sabe como deve ser o poema eu mal sei como gostaria que ele fosse porque eu mudo o mundo muda e a poesia irrompe donde menos se espera às vezes

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cheirando a flor às vezes desatada no olor da fruta podre que no podre se abisma (quanto mais perto da noite mais grita o aroma)

(GULLAR, 2004b, p. 397)

Da ordem do não saber, portanto, e como estado imprevisível e assistemático que coaduna pensamento e expressão, seu espanto resulta de uma apurada percepção da materialidade do mundo. Ou melhor: cravada no âmago das coisas e desdobrada numa intencionalidade reflexiva, a expectação do sujeito gullariano instala-se de maneira profunda e sensível naquilo que ao transcender sua aparente trivialidade sustenta a força do espanto. “O que move o poeta”, adverte-nos Alcides Villaça (2016, p. 60), “é uma desconfiança básica diante do que não o surpreenda; em outras palavras, a qualidade do espanto parece ser o termômetro poético com que Gullar avalia as matérias que converte em poesia”. Com efeito, como o próprio poeta ressaltou em diferentes ocasiões, era-lhe necessária uma perplexidade, uma motivação involuntária, ou ainda, uma disposição exterior que, por sua vez, o impulsionasse a transmudá-la em poesia. Para Paul Valéry, que nos fala a partir de sua própria experiência como poeta, trata-se de uma “perturbação inicial e sempre acidental que vai construir em nós o instrumento poético” (VALÉRY, 2007, p. 197). Nessa mesma direção, que diz respeito à necessidade de uma mediação como inerente à poesia, declarou Octavio Paz (1982, p. 225) em O arco e a lira que: “Embora a poesia não seja religião, nem magia, nem pensamento, para se realizar como poema apóia-se [sic] em algo alheio a si mesma. Alheio, mas sem o qual não poderia se encarnar”. Fora disso, e agora voltamos à poesia gullariana, o espanto não se manifesta, torna-se silêncio em potencial até que novamente a realidade se revele ao sujeito para além de sua roupagem conceitual. Permitindo-nos aqui uma breve digressão, lembremos, nesse caso, da considerável distância cronológica que separa a publicação de um livro e outro de Ferreira Gullar,

23 entendendo-a como a deflagração de uma experiência limite. Realmente, trata-se de um momento em que, quando já aparentemente esgotadas todas as possibilidades discursivas, chega-se ao limite da reflexão, confrontando-se com a experiência do vazio, para ele, definitivo. Porém, mais do que propriamente a consagração de um silêncio ou de uma ausência que ao poeta parecia ser o fim da experiência, tal lacuna, ao contrário, significava-lhe a possibilidade de repensar ou, se necessário, mudar suas convicções acerca do poético. Da espera demorada e autoconsciente, reinventaria, com o mesmo domínio verbal e acuidade crítica que lhe são características, os fundamentos de um discurso cada vez mais refletido e apurado. Retomando nosso raciocínio acerca da iminência do espanto, nomeadamente quando, num outro momento, dissemos que este tangencia um movimento súbito e inesperado de redescoberta do mundo, é interessante observar ainda, entre a irrupção da experiência perceptiva e a posterior necessidade de comunicar tal experiência, como nele se potencializa a pulsão criadora. Mais propriamente a concepção do poema como o espaço onde confluem emoções ainda não vividas e/ou experimentadas. E que é parte, inclusive, de um sentimento ou de uma visão de mundo que se quer sempre inaugural. Afinal, como disse Ferreira Gullar, “o poema é, de certo modo, a tentativa de incluir, eu não diria no mundo conceitual, no mundo humano experiências que não estão formuladas. O poeta formula o que não está ainda formulado e, nesse sentido, ele amplia o universo humano” (GULLAR, 1991, p. 270). Desse modo, tal qual a cristalização de um estado emocional “em que se cria uma espécie de liberdade interior” (GULLAR, 1998a, p. 46), a concepção do poema significa- lhe a possibilidade de tomar uma certa distância de suas concepções prévias e abrir-se à emoção do desconhecido. Por isso, na esfera central de seu processo criativo, e sobretudo indissociável do modus operandi dos poemas, há a negação de uma “habilidade conquistada” em favor do “impasse”, bem como a incisiva resistência em seguir o caminho das respostas prontas e acabadas. De maneira que, conforme ele mesmo argumentou:

[...]: quando adquiro a habilidade, eu corto, rompo. Não consigo continuar, eu não quero continuar. Não é uma questão de buscar o novo

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simplesmente, mas porque ali tem que aflorar a coisa fresca; é que sou exigente e não quero a habilidade, como falei. Então continuo buscando (GULLAR, 1998a, p. 55).

Compreende-se, assim, a clara autonomia com que se apropria, no curso de sua trajetória, dos mais diferentes motivos reflexivos, ao mesmo tempo que (e com a mesma habilidade) os abandona quando estes novamente se mostram insuficientes em si mesmos ou ascendem ao limite da reflexão. Não surpreende, portanto, dessa dinâmica sempre recomeçada no espanto, os múltiplos e, por vezes, contraditórios lugares que sua poesia ocupa no contexto da lírica brasileira, condicionada a uma série de fatores internos e externos, pessoais e coletivos, que direta ou indiretamente delinearam os caminhos a serem seguidos. Numa entrevista à Dicta & Contradicta, em 2010, ao ser questionado acerca de uma possível “unidade” existente em sua produção poética, considerando as diferentes inscrições que a demarcam – assunto, aliás, essencial à compreensão de sua lírica –, foi enfático ao afirmar:

Eu sou incoerente, e a minha obra é incoerente. A unidade que ela possui é talvez a da busca. A luta corporal é muito diferente da minha fase de poesia concreta. O livro seguinte a esta fase, Dentro da noite veloz, é diferente do próximo e assim por diante. O Poema sujo tem a ver com o livro anterior e é muito mais diferente – por isso o chamei de “sujo”, porque, estilisticamente, tem referências de todas as fases anteriores. Não tenho a preocupação da coerência. Se há alguma, está na busca, que muda sempre, porque, enquanto vivo, critico, penso, repenso e invento as coisas que experimentei (GULLAR, 2010b, p. 26).

Esse sistema de pensamento é comprovado a partir de um olhar acurado de seu prolífico percurso poético, que compreende mais de seis décadas – desde a publicação de A luta corporal (1954) até seu derradeiro livro Em alguma parte alguma (2010) –, principalmente no que realiza a respeito da ampliação de uma certa visão de mundo e que é, afinal, a própria expressão de uma necessidade profunda de reinventar-se na vida e na arte.

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A inquietude do início, por exemplo, quando experimentou o improvável por estar em busca do que entendia ser a poesia “essencial”, e aqui nos referimos aos poemas de A luta corporal, ampliar-se-ia de maneira significativa na força de uma voz profundamente inquieta e influente – parte que é, sem dúvida, daquela aspiração que sobressai no poema “Off price”, de Em alguma parte alguma, e, numa perspectiva mais ampla, coloca-se no centro da experiência do espanto:

Que a sorte me livre do mercado e que me deixe continuar fazendo (sem o saber) fora de esquema meu poema inesperado

e que eu possa cada vez mais desaprender de pensar o pensado e assim poder reinventar o certo pelo errado

(GULLAR, 2010c, p. 35)

A par, portanto, dessa dinâmica autocrítica que mobiliza sua escrita, não surpreende o fato de Ferreira Gullar ter elegido o espanto como via de acesso ao poema. Como “estado mental imprevisível” que precede ou determina o poema e, mais que isso, configura-se nele como uma necessidade para a irrupção do poético, comporta um exercício reflexivo que muda de maneira significativa sua relação com a realidade exterior, gestado que está a partir do assombro de um mundo que (“num relance”) se coloca para ele com novos sentidos. Por outro lado, não podemos nos esquecer que a possibilidade de pensar o espanto como chave interpretativa de sua percepção da realidade passa certamente pelo questionamento dos limites entre poesia e filosofia, principalmente se considerarmos que tal obra não se compraz no limite do não saber. Ao contrário, dá-nos a ver uma certa – porém muito clara – tendência filosófica, que faz do poema um veículo de reflexão ontológica. Como argumentou o próprio poeta: “É a isso que chamo o não saber. E é por ‘não saber’ que vivo pensando sem parar, porque a vida está constantemente me pedindo

26 decisões e soluções para os problemas. Como eu não sei, tenho que pensar” (GULLAR, 2006, p. 10). Assim, embora nosso interesse não recaia na tentativa de estabelecer os possíveis pontos de aproximação e distanciamento que há entre ambas, é quase impossível não esbarrarmos nesse questionamento. E isto porque, ao orientar-se pelo espanto, Ferreira Gullar, conforme reconheceu ele mesmo em alguns de seus textos, dialoga diretamente com um conceito filosófico, o que sem dúvida já nos indica possíveis caminhos analíticos para entendermos sua poesia. Cientes disso, debrucemo-nos um pouco mais sobre o tema. “Quando pela primeira vez”, disse o poeta em texto publicado na Folha de S. Paulo, em 08 de setembro de 2013, “me dei conta de que meus poemas nasciam de um estado mental imprevisível, e o defini como um espanto, estava usando uma expressão de Platão. Ele afirmara que o conhecimento nasce do espanto”. Em decorrência dessa descoberta, conforme ele mesmo nos coloca, viria o interesse pela pesquisa bibliográfica, o que, se por um lado nos esclarece como chegara ao conhecimento do espanto, por outro lado abre o viés que orienta a insustentável tessitura de sua obra poética. Nesse sentido, continua ele:

Recentemente, tentei encontrar o texto em que o filósofo fazia tal afirmação e descobri que era no “Teeteto”, quando atribui essa afirmação a Sócrates. Descobri também que a palavra grega que usa para espanto é “thaumázein”, que significa também assombro, perplexidade, admiração. Sim, é a mesma coisa que sinto quando me encontro na condição de escrever o poema. Espanto é realmente a palavra que define esse estado mental em que, de repente, a realidade se mostra inexplicada (GULLAR, Folha de S. Paulo, 08/09/2013).

Denota-se, assim, na esfera central do espanto gullariano, uma espécie de assombro ou entusiasmo diante daquilo para o qual não há uma resposta plausível, compreendendo novamente o poeta que, longe de ser uma explicação para o real, o espanto reflete justamente a realidade inexplicada. Com isso, vale-se o tempo todo do paradoxo de utilizar-se da linguagem, insuficiente por natureza, para expressar tal impossibilidade.

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A esse respeito, Ferreira Gullar já havia se pronunciado numa entrevista concedida ao programa “Encontro Marcado com a Arte”, gravado em 1996 e exibido pela TV Educativa. Ao considerar que a poesia nasce do espanto, disse tratar-se essencialmente da descoberta “de algo na realidade que não está explicado. É o inexplicado, o estranho, o surpreendente, que faz nascer o conhecimento e também faz nascer a poesia” (GULLAR, 1996). Desse ponto de vista, ao afastar-se de um saber previamente constituído, o espanto resulta da possibilidade de reacender no habitual um sentido outro através de uma postura intuitiva que substancia o reencontro (em nada gratuito) com a realidade do mundo. É por isso que, num outro momento, ele irá dizer: “Se vejo um jarro de flores, ele pode ser indiferente a mim, mas se de repente ele se revela, sua atualidade é que é poesia”. Além do mais, continua ele:

A poesia, para mim, é a atualização do atual, porque o mundo é um mistério de uma riqueza extraordinária. Seria insuportável viver num mundo em que toda a atualidade das coisas estivesse presente, mas, na verdade, não está. Quando sob as camadas dessa coisa cinzenta chamada rotina alguma coisa brilha, faísca, então, sim, dá-se o espanto platônico (GULLAR, 1998b, pp. 405-406).

Caminhando, portanto, nessa direção de mobilizar novos suportes de sentido e inserir no real uma atualidade ainda não estabelecida ou experimentada como expressão de uma descoberta que muda sua relação interventiva com o mundo e com a existência, o que pesa para ele é a carga de surpresa e espanto que se pode extrair da realidade exterior. Por isso mesmo, sua atenção só repousa sobre as coisas enquanto elas sustentam seu grau de novidade, seu “poder” de espanto, de maneira que, mesmo que já as reconheça, o poeta as apreende como se o fizesse pela primeira vez. Por outro lado, ao considerar que a criação do poema é diretamente influenciada por “uma relação dialética entre o acaso e a necessidade”, compreende que “só entra ali o que se ajustar ao que já está escrito, o que for necessário à sua realização. Sim, porque, como na vida, o que realizamos e se mantém é o que se faz necessário” (GULLAR, Folha de S. Paulo, 30/11/2014).

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Voltemos, porém, para concluirmos nossas considerações iniciais, ao texto da Folha de S. Paulo, publicado em 08 de setembro de 2013, que trata das razões pelas quais Ferreira Gullar definira o espanto como um estado que antecede e determina seus poemas. Prosseguindo suas reflexões, o autor ainda se interroga acerca das fronteiras entre poesia e filosofia. Ou melhor, da natureza desses dois espantos, o do poeta e o do filósofo. Considera, pois, que em ambos a atividade criadora não somente nasce de um mesmo motivo, o espanto, como implica simultaneamente uma reflexão. Partilhando, assim, de uma mesma disposição criativa, poeta e filósofo podem de certa forma compartilhar uma mesma inquietude diante das coisas e do mundo. Todavia, são, segundo ele, os níveis reflexivos a que cada um pode ascender que estabelecem a diferença entre poesia e filosofia. Nesse sentido, o poeta compreende que “nem toda poesia implica reflexão em nível equivalente ao da filosofia” e isto se deve, em grande parte, ao caráter arbitrário do poema, cujas motivações e/ou circunstâncias sob as quais será engendrado, o poeta desconhece, se animado por um momentâneo estado de êxtase ou por indagações que solicitem dele uma disposição mais reflexiva. Nas suas palavras:

[...] o filósofo tem necessidade de explicar o fato que o espantou, e o poeta não; o poeta quer apenas dizer que se espantou, que aquilo não tem mesmo explicação; o que ele deseja, em suma, é registrar o inexplicável, afirmar o insondável mistério da existência. É nisso, creio eu, que os dois diferem, uma vez que seja próprio da filosofia explicar a existência. O filósofo não se conforma com a inexplicabilidade do fenômeno que o espantou e, por essa razão, tem que explicá-lo, inseri- lo no sistema de pensamento que ele, filósofo, elabora na tentativa de tornar o mundo inteligível. Admitir que não há explicação para a existência seria o fracasso da filosofia que, neste particular, situa-se no polo oposto ao da poesia. Sim, porque, para o poeta “só o que não se sabe é poesia (GULLAR, Folha de S. Paulo, 08/09/2013).

Muitos anos antes, porém, em relevante ensaio sobre a poesia de Augusto dos Anjos, intitulado “Augusto dos Anjos ou vida e morte nordestina” e publicado em livro que reúne toda a poesia do autor de Eu, Ferreira Gullar já havia declarado que “ao contrário do filósofo, que busca uma coerência conceitual, o poeta alimenta a pretensão de atingir uma coerência mais complexa”. Não obstante, “não é correto colocá-lo como

29 antípoda do indagador sistemático, já que o poeta não abdica de construir um discurso ‘sábio’, e quando abre mão disso a poesia se torna mero jogo de palavras”. Ademais, como “testemunha da complexidade do mundo, compelido como o filósofo a ordená-lo, nega-se a fazê-lo se o preço a pagar for dissolver a experiência concreta na generalidade dos conceitos” (GULLAR, 2008a, p. 1054). Em primeiro lugar, soa-nos um tanto categórica essa distinção entre poesia e filosofia que coloca o caráter sistemático como mais próximo desta última; para nós, ao contrário, parece ser mais sutil essa diferença. Compreendemos que o poeta se situa na parte da procura questionadora, sustentando o exercício da dúvida como resposta a um não saber, pois, como ele mesmo disse: “para o poeta ‘só o que não se sabe é poesia’”. É o que nos mostram inclusive seus poemas, ao representarem a possibilidade de verbalizar inquietudes que escapam à compreensão do sujeito ou que não se conformam numa resposta plausível. Ou ainda, e simplesmente, quando se ocupam de registrar o espanto que lhe sobrevém quando “de repente, a realidade se mostra inexplicada”. No que tange ao filósofo, parece-nos que este se coloca mais no âmbito da reflexão esclarecedora e, às vezes, sistemática, considerando-se que a filosofia nem sempre pressupõe um sistema de pensamento que se quer sistemático e/ou totalizador. Voltando-se para a especificidade desses dois discursos, Antonio Cicero argumenta já na Introdução de seu livro Poesia e filosofia (2012) que são “ocupações muito diferentes”: se o texto filosófico é fruto do pensamento demorado e de um esforço aplicado do filósofo que se determina a escrevê-lo, a poesia, ao contrário – e tal como Ferreira Gullar a compreende –, não depende única e exclusivamente de um esforço disciplinar do poeta para materializar-se como tal. A esse caráter aleatório como inerente ao poema, acrescenta Antonio Cicero que se os “enunciados filosóficos” são de caráter proposicional, os “enunciados poéticos” são por sua vez de caráter não proposicional. Por isso, a necessidade de não se contradizer ocupa a esfera central da atividade filosófica, enquanto que no poema esta não se faz necessariamente obrigatória. Um outro aspecto ainda, que segundo ele os difere, é o fato de que “os assuntos do poeta não são tão genéricos e abstratos quanto os do filósofo. Ao contrário: parecem ser bastante concretos” (CICERO, 2012, p. 25).

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Num interessante texto de 1995, publicado em sua Poesia completa, teatro e prosa (2008) sob o título “Uma voz entre a natureza e a cultura”, Ferreira Gullar se ocupa novamente das fronteiras entre poesia e filosofia. Ampliando aqui o alcance de suas considerações, começa por lembrar que “o conhecimento científico, apoiado no desenvolvimento da tecnologia, pôs em cheque a credibilidade da filosofia e da poesia”, acrescentando, em seguida, que isto foi basilar à “perda de um tipo de conhecimento que sempre foi a base da filosofia e da arte – o conhecimento fenomenológico” (GULLAR, 2008e, pp. 1077-1078). Reagindo a esse predomínio da ciência, continua ele, a filosofia de Maurice Merleau-Ponty “recuperou a importância da experiência natural do homem, demonstrando que a experiência fenomenológica possibilita um conhecimento do mundo que está inteiramente fora do alcance da ciência” (GULLAR, 2008e, p. 1078). É quando, inclusive, admite que se o poeta “está interessado mais na vertigem do que na estabilidade, mais no frisson e no deslumbramento do que na coerência e na ordem, não pode inserir-se num sistema filosófico, não pode adequar-se a uma explicação do mundo” (GULLAR, 2008e, p. 1079). A isso certamente concorre o espanto gullariano. De caráter fenomenológico, sua projeção espontânea incorre no afastamento de conceitos preestabelecidos para pensar a existência para além de qualquer conceituação abstrata. Entendendo, pois, a realidade como um universo “precário e provisório”, o poeta “está permanentemente aberto aos espantos que venham subvertê-lo”. Mais que isso: “comove-se com eles, recebe-os como uma experiência única, irrepetível e efêmera, que, mal ocorre, já começa a apagar-se na sucessão dos acontecimentos” (GULLAR, 2008e, pp. 1079-1080). Nessa direção, vale relembrar, é que caminha o pensamento de Paul Valéry, para quem “esse estado de poesia é perfeitamente irregular, inconstante, involuntário, frágil, e que o perdemos, assim como o obtemos, por acidente” (VALÉRY, 2007, p. 198). Aproximando tal pensamento do poeta em questão, entende-se com mais facilidade a dinâmica sempre recomeçada de seus poemas. Até porque, se “a arte existe porque a vida não basta” como ele mesmo por inúmeras vezes preocupou-se em afirmar, é justamente nesse “não se bastar”, típico sintoma do homem moderno, que se concentra toda a força de seu espanto.

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De posse dessas considerações iniciais, aqui abordadas numa perspectiva mais panorâmica e, portanto, sem necessariamente se ater em cada um dos aspectos aludidos, é necessário que avancemos em nossa leitura analítica. Sobretudo porque, conforme veremos, o espanto gullariano esconde em sua gênese indagações muito mais profundas, oriundas que são de uma tentativa de compreensão do ser no mundo. Ao fazer do poema um espaço do questionamento e da dúvida, o poeta esboça uma “tentativa de responder às indagações e perplexidades que a vida coloca” (GULLAR, 2011, p. 160), jogando internamente com toda uma experiência de mundo acumulada. Debrucemo-nos, então, sobre a sondagem de alguns aspectos segundo os quais talvez seja possível arriscar uma síntese do fenômeno.

2.1 Entre o espanto e a reflexão

Insistindo na direção do espanto e de uma intencionalidade reflexiva que atravessam a obra toda de Ferreira Gullar, isto é, da sinuosa coerência – discursivamente manifesta em seus versos – que coaduna a descoberta espontânea e o pensamento demorado e autoconsciente, comecemos por lembrar “uma definição da poética gullariana como ‘criação inspirada’”, conforme desenvolvida por Wesley Thales de Almeida Rocha em sua dissertação de mestrado, intitulada O metal vertiginoso: a poesia apaixonada de Ferreira Gullar. Ao partir de um estudo de Davi Arrigucci Jr., que alude à centralidade da obra de Manuel Bandeira e de Carlos Drummond de Andrade na lírica moderna, ele considera que Ferreira Gullar dialoga com a poética de ambos, “[...] numa concepção de poesia que conjuga espontaneidade (à la Bandeira) e meditação reflexiva (à la Drummond), como também inspiração e invenção formal, configurando um processo poético que denominamos de ‘criação inspirada’” (ROCHA, 2013, p. 17). Tal concepção, ainda segundo ele, diz respeito a uma “elaboração formal, fundada na reflexão, de uma matéria poética dada pela inspiração” (ROCHA, 2013, pp. 105-106).

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Neste trabalho, interessa-nos acompanhar esse mesmo raciocínio, que considera uma influência de Bandeira e Drummond – sem dúvida, autores centrais na formação de Ferreira Gullar, que deles absorveu uma consciência moderna da poesia, sobretudo na sua disposição crítica – na obra do poeta aqui estudado. Retomaremos, inclusive, o pensamento de Davi Arrigucci Jr., a fim de situá-lo no âmbito de nossas reflexões e ao mesmo tempo de compreender mais a fundo a própria natureza do espanto gullariano. Não obstante, devemos dizer desde já que, relativamente a essa perspectiva que compara em escala nacional a poesia de Ferreira Gullar com a desses dois outros relevantes autores, se trata menos de identificar temas e formas comuns entre eles e de como aparecem nos poemas, e mais de situar, num sentido mais amplo, e do próprio objetivo deste capítulo, alguns caminhos reflexivos que influem diretamente no próprio modo de ser dessa poesia. Comecemos, então, por eles. Em texto publicado no Jornal de resenhas, em 12 de junho de 1999, e, posteriormente, no livro O guardador de segredos: ensaios, Davi Arrigucci Jr., ao estabelecer os critérios que separam a poesia de Manuel Bandeira e a de Carlos Drummond de Andrade, argumentaria que o conflito que está no centro do universo poético deste último, cuja trama central é a de um “denso lirismo meditativo que o caracteriza”, é “a exigência de uma mediação reflexiva para se chegar à poesia” (ARRIGUCCI JR., 2010, p. 16). Assim, ao contrário de Bandeira, onde flui uma clara naturalidade, em Drummond trata-se de uma “poesia travada pela dificuldade”. Além disso, continua ele, “no caso de Bandeira, a criação poética se mostra como natureza prolongada, e a crença na inspiração, na súbita manifestação do poético que constitui para ele o alumbramento, confirma o modo de ser ‘ingênuo’”. Por outro lado, assegura que “o caso de Drummond, no entanto, é mais complicado. Sua concepção do poético exige a reflexão como mediação necessária para o encontro da poesia” (ARRIGUCCI JR., 2010, p. 17). No caso da poesia de Ferreira Gullar, parece-nos que esta dialoga com estes dois princípios, porém naquilo que nos revelam em seu sentido mais imediato. O que significa dizer que tal influência só se dá até certo ponto, porque, ocupando-se à sua maneira desses dois momentos, o poeta acaba por transcendê-los na particularidade de sua própria voz, numa interação profunda – que transmuda o banal em matéria densa – entre o ver e o

33 saber, o dentro e o fora, o eu e o outro. E que nada mais é do que, no cerne do espanto, uma experiência fenomenológica do mundo. Outro aspecto muito peculiar da obra de Ferreira Gullar é a negação de uma “habilidade conquistada”, conforme já referimos anteriormente, notável pela mudança de registro poético quando se sente confortável. Nesse caso, lembremos novamente dos variados caminhos que o autor percorreu, seja no âmbito das experimentações formais da linguagem, com a posterior fragmentação do discurso; seja nos meandros da antidiscursiva poesia concreta e, em seguida, da poesia neoconcreta, desdobrada, esta, em novos e decisivos impasses que no conjunto compreendem o ciclo da experimentação formal. Por conseguinte, a força de uma voz marcadamente política, ocupada da realidade do social e do coletivo fora, depois, reinventada na necessidade de repensar criticamente a própria experiência de vida, permeada por experiências outras, mais próximas da realidade material das coisas e do mundo, que, entre vertigens, barulhos e a conquista de muitas vozes, reacenderiam, por fim, o impasse da procura da poesia na sua dupla pertença, a alguma parte e a parte alguma. Com efeito, é interessante acompanhar esses diferentes impasses que sua obra sofreu ao longo dos anos, assumindo diferentes modulações e respondendo a diferentes necessidades tanto de ordem estética quanto ideológica. No conjunto, essas modificações revelar-se-iam fundamentais no sentido de recuperar a emoção do inesperado, solicitando do poeta uma atitude de vertiginosa entrega e apurada “escuta” do mundo. “O prazeroso”, disse ele, “é não saber o que vai acontecer. É claro que há o rigor, pois a criação e a crítica são simultâneas. Há sempre uma escolha. Criar é sempre criticar, mas não sei de onde vem” (GULLAR, 2010b, p. 16). Por isso que, quando perguntado num outro momento se considerava o processo de criação como única e exclusivamente fruto da inspiração, fora enfático ao responder que não, pois haveria “um estado de liberdade interior que torna comunicáveis todas as dimensões de nossa sensibilidade e de nosso conhecimento”, acrescentando em seguida que “sem esse estado especial em que todos os metais se fundem, em que todas as palavras, as sensações, as experiências do artista se intercomunicam; sem esse momento de extrema liberdade interior, ele, o artista, é incapaz de criar a obra de arte” (GULLAR, 1991, p. 272).

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Ora, talvez nesse ponto possamos retornar ao universo literário de Manuel Bandeira, para quem a inspiração, ou melhor, o alumbramento, era via de acesso ao poema. Porém, vale divisar um contraste no pensamento de ambos, uma vez que, como vimos, em Ferreira Gullar parece haver uma postura desconfiada diante da poesia entendida tão somente como fruto da inspiração. O que os aproxima, todavia, é o fato de que, a exemplo de Manuel Bandeira, ele dialoga com uma consciência do poético como expressão do aqui e do agora, abarcando os meandros de uma “realidade menor”, “parte mínima da tarde”, à qual sua poesia definitivamente não se furta, visto que aspira dizer “[...] não / o sublime indizível / mas o fortuito / e possível / de ser dito / e não o é / por descuido / ou por intuito” (GULLAR, 2010c, p. 27). De fato, é uma realidade iminente que o poeta inquietamente perscruta. E, mais uma vez, tal como o alumbramento em Manuel Bandeira, compreende uma noção complexa, “exige do poeta uma atitude de ‘apaixonada escuta’ e só se dá quando ela, poesia, quer, [...]. Um poema pode ser, então, o resultado de um esforço construtivo de anos a fio” (ARRIGUCCI JR., 2010, p. 17). Não por acaso afirmou, certa vez, Ferreira Gullar que “a poesia só existe quando nasce de um acontecimento existencial. Se não for assim, não me interessa. E então silencio. Fico meses e anos sem escrever nada” (GULLAR, 1998b, p. 402). Desse ponto de vista, é interessante reconhecer a interferência daquilo que o autor chamou de um “acontecimento existencial” em seus poemas. Por exemplo, quando compreende que antes de materializar-se como tal, o poema é apenas “possibilidade”, ou seja, um amálgama de vozes que em nós podem estar silenciadas ou adormecidas: “(estamos todos nós / cheios de vozes / que o mais das vezes / mal cabem em nossa voz: / [...]” (GULLAR, 2004b, p. 453). Ou até mesmo dispersas em alguma parte, à espera do momento – não se sabe necessariamente quando nem sob quais circunstâncias – em que ele, o poeta, irá transmudá-las em poesia:

tudo isso em ti se deposita e cala. Até que de repente um susto ou uma ventania (que o poema dispara)

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chama esses fósseis à fala.

Meu poema é um tumulto, um alarido: basta apurar o ouvido.

(GULLAR, 2004b, p. 454)

Como muitas de suas realizações que versam criticamente sobre o próprio fazer poético, o trecho acima, extraído do poema “Muitas vozes” e reunido em livro homônimo de 1999, é exemplar nesse sentido. Seus versos externalizam um modo de ver e sentir a realidade, ora o fazendo mediante a experiência perceptiva que convoca o poeta à concepção do poema, ora pela interferência do “clarão” da memória. De qualquer forma, tal aproximação entre uma realidade exterior e o interior do sujeito diz muito da ação das coisas sobre nós, do modo como nos colocamos diante delas e da maneira como nos afetam. De um livro anterior, Barulhos (1987), “Nasce o poema” se ocupa igualmente de tais reflexões. No entanto, parece ir mais a fundo ao revelar um aprendizado constante que envolve simultaneamente o sujeito, o mundo e as palavras. Considerado no conjunto do livro, trata-se do derradeiro poema, e, embora não saibamos se a disposição dos poemas acompanha a ordem de concepção dos mesmos, é de certa maneira revelador o que nele lemos. Para nós, é como se o poeta chegasse aqui a uma ideia mais clara do fenômeno, ao compreender que a poesia é fruto do inesperado, alimenta-se dos fatos aleatórios e não presumíveis, gestando ela mesma “[...] seu próprio tempo e modo / de nascer” (GULLAR, 2004b, p. 399). Por isso, ao questionar se, ao contrário de ter tomado o ônibus e ido para casa, deveria ter permanecido por mais tempo “na loja do Kalil” “à espera do poema”, reconhece afinal que “de nada adiantaria”, pois, “para que o poema nascesse / um dia // teria / que viver tardes e noites / de exílio em Santiago / do Chile em Moscou”, “longe / cada vez mais longe / da loja do Estácio, do barulho / dos ônibus do Estácio” (GULLAR, 2004b, p. 400). A isso também concorre uma interferência da natureza imprevisível do poema:

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porque o poema ninguém sabe como nasce como a vida o engendra que pétala entra em sua composição que voz que latido de cão, ninguém sabe

(GULLAR, 2004b, p. 401)

Ao poema, inclusive, não se aplica a dinâmica linear e cronológica do tempo humano:

porque o que são de fato os dias? os anos? os minutos?

Impossível medir o tempo da vida a fluir desigual em cada corpo: líquido nos líquidos lento nos cabelos sopro no vento louro na urina como medir o cheiro da tangerina que é clarão na boca e sonho na floresta? como?

(GULLAR, 2004b, pp. 402-403)

Daí concluir que:

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Não, não havia por que deixar de tomar o ônibus Rio Comprido-Leblon naquele fim de tarde.

(GULLAR, 2004b, p. 403)

Em “Nasce o poeta”, do livro Muitas vozes (1999), Ferreira Gullar iria retomar esse raciocínio; porém, como o próprio título sugere, detendo-se agora na perspectiva do poeta. Reconhecemos com isso, mais que um exercício de compreensão do processo criativo, a intenção de sublinhar que ambos, poema e poeta, se fazem no instante mesmo da criação, de maneira que este é surpreendido pela deflagração inesperada daquele. Considerando-o ao lado de outros poemas do autor, Davi Arrigucci Jr. compreendeu-os como “complexos e límpidos poemas meditativos, de autorreflexão, de reconhecimento das mudanças e dos limites de si mesmo e da voz poética” (ARRIGUCCI JR., 2010, p. 40). Com efeito, esse é talvez um dos poemas que mais nos revelam o duplo caminho do espanto e da intencionalidade reflexiva que essa poesia sempre procurou perseguir. A explanação desses dois momentos, aliás, encontramos na concepção de uma experiência poética como que extraída do mundo e que irrompe sem que o poeta necessariamente a solicite: “em solo humano / o nome é lançado / (ou cai / do acaso)” (GULLAR, 2004b, p. 413). Fundada prioritariamente no espanto, tal experiência, por um lado, altera a própria relação do sujeito com a realidade material do mundo, passando da descoberta à indagação, e, sob outra ótica, contempla um exercício metalinguístico que coloca em xeque a própria suficiência da linguagem, sobretudo naquilo que ela não pode representar. Até porque para o poeta não basta se espantar: é preciso que a emoção do espanto se concretize com a maior contundência possível no poema, mesmo reconhecendo, ainda em “Nasce o poeta”, que

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a boca não fala o ser (que está fora de toda linguagem): só o ser diz o ser

a folha diz folha sem nada dizer

o poema não diz o que a coisa é

mas diz outra coisa que a coisa quer ser

pois nada se basta contente de si

o poeta empresta às coisas sua voz – dialeto –

e o mundo no poema se sonha completo

(GULLAR, 2004b, p. 426)

É o que, em outras palavras, ele já havia afirmado no livro Indagações de hoje, ao enfatizar que “o escritor escreve para que a linguagem desapareça, para que ela se transforme nos barulhos, nas vozes, nos cheiros, nos relâmpagos e sombras em que o corpo do homem apreende o significado da vida” (GULLAR, 1989, pp. 148-149). Ou ainda, para transferir a essa mesma linguagem a gravidade e contundência que é a própria substância da vida, mobilizando com isso um duplo movimento: o de não só comunicar uma experiência, mas também de conferir a essa mesma experiência um “grau de concreção”, para lembrar Alcides Villaça (2008, p. xlix), que a aproxime da realidade aludida. Em seu último livro, Em alguma parte alguma (2010), muitas das reflexões acerca da linguagem que acompanharam sua trajetória – e, diga-se de passagem, são reveladoras da natureza de seu espanto – parecem ser agora síntese de um longo e sinuoso processo de aprendizado do real. Desse modo, ao reacender indagações das quais já havia se ocupado anteriormente – como, por exemplo, as que giram em torno do que o poema é e

39 do que supostamente deveria ser –, o viés metalinguístico atualiza-se aqui sob uma nova clave reflexiva. Assim, embora não se trate de uma experimentação de caráter subversivo como a que empreendera em seu livro de estreia, A luta corporal, o poeta não se furta a essa questão. Pelo contrário, muito próximas dos desdobramentos da poesia moderna e contemporânea, nomeadamente de seus conflitantes momentos de experimentação e/ou desconstrução do fazer poético, suas reflexões revelam uma postura visivelmente inquieta diante de um mundo sensível dotado de indagações para as quais não há resposta plausível. O poema Fica o não dito por dito, por exemplo, que figura como o poema de abertura do livro, é esclarecedor dessa postura inquieta do sujeito. Na sua sugestão de repensar o processo de criação a partir das indagações em torno da linguagem e da própria raison d’être do poema, mostra-nos que a consciência que punge é sobretudo a da insuficiência. Provavelmente porque o drama do pensamento instala-se aqui menos na busca por respostas efetivas e mais na pulsão dessa inquietude. Consideremos os versos iniciais do poema:

o poema antes de escrito não é em mim mais que um aflito silêncio ante a página em branco

ou melhor um rumor branco ou um grito que estanco já que o poeta que grita erra e como se sabe bom poeta (ou cabrito) não berra

o poema antes de escrito antes de ser

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é a possibilidade do que não foi dito do que está por dizer

e que por não ter sido dito não tem ser não é senão possibilidade de dizer

(GULLAR, 2010c, pp. 21-22)

Busca interior, silêncio aflitivo, horizonte do possível: é o que, num primeiro momento, apreendemos desse revelador excerto. Nas palavras de Octavio Paz (1982, p. 204), “quando o poeta afirma que ignora ‘o que vai escrever’, quer dizer que ainda não sabe o que seu poema vai dizer e que, até que seja nomeado, é apenas apresentado sob a forma de silêncio ininteligível”. No caso de Ferreira Gullar, reconhece-se a necessidade de transmudar o silêncio (enigma) no sistema-linguagem, necessidade esta que, nele, é ao mesmo tempo estranhamento e fascínio, espanto e lucidez, entranhada na “luta de resistência” que se trava no corpo. Afinal, ao lado da emoção da coisa percebida, concorrem sentimentos muito mais profundos, dentre eles, a compreensão da ininterruptibilidade do tempo fisicamente vivido. Tal percepção, no entanto, suscitará outras. É o caso, por exemplo, da concepção do poema como possibilidade, do poema que, conforme lemos, “antes de escrito / antes de ser / é a possibilidade / do que não foi dito / do que está / por dizer // e que / por não ter sido dito / não tem ser / não é / senão / possibilidade de dizer”. Daí a incapacidade do poeta em evitar uma obstinada procura, sintoma daquele momento em que distingue um cabedal de possibilidades dependentes apenas da palavra inicial, que depende, por sua vez, diretamente do espanto. A compreensão disso pode ser novamente buscada em Octavio Paz, quando assevera que:

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O poético não está no homem como algo dado, nem o poetizar consiste em tirar o poético de nós, como se fosse “algo” que “alguém” depositou em nosso interior ou com o qual nascemos. A consciência do poeta não é uma caverna onde jaz o poético como um tesouro escondido. Diante do futuro poema o poeta está nu e pobre de palavras. Antes da criação, o poeta como tal não existe. Nem depois. É poeta graças ao poema. O poeta é uma criação do poema tanto quanto este daquele (PAZ, 1982, p. 205).

Por certo, essa inquietude do não saber diz muito do modo como Ferreira Gullar compreende a pulsão criativa. Pois para a deflagração do poema, é necessário que a palavra transponha toda ausência de sentido que a antecede. E até o momento em que ela não se efetiva como discurso, o poeta joga apenas com o improvável, ou ainda, com os resquícios de uma linguagem insuficiente porque incapaz – e há nessa incapacidade um grave sentimento de inquietude – de apreender o real na sua essência para dizê-lo de fato no espaço da página em branco. Daí o poeta interrogar-se, por exemplo: “mas / dizer o quê? / dizer / olor de fruta / cheiro de jasmim? // mas / como dizê-lo / se a fala não tem cheiro?” (GULLAR, 2010c, p. 22). Evidentemente, tais indagações encerram um campo de significação mais complexo, oriundo de um pensamento que se reelabora criticamente na linguagem, mais propriamente na pergunta que confronta o sujeito logo após a experiência sensível: “Como fazer chegar à palavra uma experiência essencialmente muda?” (COLLOT, 2015, p. 21). Considerando que “o poema não diz o que é e sim o que poderia ser, seu reino não é o do ser, mas o do ‘impossível verossímil’ de Aristóteles” (PAZ, 1982, pp. 120-121); funda-se, então, o paradoxo: dizer o poema é contraditoriamente não dizê-lo:

[...] embora o diga de algum modo pois não calo

por isso que embora sem dizê-lo falo: falo do cheiro da fruta do cheiro

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do cabelo do andar do galo no quintal e os digo sem dizê-los bem ou mal

se a fruta não cheira no poema nem do galo nele o cantar se ouve pode o leitor ouvir (e ouve) outro galo cantar noutro quintal que houve

(e que se eu não dissesse não ouviria já que o poeta diz o que o leitor – se delirasse – diria)

(GULLAR, 2010c, pp. 22-23)

Quanto ao sentido dessa resoluta resistência em não se calar, podemos dizer que caminha justamente na direção daquilo que João Luiz Lafetá (2004, p. 141), ao analisá- la, indicou como uma “visão da totalidade que não se atinge”. Dessa forma, é como se a cada poema um novo ciclo se repetisse através da iluminação de uma descoberta ou na colocação de novas indagações – de fato, há mais perguntas do que respostas – ao sujeito. Ambas as possibilidades, porém, geralmente estão subordinadas aos acasos da vida, acasos pelos quais pode (ou não) nascer o poema. Na sequência, encontramos uma série de reflexões que o poema ilumina:

mas é que antes de dizê-lo não se sabe

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uma vez que o que é dito não existia e o que diz pode ser que não diria

e se dito não fosse jamais se saberia

por isso é correto dizer que o poeta não revela o oculto: inventa cria o que é dito (o poema que por um triz não nasceria)

mas porque o que ele disse não existia antes de dizê-lo não o sabia

então ele disse o que disse sem saber o que dizia? então ele o sabia sem sabê-lo? então só soube ao dizê-lo? ou porque se já o soubesse não o diria?

é que só o que não se sabe é poesia

(GULLAR, 2010c, pp. 23-25)

Vimos que, ao questionar-se sobre os fatores que determinam o processo criativo, reitera-se a interferência fundamental do espanto. Nesse sentido, longe de indicar um saber, digamos, preconcebido – “é que só o que não se sabe é poesia” –, o poeta explana a emoção do momento em que uma coisa (o espanto) se traduz em outra (o poema). No poema, o que fica é justamente essa experiência outra, pois o mesmo não é capaz de congregar em si toda a complexa e intraduzível instância do real, restando sempre algo a ser dito:

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assim o poeta inventa o que dizer e que só ao dizê-lo vai saber o que precisava dizer ou poderia pelo que o acaso dite e a vida provisoriamente permite

(GULLAR, 2010c, p. 25)

Direcionando nossa leitura ao âmbito de sua intencionalidade reflexiva, embora muitas das reflexões que desenvolvemos até agora acerca do espanto já são indicativas desse caminho que o poeta aspirava seguir, podemos começar a pensá-la como uma ampliação imediatamente posterior e complementar do espanto. De fato, ao espantar-se o poeta vai se indagar sobre. Esse segundo movimento, porém, longe de suplantar a natureza espontânea do primeiro, complementa-o, pois, uma vez transmutado em linguagem, consagra em palavras a força da experiência. É nesse sentido, inclusive, referenciando-se aqui mais uma vez o estudo de Wesley Thales de Almeida Rocha, que Ferreira Gullar se colocaria mais próximo da poesia drummondiana, cuja raiz concentra uma expressiva disposição reflexiva. Embora seja preciso reconhecer que do ponto de vista do pensamento, sua poesia não chegue aos mesmos níveis reflexivos dos poemas de Drummond. Ao discorrer demoradamente acerca da tônica reflexiva que tal lírica assume, Davi Arrigucci Jr. (2002, p. 16) ressalta que “o pensamento desempenha um papel decisivo no mais íntimo dela, pois define a atitude básica do sujeito lírico, interferindo na relação com que este mantém com o mundo exterior, ao mesmo tempo que cava mais fundo na própria subjetividade”. Semelhantemente, observa-se na poesia gullariana uma lúcida disposição reflexiva disseminada – ainda que em diferentes modulações – em cada um de seus livros.

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Em regra, passa previamente pela própria interiorização de uma experiência perceptiva do mundo. Em entrevista à Poesia sempre, Ferreira Gullar, ao referir-se à poesia como algo complexo, apesar de reconhecer a existência de formas poéticas de menor grau de exigência, como é o caso, segundo ele, dos cantadores de feira, argumentaria, por fim, que:

Mas a poesia tal como a concebo implica uma consciência que transcende o dado emocional, que ultrapassa até minha capacidade conceitual. Todo poema que escrevo é, no fundo, uma ampliação de minha própria maneira de me expressar, de modo que, ao iniciar qualquer poema, não sei onde vou terminar (GULLAR, 1998b, p. 383).

Tal posicionamento do autor basta para apreendermos o acento autocrítico que mobiliza seu fazer poético. Ao mesmo tempo, permite-nos dizer que sua intencionalidade reflexiva aponta muito provavelmente para a lúcida tentativa de equilibrar a matéria espontânea do espanto, isto é, a carga de emoção que assoma o sujeito e alimenta nele sentimentos muito subjetivos porque, em geral, relativos à condição precária de sua própria existência. Por exemplo, a descoberta que ocorrera na infância, aparentemente trivial e de certa maneira similar ao da pedra drummondiana, da matéria densa e muda de uma pedra, combina, desde então, o espanto diante da inexplicabilidade do mundo e a posterior reflexão que colocaria em questão o conhecimento acumulado ou preconcebido. Isso o sabemos mediante a revelação do próprio poeta, que relembrou o episódio da seguinte forma:

Ali, no meio daquele mato, no meio dos galhos e do capinzal, estava aquela pedra, em silêncio. Parei, surpreso, e fiquei olhando para ela e me perguntando: o que isso significa? O que está fazendo uma pedra tão bela no meio desse mato? Naquele instante, tive a impressão de que se eu levantasse a pedra encontraria o nome dela, como se ela o estivesse escondendo (JIMÉNEZ, 2013, p. 108).

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Esse impulso de levantar a pedra para encontrar algo que supostamente ela mesma escondia – “o nome dela” – lembra-nos muito das experimentações formais com as quais, muitos anos depois e por um relevante período de tempo, o poeta iria se ocupar. Com especial ênfase, destaca-se a experiência com os poemas espaciais, também chamados poemas-objetos, que exigiam a participação direta do leitor a quem se sugeria retirar com a mão um cubo para então descobrir a palavra que sob este se escondia. Do mesmo modo, já adulto, o cheiro da tangerina o abalaria profundamente. Fato sobre o qual se expressou depois com as seguintes palavras:

[...]; de repente, aquele cheiro que eu já havia sentido ao longo da vida, desde menino, me rompeu o equilíbrio, me tocou como uma descoberta: eu, na verdade, nunca tinha sentido de fato o cheiro de uma tangerina. Esse estado em que fiquei, por uma fração de segundo, fica reclamando de mim a expressão. O que significa esse cheiro, como falar disso? Sinto que descobri algo, mas não sei o que é que eu descobri (GULLAR, 1991, p. 270).

Pode-se falar, então, de uma busca que se expande para além das aparências e dos conceitos, porque também envolve a emoção de uma experiência. Não por acaso em sua obra de estreia o poeta já procurava o “avesso da linguagem” para assim verbalizar uma experiência que acreditava estar no “cerne” da realidade. Decerto chegaria a outras conclusões, porém a disposição com que levou tal projeto nos mostra o quanto esse sentimento do “essencial” estivera, desde o início, intimamente atrelado ao seu processo inventivo. Mas há ainda, na compreensão de sua intencionalidade reflexiva, um outro relevante aspecto a ressaltar. Trata-se de uma sensibilidade crítica que lhe permitiria ampliar continuamente seus horizontes de pesquisa. Assim, mesmo ocupando-se de algumas imagens de eleição tornadas aos poucos quase obsessivas em seu universo literário, o resultado é justamente a ampliação de um modo de ver e sentir essa realidade, agora recriada no poema. Pois, conforme indicou Octavio Paz (1982, p. 137), se “a linguagem indica, representa; o poema não explica nem representa: apresenta. Não alude à realidade; pretende – e às vezes consegue – recriá-la. Portanto, a poesia é um penetrar, um estar ou ser na realidade”.

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Em vista disso, se considerarmos que a poesia gullariana obedece desde o início ao princípio da indagação, ou melhor, da procura indagadora – “Pergunto apenas, quero / apenas / fundamente / perguntar.” (GULLAR, 2004b, p. 346) –, a concepção do poema como “um penetrar, um estar ou ser na realidade” repete-se justamente como eixo reflexivo. Uma explicação para esse fato talvez encontremos nas próprias palavras do autor, quando, em Argumentação contra a morte da arte, observou que:

O mundo, a natureza, como sistema de coisas, não é criação humana e, por isso mesmo, apresenta-se diante do homem como um enigma. A existência do mundo é um fato sem explicação e que independe disso. A explicação de sua existência é uma necessidade exclusivamente do ser humano. Valendo-se de diferentes linguagens, o homem tenta explicar o mundo ou aplacar-lhe a presença enigmática, absurda. De certo modo, a linguagem é uma espécie de tradução do sistema de coisas – sem sentido – num sistema com sentido, sistema de sinais (GULLAR, 1993, p. 29).

Inserido, portanto, nesse “sistema de coisas”, o sujeito procura (via linguagem) transmudá-lo num “sistema de sinais”, pleno de significação no horizonte do poema. Novamente, é a reflexão que anima a releitura do objeto contemplado, mediada por uma certa desconfiança da aparente obviedade sob a qual se assenta a realidade do mundo. Nessa perspectiva, pode-se dizer novamente com Davi Arrigucci Jr. que “o poeta é alguém que quer conhecer, um inquiridor perplexo que reflete sobre si mesmo, o mundo e a linguagem” (ARRIGUCCI JR., 2002, p. 48). Com estas reflexões, procuramos não só ampliar a compreensão do espanto gullariano, que norteia este capítulo, mas também observar como o sujeito poético se coloca criticamente diante das coisas e do mundo. De maneira que, mesmo não aprofundando na análise comparativa de seus poemas com os de Manuel Bandeira e de Carlos Drummond de Andrade, compreendemos que nele a experiência poética é, antes de tudo, fruto do encontro fenomenológico com um mundo, que, entre espantos e redescobertas se coloca ora como possibilidade de reconhecimento, ora numa espécie de estranhamento. Em ambos os casos, passa antecipadamente por uma percepção do próprio corpo precário e finito, sendo por isso mesmo necessário falar agora de uma apreensão física do

48 mundo como fundamental à deflagração da experiência sensível. É ela, afinal, que agregada a outros eixos reflexivos nos permite uma compreensão mais clara dessa predileção do autor pelo espanto como via de acesso ao poema.

2.2 A apreensão física do mundo

Eu também, modéstia à parte, às vezes ouço vozes, muitas vozes, mas nada assustadoras: vozes inofensivas de perfumes e manhãs, de sabores, de olhares, de peles, de um roçar de cabelos – um alarido que me dorme abafado no corpo. Os poetas não são sacerdotes, mas podem à sua maneira entender o que fala o vento nas folhas, como Fernando Pessoa, para quem “a brisa / nos ramos diz / sem o saber / uma imprecisa / coisa feliz”.

Ferreira Gullar

[...] como os peixes / vivendo no seu músculo / o mistério do mundo.

Ferreira Gullar

“Minhas imagens não nascem por acaso”, advertiu Ferreira Gullar em conversa com Ariel Jiménez (2013, p. 108), “mas de uma experiência poética muito pessoal perante o mundo”. Nesta assertiva encerra-se, implicitamente, todo um universo imagético que muito nos interessa. De um lado, anuncia outra vez a interferência do espanto, ampliado na atitude autoconsciente sob a qual essa mesma experiência se comunica; de outro, dá- nos a ver que o fazer poético gullariano nunca foi ingênuo, ao contrário, revelou-se desde o princípio – no debruçar-se lúcido e reflexivo sobre o enigma do mundo – intimamente atrelado à práxis da indagação. Porém, mais do que a expressão de um sentimento fenomenológico que está na própria raiz de seu espanto, reconhecemos nas palavras do autor uma particularidade

49 elementar que essa experiência muito peculiar e subjetiva encerra. Referimo-nos aqui à apreensão física do mundo que, colocando-se evidentemente na esfera central de sua experiência perceptiva da realidade, não só neutraliza um saber previamente depositado na realidade a que alude, mas, principalmente, motiva uma espécie de alquimia que faz esse mesmo real transmudar-se aos olhos do sujeito. Desse modo, a experiência que se extrai disso é sempre inédita: seja na emoção ou vertigem que a percepção da matéria lhe provoca; seja ao resgatar na memória afetiva e involuntária indícios de uma experiência acumulada; ou ainda, na urgência do sujeito em ultrapassar a condição dual de sua existência e traduzir na alteridade os fundamentos da própria subjetividade. Neste capítulo, daremos especial atenção ao primeiro aspecto, que corresponde a essa percepção do sujeito com um fora, uma vez que dialoga mais diretamente com as reflexões que até aqui desenvolvemos. Antes, porém, de nos aprofundarmos, é importante salientar que há nessa percepção muito do modo como o poeta concebe seus versos, reconhecível nas diferentes manifestações de seu espanto e de como interferem de maneira direta na atividade criadora. Para comprovar, basta que retomemos aqui duas pertinentes declarações do autor feitas em dois diferentes momentos, porém, nas reflexões que suscitam, reconhecemos que se dialogam e se complementam entre si. Na primeira delas, ao discorrer acerca dos poemas de Em alguma parte alguma, novamente em conversa com Ariel Jiménez, Ferreira Gullar acentuaria uma mudança no modo de concebê-los. Disse ele: “Em geral, minhas poesias nasciam de uma reflexão prévia, e, quando eu me sentava diante da folha de papel em branco, já tinha uma noção mais ou menos clara do que queria fazer”. Nesse caso, é como se já tivesse uma “ideia básica” do que iria escrever. E prossegue:

Depois, começou a surgir uma relação diferente com a poesia e, agora, às vezes, quando começo a escrever, faço-o na metade do poema. Sei que não é este o começo, mas isso não me preocupa, e até quero que não seja. É uma desordem que nasce da reflexão sobre determinados acontecimentos, [...] (JIMÉNEZ, 2013, p. 227).

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É quando descreve, por exemplo, uma determinada circunstância em que, ao sair do edifício e passar pelo jardim, fora praticamente “assaltado” pelo aroma de jasmim. Segundo ele, da desordem que a inesperada percepção – novamente a interferência do espanto – do aroma lhe provocara, nasceria, posteriormente, o poema. Fruto, portanto, de uma sensação prévia que, por sua vez, havia transformado a desordem do olfato na ordem da composição. Na segunda declaração, publicada em 2015 em sua Autobiografia poética e outros textos, o poeta retomaria a especificidade de seu processo criativo mais recente sobre iniciar o poema não necessariamente daquilo que deveria ser de fato o seu começo. Daí argumentar que “[...]: para começá-lo sem começá-lo, escrevo algo que não é ainda ele, não é ainda o começo dele, como se fosse antes do começo, mas que, no final das contas, torna-se o começo” (GULLAR, 2015b, p. 59). Até aqui, acompanhamos o raciocínio crítico do autor acerca de uma arbitrariedade que move seu fazer poético. Não obstante, o que resulta particularmente profícuo é que ao prosseguir suas reflexões Gullar adverte: “Resta observar, porém, que essa questão de “não começar” surge quando se trata de poemas longos, e não com os poemas curtos. Estes quase sempre já começam do começo [...]” (GULLAR, 2015b, pp. 60-61). Ocupando-se, em seguida, de esclarecer que:

A razão disso não reside propriamente na diferença de tamanho dos poemas, e sim no fato de que essa diferença advém da natureza mesma do poema, do que o fez nascer – do tipo de espanto que lhe deu origem. O poema curto, em geral, nasce de um espanto conceitual, por assim dizer, de uma inesperada reflexão; já o poema longo – ou que se promete longo – é por sua própria natureza um enigma; ou melhor, o poeta não sabe o que de fato irá dizer ao escrevê-lo, uma vez que sua matéria original excede qualquer formulação: fazer o poema é tentar chegar a essa formulação, sendo por isso mesmo bem mais imprevisível que o poema curto (GULLAR, 2015b, p. 61).

Falando-nos de sua prática poética, o autor acaba por revelar não só o alcance de seu espanto, cuja influência, conforme vimos, paira até mesmo sobre a forma de seus poemas, mas, indiretamente, a própria experiência originária que o determina: uma disposição perceptiva – oriunda da experiência sensível e da captação intensiva das coisas

51 e do mundo – que anima internamente a concepção de seus versos, o que abrange tanto os poemas curtos quanto os poemas longos. Além disso, mais do que uma experiência originária que antecede o poema, pode- se dizer que esta determina normalmente, na percepção, um sentido outro àquilo que o sujeito poético já conhece ou que lhe é familiar, e, ao lançar-lhe o exercício da dúvida quanto a uma realidade aparentemente explicada, solicita dele uma postura essencialmente reflexiva. Pressupõe, assim, um saber sempre recomeçado, pois, conforme indicou Maurice Merleau-Ponty (2011, p. 279), na sua Fenomenologia da percepção, a percepção “não se apresenta como um acontecimento no mundo ao qual se possa aplicar, por exemplo, a categoria de causalidade, mas a cada momento como uma re-criação ou uma re- constituição do mundo”. A isso, inclusive, para continuarmos com Merleau-Ponty, concorre o fato de que:

O mundo não é um objeto do qual possuo comigo a lei de constituição; ele é o meio natural e o campo de todos os meus pensamentos e de todas as minhas percepções explícitas. A verdade não “habita” apenas o “homem interior”, ou antes, não existe homem interior, o homem está no mundo, é no mundo que ele se conhece (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 6).

No caso da poesia gullariana, dessa condição de presença no mundo (do sujeito como ser encarnado) e do mundo (que é anterior a qualquer experiência perceptiva) emerge a urgência de uma consciência do tempo, profundamente arraigada nas “dobras” do corpo e mais claramente expresso na natureza mesma de sua percepção. Ou ainda, na própria gênese de uma necessidade de abrir-se ao fora, ao outro, o que, se num primeiro momento coloca o sujeito no centro da experiência, porque atuante desta, acaba depois por dispersá-lo, não em sentido negativo, mas devido à possibilidade de encontrar-se a si mesmo nessa dispersão e em cada coisa refletida. Igualmente interessante é a força com que o poeta internaliza essa realidade do fora, geralmente pressentida pelo leitor no modo como ela é experimentada pela palavra. Por um lado, pressente-se a possibilidade de um convívio sensível e sempre inaugural com o mundo, embora em alguns casos seja possível identificar uma espécie de

52 historicidade entre sujeito e objeto, a partir de algumas imagens que voltam insistentemente à memória do poeta. Tal convívio, além disso, passa pela própria necessidade do sujeito de reconhecimento. Por outro lado, e para além dessa tentativa de estabelecer com a realidade uma intimidade profunda, o inesperado momento ocorre quando esse mesmo real se apresenta para ele com uma certa violência, deixando-o entre o assombro e o estranhamento. Nesse caso, há na maioria das vezes uma relação de ordem olfativa, como, por exemplo, a percepção do aroma de uma flor, descrita pelo poeta em “O jasmim” com as seguintes palavras: “me invade as ventas / no limite do veneno // assim de muito perto / esse aroma rude é um oculto fogo verde / (quase fedor) / que me lesiona / as narinas” (GULLAR, 2010c, p. 33). Considerando o conjunto da obra do autor, devemos reconhecer que uma série de outras percepções sinestésicas comparecem. No geral, são igualmente essenciais à compreensão do espanto gullariano por nos colocarem no centro da vertiginosa experiência do sujeito perante um fora cujo sentido lhe transpassa, tornando-se, por isso, na maioria das vezes um fato que lhe é incompreensível e capaz, ao mesmo tempo, de gerar uma espécie de obsessão. De qualquer maneira, o que não podemos nos esquecer é que há, no limite dessas experiências distintas, uma similar motivação que as aproxima: a expressão de uma vertigem ou emoção que inesperadamente assoma o sujeito. Com efeito, há nisso um sentimento emotivo ou uma disposição perceptiva que nos comunica uma visão de mundo e que é sobretudo elementar à experiência física a que sua poesia nos convida. Afinal, “na sensação ou na emoção”, assevera o crítico Michel Collot (2013, p. 98), “o sujeito participa pelo seu corpo e pela sua alma ao que Merleau-Ponty chamava de carne do mundo”. Seguindo na esteira desse pensamento a que o enunciado acima nos convida, retomamos certamente algumas reflexões concernentes a uma fenomenologia hermenêutica, nomeadamente acerca da experiência sensível do sujeito com a realidade do mundo. Principalmente a concepção do “sujeito encarnado”, tal como a entendera Maurice Merleau-Ponty, que, mediante o seu corpo dela diretamente participa. Concepção, inclusive, que tem sido lúcida e proficuamente reatualizada por Michel Collot.

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É o que nos mostra, por exemplo, um de seus reveladores ensaios intitulado “O sujeito lírico fora de si”, onde, ao resgatar esse mesmo ponto de vista que é o da fenomenologia, o autor já havia argumentado que “a noção de carne permite pensar conjuntamente seus pertencimentos ao mundo, ao outro, à linguagem, não sob o modo de exterioridade, mas como uma relação de inclusão recíproca” (COLLOT, 2004, p. 167). Asseverando, em seguida, que:

É pelo corpo que o sujeito se comunica com a carne do mundo, abraçando-se e sendo por ela abraçado. Ele abre um horizonte que o engloba e o ultrapassa. Ele é, simultaneamente, vidente e visível, sujeito de sua visão e sujeito à visão do outro, corpo próprio e, entretanto, impróprio, participando de uma complexa intercorporeidade que fundamenta a intersubjetividade que se desdobra na palavra, que é, para Merleau-Ponty, ela mesma, um gesto do corpo (COLLOT, 2004, p. 167).

Tais palavras, sem dúvida, estabelecem um diálogo direto e profícuo com um poeta como Ferreira Gullar, cuja obra desde sempre aspirou a estabelecer uma relação muito peculiar com o mundo. Não por acaso o vocábulo “carne”, a que Merleau-Ponty alude e Michel Collot retoma em seus estudos, figura variadas vezes em seus versos, sintoma que é próprio da influência do referido filósofo com a qual o poeta travou conhecimento por indicação do crítico de arte e seu amigo Mário Pedrosa, após a publicação de seu livro de estreia, A luta corporal. Permitindo-lhe engendrar uma nova visão de mundo, a leitura de Merleau-Ponty significaria igualmente uma mudança definitiva quanto à sua visão da poesia. Um dos legados dessa leitura pode ser buscado na centralidade do corpo como via de acesso à realidade do mundo. De fato, é difícil não perceber suas ressonâncias em cada obra do autor, de maneira que não há como compreender as principais linhas de força que a demarcam, particularmente no que tange aos domínios da percepção da realidade, se não considerarmos o corpo como basilar à deflagração da experiência poética. Explica- se, assim, porque tem sido reiteradas vezes relido e/ou repensado por uma crítica literária, a saber: João Luiz Lafetá; Alcides Villaça; Alfredo Bosi; Davi Arrigucci Jr.; Antonio Carlos Secchin; dentre outros.

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Devido à necessidade de fundar um mundo e a si mesmo, é pelo corpo que o sujeito poético gullariano expressa e/ou exterioriza todo o seu sentimento do real. Sentimento este que, animado pela força do espanto que a matéria-mundo lhe provoca, se não apreende a realidade de cada coisa, resgata, porém, uma série de imagens “reais e efêmeras” que amalgamam o corpo e “o dia terrestre” – espaço onde essa poesia acontece – numa mesma vertigem. A aguda expressão, afinal, de um sujeito que se abre à dispersão, ao extravio, expandindo-se e ao mesmo tempo reconhecendo, ou pelo menos aspirando a reconhecer, em cada coisa indícios de sua própria existência encarnada. Acompanhemos, então, como se dá essa abertura do sujeito.

2.3 Expansão e reconhecimento

Quando penso no que já vivi me parece que fui deixando meus corpos pelos caminhos.

Clarice Lispector

Acompanhando a ideia de um sujeito que se expande ao outro ao perseguir a realidade material das coisas e do mundo para além de sua subjetividade, pretendemos alcançar uma compreensão do espanto a partir da experiência física do mundo que engendra a poesia de Ferreira Gullar. Na verdade, procuraremos reconhecer em seus versos o sentimento de um “extravio”, ou melhor, de um sujeito afetiva e profundamente expandido no outro, originário do pensamento do próprio autor, conforme nos sugere um de seus poemas de título homônimo, incluído no livro Muitas vozes. Comecemos pelo poema:

“Extravio”

Onde começo, onde acabo,

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se o que está fora está dentro como num círculo cuja periferia é o centro?

Estou disperso nas coisas, nas pessoas, nas gavetas: de repente encontro ali partes de mim: risos, vértebras.

Estou desfeito nas nuvens: vejo do alto a cidade e em cada esquina um menino, que sou eu mesmo, a chamar-me.

Extraviei-me no tempo. Onde estarão meus pedaços? Muito se foi com os amigos que já não ouvem nem falam.

Estou disperso nos vivos, em seu corpo, em seu olfato, onde durmo feito aroma ou voz que também não fala.

Ah, ser somente o presente: esta manhã, esta sala.

(GULLAR, 2004b, p. 487)

A primeira estrofe é, sem dúvida, basilar à compreensão da própria razão de ser do poema, sobretudo da natureza problemática do sentimento que o conformou. Verdadeiramente, na urgência da indagação ontológica viria já concentrado o mote da reflexão, a princípio apenas pressentido no termo “extravio” que intitula o poema. De qualquer modo, é possível antecipar o motivo central que o texto encerra: a inquietude de um sujeito que, como corpo, pressupõe-se parte de um sistema maior, o sistema-mundo, se interrogando sobre os domínios, para ele indivisíveis, de sua própria identidade. Não lhe sendo, entretanto, seus próprios termos distinguíveis na conjuntura sem margens do mundo, a incerteza se amplia a um só tempo, e já a partir da segunda estrofe, no sentimento da perda irrecuperável, do afeto desdobrado no outro e do tempo inexorável. Em outras palavras, a expressão angustiada de um sujeito simultaneamente “disperso nas coisas, / nas pessoas, nas gavetas”, “desfeito nas nuvens” e extraviado “no tempo”.

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Nisso é possível reconhecer também como Ferreira Gullar concebe ou externaliza a problemática do corpo – novamente aqui os reflexos da filosofia de Merleau-Ponty – em sua poesia. Corpo que em sua natureza mesma, conforme nos mostram os versos do poema, especialmente da segunda à quarta estrofe, predispõe-se à dispersão, descentra-se em “pedaços”, fracionado que está (no seu desapossamento) de maneira resoluta e irreversível na intensidade dos afetos e no curso ininterrupto do tempo. Daí ser a dinâmica dos quartetos bruscamente interrompida no dístico da estrofe final, onde a distância de seu extravio no tempo dá lugar à experiência próxima e imediata do presente: “Ah, ser somente o presente: / esta manhã, esta sala”. Ausente do peso – da falta, da perda – que o passado lhe devolve e aspirando um presente sem memória, abre- nos a dimensão dessa expansão, intimamente atrelada à dinâmica do tempo e na qual o sujeito distingue sua própria verdade; a unidade – que amalgama todas as coisas em uma só – de si mesmo, não imaginada fora dos domínios da alteridade. Nesse sentido, é oportuno retomar aqui as reflexões propostas por Michel Collot sobre essa expansão do sujeito para “fora de si” quando o compreendeu como um espaçamento do sujeito, que é, segundo ele, “esse movimento pelo qual deixa sua identidade fechada em si mesma para se abrir ao fora, ao mundo e ao outro. O espaço é uma dimensão essencial dessa abertura, em que uma das modalidades não é outra senão o pensamento” (COLLOT, 2013, p. 31). O autor tem ainda o cuidado de esclarecer que:

Em geral, a palavra espaçamento apresenta, sobretudo, uma conotação negativa: ela designa uma interrupção na continuidade espacial ou temporal, que dá lugar a intervalos cada vez mais longos, que podemos assimilar ao vazio. O espaçamento do sujeito designaria, pois, em um primeiro tempo, uma perda ou um desperdício de sua substância, uma fissura em sua suposta unidade, em sua coerência ou sua coesão: seria sinônimo de dispersão, quiçá de dissipação. Mas essa disseminação pode também aparecer como uma expansão. O espaçamento do sujeito reveste-se, então, de um valor positivo. Se ele o faz escapar do estatuto de uma substância sempre idêntica a si mesma, revela dele uma dimensão absolutamente outra: a do jato ou do projeto, que o faz ek- sistere fora de si. O espaçamento designaria, então, sua projeção no espaço como a própria condição de sua existência. Ao contrário de toda uma tradição filosófica, que vê nesse “ser-lançado” o risco de uma decadência, vejo nele também a chance que oferece ao sujeito de se cumprir paradoxalmente, a partir do momento em que se recusa a permanecer em si mesmo (COLLOT, 2013, p. 31).

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Seguramente, não há como não distinguir nessa linha de pensamento aspectos centrais à poesia de Ferreira Gullar. Sobretudo quando o crítico observa que essa expansão do sujeito não pressupõe um valor negativo, mas, tal como lemos, é expressão de uma “projeção no espaço como a própria condição de sua existência”. Em razão disso, vemos o itinerário do poeta desdobrar-se em diferentes direções, mostrando-nos que o sentido dessa expansão encerra em sua obra inquietudes outras, mais amplas e não menos complexas, articuladas que estão na realidade íntima de um “sentimento do mundo”, vertiginosamente manifesto na própria expansão do sujeito em direção à realidade material. Expansão, aliás, que já está muito clara desde as origens de sua trajetória, no centro de uma luta – tão imprevisível quanto necessária – intensamente vivida na carne. Apesar de que, de início, entre sujeito e mundo, há como que o vazio de uma distância a separá-los. Por isso o primeiro se colocar por ora “à margem da tarde”, considerando-se que, como lemos no poema “O trabalho das nuvens”, só assim “é que se conhece / a tarde: que são as / folhas de verde e vento, e / o cacarejar da galinha e as / casas sob um céu: isso, diante / de olhos.” (GULLAR, 2004b, p. 16); ou ainda: “A tarde é / as folhas esperarem amarelecer / e nós o observarmos.” (GULLAR, 2004b, p. 17); ou, uma vez mais, porém agora no poema seguinte, intitulado “As pêras”: “O dia / comum, dia de todos, é a / distância entre as coisas.” (GULLAR, 2004b, p. 18). Nessa mesma direção, resulta profícuo lembrar uma interessante leitura de A luta corporal que empreendeu o poeta, ensaísta e tradutor argentino Santiago Kovadloff. Para ele, conforme texto publicado em Encontros com a Civilização Brasileira:

Não chegou ainda o momento do diálogo. O poeta é, por agora, um observador. Aves, frutas e objetos serão os protagonistas deste instante inicial de seu trabalho. Mas, a observação não é um mero registro, crônica fria do que se vê. É, pelo contrário, uma procura fervorosa; uma resposta lírica, consequente e pessoal às imposições ditadas por uma sensibilidade agudíssima do espaço e do tempo (KOVADLOFF, 1979, p. 208).

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No centro dessa experiência, orientando-a, o corpo. O que não esconde um certo desconforto, afinal, qualquer cintilação sua aqui não se sustenta, é “fátua” – como fátua e insuficiente é a cintilação da linguagem em cada coisa a que alude. Daí lermos no poema “A fala”: “Esta linguagem não canta e não voa, / não voa, / o brilho baixo; / filha deste chão, vento que dele se ergue / em suas asas de terra. / Aqui, a pouca luz, / ganha a um sol fechado, soluça.” (GULLAR, 2004b, p. 41). Nisso, reconhece-se que o poeta entende e/ou concebe o corpo como um “corpo- fátuo”, intimamente atrelado ao curso inexorável do tempo, gestando, no próprio poeta, a paradoxal necessidade de descobrir “qualquer palavra que disfarça / e mostra o corpo esmerilado do tempo” (GULLAR, 2004b, p. 90). Por isso, embora posteriormente esse corpo venha a suscitar novos espantos, o poeta decide em um primeiro momento pela negação: “adeus corpo-fátuo”, diz em seu “Réquiem para Gullar”, incluído em O vil metal, um interessante livro que sucede A luta corporal e reúne poemas escritos entre 1954 e 1960. No corpo, aliás, se faz possível uma experiência mais próxima da realidade material do mundo. Neste caso, reiteramos, são geralmente emoções do cotidiano que seu corpo apreende, seja na vertigem de uma descoberta, seja na memória de uma sensação. De qualquer forma, em ambos os casos, o que o sujeito deixa transparecer é o sentimento de uma expansão refletida nesse

meu corpo de 1,70m que é meu tamanho no mundo meu corpo feito de água e cinza que me faz olhar Andrômeda, Sírius, Mercúrio e me sentir misturado a toda essa massa de hidrogênio e hélio que se desintegra e reintegra sem se saber pra quê

(GULLAR, 2004b, p. 239)

Extraídos do Poema sujo (1975), tais versos explicitam muito bem a percepção do corpo como determinante à deflagração da experiência sensível. Sentindo-se misturado à vasta matéria-mundo, numa totalidade por vezes assombrosa, uma vez que o faz perceber

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(contrastando-a) sua condição precária e provisória diante da “fantástica imobilidade / da Via-Láctea” (GULLAR, 2004b, p. 257), o sujeito lírico reacende a indagação sobre a natureza do ser, o que faz do próprio poema um espaço de reflexão sobre essa complexa e fugaz existência. E é nesse aspecto, sobretudo, que reconhecemos um eu consciente de sua inseparável relação com o tempo, mesmo que esta percepção de presença ocasione nele o espanto da existência efêmera, sobre a qual pondera, reflete e novamente se indaga: “Mas que é o corpo?”

[...] corpo que pode um sabre rasgar um caco de vidro uma navalha meu corpo cheio de sangue que o irriga como a um continente ou um jardim circulando por meus braços por meus dedos enquanto discuto caminho lembro relembro meu sangue feito de gases que aspiro dos céus da cidade estrangeira com a ajuda dos plátanos e que pode – por um descuido – esvair-se por meu pulso aberto

(GULLAR, 2004b, p. 238)

Considere-se, ainda, a decisiva interferência de uma experiência acumulada. Lembremos que Ferreira Gullar é, por excelência, o poeta da experiência: “Afinal de contas, somos feitos dessas coisas ínfimas que vão se acumulando lentamente em nós” (JIMÉNEZ, 2013, p. 29). Há especial ênfase quanto à memória de uma sensação anterior reacendida de maneira involuntária. Um excerto, por exemplo, muito representativo dessa interferência pode ser buscado novamente nos versos do Poema sujo, onde a certa altura se lê:

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Desce profundo o relâmpago de tuas águas em meu corpo, desce tão fundo e tão amplo e eu me pareço tão pouco pra tantas mortes e vidas que se desdobram no escuro das claridades, na minha nuca, no meu cotovelo, na minha arcada dentária no túmulo da minha boca palco de ressurreições inesperadas (minha cidade canora) de trevas que já não sei se são tuas se são minhas mas nalgum ponto do corpo (do teu? do meu corpo?) lampeja o jasmim

(GULLAR, 2004b, p. 275)

E ainda:

Corpo meu corpo corpo que tem um nariz assim uma boca dois olhos e um certo jeito de sorrir de falar que minha mãe identifica como sendo de seu filho que meu filho identifica como sendo de seu pai corpo que se para de funcionar provoca um grave acontecimento na família: sem ele não há José de Ribamar Ferreira não há Ferreira Gullar e muitas pequenas coisas acontecidas no planeta estarão esquecidas para sempre

(GULLAR, 2004b, p. 239)

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Mais adiante, porém ainda no Poema sujo, tal expansão irá indicar a coexistência de uma aspiração em fazer do corpo partícipe do mundo, seja no sentimento de um sujeito que se quer expandido em cada coisa, seja no impulso de traduzir todas as realidades numa só, eliminando a distância entre elas, numa alquimia que é própria dessa poesia. “A simultaneidade passa a ser, por isto, uma espécie de obsessiva natureza do corpo, uma obsessiva necessidade de participação do corpo em todas as coisas, as sujas e as belas (as sujas e belas)” (VILLAÇA, 2008, p. xlviii). Enfim, o poeta quer trazer à expressão a vertigem que há em tudo que vive e que, distinta ou semelhantemente, atravessa as muitas realidades do dia, embora, “muitos / muitos são os dias num só dia / fácil de entender / mas difícil de penetrar / no cerne de cada um desses muitos dias / porque são mais do que parecem” (GULLAR, 2004b, p. 251). Dias de todos, distintos, cada um deles, isoladamente, em sua própria “força de gravitação” (GULLAR, 2004b, p. 286), porém ao mesmo tempo entrelaçados num sistema maior, a existência, a transcorrer em cada corpo lenta ou velozmente. Na esfera central desse sentimento, ganha destaque a figuração do próprio sujeito. Afinal, se no anseio de perseguir esses diferentes eventos do dia a realidade exterior é ressignificada pela linguagem, respectivamente é nessa mesma realidade exterior que a realidade mais íntima se manifesta. “Para a fenomenologia”, adverte Michel Collot (2006, p. 33), “uma coisa só pode ser identificada por meio de um duplo horizonte, interno e externo, que a torna suscetível de revelar-se sempre outra, e de entrar em relação com uma infinidade de outras coisas”. Resta agora mapear algumas dessas vias de acesso que o poeta privilegia para refletir ou questionar sobre. Em suma, devemos interrogar o modo pelo qual, em Ferreira Gullar, o real é experimentado pela palavra, e, complementarmente, a que caminhos reflexivos essa acepção nos leva. Entendendo-se, previamente, que nele a matéria percebida encarna de certa maneira um modo muito peculiar e característico de dizer o poema, ao decidir expressar com palavras a experiência vivida.

2.4 “Na muda carne das coisas”

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Sobre o espanto gullariano, é sempre oportuno insistir em um dentre os aspectos que, segundo nossa opinião, melhor o definem. Trata-se de reconhecer que se a pluralidade de vozes e de perspectivas estéticas são marcas fundamentais da poesia de Ferreira Gullar, a percepção da materialidade do mundo constitui-se uma constante. De fato, como bem observou Alfredo Bosi (2003, p. 176), “A matéria imediata e tangível das coisas não sai nunca do seu campo de percepção a que adere a sua palavra verdadeiramente concreta, porque densa e saturada de experiência e pensamento”. Naquilo que tal modo de ver e sentir a materialidade do real nos leva a experienciar, é como se se aproximasse da emoção, tal como a entendeu o próprio Ferreira Gullar, que a poética de Augusto dos Anjos nos provoca. “Com Augusto dos Anjos”, disse ele, “penetramos aquele terreno em que a poesia é um compromisso total com a existência” (GULLAR, 2008a, p. 1038). E isto de tal maneira que “a expressão literária aqui não busca escapar à experiência real mas, ao contrário, procura concretizá-la, dar- lhe peso e a contundência da vida” (GULLAR, 2008a, pp. 1024-1025). Nestas palavras, reconhecemos muitos dos questionamentos que sem dúvida dão origem a seus próprios poemas. Não por acaso, em entrevista concedida em 2007, ao relembrar as diversas transformações que sua poesia sofreu ao longo dos anos, Ferreira Gullar argumentou: “Mas acredito que a coisa mais constante na minha poesia envolva, sim, o propósito de iluminar o que há de misterioso e fascinante na existência” (GULLAR, 2007b, p. 78). Com efeito, na realidade mais profunda daquilo que vive sustenta-se o motivo que gesta seu fazer poético; permitindo-nos falar, por exemplo, da particularidade de um real poeticamente transfigurado, que, na relação muda e mútua com o sujeito, faz com que este reconheça naquele um sentido que transpassa a si mesmo. Nestes termos, pode-se dizer que a insistência com que essa clave materialista perdura em sua poesia se expõe (insistimos) a natureza fenomenológica do espanto, representa ao mesmo tempo uma clara pretensão de perscrutar o segredo mais oculto que sob a realidade material das coisas e dos seres se esconde. Como se “do fundo da matéria” – para lembrar o título de um dos textos críticos de Ferreira Gullar sobre Iberê Camargo, afinal, é pela perspectiva da profundidade que ele lê a instigante obra desse artista

63 brasileiro –, o poeta encontra, se não respostas absolutas, ao menos saídas temporárias às suas indagações mais profundas. Aliás, não podemos nos esquecer que várias são as características representativas de sua própria poesia que Ferreira Gullar reconhece na pintura de Iberê. A título de ilustração, escolhemos duas. Em primeiro lugar, a incessante busca pelo aprendizado que o poeta aponta como inerente a esse artista inquieto, dotado de relevante interesse pela pesquisa. Além do fato de que Iberê, conforme ele mesmo lembrou, a exemplo do pintor bolonhês Giorgio Morandi, foi um artista que soube extrair do mínimo recurso a matéria de sua arte. Em segundo lugar, a “radical convicção” – igualmente reconhecível na trajetória de Ferreira Gullar – que Iberê sempre alimentou “de que o artista deve manter-se fiel a si mesmo a qualquer preço” (GULLAR, 1995, p. 14). E isto de tal maneira que, como afirmou numa outra ocasião, “poucos terão assumido com tal paixão e gravidade a aventura de pintar e terão descido tão fundo na busca dessa ilusão que quer transcender a matéria, o instante, a morte” (GULLAR, 2003, p. 137). Na poesia gullariana, embora as inúmeras influências que o autor teve em razão do contato que travou com variados artistas, percebemos uma coerência que lhe é notória; coerência que, por vezes, o fizera assumir diferentes pontos de vista e, por eles, adentrar caminhos antes não imaginados. Não obstante, retomando nossas reflexões acerca da apreensão física da realidade, urge salientar que, se em um primeiro momento ela irrompe como motivação involuntária, determina, em seguida, um movimento outro, igualmente necessário à deflagração do poema: o de não só demorar-se sobre o objeto percebido, mas, principalmente, de expressar com palavras o quão intensa é essa experiência, ou seja, de verbalizá-la, transcendendo assim, mediante a linguagem, a “opacidade do mundo”, conforme se expressou Ariel Jiménez, e que diz respeito

[...] a essa oposição central na poesia de Ferreira Gullar entre linguagem e realidade à qual a linguagem remete. Uma coisa sem um nome, sem nenhum conceito com o qual possamos abordá-la, é opaca para a inteligência humana. Nomeá-la, descrevê-la, determinar suas características, seus usos possíveis, é fazê-la transparente ao nosso entendimento. A poesia de Gullar provém, em grande parte, da vontade explícita de tratar dessa opacidade primordial das coisas a fim de

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descrevê-las em palavras, se não novas, ao menos rejuvenescidas (JIMÉNEZ, 2013, p. 28).

Efetivamente, é uma experiência subjetiva que se atualiza na linguagem. E, se “o objetivo do poeta é dizer as verdades – as verdades que escapam aos limites da fala discursiva”, conforme expressou Michael Hamburger (2007, p. 55), de maneira que “para fazer isso ele está comprometido com a palavra”, no caso de Ferreira Gullar, este “subverte a sintaxe / implode a fala, ousa / incutir na linguagem / densidade de coisa // sem permitir, porém, / que perca a transparência / já que a coisa é fechada / à humana consciência.” (GULLAR, 2004b, p. 451). Resta-nos perguntar quais os motivos reflexivos que o poeta privilegia e o que estes nos revelam quando imaginados em estreita correlação com a natureza fenomenológica de seu espanto, sendo, por isso, capazes de nos dar o sentido maior de toda a obra. Na maioria das vezes, seu olhar repousa sobre aquilo que revela a tangibilidade do mundo. Exige-lhe atenção, por exemplo, o fruto que em seu processo de putrefação se orienta em “direção ao caos” (GULLAR, 2010c, p. 59); o andar do galo “só, desamparado, / num saguão do mundo.” (GULLAR, 2004b, p. 12); o felino, “Indiferente / ao suposto prestígio literário / e ao trabalho / do poeta” (GULLAR, 2010c, p. 66); o cheiro do jasmim que lhe “invade” as narinas e o paralisa; ou mesmo a percepção de sua própria precariedade, que reconhece na morte uma “certeza invencível” (GULLAR, 2004b, p. 472). Ao perceber os espaços à sua volta – e os seres e as coisas que nele convivem –, ao “sair de si” e lançar-se ao outro, o sujeito se reconhece. Numa outra direção, pode também incomodar-lhe – e a urgência deste incômodo faz-se mais latente em seus derradeiros poemas – a ausência de sentido da matéria cósmica, esse material tão para além do material que se coloca para ele como espaço do silêncio e do estranhamento. Não surpreende, portanto, que relembre em “Inimigo oculto”, poema de Em alguma parte alguma, a máxima pascaliana: “le silence éternel de ces espaces infinis m’éffraie” (GULLAR, 2010c, p. 92), como expressão daquilo que não compreende e tampouco substitui (ao contrário, reforça) seu apelo à realidade imediata. No plano da realidade material, são estes exemplos verdadeiros lugares comuns na poesia de Ferreira Gullar, revelando-nos, na maioria das vezes, uma apurada percepção

65 de um outro como possibilidade de compreensão de si mesmo. De qualquer maneira, tal sentimento só se concretiza a partir dessa presença material que o poeta não ignora porque a sabe maior do que aparenta ser. Por isso, chega a considerá-lo como inerente ao próprio artista, segundo ele, “um homem que descobriu que as coisas não são apenas o que se vê, o que erradamente se vê. As coisas dizem mais do que demonstram na sua anônima mudez”:

Essa descoberta pode também ser interpretada como expressão de uma necessidade interior: o artista é um homem que quer romper a sua individualidade, os limites dela, porque ele sabe que é mais do que aparenta. Enfim, o particular – seja coisa, seja gente – é a solidão. Mas o artista sabe que ele é uma expressão da humanidade e que cada coisa é a expressão do universo. O universo é uma infinidade de coisas, seres e atos, “se perde”: como se não tivesse sentido. O artista quer mostrar que cada coisa está ligada a todas as outras e que ele é parte desse todo. Não há fórmula para expressar isso. Não há um código pronto e infalível. Todas as linguagens da cultura contribuem para tornar possível esse enlace do particular com o universal. Que existe naturalmente, mas está sempre oculto. Quando o milagre se dá, algo se acende: um curto-circuito (GULLAR, 1993, p. 93).

É quando o milagre se dá, portanto, sob a forma de um inesperado espanto ou de uma “emoção”, que irrompe o poema, pleno de significação e experiência. Além do mais, na necessidade de fundar um mundo e a si mesmo, o poeta transfere ao poético uma sensibilidade profunda, na qual se mesclam uma vigorosa abertura ao conhecimento e a uma disposição reflexiva. De fato, é na necessidade de experimentar um conhecimento do fora, de uma realidade externa a si, entranhando-se “na muda carne das coisas” e ao mesmo tempo buscando nelas a própria dinâmica do tempo, de seu tempo móvel e inexorável – “Na orquídea busca a orquídea / que não é apenas o fátuo / cintilar das pétalas: busca a móvel / orquídea” (GULLAR, 2004b, p. 14) –, que a poesia gullariana nos expõe, mais do que uma aguda percepção do real, toda uma clave ontológica: a vertiginosa e obstinada procura do próprio ser, da qual nos ocuparemos com mais demora nos capítulos subsequentes.

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3. DA REALIDADE DA LINGUAGEM

E há um homem perdendo-se / do fogo e há um homem crescido / para o fogo / e que se queima / só nos falsos e escassos incêndios da sintaxe.

Ferreira Gullar

No capítulo anterior, ocupamo-nos da natureza do espanto e com ele de uma intencionalidade reflexiva que atravessam a poesia de Ferreira Gullar. Relativamente ao espanto, nosso objetivo foi menos de compreendê-lo tal como se manifesta em cada obra do autor e mais de imaginá-lo, numa perspectiva mais ampla, como um fenômeno elementar e inseparável do próprio modo de ser dessa poesia; considerando-o, neste caso, ao lado de uma disposição reflexiva que tem na experiência fenomenológica do mundo sua compreensão mais profícua. Na sequência, passamos pela experiência física do sujeito chamando a atenção para uma necessidade profunda de estar “disperso” na “muda carne das coisas” que ele lúcida e inquietamente perscruta. Logo após, refletimos acerca de um materialismo complexo e sofisticado, imaginando-o como o motivo maior do espanto gullariano. Para esta reflexão, retomamos mais de uma vez o pensamento de Maurice Merleau-Ponty e de Michel Collot, os quais nos ajudam a pensar a estreita relação entre o sujeito, o mundo e as palavras. Isso posto, é necessário que avancemos nossa leitura analítica ocupando-nos agora do escopo central desta pesquisa: a emergência de uma subjetividade lírica que seus poemas manifestam. Na verdade, é a necessidade de compreendê-la em termos de uma estreita e indissociável correlação com um fora – que só se faz possível através da percepção da materialidade do mundo – e, ao mesmo tempo, de como essa expansão do sujeito acompanha uma visão muito particular e cada vez mais expandida desse mundo e do tempo. No âmbito deste capítulo observaremos como essa dupla presença aparece já na obra de estreia do autor, A luta corporal (1954), quando esteve ocupado da “realidade da

67 linguagem”, conforme ele mesmo apontou em texto de Cultura posta em questão. Em seguida, importa pensar como ela se expande no sinuoso percurso – que compreende pouco mais de uma década, de 1950 a 1961 – aqui entendido como o ciclo da experimentação formal. Sobre esse ciclo, porém, faremos breves apontamentos, mais no sentido de acompanhar a projeção de uma consciência criadora do que de desenvolver uma análise cerrada das realizações do período. Cabe explicar que o motivo de tal recorte analítico reside no fato de A luta corporal ser uma obra que não só anuncia indagações primeiras de sua trajetória, mas já nos coloca no centro da formação de uma nova percepção do poético ou, se preferirmos, de uma consciência criadora tão fundamental nos poemas iniciais e que de certa maneira se estende à sua obra inteira. Ao mesmo tempo, indícios de uma inscrição subjetiva já se fazem notar, apesar de um pouco difusa nestes poemas, considerando a centralidade que exercem aqui os impasses da linguagem. Daí não podermos encerrar tal obra à ideia de uma radical experimentação da linguagem como motivo único de seus poemas, considerando-se que embora nos dê a impressão de ser uma poesia predominantemente ligada a si mesma, isto é, à reflexão de seus próprios mecanismos de expressão, conserva uma presença lírica que encena a todo momento um gesto de incomunicabilidade e uma sensação de isolamento. Uma cisão, portanto, entre o sujeito e o objeto contemplado que tem como seu sentido último a aguda consciência de uma totalidade irrecuperável. Quanto ao termo que aqui nos acorre – “consciência criadora” – para avançar uma compreensão da especificidade desse momento e seus consequentes desdobramentos, decorre de um interessante estudo de Sergio Alves Peixoto, desenvolvido originalmente como tese de doutorado, defendida na Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1987, e, posteriormente, publicado em livro sob o título A consciência criadora na poesia brasileira: do barroco ao simbolismo. Trata-se de uma leitura atenta, cujo núcleo crítico abrange um extenso e profícuo período na poesia brasileira, do barroco ao simbolismo, ocupando-se da manifestação dessa consciência em seus poetas e suas respectivas obras. Sem se restringir, no entanto, a uma perspectiva cronológica, como o autor mesmo nos adverte, e abrangendo autores consagrados, outros nem tanto, ou aqueles cujas obras ficaram relegadas ao esquecimento, seu estudo objetiva “mostrar exatamente como a preocupação consciente

68 com o fazer poético se manifestou e se impôs como elemento significativo em nossa poesia” (PEIXOTO, 1999, p. 15). Desse modo, o autor irá problematizar em cada momento histórico que escolheu abranger as amostras dessa “preocupação consciente”, ou ainda, a “história do pensamento poético”, que, conforme assevera, sempre esteve presente em nossa literatura, “embora, naturalmente, em graus diferentes de percepção e abordagem” (PEIXOTO, 1999, p. 271). Ainda que intimamente atreladas a um período precedente à escrita de Ferreira Gullar, cuja estreia de fato no quadro da poesia brasileira fez-se somente a partir da segunda metade do século XX, resultam-nos profícuas as reflexões do autor para pensar questões que são centrais ao poeta maranhense, sobretudo naquilo que diz respeito a uma percepção crítica do poético que, conjugada à descoberta tardia da poesia moderna, o acompanhou com especial ênfase em sua obra de estreia, A luta corporal. Como expressão latente dessa consciência ou naquilo que representou nos rumos da poesia brasileira posterior, nomeadamente da poesia concreta e neoconcreta, o livro, ao mesmo tempo que nos revela muito da natureza de seu espanto – aqui sob o signo de uma procura do real tensionada entre a linguagem esquiva e o “corpo-fátuo” –, permite- nos acompanhar um momento particularmente exitoso da trajetória do autor. Não por acaso muitos de seus textos críticos são frutos das indagações que o assomavam durante esse período e refletem claramente o esforço de iluminar aspectos nodais de sua própria poesia. Sobre esse aspecto, cabe aqui um breve parêntesis para lembrar que concomitante à criação de seus poemas, Ferreira Gullar desenvolveu uma extensa e relevante produção como crítico de arte, demorando-se lucidamente sobre diferentes assuntos, geralmente condicionados a necessidades históricas, objetivas, mas também de ordem particular e subjetiva. Curiosamente, essa produção mostrou-se particularmente frutífera nesse momento inicial de redefinição de sua própria poesia, o que significa dizer que em meio a tantas experimentações da linguagem, o exercício da crítica tornou-se essencial para compreender o momento que então vivia, estendendo-se até os anos 1960, quando já se ocupava dos problemas políticos e sociais do país. E, embora entre os anos de 1970 e 1977, sua atividade de crítico tenha sofrido “demorada interrupção”, em consequência do

69 período em que esteve na clandestinidade e no exílio, conforme aponta Ferreira Gullar já no início de Arte contemporânea brasileira (2012), não abandonaria de todo o interesse pela crítica. Além disso, o acento fenomenológico que temos procurado – embora de uma maneira muito sumária, por enquanto – identificar em seus poemas é inseparável até mesmo de suas realizações como crítico de arte. Designadamente sobre este aspecto, Ferreira Gullar, em texto de abertura do seu livro Relâmpagos – dizer o ver, se expressou da seguinte forma:

No exercício da crítica de arte sempre busquei, de uma maneira ou de outra, falar da obra enquanto materialidade significante; experiência sensorial, sensual, afetiva. Se também tentei às vezes situá-la cultural e historicamente, ou vê-la como continuidade ou ruptura do processo artístico, procurei sempre apoiar tais avaliações na obra enquanto experiência fenomenológica (GULLAR, 2003, p. 11).

Tais aspectos, sem dúvida, dão a tônica de seus próprios poemas, no sentido dessa necessidade de perseguir a materialidade das coisas, sua experiência sinestésica, corporal, afetiva. No caso da crítica – nele, um verdadeiro e severo exercício de autocrítica –, reconhecemos na série de textos publicados no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, de 1956 a 1961, e que podem ser revisitados na recente coletânea Antologia crítica: suplemento Dominical do Jornal do Brasil, publicada em 2015. Nas oito seções que dividem o livro, reconhecemos o alcance de suas reflexões ao resenhar as exposições das artes de vanguardas do período. Ou, ainda, em Etapas da arte contemporânea: do cubismo ao neoconcretismo, escrito aos 29 anos e que também reúne textos publicados no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, porém agora somente aqueles referentes ao período de março de 1959 a outubro de 1960. Relativamente aos temas, estes concentram-se prioritariamente nos domínios da poesia e da arte de vanguarda. De um período posterior às vanguardas, mas que acompanha essa concepção da obra enquanto “experiência fenomenológica”, destacam-se dois importantes livros. O primeiro deles, Cultura posta em questão, trata-se de uma obra publicada no período adjacente à iminência do golpe militar de 64, ocasião em que o poeta trabalhava no Centro

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Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (UNE). Abarca, inclusive, um período muito profícuo porque basilar de sua trajetória: o início da escrita dos poemas de A luta corporal, em 1950, até a ‘concepção’ do Poema enterrado, em 1961. Numa perspectiva mais ampla, podemos pensá-la como uma revisão crítica de alguns dos principais impasses que compreendendo o período de uma década estiveram no centro das preocupações do poeta. Prioritariamente, as discussões sobre “Cultura popular”, “Cultura e nacionalismo”, as questões da arte e do artista de que se ocupam os textos “Função do artista”, “Fala, meu papagaio” e “Morte cultural da arte”, alcançando a “Situação da poesia brasileira”, e, por fim, no seu revelador “Em busca da realidade”, acompanhamos o raciocínio crítico e subversivo que conformou os poemas de A luta corporal. Já o segundo livro, Vanguarda e subdesenvolvimento: ensaios sobre arte, trata-se de uma obra escrita em 1969 e na qual constam dois ensaios intitulados “Vanguarda e subdesenvolvimento” e “Problemas estéticos na sociedade de massa”. Nestes textos acompanhamos o Ferreira Gullar como teórico de vanguardas, contribuindo (como sempre) de forma combativa. De regra, são textos que refletem com precisão e lucidez a necessidade de se pensar mais demoradamente as discussões que estavam na ordem do dia: os caminhos das vanguardas e sua relação com o subdesenvolvimento, bem como a relação entre arte de vanguarda e a sociedade de massa. Por certo, nossa escolha bibliográfica para ilustrar o exercício crítico de Ferreira Gullar suprime muitos títulos importantes de seu itinerário, uma vez que privilegiamos aqueles representativos de um momento e motivações muito específicas. Porém já dão mostras de uma similar urgência que em maior ou menor grau atravessa todos os outros: a de defender um posicionamento crítico que pode com a mesma lucidez demorar-se sobre diferentes assuntos, inclusive sobre os fundamentos de sua própria arte. Mas voltemos à especificidade de A luta corporal. Dentre as muitas intervenções da crítica que tal obra motivou, a que mais predomina é certamente o reconhecimento de seu caráter inovador, subversivo e precursor de novos caminhos no cenário da poesia brasileira. De fato, numa estreia que ficou marcada pelo estigma da busca, resiste uma postura inconformada e irrequieta, buscando, pela desordem, estabelecer uma nova ordem.

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Para confirmá-la, basta lembrar que Davi Arrigucci Jr. se referiu a ela como um “marco histórico na poesia contemporânea posterior ao modernismo” (ARRIGUCCI JR., 2010, p. 35). Do mesmo modo Charles Perrone, no ensaio “Leaders and Legacies: From Modernism to reactions and the Contemporary”, de Seven Faces: brazilian poetry since modernism, reconheceria que A luta corporal

is a benchmark in modern Brazilian lyric, a point of departure for the contemporary. This markedly diverse collection movies from metrified verse and more conventional lyric to brief epiphanies, dense prose poems, automatic writing, and other audacious linguistic trials (PERRONE, 1996, pp. 22-23).

Para Franklin de Oliveira, conforme texto publicado na revista O Cruzeiro em 1954 e, posteriormente, incluído na edição da poesia completa do autor: “A poesia de Ferreira Gullar (A luta corporal) risca, agora, o limite da não-poesia: risca-o, não impulsionada pelo prosaico, mas tangida até aquela fronteira pela preocupação atomística de que se vem nutrindo o poeta” (OLIVEIRA, 2008, p. xxix). Na sequência, aponta-nos a “tremenda desagregação” que, exceto nos “Poemas portugueses” e “A fala”, essa poesia opera. Acrescentando, por fim, que “a palavra aqui vale não pelo que ela é, pela ordem com a qual se insere nos dicionários, mas pela imantação, pelas cargas que nela injeta o poeta. Se fosse possível falar de uma poesia abstrata, creio que era dela que se deveria dizer diante desta A luta corporal” (OLIVEIRA, 2008, p. xxix). Como se vê, há nessas (e há certamente outras) intervenções uma similar preocupação em acentuar o caráter inovador dos poemas, seja mediante a experimentação formal que já acenava (do poeta) a “preocupação com a organização espacial das palavras” (JIMÉNEZ, 2013, p. 115), seja pelo que este livro revela em termos dos rumos de sua poesia posterior e da própria poesia brasileira. Uma outra leitura, porém, comparece ao lado destas. Num notável estudo de 1982 sobre a poesia de Ferreira Gullar, João Luiz Lafetá, ao analisar a especificidade da obra de estreia do autor, nomeadamente a natureza dos mais agudos e decisivos impasses que a demarcam, chama a nossa atenção para a presença de uma inscrição subjetiva que já

72 sobressai nestes versos. Presença, aliás, que compreende em clara harmonia com dois outros importantes “pilares” dos quais, segundo ele, se ocupam os poemas de A luta corporal:

Tempo e linguagem são, de certo modo, os dois pilares sobre os quais os textos se assentam; trata-se da busca da beleza no tempo, na linguagem, busca atormentada que leva à destruição. Mas há ainda um outro pilar, soldado a esses dois: é o “eu” que nos fala, uma persona lírica também se buscando de poema a poema, em cada um deles. Esse é outro nível, igualmente indispensável para a compreensão da pesquisa que é o livro: na medida em que tenta captar a beleza, confrontada ao tempo e à linguagem, o poeta busca de modo simultâneo definir-se, descobrir aquilo que ele é, seja diante da rosa, “estrela tranquila”, seja diante do galo, “desamparado num saguão do mundo”, seja diante do girassol, que se vê com assombro na sua precariedade (LAFETÁ, 2004, p. 142).

Em sua tese de doutorado sobre A poesia de Ferreira Gullar (1984), Alcides Villaça observou que “é esta a primeira dificuldade que se coloca para o leitor: compor a identidade desse eu que enfrenta não apenas o desafio de uma intensa busca existencial e estética mas, sobretudo, o de tão variadas e surpreendentes formas de buscar” (VILLAÇA, 1984, p. 5); acentuando, inclusive, sua “preocupação com a personalidade poética que se movimenta nas diferentes seções de A luta corporal” (VILLAÇA, 1984, pp. 6-7). Revisitando essas duas pertinentes leituras sobre a poesia de estreia do autor, vemos que o problema da subjetividade se coloca, já desde o início, no centro dela. De maneira que compor um sentido à existência de um eu “entre coisas” já consistia numa tentativa natural de indagar (na linguagem) um mundo aparentemente explicado, procurando conhecer uma vertiginosa experiência fenomenológica do mundo. Explana, além disso, que o conhecimento do eu só se faz possível nos meandros da experiência sensível com um outro, com um fora, portanto, com uma realidade externa a si. Considerando, pois, A luta corporal, “pelo que contém e pelo que prenuncia” para relembrar Antonio Carlos Secchin (1996, p. 125), muito coerente e reveladora nas suas questões, qualquer postura analítica que escolhermos assumir para compreender o opus poético do autor resulta parcial e/ou incompleta se não nos atentarmos à urgência de seus

73 dilemas e impasses. Principalmente na sua especificidade autocrítica, cuja finalidade estaria implícita na obstinada busca de uma “poesia essencial”, termo que o próprio Ferreira Gullar (1989, p. 28) atribuíra, na falta de outro, à preocupação dominante dos poemas do livro. Por outro lado, permite-nos reconhecer algumas imagens e motivos que lucidamente desdobrados na sua intencionalidade reflexiva tornar-se-iam obsessivos no itinerário do autor. É, em outras palavras, a possibilidade de ensaiarmos desde já uma compreensão do sistema de pensamento que orienta o conjunto dessa obra, que, afinal, marcada por diferentes modulações, mantém sempre uma experiência muito particular e subjetiva com a realidade.

3.1 O espanto e a consciência criadora

“Na contramão da história”. Assim Ferreira Gullar situou a publicação, em 1954, de A luta corporal, atribuindo como causa para este descompasso o atraso cronológico do livro, cujos poemas, concebidos sob o signo da ruptura, tateavam uma consciência moderna há muito deflagrada nos grandes centros do país. “Desse modo”, assegura o poeta, “no momento em que a geração de 45 tentava recuperar o verso metrificado e a rima, a redondilha e o soneto, eu rompia com essas formas e reiniciava, por conta própria, a busca de uma nova linguagem baseada no verso livre e na ausência de regras” (GULLAR, 1997-98, p. 132). Mas era também a deflagração de uma “luta corporal”, como ele mesmo a define, que há muito se fazia pressentir. Quatro anos de experiência visceral com e/ou contra a linguagem, mais precisamente entre os anos de 1950 e 1953, culminariam nesse projeto extremamente inovador para uma obra de estreia, enraizado que estava sob forças tensionais reveladoras de um pensamento demorado sobre o universo da linguagem. Na esfera central de suas indagações, nota-se claramente o impasse do poeta, aqui menos preocupado com o que dizer do que como dizê-lo.

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Até aqui, três aspectos certamente relevantes já se fazem muito claros, permitindo- nos de certo modo divisar a dialética que move os poemas do livro, particularmente a dimensão do impasse em que o autor esteve envolvido, pouco a pouco revelado ao leitor nos imprevisíveis desdobramentos da experiência poética. O primeiro aspecto é a compreensão de A luta corporal, antes de tudo, como a expressão de uma nova visão do próprio fazer poético, em consequência de uma consciência moderna concebida muito tardiamente e que mudaria de uma maneira definitiva os rumos de sua poesia posterior. Assim, se por um lado o atraso cronológico do livro fez com que Ferreira Gullar se situasse “na contramão da história, como um modernista que chegou com trinta anos de atraso” (GULLAR, 1997-98, p. 132), foi por outro lado propício à criação de uma poesia particularmente bem construída, mais afastada de uma dinâmica espontânea e mais próxima de um projeto coeso e articulado. Embora o poeta considere que não era este seu objetivo, conforme entrevista concedida à Poesia sempre, em março de 1998, na qual, quando perguntado se os poemas de A luta corporal tinham sido concebidos a partir de um projeto, respondeu: “O que entendo por projeto é ter um propósito definido, o que não era o meu caso” (GULLAR, 1998b, p. 395). Numa conversa com Ariel Jiménez, o poeta o considerou como

[...] um livro cronológico, que, de certa maneira, refaz minha trajetória do começo ao fim, quer dizer, desde aqueles primeiros poemas rimados e metrificados, até “Roçzeiral” e “Negror n’origens”, e onde, em busca da essência da poesia, a linguagem desintegrou-se (JIMÉNEZ, 2013, p. 231).

Reforçando o que já havia sugerido em texto de Cultura posta em questão (2010), no qual, ao valer-se da distância da terceira pessoa – o que dá mostras de sua aguda postura crítica –, dissera ser “imprescindível acentuar a evolução da técnica expressiva, de poema para poema, uma vez que a indagação do autor se faz, simultaneamente, sobre o mundo e a linguagem poética, os dois aspectos se condicionando mutuamente” (GULLAR, 2010a, p. 127).

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À crítica, inclusive, não passara incólume tal posicionamento crítico. Em texto de abertura de sua Poesia completa, teatro e prosa, Antonio Carlos Secchin (2008, p. xv), ao lembrar que A luta corporal já viera “sob o signo do embate entre tradição e renovação”, tem o cuidado de advertir que tal postura subversiva não se limita à mera tentativa de destruir a linguagem. Ao contrário, concebe-se sob um processo elaborativo do pensamento, correspondendo à necessidade do poeta em fazer da linguagem a expressão de uma experiência viva. Numa direção similar, Fábio Lucas já havia observado que se “Ferreira Gullar privilegia o lirismo, uma vez que a arte se lhe apresenta como expressão do sentimento individual profundo”, este “é direcionado mais pela inteligência do que pelo sentimentalismo” (LUCAS, 1995, p. 31). Além disso, e agora recuperando o que o próprio poeta nos diz sobre o fato de que a “indagação do autor se faz, simultaneamente, sobre o mundo e a linguagem poética” (GULLAR, 2010a, p. 127), reconhece-se a projeção de uma dupla aspiração já muito bem delineada neste seu livro de estreia, nomeadamente a de uma “procura da poesia” e de uma “procura da realidade”, para relembrarmos João Luiz Lafetá (2004, p. 510), que perpassa profunda e coerentemente a sua voz. Portanto, e já adiantando nossas reflexões, para além da autonomia do verbo, inicialmente desejada e posteriormente transmudada num experimentalismo sem reservas, denota-se um projeto mais amplo, cuja dinâmica autoconsciente dá-nos a ver a unidade de pensamento sob a qual se assentam os poemas do livro. De certa forma, é essa mesma dinâmica que controla a projeção do espanto, ou seja, daquilo que irá ou não se transmudar em matéria de poesia. Nessa perspectiva, podemos entender A luta corporal como um livro crítico, na esteira daquilo que Octavio Paz, ao relembrar o fato de Mallarmé ter se referido a Un coup de dés como um poema crítico, argumentou: “Poema crítico: se não me engano, a união destas duas palavras contraditórias quer dizer: aquele poema que contém sua própria negação e que faz dessa negação o ponto de partida do canto, a igual distância da afirmação e da negação” (PAZ, 1982, p. 331). Ora, se considerarmos a motivação crítica que determinou tais poemas, reconhecemos que eles buscam internamente explicarem-se a si mesmos: seja na recusa de alguns suportes linguísticos já preconcebidos, seja na necessidade de fundar uma experiência ainda não vivida ou experimentada. De regra, revelam-nos a profundidade de

76 um impasse substancialmente estético que ao final demarcaria uma experiência limite, ou melhor, uma vertigem da ausência que ao poeta parecia ser definitiva. O segundo aspecto, central e decisivo, estaria, por sua vez, estritamente vinculado ao terceiro, são eles: a descoberta tardia, em 1951, da poesia moderna, e, como resposta a essa descoberta, a arriscada proposição de uma “luta corporal” determinante à deflagração da experiência radical com o signo linguístico, posteriormente dilacerado. Certamente, para um poeta de formação essencialmente acadêmica, tal propósito foi central ao impasse entre a recusa da linguagem preestabelecida e a abertura a novas possibilidades discursivas, sobretudo se considerarmos o fato de que, anterior à publicação de A luta corporal, Ferreira Gullar já havia ensaiado um caminho na lírica. Referimo-nos aqui ao livro Um pouco acima do chão (1949), cujos poemas, de clave essencialmente parnasiana, foram escritos quando o autor residia ainda na cidade de São Luís do Maranhão. Considerado por ele como um “tateio inicial” (GULLAR, 1998a, p. 33) o livro, contudo, não seria incluído no conjunto de sua obra completa, reunida em 1980 sob o título de Toda poesia. A mudança de perspectiva só se efetivaria, com admiração e espanto, ao ser apresentado ao volume Poesia até agora (1948), de Carlos Drummond de Andrade, quando realmente se viu na urgência de repensar sua concepção de poesia e simultaneamente sua concepção de mundo. Ao relembrar a especificidade desse momento, em texto publicado na Revista USP, Ferreira Gullar definiria seu encontro com a poesia moderna como uma “espécie de choque”, deixando-o dividido entre a hesitação e o interesse em compreender seus mecanismos de expressão. Aliás, como resposta a essa descoberta é que viriam os poemas de A luta corporal, cujo “objetivo medular”, conforme apontou Ivan Junqueira (2008, p. lxx), “era o de subverter um modelo discursivo que entrara em agonia”. Entendido, portanto, como negação de uma experiência anterior que em nada se aproximava das inquietudes que o assomavam agora, o livro era ao mesmo tempo expressão de um recomeço, de um processo criativo em estreita correlação com essa nova visão da poesia. Ou, como definiria o próprio Ferreira Gullar: “Dentro dessa minha teoria atual, de que o homem se inventa, ali de fato eu começo a me inventar mesmo. Quero dizer, ali eu tenho os instrumentos na mão para me fazer, para começar a travar a batalha” (GULLAR, 2004a, p. 17).

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Realmente, se pensados em relação às realizações de Um pouco acima do chão, os poemas de A luta corporal não só ilustram um salto representativo no sentido qualitativo e de uma sensibilidade crítica, mas também a lúcida tentativa – posteriormente transmudada numa experiência visceral – de transcender os caminhos já palmilhados. Daí o propósito profundo, radical e subversivo de repensar a natureza do poético e extrair da linguagem seu sentido mais oculto que não só a aproximasse da experiência aludida, mas se tornasse a própria experiência. “Era”, como ele mesmo nos coloca, “uma estratégia diferente para chegar ao essencial: violentar a sintaxe, destruir o discurso e, com isso, revelar o que ele oculta...” (GULLAR, 1989, p. 29). Para além disso, a necessidade de reinventar um sentido outro à arte poética, cada vez mais afastada de seus paradigmas tradicionais e engajada no compromisso de estabelecer um diálogo direto e profícuo com a realidade exterior. Nesse caso, mais do que uma nova visão de mundo, o caminho da expressão exigia dele uma nova consciência poética, cuja experiência, diga-se de passagem, deveria conceber-se “entranhada” no próprio corpo. Nas suas palavras:

O reencontro com a realidade colocaria novos e complexos problemas, que me obrigariam a rever os conceitos e preconceitos que acumulara até aquela altura da vida. E o mais grave é que, para que a poesia fosse outra vez possível, não bastava reordenar o mundo segundo uma nova visão filosófica: era preciso vivê-lo segundo essa nova visão; tê-la entranhada na carne, nos ossos, nas glândulas. Era, em suma, necessário aprender de novo a viver e escrever; errar de uma nova maneira (GULLAR, 2008d, p. 1074).

Para avançar nesse caminho, era-lhe preciso repensar ou mesmo desconstruir seu próprio instrumento de trabalho, a linguagem. Sobretudo porque sua concepção do poético era nova, mas não a linguagem de que dispunha para verbalizá-la, por isso foi a primeira a ser posta em xeque. De alguma maneira, daí se explica a natureza de sua luta, corporal por excelência e não por acaso já acenada no título do livro – do qual se descobre que o corpo não só é parte indissociável e basilar dessa experiência, mas influi direta e significativamente na conjuntura porosa e complexa dos poemas.

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Para Viviana Bosi (2015, p. 20), “o título anuncia um dos aspectos nodais de sua busca naquele momento: a intensidade com que desejava enfrentar a linguagem”. Como expressão de uma insatisfação, “o jovem poeta ensaia diversos caminhos, ora através do lirismo, ora através das iluminações, ora através da franca destruição, corroendo a língua, explodindo as próprias palavras”. E isto sob uma série de planos tensionais, por vezes atenuados, por vezes levados ao ápice no processo de experimentação, pelos quais de um poema a outro a luta se refaz, já recomposta do esgotamento reflexivo a que chegara no poema anterior. Outras questões, porém, se colocariam ao poeta. Ao buscar uma linguagem gerada da própria experiência, posteriormente reconhecida por ele como uma “ideia impraticável” (GULLAR, 2004a, p. 15), Ferreira Gullar empreende uma reavaliação crítica das muitas inquietudes que estariam na gênese dessa experiência. Dentre estas inquietudes, é particularmente notável aquela que acusa a impossibilidade de apreender na linguagem a materialidade do real. Não por acaso a primeira descoberta que lhe ocorreu ao escrever os poemas de A luta corporal foi da natureza esquiva da linguagem, conforme ele mesmo argumentou depois no revelador ensaio “Em busca da realidade”, de Cultura posta em questão. Segundo ele, “dentro do processo de conscientização da sua própria experiência poética”, tratava-se de uma constatação fundamental e que iria “se desenvolver ao longo do livro” (GULLAR, 2010a, p. 124). Com efeito, se observarmos os procedimentos linguísticos que concorrem ao processo de experimentação dos poemas – especialmente no desdobramento de uma dinâmica entre ausência e presença, vertigem e linguagem –, faz-se clara a centralidade desse problema poético. Mais ainda quando se entende que “ao lado dessa constatação [...], há a afirmativa de disposição de continuar o seu caminho, apesar de tudo” (GULLAR, 2010a, p. 124). A par da natureza dessa luta, de grave resistência, compreendemos então o paradoxo: ao mesmo tempo que o poeta descobre o caráter insuficiente da linguagem, que o impede de apreender o objeto aludido na sua totalidade, reconhece o quão necessária a linguagem é na direção (tal como ele a entende) de agregar sentido à existência. Por ela, chegaria mais próximo de sua verdade aspirada, afinal “o poema é algo que está mais

79 além da linguagem. Mas isso que está mais além da linguagem só pode ser conseguido através da linguagem” (PAZ, 1982, p. 27). Para Alcides Villaça (2016, p. 60), “a experiência fundamental está em submeter a linguagem a várias provas de expressão, para assim corresponder às várias expectativas do jovem dentro da vida e diante da arte”. Realmente, é interessante ver como aqui confluem com o mesmo peso inquietudes estéticas e subjetivas. É entre ambas, inclusive, que o embate parece ampliar-se, fruto que é do duplo desconcerto perante a descoberta de uma realidade aparentemente sem sentido e onde toda tentativa de expressão resvala “no silêncio / para onde as cousas estão extremamente voltadas.” (GULLAR, 2004b, p. 41). Daí que resulta profícuo pensar simultaneamente as manifestações do espanto e de uma consciência criadora em A luta corporal. O primeiro, de caráter espontâneo e provisório, é propulsor da experiência poética, ao passo que a segunda se reflete e se expande na primeira, harmonizando com lucidez (e numa mesma medida) a descoberta imprevista e o pensamento reflexivo. Entender como ambos se resolvem particularmente na obra em questão possibilitará avançarmos na compreensão de sua percepção da realidade, aqui compreendida na sua concepção primeira e nos seus já possíveis desdobramentos. Principiemos, então, por entender essas duas manifestações, a do espanto e de uma consciência criadora, como expressão de duas vertigens – palavra recorrente em A luta corporal e que reverberará em toda a sua poesia, intitulando inclusive um de seus livros, Na vertigem do dia. Se começarmos pelo espanto, podemos entendê-lo como uma vertigem do encontro, manifesta no defrontar (em nada passivo) do poeta com a realidade opaca do mundo. Por outro lado, e os poemas são paradigmáticos nesse sentido, o embate volta-se ao âmbito da própria linguagem, o que podemos pensar como uma vertigem da ausência ao expor o impasse (certamente um dos embates fulcrais desse momento) da linguagem aspirada e ao mesmo tempo fugidia – “Neste leito de ausência em que me esqueço” (GULLAR, 2004b, p. 7). E isso de tal maneira que “tudo que é canto morre à face externa, / que lá dentro só há frieza e furna. // Que lá dentro só há desertos nichos, / ecos vazios, sombras insonoras / de ausências: [...] // e sobretudo um tão feroz sossego” (GULLAR, 2004b, p. 8).

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Contudo, o poeta resiste, insistindo na direção de mobilizar uma escrita no nível do “chão”, para então resgatar uma experiência que, segundo acreditava, encontrava-se no “cerne” de cada coisa. Como se lhe fosse preciso “buscar na poesia algo de essencial, irredutível, que não fosse ilusão, mas que fosse o cerne mesmo da realidade” (GULLAR, 1989, p. 129). Não surpreende, portanto, nos poemas de A luta corporal, a força com que se dispõe a enfrentá-la: “Eu te violento, chão da vida, / garganta de meu dia. / Em tua áspera luz / governo o meu canto.” (GULLAR, 2004b, p. 47). Não obstante, nesse universo tudo se recusa. “Tudo se retrai [...]. Tudo / odeia se dar.” (GULLAR, 2004b, p. 14); “Tudo / desliza e está só. / O dia / comum, dia de todos, é a / distância entre as coisas.” (GULLAR, 2004b, p. 18). A orquídea, por exemplo, como vemos na série de poemas “O mar intacto”, na qual, segundo ele, “tenta responder ao impasse do poeta em face do mundo absurdo” (GULLAR, 2010a, p. 128), “[...] caminha em si, é / contínuo negar-se no seu fogo, seu / arder é deslizar.” (GULLAR, 2004b, p. 14). Do mesmo modo, ao passar pela procura das essências, indaga-se: “Conheces a água? / ou apenas o som do que ela / finge?” (GULLAR, 2004b, p. 14); ou ainda, no poema “O trabalho das nuves”, ao perseguir “a tarde / do fruto”, da qual está “à margem”, apreende sua própria natureza provisória: “E a tarde futura onde ele / arderá como um facho / efêmero!” (GULLAR, 2004b, p. 17). Ocupa-se também, e com a mesma inquietude, do trabalho das nuvens que “[...] cintilam, mas não é para / o coração dos homens.” (GULLAR, 2004b, p. 17); ou, no poema “As pêras”, do cansaço de peras que se gastam “para nada” (GULLAR, 2004b, p. 18). Tal como o galo e o seu vão caminhar, em “Galo galo”, uma vez que “O cimento esquece / o seu último passo.” (GULLAR, 2004b, p. 11); ou, para voltar ao poema “As peras”, o felino, cujo dia “[...], / é passar. Não entre os móveis. Pas- / sar como eu / passo: entre nada.” (GULLAR, 2004b, p. 18). E muitas outras realidades que igualmente se negam ao sujeito. Cada uma em si mesma, no seu desamparo, no seu “deslizar” mudo e sem ênfase, porém partilhando da mesma realidade (do tempo) que a todos definitivamente alcança e consome num continuum “gastar-se”. Nessa mesma direção, é também interessante observar como já desde o início o poeta internaliza, ao verbalizar a realidade das coisas, uma inquietude do “simultâneo” – plenamente compreendida por ele anos depois e sob circunstâncias de outra ordem no seu

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Poema sujo –, entendendo cada coisa como parte de um sistema maior, a existência, mas ao mesmo tempo isolada em sua própria verdade, em seu próprio tempo e realidade. Seu estado de “alheamento do mundo” real e concreto insere-se em grande parte como consequência dessa descoberta. Por isso, reconhece-se a procura da mesma aceitação muda que há nas coisas e nos seres: “Que te resta, pois, senão / aceitar?” (GULLAR, 2004b, p. 17); do mesmo modo que a galinha, que “Não teve o mar nem / quis, nem compreendeu / aquele ciscar quase feroz. Cis- / cava. Olhava / o muro, / aceitava-o, negro e absurdo.” (GULLAR, 2004b, p. 13). De todos esses exemplos, o que importa acentuar na verdade é justamente essa experiência fenomenológica do sujeito que resiste na luta com as palavras. Queremos dizer: o modo como ele, para além do problema da linguagem, se coloca “diante das coisas” e de como estas o afetam. Podemos pensar novamente num “sujeito encarnado”, tal como compreendeu Maurice Merleau-Ponty (2012, p. 50), que, mediante seu corpo (novamente pulsando aqui a natureza de sua luta), se abre à experiência perceptiva do mundo. Daí nossa hipótese de que a experiência perceptiva da realidade que a poesia de Ferreira Gullar sempre procurou perseguir, avança, a partir de uma intencionalidade reflexiva, na direção de uma inquietação metafísica quando resvala na verdade de si mesmo. Ou melhor: a atenção ao mundo revela simultaneamente, no drama da linguagem esquiva e insuficiente, um sujeito em tensão, sensivelmente encarnado na matéria-mundo, da qual faz irromper a discussão da própria subjetividade. Chegamos, pois, à esfera central deste trabalho. Cabe, então, situá-la nesse plural, perturbador e subversivo universo que é o dos poemas de A luta corporal.

3.2 Entre uma coisa e outra, o sujeito

Se a abrangência do espanto reverbera nas muitas vozes que atravessam a poesia de Ferreira Gullar, chama particularmente a atenção aquela que se não é propriamente sua irrupção primeira – embora, no âmbito de nossa leitura, pudesse ser assim compreendida

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–, é em tudo profícua à compreensão da relação entre o sujeito e o mundo. Manifesta já em um dos primeiros e mais bem realizados poemas de A luta corporal, intitulado “Galo galo”, e atravessando sob diferentes matizes toda a obra do autor – expressão que é da urgência de conhecimento que, como dizia Aristóteles, repousa em todo ser humano –, desafia-nos na sugestão de uma inquieta procura da dissolução do enigma:

– que faço entre coisas? – de que me defendo?

(GULLAR, 2004b, p. 11)

De claro cunho ontológico, essas duas indagações colocam-se na esfera central da experiência perceptiva do mundo que é, como sabemos, intrínseca ao discurso poético de Ferreira Gullar. Para além disso, nesses questionamentos residem não só a inscrição subjetiva de um eu, mas, principalmente, de um eu “entre coisas”, que, inserido num enigma maior, o da existência, se indaga de sua ação entre as coisas e quanto à atitude defensiva que em relação a elas mantém. Ora, como instrumento mediador do espanto, o poeta compreendeu desde logo a centralidade do corpo na relação com o mundo, jogando inclusive com essa dúbia presença: a presença prévia do mundo e, nele, a presença do sujeito. Não por acaso seu livro de estreia, com o qual temos nos ocupado em nossas reflexões, intitula-se A luta corporal: entendendo a linguagem como um sistema orgânico, é com seu próprio corpo que ele radicaliza a concepção do poético. Para Alcides Villaça, já está patente neste livro “a importância da corporeidade buscada pelo poeta”. Acrescentando que ela “vale tanto para as palavras, das quais se cobra um canto vivo e radical, como para a pessoa mesma do poeta, em cujo corpo confluem o tempo da vida e o da morte, emergência dos desejos instintivos combatendo a força implacável do apodrecimento” (VILLAÇA, 2016, p. 61). A nosso ver, para além de constituir uma presença física, concreta, encerrada em seu sentido estritamente anatômico e oscilante entre duração e precariedade, fluxo e dilaceramento, a matéria-corpo é basilar a essa compreensão indagadora do mundo. Observa-se, com isto, uma interação profunda entre o ver e o saber, o interior e o exterior,

83 a aparência e a experiência, que transforma a banalidade do real numa outra coisa, mais densa e reflexiva. Agrega-se a isto uma série de indagações não necessariamente resolvidas ao longo de sua trajetória, já que devido a ausência de uma resposta plausível ao enigma da existência, seu espanto parece sempre disposto a reiterar-se, por vezes nas mesmas coisas, porém sempre imaginadas a partir de uma nova clave reflexiva. Não por acaso estas mesmas perguntas do poema “Galo galo” comparecem – é verdade que com outras palavras, porém partilhando da mesma reflexão – mais de uma vez no opus poético do autor, a saber: em dois momentos do Poema sujo e no poema “Óvni”, de Na vertigem do dia. No primeiro deles, o Poema sujo, aparece inicialmente sob a forma de um enigma, em cujo centro está a família: “Que importa um nome a esta hora do anoitecer em São Luís do Mara- / nhão à mesa do jantar sob uma luz de febre entre irmãos / e pais dentro de um enigma?” (GULLAR, 2004b, p. 234). Num outro momento, move a indagação (que agora envolve a todos) do ser entre coisas: “E todos buscavam / [...] / a decifração do enigma // – Que faço entre coisas? / – De que me defendo?” (GULLAR, 2004b, p. 236). Por outro lado, no poema “Óvni”, publicado num livro cronologicamente posterior ao Poema sujo, a alusão se reduz ao âmbito do próprio sujeito, quando não mais se perguntando de sua condição, ele irá assegurar: “Sou uma coisa entre coisas” (GULLAR, 2004b, p. 328). Considerando que este último poema é do livro Na vertigem do dia, publicado em 1980 – vinte e seis anos, portanto, separa-o do livro de estreia onde figura o poema “Galo galo” –, parece-nos ratificar a pergunta que o poeta se fizera no início, quando os caminhos pareciam ainda indivisíveis. Compreendidas na distância cronológica que as separam, tais reflexões nos mostram que se há um propósito maior no cerne dessa procura, este seria buscado nas coisas e no mundo, expressão novamente da necessidade de um encontro sempre renovado com o outro e consigo mesmo. Tal encontro, porém, não se faz de maneira gratuita. Ao contrário, nele viria entranhada uma dinâmica oscilante entre o reconhecimento e o estranhamento. E que parece já estar presente em um dos poemas da série “Sete poemas portugueses”, que abre A luta corporal, onde se lê: “duplo espelho – o precário no precário. / Flore um lado de mim? No outro, ao contrário, / de silêncio em silêncio me apodreço.” (GULLAR, 2004b,

84 p. 7). Ou no poema “O inferno”, um dos derradeiros do livro, e no qual se acompanha a combativa ação do sujeito: “[...] / QUEIMANDO A LINGUAGEM / EM SEU COMEÇO / PORQUE HÁ O QUE FLORESCE ENTRE / MEUS PÉS E O QUE REBENTA / NUM CHÃO DE EXTREMO DESCONHECIMENTO.” (GULLAR, 2004b, p. 59). A fim de tornar clara a pulsão desses dois momentos, nos quais o sujeito irá buscar sua verdade profunda – e que é novamente a própria projeção do espanto –, é necessário que voltemos ao poema “Galo galo”, seguramente um dos mais expressivos nesse sentido, para pensá-lo agora na sua totalidade. Na edição de 2004 de Toda poesia, que reunia os poemas de Ferreira Gullar desde A luta corporal (1954) até Muitas vozes (1999), os mesmos não vinham datados, de modo que não era possível indicar o momento exato em que foram escritos. Porém, na edição mais recente de sua poesia completa, publicada em 2015 e na qual figura seu derradeiro livro, Em alguma parte alguma, consta, ao final de “Galo galo”, a seguinte data: “São Luís, abril de 51”. Considerando que quatro anos compreendem o período da concepção dos poemas de A luta corporal, mais precisamente de 1950 a 1953, podemos dizer que “Galo galo” é de fato um dos primeiros poemas do livro: a série que o inaugura, “Sete poemas portugueses”, foi escrita em 1950, seguida de um poema sem data, “A fera diurna” – e isto se acompanharmos a edição mais recente, pois este poema não figura na edição de 2004 de Toda poesia –; depois, segue-se o poema “O anjo”, escrito em fevereiro de 1951, e, por fim, o poema “Galo galo”, de abril de 1951. Não obstante, para além dessa precisão cronológica que nos permite situar o poema dentro do universo do livro e seguir com maior precisão a linha de pensamento do autor, o que realmente nos interessa são as lúcidas reflexões que suscita na combinação do espanto com a consciência criadora, ao mesmo tempo que antecipa algumas reflexões posteriormente ampliadas. Por exemplo, a conotação plástica e sensorial da realidade; a gravidade da consciência do corpo como elemento que, a exemplo das coisas e de outros seres, se desintegra no curso ininterrupto do tempo; o desassossego de saber a inutilidade do canto que lhe é profundamente necessário; por fim, a urgência de uma inquietação metafísica, precisamente a de reconhecer (num jogo de espelhos) na realidade do mundo a verdade de si mesmo.

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Vejamos as estrofes iniciais do poema:

“Galo galo”

O galo no saguão quieto.

Galo galo de alarmante crista, guerreiro, medieval.

De córneo bico e esporões, armado contra a morte, passeia.

Mede os passos. Pára. Inclina a cabeça coroada dentro do silêncio – que faço entre coisas? – de que me defendo?

Anda no saguão. O cimento esquece o seu último passo.

(GULLAR, 2004b, p. 11)

De imediato, chama atenção a precisão da cena: de como esta sustenta um poder de síntese, isenta de qualquer excesso e insistindo desde já na força de uma plasticidade, posteriormente apurada. E a luta do poeta, repousa aqui na corporeidade da própria coisa, buscando nos seus domínios uma experiência lírica ainda não experimentada. A visão do galo, aliás, é parte de um universo material que ele, “lúcido e demente”, persegue nos poemas de A luta corporal, de modo que é por intermédio dessa realidade próxima que seu espanto parece desde já orientar-se e, igualmente, orientar-nos. Contudo, a palavra breve esconde um pensamento demorado, cujo movimento passa da descrição anatômica do galo, conforme lemos nas três primeiras estrofes, à voz reflexiva que irrompe na quarta estrofe. É quando o estado mudo e contemplativo do início se transmuda no assombro da descoberta: “– que faço entre coisas? / – de que me

86 defendo?”. Nestas duas indagações, que o poeta transfere ao galo, depreende-se desde logo o jogo de espelhos desse eu que, instalado no mundo como corpo e valendo-se da linguagem como veículo de expressão (e suspensão em palavras) da emoção da experiência, se coloca a perceber o mundo e a dizê-lo a partir dos espantos que este lhe provoca. E ainda:

Galo: as penas que florescem da carne silenciosa e o duro bico e as unhas e o olho sem amor. Grave solidez. Em que se apóia tal arquitetura?

Saberá que, no centro de seu corpo, um grito se elabora?

Como, porém, conter, uma vez concluído, o canto obrigatório?

(GULLAR, 2004b, pp. 11-12)

Como se vê, a descrição prossegue agora mais reveladora no sentido de uma pertença ao mundo. A palavra “carne”, inclusive, reiteradas vezes expressa na poesia gullariana, diz-nos muito a esse respeito, uma vez que é com a matéria precária e finita de seu corpo que o sujeito experimenta esse universo exterior. Para Merleau-Ponty (2012, p. 213), “o corpo é o veículo do ser no mundo”, de modo que “toda percepção exterior é imediatamente sinônima de uma certa percepção de meu corpo, assim como toda percepção de meu corpo se explicita na linguagem da percepção exterior” (MERLEAU- PONTY, 2011, p. 277). Nesse sentido, são pertinentes as reflexões propostas por Regina Schöpke (2009, p. 27), sobretudo no que tange a uma “definição de existir que consiste basicamente em estar no mundo, aqui e agora. É ser materialmente presente, é existir como corpo. Essa é a única forma de existência possível no mundo”. Numa direção similar a esse pensamento,

87 a poesia gullariana aponta justamente para o ser situado no mundo como corpo; é por intermédio dele que o sujeito apreende a “estranheza do mundo”, materializando-a em linguagem. Decerto, a isto concorre novamente uma inquietação metafísica, afinal, a experiência se faz ao mesmo tempo na direção de buscar uma realidade externa e, nela, desvelar o próprio interior do sujeito. Outro aspecto notoriamente importante diz respeito à expressão “grave / solidez”, à qual podemos acrescentar o excerto de um texto posterior, intitulado “Carta do morto pobre”, que diz: “O homem é grave. E não canta, senão para morrer” (GULLAR, 2004b, p. 23). Num primeiro momento, pode parecer que a mesma gravidade do galo é (apenas) transferida ao sujeito, porém, logo se entende que naquele se restringe à anatomia física, posto que desconhece ser de natureza finita; enquanto neste faz-se mais na direção consciente de seu canto efêmero e do peso do tempo acumulado na matéria-corpo. Logo, o que aqui está em jogo é a própria tensão do homem com a simbologia de sua verdade maior, a morte. Curiosamente, na solidez de sua arquitetura de galo, o animal esconde (sem o saber) dentro de si a simbologia do canto necessário, embora inútil: “Saberá que, no centro / de seu corpo, um grito / se elabora?”. Trabalhando ademais com a ideia do imprevisível e, respectivamente, com a possibilidade de em face do enigma do mundo reinscrever um sentido inédito às coisas, o poema espelha (reiteramos) a necessidade de ressignificar sua própria existência. Nos versos seguintes, lemos:

Eis que bate as asas, vai morrer, encurva o vertiginoso pescoço donde o canto rubro escoa.

Mas a pedra, a tarde, o próprio feroz galo subsistem ao grito.

Vê-se: o canto é inútil.

O galo permanece – apesar de todo o seu porte marcial – só, desamparado, num saguão do mundo. Pobre ave guerreira!

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(GULLAR, 2004b, p. 12)

Cada vez mais inserida num jogo de espelhos, a visão do sujeito sobre essa realidade externa a si parece envolver-se de um peso maior. A exemplo do galo que sem o saber “contra a morte / passeia”, o poeta caminha, ou melhor, resiste em seu próprio espaço, ao mesmo tempo independente e adjacente ao do animal. No que ambos diferem, está o fato de que recluso no seu silêncio e no silente espaço a que se circunscreve, o galo, paradoxalmente “entre coisas” e “só, desamparado, num saguão do mundo”, não partilha da inquietude do saber – condição própria do sujeito, ciente da natureza efêmera de seu canto. Há, portanto, uma gravidade que atravessa essa atmosfera lírica. A condição do galo, circunscrito ao seu canto inútil e à morte, é condição do próprio sujeito. Este, como espectador à distância desse outro, espelha com tal postura uma conturbada relação com o mundo e, como aspiração, a busca por pertencimento. Nessa direção, ao espelhar-se nesse outro, o sujeito como que se vê a si mesmo como um ser que lida com a “consciência da morte”, a mesma morte que ronda o galo. Consciência, aliás, que já estava presente em poema anterior a “Galo galo”. Como observou Ferreira Gullar:

A consciência da morte é, a partir daí, o elemento fundamental da visão do poeta. Ela já estava implícita no final dos “Poemas portugueses” mas agora essa consciência se torna o instrumento mesmo de decifração dos fenômenos. Foi ela, ao que tudo indica, o impulso que o levou a abandonar os recursos poéticos tradicionais para buscar uma linguagem mais lógica e orgânica, construída de dentro pelo próprio processo de indagar e entender. Como se vê, a mudança de técnica expressiva se dá em função da necessidade do autor de melhor responder às perguntas colocadas por sua perplexidade. (GULLAR, 2010a, pp. 125-126, grifo nosso)

É interessante notar, além disso, como essa “consciência da morte” – e, nela, a da inexorabilidade do tempo – serviu-lhe como mote à aproximação de uma realidade mais próxima de sua precária existência, patente no próprio exercício reflexivo que procurou desenvolver.

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Em tal perspectiva, comparecem ainda as concepções do “apodrecimento” e do “cansaço”, conforme a “Carta do morto pobre”, muito próxima da sintaxe corrosiva de Augusto dos Anjos, no sentido daquilo que Ferreira Gullar apontou como um “propósito de mostrar a morte como fato real, situado, e de fazer desses objetos repugnantes [...] a expressão de um sentimento sublime. Ou melhor, de não se negar, em nome da delicadeza poética, a exprimir a realidade” (GULLAR, 2008a, p. 1040). No caso de sua poesia, particularmente nos poemas de A luta corporal, essa tendência corrosiva faz-se no âmbito do próprio corpo e, ao mesmo tempo, no corpo da linguagem, uma vez que o primeiro, o sujeito, progressivamente se consome nos incêndios da palavra. Sua semântica, aliás, dialoga com esse paradigma negativo do tempo e advém em grande parte da concepção que o poeta procurava obedecer neste momento: a de que a linguagem, tal como o corpo, deveria constituir-se como matéria viva. Ou, como ele mesmo explica em Sobre arte, sobre poesia: uma luz do chão: “Luta porque essa identificação do homem com a linguagem era uma aspiração e não uma realidade conquistada. Luta para transformar a linguagem num corpo vivo, vivo como o meu próprio corpo, denso como um ser natural, como um organismo”, fato que o “levou a violentar a sintaxe e os vocábulos a ponto de o poema se tornar quase ilegível” (GULLAR, 2011, p. 162). Contudo, o canto resiste:

Outro grito cresce agora no sigilo de seu corpo; grito que, sem essas penas e esporões e crista e sobretudo sem esse olhar de ódio, não seria tão rouco e sangrento

Grito, fruto obscuro e extremo dessa árvore: galo. Mas que, fora dele, é mero complemento de auroras.

(GULLAR, 2004b, p. 12)

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Novamente, vê-se a simbologia do canto inútil, dando-nos a exata medida de um sentimento conflituoso que vai de encontro com a consciência criadora, internamente revelada: desentranhado obscuramente do mais fundo do ser, o canto “é mero complemento de auroras”. Por outro lado, o mover-se indiferente do animal entre o íntimo e o desconhecido define bem a relação movediça do poeta com o mundo. De maneira que o próprio Ferreira Gullar iria compreendê-lo depois como um poema que

[...] marca um passo à frente nesse caminhar para maior conscientização do problema poético. O autor procura exprimir a realidade total de um bicho situado no mundo. Descreve-o nos aspectos exteriores mas usa esses aspectos como meio de indagação de sua realidade profunda (GULLAR, 2010a, p. 126).

Nesse aspecto, resulta profícuo relembrar aqui a lúcida análise que Davi Arrigucci Jr., em Coração partido: uma análise da poesia reflexiva de Drummond, empreende acerca do poema “Áporo”, de Carlos Drummond de Andrade, no qual, segundo ele, “ao pensar o drama do trabalho do inseto, o poeta põe em cena seu próprio drama, revelando pela reflexão, a perplexidade do que fazer numa situação de idêntico bloqueio” (ARRIGUCCI JR., 2002, p. 96). De modo semelhante, na poesia gullariana a perspectiva inicial do olhar direcionada a outrem, transfere-se, numa direção contrária, ao âmbito do próprio sujeito, abrindo-se por meio dele à possibilidade de conhecimento, ou melhor, de reconhecimento no outro, via linguagem. O que o poeta procura, em verdade, dada uma realidade aparentemente absurda e cujas referências se não são claramente divisíveis, fogem a qualquer tentativa de verbalização, é fundar um mundo, dar concretude à experiência vivida. Para tanto, confronta de imediato uma certa estrutura, digamos, já preconcebida das palavras. Seguindo nessa direção, podemos voltar outra vez à leitura de Ferreira Gullar acerca da obra de Augusto dos Anjos, a fim de pensar sua própria escrita, quando assinala que a poesia é “um discurso deliberadamente desconcertante, que de um modo ou de outro contraria a normalidade do discurso”. E ainda: “o poeta não quer discorrer sobre os objetos, não quer que sua linguagem seja mera referência ao mundo: quer que o poema

91 seja o lugar onde a experiência se dá – deflagrada – concretamente” (GULLAR, 2008a, p. 1034). Trazendo tais reflexões para sua própria poesia, entendemos que o autor, movido pela ausência que a inquieta procura do real lhe devolve nos poemas e, em consequência, expandindo o problema da linguagem esquiva e insuficiente, gradualmente se afasta do caminho inicial da linguagem aspirada, seguindo na direção de um experimentalismo que acaba por levá-lo ao limite da reflexão. É quando, acompanhando a força do pensamento, aproxima-se de uma clave substancialmente subversiva e combativa, mais próxima de uma proposta imagética e visual em detrimento da escrita. Prova disso são as realizações finais de A luta corporal, dentre eles, “O inferno” e “Roçzeiral”. Como um dos momentos plenos desse momento, retratam muito claramente o “beco sem saída” (GULLAR, 1998b, p. 393) em que o poeta se encontrou após um gradativo processo de buscas e redescobertas, assimilações e recusas. Neles, inclusive, o poeta como que já pressente a proximidade do fim da experiência, flagrada no limite da reflexão da qual estava cada vez mais próximo. Embora seja ainda reconhecível, no interior de seus versos, os problemas mais agudos de sua lírica naquele momento, como por exemplo a perspectiva do incêndio nas palavras: “l’ancêndio [...] / sur ma parole” (GULLAR, 2004b, p. 55). Devido a isso, considerando a possibilidade de comunicar-se mesmo verbalizando uma situação limite, quando indagado certa vez sobre uma possível tônica surrealista nos poemas de A luta corporal, Ferreira Gullar foi solícito em contrapor: “Eu era terrestre demais. Queria introduzir, na realidade, o delírio e o “deslimite”. Mas não queria sair do concreto. Não queria uma poesia de sonho. Apenas revelar o que há de delirante no real” (GULLAR, 1998a, p. 35). No caso de A luta corporal, tal processo é bastante interessante, visto que inaugura o caminho de uma consciência criadora no qual persiste, por meio da aspiração a uma “poesia pura”, uma elocução nervosa e visceral. Posteriormente, revelar-se-ia parte indissociável de sua experiência com o mundo, ao mesmo tempo que influi – expressa ou veladamente – na conjuntura porosa e complexa dos poemas, fruto que é de um pensamento que não cessa de se reinventar. Ao comentar a separação do livro em suas seis seções, Antonio Carlos Secchin (1996, p. 126) afirma que estas “revelam uma travessia quase programática rumo à

92 radicalidade no trato com a linguagem poética”. Num outro momento, porém seguindo essa mesma linha de raciocínio, acrescenta:

É possível interpretar as seções do livro como sucessivas desaprendizagens de um “poético” já codificado em prol de uma aventura em domínios menos confortáveis ou estabelecidos da linguagem. Não bastava ao poeta distanciar-se da realidade que o circundava; ele desejava, no mesmo passo, afastar-se das formas convencionais de representação dessa realidade (SECCHIN, 2008, p. xx).

No curso dessas “desaprendizagens”, a poesia de Ferreira Gullar se coloca entre o seguro e o vacilante, incorrendo num processo quase metamórfico da camada verbal. Dá- nos, assim, a impressão de associar-se àquilo que Hugo Friedrich (1978, p. 15), em sua Estrutura da lírica moderna, entendeu como uma “tensão dissonante”, unidade própria da poesia moderna e dos efeitos de choque que busca provocar no leitor. Ao mesmo tempo, irá revelar, nas modulações que encerra, a aspiração de uma procura essencialmente subjetiva, o que significa dizer que mais do que uma experimentação formal, trata-se da expressão latente de uma inquietude existencial. Sobre isso, argumentou o poeta: “Eu não pensava estar fazendo nenhuma inovação. Trata-se de um problema existencial, de conhecimento, de responder à vida. Que sentido tem fazer literatura? Que sentido tem viver, para quem optou por fazer literatura como a expressão de sua vida?” (GULLAR, 1989, p. 129). Por certo, as respostas a essas perguntas não se colocariam de imediato ao poeta. No entanto, o que desde logo se observa é que na procura por elas acabaria por fundar uma poética, um sistema de pensamento cada vez mais apurado pelos acasos da vida e no qual simultaneamente questiona, defende e reavalia sua visão estética e consequentemente sua poesia – espaço onde sujeito e linguagem se confundem no sistema-mundo do qual participam. É nisto, aliás, que reside sua novidade, aquela mesma novidade que, como notou Octavio Paz (1976, p. 133), esperamos de uma obra como seu valor maior.

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3.3 A consciência desdobrada

O indagar-se do eu “entre coisas” e com ele toda uma experiência fenomenológica do mundo aparece, como vimos, já na poesia de estreia de Ferreira Gullar. No vórtice de uma consciência criadora in progress, tal atitude define alguns traços materialistas que, em regra, convergem para a construção da própria identidade do sujeito. Se é inegável que tal consciência se espraia com maior vigor na obra de estreia, ela todavia ganha novos sentidos quando adjunta a outras realizações posteriores que apontam para um mesmo interesse reflexivo, a saber: O vil metal, Poemas concretos e neoconcretos, Livros- poemas, Poemas espaciais e, por fim, o Poema enterrado, objeto-síntese dessas experiências limites. Considerando-as no conjunto, tais experiências nos permitem uma visão mais ampliada do problema, de maneira que se à primeira vista podem parecer tão somente um prolongamento de A luta corporal, na prática, revelar-se-iam verdadeiras saídas estéticas dos impasses que mais de uma vez o poeta precisou superar. Além disso, desenham um interessante momento de sua trajetória, cujo desfecho, se não foi como ele havia imaginado no início – a procura fenomenológica seria substituída pelos dilemas de uma arte abstrata –, pelo menos iluminou muito do que viria depois. Fosse necessária uma síntese desse momento, diríamos que esta já inclui, ao lado das questões de forma, um agudo sentimento do corpo, da memória e da morte. De fato, como matéria afetiva, a memória se acende no corpo, ressignificada. Em A luta corporal, por exemplo, dado o impasse da linguagem, “Apenas a memória acende azuis / corolas na penumbra do impossível.” (GULLAR, 2004b, p. 8). Essa dupla presença será aos poucos traduzida num só movimento, “corpo-memória”, o que torna mais nítido, entre uma coisa e outra, num estado intermediário, o traçado de uma conturbada subjetividade: “Oficina impiedosa! / Minha alquimia / é real” (GULLAR, 2004b, p. 47). O terceiro aspecto, por sua vez, relativo a um sentimento da morte, aparece mais como um facho vertiginoso e insuspeitável, iluminando vez ou outra a matéria dos poemas. Seja ao abarcar a realidade dos seres: “Morta / flutua no chão. / Galinha. // [...]. // Agora / as penas são só o que o vento / roça, leves. / Apagou-se-lhe / toda a cintilação,

94 o medo. / Morta. Evola-se do olho seco / o sono. Ela dorme. / Onde? onde?” (GULLAR, 2004b, p. 13); seja ao abranger a realidade dos astros: “Vê o céu. Mais / que azul, ele é o nosso / sucessivo morrer. Ácido / céu.” (GULLAR, 2004b, p. 14). Ou ainda, “a tarde / do fruto”, “tarde / em que ele se propõe a glória de / não mais ser fruto, sendo-o / mais: de esplender, não como astro, mas / como fruto que esplende // E a tarde futura onde ele / arderá como um facho / efêmero!” (GULLAR, 2004b, pp. 16- 17); ou, também, a matéria dos dias: “Ouve jorrar a morte / no teu riso, a alegria / queimando a vida; / os teus bichos domésticos, / as flores infernais / a rebentar dos passos.” (GULLAR, 2004b, p. 44). Aparece, sobretudo, no sentimento desolador do sujeito ao confrontar na linguagem a matéria precária e finita do corpo. Essa atitude alimenta nele sentimentos perturbadores que o levam a dizer, por exemplo: “O anjo é grave / agora. / Começo a esperar a morte.” (GULLAR, 2004b, p. 10); “O homem é grave. E não canta, senão para morrer.” (GULLAR, 2004b, p. 23); “O que somos não nos ama: quer apenas morrer ferozmente” (GULLAR, 2004b, p. 26); “Saber-se / fonte única de si / alucina. // Sublime, pois, seria / suicidar-nos: / trairmos a nossa morte / para num sol que jamais somos / nos consumirmos.” (GULLAR, 2004b, p. 15). Não há dúvidas de que estamos no centro de uma turbulenta vivência com o mundo. A própria maneira como os versos finais de A luta corporal se dispõem no espaço da página em branco acusa tal atitude, inicialmente percebida na matéria-corpo – “A pele do corpo / se incendeia / em vosso inferno verdadeiro.” (GULLAR, 2004b, p. 47) –, mas só melhor compreendida quando articulada ferozmente na linguagem: “aqui trabalho meu corpo, em claro, para atingir teu sopro.” (GULLAR, 2004b, p. 59). Essa ideia, aliás, repete-se com frequência nos poemas do livro. Porque embora atravessado por essa vertiginosa operação alquímica, ao sujeito, é-lhe necessário vivenciá-la na carne, na urgência de seu próprio corpo mortal, “para que o que é canto se redima sem ajuda.” (GULLAR, 2004b, p. 48). Portanto, se de início os horizontes poéticos não estão ainda muito bem definidos, é entre a vontade (do sujeito) e a recusa (do corpo) que divisamos uma espécie de eixo central: “MAS EU, NÃO OUTRO, E MINHA LINGUAGEM É A REPRESENTAÇÃO DUMA DISCÓRDIA ENTRE O QUE QUERO E A RESISTÊNCIA DO CORPO.” (GULLAR, 2004b, p. 58).

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Com essas considerações, revisitamos esse protagonismo do corpo que resiste no centro da poesia gullariana para nos convencermos de que é nele que o mundo percebido se interioriza e ganha significação. Corpo (já aqui) intimamente atrelado ao fluxo do tempo, pois, “se não é da carne brilhar, qualquer cintilação sua seria fátua”: “Sim, é no disfarçar que nos banalizamos porque ao brilhar, todas as cousas são iguais – aniquiladas.” (GULLAR, 2004b, p. 42). Ainda nesse sentido, outros exemplos comparecem: “Tempo acumulado nas dobras sórdidas do corpo, linguagem.”; “Queimo no meu corpo, o dia. Sob estas roupas estou nu e mortal.” (GULLAR, 2004b, p. 43); e, por fim, “[...], o que nos astros brilha, é trabalho. Estamos perdidos” (GULLAR, 2004b, p. 44). É a essa situação de extremo limite, manifesta através de uma linguagem ainda não experimentada até então, que nos conduz Ferreira Gullar em uma das realizações mais surpreendentes de A luta corporal, intitulada “Carta do morto pobre”. Como ele mesmo indicou, não se trata de um poema, mas de uma carta cujo “texto é corrente, de prosa, escrito com fúria mas sem exigências e rigores. É frequentemente retórico e explícito. Explode em raiva, insultos e pornografia” (GULLAR, 2010a, p. 133). Mais que isso:

Rompendo todas as conveniências e artifícios, o autor denuncia o “brilho” e o ludíbrio. Reafirma que a morte é a única verdade do homem e que, por isso, o “eterno é vil! é vil! é vil!” O homem morre, essa é a verdade dele, de seu corpo. Ludibriar essa verdade é uma traição “ao único acontecimento maravilhoso de sua existência”. A arte é uma das formas de traição (GULLAR, 2010a, p. 133).

Trata-se, como se nota, de questões muito profundas, mas já muito bem resolvidas na mente do jovem poeta dividido entre questões da linguagem e de sua condição como ser (corpo) no mundo. De um lado, a procura (na linguagem) de uma aspirada totalidade – posteriormente abandonada pela “consciência corrosiva da plenitude irrealizável” (LAFETÁ, 2004, p. 141); de outro, uma presença lírica que flui obscura de si, porque ainda incapaz, embora o busque obstinadamente, de abrir-se ao fora. Daí lermos num outro momento:

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O INFERNO começa pelo olho, mas em breve é tudo. Uma poeira que cai ou rebenta nas superfícies. Se tivesse a certeza de que ao fim destas palavras meu corpo rolasse fulminado, eu faria delas o que elas devem ser, eu as conduziria a sua última ignição, eu concluiria o ciclo de seu tempo, levaria ao fim o impulso inicial estagnado nesta aridez utilitária em cujo púcaro as forças se destroem. Ou não faria. Não faria: uma vileza inata a meu ser trai em seu fulcro todo movimento para fora de mim: porque este é um tempo meu, e eu sou a fome e o alimento de meu cansaço: e eu sou esse cansaço comendo o meu peito. Porque eu sou só o clarão desta carnificina, o halo deste espetáculo da ideia. Sou a força contra essa imobilidade e o fogo obscuro minando com a sua língua a fonte dessa força. Estamos no reino da palavra, e tudo que aqui sopra é verbo, e uma solidão irremissível (GULLAR, 2004b, p. 58).

Cabe lembrar que mais de quarenta anos depois, num breve texto intitulado “As ásperas primaveras”, Ferreira Gullar faria uma interessante releitura desse período. Valendo-se do olhar crítico que somente a distância temporal poderia lhe permitir, compreendeu-o como uma espécie de “aventura” iniciada ainda em São Luís do Maranhão e que dividiria os seus dias entre a alucinação e o espanto:

Tento rever-me naqueles dias distantes, ardendo nas indagações e perplexidades com que me deparava a cada momento. A existência não tinha sentido; tinha beleza, uma beleza maldita, tocada pelo fulgor da morte. Como um condenado à pena capital, vivi alucinadamente aqueles dias e poemas que culminariam com a implosão da linguagem poética em ‘Roçzeiral’, escrito em estado de quase delírio. Eufórico, experimentei assim a ilusão de me ter libertado dos limites da sintaxe, dos limites do real... Depois, caí em mim, e achei que simplesmente havia destruído meu instrumento de expressão e assassinado a poesia (GULLAR, 2006, p. ix).

O sentimento, afinal, de quem viveu sem reservas, entre a aspiração e o limite, a experiência do indizível. De maneira que esse exercício experimental, desmembrado entre a realidade aparentemente absurda e o corpo expandido no tempo, culminaria, por fim, na “mutilação da linguagem” (GULLAR, 2010a, p. 148). O que, já na estreia, o fez proclamar o encerramento de sua atividade como poeta: “Senti que era impossível seguir

97 adiante nesse caminho e dei por encerrada a minha aventura poética. Estávamos em 1953” (GULLAR, 2011, p. 149). Abrir-se-ia, no entanto, a novas indagações. E se nestas reconhecemos uma série de tentativas ainda interessadas nas discussões da linguagem, a principal mudança é que o poeta se afasta de um projeto anterior essencialmente individual, para abrir-se agora a projetos coletivos, estabelecendo um diálogo profícuo com outros artistas que, à época, partilhavam com ele inquietudes similares. Não se pode deixar de notar, porém, que tal atitude não suprime suas convicções estéticas, conservando, por exemplo, um particular interesse pela experiência fenomenológica do mundo, com a investigação contínua da subjetividade. No âmbito da poesia, já vimos que o período compreendido entre o início dos anos 50 e o começo dos anos 60 foi-lhe um dos mais favoráveis em termos da formação de uma nova concepção do poético. Como sabemos, o ano de 1951 marca a mudança do autor de sua cidade natal, São Luís do Maranhão, para a cidade do Rio de Janeiro, àquela época principal polo literário e cultural do país. Por certo, o deslocamento da província para a metrópole representou-lhe uma profunda mudança não só física, mas também, e sobretudo, de perspectiva do fenômeno artístico, considerando a oportunidade que teve desde logo de travar contato com importantes nomes da arte brasileira, dentre eles, Mário Pedrosa, Lygia Clark, Hélio Oiticica, Amilcar de Castro e Franz Weissmann. Com estes, iria contribuir significativamente para os rumos da arte de vanguarda no Brasil. Primeiramente, em direção à arte concreta, e, mais adiante, à criação do movimento neoconcreto. É certo que, conforme ele mesmo assegurou depois aos Cadernos de Literatura Brasileira, a leitura e releitura de poetas como Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes e João Cabral de Melo Neto, influenciou imensamente sua poesia: “com eles aprendi a minha linguagem. A minha dicção poética nasceu desses autores” (GULLAR, 1998a, p. 47). O contato, porém, que travou durante alguns anos com esses outros artistas foi igualmente decisivo para o modo como ele conduziu sua poesia. Tal convivência responde em grande parte, por exemplo, pelo acento predominantemente plástico e visual de seus poemas, com especial ênfase às realizações desse período, bem como a aguda percepção do mundo. Essa “ligação com o real”,

98 conforme reconheceu no livro Sobre arte sobre poesia: uma luz do chão, sempre foi uma “necessidade” inerente à sua poesia, e, “se, em determinado período, essa ligação ameaçou romper-se, isso se deveu à tentativa de apreender o real em termos supostamente essenciais, e a ameaça de perdê-lo se expressou como um dilaceramento” (GULLAR, 2011, p. 163). Daí distinguirmos, em favor dessa tentativa, uma sutil e gradativa mudança de pensamento já em A luta corporal: da atmosfera noturna e soturna que envolve os primeiros poemas ao “Cerne claro, cousa / aberta; / na paz da tarde ateia, bran- / co, / o seu incêndio.” (GULLAR, 2004b, p. 53) que orienta os poemas finais. Para dizer de uma outra maneira, do acento coloquial que sucedeu sua experiência (primeira) com a poesia metrificada, passando pela experimentação do “abstrato” até, finalmente, chegar à “desintegração” (GULLAR, 1989, p. 49). Em certo sentido, tais desdobramentos da experiência poética lembram aquela concepção mallarmeana – muito recorrente na lírica moderna – de se pensar até onde é possível jogar com os limites da linguagem e, consequentemente, até onde ela sobrevive. Dessa perspectiva, conforme argumentou Octavio Paz acerca de Un coup de dés:

O poema cessa de ser uma sucessão linear e escapa assim à tirania tipográfica que nos impõe uma visão longitudinal do mundo, como se as imagens e as coisas se apresentassem umas atrás das outras e não, como realmente ocorre, em momentos simultâneos e em diferentes zonas de um mesmo espaço ou em diferentes espaços (PAZ, 1976, p. 111).

Essa disposição das palavras “em diferentes zonas de um mesmo espaço ou em diferentes espaços” encontramos sobretudo em obras posteriores. Em geral, alarga-se nelas o interesse do poeta pela pesquisa, ao mesmo tempo que se faz mais clara uma consciência desdobrada do poético. Por isso, quando compreendidas no conjunto, chega- se mais perto do pensamento dominante: responder a impasses de ordem estética e, com tais respostas, reencontrar se possível o caminho da expressão. Nesse sentido, comecemos por lembrar que logo após finalizar a escrita de A luta corporal, Ferreira Gullar escreveu um outro livro de caráter experimental intitulado Crime na flora ou Ordem e progresso, publicado somente trinta anos depois numa edição

99 independente e que não seria incluída em Toda poesia. Embora não se trate mais da “sintaxe vertiginosa” dos poemas de estreia, onde a exploração do espaço da página em branco parecia ser a forma mais adequada para encontrar a inscrição do poema, reconhece-se que o impasse estético persiste. Segundo o poeta, “era um esforço para voltar a falar” (GULLAR, 2007a, p. 23). Compreendendo-o como um livro de inspiração surrealista, João Luiz Lafetá (2004, p. 510) argumenta que nele já se faziam presentes algumas “obsessões temáticas” do autor. Nas palavras de Ferreira Gullar, trata-se “um texto de desenvolvimento imprevisível, que permitia explorar uma dimensão fascinante da linguagem” (GULLAR, 1986, p. 7) e cuja concepção:

Ocorreu num período de crise, quando tive a impressão de que não mais escreveria poesia. Foi o desfecho de A luta corporal: era minha obsessão fazer uma poesia que não fosse apenas um discurso sobre a realidade mas, ela mesma, uma realidade. E por quê? Porque o discurso implicava injetar no poema conceitos anteriores à experiência presente que desejava expressar; injetava nele o passado, a velhice. No poema “Roçzeiral” (abril, 1953) tentei o salto mortal: explodi a sintaxe e as palavras, e me julguei encurralado. Teria sentido continuar a escrever com os destroços da linguagem? (GULLAR, 1986, pp. 6-7).

É, de regra, um interessante livro, porque representativo não só de uma tentativa de superar o impasse a que havia chegado no anterior, mas também de fazer do poema uma realidade fenomenológica. Considera-se, além disso, a evidente experimentação de temas e formas, bem como a presença de trechos notoriamente extensos, quase narrativos, ao lado de outros cuja disposição das palavras iria ocupar diferentes espaços da página em branco – adiantando as experiências futuras com a poesia concreta. Sobre esse livro, porém, não vamos nos estender, embora não possamos ignorar a presença lírica que já se impõe desde a primeira linha:

eu, sobre o muro castigado, a doença solar nas engrenagens da terra, eu que,

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em silêncio, falo por tua boca, onde trabalhas, verbos, falas em meus lábios na podridão apodrecidos, no brilho do sossego da dentadura que o mito firma de detrás da garganta na poeira cintilante; cabelos de metal, luzidos, o focinho da ascendência noturno, pelas folhas do amor; quem escreve e se pensa outro, em mim, gasta-se comigo, aqui, sobre este muro, ao som da maldição que rompe as terras; olho, ergo as pupilas para o cintilar dos espaços, no dia, o resumo, e de mim, do apoio onde descansa este ser impossível, olhas comigo. Duplicidade oh, coroas que a fortuna oferta e a nossa injustiça desfaz no incêndio oh, tardia tarde tarda, escampa flora de ar de meus ossos acesa à glória de deus. Nos telhados, a luz se cansa, e o olhar se move de dentro das pálpebras na sombra da mecânica a esfera gelada (GULLAR, 2008b, p. 785).

Na sequência, há um interessante livro intitulado O vil metal, em cujos versos reconhecemos uma significativa ampliação do motivo poético, sobretudo quanto ao entendimento da experiência sensível. Na citada obra, o poeta explora novamente o recurso visual das palavras e a interminável busca da realidade material do mundo. Observa-se, não obstante, uma sutil, porém facilmente identificável, diferença em relação ao livro anterior: superado o esgotamento da reflexão a que chegou em A luta corporal, o que importa agora é verbalizar a emoção de um espanto que, para além do corpo, parece expandir-se em direção às coisas e aos seres. Daí perseguir, dentre outras realidades, o “lume desatado” no fruto (GULLAR, 2004b, p. 67) ou, em outros termos, “o incêndio derrubado” na fruteira (GULLAR, 2004b, p. 70); o dia que “se esbaqueia como um pássaro dentro da casa / (ou uma lembrança / dentro da casa)” (GULLAR, 2004b, p. 71); mas também o dia que, “fora da casa”, “mantém solidário / seu corpo de chama e de verdura” (GULLAR, 2004b, p. 77); ou quando inesperadamente a lembrança reacende e, conforme diz o sujeito poético, “Fico ouvindo meu corpo me dizer seu nome / – dos fornos do osso” (GULLAR, 2004b, p. 89). Como vimos, na procura da expressão apropriada que condense a particular experiência com o real, através de um dizer das coisas, de um nomear do mundo, há como que uma necessidade profunda de perseguir um sentido maior para a existência do sujeito. Neste caso, é notória a preocupação em registrar alguns motivos reflexivos desde já muito próximos de uma percepção materialista do real. É o que se depreende, por exemplo, do poema “Vida”, onde se lê:

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Vida,

a minha, a tua, eu poderia dizê-la em duas ou três palavras ou mesmo numa corpo sem falar das amplas horas iluminadas, das exceções, das depressões das missões, dos canteiros destroçados feito a boca que disse a esperança fogo sem adjetivar a pele que rodeia a carne os últimos verões que vivemos a camisa de hidrogênio com que a morte copula (ou a ti, março, rasgado no esqueleto dos santos)

Poderia escrever na pedra meu nome gullar mas eu não sou uma data nem uma trave no quadrante solar Eu escrevo facho nos lábios da poeira lepra vertigem cona qualquer palavra que disfarça e mostra o corpo esmerilado do tempo câncer vento laranjal

(GULLAR, 2004b, p. 90)

São flagrantes as referências à experiência fenomenológica do sujeito, sobretudo se considerarmos os vocábulos “corpo”, “fogo”, “facho” e “vertigem” como representativos dessa experiência. Além disso, é interessante observar que a presença do sujeito se dá aqui, pela primeira vez, por meio de um nome, gullar, situando uma presença lírica cuja existência, longe de se limitar a “uma data” ou a “uma trave no quadrante

102 solar”, persegue o facho de vida que, entre os barulhos do dia, vertiginosamente o sustenta: “o dia / medido mais pelo meu pulso / do que / pelo meu relógio de pulso” (GULLAR, 2004b, p. 334), conforme revelaria depois no poema “Minha medida”, de Na vertigem do dia. Curiosamente, o próximo e derradeiro poema de O vil metal, “Réquiem para Gullar”, repete desde o título essa alusão direta ao nome. A esse poema, já nos referimos no capítulo anterior, e se o retomamos é para dizer agora que dentre as diversas menções à realidade do mundo é predominante nele uma sintaxe do corpo. Esse mesmo corpo que o sujeito poético nega no último verso – “adeus corpo-fátuo” –, ao compreender que “É preciso voltar à natureza.” (GULLAR, 2004b, p. 91). À primeira vista, parece-nos que aqui ele encerra de fato sua luta corporal. Outras saídas, porém, experimentaria o poeta. Concomitante à criação dos poemas de O vil metal, que se deu entre os anos de 1954 e 1960, conceberia os poemas concretos e neoconcretos. Embora numa outra clave interpretativa, tais realizações colocaram-se novamente como possibilidade de experimentar distintos caminhos e simultaneamente dar continuidade à sua trajetória, sinalizando um novo – embora ainda fundado sob o signo da ruptura – horizonte crítico e de direções improváveis. No Brasil, o movimento da arte concreta começa a ganhar força a partir de 1951. Ferreira Gullar, por sua vez, só tomou conhecimento de tal movimento no final de 1954 – mesmo ano em que começou a escrever os poemas de O vil metal – após travar contato com os poetas da revista Noigandres, a saber: Décio Pignatari, Augusto de Campos e Haroldo de Campos, que haviam se interessado pela proposta de A luta corporal. Encontramos uma síntese esclarecedora da poesia concreta no Brasil em Seven faces: brazilian poetry since modernism (1996), especificamente no ensaio “The imperative of invention: concrete poetry and the poetic vanguards”, de Charles A. Perrone. Segundo ele:

Concrete poetry in Brazil developed in three stages. The first (1952- 1956) involved the organization of the self-named Noigandres group by the São Paulo poets Décio Pignatari, Augusto de Campos, and Haroldo de Campos. In this “organic” or “phenomenological” phase, creative texts were still verselike but visual factors and verbal dispersion began to play leading roles. In the second stage, a spatially syntaxed poetic minimalism developed. In this so-called “heroic phase” (1956-1960) –

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the echoes of modernismo are intentional – manifestos were issued and the theory of concrete poetry evolved significantly. This period saw the making of “classical”, “high”, or “orthodox” concrete poetry, texts composed according to rational, “mathematical” principles. More flexible notions of creativity and “invention” prevailed in the third stage, beginning about 1961. The last phase witnessed both definition of social concerns and extreme challenges to the conventions of poetry, as well as intense discord and the emergence of other vanguard groups (PERRONE, 1996, p. 26).

Tal cronologia ajuda-nos a compreender melhor como se deu a adesão de Ferreira Gullar à poesia concreta e, em seguida, como se colocou numa direção contrária a ela. Isto porque, iniciando sua participação quando o movimento estava ainda em sua primeira etapa, abandoná-lo-ia já na segunda etapa a fim de experimentar novos rumos para sua criação. Finalmente, na terceira etapa, enquanto alguns poetas aderiam a outros movimentos, ele, após uma série de experimentos formais, esgotava suas tentativas com a deflagração do Poema enterrado. Entretanto, se nos ativermos por enquanto na sua experiência com a poesia concreta, parecer-nos-á que a natureza plástica e visual desta foi determinante para a iniciação do poeta, que nela terá reconhecido alguma afinidade com o que até então havia experimentado. O interesse de desvencilhar-se da linguagem preestabelecida, por exemplo, existia também entre os poetas da revisa Noigandres. Como esclarece Ferreira Gullar: “Eles falavam de um ‘novo verso’, enquanto eu, que vinha da implosão da linguagem, propunha a superação da ‘sintaxe unidirecional’, ou seja, a busca de uma nova estruturação da linguagem verbal” (GULLAR, 1997-98, p. 134). No seu entender, porém, não se tratava de um novo verso, mas de uma nova sintaxe, a visual, de maneira que “a palavra isolada na página era, para mim, a fala brotando no silêncio” (GULLAR, 2010a, p. 152). Nascem daí os poemas “casulo”, “vermelho”, “girassol” – que sugeria um novo modo de ler, em espiral – e “verde erva” – no qual a palavra ‘verde’ se repete doze vezes formando simultaneamente um quadrado, para, ao final, dela sair a palavra ‘erva’. Esse poema, disse depois Ferreira Gullar, “nasceu da evocação da praça central da cidade de Alcântara, no Maranhão, que visitara em 1950, quando quase ninguém morava lá; tive a sensação de que a erva que ocupava toda aquela praça crescia ali para ninguém” (GULLAR, 2007a, pp. 29 e 32).

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De maneira geral, nos poemas aqui citados há uma série de vocábulos cuja sintaxe mais próxima da realidade material orienta a leitura. Revelam também, e novamente, um pensamento da memória ao trazer a lume imagens que fizeram parte da infância do poeta: “mar”, “azul”, “olho”, “boca”, “casa”, “lâmina”, “sol”, “laranja”, “girafa”, “faro”, “farol”, “verde”, “açúcar”, “fruta”, “prata”, “fogo”, “árvore”, “erva”, “vermelho”, “ver”, “cão”, “flor”. Mais uma vez, essas mesmas imagens revelam o interesse do poeta numa experiência que, embora mais próxima de uma perspectiva óptica e visual, não dispensasse o discurso e a subjetividade. Daí Ferreira Gullar não demorar para perceber algumas divergências entre suas ideias e as do grupo de São Paulo, considerando como fundamental a que “residia no modo de ver a poesia que, neles, era marcadamente objetivista, racionalizante, construtivista, enquanto em mim era subjetiva, existencial e intuitiva” (GULLAR, 1997-98, pp. 132-134). Uma segunda divergência estaria, ainda segundo ele, no caráter construtivo do poema, pois, enquanto a preocupação dos poetas paulistas resumia-se ao nível espacial das palavras, nele estava mais ligada à tentativa de “explorar a duração da palavra, sua irradiação semântico-fonética no silêncio da página e sempre mantendo referência a alguma experiência vivida” (GULLAR, 1997-98, p. 134). Por isso seu poema O formigueiro, “precursor do livro-poema”, concilia “o discurso linear com a espacialização da palavra, isolada na página” (GULLAR, 2007a, p. 23). Suas cinco primeiras páginas foram apresentadas na Exposição Nacional de Arte Concreta, em dezembro de 1956 – o poema completo, com 50 páginas, só foi editado em 1991. É inclusive após essa Exposição que Gullar iria publicar um artigo no Jornal do Brasil, referindo-se aos artistas paulistas como mais “cerebrais”, enquanto que os artistas cariocas eram, por sua vez, mais “intuitivos”. Do poema, resta ainda dizer que opera um interessante movimento: abre-se com o vocábulo “formiga”, porém este “se desintegra em seus elementos (letras) e se reintegra em nova forma, ditada pelo aproveitamento das letras na formação simultânea de outras palavras”. Aliás, “com este poema se teria tentado uma transfiguração do objeto verbal independentemente da situação da palavra na frase, isto é, uma transformação interna da palavra. Em lugar da transfiguração da linguagem poética usual, que age com o som sobre

105 o sentido, uso os elementos visuais da palavra. Tudo aqui se passa no silêncio” (GULLAR, 2007a, p. 75). Cada vez mais consciente das distâncias estéticas entre ele e os poetas paulistas – sobretudo quando estes lançaram, em 1957, a tese “Da fenomenologia da composição à matemática da composição” –, Ferreira Gullar decidiu romper com o grupo. A isto se deveu também a descoberta do pensamento filosófico de Merleau-Ponty que lhe serviu “de apoio para pensar sobre o papel que a intuição criativa devia ter nas artes plásticas e em qualquer outra manifestação artística” (GULLAR, 2013, p. 118). A saída para o impasse colocava-se de imediato ao poeta, que a compreendeu nas seguintes palavras: “A arte concreta realmente esgotou-se dentro de seus princípios, mas da experiência acumulada nasceu uma nova perspectiva que reafirma a arte construtiva noutro plano e com inegável atualidade” (GULLAR, 2015a, p. 204). Tal perspectiva, era a experiência neoconcreta que, compreendendo os anos de 1959 e 1961, surgiu inicialmente como possibilidade de traçar um novo caminho para a arte brasileira, em “busca de uma significação mais profunda, mais complexa” (GULLAR, 1999, p. 257). Desse modo, “já não se trata mais de fazer uma escultura, fazer um quadro, fazer um poema, mas de utilizar os elementos expressivos – quaisquer que sejam – para dar forma a um conhecimento novo do mundo” (GULLAR, 2015a, p. 188). Trabalhando, além disso, com a ideia de tempo como duração, e não mais entendendo a obra de arte “como máquina ou como objeto” (GULLAR, 1999, p. 246), a arte neoconcreta queria criar caminhos possíveis à percepção, trazendo de volta a discussão da subjetividade ao centro da experiência artística. Não se tratava, porém, ainda segundo Ferreira Gullar, de

[...] fugir a toda e qualquer objetividade para se lançarem no caos subjetivo. Mas, na verdade, refutando a objetividade exterior ao indivíduo, afirmam uma objetividade mais profunda resultante da íntima integração das faculdades mentais e sensoriais do homem. Apenas rejeitam o primado da razão sobre a sensibilidade, para colocar a percepção estética (percepção da forma) como uma faculdade capaz de apreender e formular, sinteticamente, as complexas experiências humanas. E se assim pensam, é por terem do corpo a noção de totalidade simbólica e simbolizadora, que a tudo apreende como significação e a toda significação reage e transfere (GULLAR, 1999, pp. 246-247).

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Daí ter fundamentalmente como viés teórico a fenomenologia de Maurice Merleau-Ponty. A esse respeito, reconheceu o poeta em texto intitulado “Barroco: olhar e vertigem” que:

Um filósofo que influiu muito na minha maneira de abordar essas questões foi Merleau-Ponty. Todo mundo que me conhece sabe disso, inclusive na época do neoconcretismo, a base filosófica do neoconcretismo decorre, se apóia amplamente na visão do Merleau- Ponty, porque ele tem de fato uma visão do problema da percepção que é muito próxima da arte. E eu me atrevo a dizer, especialmente da minha maneira de ver a arte, sempre como descoberta. A razão pela qual eu discordava do movimento concretista era exatamente porque eu não via ali a colocação do olhar, da visão, da percepção como um instrumento de descoberta e transformação da realidade e sim como uma coisa pronta que se fosse usar (GULLAR, 1988, p. 217).

Mais ligado, portanto, aos valores ontológicos e à concepção do leitor como sujeito participante, o Neoconcretismo “rompeu com o espaço virtual da obra e chamou o espectador à participação ativa na obra” (GULLAR, 2012, p. 53) numa experiência que se quer, antes de tudo, fenomenológica. Desse ponto de vista, explica-nos o Manifesto Neoconcreto, assinado em 1959 por Ferreira Gullar, Amilcar de Castro, Franz Weissmann, Lygia Clark, Lygia Pape, Reynaldo Jardim e Theon Spanudis, cujo objetivo basilar era o de indicar as principais diretrizes desse movimento:

Não concebemos a obra de arte nem como “máquina” nem como “objeto”, mas como um quasi-corpus, isto é, um ser cuja realidade não se esgota nas relações exteriores de seus elementos; um ser que, decomponível em partes pela análise, só se dá plenamente à abordagem direta, fenomenológica (GULLAR apud Ronaldo BRITO, 1999, p. 10).

Ou ainda:

A página na poesia neoconcreta é a espacialização do tempo verbal: é pausa, silêncio, tempo. Não se trata, evidentemente, de voltar ao

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conceito de tempo da poesia discursiva, porque enquanto nesta a linguagem flui em sucessão, na poesia neoconcreta a linguagem se abre em duração (GULLAR apud BRITO, 1999, p. 11).

Em março de 1959, mesmo ano da deflagração do movimento, acontece a I Exposição Neoconcreta. Sob organização de Ferreira Gullar e Reinaldo Jardim, teve lugar no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Quanto aos que integraram a mostra, muitos deles eram artistas concretos. A diferença é que agora propunham a participação do leitor e do próprio agir do corpo na obra, isto é, a experiência fenomenológica do sujeito que sai da contemplação para a participação. Dentre outras obras, essa atitude é reconhecível nos Bichos e nas Proposições sensoriais, de Lygia Clark, bem como nos relevos de Hélio Oiticica que levavam o espectador à “participação” e à “contemplação estética”. Retomemos algumas observações de Ferreira Gullar sobre os não-objetos de Lygia Clark:

O espectador – que já então não é apenas o espectador imóvel – é chamado a participar ativamente da obra, que não se esgota, que não se entrega totalmente, no mero ato contemplativo: a obra precisa dele para se revelar em toda a sua extensão. Mas aquela estrutura móvel possui uma ordem interna, exigências, e por isso não bastará o simples movimento mecânico da mão para revelá-la. Ela exige do espectador uma participação integral, uma vontade de conhecimento e apreensão (GULLAR, 1999, p. 256).

Acompanhando essas experiências, destaca-se a confecção dos livros-poemas – três no total – de Ferreira Gullar, nos quais a ideia do manuseio – bem diferente da “organização meramente visual e mecânica” da arte concreta – estava agora no centro da atividade criadora, o que significa dizer que era predominantemente necessária a ação da mão do leitor para que a obra de fato se realizasse. Relativamente às palavras, o que se vê é mais uma vez a motivação em “acentuar o vazio entre elas” (GULLAR, 2010a, p. 152), e que surgiu após a publicação

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[...] no “Suplemento Dominical” do Jornal do Brasil de um poema concreto que, para se realizar de fato, obrigava o leitor a ler, seguidamente, a palavra "verde", que se repetia até explodir na palavra "erva". Só que o leitor, ao perceber a repetição, não fazia a leitura prevista, por desnecessária. Esse fracasso me levou a inventar um poema escrito, palavra a palavra, no verso das páginas e a cortá-las, conforme a necessidade do poema (GULLAR, 2016, p. 151).

Segundo Ferreira Gullar, esse momento compreendia também um pensar sobre a linguagem e seu avesso, revelado ao leitor – agora participante ativo desse processo – no momento mesmo da ação da mão no virar das páginas do livro. Seu primeiro livro-poema surgiu, inclusive, desse interesse de criar um poema que obrigasse o leitor a ler palavra por palavra. Vale lembrar, ainda, que a criação dos livros-poemas foi fundamental para a criação dos Bichos, de Lygia Clark, um dos importantes nomes do movimento neoconcreto, descrita por Ferreira Gullar como uma “artista de personalidade inquieta e fascinada pela possibilidade de abrir novos caminhos à expressão” (GULLAR, 2003, p. 144). Aliás, de caráter inclassificável, os Bichos “marcam o ponto culminante de sua experiência estética e um dos momentos mais significativos da arte brasileira contemporânea” (GULLAR, 2003, p. 145). Ocupando-se ainda de tal obra, Ferreira Gullar reconhece que, ao lado de algumas obras de outros artistas, tentou defini-la com o termo “não-objeto”, escrevendo sobre ele uma teoria: “Com ele procurei definir a especificidade da arte neoconcreta que, tendo reduzido a expressão artística a seu suporte material, buscava transcendê-lo sem se valer dos recursos tradicionalmente usados pelos pintores e escultores modernos”. Na sequência, ao falar da “substituição da ação metafórica (pintar) pela ação real (cortar, seccionar) que produz os Bichos” (GULLAR, 2003, p. 146), o poeta acrescenta:

Essa mobilidade subverte a relação espectador/obra-de-arte. O espectador já não merece esse nome porque ele agora não apenas vê a obra; ele age sobre ela: a sua ação a transforma, a completa, a desvela. O Bicho está diante de ti; ele é uma oferta e uma solicitação, uma instigação. Ele se oferece ao teu olhar mas, ao mesmo tempo, não se entrega inteiramente a ele: exige a tua ação, a tua participação efetiva para se mostrar, se completar. [...] o resultado do passo dado por Lygia Clark numa direção inesperada e até ali não entrevista por nenhum outro

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artista: a redescoberta do espaço não mais como o lugar onde as formas estão mas o lugar onde as formas se produzem e produzem o lugar. A unidade dialética da forma e do espaço deixa de ser aqui um conceito para se tornar experiência efetiva – revelação poética. Uma contribuição da brasileira à arte de nossa época (GULLAR, 2003, p. 147).

Ora, tal compreensão pode ser estendida à sua própria poesia, considerando-se que após experimentar uma série de tentativas viria a estrutura tridimensional dos Poemas espaciais, são eles: Ara, Lembra, Pássaro, Era e Não. O interesse maior destes poemas é a “participação do espectador na obra”, concepção que Gullar reconheceu ter nascido com o livro-poema, que é, por si mesmo, um objeto manuseável, embora já desde o Neoconcretismo essa intenção já se fizesse notar. Como por exemplo, ao trabalhar o silêncio entre uma palavra e outra, como se esse silêncio fosse uma espécie de “tempo interior”, que não havia na poesia concreta. Mas esses poemas espaciais falam também da infância do poeta, e isto por intermédio de algumas imagens muito próximas das que encontramos nos poemas concretos do autor. Inclusive, se retomarmos o que já dissemos sobre uma interferência da memória que perpassa esse ciclo experimental, chama especialmente a nossa atenção o poema “Lembra”, pois se nele a temporalidade do espanto é breve, no próprio agir do corpo na obra, a experiência a que chamava era duradoura, isto é, a convocação da memória. Mas há, entretanto, aquele que seria, digamos assim, o momento-ápice desse combativo e radical itinerário. A ele o poeta iria denominar Poema enterrado (1960). Primeiramente desenhado e publicado no Suplemento Literário do Jornal do Brasil, a ideia central do poema era a de promover a participação total do leitor na obra, investindo nela significados através da ação de seu próprio corpo – novamente a filosofia de Merleau-Ponty. Nas palavras de Ferreira Gullar:

Consistia em uma sala de 2x2m (mais tarde alterei para 3x3m), construída no subsolo. O leitor – se é que ainda podemos designá-lo por este nome – desceria por uma escada, abriria a porta do poema e entraria nele. Ao centro da sala, iluminada com luz fluorescente, encontraria um cubo vermelho de 50cm de lado, que ergueria para encontrar, sob ele, um cubo verde de 30 cm de lado; sob este cubo,

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descobriria, ao erguê-lo, outro cubo, bem menor, de 10 cm de lado. Na face deste cubo que estaria voltada para o chão, ele leria, ao levantá-lo, a palavra rejuvenesça (GULLAR, 2007a, p. 60).

Curiosamente, e em contraste com a palavra que o poema esconde (“rejuvenesça”), o tema da morte volta já no próprio título do poema, trabalhando aqui com a ideia de “revolver” a terra para descobrir nela o inominável. O poema foi executado, sem sucesso, por Ferreira Gullar e mais um grupo de artistas neoconcretistas, que se reuniram na casa do pai do artista Hélio Oiticica, na Gávea. Uma chuva, porém, alagou e destruiu o poema, levando Ferreira Gullar a dar por encerrada sua “aventura poética”. Em síntese, estas foram as saídas estéticas que o poeta encontrou quando, por diversas vezes, chegou ao limite da reflexão. Afinal, à medida em que a experiência anterior se esgotava, era-lhe necessário engendrar uma nova experiência. Isso se estende inclusive a todos os artistas que aderiram ao movimento: “Vindos de experiências pessoais, até certo ponto isoladas, mas trabalhando as mesmas proposições gerais da arte concreta, os artistas que integram esse movimento encontraram-se, em certo ponto, pela afinidade das soluções que iam descobrindo” (GULLAR, 1999, p. 244). Cabe observar, por último, que com relação à estreia do autor, a experiência desse ciclo experimental inaugura novas questões. Pode-se dizer até mesmo que em Ferreira Gullar desconstruir a linguagem, foi, contraditoriamente uma forma de repensá-la e/ou de reconstruí-la a partir de uma nova clave reflexiva, considerando que por intermédio desses impasses iniciais, o poeta iria encontrar caminhos possíveis à expressão, através de um discurso cada vez mais refletido e apurado. No tocante aos impasses e aspirações que, mediante essas experimentações formais estavam agora no centro das preocupações do poeta, nada mais havia daquela “sintaxe vertiginosa” de A luta corporal. O que se observa aqui, pelo contrário, é desde uma certa – porém já latente e definitiva – interferência da memória até a sugestão do próprio agir do corpo na obra. Em suma, o que se nota é que mesmo engendrando experiências outras, a questão da subjetividade não sai de cena. É claro que de uma maneira difusa, isto é, mais pressentida do que necessariamente exposta em meio às

111 experimentações da linguagem, mas ainda assim clara e definitivamente atrelada a uma experiência perceptiva da realidade.

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4. O SUJEITO DUAL

Todo outro é um outro eu mesmo.

Maurice Merleau-Ponty

Se o movimento de expansão do sujeito lírico comporta diferentes acepções na poesia de Ferreira Gullar, três delas despertam nosso interesse: quando considera, por exemplo, a linguagem como um corpo outro, isto se dá no centro de uma luta entre seu próprio corpo e a necessidade de agregar sentido a um mundo aparentemente sem sentido. Quando, por sua vez, abarca o sujeito na urbe, a figura desse outro é reconhecida não somente nos indivíduos que ali transitam, mas também nele mesmo que se torna um outro a perceber a cidade. Por fim, quando do vertiginoso encontro com a realidade material do mundo, mediante a experiência sensível, observa-se uma espécie de reconhecimento entre sujeito e objeto contemplado. Não obstante a existência de outras reflexões que investem na psicologia do sujeito, as que aqui citamos acompanham perfeitamente os objetivos deste trabalho. Por isso, se no capítulo anterior já nos ocupamos das questões da linguagem, nossa intenção agora é atentarmos para o segundo aspecto, isto é, o que acompanha a ideia do eu na urbe como motivo reflexivo que mobiliza a discussão da própria subjetividade. Aliás, não só problematiza essa relação com a alteridade, mas compreende o próprio sujeito como um outro. A nosso ver, essa dupla orientação, quando considerada no âmbito da trajetória do autor, representa uma nova tomada de posição face ao problema da poesia. De fato, após mais de uma década de experimentações formais da linguagem, o poeta iria, à força das respostas inconclusas a que chegava ao final de cada experiência, partir de uma perspectiva completamente distinta. Não se tratava mais de insistir na procura de um real que se interroga na aniquilação da linguagem. O que o preocupava, em verdade, era perseguir uma realidade outra, a realidade do social e do coletivo.

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No tocante à problemática do sujeito, observa-se do mesmo modo a inscrição de uma nova persona poética, pois se a subjetividade figurara outrora no âmbito de uma realidade incômoda, porque incomunicável, não pode agora ser entendida fora de um pensamento que em certo aspecto não mais separa o eu do outro. Daí o sujeito lírico tomar conhecimento da condição dual de sua existência, movendo-se entre problemas individuais e coletivos (eu/outro), mas também entre espaços (dentro/fora) e tempos distintos (passado/presente). Em geral, uma necessidade em designar espaços concretos, como se precisasse nomeá-los, e de combinar percepções distintas numa mesma realidade, ao mesmo tempo que investe na exploração da dualidade do sujeito. Pode-se dizer, além disso, que tal atitude mantém a reflexão inicial do eu “entre coisas”, porém apontando agora para a necessidade de pensar o eu entre os homens. Talvez, por isso, a percepção do espaço urbano tenha se revelado perfeitamente propícia à deflagração dessa experiência, considerando as múltiplas subjetividades que nele coexistem, sem necessariamente suplantar o ser, além da possibilidade de combinar uma realidade à outra, isto é, a realidade do particular à realidade do coletivo, entendendo-as como complementares entre si. Antes, porém, de observar tais dualidades, é interessante ver que essa mudança de perspectiva está novamente atrelada a uma mudança propriamente física. Como vimos, o deslocamento do poeta para o Rio de Janeiro em 1951 fora fundamental para determinar os rumos de sua escrita inicial. Esse segundo momento, por sua vez, dá-se em consonância com sua ida, em 1961, para a cidade de Brasília, em razão do convite que recebeu para exercer o cargo de diretor de sua Fundação Cultural. Esse fato foi relembrado por Ariel Jiménez (2013, p. 154) em conversa com Ferreira Gullar como uma espécie de “deslocamento geográfico” que acompanhou essa nova orientação poética, muito embora, segundo o poeta, ela se daria de qualquer forma devido a seu afastamento cada vez mais definitivo das vanguardas. Não é nossa intenção desenvolver aqui uma reflexão sobre essa experiência. Contudo, é relevante apontar que em Brasília Ferreira Gullar manteve-se a par dos problemas sociais e políticos do país, e, portanto, as suas realizações desse período mostram-se como reações estéticas aos problemas de seu tempo. Além disso, a descoberta da teoria marxista iria somar-se a esse momento, resultando fulcral para uma concepção da lírica assim descrita pelo poeta: “expressão da realidade, da experiência vivida, real,

114 dos meus sofrimentos, minhas loucuras, com a linguagem de todo mundo, porque esse é que é o grande problema” (GULLAR, 1989, p. 133). A primeira reação a esse pensamento deu-se com a escrita, entre 1962 e 1967, dos Romances de cordel, ocasião em que Ferreira Gullar, novamente residindo na cidade do Rio de Janeiro, esteve ainda envolvido em questões de ordem política, agora como presidente do Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE). Nestas realizações, iria retomar a “linguagem banal, mas evidentemente politizada” (GULLAR, 1989, p. 49) – momento em que sua poesia incorre na quase definitiva suspensão do espanto, exatamente por esses textos serem frutos de uma situação política e de intenções ideológicas muito específicas. Ao rever muito tempo depois essa experiência, o poeta afirmaria que por um momento chegou a pensar na possibilidade de não incluir aqueles poemas no conjunto de sua obra reunida. No entanto, acabou por reconsiderar tal intenção, uma vez que tais textos, se por um lado eram sintomas da aguda realidade política do país, por outro lado davam provas de um momento muito peculiar de sua trajetória, a partir do qual se esboçaria a possibilidade de superação da postura radical e revolucionária a que havia chegado com as vanguardas:

A história da minha poesia está toda ligada àquela luta. Então eu não poderia, naquele momento, expurgar de minha obra poética reunida aqueles poemas de cordel. [...]. Sei perfeitamente que esses poemas politicamente comprometidos não têm a qualidade dos outros, mas, ao mesmo tempo, eles fazem parte da história da minha poesia. Reconheço que, depois daquela poesia desidratada do neoconcretismo, daquele despojamento verbal a que submeti minha linguagem, esses poemas de cordel constituem, sob certo aspecto, um retorno à linguagem da poesia que ouvi quando criança nas feiras e nos mercados de São Luís. Mas não há dúvida de que, do ponto de vista da qualidade literária, eles teriam que ser excluídos de Toda poesia. (GULLAR, 1998b, p. 416)

Assinando o prefácio de sua Poesia completa, teatro e prosa (2008), Antonio Carlos Secchin, ao referir-se a essa poesia como “a mais explicitamente política de Gullar”, acrescentou:

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Numa direção radicalmente oposta ao experimentalismo de linhagem concretista, Gullar mergulhava agora nas fontes populares e iletradas da poesia, recuperando a tradição dos “cantadores” nordestinos, com seus poemas narrativos vazados em linguagem simples e apoiados em métrica e rimas de forte apelo mnemônico. (SECCHIN, 2008, p. xxi)

Nessa mesma direção, é sintomática a assertiva do crítico João Luiz Lafetá, que a compreendeu nas seguintes palavras:

[...] trata-se de uma passagem importante: ameaçado pelo impasse do silêncio, a que o levaram suas pesquisas vanguardistas dos anos 1950 (em busca da expressão imaculada da subjetividade), o poeta (re)encontra na visão dos males sociais a fenda que poderia reconduzi- lo à linguagem comunicativa e à alteridade humana. Tratava-se, então, de descrever poeticamente o outro (de classe), e de se fazer por ele compreendido (LAFETÁ, 2004, p. 229).

Do mesmo modo, a escrita naquele momento permitiria ao poeta reavaliar o sentido das indagações que procurou responder (sem sucesso) no início de sua trajetória. De qualquer maneira, “já não cabia fazer aquelas perguntas: onde está a essência da poesia? Onde está a essência do ser? Já não estava preocupado com isso” (GULLAR, 1989, p. 132). Por outro lado, essas indagações seriam determinantes para a tônica política e revolucionária agora dominante e que a própria realidade conformou. Aliás, para dizer novamente com Ferreira Gullar:

A própria experiência de vanguarda, que exprime um inconformismo limitado ao recinto das formas literárias, quando levada às últimas consequências ultrapassa os limites do âmbito literário e recoloca o problema existencial e político. O mesmo inconformismo literário que conduz a formas extremas de alienação como “joycismo” ou o nouveau roman, pode conduzir a um reencontro com a realidade em termos concretos (GULLAR, 2010a, p. 123).

No caso de Gullar, a experiência de vanguarda reconduziu-o a uma realidade social e coletiva, passando da extrema incomunicabilidade do início a uma aguda

116 necessidade de comunicabilidade, ou seja, há um movimento que parte do circunscrito espaço de sua individualidade para iluminar problemas exteriores a si, já que agora o sujeito se assume como partícipe do tecido coletivo. Sem nos estendermos em reflexões em torno dos Romances de cordel, concentremos num livro posterior a essa experiência, intitulado Dentro da noite veloz, cujos poemas, escritos entre 1962 e 1975, explanam muito bem essas questões. Trata-se de poemas mais bem construídos e de maior alcance nas suas reflexões. De maneira geral, reconhece-se neles a dimensão profunda de uma experiência poética em conformidade com um momento muito peculiar, por isso abarcar questões que estavam na ordem do dia. Nosso interesse, entretanto, recai menos sobre esse viés analítico e mais na direção do objetivo central deste capítulo: a discussão da condição dual do sujeito, vazada em imagens que nos revelam simultaneamente uma percepção do corpo, do espaço e do tempo.

4.1 O eu e o outro

Quando se busca identificar os motivos que concorrem na discussão da dualidade entre o eu e o outro na poesia de Ferreira Gullar, o que de imediato chama a atenção é o fato dessa discussão vir acompanhada por uma escrita da cidade. Curiosamente, é só quando o poeta se volta para os problemas políticos e sociais que o espaço urbano se desenha com mais nitidez em sua poesia. Nosso argumento é de que nele o poeta encontrou caminhos possíveis para a discussão da alteridade, investindo simultaneamente numa sensibilidade ética e na reflexão da própria identidade, ao compreender-se como pertencente ao tecido comunitário, coletivo, por oposição à verdade de si mesmo, individual. Comecemos pelo poema de abertura do livro Dentro da noite veloz, que, a começar pelo título, “Meu povo, meu poema”, nos coloca no centro daquelas questões. Já de início, podemos dizer que se trata, sem dúvida, de uma nova perspectiva do problema poético, pois, se em A luta corporal, como vimos no capítulo anterior: “[...] HÁ

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UM HOMEM PERDENDO-SE / DO FOGO E HÁ UM HOMEM CRESCIDO / PARA O FOGO / E QUE SE QUEIMA / SÓ NOS FALSOS E ESCASSOS INCÊNDIOS DA SINTAXE.” (GULLAR, 2004b, p. 59); agora, ao contrário:

Meu povo e meu poema crescem juntos como cresce no fruto a árvore nova

No povo meu poema vai nascendo como no canavial nasce verde o açúcar

No povo meu poema está maduro como o sol na garganta do futuro

Meu povo em meu poema se reflete como a espiga se funde em terra fértil

Ao povo seu poema aqui devolvo menos com quem canta do que planta

(GULLAR, 2004, p. 155)

Percebe-se bem a mudança de perspectiva. No centro dessa escrita, a compreensão do eu e do outro se dá agora de maneira simultânea, numa reflexão que acompanha ao mesmo tempo a discussão do sujeito e da alteridade. Sobre esse mesmo poema, advertiu Beth Brait (1981, p. 44): “Aqui, como em outros textos, deve-se observar a insistência do poeta em vincular sua produção ao povo. Essa postura tem lhe custado duras críticas, pois muitos leitores veem nessa atitude apenas uma forma demagógica de se expressar através de versos”. A nosso ver, tal atitude representa uma coerência com as pesquisas anteriores, sobretudo no que se refere à “pesquisa subjetiva”, conforme entendeu João Luiz Lafetá (2004, p. 150), que aqui reaparece sob uma nova clave reflexiva. Se há mudanças em relação às experiências anteriores, e as há em definitivo, estas se deram na dinâmica do tempo histórico, a que os poemas não se furtam, ao expressarem uma visão de mundo por

118 meio de um sujeito reagindo esteticamente aos problemas de seu tempo. Simultaneamente, há um sentimento profundo do outro, reflexo daquele “humanismo fundamental” que (2008, p. xlii) identificou como inerente a essa poesia. A compreensão, no entanto, mais aguda desse momento, encontramos nas palavras do próprio Ferreira Gullar:

Trata-se, de algum modo, de um recomeço mas minha preocupação naquele momento não era fazer literatura e sim usá-la como instrumento de conscientização política. Esse reencontro com a realidade social e com a fala que cuida das questões do dia a dia (fome, trabalho, luta de classes, etc.) obriga-me mais tarde a operar a alquimia poética em cima de uma linguagem banal que incorpora inclusive termos da realidade política. A assimilação desse vocabulário aliada à necessidade de realizar uma poesia estreitamente vinculada ao mundo real contribuíram para a reconstituição da linguagem poética num plano diferente daquele em que a elaborava na época de A luta corporal (GULLAR, 1997-98, p. 135).

Em relação à obra de estreia, ao lado dessas mudanças no plano discursivo dos poemas e “à necessidade de realizar uma poesia estreitamente vinculada ao mundo real”, reconhecemos também uma redefinição do espaço perceptivo. Demonstra agora o poeta uma clara preferência pela urbe, espaço onde rapidamente flui a existência humana e o sujeito igualmente se expande e se reconhece. Afinal, ao compor traços psicológicos e afetivos muito bem definidos tal experiência é novamente precedida por uma presença lírica. Assim, a perspectiva distanciada e observadora do início dá lugar a uma postura interventiva do sujeito. Este, mediante seu corpo, não só desse espaço participa, mas também, e principalmente, transforma-o numa estrutura plena de sentidos, refletindo nela suas principais inquietudes e indagações. Isto acontece, por exemplo, ao reconstituir na linguagem as múltiplas realidades percebidas por seu corpo. Vejamos, por exemplo, o poema “Voltas para casa”:

Depois de um dia inteiro de trabalho voltas para casa, cansado.

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Já é noite em teu bairro e as mocinhas de calças compridas desceram para a porta após o jantar. Os namorados vão ao cinema. As empregadas surgem das entradas de serviço. Caminhas na calçada escura.

Consumiste o dia numa sala fechada, lidando com papéis e números. Telefonaste, escreveste, irritações e simpatias surgiram e desapareceram no fluir dessas horas. E caminhas, agora, vazio, como se nada acontecera.

De fato, nada te acontece, exceto talvez o estranho que te pisa o pé no elevador e se desculpa. Desde quando tua vida parou? Fala dos desastres, dos crimes, dos adultérios, mas são leitura de jornal. Fremes ao pensar em certo filme que viste: a vida, a vida é bela!

A vida é bela mas não a tua. Não a de Pedro, de Antônio, de Jorge, de Júlio, de Lúcia, de Míriam, de Luísa...

Às vezes pensas com nostalgia nos anos de guerra, o horizonte de pólvora, o cabrito. Mas a guerra agora é outra. Caminhas.

Tua casa está ali. A janela acesa no terceiro andar. As crianças ainda não dormiram Terá o mundo de ser para elas Este logro? Não será teu dever mudá-lo?

Apertas o botão da cigarra. Amanhã ainda não será outro dia.

(GULLAR, 2004b, pp. 160-161)

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Quando se tomam esses versos no sentido de compreender o espaço da urbe como inseparável de uma discussão da alteridade, reconhecemos o quão essencial eles são para a compreensão da condição dual do sujeito. Este é um verdadeiro flâneur, “com seu passo lento e sem direção, ele atravessa a cidade como alguém que contempla um panorama, observando calmamente os tipos e os lugares que cruza em seu caminho” (PEIXOTO, 1996, p. 83). No poema, a cena transcorre no ambiente do bairro onde mora, em pleno funcionamento: as “mocinhas” que “desceram para a porta / após o jantar”, os “namorados” que “vão ao cinema”, as “empregadas” que “surgem das entradas de serviço” e ele, também um outro a caminhar pela “calçada escura”. Vazio de utopias, com a vida a consumir-se “numa sala fechada, / lidando com papéis e números”, o sujeito se vê numa sensação de nostalgia e imutabilidade: “Desde quando / tua vida parou?” Nota-se já aqui uma aguda necessidade de expansão, nomeadamente quando, na quarta estrofe, agrega sua realidade à de muitos: “A vida é bela / mas não a tua. Não a de Pedro, / de Antônio, de Jorge, de Júlio, / de Lúcia, de Míriam, de Luísa...”. Não obstante, mesmo que o queira (“Caminhas”) e a urgência da mudança o assome, perguntando-se se, do mundo, “não será / teu dever mudá-lo?”, não consegue avançar, não pode avançar: “Apertas o botão da cigarra. / Amanhã ainda não será outro dia.”. Acompanhando essa aguda percepção do espaço urbano e, com ele, a explanação de um sentimento muito particular e subjetivo, é revelador o que lemos já nas duas primeiras estrofes de um outro poema, intitulado “Homem comum”:

Sou um homem comum de carne e de memória de osso e esquecimento. Ando a pé, de ônibus, de táxi, de avião e a vida sopra dentro de mim pânica feito a chama de um maçarico e pode subitamente cessar.

Sou como você feito de coisas lembradas e esquecidas rostos e

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mãos, o guarda-sol vermelho ao meio-dia em Pastos-Bons, defuntas alegrias flores passarinhos facho de tarde luminosa nomes que já nem sei bocas bafos bacias bandejas bandeiras bananeiras tudo misturado essa lenha perfumada que se acende e me faz caminhar

(GULLAR, 2004b, p. 167)

No capítulo anterior, falamos de dois eixos reflexivos, corpo e memória, como já muito bem definidos nas experimentações formais da estreia, e, igualmente, nas que se seguiram a elas, e de como esses mesmos eixos foram vão aos poucos se transformando num só movimento: corpo-memória. No poema aqui em questão, ele reaparece de uma maneira mais clara ao reconhecer-se (o sujeito) “um homem comum / de carne e de memória / de osso e de esquecimento”, o que é também uma percepção do duplo, isto é, do que nele é, a um só tempo, “memória” (que se reacende na carne) e “esquecimento” (materializado no osso). Do mesmo modo, reaparece aqui o tema da morte, a morte súbita e insuspeitável. O sujeito que anda “a pé, de ônibus, de táxi, de avião” é o mesmo cuja vida, diz ele, “sopra dentro de mim / pânica / feito a chama de um maçarico / e pode / subitamente / cessar”. Dividido entre “coisas lembradas / e esquecidas”, sente-se profunda e afetivamente envolto numa “lenha perfumada / que se acende / e me faz caminhar”. E que, sobretudo, como diz na terceira estrofe, não vê nenhum sentido na vida, “senão / lutarmos juntos por um mundo melhor.” (GULLAR, 2004b, p. 167), embora reconheça que “[..] a poesia é rara e não comove” (GULLAR, 2004b, p. 168). Sob outra perspectiva, essa percepção do tempo ajuda também a definir uma compreensão cada vez mais clara de certos motivos reflexivos que o poeta a partir de agora privilegia. Para ilustrá-la, passemos já à última estrofe do poema:

Homem comum, igual

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a você, cruzo a Avenida sob a pressão do imperialismo. A sombra do latifúndio mancha a paisagem, turva as águas do mar e a infância nos volta à boca, amarga, suja de lama e de fome. Mas somos muitos milhões de homens comuns e podemos formar uma muralha com nossos corpos de sonho e margaridas.

(GULLAR, 2004b, p. 168)

Interessante observar como o sentimento de ser igual a outros “milhões de homens / comuns”, o coloca não só em tal condição, mas também dilui toda aquela distância entre sujeito e objeto que predominava nos poemas de A luta corporal. Do mesmo modo, chama a atenção a participação reflexiva do autor ao trazer, para o centro da expressão poética, e numa direção totalmente contrária à da experiência anterior, a discussão sobre a luta de classes no Brasil: “a noite ocidental obscenamente acesa / sobre meu país dividido em classes” (GULLAR, 2004b, p. 218). Acerca dos poemas de Dentro da noite veloz, escreveu João Luiz Lafetá:

Pouco a pouco os textos de Dentro da noite veloz vão mostrando uma necessidade crescente de particularizar temas e motivos. Já não se toma mais em abstrato o outro. De repente, a figura central dos poemas se torna o próprio poeta, vivendo na cidade em que trabalha, e percebendo- se comum, igual ao outro que retorna para casa à noite, “fatigado de mentiras” (LAFETÁ, 2004, p. 233).

Nesse sentido, se a urbe mostrou-se um espaço privilegiado para as reflexões do poeta em sua busca pela alteridade nas coisas mais triviais do dia a dia, digamos que, em síntese, ele dialoga com “toda uma tendência da modernidade poética que não busca a alteridade em experiências limite, ou em algum ponto sublime, mas em experiências quotidianas” (COLLOT, 2006, p. 31). A esse respeito, vale recuperar aqui o poema “Coisas da terra”, onde se lê:

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Todas as coisas de que falo estão na cidade entre o céu e a terra. São todas elas coisas perecíveis e eternas como o teu riso a palavra solidária minha mão aberta ou este esquecido cheiro de cabelo que volta e acende sua flama inesperada no coração de maio.

Todas as coisas de que falo são de carne como o verão e o salário. Mortalmente inseridas no tempo, estão dispersas como o ar no mercado, nas oficinas, nas ruas, nos hotéis de viagem.

São coisas, todas elas, cotidianas, como bocas e mãos, sonhos, greves, denúncias, acidentes do trabalho e do amor. Coisas, de que falam os jornais às vezes tão rudes às vezes tão escuras que mesmo a poesia as ilumina com dificuldade.

Mas é nelas que te vejo pulsando, mundo novo, ainda em estado de soluços e esperança.

(GULLAR, 2004b, p. 174)

Como se vê, a urbe é agora matéria de poesia. Com efeito, as coisas de que o poeta fala “estão na cidade”, “são de carne / como o verão e o salário”. “Mortalmente inseridas no tempo”, descobrem-se no poema, iluminadas, embora algumas delas sejam “às vezes tão rudes / às vezes tão escuras / que mesmo a poesia as ilumina com dificuldade”. Não obstante, entre “coisas perecíveis / e eternas”, o sujeito resiste, tal como esse “mundo novo”, entre “soluços e esperança”. A essa percepção da cidade vem se juntar mais de uma vez uma sensibilidade ética. No poema “O açúcar”, por exemplo, há, por um lado, a representação do sujeito na

124 cidade, numa espécie de desdobramento da subjetividade para um problema político e social: “O branco açúcar que adoçará meu café / nesta manhã de Ipanema” (GULLAR, 2004b, p. 165), mas também, e sobretudo, a denúncia de que: “Em usinas escuras, / homens de vida amarga / e dura / produziram este açúcar / branco e puro / com que adoço meu café esta manhã em Ipanema.” (GULLAR, 2004b, p. 166). Por outro lado, em “Por você por mim”, o poeta relembra a guerra do Vietnã, quando “nos campos / da morte, o motor / da vida gira ao contrário, não / para sustentar a cor da irís, / a tessitura da carne, gira / ao contrário, a desfazer a vida, o maravilhoso aparelho / do corpo”. Enquanto na cidade do Rio, “é dia feito em Botafogo” e, aparentemente, “nenhuma ameaça pesa sobre a cidade” (GULLAR, 2004b, p. 185). Sem se esquecer ainda, em particular, como fica claro no poema “Vestibular”, daqueles “que somem / ou surgem como cometas ardendo em sangue, nestas noites, / nestes dias amargos.” (GULLAR, 2004b, p. 192). Como sabemos, a concepção, entre 1962 e 1975, dos poemas de Dentro da noite veloz coincide com o doloroso e opressivo contexto da ditadura militar. Por isso mesmo, mais de uma vez reconhecemos suas ressonâncias nos poemas: seja na negação de uma postura imparcial por parte do sujeito lírico, como se nota em “Boato”: “Como ser neutro, fazer / um poema neutro / se há uma ditadura no país / e estou infeliz?” (GULLAR, 2004b, p. 190); seja na denúncia dessa noite que, conforme o poema “Dentro da noite veloz”, “é mais veloz / (e mais demorada) / nos cárceres / a noite latino-americana / entre interrogatórios / e torturas / (lá fora as violetas) / e mais violenta (a noite) / na cona da ditadura” (GULLAR, 2004b, p. 199). Repercute até mesmo nos títulos dos poemas como, por exemplo, “Maio 1964” e “Agosto 1964”. No primeiro deles, percebe-se uma espécie de denúncia à amarga realidade de muitos: “Mas quantos amigos presos! / quantos em cárceres escuros / onde a tarde fede a urina e terror. / Há muitas famílias sem rumo esta tarde / nos subúrbios de ferro e gás / onde brinca irremida a infância da classe operária.”; enquanto no sujeito poético: “A luta comum me acende o sangue / e me bate no peito / como o coice de uma lembrança.” (GULLAR, 2004b, p. 169). Já no segundo poema, “Ao peso dos impostos, o verso sufoca, / a poesia agora responde a inquérito policial-militar”. Não obstante, assevera o sujeito: “Digo adeus à ilusão / mas não ao mundo. Mas não à vida, / meu reduto e meu reino. / Do salário injusto,

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/ da punição injusta, / da humilhação, da tortura, / do terror, / retiramos algo e com ele construímos um artefato // um poema / uma bandeira” (GULLAR, 2004b, p. 170). É também por abranger esse gesto ético ao lado de uma apurada percepção do ambiente citadino que chama a nossa atenção o poema “A vida bate”, certamente um dos mais emblemáticos do livro. São reveladoras suas estrofes iniciais, uma vez que nos previnem de que:

Não se trata do poema e sim do homem e sua vida – a mentida, a ferida, a consentida vida já ganha e já perdida e ganha outra vez. Não se trata do poema e sim da fome de vida, o sôfrego pulsar entre constelações e embrulhos, entre engulhos. Alguns viajam, vão a Nova York, a Santiago do Chile. Outros ficam mesmo na Rua da Alfândega, detrás de balcões e de guichês. Todos te buscam, facho de vida, escuro e claro, que é mais que a água na grama que o banho no mar, que o beijo na boca, mais que a paixão na cama. Todos te buscam e só alguns te acham. Alguns te acham e te perdem. Outros te acham e não te reconhecem e há os que se perdem por te achar, ó desatino ó verdade, ó fome de vida! O amor é difícil mas pode luzir em qualquer ponto da cidade. E estamos na cidade sob as nuvens e entre as águas azuis.

(GULLAR, 2004b, p. 180)

Já de início, o poeta deixa claro que o sentido geral do poema é o de querer dar voz ao homem e à sua vida. Assim, não se trata mais exclusivamente da obstinada procura

126 da forma apropriada, como em A luta corporal; ao poeta é urgente denunciar agora “a mentida, a ferida, a consentida / vida”. Novamente, há a problemática do outro expressa nessa expansão do sujeito porque, embora igualmente obstinada, a procura agora é distinta: é a esse “facho de vida” que o poeta quer dar voz, embora reconheça que “só alguns te acham. Alguns / te acham e te perdem. / Outros te acham e não te reconhecem / e há os que se perdem por te achar”. Notemos, além disso, que aqui a possibilidade do amor parece ser mais concreta, pois, se em A luta corporal, o sujeito fora enfático ao dizer: “Não te aconselho o amor. O amor / é fácil e triste. Não se ama / no amor, senão / o seu próximo findar.” (GULLAR, 2004b, p. 15); agora, ao contrário, reconhece que “o amor é difícil / mas pode luzir em qualquer ponto da cidade”. Na sequência do poema, a cidade é ainda a esfera central de suas reflexões:

A cidade. Vista do alto ela é fabril e imaginária, se entrega inteira como se estivesse pronta. Vista do alto, com seus bairros e ruas e avenidas, a cidade é o refúgio do homem, pertence a todos e a ninguém. Mas vista de perto, revela o seu túrbido presente, sua carnadura de pânico: as pessoas que vão e vêm que entram e saem, que passam sem rir, sem falar, entre apitos e gases. Ah, o escuro sangue urbano movido a juros.

São pessoas que passam sem falar e estão cheias de vozes e ruínas. És Antônio? És Francisco? És Mariana? Onde escondeste o verde clarão dos dias? Onde escondeste a vida que em teu olhar se apaga mal se acende? E passamos carregados de flores sufocadas.

(GULLAR, 2004b, pp. 180-181)

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Na primeira estrofe, coordenadas espaciotemporais nos dão o traçado da percepção do sujeito. Há, por exemplo, uma compreensão do perto e do distante, isto é, do alto, quando a cidade é, para o sujeito, “fabril e imaginária”, “é o refúgio do homem, pertence a todos e a ninguém”; e, por outro lado, quando, expandido nela, a cidade se revela plural e caótica. Em ambas, um sentimento do vazio que involuntariamente o assoma. Segundo Alcides Villaça, para o sujeito “não é um ponto de vista confortável: vive, precisamente, da inquietude de quem não se fixa nem fora do objeto (para poder formalizá-lo com serena estabilidade) nem dentro dele (para poder se confundir com seu íntimo conteúdo)” (VILLAÇA, 1998, p. 101). De qualquer maneira, são duas possibilidades de compreensão que essa experiência nos dá: por um lado, a perspectiva do “múltiplo”, isto é, das inúmeras realidades que no espaço citadino se entretecem; por outro lado, a percepção emotiva e/ou subjetiva desse mesmo espaço que na sua “carne” o sujeito apreende. Há também um sentimento de estranheza que assoma o sujeito diante da multidão que cruza a cidade. No poema “Pela rua”, por exemplo, a possibilidade do encontro é remota: “Sem qualquer esperança / detenho-me diante de uma vitrina de bolsas / na Avenida Nossa Senhora de Copacabana, domingo, / enquanto o crepúsculo se desata sobre o bairro. / Sem qualquer esperança / te espero. / Na multidão que vai e vem / entra e sai dos bares e cinemas”. À impossibilidade do outro, o sujeito reconhece finalmente que “a cidade é grande / tem quatro milhões de habitantes e tu és uma só”. “Ah, se ao menos fosses mil / disseminada pela cidade.” (GULLAR, 2004b, p. 177). Sob tal aspecto, compreendemos que a atenção ao ambiente citadino revela também um sujeito em tensão, profunda e sensivelmente “encarnado” na matéria-mundo. Para Merleau-Ponty, a centralidade do corpo na experiência perceptiva do mundo explica- se pelo fato de que “visível e móvel, meu corpo conta-se entre as coisas, é uma delas, está preso no tecido do mundo, e sua coesão é a de uma coisa”. “Mas”, continua ele, “dado que se vê e se move, ele mantém as coisas em círculo a seu redor, elas são um anexo ou um prolongamento dele mesmo, estão incrustadas em sua carne, fazem parte de sua definição plena, e o mundo é feito do estofo mesmo do corpo” (MERLEAU-PONTY, 2013, p. 20). Nos versos finais do poema “A vida bate”, a inelutável certeza:

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Mas, dentro, no coração, eu sei, a vida bate. Subterraneamente, a vida bate.

Em Caracas, no Harlem, em Nova Delhi, sob as penas da lei, em teu pulso, a vida bate. E é essa clandestina esperança misturada ao sal do mar que me sustenta esta tarde debruçado à janela de meu quarto em Ipanema na América Latina.

(GULLAR, 2004b, p. 181)

No excerto anterior, observou-se um movimento de expansão do eu por meio do sujeito que percebe a cidade, “as / pessoas que vão e vêm / que entram e saem, que passam / sem rir, sem falar, entre apitos e gases”. Agora, há a expressão de um sentimento subjetivo, a certeza de que “dentro, no coração, / eu sei, / a vida bate”. Como se vê, permanece a “fome / de vida”, “essa clandestina esperança”, que no corpo se alimenta e o sujeito a exterioriza em linguagem. Ou melhor: em versos que, traçando algumas coordenadas do espaço urbano, nos revelam uma vez mais o espaço íntimo do sujeito, “debruçado à janela de meu quarto em Ipanema / na América Latina”, e lucidamente interessado na percepção do tempo presente. Conforme observa Davi Arrigucci Jr. (2010, p. 34), “uma das coisas mais bonitas e significativas da obra toda de Ferreira Gullar, [...], é a reconstrução do destino individual pelo enlace com o destino de muitos, num tempo histórico que tende a separar e aniquilar o indivíduo em sua solidão planetária”. Dois momentos, portanto, que se completam no poema – o individual e o coletivo, o particular e o universal. E que são, aliás, inerentes à “composição lírica” que, segundo Theodor W. Adorno (2003, p. 66), “tem esperança de extrair, da mais irrestrita individuação, o universal”. Nas palavras de Ernst Fischer, por sua vez, diz respeito à própria necessidade do homem de alcançar

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[...], uma plenitude de vida que lhe é fraudada pela individualidade e todas as suas limitações; uma plenitude na direção da qual se orienta quando busca um mundo mais compreensível e mais justo, um mundo que tenha significação. Rebela-se contra o ter de se consumir no quadro da sua vida pessoal, dentro das possibilidades transitórias e limitadas da sua exclusiva personalidade. Quer relacionar-se a alguma coisa mais do que o “Eu”, alguma coisa que, sendo exterior a ele mesmo, não deixe de ser-lhe essencial. [...]; anseia por unir na arte o seu “Eu” limitado com uma existência humana coletiva e por tornar social a sua individualidade (FISCHER, 2014, pp. 12-13).

Em Dentro da noite veloz, essa articulação entre o individual e o coletivo aparece na matéria mesma dos poemas. Nosso interesse, até agora, foi o de acentuar que com essa nova inscrição poética – a articulação dialética entre problemas pessoais e coletivos, bem como a concepção da arte como intervenção transformadora da realidade –, a concepção do sujeito, assim como do horizonte perceptivo, ganha novos e mais bem definidos contornos. Cabe refletir, na sequência, como essa percepção contempla igualmente uma espécie de vertigem do excesso e do “simultâneo” que são, como sabemos, aspectos inerentes à metrópole.

4.2 O dentro e o fora

Como vimos, na poesia de Ferreira Gullar a perspectiva do social e do coletivo orienta uma redefinição do horizonte perceptivo, ao trazer para o centro das reflexões a relação entre o sujeito e o ambiente urbano. Este, como espaço exterior a si e ao mesmo tempo nele englobado, revelou-se propício à expansão do sujeito, não mais entendido na sua individualidade, mas em termos de relação com um fora, com o outro. Surge, assim, uma experiência a um só tempo sensível, ética e poética. Acompanhando essa escrita da cidade, na trama de relações que estabelece entre o eu e o outro, observamos que uma outra dualidade comparece, a saber: a dualidade

130 dentro/fora. Aparentemente, a percepção desses dois espaços está, mais uma vez, intimamente atrelado à abordagem fenomenológica do mundo: o primeiro, “dentro”, evoca geralmente a lembrança do ambiente familiar, afetivo; ao passo que o segundo, “fora”, traz à cena a cidade e suas múltiplas realidades, tudo ao mesmo tempo e em diferentes intensidades, partes que são de um sistema maior, porém ao mesmo tempo encerradas em si mesmas, “em cada corpo em cada / habitante / dentro / de cada coisa / clamando em cada casa / a cidade” (GULLAR, 2004b, p. 211). Acompanhando mais uma vez a necessidade do sujeito de estar “fora de si”, o corpo se expande por todas essas realidades, quer se fazer presente em todas elas. “Instaura-se, assim, uma tensa dialética entre mundo interior e mundo exterior, a ponto de ambos convergirem num mesmo espaço enunciatório” (ROCHA, 2013, p. 194). Além disso, esse sentimento explana uma das mais contundentes inquietudes – sobre a qual já falamos anteriormente – que perpassam a poesia gullariana, a saber: a inquietude do “simultâneo”. Nos poemas de Dentro da noite veloz, por exemplo, ela já se faz notar. É o caso de um poema homônimo, onde, a certa altura, de dentro da realidade do exílio, o sujeito compreende que:

A noite é mais veloz nos trópicos (com seus monturos) na vertigem das folhas na explosão das águas sujas surdas nos pantanais é mais veloz sob a pele da treva, na conspiração de azuis e vermelhos pulsando como vaginas frutos bocas vegetais (confundidos nos sonhos) ou um ramo florido feito um relâmpago parado sobre uma cisterna d’água no escuro

[...]

É mais veloz (e mais demorada) nos cárceres

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a noite latino-americana entre interrogatórios e torturas (lá fora as violetas) e mais violenta (a noite) na cona da ditadura

[...]

até que o dia (de dentro dos monturos) irrompa com seu bastão de turquesa

(GULLAR, 2004b, pp. 199-200, grifo nosso)

Ou, ainda, quando diante de “Uma fotografia aérea”:

Eu devo ter ouvido aquela tarde um avião passar sobre a cidade [...]

eu devo ter ouvido aquela tarde em meu quarto? na sala? no terraço ao lado do quintal? o avião passar sobre a cidade geograficamente desdobrada em si mesma e escondida debaixo dos telhados lá embaixo sob as folhas

lá embaixo no escuro sonoro do capim dentro do verde quente do capim lá junto à noite da terra entre formigas (minha vida!) nos cabelos do ventre e morno do corpo por dentro na usina da vida

[...]

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II eu devo ter ouvido no meu quarto um barulho cortar outros barulhos no alarido da época rolando por cima do telhado eu devo ter ouvido (sem ouvir) o ronco do motor enquanto lia e ouvia a conversa da família na varanda dentro daquela tarde que era clara e para sempre em meu corpo a clamar (entre zunidos de serras entre gritos na rua entre latidos de cães no balcão da quitanda no açúcar já-noite das laranjas no sol fechado e podre àquela hora dos legumes que ficaram sem vender no sistema de cheiros e negócios do nosso Mercado Velho – o ronco do avião)

III eu devo ter ouvido seu barulho atolou-se no tijuco da Camboa na febre do Alagado resvalou nas platibandas sujas nas paredes de louça penetrou nos quartos entre redes fedendo a gente entre retratos nos espelhos onde a tarde dançava iluminada Seu barulho era também a tarde (um avião) que passava ali como eu

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passava à margem do Bacanga em São Luís do Maranhão no norte do Brasil sob as nuvens

[...]

(GULLAR, 2004b, pp. 210-212, grifo nosso)

Como se vê, há uma constelação de sensações que se reconstroem na memória do sujeito. Na cidade, “dentro daquela tarde”, ele se encontra no “sistema” da família, mas é também, e sobretudo, parte do “alarido da época” que se espraia simultaneamente fora, “sob / as folhas”, “no escuro / sonoro do capim”, “junto à noite da terra entre / formigas”; e dentro, “nas paredes de louça”, “nos quartos”, “entre retratos / nos espelhos”. Em seu corpo, agrupam-se todas essas realidades, com suas experiências múltiplas de “zunidos”, “latidos / de cães”, “no sistema de cheiros e negócios / do nosso Mercado Velho”. Assim, se, por um lado, tal dualidade acusa uma apurada percepção do mundo, por outro lado, recupera novamente a paisagem citadina, neste caso, a cidade natal de “São Luís do Maranhão / no norte / do Brasil”, e, nela, conforme lemos no poema “A casa”, a “noite menor” sob “os pés da família”. Ao reacender (na memória) a “essência” desse ambiente familiar, pergunta-se o sujeito:

Debaixo do assoalho da casa no talco preto da terra prisioneira, quem fala? naquela noite menor sob os pés da família naquele território sem flor debaixo das velhas tábuas que pisamos pisamos pisamos quando o sol ia alto quando o sol já morria quando o sol já morria e eu morria quem fala? quem falou? quem falará? na língua de fogo azul do país debaixo da casa?

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Fala talvez ali a moeda que uma tarde rolou (a moeda uma tarde) rolou e se apagou naquele solo lunar

Fala talvez um rato que nos ouvia de sob as tábuas e conosco aprendeu a mentir e amar (no nosso desamparo de São Luís do Maranhão) na Camboa dentro do sistema solar entre constelações que da janela víamos num relance)

(GULLAR, 2004b, p. 219)

Mais uma vez os espaços dentro e fora perpassam o poema. Dadas as vozes perdidas no tempo, o poeta busca no “assoalho” da casa uma voz que talvez ainda sobreviva. Ao mesmo tempo, a casa, que abrigava a família no seu “desamparo”, era parte também de algo maior, a cidade, esta, por sua vez, “dentro do sistema solar / entre constelações que da janela víamos / num relance”. Sobre o real significado da cidade natal na poesia do autor, disse Alfredo Bosi:

A matriz do seu mundo poético é a Cidade da infância e da adolescência, aquela São Luís mítica e realíssima onde o Sol irradia por um céu cruelmente azul e arde como um fogo que é a própria figura do Tempo. A chama calcina como as horas. O fogo queima, se rápido, ou, se lento, faz o germe explodir, a polpa adoçar até o mel e, obsessão fecunda, leveda a natureza até o apodrecimento, a náusea, a inexorável combustão dos seus mais ocultos tecidos (BOSI, 2003, pp. 171-172).

É também nessa realidade mais íntima que seus segredos mais profundos são descobertos. Por ela, o sujeito recupera “a terna matéria da intimidade”, decifra a história da família e os dias já idos, dos quais já ninguém mais fala, do “verão”, das “chuvas torrenciais”, da “classe operária”, das “poucas / festas de aniversário”:

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A rede suja, a bilha na janela, o girassol no saguão clamando contra o muro as formigas no cimento da cozinha Bizuza morta Maria Lúcia, Adi, Papai mortos não falam Mas gira, planeta, gira, oceanos azuis da minha vida sonhos, amores, meus poemas de ferro, minha luta comum, gira, planeta

E sobre as tábuas a nossa vida, os nossos móveis, a cadeira de embalo, a mesa de jantar, o guarda-roupa com seu espelho onde a tarde dançava rindo feito uma menina E as janelas abertas por onde o espaço como um pássaro fugia sobrevoava as casas e rumava num sonho para as cidades do sul

(GULLAR, 2004b, p. 220)

Nesses versos, reconhecemos “uma alteridade subitamente incluída na própria familiaridade do real”, para retomar Michel Collot, em seu ensaio “O outro no mesmo”. Pretendendo situar esse pensamento “em relação a outras abordagens filosóficas da alteridade” que, segundo ele, tendem a absolutizá-la ou radicalizá-la, o crítico compreende não ser possível alcançar “a especificidade da alteridade poética se dela propuséssemos uma interpretação dialética, que dissolveria a antítese do Mesmo e do Outro em uma unidade sintética” (COLLOT, 2006, p. 29). No seu entender, “a alteridade poética reside antes em uma tensão irresoluta entre o Mesmo e o Outro, convidando-nos a superar sua exclusão recíproca, inscrita na lógica

136 aristotélica, para pensar sua co-pertença conflituosa” (COLLOT, 2006, p. 29). Essa concepção que coloca

[...] em relação a experiência poética com uma experiência da alteridade pode parecer inscrever-se em uma tradição que situava a poesia na articulação de uma transcendência. Mas a modernidade não pode mais localizar essa transcendência em um outro mundo, fazer dela o apanágio de um Ser supremo: ela tende a reavê-la no próprio cerne da imanência. A seus olhos, é nosso mundo e o próprio Eu que se revelam outros (COLLOT, 2006, p. 30).

Como se vê, o autor dialoga com a ideia de transcendência adotada pela poesia moderna, que tende a compreendê-la nos domínios do mundo concreto e material. Ora, tal concepção é muito próxima da poesia de Ferreira Gullar, uma vez que, como já dissemos, o poeta privilegia em seus poemas a experiência fenomenológica com a realidade material do mundo, com os seres e objetos à sua volta. De maneira que, o eterno, para ele, é o instante mesmo em que as coisas acontecem, o aqui e o agora, manifesto na relação próxima e afetiva que com elas mantém. Já vimos que nos poemas de Dentro da noite veloz a reorientação do espaço perceptivo dá vazão à discussão da alteridade ao reacender subjetividades outras. Mas onde essa consciência se dá, digamos, realmente plena é, sem dúvida, no Poema sujo. São conhecidos os fatos (o exílio do poeta) que o determinaram. Imaginado inicialmente como o “poema final”, representou para Ferreira Gullar a possibilidade de “vomitar” toda a experiência vivida, de “criar um magma”. Mas era também a “síntese desse longo e difícil esforço para exprimir a complexidade numa linguagem acessível” (GULLAR, 2011, p. 152). Desse modo, cada vez mais distanciado da problemática “realidade da linguagem”, o poeta se divide agora “entre memória e reflexão” (GULLAR, 1998a, p. 46), trabalhando uma amplitude de feixes temáticos elucidativos de um pensamento cada vez mais em diálogo com uma postura reflexiva da realidade. Além do mais, é o momento em que revê suas convicções sobre os problemas da linguagem e da realidade social e está mais interessado numa perspectiva crítica da experiência vivida.

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Assim, se alguma crítica costuma dar atenção privilegiada à obra como consequente de um processo social e político, numa visão por vezes simplificadora demais, seus versos nos dizem mais. Ao resgatar uma temporalidade pretérita e, com ela, muitas das coisas não ditas e/ou emudecidas, tais versos recuperam novamente, e numa perspectiva mais ampla, a discussão da própria subjetividade. Sem dúvida, trata-se de um poema da experiência, “no qual as questões da identidade, da linguagem e do tempo se enlaçam numa coerência profunda, espécie de síntese de seu tumulto interior e da condição de sua existência” (ARRIGUCCI JR., 2010, pp. 36-37). “No Poema sujo”, argumenta Viviana Bosi (2015, p. 24), “realiza-se um envolvimento visceral com a memória, pois a linguagem lírica se alargou para recebê-la. O exílio levou o poeta a expressar uma subjetividade solitária embora, paradoxalmente, agora sim múltipla e solidária”. Expandido “entre coisas”, na inescapável solidão de uma “cidade estrangeira”, o sujeito decide reinventar criticamente o sentido de sua existência. “Não se tratava, porém, de simplesmente evocar a infância e a cidade distante. Queria resgatar a vida vivida (um modo talvez de sentir-me vivo), descer nos labirintos do tempo, talvez, quem sabe para encontrar amparo no solo afetivo da terra natal” (JIMÉNEZ, 2013, p. 10). Retomando as reflexões que desenvolvemos na introdução deste trabalho sobre “o sujeito lírico fora de si”, especificamente quando Michel Collot se pergunta “se a própria verdade não reside precisamente em uma tal saída, que pode ser tanto ek-stase quanto exílio, e se a recente decadência do sujeito lírico não lhe daria uma nova chance” (COLLOT, 2004, p. 165); perguntamo-nos também se essa expansão do sujeito não representou de fato, ainda que numa outra perspectiva, uma outra saída. Conforme asseverou Ferreira Gullar no seu comovente livro de memórias Rabo de foguete – Os anos do exílio: “Achei que era chegada a hora de tentar expressar num poema tudo o que eu ainda necessitava expressar, antes que fosse tarde demais – o poema final” (GULLAR, 1998b, p. 237). Era, portanto, a urgência de revisar criticamente (em versos) a experiência de vida. Escolheu, para isto, a palavra “suja”, capaz de expressar a realidade na sua natureza mesma, sem disfarces. Tal intenção, aliás, se “inaugura uma espécie de poética do sujo” (DAMAZO, 2006, p. 18), também acompanha a dualidade dentro/fora, numa complexa esquematização desses dois espaços, conforme tem

138 entendido a crítica, que aproxima na linguagem prosaica uma série de coordernadas espaciotemporais. Em emocionado texto sobre o Poema sujo, Vinicius de Moraes revelaria: “o reencontro dessa poesia simples, orgânica, crua, fecunda, emocionante, – e paralelamente dotada de um grande poder de síntese; [...], me tocou até as vísceras” (MORAES, 2008, p. xxxix), não deixando de ressaltar a “terrível simultaneidade” que anima o poeta, estando este último

[...] de plena posse de seus dons e sua semântica, adulto, perfeitamente integrado em sua cosmogonia, num belo e terrível voo ubíquo, vendo o de fora e o íntimo das pessoas e situações, ao mesmo tempo que analisa a diversidade com que nelas atuam a velocidade e o tempo dentro do dia e dentro da noite, e o modo diverso com que simultaneamente nascem, crescem, murcham e apodrecem pela existência afora, repetindo, mas nunca da mesma maneira, sua vida e seu fim (MORAES, 2008, p. xlii).

Com tais considerações, é interessante relembrar alguns excertos do Poema sujo, quando procurou verbalizar estas duas realidades, a subjetiva e a histórica, urgentemente vividas em seu corpo, esse “facho-corpo sem chama”. Comecemos, então, por um trecho revelador do poema, uma vez que faz menção direta a esses dois espaços:

e era dia como era dia aquele dia na sala de nossa casa a mesa com a toalha as cadeiras o assoalho muito usado e o riso claro de Lucinha se embalando na rede com a morte já misturada na garganta sem que ninguém soubesse – e não importa – que eu debruçado no parapeito do alpendre via a terra preta do quintal e a galinha ciscando e bicando uma barata entre plantas e neste caso um dia-dois o de dentro e o de fora

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da sala um às minhas costas o outro diante dos olhos vazando um no outro através de meu corpo

(GULLAR, 2004b, pp. 250-251, grifo nosso)

Bifurcado em dois, portanto, há o dia a transcorrer na sala da casa junto à imobilidade dos objetos e da “morte já misturada / na garganta”, mas também, e paralelamente, no espaço da varanda, onde o sujeito “debruçado no parapeito do alpendre” e indiferente aos acontecimentos da sala, “via a terra preta do quintal / e a galinha ciscando e bicando / uma barata entre plantas”. Visualizam-se aqui dois momentos autônomos e ao mesmo tempo complementares que o poeta busca recuperar no poema, ambos instalados num sistema maior, a Via Láctea. Desse modo, não podemos deixar de acentuar esse convívio de tempos presentes. Com efeito, há um forte interesse do sujeito de abarcar no poema a realidade simultânea das coisas, acontecendo no tempo presente de diferentes maneiras e em diferentes espaços. Ao mesmo tempo, reaparece em vários momentos alguns símbolos que são essencialmente representativos de uma temporalidade distinta, porém recuperados no “clarão da lembrança”, conforme revela o poema “Memória”, de Dentro da noite veloz (GULLAR, 2004b, p. 189). Em síntese, reproduzem um universo particular do sujeito, sendo, por isso mesmo, “verdadeiros órgãos da vida psicológica secreta. Sem esses “objetos” e alguns outros igualmente valorizados, nossa vida íntima não teria um modelo de intimidade. São objetos mistos, objetos-sujeitos. Têm, como nós, por nós e para nós, intimidade” (BACHELARD, 1993, p. 91). Relembremos, por exemplo, o seguinte trecho do Poema sujo:

[...] mas que importa um nome debaixo deste teto de telhas encardidas vigas à mostra entre cadeiras e mesa entre uma cristaleira e um armário diante de garfos e facas e pratos de louças que se quebraram já um prato de louça ordinária não dura tanto

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e as facas se perdem e os garfos se perdem pela vida caem

pelas falhas do assoalho e vão conviver com ratos e baratas ou enferrujam no quintal esquecidos entre os pés de erva- [cidreira e as grossas orelhas de hortelã quanta coisa se perde nesta vida

(GULLAR, 2004b, p. 234)

Ou ainda:

Garfos enferrujados facas cegas cadeiras furadas mesas gastas balcões de quitanda pedras da Rua da Alegria beirais de casas cobertos de limo muros de musgos palavras ditas à mesa do jantar, voais comigo sobre continentes e mares

(GULLAR, 2004b, p. 235)

Na recuperação desses objetos, reconhece-se também, e novamente, a percepção do próprio corpo. Compreende o sujeito, por exemplo, que independentemente dele, a dinâmica da vida se refaz ininterruptamente, de maneira que novos sistemas e realidades são refeitos, como também aqueles que sobre eles atuam:

E essa é a razão por que quando as pessoas se vão (como em Alcântara apagam-se os sóis (os potes, os fogões) que delas recebiam o calor essa é a razão por que em São Luís

donde as pessoas não se foram ainda neste momento a cidade se move

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em seus muitos sistemas e velocidades pois quando um pote se quebra outro pote se faz outra cama se faz outra jarra se faz outro homem se faz para que não se extinga o fogo na cozinha da casa

(GULLAR, 2004b, p. 287)

Refaz-se, inclusive, a manhã:

[...] que com suas muitas e azuis velocidades segue em frente alegre e sem memória

(GULLAR, 2004b, p. 283)

Ao lado dessas questões, comparece ainda no Poema sujo a reflexão de que, feitos das coisas mesmas, os dias irreversivelmente transcorrem e se intercalam entre experiências independentes e paralelas, feitas de ruídos e silêncios: “Muitos / muitos dias há num dia só / porque as coisas mesmas / os compõem / com sua carne (ou ferro / que nome tenha essa / matéria-tempo / suja ou / não) / os compõem” (GULLAR, 2005, p. 250). Assim como “há duas noites metidas uma na outra: a noite / sub-urbana (sem água / encanada) que se dissipa com o sol / e a noite sub-humana / da lama / que fica / ao longo do dia / estendida / como graxa / por quilômetros de mangue / a noite alta / do sono (quando / os operários sonham) / e a noite baixa / do lodo embaixo / da casa”, ambas em seu próprio tempo e velocidade (GULLAR, 2004b, pp. 258-259). Por fim, é importante salientar que tal dualidade (dentro/fora) não se limita aos versos de Dentro da noite veloz e do Poema sujo. Pelo contrário, expande-se de variados modos à obra toda de Ferreira Gullar, inclusive em seu último livro Em alguma parte

142 alguma. No poema “Galáxia”, por exemplo, vemos de uma outra maneira acentuada a gravidade da consciência de si mesmo e do cosmos – que como um facho de luz o atravessa – combinada a um sistema maior. Circunscrito “dentro deste silêncio de banheiro”, o sujeito se reconhece “mortal / e conformado”, enquanto

lá fora (fora do banheiro, fora da casa) a cidade é uma galáxia a mover-se desigual em seus diferentes estratos veloz e lenta e em contraditórias direções

uma galáxia que em seu girar arrasta nossas vidas, nossas casas, nossas caixas de lembranças cheias de papéis velhos e fotos doídas de olhos que nos fitam de tempo algum agora que são apenas manchas e não obstante falam ainda na poeira do cemitério doméstico misturado com fungo e mofo à beira do buraco voraz

(GULLAR, 2010c, pp. 56-57)

Reacende, portanto, a consciência do tempo voraz e breve que inescapavelmente arrasta as coisas e (sobretudo) o sujeito, “espaços e tempos e mais / os tempos humanos da memória, essa / antimatéria que pode num átimo / reacender o que na matéria / se apagara para sempre” (GULLAR, 2004b, p. 57). Assim, a inquietude instalada a priori no outro volta-se, em sentido contrário, ao âmbito do próprio sujeito, circunscrito à precariedade de seu tempo humano. Num raro momento em que “todos vêm se amalgamar no sujeito que os acolhe e tenta dar-lhes forma poética, unidade que preserva a diferença” (LAFETÁ, 2004, p. 237).

143

Um sujeito lírico, portanto, consciente da natureza individual dessas realidades, porém mesmo assim se movendo em seus distintos modos de existência, em experiências distintas que inelutavelmente o atravessam. Expandido o corpo para “fora de si”, a partir de uma leitura fenomenológica do mundo, a percepção do sujeito só avança de fato quando compreende, ainda no Poema sujo, a máxima ontológica de que “uma coisa está em outra”. Aparentemente, tal percepção resolve muitas das inquietudes que perpassam o sujeito, inaugura novas saídas, sobretudo a possibilidade de lidar com a alteridade de uma temporalidade pretérita que lhe volta agora pela perspectiva da falta. Começa, então, uma espécie de dialética do traduzir-se.

4.3 O passado e o presente

A discussão das dualidades entre o eu e o outro, o dentro e o fora, tem contribuído até agora para as nossas reflexões. Não analisamos, porém, como a questão se resolve na psicologia do sujeito. Verdade é que o Poema sujo contribuiu significativamente para uma espécie de reiniciação com a realidade material do mundo, o que é também uma percepção ampliada, pois, se antes o sujeito poético gullariano se lançava à compreensão de suas dualidades a partir da percepção de uma realidade também dual, sente, a certa altura a necessidade de traduzi-las, ultrapassando (com seu corpo) a dicotomia entre uma coisa e outra. “É como se, depois de tantos espelhos que não podiam refletir seu movimento de busca, encontrasse a resolução desse impasse apenas na incessante tradução poética de uma parte em outra” (ZILLER, 2006, p. 194). Curiosamente, essa questão se resolve no centro de um outro motivo reflexivo. Ao tempo presente agrega-se, sob a perspectiva da falta e da distância temporal, o tempo passado, que igualmente pesa sobre o sujeito ao trazer-lhe o sentimento de perda e de vazio. Tempo este, que ele busca recuperar – novamente em completa “dispersão” – num “nome”, no “cerne” de (muitos) dias já idos e agora revividos na emoção da lembrança, ou mesmo na matéria finita de seu corpo.

144

Tal dualidade, aliás, entre presente e passado, tem sido analisada por boa parte da crítica de Ferreira Gullar. Nosso interesse ao retomá-la é justamente para observar não só como ela acompanha mais uma vez a discussão da subjetividade, mas também de como orientou uma saída para o problema do social e do coletivo. Ora, como dimensão de presença do mundo a que todas as coisas inescapavelmente se vinculam, sabemos que a discussão do tempo, tema central da filosofia, sempre esteve presente na poesia. Na maioria das vezes, o que ela enseja é uma consciência do efêmero e do finito que implica simultaneamente a urgência em viver, mediada pela angústia da existência efêmera e do que não resiste ao tempo. Aliás, diante dele, “nem o passado nem o futuro parecem existir efetivamente e o próprio presente não passa de um fugaz ponto luminoso” (SCHÖPKE, 2009, p. 17). Se o presente é trânsito permanente, a poesia se constrói a partir da afirmação da fugacidade do ser e das coisas que o circundam e, consequentemente, o constituem como sujeito intimamente sincronizado ao tempo, “um senhor impiedoso e impassível, um algoz que rouba nossa juventude e nossas alegrias” (SCHÖPKE, 2009, p. 10). Para Regina Schöpke, o tempo da existência é trágico e, por isso, ela menciona Cronos, deus cruel da mitologia grega que “gerava e devorava seus filhos” e que está relacionado a Kronos, o Tempo. Tempo fugaz e contraditório, é o que gera e o que destrói, motiva todas as coisas e as aniquila:

Sim... o tempo muitas vezes nos provoca horror; não nos deixa esquecer que tudo passa, que tudo acaba. Mas, por outro lado, ele também é considerado o responsável pela geração de todas as coisas e é igualmente aquele que nos liberta das dores e aflições, pois é de sua natureza (segundo se diz) não permitir que nada dure para sempre (nem a alegria nem a tristeza). Nesse caso, ele nos impulsiona sempre para frente, para o porvir (tão aberto e imprevisível quantos os mais sinuosos movimentos da vida) (SCHÖPKE, 2009, pp. 10-11).

No Poema sujo, passado e presente são dois tempos que se intercalam e se completam. O passado traduz o sujeito do presente, cada vez mais expandido afetivamente no tempo e nas coisas, num movimento que, se de início recupera imagens aparentemente desconexas, são nesses mesmas imagens que o poeta encontra, aos poucos,

145 saídas possíveis à expressão, ao perseguir, na memória, uma experiência fenomenológica, a seu ver, só considerada possível se engendrasse um pensamento anterior a qualquer conceito preconcebido, à procura do “ser bruto”:

Para o poeta, no entanto, o que primeiro lhe surge multiplicado não é ainda o poema, mas o vacilante espectro de um possível que se quer expressão. E o que será mais espectral do que a vida acumulada, vida de um perdido contínuo que surge agora extremamente fragmentado? (VILLAÇA, 2008, p. xliv).

Assim, o homem do presente é, antes de tudo, o menino “sob o sol do Maranhão”, “o sol apenas”, “onde a tarde era outra / tarde / que nada tinha daquela / que eu via agora distante” em “dias que se vazam agora ambos em pleno coração de às quatro horas desta tarde de 22 de maio de 1975 trinta anos depois”. Dias passados “que os anos não trazem mais // E trazem cada vez mais por ser alarme agora em minha carne” (GULLAR, 2004b, p. 253). Não surpreende, então, o poeta perseguir uma sintaxe cada vez mais próxima de uma experiência sensorial do mundo. Afinal, é no corpo, ou melhor, na “carne”, que se reacende essa “profusão” de espaços e tempos reinventados e, agora, ressignificados no sujeito por intermédio de suas sensações mais profundas. Com isso, deve-se considerar que:

A paisagem não é apenas vista, mas percebida por outros sentidos, cuja intervenção não faz senão confirmar e enriquecer a dimensão subjetiva desse espaço, sentido de múltiplas e, por conseguinte, também experimentado. Todas as formas de valores afetivos – impressões, emoções, sentimentos – se dedicam à paisagem, que se torna, assim, tanto interior quanto exterior (COLLOT, 2013, p. 26).

Semelhantemente, o poeta experimenta uma série de sensações quando investe na revisitação do espaço familiar e, fora dele, da “vida a explodir por todas as fendas da cidade” (GULLAR, 2004b, p. 236). Tais sensações, aliás, ressurgem progressivamente e situam o ser no mundo, o seu estar aqui e agora. Mas também a vertigem de um tempo

146

“perfeitamente fora / do rigor cronológico” (GULLAR, 2004b, p. 235). Desse tempo, indaga-se o sujeito lírico: “quê / que eu buscava ali?”. Ou ainda: “Que me ensinavam essas aulas / de solidão / entre coisas da natureza / e do homem?” (GULLAR, 2004b, p. 243). Aquela essência, portanto, que o poeta perseguira de início na linguagem, direciona-se agora para o sentido não só de uma existência, mas também de outras: é a compreensão de uma história subjetiva e ao mesmo tempo de uma “história branca / da vida qualquer”. Além disso, a exploração dessas duas realidades, do eu e do outro, em consonância com a realidade do presente e do passado, tem a ver também com uma nova compreensão do fazer poético e, igualmente, do problema social e coletivo. Em tal perspectiva, lembremos um texto de Ferreira Gullar, publicado na Folha de S. Paulo, em 19 de abril de 2015, e, posteriormente, no livro A alquimia na quitanda (2016). Ao partir da ideia da alquimia como inseparável do próprio modo de ser da obra de arte, que, segundo ele, realiza “a alquimia da dor em alegria estética”, preocupa-se em esclarecer que: “Quando digo que o artista transforma sofrimento em alegria, estou me referindo à complexa alquimia que está na essência de toda arte verdadeira”, uma vez que, para ele, “quando a obra de arte não consegue transcender a barbárie ou a dor, não cumpre sua função” (GULLAR, 2016, p. 276). Esse raciocínio, porém, já vinha de longe. No lúcido e comovente texto Uma luz do chão, ao discorrer a respeito de sua adesão ao caminho da poesia, Gullar já havia notado que o motivo desta parece ter sido quando da leitura dos contos de Hoffmann, com os quais travou contato após comprar num sebo um exemplar do escritor alemão. Perguntando-se, à época, “que sentido tem fazer literatura”, imaginou que “o poema, ao ser feito, deve mudar alguma coisa, nem que seja apenas o próprio poeta. Se o poeta, depois de fazer o poema, resta o mesmo que antes, o poema não tem sentido” (GULLAR, 2011, p. 160). Desse modo, só teria sentido a arte que agregasse sentido à inexplicada existência de todo dia. Nessa direção, talvez resultem profícuas as palavras de Mário Pedrosa, que desempenhou um papel fundamental na formação de Ferreira Gullar não só como poeta, mas sobretudo como crítico de arte, quando, ao discutir o “problema da sensibilidade em Arte”, salientou:

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O que a arte exprime é algo de universal e permanente, [...]. O que ela traz é uma formalização de vivências desconhecidas, uma organização simbólica nova, perceptiva ou imaginária. Como não é nunca uma proposição, seja qual for a sua classificação por escola, tendência ou estilo, o que ela nos dá, para ser autêntica, é sempre do domínio das formas intuitivas do pensar e do sentir (PEDROSA, 1975, pp. 14-15).

Dialogando com essa ideia da arte como possibilidade de agregar sentido à existência, afiançou Ferreira Gullar num outro momento que “se a ciência e a filosofia pretendem explicar o mundo, esse não é o propósito da música, da poesia ou da pintura, embora tanto estas como aquelas atendam a uma mesma necessidade: tornar a existência suportável”. Até porque, acrescentou ele, ao contrário da filosofia e da ciência, a arte “[...], abrindo mão das explicações nos induz ao convívio com o mundo inexplicado, transformando sua estranheza em fascínio” (GULAR, 1993, p. 30). Desse modo, se aproximarmos tais reflexões à discussão que vimos desenvolvendo, sobretudo acerca desses dois tempos que se fazem possíveis no poema, diríamos que é também numa espécie de alquimia – que traduz um tempo no outro e, neles, o sujeito – que ele resolve a condição dual de sua existência. Esse mesmo pensamento reapareceria depois num outro poema, publicado no livro Na vertigem do dia e sugestivamente intitulado “Traduzir-se”. Como se vê, desde o título há uma presença lírica, cuja consciência aguda de suas dualidades será desenvolvida ao longo das estrofes, numa série de categorias contrastantes que já acusam a condição bipartida do sujeito, entre o ensimesmamento absoluto de si mesmo (ninguém/estranheza e solidão) e a necessária abertura para o outro (todo mundo/multidão), “cindido entre o compromisso com os homens, seus pares, ou com a verdade de si mesmo” (SECCHIN, 2008, p. xxiv). Só ao final do poema as dualidades serão compreendidas como inseparáveis entre si, porque, num viés autocrítico, acompanha o pensamento do ser não mais circunscrito em si mesmo, mas também, e sobretudo, produto de uma coletividade. Transitando entre essas duas realidades – do eu e do outro, do particular e do universal – nos quais sua própria história se inscreve, todas as antinomias que constroem as estrofes são aqui superadas: “Traduzir uma parte / na outra parte / – que é uma questão / de vida ou morte – / será arte?” (GULLAR, 2004b, p. 335).

148

Voltando ao Poema sujo, reconhecemos esse movimento na máxima ontológica “como uma coisa está em outra”. Esta, aparece ao final do poema como uma espécie de síntese das experiências anteriores, mas também, e sobretudo, de uma nova compreensão crítica da realidade, ao concluir que “[...] variados são os modos / como uma coisa / está em outra” (GULLAR, 2004b, p. 290), pois “cada coisa está em outra / de sua própria maneira / e de maneira distinta / de como está em si mesma” (GULLAR, 2004b, p. 291). Movendo-se entre esses variados modos, está o sujeito – um corpo-memória intimamente ligado à “matéria-tempo”. Com isso, dá-nos a dimensão de toda uma existência, “num processo de escavação da subjetividade atravessada pela experiência histórica” (ARRIGUCCI JR., 2010, p. 39). Nesse movimento regressivo no tempo e no espaço, desenha-se um novo horizonte reflexivo. A expansão do ser conclui-se em imagens afetivas das quais ele extrai a força que o move e o alimenta, elegendo a matéria fragmentada da memória como o fio condutor para a manifestação dos diferentes estados de alma e síntese do momento presente. Ou, como assegura Regina Schöpke (2009, p. 15), “o que passou, passou, e é irrecuperável – e, nesse caso, só a memória realmente nos impede de viver na absoluta escuridão das vivências singulares, apagadas e subtraídas do mundo”. É nos escombros do passado que o eu da poesia gullariana se encontra e se transforma.

149

5. O REAL REVISITADO

Não existe nada mais surreal, nada mais abstrato do que a realidade.

Giorgio Morandi

Escrever pode ser, ou é, a necessidade de tocar a realidade que é a única segurança de nosso estar no mundo – o existir.

Iberê Camargo

Neste capítulo, pretendemos explorar um interessante caminho reflexivo que se desenhou a partir da década de 80 na poesia de Ferreira Gullar. Trata-se, mais propriamente, daquilo que poderíamos pensar como uma compreensão mais apurada do fazer poético, na medida em que não só reconsidera algumas temáticas anteriores, mas também dialoga, cada vez mais e decisivamente, com a experiência perceptiva do real através da experiência sensível do sujeito, fortalecendo com isto alguns modos de acesso para pensar e indagar a existência. Cronologicamente, esse novo acento reflexivo ganha força a partir da publicação, em 1980, de Na vertigem do dia. No entanto, é melhor compreendido quando pensado ao lado de outras três publicações do autor, a saber: Barulhos (1987), Muitas vozes (1999) e, por fim, seu derradeiro livro Em alguma parte alguma (2010). São obras, por certo, muito específicas nas suas reflexões, porém, quando imaginadas no conjunto, desenham um horizonte coeso e articulado. Em síntese, parece-nos que Ferreira Gullar encontrou aqui o acento fenomenológico a que aspirava desde o início. Cabe assinalar, no entanto, que nosso interesse é menos o de seguir uma perspectiva cronológica e mais o de trazer a lume aqueles poemas que mais se harmonizam com nossas reflexões. De maneira geral, a experiência do sujeito dá a conhecer aqui o imenso poder do encontro – do sujeito com a realidade material do mundo – ao lado de uma necessidade

150 profunda de reconhecimento. Há, além disso, como que uma espécie de vertigem interior que reacende com frequência uma “[...] estranheza / do mundo” (GULLAR, 2004b, p. 425). Mundo este que se desnuda ao sujeito em toda a sua concretude, numa presença física que se impõe cada vez mais a partir da experiência sensível. Com isso, coloca-nos em face de um materialismo instintivo complexo e sofisticado, cada vez mais interessado nos domínios da paisagem e da natureza-morta. Dentro dessa nova orientação crítica, o poema “Omissão” é seguramente um dos mais representativos. Publicado no livro Barulhos e dividido em duas partes, ilumina em seus versos essa clara preferência do poeta por uma lírica voltada ao essencial. Vejamos a primeira parte do poema:

I

Não é estranho que um poeta político dê as costas a tudo e se fixe em três ou quatro frutas que apodrecem num prato em cima da geladeira numa cozinha da Rua Duvivier?

E isso quando vinte famílias são expulsas de casa na Tijuca, os estaleiros entram em greve em Niterói e no Atlântico Sul começa a guerra das Malvinas.

Não é estranho? por que então mergulho nessa minicatástrofe doméstica de frutas que morrem e que nem minhas parentas são? por que me abismo no sinistro clarão dessas formas outrora coloridas e que nos abandonam agora inapelavelmente deixando a nossa cidade com suas praias e cinemas deixando a casa onde frequentemente toca o telefone? para virar lama.

151

(GULLAR, 2004b, p. 363)

Como se vê, a indagação que anima a primeira estrofe do poema é a mesma que nos motiva neste capítulo. Estranha realmente pensar que após se dedicar de forma obstinada e combativa à poesia de cunho político, a atenção do poeta se volte com particular interesse para os domínios da natureza-morta pictórica. Nesse novo modo de ver e filtrar a realidade, observa-se um predomínio do visual que, em regra, é também a manifestação de um sentimento ou de uma visão muito subjetiva do mundo. Afinal, “só vemos aquilo que olhamos. Olhar é um ato de escolha” (BERGER, 1999, p. 10). Assim, numa clara ressonância da tópica barroca, seus horizontes reflexivos ligam-se intimamente a um modo de ver, de maneira que esse interesse aparece, já desde o título, em muitos de seus poemas, dentre eles: “Vendo a noite”, de Dentro da Noite Veloz; “Uma fotografia aérea” e “Olhar”, de Barulhos, “Pintura”, “Gravura”, “O que se vê” e “Grécia pelos olhos”, de Muitas vozes. Observando-os mais demoradamente, dão- nos, mesmo que implicitamente, a impressão de uma breve “parada do olhar”, como se ao apelo dos sentidos o poeta atendesse demorando-se na realidade profunda das coisas e dos seres, “porque olhar o objeto é entranhar-se nele” (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 104). Voltando ao poema “Omissão”, convém dizer que o “mergulho nessa minicatástrofe / doméstica / de frutas” aponta para uma nova direção. De fato, “no sinistro clarão dessas formas”, o sujeito melhor apreende a consumição das coisas em face da ferocidade destrutiva do tempo. Essa percepção de mundo, que se reacende na matéria- corpo mediante os sentidos, abre espaço à discussão da própria subjetividade, pois, como notou Michel Collot, “a paisagem implica um sujeito que não reside mais em si mesmo, mas se abre ao fora. Ela dá argumentos para uma redefinição da subjetividade humana, não mais como substância autônoma, mas como relação” (COLLOT, 2013, p. 30). Além disso:

Uma vez que a paisagem está ligada a um ponto de vista essencialmente subjetivo, ela serve de espelho à afetividade, refletindo os “estados da alma”. A paisagem não está apenas habitada, ela é vivida. A busca ou a eleição de um horizonte privilegiado pode tornar-se, assim, uma forma

152

de busca de si mesmo. Então, o fora testemunha para o dentro (COLLOT, 2010, p. 207).

Já dissemos que o interesse por uma experiência exterior acompanha desde sempre a poesia de Ferreira Gullar. Em todas elas, a escrita parece investir numa experiência lírica em profícuo diálogo com uma realidade material, sensível, concreta. Não obstante, parece-nos que é cada vez mais frequente a partir da publicação de Na vertigem do dia, considerando-se que, ao se valer de uma “linguagem conquistada” (GULLAR, 1997-98) e numa espécie de comunhão com uma realidade “menor”, o poeta investirá sobretudo na transubstanciação da linguagem prosaica em poesia. Sobre a poesia de Augusto dos Anjos, Ferreira Gullar chamou a atenção, dentre outros aspectos, para o seu “caráter concreto”, considerando-o como o caminho mais viável para compreender a amplitude da obra do autor, uma vez que não “ignora o pólo cotidiano de sua indagação poética” (GULLAR, 2008a, p. 1035). Ora, esse caráter é também reconhecível em seus poemas. Tal como em Augusto dos Anjos, o que a obra poética gullariana nos leva a experienciar é a pesquisa profunda e obstinada das coisas e dos seres, procurando neles uma certa identificação, geralmente por meio de aproximações espaciotemporais que buscam traduzir uma realidade na outra, ou ainda, “uma parte na outra parte”. Dessa perspectiva, é reveladora a segunda estrofe do poema “Omissão”:

II

É compreensível que tua pele se ligue à pele dessas frutas que apodrecem pois ali há uma intensificação do espaço, das forças que trabalham dentro da polpa (enferrujando na casca a cor em nódoas negras)

e ligam uma tarde a outra tarde e a outra ainda onde bananas apodreceram subvertendo a ordem da história humana, tardes de hoje e de ontem

153 que são outras cada uma em mim e a mesma talvez no processo noturno da morte nas frutas e que te ligam a ti através das décadas como um trem que rompe a noite furiosamente dentro e em parte alguma – é compreensível que dês as costas à guerra das Malvinas à luta de classes e te precipites nesses abismo de mel que o clarão do açúcar nos cega e diverte ser espectador da morte, que é também a nossa, e que nos atrai com sua boca de lama sua vagina de nada por onde escorregamos docemente no sono e é bom morrer

no teatro vendo morrer peras ardendo na sua própria fúria e urinando e afundando em si mesmas a converter-se em mijo, a pera, a banana ou o que seja e assistes à hecatombe no prato sob um nuvem de mosquitos e não ouves o clamor da vida aqui fora na rua na fábrica na favela do Borel não ouves o tiro que matou Palito e não ouves, poeta, o alarido da multidão que pede emprego (são dois milhões sem trabalho há meses sem ter como dar de comer à família e cuja história é assunto arredio ao poema).

É a morte que te chama? É tua própria história reduzida ao inventário de escombros no avesso do dia e não mais esperança de uma vida melhor? que se passa, poeta? adiaste o futuro?

(GULLAR, 2004b, pp. 364-365)

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O excerto convoca-nos a duas leituras. Primeiramente, pode-se dizer que a atenção do poeta se volta para essa “realidade menor” em razão de uma conexão afetiva que com elas mantém; em outras palavras, é claramente a projeção da experiência vivida (e cada vez mais viva) cravada de maneira definitiva na memória. Há, então, por meio dessa presença material, uma “intensificação do espaço”, que aproxima o tempo presente a um tempo passado, o da infância do sujeito em São Luís do Maranhão. Por outro lado, demorando-se o sujeito na “anônima mudez” do fruto, parece indicar uma sensibilidade moderna que investiga uma poesia como fruto do cotidiano, dos “pequeninos nadas”, nos termos de Manuel Bandeira, de maneira a agregar sentido ao sem-sentido e dar forma ao informe. Desse modo, “[...], pode-se dizer que o autor, através de suas indagações poéticas e filosóficas, libertou-se de uma noção de poesia como algo exterior à linguagem e fora do mundo, para perseguir a poesia no mundo mesmo e tendo as palavras cotidianas como o seu instrumento” (GULLAR, 2010a, p. 128). Em ambos os casos, é o corpo que “[...] mantém o espetáculo visível continuamente em vida, anima-o e alimenta-o interiormente, forma com ele um sistema” (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 273), ao ligar “uma tarde / a outra tarde e a outra ainda”, “tardes / de hoje e de ontem / que são outras cada uma em mim / e a mesma talvez”. De novo, como vimos no capítulo anterior, uma espécie de alquimia: de um tempo que se liga a outro tempo. Como se nada se bastasse em si mesmo, o sujeito anseia traduzir uma coisa na outra, aproximando-as na profusão dos dias, dos anos, das décadas. Essa inquietude do sujeito tem a ver também com a própria experiência pessoal do poeta, em razão do interesse pelas lutas sociais e políticas, e, na sequência, a solidão do exílio. Tais acontecimentos mudariam de maneira definitiva seu pensamento e, consequentemente, seus poemas. Daí lermos, por exemplo, em “A alegria”, poema de abertura do livro Na vertigem do dia:

O sofrimento não tem nenhum valor. Não acende um halo em volta de tua cabeça, não ilumina trecho algum

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de tua carne escura (nem mesmo o que iluminaria a lembrança ou a ilusão de uma alegria).

Sofres tu, sofre um cachorro ferido, um inseto que o inseticida envenena. Será maior a tua dor que a daquele gato que viste a espinha quebrada a pau arrastando-se a berrar pela sarjeta sem ao menos poder morrer?

A justiça é moral, a injustiça não. A dor te iguala a ratos e baratas que também de dentro dos esgotos espiam o sol e no seu corpo nojento de entre fezes querem estar contentes.

(GULLAR, 2004b, p. 295, grifo nosso)

Este é sem dúvida um dos mais doloridos poemas da trajetória de Ferreira Gullar. Em regra, dá-nos a dimensão do encerramento de duas experiências que o marcaram profundamente: primeiro, a experiência social e coletiva; segundo, o exílio. Com isso, estamos em face de uma nova atitude lírica, que não mais diz respeito às questões subjetivas (os problemas da linguagem) e nem às questões objetivas (os problemas do país), embora ambas tenham deixado nele marcas profundas. Trata-se, antes de tudo, de uma descoberta dolorosa que rompe todas as distâncias e diz muito ainda de seu sentimento do outro. Tal percepção, a partir daí, será recorrente. Neste capítulo, importa-nos pensá-la em três momentos: quando da vertigem do encontro com essa realidade material, num movimento que faz do poema a verdadeira expressão de um sentimento de origem afetiva; quando da percepção da natureza-morta de frutas que reiteradas vezes voltam à memória do poeta; por fim, quando da reflexão sobre o perto e o distante, que aproxima essa “realidade menor” e a matéria cósmica.

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5.1 Encontro e vertigem

“A experiência da paisagem”, observa Michel Collot (2013, pp. 84-85), “em seus momentos mais intensos, é um verdadeiro ek-stase. O sujeito parece sair de si mesmo para se espraiar por todo o espaço circundante, uma espécie de ubiquidade, que pode ser feliz ou vertiginosa”. No caso da poesia gullariana, parece-nos que tal experiência é mais vertiginosa do que feliz, isto porque o modo pelo qual podemos “‘frequentar’ este mundo’, ‘compreendê-lo’ e encontrar uma significação para ele” (MERLEAU-PONTY 2011, p. 317), é através do corpo, que, por sua vez,

não é apenas um objeto entre todos os outros objetos, um complexo de qualidades entre outros, ele é um objeto sensível a todos os outros, que ressoa para todos os sons, vibra para todas as cores, e que fornece à palavras a sua significação primordial através da maneira pela qual ele as acolhe (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 317).

Mas quando dissemos que a experiência que Michel Collot entende como um “sair de si” é, na poesia gullariana, mais vertiginosa do que feliz é justamente porque traz a presença do corpo como matéria precária e finita. Na visão de Antonio Carlos Secchin, “em nossa poesia, Gullar é quem mais se destaca numa linhagem que erotiza o corpo do mundo, sem hierarquia entre manifestações menos ou mais “nobres”:

Não se pense, porém, que tal procedimento conduza a uma visão meramente celebratória da existência. Zonas de sombra infiltram estranhezas e abrem campo para uma espécie de contravoz. Se Gullar pensa também com o corpo, pois dele provém, no contato com os outros, a fonte da alegria, é igualmente na matéria que se inscreve a inquietação da finitude (SECCHIN, 2010, p. 17).

O sujeito percebe a “verdade-lâmina” nas coisas, que pode se estender a uma sintaxe do tempo, como lemos no poema “Sob a espada”, de Muitas vozes: “mas que

157 sentido tem tecer palavras e palavras / – amoras / auras / lauras / carambolas – / com esta mão mortal / enquanto o tempo luze sua espada / sobre mim?” (GULLAR, 2004b, p. 490); a uma sintaxe da flora, como lemos em “Falagens”: “(o punhal / dentro das / flores / a lâmina / disfarçada / em aroma)” (GULLAR, 2004b, p. 505); ou ainda, em “Rainer Maria Rilke e a morte”, de Em alguma parte alguma, a uma sintaxe dos fenômenos naturais: “Na verdade / era a morte (não a brisa) / que aquela tarde / movia os ramos da roseira” (GULLAR, 2010c, p. 124). Mas é no encontro inesperado com a realidade material que aflora de fato a vertigem. Sobressai então uma necessidade similar à da escrita clariceana de apossar-se “do é da coisa”, partilhando com ela da aguda indagação do ser. Principalmente quando em um de seus livros a escritora fala da tentativa de “captar a quarta dimensão do instante- já que de tão fugidio não é mais porque agora tornou-se um novo instante-já que também não é mais. Cada coisa tem um instante em que ela é. Quero apossar-me do é da coisa” (LISPECTOR, 1998, p. 10). Na poesia gullariana, a projeção desse “instante-já” irrompe quando a realidade banal se mostra ao sujeito sob novas acepções de sentido. Nasce assim do encontro com as coisas, com uma presença material que traz na sua superfície mesma uma série de significados. Mas também, e de modo complementar, da constatação de sua presença própria no mundo. E isto numa relação mútua que pode ser pensada como um “pensamento-paisagem”, isto é, que compreende “a paisagem como um fenômeno, que não é nem uma pura representação, nem uma simples presença, mas o produto do encontro entre o mundo e um ponto de vista” (COLLOT, 2013, p. 18). Dessa experiência, é possível compreender como o poeta busca ultrapassar a dicotomia entre sujeito e objeto e concebê-los (mundo e corpo) numa relação recíproca. Até porque “tal como se manifesta na experiência da paisagem, nossa relação sensível com o mundo não é a de um sujeito posto em frente a um objeto, mas a de um encontro e de uma interação permanente entre o dentro e o fora, o eu e o outro” (COLLOT, 2013, p. 26). Ainda sobre a natureza de suas imagens, chama a atenção o diálogo que mantêm com as artes plásticas – são vários os poemas do autor que direta ou indiretamente evocam o universo da pintura, da escultura ou mesmo da arquitetura, seja ao abarcar os domínios da natureza-morta, seja ao evocar a obra de importantes artistas. Em regra, são imagens

158 que provocam no leitor uma forte sensação de plasticidade, mobilizando um saber prévio ou adquirido no instante mesmo da experiência. De todo modo, o que vemos é a transmutação de uma realidade aparentemente banal, comum, em outra mais densa e reflexiva. É o caso, por exemplo, do poema “Uma aranha”, de Em alguma parte alguma, cujos versos recuperam a emoção do encontro aparentemente casual com uma minúscula aranha, descoberta abruptamente “quando abri o Dicionário de Filosofia / de José Ferrater Mora / (no verbete Descartes, René)” (GULLAR, 2010c, p. 64). O súbito espanto que a essa descoberta se associa é capaz de deixá-lo dividido entre a perturbação inicial do encontro e o posterior fascínio – que reacende seu veio reflexivo – da redescoberta desse ser:

[...] mínimo mas vivo consciente de si (e como eu parte do século XXI) e que agora parece observar-me tão espantado quanto estou com este nosso inesperado encontro?

(GULLAR, 2010c, p. 64)

Entre a hesitação e a dúvida que remata o poema, subentende-se que há nessa poesia uma particular – porque sempre inédita e inesperada – abertura com a materialidade do mundo. Como se nela atuasse aquele imprevisto “senso do momento poético”, para lembrar Antonio Candido e Gilda de Mello e Souza (1980, p. 61) sobre a poesia de Manuel Bandeira, no qual por um momento a realidade se afasta de suas significações habituais e, revestindo-se de uma carga altamente significativa, acende uma série de indagações nem sempre passíveis de respostas definitivas. Essa percepção do real reaparece num outro poema, ainda de Em alguma parte alguma, intitulado “Flagrante”. Ao recriar em palavras a intuição do instante presente, o poema é certamente um exemplo paradigmático da atitude fidedigna ao real que delineia a poética de Ferreira Gullar:

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o meu gato na cadeira se coça

corto papeis coloridos na sala e os colo num caderno

a manhã clara canta na janela

estou eterno

(GULLAR, 2010c, p. 70)

Preliminarmente, é interessante destacar do poema o seu admirável poder de síntese, sobretudo porque, a exemplo de muitas outras realizações do autor, do pouco se pode extrair muito: uma série de possibilidades interpretativas da veia materialista que mobiliza sua escrita. Além do mais, a gradação do movimento reflexivo passa igualmente por três diferentes realidades poeticamente atualizadas na linguagem: a realidade do felino, a do sujeito e a da manhã (fora da sala), cada uma delas em seu próprio tempo, particular, subjetivo, porém inseridas na mesma “matéria-tempo”. Mas o que resulta particularmente interessante é o fato de que na iminência de uma subjetividade lírica que busca apreender a verdade das coisas se descortina uma realidade impregnada de significados novos. Há que se considerar também o modo como o prosaísmo das cenas, independentes entre si, é substituído pelo final inesperado: “estou eterno”. É como se a densidade do eterno envolvesse toda a brevidade com que as cenas anteriores foram apreendidas e/ou recuperadas para ultrapassá-las num sentimento quase epifânico desse tempo que a experiência poética mobiliza. É quando, então, sobressai um outro momento: a aguda percepção do outro volta- se à percepção de si mesmo, de um eu que consciente de seu “estar no mundo” se sente eterno e completo nesse presente imediato. É dentro desse “sistema de coisas” que abrange igualmente o felino, a manhã lá fora e o sujeito, que este último se sente na sua condição mais plena. Mas há, todavia, na compreensão do poema, uma espécie de distância que separa o sujeito daquilo que contempla, considerando-se que, ao contrário do sujeito, o felino e

160 a manhã são inconscientes da precariedade que os conformam. Assim, tal como se lê no poema “Uma pedra é uma pedra”, novamente de Em alguma parte alguma, a pedra é, na sua essência, “matéria densa”, porém, ausente de pensamento:

[...]

enquanto o homem é uma aflição que repousa num corpo que ele de certo modo nega pois que esse corpo morre e se apaga

e assim o homem tenta livrar-se do fim que o atormenta

e se inventa

(GULLAR, 2010c, pp. 75-76)

No entanto, voltando a “Flagrante”, a sensação de eternidade, ou melhor, a permanência no sujeito em estado de eternidade (de eterno) também se dá num absoluto estado de natureza, que escapa de quaisquer racionalizações. Assim, tudo se torna indivisível – humano e animal, dentro e fora, arte e paisagem, luz e sombra – e se a sensação do instante pode ser traduzida em palavras – “estou eterno” – tal “explicação” apenas nos devolve a uma espécie de mistério ou de estado inexplicável. Ou ainda, se o poema consegue dizer a sensação, não pode, ainda assim, explicá-la. Deparamo-nos, assim, com um quadro vivo (ainda que, de certo modo, natureza- morta) graças à força de uma poesia que reconstitui a sensação, a corporeidade das coisas e o fluxo do tempo numa espécie de hai-kai em que só cabe dar a ver o mundo numa espécie de instante que se eterniza, paradoxalmente, pela força incondicional de sua efemeridade.

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5.2 O avançar da sensação

Acompanhando essa experiência sensível do sujeito com os objetos à sua volta, é interessante refletir como o espanto gullariano dialoga insistentemente com a natureza- morta pictórica. Na abertura deste capítulo, dissemos que isto reflete uma escolha muito pessoal e subjetiva. Não obstante, considerando a reiteração deste motivo, importa-nos explorá-lo um pouco mais. Esse interesse reflexivo já aparece em A luta corporal, no poema “As peras”. No livro seguinte, O vil metal, reaparece em “Frutas” e “Jarro na mesa”. Mas é a partir da publicação de Na vertigem do dia que ganha especial atenção, perfazendo uma série de poemas em torno de uma mesma reflexão, são eles: “Bananas podres”, “Bananas podres 2”. De Em alguma parte alguma: “Bananas podres 3”, “Bananas podres 4” e “Bananas podres 5”. Peras, maçãs, bananas: abrem-se inteiramente à percepção do sujeito e o convocam à expressão. Obedecendo aos seus apelos sensoriais, o poeta como que tira aquelas frutas de sua realidade, de seu tempo mudo e inexorável, e as coloca sob novas ordenações de sentido, num registro que nos lembra muito a natureza-morta de Giorgio Morandi (1890-1964), pintor que se dedicou a pintar garrafas, flores, paisagens, enfim, realidades domésticas aparentemente em nada atrativas. Com ele, nota-se que o poeta compartilha a atenção a um universo exterior ao mesmo tempo que revela todo um universo interior, um sentimento profundo e sensível do outro. Não por acaso uma das obras do pintor, intitulada apenas Natureza morta, ilustra a capa da 14ª edição de Toda poesia. O artista bolonhês “sempre necessitou da experiência direta para poder pintar”, de modo que “seus olhos precisavam pousar no objeto, a fim de que a sensibilidade pudesse fixar na tela a emoção capturada – e filtrada através de um gosto exigente e muito sutil” (MORANDI, 1967, p. 6). Pode-se dizer que na poesia de Ferreira Gullar há, do mesmo modo, uma necessidade do motivo para animar a experiência poética, o que é próprio do universo da pintura, uma vez que “o impulso de pintar não nasce nem da observação nem

162 da alma (que provavelmente é cega) mas de um encontro: o encontro entre pintor e modelo – mesmo que o modelo seja uma montanha ou uma prateleira de frascos de remédio vazios” (BERGER, 2004, p. 18). Tanto no pintor como no poeta, a origem desse sentimento encontra-se numa postura muito subjetiva perante a vida, ou ainda, na percepção sensível de um mundo material e imediato que se reinventa na obra de arte:

Para Morandi, a natureza-morta é uma maneira de ser, um filtro através do qual a realidade é lida, interpretada e sublimada. O artista resgata a vida silenciosa da matéria inanimada, transmitindo em cada obra a sensação de que se está diante de algo único e absoluto. Morandi conserva a permanente alusão a uma realidade que está além das aparências. Para ele, o importante é “ir até o fim, até o âmago das coisas” (MIRACCO, Renato; BANDERA, Maria Cristina, 2006, p. 227).

Na poesia de Gullar, a percepção das frutas que apodrecem, mais que a desordem dos ácidos, é a recuperação de um universo particular e afetivo. Daí a ideia de carne, conforme assinalou Michel Collot, reaparecer, uma vez que o humano se sente profundamente ligado à carnalidade das frutas, e com elas perpetua tanto um tempo fora de tempo quanto a lembrança do espaço familiar. São motivos simbólicos, portanto, que fazem ver a busca pelo essencial das coisas. Nesse sentido, parece revelador o que escreveu o poeta no texto “Último lampejo”, de Relâmpagos – dizer o ver, sobre a pintura “preponderantemente cerebral” que Giorgio Morandi fizera até 1920:

Debruça-se sobre a materialidade silenciosa desses objetos, que guardam consigo tanto o mistério ontológico da coisa quanto a atmosfera mortiça das famílias. E dessa ambígua dualidade se alimenta sua arte, que no banal revela o metafísico. Tudo isso é a expressão de um silêncio feito de pó e pátina, gestado na solidão e no abandono; um fundo de silêncio doméstico, donde emergem os utensílios gastos pelo uso, com suas cores velhas feitas de uma luz igualmente velha que as faz vibrar num comovido derradeiro lampejo. É como se Morandi surpreendesse os objetos um instante antes de se apagarem para sempre. Como aparições, às vezes quase meras manchas de cor, que a um simples sopro poderiam se desfazer (GULLAR, 2003, pp. 102-103).

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São reconhecíveis algumas destas características na obra do próprio Ferreira Gullar, sobretudo quanto a uma realidade próxima e material que perpassa sua poesia. Ele mesmo afirmou certa vez a necessidade de “revelar o que está para além da superfície do fenômeno, pois é sob a aparência sensorial das coisas que se desenvolve um processo complexíssimo chamado linguagem” (GULLAR, 1998b, p. 406). Desse modo, à sensação inicial de caos e vertigem congregam-se sentimentos ambíguos que envolvem a condição precária do ser, como, por exemplo, a consciência trágica do efêmero, do que pertence à ordem do provisório, bem como da inexplicada existência. Além do mais, assim como na pintura de Giorgio Morandi, há na poesia de Ferreira Gullar uma sensibilidade artística que revela todo um universo interior. É o caso, por exemplo, de quando recorre à vertigem de bananas – ao fluxo delas – que gritam em silêncio sua própria morte. Tal como o sujeito o pressente, todo o universo exterior ignora esse acontecimento, enquanto ele busca decifrar esse outro na sua natureza provisória e aparente. Mas é sobre peras que “se consomem / no seu doirado / sossego” (GULLAR, 2004b, p. 18), que tal discussão se inaugura nessa poesia. E já na obra de estreia, A luta corporal, num poema intitulado “As pêras”. Nele, acompanhamos a experiência perceptiva do sujeito face à concretude do mundo ao lado de uma aguda consciência do tempo móvel e corrosivo que, nas frutas, anuncia a falência futura: “O dia das pêras / é o seu apodrecimento” (GULLAR, 2004b, p. 19). Aliás, “não quer ele fazer um poema sobre as peras, rodeá-las de metáforas, sublimá-las. Quer decifrar o seu verdadeiro significado, quer se manter consciente dentro da perplexidade que aquela existência lhe desperta” (GULLAR, 2010a, p. 131). Ocupando-se dessa realidade paralela, o que o poeta nos comunica é esse mesmo fluxo temporal que às frutas e ao sujeito, todas as coisas, atravessa. O relógio, acima delas, “trabalha no vazio”. Dessa mesma atmosfera lírica, também avulta a ardência das flores “em vermelhos e azuis”, ou ainda, o gato, “felino e sem palavras” que passa tal como o sujeito “entre coisas”, ou melhor, “entre nada”. Dois tempos, portanto, sincrônicos e independentes entre si: o tempo interior (das frutas) e o tempo exterior (das coisas e dos seres).

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Assim, a natureza-morta, intimamente atrelada à apreensão física do mundo, que, como vimos, repousa no cerne do espanto gullariano, é também e sobretudo um dos modos de acesso que o sujeito escolheu para trazer à lume questões inescapáveis à sua existência. Uma poesia que se ocupa genuinamente da realidade do mundo, mas também, e principalmente, da verdade mais íntima do sujeito. Nessa direção, outro interessante registro pictórico que vale aqui recuperar é o do poema “Frutas”, publicado no livro seguinte, O vil metal:

Sobre a mesa no domingo (o mar atrás) duas maçãs e oito bananas num prato de louça São duas manchas vermelhas e uma faixa amarela com pintas de verde selvagem: uma fogueira sólida acesa no centro do dia. O fogo é escuro e não cabe hoje nas frutas: chamas, as chamas do que está pronto e alimenta.

(GULLAR, 2004b, p. 72)

À primeira vista, sobressai o forte acento plástico do poema, como se a cada verso a emoção da cena percebida se refizesse a nossos olhos. Não se identifica, no entanto, o sujeito, mas a emoção da paisagem percebida: o “centro do dia” (e do poema) são frutas que se consomem em sua “fogueira sólida” como “chamas do que está pronto e alimenta”. Na sensibilidade com que captura o resto de vida que ainda existe (ou melhor, resiste) nessa natureza-morta, o poeta nos fala na verdade do transitório, da irreversibilidade do tempo e da morte como fim último de todas as coisas. Este valor absoluto, aliás, concebe-se sob uma visão devoradora, expressa na imagem das frutas. Ao mesmo tempo, revela-nos muito da condição humana, a partir de uma voz que explana a “angústia da vida breve, do fruto que apodrece, da morte certa em hora incerta” (BOSI, 2010, p. 14). Está em cena, como sempre, a força do espanto, que é, para Alcides Villaça, não só a força móvel dessa poesia, revelada a cada novo título, pois ele

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[...] advém, em parte, da beleza do mundo, de tudo que sabe nascer e florescer nas manifestações da vida, da luz, convocando os sentidos do ser para a percepção mais intensa de seu corpo e do corpo das coisas; mas também provém do absurdo do ser e do mundo: tudo que é belo apodrece e morre, deixando a sensação da fulguração inútil (VILLAÇA, 2010).

Nestas duas abordagens críticas, divisamos um ponto de vista similar: a dualidade entre vida e morte que essa poética encerra. Quando, por um momento, o poeta se torna alheio aos barulhos externos do dia e se volta prioritariamente à materialidade de uma “realidade menor”, na pretensão de compreendê-la na dinâmica de sua própria existência, ao mesmo tempo que experimenta no próprio corpo as sensações que tal experiência mobiliza, é que reconhecemos a coexistência desses dois momentos, vida e morte, como indissociáveis. Assim, na percepção de uma vida breve e pouca, que na matéria mesma das coisas se faz reconhecível, aquelas duas perspectivas somam-se à existência encarnada do sujeito: à vertigem da descoberta agrega-se o tumulto interior, pois, reiteramos, é na experiência perceptiva da realidade exterior que a realidade íntima se torna mais exposta. Por isso mesmo, o tempo das bananas transmuda-se num problema interior, na consciência do tempo que igualmente consome o próprio ser. Talvez possamos, nesse sentido, concordar com Antonio Candido e Gilda de Mello e Souza, quando, em estudo sobre a poesia de Manuel Bandeira, privilegiaram essa visão “de um materialismo amplamente universal no seu desdobramento”. Segundo os autores:

Talvez isto se deva, em parte, ao fato dela ancorar, de um lado, na matéria e na carne como realidade suficiente; mas, de outro, ter como segundo ponto de referência a destruição de ambas, isto é, a morte – demônio familiar desses versos em que entra a cada passo, como mediação e limite. Vida e morte se opõem para se unirem numa unidade dinâmica, por entre o céu e o inferno da existência de todo dia (MELLO E SOUZA, 1980, p. 59).

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Sobre essas duas realidades, vida e morte, interessa dizer que interagem concomitantemente – numa espécie de luta, “vai morrer, não quer morrer.” (GULLAR, 2004b, p. 175) – na poesia gullariana e estão intimamente ligadas à consciência do sujeito de sua natureza limitada. A visão positiva da vida aliada a um sentimento de esperança e resistência – “Todos te buscam, facho / de vida, escuro e claro” (GULLAR, 2004b, p. 180) –, emana diante da imutabilidade que habita o cotidiano, mantendo-nos impotentes, uma vez que não oculta a convicção de que a morte é uma certeza inelutável. Cabe ver ainda outro poema de O vil metal, intitulado “Jarro na mesa”:

Sobre o centro da mesa há um jarro de flores azuis brancas puídas Dia 5 de março Há um jarro pintado cheio de flores

Há no quintal uma galinha velha se espojando na terra velha no esquecido deserto

Sob o jarro há uma toalha de brim bordada de linha como a sombra das flores à sombra das flores e no quintal o bicho que não é pintura entregue a si mesmo como está Saturno Há um jarro uma palavra seca mas florida na boca da terra jarro pintado filho do homem

(GULLAR, 2004b, p. 85)

Já de início, nas duas primeiras estrofes, dois universos paralelos e independentes – novamente a dualidade dentro/fora – se concentram no poema: o universo familiar, a casa, e o universo fora, externo. No primeiro, o sujeito sob a perspectiva do observador que se ocupa da natureza-morta na parede; no segundo, fora da casa, “o bicho que não é pintura / entregue a si mesmo / como está Saturno”. Logo, seu espanto é aqui de natureza dupla, comporta simultaneamente a dualidade entre o dentro e o fora; dentro dessa

167 dualidade, o poeta busca situar cada coisa, dando-lhes forma e sentido, porque são duas realidades que, se não participam uma da outra, é no sentimento desse “sujeito encarnado” que elas perfeitamente se traduzem. Além disso, chama a atenção o forte acento visual e plástico do poema, a partir do tema artístico da natureza-morta, concretamente aludido na pintura de um jarro de flores sobre a mesa. A força do instante, aqui recuperada, é mais uma vez sintoma da sensibilidade perceptiva do sujeito: é na abertura ao fora, ao outro, ao evocar a qualidade visual do objeto aludido, que reconhecemos a explanação desses dois espaços que têm ademais no sujeito da enunciação seu centro reflexivo. Vale a pena destacar ainda uma série de poemas que, desde o livro Na vertigem do dia até Em alguma parte alguma, formam uma constante em seu universo literário. Em regra, são exemplares de uma poética centrada na percepção plástica da realidade, em que o poeta persegue novamente os meandros daquelas vidas silenciosas, “a tarde / do fruto” que “se conclui por força do processo interior de seu corpo e, sem gritar, sem cantar, sem falar, apodrece” (GULLAR, 2010a, p. 130), ao mesmo tempo que anuncia todo um universo íntimo e familiar – a possível identidade entre o eu e uma realidade (a infância) perdida. Comecemos por “Bananas podres”. Nesse poema, a existência das bananas é apenas “(parte mínima da tarde) / em abril / enquanto vivemos”, uma vez que o universo paralelo de coisas – incluso o mar, “que / da quitanda / não se escuta” (GULLAR, 2004b, p. 315) – não acompanha a vertigem das frutas “manchadas de morte” e que ardem dentro de sua carnadura num misto de água e ácidos. “Em tudo aqui há mais passado que futuro / mais morte do que festa”. No “[...] macio dessa vida / de fruta / inserida na vida da família” (GULLAR, 2004b, p. 317), o tempo arde e fere. Mas não só nela. Em direção à morte, “[...] bananas podres / mar azul / fome tanque floresta / são um mesmo estampido / um mesmo grito” (GULLAR, 2004b, p. 318) que as pessoas não ouvem. Assim, na desordem aparentemente espontânea a que se direciona, o mel das bananas, “podre fogo”, gravita em torno da tarde, das pessoas, das ruas, de outras quitandas espalhadas pela cidade azul. Gravita até mesmo no mar atrás, longe das bananas que apodrecem, longe dessa “realidade menor”, “parte mínima da tarde”, do século, mas que, ainda assim,

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[...] tem a ver com esta gente com estes homens que o trazem no corpo e até no nome tem a ver com estes cômodos escuros com esses móveis queimados de pobreza com estas paredes velhas com esta pouca vida que na boca é riso e na barriga é fome

No fundo da quitanda na penumbra fervem a chaga da tarde e suas moscas; em torno dessa chaga estão a casa e seus fregueses o bairro as avenidas as ruas os quintais outras quitandas outras casas com suas cristaleiras outras praças ladeiras e mirantes donde se vê o mar nosso horizonte

(GULLAR, 2004b, p. 319)

É interessante notar aqui o movimento de expansão do poema. Em algum momento, como no Poema sujo, o poeta se ocupa de verbalizar realidades outras, paralelas a essa realidade do fruto, em uma percepção na qual a visão sobre uma coisa é estabelecida em relação às demais que estão em seu entorno. A compreensão dessa dinâmica, encontramos nas palavras de Michel Ribon, quando assegura que:

Apesar de sua proximidade e de suas diferenças, as coisas nunca são rivais, mas interdependentes. Restabelecida na superfície, a profundidade do ser torna-se fluxo, desdobramento, vibrações, badaladas, irradiações. Arrancada à inércia, a coisa já não está fechada em si mesma, mas aberta a um contato universal do qual extrai, com sua razão de ser, a substância; cada figura liberta-se de sua referência prosaica, em proveito de sua função poética e ontológica: o objeto pictórico desempenha sua parte no concerto da presença intemporal (RIBON, 1991, pp. 119-120).

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Essa mesma ideia de “fluxo, desdobramento, vibrações, badaladas, irradiações”, na qual a coisa estabelece contatos com um fora, encontramos no poema “Bananas podres 2”. Nele, acompanhamos a cidade, “com seus rios e mangues seus canteiros / sua cúpula azul feita de vento / suas crianças de carne seus sobrados / cheios de conversas / e afazeres” (GULLAR, 2004b, pp. 331-332). “Essa tarde”, em volta da quitanda, “era a história brasileira / que balançava as árvores / passando”, “pouco antes da segunda grande guerra”:

enquanto sobre o balcão da quitanda nas bananas que apodreciam a história era um sistema de moscas e de mel zoando naquele determinado ponto da cidade, do país; naquele determinado ponto da família, como um câncer

(GULLAR, 2004b, pp. 332-333)

Nas frutas que apodrecem no fulgor de uma “tarde quente”, como tantas outras que houve na “cidade azul” de São Luís do Maranhão, o poeta recria um passado que é de todo memória. Recria, ao mesmo tempo, como lemos no poema “Bananas podres 5”, a história brasileira, que nele se fazia como espectador da falência de frutas: “(enquanto Newton Ferreira / discutia a guerra / detrás do balcão / de sua quitanda, próximo dali, / na esquina de Afogados com a rua da Alegria)” (GULLAR, 2010c, pp. 59-60). Ao ligar “uma tarde a outra tarde”, através de um sentimento de perda e afeto, o sujeito reconstrói a si mesmo como homem do presente, movendo-se simultaneamente entre dois polos dialéticos, ao mesmo tempo que se reconhece na muda vertigem que esplende “em alguma parte da vida” (GULLAR, 2010c, p. 50), como lemos em “Bananas podres 4”, “[...] / o que efetivamente ocorreu / na cidade de São Luís do Maranhão / ao norte do Brasil / por volta de 1940...” (GULLAR, 2010c, p. 52).

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Por outro lado, e mais uma vez, sobre a representação da morte que ao fruto inelutavelmente aniquila – e que, nesse caso, remete claramente à temporalidade de Cronos – essa realidade outra ascende a inescapáveis reflexões de ordem existencial. Portanto, não são somente bananas que em seu próprio tempo apodrecem num prato sobre a mesa, mas toda a existência do sujeito, isto é, sua verdade mais íntima encarnada no fluxo delas. A percepção exterior transmuda-se então num sentimento interior. De um lado, estão estas frutas cravadas na memória como imagens do afeto; de outro, compartilham uma percepção do tempo, intimamente atrelada à inquietação da existência, de maneira que ultrapassam seu sentido prévio e iluminam novas acepções sobre as inquietudes que movem essa poesia. “O materialismo, ao viver e reconhecer esse drama, passa a ter acento metafisico enquanto vigora a tensão entre as sensações do mundo e a consciência agônica do tempo” (BOSI, 2003, p. 178). É na “balbúrdia dos ácidos”, que lenta e irreversivelmente se arrasta “em direção ao caos”, que o sujeito discerne a própria razão de ser. Nessa fixação do sujeito, observa-se também uma historicidade entre sujeito e objeto observado; uma espécie de origem que se refaz a cada experiência perceptiva do sujeito com as coisas e com o mundo. Essa compreensão, encontramos de novo na fenomenologia de Merleau-Ponty:

Quando olho rapidamente os objetos que me circundam para situar-me e orientar-me entre eles, mal tenho acesso ao aspecto instantâneo do mundo”, identifico aqui a porta, ali a janela, mais adiante a minha mesa, que são apenas os suportes e os guias de uma intenção prática orientada em outra direção, e que agora só me são dados como significações. Mas, quando contemplo, um objeto com a única preocupação de vê-lo existir e desdobrar diante de mim as suas riquezas, então ele deixa de ser uma alusão a um tipo geral, e eu me apercebo de que cada percepção, e não apenas aquela dos espetáculos que descubro pela primeira vez, recomeça por sua própria conta o nascimento da inteligência e tem algo de uma invenção genial: para que eu reconheça a árvore como uma árvore, é preciso que, abaixo desta significação adquirida, o arranjo momentâneo do espetáculo sensível recomece, como no primeiro dia do mundo vegetal, a desenhar a ideia individual desta árvore (MERLEAU-PONTY, 2011, pp. 74-75).

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Como vimos, o sujeito só reconhece as coisas que percebe, sente ou imagina porque já as experimentou uma outra vez, porque já se fizeram presentes em sua vida. Passamos, então, para um outro campo de observação, mais refletido e apurado. Não se trata somente de situar-se entre os objetos que contempla, mas de demorar-se neles, ocupar-se prioritariamente de sua existência, orientar-se na vertigem de uma sensação que ao sujeito assoma e o orienta à reflexão:

Daí há, também, o interiorizar: enfatizar a interioridade daquilo que está à sua frente ou onde você está. Os significados mais profundos, as complexidades mais profundas de alguma coisa – de forma que, toda vez que você olhá-la ou adentrá-la, ela assume um outro nível de significado. Quando se olha um quadro, a princípio ele é somente uma superfície plana e, mesmo assim, há profundidade nele. Cada vez que se está com ele, ele se torna mais profundo, e também nos tornamos mais profundos (HILLMAN, 1993, p. 39).

Essa interiorização das coisas, de que nos fala James Hillman em Cidade e alma, é consequente da série de significados que elas trazem em si mesmas, na sua presença material. Segundo ele, “a psique inclui o mundo – há alma em todas as coisas. Cada coisa de nossa vida urbana construída tem uma importância psicológica” (HILLMAN, 1993, p. 9). Partindo da perspectiva da cidade como espaço de nossas experiências, da relação que estabelecemos com as coisas, o autor considera que as coisas “têm alma” porque acontecem numa rede de relações, estabelecem conosco uma realidade íntima. É o que vemos na poesia gullariana, nessa estreita relação com o objeto percebido, que obriga a reiterada reflexão sobre ele. Relativamente a esse sentimento expresso por intermédio da atenção demorada a uma natureza-morta na poesia de Ferreira Gullar, há ainda como que uma memória involuntária que expõe claramente um passado afetivo e por ele pressentido: o da infância, na quitanda do pai Newton Ferreira em São Luís do Maranhão. Trata-se novamente, conforme já assinalamos, da memória de uma sensação que surge de maneira inesperada. Afinal, para dizer com Octavio Paz (1988, p. 52), “os nomes, já sabemos, estão ocos; mas o que não sabíamos ou, se sabíamos, havíamos esquecido, é que as sensações são

172 percepções de sensações que se dissipam ao serem percepções, pois se não fossem percepções como saberíamos que são sensações?” Um excerto muito representativo desse estado é o que lemos em “Bananas podres”:

Os seus risos vozes lembro-os sem ouvi-los, mas o perfume daquelas frutas que feito um relâmpago desceu na minha carne e ali ficou, parado, esse de vez em quando volta a esplender

(GULLAR, 2010c, p. 44)

Aqui, a percepção passa a pertencer a um outro domínio, o da sensação. Retomando o pensamento de Michel Collot, podemos dizer com ele que:

Nós o experimentamos mais comumente por intermédio de outros canais do que pela vista, que é o mais intelectualizado de nossos sentidos; sabe-se a que ponto os odores, os sabores ou as sensações tácteis podem solicitar a memória afetiva e (res)suscitar um universo indissociavelmente interior e exterior (COLLOT, 2015, p. 20).

Na poesia gullariana, é sobretudo o olor de flores e frutas que sobrevém ao sujeito por intermédio da memória involuntária, reacendendo todo um universo afetivo e particular do sujeito:

A la différence de la remémoration intencionelle, le souvenir involontaire préserve ce caractère d’horizon de notre passé le plus profond. Dans un éclair fulgurant, le révolu ne se révèle d’abord qu’en se voilant: il s’apprésente à l’horizon du présent, comme son double fond, seulement pressenti. Au moment où il semble occuper toute la conscience, il échappe à sa prise (COLLOT, 2005, p. 61).

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Além disso, “le rappel du souvenir involontaire est un appel, car il est rappel de l’inconnu: il confronte le sujet à un element de son passé intime qu’il n’a jamais vraiment connu, et qui, par là-même, requiert toutes ses facultés de connaissance” (COLLOT, 2005, p. 62). O passado, então, se refaz como paisagem, cravado no sentimento da perda e do afeto, pois, “c’est souvent comme paysage que le passé se redonne alors à la conscience” (COLLOT, 2005, p. 63). Para finalizar, resulta profícuo lembrar Ernst Hans Gombrich quando, acerca do universo pictórico de Paul Cézanne – que podemos estender aqui ao universo da natureza- morta em Ferreira Gullar –, mais propriamente de suas maçãs, observando-as não só como uma escolha pessoal do artista, mas também a partir da desenvoltura com que ele as aborda em suas obras, observou que:

Seguramente, aqueles que apenas as comparam em suas mentes com maçãs vistas nos quitandeiros não extrairão disso muito conforto ou edificação. Comparando-as com maçãs-padrão de naturezas-mortas é que encontramos, na concentração sincera do mestre na forma delas, mais do que na sua textura, um sintoma de sua atitude para com a vida, de sua busca obstinada do essencial (GOMBRICH, 1999, pp. 99-100).

No caso da poesia gullariana, encerram um sentido maior. Falam-nos da experiência perceptiva do mundo, do eu “entre coisas”, sensivelmente atento à matéria- mundo. Por outro lado, são essas mesmas frutas um modo de perceber a morte. A morte, espelhada nesse outro que é cada vez menos seu avesso, e o prolongamento de sua história, dolorosamente dispersa no tempo. Daí reconhecer no poema “Omissão” a fatalidade do sujeito que “[...] diverte ser espectador da morte, que é também a nossa” (GULLAR, 2004b, p. 364). Esse retorno praticamente obsessivo a essas imagens reforça, sem dúvida, o consentimento doloroso do destino a que ele (e todos) está fadado. No fruto – que em silêncio caminha em direção à morte –, o poeta parece ter encontrado a síntese do efêmero e, reiteramos, de si mesmo. Por isso, João Luiz Lafetá acrescenta: “De fato, o imaginário dolorido daqueles poemas liga-se, em nível imediato, a uma atormentada visão da existência individual, do fluir do tempo, da impossibilidade de atingir – pela linguagem

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– a plenitude poética” (LAFETÁ, 2004, p. 227). É o que, dentre outras coisas, faz o sujeito se abrir à alteridade das coisas e do mundo.

5.3 O perto e o distante

O microscópio e o telescópio confundem efetivamente o puro sentido humano.

(Goethe)

No âmbito dessa experiência perceptiva do mundo, há ainda outro aspecto que convém ressaltar. Dada a consciência de uma simultaneidade que, conforme apontou a crítica, aparece com especial ênfase a partir do Poema sujo, nas produções posteriores do autor se faz ainda mais notável a fusão entre duas instâncias, o perto (o instante) e o distante (o infinito), aparentemente díspares e paradoxais, mas que no poema se encontram e se complementam. Tal interesse reflexivo, se já aparece desde o início, embora ao lado de outras indagações, só recebe especial ênfase em seu derradeiro livro, Em alguma parte alguma, revelando-nos que nem só da realidade concreta se ocupam os espantos do poeta. De fato, num relance, o senso do visível – do que é finito e próximo ao sujeito – transporta-se para o senso do imaginado – distante e desconhecido – e ambos, instante e infinito, tornam-se compossíveis no poema. Desse movimento reflexivo que no contexto da poesia do autor pode ser pensado como “uma súplica ao vazio, diálogo com a ausência” (PAZ, 1982, p.15), o que importa entender é como o poeta o contrasta com a realidade sensível do mundo, uma vez que a transcendência aqui, como parte de uma consciência moderna, é entendida por ele como originária do mundo mesmo. Num percurso de experiências limites, esse interesse de verbalizar a matéria infinita do cosmos parece ser também na poesia de Ferreira Gullar uma espécie de desdobramento da reflexão, mostrando-nos o alcance cada vez mais ampliado de seu

175 espanto. Não obstante, é também, e novamente, a projeção do impasse que irreversivelmente se coloca ao sujeito, afinal, no “duplo movimento do olhar: para o alto e para fora na percepção do universo e seus prodígios – luz, estrelas, água, plantas –; e para dentro sob a forma de estranheza pela condição humana, reduzida a tão pouco, mas ainda assim clarividente” (BOSI, 2010, p. 14); há como que uma espécie de assombro e fascínio que involuntariamente assoma o sujeito. Concentrando suas reflexões “Em torno do Poema sujo”, Alcides Villaça (2008, p. xlix) assinalou que há na poesia de Ferreira Gullar uma “obsessão de reconhecer o particular”. Podemos buscar as causas para isso no livro Indagações de hoje de autoria do próprio poeta, para quem “na literatura não é o universal que vai revelar a significação do particular; é o particular (este vaso de flor aqui na minha sala) que vai revelar a sua própria universalidade” (GULLAR, 1989, pp. 148-149). Nessa direção, do universal a coexistir no particular, relembremos que Ferreira Gullar, ao analisar a poesia de Augusto dos Anjos, argumentou que foi o autor de Eu quem primeiro exprimiu, no plano da lírica brasileira, tal urgência existencial, de modo que:

Recife, o Engenho do Pau d’Arco não são mais apenas Recife e o Engenho. São também um “lugar do Cosmos”, um ponto qualquer do universo e do tempo, onde Augusto, com sua consciência – “última luz tragicamente acesa na universalidade agonizante” –, indaga sofre o mistério da existência. Jamais, antes dele, na poesia brasileira, essa indagação se fizera em tal nível de urgência existencial e de expressão poética (GULLAR, 2008a, p. 1018).

No caso da poesia gullariana, não há como não lembrar a cidade natal de São Luís Maranhão, reinventada criticamente por ele no Poema sujo. Neste caso, São Luís é a sua “cidade azul”, tem, para ele, um caráter afetivo. Mas é também qualquer cidade; como a Recife de Augusto dos Anjos, é igualmente “um ponto qualquer do universo e do tempo”. Esta, aliás, se a retomamos, é porque nos permite uma melhor compreensão da particular fusão entre o instante e o infinito, na esteira daquela dialética – “uma coisa está em outra” – que rege o Poema sujo.

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Assim, se o poeta reconhece o fluxo de sua existência na materialidade do mundo, como no exemplo das frutas em processo de putrefação, quando o sujeito assim se espelha, tal proximidade ascende a uma outra coisa, mais grave e reflexiva. Para Merleau- Ponty (2014, p. 20): “O mundo é o que percebo, mas sua proximidade absoluta, desde que examinada e expressa, transforma-se também, inexplicavelmente, em distância irremediável”. É quando, então, a poesia do autor se distancia dessa realidade próxima e ascende à reflexão da matéria cósmica, esse material tão além do material, que ao sujeito poético particularmente fascina. Por outro lado, compreende que o cosmos não é uma saída confortável, por ser ausência de vida e consciência e estar atravessado por um silêncio que o aproxima daquela “transcendência vazia”, tal como assinalou Hugo Friedrich em Estrutura da lírica moderna. Num ensaio publicado em 2003, ocasião em que Muitas vozes figurava como o derradeiro livro de Ferreira Gullar, Alfredo Bosi notou esses dois momentos da poesia do autor nos seguintes termos:

Há, ao lado da aproximação do eu com o mundo, e da sua mútua atração, o outro momento, em que o sujeito contempla a distância aparentemente infranqueável que os separa. Assim, a história é feita do tempo das paixões humanas, demasiado humanas, mas os astros (como já o disseram com diversas filosofias Pascal e ) moram e demoram lá no alto e não escutam os gritos desse bicho da terra tão pequeno. Homem e cosmos ignoram-se: coexistem apenas, em tempos diferentes (BOSI, 2003, p. 179).

Tempos diferentes, mas que se encontram no interior do sujeito. Aliás, entre o instante e o infinito, está o sujeito, novamente num entre-lugar, ou melhor, “entre coisas”. Daí ele se perguntar, por exemplo, no poema “Universo”, de Em alguma parte alguma: “E assim, assustado e mudo, / bem menor que um ínfimo / grão de poeira, contudo, / sou capaz de apreender, no meu íntimo, // essas incontáveis galáxias, / esses espaços sem fim, / essa treva e explosões de lava. / Como tudo isso cabe em mim?” (GULLAR, 2010c, p. 80).

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Ora, se a realidade física e concreta das coisas é, desde a estreia, uma constante na poesia de Ferreira Gullar, as referências ao cosmos, por sua vez, são de início muitos sutis, comparecendo muito raramente nos poemas. Em Dentro da noite veloz, por exemplo, no poema “No mundo há muitas armadilhas”, ao lado do sentimento do vasto que o cosmos alimenta no sujeito, o que prevalece é a fatalidade em saber-se precário e finito: “Tua janela por exemplo / aberta para o céu / e uma estrela a te dizer que o homem é nada” (GULLAR, 2004b, p. 163). Já num outro poema do mesmo livro, intitulado “Por você por mim”, o poeta lembra que a rotação do tempo humano em nada se assemelha à rotação do tempo cósmico, isto porque

[...], o motor da vida gira ao contrário, não para sustentar a cor da íris, a tessitura da carne, gira ao contrário, a desfazer a vida, o maravilhoso aparelho do corpo, gira ao contrário das constelações, a vida ao contrário, dentro de blusas, de calças, dentro de rudes sapatos feitos de pano e palha, gira ao contrário a vida feita morte.

(GULLAR, 2004b, p. 185)

Ambos, portanto, o motor da vida e as constelações em seu próprio espaço e tempo. Além disso, a enormidade do cosmos vem corroborar a insuficiência agônica desse eu restrito em um corpo, um corpo como se sabe efêmero e insuficiente, que, inclusive, como explicita o poema “Vendo a noite”, desconhece a proporção desses espaços distantes: “Velhas explosões de gás / que meu corpo não ouve” (GULLAR, 2004b, p. 193). É ainda em Dentro da noite veloz, mais especificamente em “Poema”, que reconhecemos, na mediação reflexiva entre a fragilidade do sujeito e a vastidão cósmica, a impossibilidade comunicativa entre ambos. Assim, se em “O trabalho das nuvens”, de A luta corporal, já se nota a indiferença cósmica como uma das inquietudes mais

178 recorrentes em sua poética posterior, “as nuvens ignoram / se deslizam por sobre / nossa cabeça: nós é que sabemos que / deslizamos sob elas: as / nuvens cintilam, mas não é para / o coração dos homens.” (GULLAR, 2004b, p. 17); tal percepção agora se expande significativamente, compreendendo o sujeito que:

Se morro o universo se apaga como se apagam as coisas deste quarto se apago a lâmpada: os sapatos-da-ásia, as camisas e guerras na cadeira, o paletó- dos-andes, bilhões de quatrilhões de seres e de sóis morrem comigo.

Ou não: o sol voltará a marcar este mesmo ponto do assoalho onde esteve meu pé; deste quarto ouvirás o barulho dos ônibus na rua; uma nova cidade surgirá de dentro desta como a árvore da árvore.

Só que ninguém poderá ler no esgarçar destas nuvens a mesma história que eu leio, comovido.

(GULLAR, 2004b, p. 217)

Nestes versos, a percepção de que diante do Universo o sujeito se equipara aos mudos objetos do quarto, “os sapatos-da-ásia, as camisas / e guerras na cadeira, o paletó- / dos-andes”, se desvela um desconcerto quanto à natureza indiferente do cosmos em relação à precariedade humana, anuncia, por outro lado, e mais uma vez, a perspectiva da simultaneidade, compreendendo o sujeito que, sem ele, “o sol voltará a marcar” inalteravelmente o mesmo ponto onde esteve um dia. Convém lembrar que o espanto cósmico também perpassa (sem se demorar, no entanto, nas reflexões) os versos do Poema sujo. Na complexa elaboração imagética – intercalada entre espaços e tempos distintos – do poema, acompanhamos a reflexão sobre

179 o cosmos adentrar a cena poética como um modo de reafirmar a constatação da precariedade do sujeito. Este, agora, profundamente encarnado no mundo, “misturado” às constelações, a todos os sistemas que compõem essa existência. Mas o que realmente importa destacar é como essa compreensão se expande a partir de Na vertigem do dia, considerando que é quando a percepção do perto e do distante torna-se cada vez mais notória e frequente no poemas do autor. Num deles, por exemplo, intitulado “Homem sentado”, a cena poética é bem parecida com a que encontramos no Poema sujo, vejamos:

Neste divã recostado à tarde num canto do sistema solar em Buenos Aires (os intestinos dobrados dentro da barriga, as pernas sob o corpo) vejo pelo janelão da sala parte da cidade: estou aqui apoiado apenas em mim mesmo neste meu corpo magro mistura de nervos e ossos vivendo à temperatura de 36 graus e meio lembrando plantas verdes que já morreram

(GULLAR, 2004b, p. 302)

Na dupla percepção de si mesmo e da cidade, “num canto do sistema solar”, o sujeito poético se vê situado dentro de uma universalidade, a Via-Láctea, estando ao mesmo tempo amparado em sua própria existência, ou, como ele mesmo diz, “apenas em mim mesmo”. Assim, se a expansão do sujeito para “fora de si” é temporária, uma vez que logo retrocede e se internaliza de volta no eu, não se pode deixar de notar que homem e cosmos são entendidos aqui como realidades simultâneas. Estas, embora suficientes em si, tornam-se compossíveis no poema, novamente como reflexo da simultaneidade que o poeta explorou no livro anterior, o Poema sujo.

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Desse modo, o conjunto de imagens que acenam para a materialidade do mundo – e que mantém o poeta comprometido na decifração do enigma que as envolvem – pode ao mesmo tempo referir-se a uma realidade dotada de um caráter universal, porque inserida no complexo sistema da Via-Láctea. Em outras palavras, imbricados no sistema- mundo, instante e infinito são uma mesma realidade, sem necessariamente suprimir a distância entre o ser e o mistério espaço abissal, como lemos em “Ano-Novo”, de Barulhos: “Olho o céu: / o abismo vence o / olhar. O mesmo / espantoso silêncio / da Via- Láctea feito / um ectoplasma / sobre a minha cabeça: / nada ali indica / que um ano novo começa.” (GULLAR, 2004b, p. 375). De inscrição polifônica, o livro Muitas vozes acentua aspectos muito profícuos a essa reflexão. Aqui, tal inquietude realmente se consagra como uma constante ao expandir significativamente a imagística cósmica. Publicado em 1999, o livro foi aclamado pela crítica pelo alcance e profundidade das vozes que atravessam seus poemas. Angariou, inclusive, os prêmios Jabuti, na categoria poesia, e o Alphonsus de Guimaraens, da Biblioteca Nacional. Alfredo Fressia, que traduziu para o castelhano o Poema sujo, considerou Muitas vozes como

una obra de culminación, no porque el poeta detenga su labor creativa, sino porque reúne y sintetiza las voces de una poética que, en casi medio siglo, se busca a si misma, se encuentra en cada obra y se sintetiza en la polifonía explícita de este más reciente opus (FRESSIA, 2007, p. 15).

No livro ademais já estaria traçado o caminho de sua poesia posterior, sobretudo de seu derradeiro livro, Em alguma parte alguma, que só viria a lume onze anos depois da publicação de Muitas vozes. Nele, é notório a expansão desse movimento reflexivo que transmuda a percepção da realidade numa inquietação metafísica. Ou, para concordamos com Alfredo Bosi:

À medida que as contradições se aprofundam e se interiorizam, tangenciando o limite entre a vida e a morte, emerge aquele sentimento universalizante que faz a poesia da matéria receber acentos de drama

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metafísico. E o que era instante solitário e fugaz da percepção, o que era pulsão do corpo e da alma de um só indivíduo, entra no processo de comunicação, atravessa o tempo e ganha a consistência (vulnerável embora) de um sentido (BOSI, 2003, p. 185).

Entre a reflexão e a redescoberta, portanto, o reconhecimento do ínfimo ascende ao estranhamento do infinitamente grande. Desse modo, quando a realidade exterior é posta em conflito com o interior do sujeito ocorre o estranhamento. Além do mais, a totalidade aspirada não se concentra aqui sobre o problema poético, mas numa perspectiva mais existencial, iluminando algumas tensões e inquietudes que perpassam continuamente a poesia de Ferreira Gullar, sobretudo no que tange à indagação da subjetividade. Daí a perspectiva contrastante “em amorosa tensão” (BOSI, 2010, p. 15), sob a qual se engendra essa aproximação do cosmos com a materialidade do real. Assim, no tênue espaço que separa o instante e infinito, dois momentos tão contíguos quanto distantes entre si, instala-se cada vez mais a consciência no sujeito de que não pode ignorar o fato de estar inserido “no feroz / silêncio / do cosmos”. O que o faz aceitar, aliás, que diante da vastidão cósmica, seu poema é apenas um “inaudível ruído” (GULLAR, 2004b, p. 459). Ciente disso, ao sujeito importa apenas – e é o que os poemas de Muitas vozes parecem apontar – a proximidade concreta do real. Até porque, como confirma em “Pergunta e resposta”, o poema só é

[...]: Inaudível para quem esteja na galáxia NGC 5128 ou na constelação de Virgo ou mesmo em Ganimedes onde felizmente não estás, Cláudia Ahimsa, poeta e musa do planeta Terra.

(GULLAR, 2004b, p. 459)

Quanto a esses dois espaços, podemos dizer também que se o sujeito extrapola o primeiro (íntimo e próximo a ele) para adentrar o segundo (enorme e distante) é ainda

182 para entender-se a si mesmo e ao outro; afinal “na ausência dos Deuses as coisas tendem para as enormidades” (HILLMAN, 1993, p. 144). Não obstante, quando abstraída a distância desse enigma cujo sentido o ultrapassa, esgota-se nele o veio reflexivo e a atenção se reinstala no mundo em redor – espaço de entrega e reconhecimento. Tal movimento de volta à psique do sujeito parece aproximar-se, para concordar ainda com James Hillman, daquele “movimento do quando/então”: “Quando o mundo exterior fica enorme, então nos voltamos para o “eu” interior e, também, quando nos voltamos para o “eu” interior, então o mundo fica enorme” (HILLMAN, 1993, pp. 147-148). Voltando-se para a esfera de si mesmo, o sujeito se indaga do seu fim: “Teu coração, / esse mínimo pulsar dentro da Via Láctea, / em meio a tempestades solares, / quando se deterá? / Não o sabes pois a natureza ama se ocultar.”. Sem indícios, contudo, de angústia ou desespero, pois, como ele acrescenta: “E é melhor que não o saibas / para que seja por mais tempo doce em teu rosto / a brisa deste dia / e continues a executar / sem partitura / a sinfonia do verão como parte que és / desta orquestra regida pelo sol.” (GULLAR, 2004b, p. 480). Por aí já se nota que muitas das pesquisas anteriores reaparecem em coordenadas espaciotemporais que reafirmam de fato a máxima de que “uma coisa está em outra”. Voltando-se, por sua vez, o sujeito simultaneamente à realidade concreta e à realidade cósmica, reinaugura a discussão da subjetividade – o eu efêmero a contemplar o que é eterno –, agora intercalada entre espaços de reconhecimento e de estranhamento. Aparentemente, o sujeito parece conformar-se dentro desse complexo “sistema de coisas”. A tal ponto que não parece mais haver a separação entre dentro e fora, uma coisa se transmuda em outra, afinal: “A vida está / dentro da vida / em si mesma circunscrita / sem saída.” (GULLAR, 2004b, p. 393). Com isso, “não tem fora porque / o dentro é tudo o que há / e por ser tudo / é o todo: / tem tudo dentro de si / até mesmo o fora se, / por hipótese, / se admitisse existir” (GULLAR, 2010c, p. 91). Publicado em 2010, os poemas da segunda parte de Em alguma parte alguma, vêm somar-se à essas reflexões. Chama a atenção, desde logo, o título do livro. De fato, é reveladora essa compreensão do poético, sobretudo se pensarmos que, de início, Ferreira Gullar esteve ocupado de uma vertiginosa “luta corporal” com a linguagem. Aqui, ao contrário, o poeta não mais compartilha dessa visão combativa e obsessiva da busca pelo

183 essencial, pois a poesia é agora – e já desde os poemas de Na vertigem do dia – consequente sobretudo dos imprevisíveis espantos da vida cotidiana. Considerando que onze anos o separam de Muitas vozes (1999), o livro não passara despercebido do público e da crítica, sobretudo no que tange a essa dialética entre o instante e o infinito. No prefácio da obra, Alfredo Bosi (2010, p. 14) observa que “Dessa poesia – capaz de ouvir as explosões das galáxias e atentar para o instante da mosca pousada na toalha – ainda não tínhamos conhecimento preciso”. Já Antonio Carlos Secchin, chama a nossa atenção para a “urgência da vida” que prepondera nos poemas do livro, “por meio de um olhar que se lança tanto microscopicamente à textura espessa das frutas condenadas ao apodrecimento, quanto telescopicamente à solidão esquiva e silenciosa do cosmo” (SECCHIN, 2010, p. 17). Em texto publicado na Revista Cult, em 2010, Alcides Villaça ressalta o caráter político e o caráter poético da obra de Ferreira Gullar, bem como das muitas indagações cada vez mais presentes, “porque o sentimento primitivo de um grande absurdo (do maior espanto) ameaça instalar-se como definitivo – e as perguntas nascem como que tomando satisfações dos propósitos da ordem e da desordem do cosmo”. Ao revisar a trajetória do poeta, o crítico ainda observa: “a luta expandiu-se e revelou-se existencial, política e metafísica, variando a intensidade com que cada ímpeto desses preponderou ao longo da vida”. De fato, temas caros ao poeta reaparecem nos poemas de Em alguma parte alguma ao lado de novas inquietações. Há, por exemplo, reveladores poemas que ampliam as reflexões sobre o cosmos. Do mesmo modo, é colocado o problema da insuficiência da linguagem em apreender a totalidade do objeto a que alude, surgindo, assim, a perplexidade daquilo que não tem correspondência com sua precariedade (o osso) e é passível de permanência, seu duplo, pois diferentemente dele, não carrega o “peso do corpo / que sou eu / culpado e pouco” (GULLAR, 2010c, p. 38). Localizamos, ainda, a recorrência de temática referente à particular abertura ao espanto do mundo sensível que desordena os sentidos bem como poemas que versam sobre a sua admiração pelas artes plásticas. Como em toda a obra do autor, permanece uma discussão do corpo, agora, dúplice. Ou seja: o sujeito se confunde entre si mesmo e o outro, como é o caso da reflexão que desenvolve no poema “Reflexão sobre o osso da minha perna”, a respeito da acidental

184 redescoberta do osso, essa matéria densa que a ele se junta: “a parte mais mineral / e obscura / de mim”. Esta, ao esquivar-se da fácil deterioração das coisas, promove a ilusão de não pertencimento ao ser, que, entre o espanto da descoberta e a reflexão demorada e autoconsciente, se indaga: “o osso / este osso / (a parte de mim/ mais dura/ e a que mais dura) / é a que menos sou eu?” (GULLAR, 2010c, pp. 31-32). Por outro lado, o olhar reflexivo dispensado à realidade é essencialmente duplo: desnuda desde as coisas consideradas mais ínfimas e banais até a complexidade do universo cósmico. Esse afastamento, porém, do sujeito do mundo físico não é definitivo, ao contrário, valida a necessidade de autorreconhecimento que ele sente quando focaliza a realidade material das coisas. Ora, se retomamos alguns dos eixos reflexivos que atravessam o livro é para apontar a excepcionalidade de como esse universo material e imediato se expande para aquilo que ultrapassa o próprio material (o cosmos). Esse núcleo cósmico, inclusive, abrange os poemas que enfeixam a segunda parte do livro. No conjunto, dialogam-se numa sintaxe por vezes muito próxima nas suas significações: “abismo”, “silêncio”, “espaços sem fim”, “treva”, “explosões de lava”, “inalcançável vastidão escura”. Assim, se há ao longo de toda obra uma “sintaxe do real”, pode-se dizer que há também uma sintaxe do cosmos, uma vez que quando já não é mais possível encontrar um sentido na materialidade das coisas e do mundo, a poesia gullariana se expande a dimensões mais complexas. Para chegarmos ao entendimento dessas questões, sobretudo desse sentido de estranhamento que não se separa dessa experiência, lembremos o poema “Universo”, que abre a segunda parte do livro. Numa primeira leitura, percebe-se esse caminho reflexivo já conhecido – porém só agora expandido – da imagística cósmica. Neste caso, a tensão reside no conhecimento restrito do sujeito que, do espaço cósmico, sabe somente das leituras, mas também, e sobretudo, da experiência do olhar – mais uma vez essa centralidade da tópica barroca –, “[...] / que captam a luz das nebulosas / vinda de espaço e tempo inconcebíveis.” (GULLAR, 2010c, p. 80). Na visão do sujeito poético, o universo cósmico é “vastidão vazia”, “é espaço e treva, é matéria fria / em que não há o mínimo sinal / de vida ou consciência” (GULLAR, 2010c, p. 81). O que o sujeito reconhece, é o real imediato, concreto: “as manhãs que

185 invadem minha casa”. Além disso, incomoda-lhe o “vastíssimo silêncio” da matéria cósmica, sobretudo porque estar na Terra é estar entre vozes e afetos. No poema, reconhece-se ainda o movimento “quando/então”. O que significa que, frente a essas duas realidades distintas, o sujeito se expande – quando focaliza a matéria cósmica – e se retrai – quando se volta para a realidade material do mundo –, numa atenção que contempla simultaneamente as categorias micro e macro. Daí transitar perfeitamente entre ambas, como vemos em “O tempo cósmico”:

ente minúsculo num braço da galáxia ouço dizer que ela demora 250 milhões de anos para fazer um giro completo em torno de seu eixo

e penso: o homem existe há pouco mais de 100 mil anos é como se o giro da galáxia jamais se completasse

é como se ela não girasse

e que o diria esta mosca – que na toalha da mesa pousa agora – cuja existência talvez dure pouco mais que uma hora?

(GULLAR, 2010c, p. 82)

Duas realidades, portanto, em seus respectivos tempos: a realidade cósmica, distante, e a realidade próxima do inseto que pousa sobre a mesa. Cada uma delas em seus respectivos tempos, porém, no sujeito, a fugacidade desta última em claro contraste com a enormidade da primeira. Essa dupla presença aparecerá em outros poemas de Em alguma parte alguma. No poema “A estrela”, por exemplo, a disparidade entre a existência (fugaz) do felino e a existência (perene) de uma estrela se opõe num primeiro momento para se encontrar,

186 por fim, no interior do sujeito. Semelhantemente ocorre no poema “A luz”, onde a reflexão se intercala entre o universo e os ratos, que de dentro dos esgotos: “Também captam / num relance / luzes / como a do lampião do beco / ou da lâmpada do sótão / e outros tantos clarões deste planeta / que se imprimem em sua carne de rato / até/ quem sabe a da distante Sírius / vista por ele da sarjeta” (GULLAR, 2010c, pp. 83-84). Dessa realidade “menor” dos ratos, o sujeito lírico pressente um abandono absoluto, mas também uma necessidade de reconhecer sua natureza dual, bipartida, que de dentro observa o fora. Para finalizar, vale lembrar o poema “Registro”:

À janela de meu apartamento à rua Duvivier 49 (sistema solar, planeta Terra, Via Láctea) limpo as unhas da mão por volta das quatro e quarenta da tarde do dia 2 de dezembro de 2008 enquanto na galáxia M 31 a 2 milhões e 200 mil anos-luz de distância extingue-se uma estrela

(GULLAR, 2010c, p. 93)

Observa-se, com efeito, a projeção de dois cenários (o íntimo e o desconhecido) e dois tempos (o finito e o eterno). Ambos, centralizados em si mesmos, isto é, nas suas próprias velocidades. Entre eles, porém, o sujeito e seu embate persistente (se não permanente) com o incontornável sentimento da finitude. Aliás, aliada à contemplação muda do universo cósmico, tal consciência adquire nesses poemas contornos mais complexos: uma clara conotação filosófica/existencial construída sob planos cada vez mais tensionais e problemáticos. Com apurada sensibilidade crítica, atravessam nessa poesia algumas forças tensionais inerentes à existência humana. Nos poemas de Em alguma parte alguma é ainda possível identificar a projeção de cenas cotidianas agregadas a esse mundo desprovido de sentido – sobretudo se pensado a partir da fragilidade do ser humano. O

187 sujeito lírico tem a percepção, por exemplo, de que “[...]: / se o mundo dura tanto / e eu tão pouco / importa pouco / se ele não for eterno” (GULLAR, 2010c, p. 95). Ou, ainda, de que, ao contrário dele, “[...] / na natureza / não há crimes nem culpas” (GULLAR, 2010c, p. 100). Em tal perspectiva, a poesia de Ferreira Gullar coloca-se novamente, como já vimos em outros poemas, como tradução de uma inquietação não apenas individual, mas coletiva. Nesta direção, convém lembrar que em seu livro Da poesia à prosa, Alfonso Berardinelli considera que:

A distância das coisas, o sentido de sua estranheza “metafísica” e irrecuperabilidade lírica, assim como a solidão do indivíduo abismado em si mesmo e sem esperança de um resgate comunicativo imediato (tudo o que caracteriza em máximo grau a lírica moderna), falam sobretudo da sociedade em que essa lírica se exprime (BERARDINELLI, 2007, p. 35).

Tais palavras ajudam-nos de fato a pensar o desdobramento da percepção materialista da realidade na poesia de Ferreira Gullar. Em outras palavras, de um sentido que se dispõe a buscar na matéria mesma das coisas e que, consequentemente, nos desvela a inquietude do próprio ser; do sujeito que aspira ultrapassar a barreira do isolamento na sua realidade “entre coisas”. Inseridos em tempos e espaços distintos, homem e cosmos também estão afastados no seu próprio silêncio pela inexplicabilidade que permeia a existência de ambos – este último, o cosmos, converte-se num espaço de não reconhecimento, como representação da distância e da estranheza. Tal constatação culmina na tomada de consciência de que esse sentido inexiste: “Ou seja, o universo existe apenas para ser contemplado por nós, de longe”, como ele conclui em seu texto “Crise de sensatez”, publicado na Folha de S. Paulo, em 14 de julho de 2013. É, conforme nos assegura Alfredo Bosi no prefácio de Em alguma parte alguma, o “sentimento do limite”, que legitima a inquietude (posteriormente transformada em certeza) de saber que estamos em um dentro sem fora, em um labirinto onde prevalecem mais perguntas que respostas, amparados apenas na (amarga) consciência de nossa precariedade. Daí a necessidade profunda desse eu que se espelha e/ou se reconhece no

188 outro – nesse caso, o cosmos –, no qual, aliás, ele irá buscar a verdade de si mesmo. Denota-se, por fim, que ao não se reconhecer na matéria cósmica, o sujeito a abandona e volta à realidade próxima e imediata. Com estas reflexões, o que buscamos identificar foi, entre estes dois momentos, o sujeito frente à estranheza do mundo. Esse movimento de expansão ao mundo exterior e, em direção contrária, de retorno à realidade material e imediata mostrou-se síntese de uma busca comprometida e necessária do real, do qual o sujeito não se separa. “Assim, no movimento expressivo entre a intimidade mais particular e o infinito do universo em que o ser humano vive a consciência dramática de sua própria fragilidade, funda-se a razão da grandeza da obra toda de Gullar” (ARRIGUCCI JR., 2010, p. 37).

189

6. CONCLUSÃO

Une œuvre d'art est souvent le reflet d'une angoisse, d'une émotion, d'une passion; elle est l'expression symbolique de tendances que la vie quotidienne ne peut satisfaire, un besoin d'arracher à la finitude et au temps quelque chose d'humain. L'homme se venge de sa finitude en créant quelque chose d'impérissable, une sorte de musée imaginaire...

Michel Ribon

Neste trabalho, o interesse de pensar criticamente a obra poética de Ferreira Gullar esteve desde o início intimamente atrelado à hipótese de que a apurada percepção da materialidade do mundo, que é parte indissociável dessa poesia, orienta, na verdade, uma discussão da própria subjetividade. Em outras palavras, nosso objetivo consistia em mostrar como na esfera central dessa expansão do sujeito lírico para uma realidade externa a si, que o coloca como um eu “entre coisas”, estão centralizados os dilemas da subjetividade. Como vimos, há na esfera central da poesia de Ferreira Gullar uma experiência fenomenológica como um problema intrínseco ao seu discurso que convoca uma estreita relação entre o sujeito, o mundo e as palavras. De tal modo que foi interessante observar como um poeta que entrou no cenário da poesia brasileira “na contramão da história” e sempre esteve à procura da expressão mais apropriada, levou a fundo estes três elementos tão suficientes entre si e ao mesmo tempo tão necessários à deflagração da experiência poética. A compreensão ademais do sujeito poético gullariano como uma coisa “entre coisas”, entendendo-a sobretudo como uma maneira muito particular a partir da qual ele se coloca na experiência perceptiva do mundo, foi fundamental ao entendimento da obra poética do autor, de maneira que, ao longo deste trabalho, esse espaço “entre” revelou-se um “ponto de inquietude, de suspensão, de entremeio” (DIDI-HUBERMAN, 2010, p.

190

77), pressupondo, desde a obra de estreia do autor, uma falta que ele procura completá-la na alteridade. Dessa perspectiva, não há como não dizer que o espanto gullariano representou, em suma, um argumento ontológico para essa “saída de si”, ao transmudar em linguagem a vertiginosa experiência perceptiva que une simultaneamente a matéria do mundo à intimidade do sujeito. Afinal, “é no mais íntimo de mim que se produz a estranha articulação com o outro; o mistério de um outro não é senão o mistério de mim mesmo” (MERLEAU-PONTY, 2012, p. 221). Dessa consciência que tão somente apreende a si mesma quando se projeta em direção ao mundo, acompanhamos uma expansão e/ou dispersão do sujeito em distintas direções. Para este trabalho, no entanto, interessou-nos analisá-la a partir de três diferentes, porém complementares, perspectivas, nas quais vemos deflagrada a discussão da subjetividade: inicialmente, quando o poeta se ocupou dos impasses da linguagem; em seguida, quando esteve interessado pelos problemas sociais e coletivos; e, por fim, quando do reencontro, mediante a experiência sensível, com a realidade material do mundo. De início, a necessidade do canto e a resistência do corpo revelaram-se inquietudes centrais ao poeta, experienciadas em meio a uma realidade incômoda e incomunicável, onde cada coisa se bastava a si mesma na sua própria verdade. Em um desejo simultâneo de consumição e recomeço, essa percepção do mundo se deu no sujeito lírico sobretudo como luta, voltando-se ele contra seu próprio corpo. No centro dessa atitude subversiva, acompanhamos a formação de uma consciência criadora, fundamental aos rumos da obra do autor e, progressivamente, desdobrada em diferentes saídas estéticas. Ao lado delas, uma interferência da memória, a aguda percepção do corpo precário e finito, e, consequentemente, a inquietude da morte, todas influindo de maneira direta nas suas reflexões. Não obstante, em algum momento, numa aguda sensibilidade ética, o sujeito poético gullariano toma conhecimento da condição dual de sua existência. Nessa direção, sai do eu sozinho “entre coisas” para pensar o eu entre os indivíduos, trazendo para o centro de suas preocupações a discussão do individual e do coletivo, do particular e do universal. A isto, conforme vimos, concorre decisivamente a relação entre sujeito e espaço urbano, de tal modo que a certa altura a alteridade não é mais externa a si, afinal,

191 no espaço da urbe, ele se expande e se reconhece. Daí apreender também uma compreensão mais ampliada do espaço “entre” no qual ele se coloca, acompanhada pela aguda consciência de ser “impossível medir o tempo a fluir desigual em cada coisa” (GULLAR, 2004b, p. 403). Na verdade, o que tal mudança expressa é uma concepção de mundo ampliada. Lucidamente entranhada no processo reflexivo da realidade, tal consciência revela-nos muito do modo como o sujeito interioriza e exterioriza seu sentimento da realidade exterior, do outro e, consequentemente, de sua existência, bem como a aspiração de participar da realidade de cada coisa percebida. Esta última, se expressa como sintoma da inelutável consciência da condição precária de sua existência, como se ao sujeito fosse necessário ultrapassá-la “[...] e fundar alguma coisa que permaneça. A arte, que possivelmente não nasceu com essa missão, revelou-se o instrumento ideal desta batalha contra a morte e a precariedade” (GULLAR, 2011, p. 160). Contudo, quando estas aspirações já não se mostraram mais suficientes, o poeta chegaria uma vez mais ao limite da reflexão. A saída, neste caso, seria perseguir uma realidade outra, definitivamente atrelada aos domínios da paisagem e da natureza-morta. Ora, para um poeta político, esse retorno à realidade mediante a experiência sensível foi certamente a saída mais apropriada. Como se aqui fizesse mais nítido aquele interesse que certa vez manifestou de criar

[...] uma poesia que revelasse a universalidade latente no nosso dia, no nosso dia-a-dia, na nossa vida de marginais da história, como outros poetas em seu próprio momento e à sua maneira já o tinham feito. Uma poesia que fosse por isso – e em função da própria matéria com que trabalha – brasileira, latino-americana. Uma poesia que nos ajudasse a nos assumirmos a nós mesmos (GULLAR, 2011, p. 164).

Como espaço de reconhecimento, é no mundo exterior que ele irá buscar sua verdade profunda. Tal proximidade, todavia, é por vezes tensionada com a vastidão cósmica, porém novamente para corroborar a máxima de que “uma coisa está em outra”, e, entre elas, o sujeito. Ocupando-se, assim, e cada vez mais, de tais descobertas, como um poeta do finito e do infinito, sua poesia se consagra afinal, para relembrar Octavio Paz, como uma série de condensações do acaso. Segundo ele, “quando a poesia acontece

192 como uma condensação do acaso ou é uma cristalização de poderes e circunstâncias alheios à vontade criadora do poeta, estamos diante do poético” (PAZ, 1982, p. 16). Na poesia gullariana, essa concepção da experiência poética como um fenômeno alheio à vontade do poeta trouxe à cena a discussão do espanto, cuja força motriz, como vimos, sobrevém quando algo na realidade afeta o sujeito e amplia a necessidade de indagar-se e/ou traduzir-se. “Necessária sempre”, salientou Alcides Villaça (2016, p. 62), “a poesia nasceu para Gullar como modo de interrogação indo buscar respostas em formas e concepções muito distintas”. Com base nas reflexões que procuramos desenvolver neste trabalho, podemos concluir que uma das respostas a essa procura o sujeito encontrou na vertiginosa – e sempre renovada no espanto – abertura à experiência fenomenológica do mundo, “que associa o eu, o mundo e as palavras para transformá-los em ‘matéria-emoção’” (COLLOT, 2013, p. 183).

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7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Obras do autor

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Entrevistas

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Obras sobre o autor

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