YARA HELENA DE ANDRADE

VEREDAS E ALAMEDAS: A IMPORTÂNCIA DA LITERATURA NA FORMAÇÃO CRÍTICA E CRIATIVA DOS EDUCANDOS DO ENSINO MÉDIO

MESTRADO EM EDUCAÇÃO

UNISAL

Americana

2010 1

YARA HELENA DE ANDRADE

VEREDAS E ALAMEDAS: A IMPORTÂNCIA DA LITERATURA NA FORMAÇÃO CRÍTICA E CRIATIVA DOS EDUCANDOS DO ENSINO MÉDIO

Dissertação apresentada ao Centro Universitário Salesiano de São Paulo, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Educação, sob a Orientação do Prof. Dr. Severino Antônio Moreira Barbosa.

UNISAL

Americana

2010 2

Autor: Yara Helena de Andrade

Título: Veredas e alamedas: a importância da literatura na formação crítica e criativa dos educandos do ensino médio

Dissertação apresentada como

exigência parcial para a obtenção do

grau de Mestre em Educação.

Trabalho de conclusão de curso defendido e aprovado em 27/02/2010 pela comissão julgadora:

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Prof. Dr. Severino Antonio Moreira Barbosa (orientador- UNISAL)

______

Prof. Dr. Luís Antonio Groppo (membro interno – UNISAL)

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Prof. Dr. Edivaldo José Bortoleto (membro externo – UNIMEP)

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AGRADECIMENTOS

Findar este Mestrado é a realização de um sonho. Não pela titulação em si, mas por tudo quanto ela representa para mim em se falando em crescimento pessoal, conhecimento, prazer e busca de sentido.

Por isso, primeiramente agradeço a Deus, que me deu este período de presente no momento mais difícil de minha vida, ajudando-me a preencher um grande vazio e me dando sempre forças para continuar, todas às vezes em que eu pensava já não ser possível chegar ao fim.

À minha avó Adalgisa, que dedicou sua vida para me tornar naquilo que sou hoje e não mede esforços para me ver feliz e realizada em tudo aquilo que considero importante. Também à minha madrinha Izilda e à minha mãe Sílvia, cuja colaboração foi indispensável ao trilhar este caminho.

À minha bisavó Quita e meu avô Sebastião que, mesmo com poucas oportunidades de estudos, me ensinaram o amor pela arte, principalmente pela literatura, pelas histórias. Que Deus os tenha recebido amorosamente em sua glória.

À tia Vilma, minha primeira professora da escola especial em Campinas, que me ensinou o Braille e me apresentou um vasto alargamento dos meus horizontes que eu pensava estreitos, abrindo-me, com suas primeiras letrinhas, as portas do mundo da literatura, que hoje é o meu.

À tia Cecília, sem cujo incentivo eu poderia sequer sonhar em concretizar esta etapa de minha vida profissional e pessoal; estando com Deus, onde estiver, que possa sentir sempre a minha gratidão, respeito, carinho e saudade.

A todos os professores cujas palavras ecoaram na minha vida, em especial a Inês, que despertou a minha vocação latente para as Letras e, sem o saber, para o mundo da literatura; ao Marcos e a Zezão, que estiveram comigo durante o Ensino Médio, quando, pela faixa etária, eu faria parte do 4

grupo de alunos alvo desta pesquisa, e que agora, ainda, me ajudam a descortinar inclusive as questões práticas relacionadas à literatura e à escola, neste período em que já sou professora; a Jô, que, na graduação e pós- graduação, contribuiu para que eu alicerçasse as origens das reflexões desta dissertação.

Ao meu enigmático orientador, professor Severino, que me ensinou, em seu ―tempo sem hora‖, como o de Drummond, que a vida é uma longa e preciosa conversa; pelos compridos diálogos e gentis metonímias com que me presenteou durante nossa convivência perpassada por seu sorriso largo e sereno e pelo afago, renovado a cada semana, quando me avisava de sua chegada; também por me apresentar a autores como Borges, que me propiciaram falar de como vivo a leitura e a literatura, com apoio literário e teórico. Ao professor Edivaldo, que observou, acompanhou e compartilhou o meu desabrochar para o maravilhoso mundo do pensamento filosófico e seus inquietantes e infindáveis questionamentos, ele que tem sido uma companhia prazerosa e constante nos desvelamentos da literatura e que agora está novamente comigo, compondo a minha banca; que sempre seja assim. E ao professor Groppo, pelos esclarecimentos sempre prontos e entremeados de gentileza. Aos três, que nunca se obrigaram a me facilitar coisa alguma por causa de minha diferença física. Ter sido tratada como a pessoa normal, saudável e produtiva que todo ser humano pode ser ou vir a ser foi o meu melhor presente. Agora, fica a amizade.

Aos meus incansáveis ledores, sem os quais não teria sido possível mergulhar este trabalho na poesia da criação. Também a todos aqueles que, de tantas outras formas, encamparam as minhas pesquisas antes e durante este Mestrado, e também àqueles que ―traduziram‖ visualmente, para agradar aos olhos do leitor, a beleza que os meus escritos possam trazer (minha avó, Cibele, Talita, Neusa, Carol, entre outros tantos).

Aos amigos, de ontem e de hoje, que sempre fizeram a minha vida valer a pena.

E a Camila, cujo convite carinhoso foi a abertura para que eu pudesse trilhar o caminho que hoje se encerra. 5

A todos vocês, é pouco dizer apenas obrigada, palavra tão significativa, mas que ainda assim parece não portar toda a gratidão que sinto. Que Deus, que tudo pode, tudo sabe e tudo vê, possa abençoá-los e protegê-los durante toda sua caminhada e esteja conosco quando pela última vez nos encontrarmos, então para todo sempre.

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Já não quero dicionários / consultados em vão. / Quero só a palavra / que nunca estará neles / nem se pode inventar. / Que resumiria o mundo / e o substituiria. / Mais sol do que o sol, / dentro da qual vivêssemos / todos em comunhão, / mudos, / saboreando-a.

Carlos Drummond de Andrade (1980)

[...] ó meus deuses. chamo-vos, nesta doce tarde, convoco o poder vosso, vinde conduzir o escriba canhestro e preguiçoso pelos meandros, as ladeiras. Os poços a perquirir. Histórias, vinde. Habitai-me. Possuí-me, fazei de mim vossa morada.

Antonio Carlos Villaça (1970)

[...] a sua personalidade ganhará firmeza, a sua solidão há-de alargar-se e tornar-se uma morada crepuscular e o ruído dos outros passará ao longe. E se desse voltar-se para dentro, desse mergulho no seu mundo próprio, surgirem versos, então não lhe ocorrerá perguntar a alguém se eles são bons. Também não fará a tentativa de interessar as revistas nesses trabalhos, pois verá neles a sua dileta e natural propriedade, um pedaço e uma voz da sua vida. Uma obra de arte é boa quando nasce da necessidade. Nesta sua maneira de irromper está o seu veredicto: não há mais nenhum.

Rainer Maria Rilke (1995)

A Literatura corresponde a uma necessidade universal que deve ser satisfeita sob pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar forma aos sentimentos e à visão do mundo ela nos reorganiza, nos liberta do caos e portanto nos humaniza. Negar a fruição da literatura é mutilar a nossa humanidade.

Antonio Candido (1995)

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RESUMO

O presente trabalho visa a investigar a importância da literatura na formação crítica e criativa dos educandos do Ensino Médio, questionando, por um lado, a instrumentalização pela qual essa disciplina vem passando, por parte das escolas privadas brasileiras, em nome de sua utilização nos exames vestibulares, e, por outro, a formação para a cidadania por meio da leitura da literatura, priorizada pelas escolas públicas nacionais, e aventando as possibilidades de salvação desta linguagem. Para tanto, procedeu-se uma pesquisa teórico- bibliográfica baseada nas considerações de autores renomados como Walter Benjamin (1994), Italo Calvino (1993), Antonio Candido (1995), Alberto Manguel (1997), entre outros, acerca do componente artístico da literatura e da relação dela com seu leitor. Para que se pudesse elucidar como se dá a instrumentalização da literatura em nome de seu ensino em âmbito privado, foram analisadas também nesta pesquisa as provas de literatura da Fundação Universitária para o Vestibular – FUVEST, relacionadas à primeira e à segunda fase, dos anos de 2007, 2008 e 2009, visto que cada uma dessas duas fases exige um tipo diferente de leitor de literatura para respondê-la de modo satisfatório, bem como a lista de obras literárias solicitadas aos alunos no referido período. Constou ainda desta pesquisa uma análise das Orientações Curriculares Nacionais para O Ensino Médio (2006) no que tange aos conhecimentos de literatura, a fim de que se pudesse aferir como é proposta essa formação cidadã por meio da leitura da literatura. As inferências sobre a literatura como manifestação artística, sobre a relação entre a literatura e seu leitor e sobre os distintos tratamentos dados ao ensino de literatura no Brasil me permitiram delinear a existência de abismos entre essas duas formações oferecidas no Ensino Médio brasileiro: a privada, cuja maior se não única preocupação são os exames vestibulares, e a pública, que vê esses mesmos exames como assunto que não tem necessidade de ser debatido e/ou considerado, priorizando apenas a formação cidadã e deixando claro que seu objetivo para os alunos é o mundo do trabalho, vedando-lhes voluntariamente o acesso ao Ensino Superior. Porém, este trabalho prestou-se também a verificar a possibilidade de haver formas de eliminar esses abismos ou ao menos diminui-los.

Palavras-chave: Educação – Linguagem – Arte – Literatura – Leitura – Leitor.

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ABSTRACT

This research aims to investigate the importance of Literature on the critic and creative background of the students of hight school, questioning, on one hand, the instrumentalization this discipline is facing, on Brazilian private schools, because of its usage on the vestibular examinations, and, on the other hand, the formation for the citizenship through the reading of Literature, which is priorized by the national public schools, and ventilating the possibilities of salvation for this language. To reach this goal, a theoretical-bibliographical research was done, which was based on the reflections of renowned authors such as Walter Benjamin (1994), Italo Calvino (1993), Antonio Candido (1995), Alberto Manguel (1997), and so on, about the artistic component of Literature and its relationship with its reader. In order to analize how this instrumentalization of Literature can happen because of its teaching process on Brazilian private schools, this study has examinated also the Literature tests of Fundação Universitária para O Vestibular – FUVEST, which are related to the first and the second phases of this examination, concerning to the period of 2007, 2008 and 2009, because each one of these two phases demands a different kind of Literature reader to answer it in a satisfactory way, as well as the list of Literature books which was demanded of the students in the reffered period. This research still contains an analysis of Orientações Curriculares Nacionais para O Ensino Médio (2006) concerning to the knowledge of Literature, in order to gauge how this background for the citizenship is proposed through the reading of Literature. The considerations about Literature as an artistic manifestation, about the relationship between Literature and its reader and about the distinct treatments which are given to Literature teaching on Brazilian high schools have allowed me to delineate what are the abysses between these two backgrounds which are offered by the Brazilian highschools: the private formation, for which one of the biggest if not the bigger preoccupation are the vestibular examinations, and the public one, for which the same examinations are a subject which there is no need to discuss about or even consider, priorizing only the background for citizenship and letting people know that its objective for the students is the world of work, obstructing volunteerly their access to College. But this research is also useful for checking out the possibility of finding ways to eliminate these abysses or, at least, to cut them down.

Key-Words: Education – Language – Art – Literature – Reading – Reader.

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1 Seleção de questões objetivas e dissertativas FUVEST de 2007 a 2009...... 143-144

Quadro 2 Compilação – verbete rugir...... 148-149

Quadro 3 Critérios de verificação das questões objetivas e dissertativa da FUVEST de 2007 a 2009...... 155

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...... 12

CAPÍTULO I – DA EDUCAÇÃO, LINGUAGEM E LITERATURA...... 18

1.1. A Literatura – Um Anseio Histórico, Filosófico e Cultural de Representação...... 18 1.2. Abrindo Caminhos a Uma Escuta Poética e Atenta do Ancestral Cotidiano Adormecido...... 21 1.3. Paulo Freire e A Educação...... 25 1.4. Arte, Alteridade, Autonomia e Intersubjetividade...... 29 1.5. Italo Calvino: um olhar estético sobre a linguagem...... 31 1.6. As Antenas de Ezra Pound...... 37 1.7. Do Clássico na Arte, Esboçado por Italo Calvino...... 41 1.8. Perguntemos a Própria Literatura a que Veio...... 56 1.9. Antonio Candido: a Assunção da Literatura como Necessidade Humana Fundamental...... 59 1.10. Alfredo Bosi e As Três Vias da Reflexão Estética...... 63 1.11. Walter Benjamin e O Apreciador como Centro da Reflexão Estética..... 69

CAPÍTULO II – O LEITOR E A LEITURA DA LITERATURA...... 78

2.1. Jorge Luís Borges e O Encontro Primeiro e Verdadeiro com A Literatura.. 79

2.2. A Metáfora Sentida e Entendida como Metáfora...... 84

2.3. Da Versatilidade das Modalidades Literárias...... 88

2.4. Alberto Manguel, A Leitura e O Leitor...... 93

2.5. Um Olhar Atento À Leitura Ouvida...... 97

2.6. Amos Oz e Os Pactos Silenciosos entre A Literatura e O Leitor...... 106

2.7. Homo Videns: O Conhecimento e O Homem de Nosso Tempo...... 113

2.8. Daniel Pennac e A Reconciliação do Leitor com A Leitura...... 120

CAPÍTULO III – A LITERATURA E A ESCOLA...... 126 11

3.1. Tzvetan Todorov, Algumas Considerações Acerca do Vestibular, do Uso de Textos Críticos e da Literatura na Escola ...... 126

3.2. As Raízes Estéticas do Desencantamento da Literatura...... 134

3.3. Da Materialidade do Texto Literário...... 140

3.4. A Literatura como Instrumento...... 142

3.5. A Literatura e As Orientações Curriculares Nacionais para O Ensino Médio...... 162

3.6. Do Poder da Literatura: Tzvetan Todorov e Yves Bonnefoy...... 170

CONSIDERAÇÕES FINAIS...... 177 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...... 183 ANEXO 197 Memorial – saber o sabor do sentir e sentir o sabor do saber...... 198

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INTRODUÇÃO

A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apóia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas. (Antonio Candido, 1995)

A arte da palavra consiste em reviver e potenciar a expressão que o uso desgastou. Nem se deve ignorar, como o faria o mau estrategista, o valor desse uso e o seu alcance comunicativo. (Alfredo Bosi, 1986)

Este estudo tem como tema a importância da literatura na formação crítica e criativa dos educandos do Ensino Médio, visando a investigar as relações delicadas existentes entre o leitor e a leitura da literatura. Levando-se em conta que, em algumas ocasiões durante a escritura deste trabalho, serão tratadas experiências e cogitações muito particulares desta e a esta pesquisadora, no que concerne ao seu contato com a arte literária, optei por implicar-me neste estudo, escrevendo-o em primeira pessoa do singular sempre que estiver diretamente envolvida com ele, visto que, como afirma o cientista político italiano contemporâneo Giovanni Sartori (1998) ―Apaixonar-se é implicar-se, fazer participar, criar sinergias ―simpáticas‖ (no significado etimológico do termo simpatheia, conformidade de pathos).‖ (SARTORI, 1998, p. 114, tradução e grifos meus).

Considerando-se que refletir sobre o mundo que nos rodeia, de forma a não sermos apenas meros expectadores de seus eventos, implica, segundo Paulo Freire em A Importância do Ato de Ler (2006), tomar distanciamento dele para podermos reconhecê-lo, ainda de acordo com o autor, é a leitura que nos oferece esta possibilidade: primeiro fazemos crítica e criativamente a "leitura do mundo", para depois fazermos a "leitura da palavra‖. 13

Tomando-se por premissa o fato de que a leitura da palavra passa indubitavelmente, primeiro, por esta leitura de mundo da qual nos fala Freire (2006), esta pesquisa bibliográfica visa a responder da melhor forma possível ao seguinte questionamento: como se dá a formação do leitor de literatura no Ensino Médio brasileiro em suas duas distintas vertentes – pública e privada?1

Buscando trilhar o caminho que conduza a uma possível resposta a este questionamento, o presente estudo assume que a literatura, antes de ser uma disciplina escolar exigida protocolarmente dos estudantes, é uma manifestação artística inerente ao homem e indispensável ao seu estar-no-mundo, pessoal e socialmente.

Escrevo em consonância com o pensamento do filósofo alemão Walter Benjamin (1994), que, fundamentado nas idéias estéticas de Kant, estabelecia que, para fazer sentido para seu apreciador, a arte deve ser constituída de quatro características fundamentais a serem detalhadamente examinadas em etapa posterior deste trabalho: percepção, experiência, expressão e mímese.

Tomado por essas dimensões da arte literária explicitadas por Benjamin (1994) e percebendo, por meio delas, que a literatura pode ser parte integrante de sua vida se ele estiver aberto para isso, o educando experimentará um "espanto", uma "dis-posição afetiva" semelhante àquela evocada por Heidegger (1996), em O que é isto - A Filosofia? ao narrar o surgimento da filosofia para os antigos gregos; uma "dis-posição" que o fará iniciar suas escolhas como ser social e pensante e o manterá nelas por todo o tempo que sua existência durar, uma "dis-posição" que, vindo de seu interior e guiando-o, o fará avançar e recuar a um só tempo e de tal forma que a reflexão crítica e criativa e o hábito da leitura da literatura caminharão juntos nele.

Essa meta de proporcionar que o educando alicerce sua formação crítica e criativa na leitura da literatura pode parecer ambiciosa, mas segundo Italo Calvino (1990), outro dos arautos deste trabalho, a literatura deve viver de

1Considerando-se que já foi assumida, na pergunta fundadora desta pesquisa, a presença de duas vertentes de formação no Ensino Médio brasileiro, neste caso no tocante à literatura, é importante esclarecer que, no ensino público brasileiro, não há a disciplina denominada Literatura; esta se inscreve na disciplina de Língua Portuguesa. Já no ensino privado, há as duas disciplinas anteriormente citadas.

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objetivos desmesurados, já que dispõe dos meios para cumpri-los. Dispõe, porque ela permite ao jovem fazer que suas experiências sejam duradouras e comunicáveis, que por meio delas ele possa aconselhar a si mesmo e aos outros com sensatez e autonomia, faculdades que, segundo Benjamin (1994), faltam ao homem de nosso tempo e podem ser tanto adquiridas quanto aguçadas por meio da leitura da literatura.

Quanto à formulação e delineamento desta pesquisa, no primeiro capítulo, serão apresentadas minhas concepções de educação, linguagem e literatura, unidas pela historicidade, que é indissociável do homem e que, por exemplo, na etimologia, vereda escolhida para unir neste trabalho a educação, linguagem e literatura, apresenta ao homem e lhe relembra, quando parte de seu universo, os vestígios e desdobramentos pelos quais veio passando a cultura em que este se insere; o segundo capítulo será dedicado às relações entre a literatura e seu leitor, destacando-se as várias estratégias de se fazer leituras, e, entre elas, a leitura ouvida, o exercício da escuta do texto literário e a presença do ledor na vida do homem contemporâneo, sobre as quais não se tem conhecimento de muitas produções científicas; e o terceiro capítulo será voltado ao binômio literatura – escola e às diferenças e/ou semelhanças de formação proporcionadas pelo Ensino Médio brasileiro público e privado no tocante à presença da literatura na formação pessoal e social dos estudantes e cidadãos.

De acordo com Boff (1997) a literatura tem muito a dizer a cada um de nós, e cada um de nós tem muito a dizer por meio e a respeito da literatura e de tudo quanto ela nos proporciona:

Cada um lê com os olhos que tem. E interpreta a partir de onde os pés pisam. Todo ponto de vista é à vista de um ponto. Para entender como alguém lê, é necessário saber como são seus olhos e qual é sua visão de mundo. Isso faz da leitura sempre uma releitura.

A cabeça pensa a partir de onde os pés pisam. Para compreender, é essencial conhecer o lugar social de quem olha. Vale dizer: como alguém vive, com quem convive, que experiências tem, em que trabalha, que desejos alimenta, como assume os dramas da vida e da morte e que esperanças o animam. Isso faz da compreensão sempre uma interação. 15

Sendo assim, fica evidente que cada leitor é co-autor. Porque cada um lê e relê com os olhos que tem. Porque compreende e interpreta a partir do mundo que habita. (BOFF, 1997, p. 9)

Este estudo objetiva analisar o peso que a literatura pode ter como disciplina apta para propiciar a formação crítica e criativa dos educandos, não só no ambiente escolar, onde normalmente ela é introduzida e esperada, mas mais amplamente, na vida desses educandos, considerando-os como sujeitos sócio-histórico-culturais de seu tempo, no qual essa formação crítica e criativa que se espera vir da escola vai se refletir. Há que se pesquisar o peso da literatura nessa formação, visto que já foi possível perceber, por meio das práticas de sala de aula, que a leitura e a literatura não se constituem, para a grande maioria dos adolescentes e jovens brasileiros, como veredas por meio das quais se possa atingir a ampliação de horizontes e o enriquecimento de visões de mundo.

Conseqüentemente tenho como objetivo, por meio deste estudo, conhecer e analisar mais profundamente a arte literária em suas potencialidades, a fim de instaurar a possibilidade da educação como prática estética constitutiva da presença humana sobre a Terra, já que considero que a literatura é um importante caminho para a formação de cidadãos pensantes, críticos e criativos e, por isso, ela deve retomar este lugar que, por algum ou alguns motivos que tentei detectar em minha pesquisa bibliográfica, lhe foi tirado nos bancos escolares. Sendo assim, assumo que este trabalho vê a educação a partir da perspectiva da estética, encampando a idéia de que a conjugação entre educação e estética é o chamado ―fio de Ariádine‖ que desvelará a possibilidade de instaurar-se a literatura como caminho por meio do qual se possa propiciar a formação crítica, criativa e autônoma dos educandos, já que creio que é por meio da palavra elaborada na, para, pela e como linguagem que esta formação pode se dar, conforme explicitarei mais adiante.

Este estudo se justifica, portanto, porque, em última análise, a obra de arte existe para nos ajudar a compreender quem somos e onde desejamos chegar, que tipo de pessoas e cidadãos desejamos ser; ela reflete nossos 16

sonhos, anseios, idéias, metas etc. Então, analisá-la sob a perspectiva da literatura e compartilhá-la, cultivando-a, são importantes passos nesse caminho, individual e coletivamente falando.

Espero, com este trabalho, deixar à comunidade acadêmica e aos profissionais que se dedicam ao ensino e, mais do que isso, ao cultivo da literatura em nosso país, algumas contribuições que sejam relevantes no concernente a estimular, dentro da escola, prioritariamente no caso desta pesquisa, do Ensino Médio, a presença realmente efetiva e benéfica da literatura na formação crítica e criativa dos alunos brasileiros em ambas as vertentes constitutivas deste ensino, pois como nos diz o estudioso búlgaro Tzvetan Todorov (2009):

Sendo objeto da literatura a própria condição humana, aquele que a lê e a compreende se tornará não um especialista em análise literária, mas um conhecedor do ser humano. Que melhor introdução à compreensão das paixões e dos comportamentos humanos do que uma imersão na obra dos grandes escritores que se dedicam a essa tarefa há milênios? E, de imediato: que melhor preparação pode haver para todas as profissões baseadas nas relações humanas? Se entendermos assim a literatura e orientarmos dessa maneira o seu ensino, que ajuda mais preciosa poderia encontrar o futuro estudante de direito ou de ciências políticas, o futuro assistente social ou psicoterapeuta, o historiador ou o sociólogo? Ter como professores Shakespeare e Sófocles, Dostoievski e Proust não é tirar proveito de um ensino excepcional? E não se vê que mesmo um futuro médico, para exercer o seu ofício, teria mais a aprender com esses mesmos professores do que com os manuais preparatórios para concurso que hoje determinam o seu destino? Assim, os estudos literários encontrariam o seu lugar no coração das humanidades, ao lado da história dos eventos e das idéias, todas essas disciplinas fazendo progredir o pensamento e se alimentando tanto de obras quanto de doutrinas, tanto de ações políticas quanto de mutações sociais, tanto da vida dos povos quanto da de seus indivíduos. (TODOROV, 2009 p. 92-93.)

Tendo sido atribuído por este estudioso búlgaro um papel de tamanha relevância da arte literária nas vidas humanas, só me resta então, neste momento, amparada por suas palavras, invocar delicada e sorrateiramente, como faz a própria literatura, a presença dos possíveis leitores deste texto, para que, ao virar desta página, adentrem comigo o mundo da arte feita nas e 17

pelas palavras. Me serão concedidos então a honra e o prazer de sua companhia?

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CAPÍTULO I

DA EDUCAÇÃO, LINGUAGEM E LITERATURA

É não só interessante, mas profundamente importante que os estudantes percebam as diferenças de compreensão dos fatos, as posições às vezes antagônicas entre professores na apreciação dos problemas e no equacionamento de soluções. Mas é fundamental que percebam o respeito e a lealdade com que um professor analisa e critica as posturas dos outros. (Paulo Freire, 1997)

1.1. A Literatura – Um Anseio Histórico, Filosófico e Cultural de Representação

Tua face, meu cavaleiro, é como um livro/onde os homens podem ler estranhas coisas. (William Shakespeare, 1981)

Para iniciar as análises e interpretações presentes neste estudo, cabe explicitar que, falar da literatura, da arte da representação dos anseios, pensamentos e sentimentos humanos por meio da linguagem escrita, é, indissociavelmente, falar da história e falar da filosofia, inseparáveis como são, como Tália, Aglaia e Eufrosine, as três graças da mitologia grega. A literatura, como forma de arte que é, constitui-se numa área que guarda potencialmente todos os conhecimentos humanos. Historicista por tradição, é impossível falar dela sem mencionar seu contexto de produção, seu tempo-espaço, a sociedade que então representava, e ainda as implicações que tem, chegando 19

até nós, vindo de que tempo venha, sendo antiga, medieval, moderna ou contemporânea a nós. Qualquer tentativa de separar-se a literatura da história é tanto inexeqüível como infrutífera.

Quanto à filosofia, é igualmente inseparável da literatura, e mesmo da história, visto que, pensar a história, assim como pensar a literatura, é já refletir acerca dos pensares do homem sobre a Terra, de suas ações e representações, sabendo-se que a maneira como ele age historicamente é alicerçada pelo modo como pensa o mundo em que se insere, pelas marcas do seu horizonte histórico-cultural e pelos demais horizontes histórico-culturais que carrega atrás de si, e aquilo que representa artisticamente, no caso específico deste trabalho aquilo que representa por meio da literatura, é também reflexo do modo como pensa seu mundo e os horizontes histórico- culturais dos quais é fruto. Etimologicamente, segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2001), filosofia – do grego philosophía – significa amor à sabedoria. Sabedoria esta que, felizmente, engloba as mais diferentes áreas do conhecimento, inclusive a literatura, eixo central a partir do qual se desenrolará esta pesquisa.

A filosofia, oscilação pendular perfeita entre a poesia – poíesis, eós em seu sentido grego original de criação presente em todas as coisas, e a ciência em seu sentido latino original – scientia, ae, conhecimento, saber – (ambas as etimologias de acordo com o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa - 2001), tem na literatura a porta-voz de seus enunciados. Assim foi desde a filosofia antiga, quando, por exemplo, do aparecimento dos diálogos do filósofo grego Platão (428-7 a.C. a 348-7 a.C.), e assim é até nossos dias, quando vemos a reflexão fluir dos textos literários e os textos literários fluírem das reflexões. Nesse sentido é que poderei falar, no desenrolar desta pesquisa, das formas históricas e filosóficas e, por extensão, culturais e sociais que assume a literatura ao constituir-se parte fundamental dos existires humanos:

Neste contexto, falar das formas literárias da filosofia adquire um sentido preciso. Não se trata de estudar alguns aspectos formais episódicos, mas sim de refletir sobre este estatuto ambíguo do discurso filosófico e, mais especificamente, de explicitar a íntima relação entre formas de exposição, 20

apresentação, enunciação - Darstellungsformen - e a constituição de conhecimento(s) ou de verdade(s) em filosofia. A hipótese de princípio consiste em afirmar que tais formas não são indiferentes ou exteriores aos enunciados filosóficos, mas, como formas de exposição ou de apresentação (Darstellung), que participam inseparavelmente da transmissão de conhecimento ou da busca de verdade que visa o texto filosófico. Um exemplo torna esta hipótese mais clara: qual seria a "verdade" que almejam os Diálogos de Platão? Se esquecermos a forma literária "diálogo" para procurar estabelecer um "sistema" de afirmações platônicas e, a partir delas, extrair algumas proposições essenciais que formassem a verdade procurada, encontraremos muitas contradições, muitas incoerências, poucas certezas e poucas evidências. Mas se levarmos a sério a forma diálogo, isto é a renovação constante do contexto e dos interlocutores, o movimento de idas e vindas, de regressos e de avanços, as resistências, o cansaço, os saltos, as aporias, os momentos de elevação, os de desânimo, etc., então percebemos que aquilo que Platão nos transmite não é nenhum sistema apodíctico, nenhuma verdade proposicional, mas, antes de mais nada, uma experiência: a do movimento incessante do pensar, através da linguagem racional (logos) e para além dela, "para além do conceito através do conceito" dirá também Adorno.

O movimento auto-reflexivo da filosofia sobre seu caráter de linguagem, seu caráter lingüístico (sprachlich) no sentido amplo do termo, isto é, também sobre sua forma literária, permite, em termos de história da filosofia, uma leitura renovada, mais atenta à singularidade dos textos. (GAGNEBIN, 2004, p. 14) (grifos meus)

Num movimento contido dentro da dialogicidade que o pensar dialético traz em si, a literatura tem, quando linguagem artística ativa, reflexiva e criativa nas vidas de seus apreciadores, o atributo de funcionar como princípio ordenador dos universos desses indivíduos, bem como de reconduzi-los a um necessário novo caos de idéias que nega a realidade anterior, para que se instaure uma nova ordem a ser futuramente desordenada e reordenada ad aeternum, pois deste movimento se constituem as salutares reflexões humanas, das quais a literatura é parte indispensável e integrante.

Exposto o contexto dentro do qual entendo a literatura como forma de representação artística, de acordo com o panorama cultural no qual se inserem 21

seus apreciadores, passarei então a considerações mais explícitas sobre o tema propriamente dito deste trabalho, sobre o leitor e a leitura da literatura.

Pesquisar um assunto tão complexo quanto o proposto neste estudo – A Importância da Literatura na Formação Crítica e Criativa dos Educandos do Ensino Médio – envolve um movimento não linear, que caminha por três vias que se interpenetram: educação, linguagem e literatura. Cada um desses movimentos será explorado a seu tempo, mas é imprescindível lembrar que os três formam um contínuo, não devendo, por isso, serem considerados isoladamente pelos possíveis leitores deste estudo, pois a educação se faz, se dá por meio da linguagem, e a literatura é a forma pela qual, por meio da linguagem, se representam os pensamentos, anseios, sentimentos, enfim, tudo o que habita o homem em seu ser-no-mundo.

1.2. Abrindo Caminhos a Uma Escuta Poética e Atenta do Ancestral Cotidiano Adormecido

Todos os dias atravessamos a mesma rua ou o mesmo jardim; todas as tardes nossos olhos batem no mesmo muro avermelhado feito de tijolos e tempo urbano. De repente, num dia qualquer, a rua dá para um outro mundo, o jardim acaba de nascer, o muro fatigado se cobre de signos. Nunca os tínhamos visto e agora ficamos espantados por eles serem assim: tanto e tão esmagadoramente reais. Não, isso que estamos vendo pela primeira vez, já havíamos visto antes. Em algum lugar, onde nunca estivemos, já estavam o muro, a rua, o jardim. E à surpresa segue-se a nostalgia. Parece que recordamos e quereríamos voltar para lá, para esse lugar onde as coisas são sempre assim, banhadas por uma luz antiqüíssima e ao mesmo tempo acabada de nascer. Nós também somos de lá. Um sopro nos golpeia a fronte. Estamos encantados... Adivinhamos que somos de um outro mundo. (Octavio Paz, 1982)

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Orientando o entrelaçamento dessas três vigas-mestras está a historicidade, contida na dialética como dialogicidade, como modo de o homem, em seu contexto histórico, com seus iguais, estar-sendo no mundo. Ao longo de todo este estudo, uma das formas adotadas de se juntar a historicidade à educação, literatura e linguagem será a etimologia – segundo a lingüista argentina Ivonne Bordelois (2005), do grego etymon, o jeito certo, entendendo-se como certo o momento originário da palavra, aquele momento inaugural em que ela foi pronunciada pela primeira vez, assim como o entendiam os antigos gregos. Creio que, resgatando-se a origem histórica das palavras e por que não dizer, das simbologias guardadas nelas no decorrer dos tempos desde seus surgimentos, instaura-se uma maneira de pensar o entrelaçamento destas três palavras-chave que norteiam este capítulo e os caminhos que as unem e por elas ziguezagueiam.

Sempre que forem apontadas etimologias ao longo deste estudo, registre-se que foram colhidas ao Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2001), do filólogo, lexicógrafo, professor e ensaísta brasileiro Antônio Houaiss (1915-1999), e de seu parceiro e sobrinho Mauro Salles Villar. Mas, por que, entre tantas possíveis matrizes conceituais a serem adotadas nas definições pertinentes a este trabalho, escolhi exatamente a matriz da conceituação etimológica? Explicar-me-ei melhor.

De acordo com a lingüista, ensaísta e poeta contemporânea argentina Ivonne Bordelois, em seu livro A Palavra Ameaçada (2005), é preciso fazer um resgate das palavras nesse nosso mundo contemporâneo, um resgate da magia ancestral das línguas, rememorando-se sempre que, muito mais do que comunicação, a linguagem e seus usos devem ser lugar de prazer para o homem. Nesse sentido, rememorar a origem histórico-concreta das palavras é resgatar o modo como pensavam, agiam, sentiam e simbolizavam aqueles que delas fizeram usos desde a primeira vez em que perceberam a necessidade de sua existência concreta, criando-as e empregando-as, bem como o modo pelo qual essas palavras, passando para outras línguas e conseqüentemente para o repertório lingüístico de outras sociedades e povos, foram empregadas para outras distintas reflexões, ações, sensações e representações, de modo a propiciar que, com toda sua carga ancestral de séculos, e por vezes de 23

milênios, chegassem até nós e continuassem a ser usadas por tempos indefinidos.

Por esse motivo, o tempo venera a linguagem, pois ela é das poucas entidades que guarda e perpetua seus vestígios, independente de quanto tempo tenha se passado e de por onde esse tempo tenha passado. A linguagem não impede a passagem do tempo, assim como nada pode fazê-lo, mas conserva suas marcas, tanto as mais superficiais e previsíveis quanto as mais profundas e inesperadas, como alguém que anda pela areia da praia e vai deixando pegadas atrás de si. As relações que estabelecemos entre as palavras, nos usos que fazemos das línguas como linguagens, são modelos das relações sociais universais nas quais nos inserimos, pois cada língua carrega as experiências das nações, povos e sociedades que dela fizeram e fazem todos os seus possíveis usos, orais e escritos.

Ocorre que, em nosso tempo, perdemos o dom de escutar o que as línguas têm a nos dizer, tanto como linguagens propiciadoras dos nossos mais diversos contextos de vivência, como na relação de semelhanças e diferenças entre uma língua e outra, que nos acompanha desde o mito bíblico da torre de Babel, descrito no Livro do Gênesis (1993). A linguagem precede as coisas, mas hoje prestamos muito mais atenção às coisas que nos rodeiam do que às simbologias que as precedem. Não há mais tempo para a música poética e intransferível das palavras.

Se a linguagem por meio da qual nos expressamos é um espelho das relações universais nas quais nos inserimos, significa que cada cultura tem sua linguagem própria, e a ela deve estar incondicionalmente atenta, pois muito além de ser um caminho de celebração, as linguagens das quais fazemos usos, em suas distintas modalidades, são caminhos de produção de conhecimento, visto que representam a ligação misteriosa, impenetrável, importante entre corpo e sociedade, como afirma Bordelois (2005). Isso significa que na linguagem, como na filosofia – que já é também uma linguagem -, estão igualmente contidas as dimensões etimológicas originais de ciência e poesia, respectivamente: o saber como conhecimento e a magia da criação, da revelação, como prazer, celebração. 24

Estamos inseridos num modo social que, em nome do consumo, da informação que nem sempre é conhecimento e do trabalho, cumpre o terrível papel de desalojar nossas consciências lingüísticas, transformando nossas linguagens em meras consignações, do latim consignatio, onis, registro, documento redigido ou reconhecido. Porém, como vimos, a linguagem carrega consigo uma determinada história e uma determinada cultura, sendo muito mais do que um registro burocraticamente reconhecido e estático desse panorama como um todo. Vivenciando esse consumismo de tudo que contemporaneamente nos assola, sentimos e presenciamos o que o professor e poeta contemporâneo Severino Antônio chama de perda do poético, em seu livro Uma Nova Escuta Poética da Educação e do Conhecimento (2009). Para ele, assim como para esta pesquisadora:

A perda do poético desnuda a perda de sentido, em todos os campos da existência.

A solidão e o desenraizamento: já não sentimos o nosso pertencimento a uma família, a uma comunidade, a uma classe social, a um povo. Nem nosso pertencimento à humanidade, à Terra, ao cosmos.

A desfiguração e as dilacerações: sem voz própria, partidos, perdemos a imagem do mundo e a nossa própria imagem; esquecemos nossa história, quem realmente somos, o que genuinamente desejamos, o que precisamos vir a ser. (SEVERINO ANTÔNIO, 2009, p. 121)

O que Bordelois (2005) nos propõe, a fim de evitar esse aniquilamento de nossas consciências lingüísticas, a fim de encontrarmos tempo para ouvir a música das palavras, e que tentarei levar a cabo neste trabalho, é uma escuta atenta da linguagem cotidiana, pois, como afirma o poeta e ensaísta mexicano Octavio Paz (1914-1998), em seu O Arco e A Lira (1982), a poesia está em todas as coisas. Então creio que, por extensão, está também nas coisas cotidianas, na sabedoria oculta da linguagem do cotidiano, precisando, por isso, ser ouvida de maneira atenta, para que se conheçam as virtudes ancestrais e adormecidas que guarda. É como cita uma segunda vez Severino Antônio (2009): 25

Precisamos do viver poético, da poetização do pedagógico, primeiro nas menores coisas. Se a poesia não estiver presente nas frestas dos dias, e em pequenos gestos cotidianos, não estará em nenhum lugar. Como no célebre haikai, de Issa, que recrio livremente de memória: ‗através da fresta / no papel da janela / um espetáculo: a Via-Láctea‘. (SEVERINO ANTÔNIO, 2009, p. 121)

Também em consonância com este pensamento, já há algumas dezenas de anos, estava o escritor norte-americano Ernest Hemingway (1899-1961) ao escrever seu consagrado O Velho e O Mar (2003), explorando em determinado trecho a musicalidade da língua castelhana e as diferenças de tratamento dadas ao mar, respectivamente por alguém habituado a ouvir a música ancestral e poética do cotidiano, o velho e sábio pescador cubano Santiago, e os demais pescadores mais jovens, a quem importava mais o sustento monetário concedido pelo mar do que seu valor afetivo e simbólico em meio ao cotidiano da ilha. Vejamos:

Ele sempre pensava no mar como la mar, que é como as pessoas a chamam em espanhol quando a amam. Às vezes aqueles que a amam lhe dão nomes vulgares, como se falassem de uma mulher. Alguns dos pescadores mais jovens, que usam bóias como flutuadores para suas linhas e têm barcos a motor, comprados quando os fígados de tubarões valiam muito dinheiro, falam dela como el mar, que é masculino. Falam dela como de um adversário, de um lugar ou mesmo de um inimigo. Mas o velho sempre pensava nela como feminino, como algo que dava ou recusava grandes favores, e se ela fazia selvagerias ou crueldades, era porque não podia evitá-las. ―A lua a afeta como afeta a mulher,‖ pensava. (HEMINGWAY, 2003, p. 29-30). (Tradução e grifos meus)

1.3. Paulo Freire e A Educação

O educando que exercita sua liberdade ficará tão mais livre quanto mais eticamente vá assumindo a responsabilidade de suas ações. Decidir é romper e, para isso, preciso correr o risco. Não se rompe como quem toma 26

um suco de pitanga numa praia tropical. Mas, por outro lado a autoridade coerentemente democrática jamais se omite.

Se recusa, de um lado, silenciar a liberdade dos educandos, rejeita, de outro, a sua supressão do processo de construção de boa disciplina. (Paulo Freire,1997)

Agora que já exemplifiquei na literatura, linguagem por excelência da qual extrairei as diretrizes que moverão este trabalho, a possibilidade do caminho etimológico escolhido para alavancá-lo, passarei a fazer o mesmo sempre que seja necessário, começando por delinear minhas concepções de educação, de linguagem e da própria literatura, sempre entrelaçadas pela historicidade dialético-dialógica do homem e pela música ancestral das palavras aparentemente cotidianas.

Para falar de educação, deixar-me-ei conduzir pelo educador brasileiro Paulo Freire (1921-1997), prioritariamente por sua Pedagogia da Autonomia (1997). Numa terminologia muito cara ao autor, comungo dos pressupostos básicos que ele elenca a fim de garantir a autonomia dos educandos como sujeitos pensantes, críticos e criativos, ao que também viso com este trabalho, elegendo por isso esta sua obra como matriz a partir da qual esboçarei minhas concepções educacionais nesta pesquisa.

Segundo o autor (1997), a historicidade do homem se deve ao fato de o ser humano se constituir de forma inconclusa, incompleta, inacabada. É esse nunca terminar que permite ao homem avançar em sua história de acordo com o contexto em que está inserido. A esperança, ligada àquilo que Freire (1970) chama de a vocação ontológica do homem para ser mais, seria o elemento indispensável a sua existência histórica, pois lhe permitiria, regido por suas utopias e sonhos, nunca desistir de procurar maneiras de marcar o seu estar- no-mundo.

A natureza que a ontologia cuida se gesta socialmente na História. É uma natureza em processo de estar sendo com 27

algumas conotações fundamentais sem as quais não teria sido possível reconhecer a própria presença humana no mundo como algo original e singular. Quer dizer, mais do que um ser no mundo, o ser humano se tornou uma Presença no mundo, com o mundo e com os outros. Presença que, reconhecendo a outra presença como um ―não-eu‖ se reconhece como ―si própria‖. Presença que se pensa a si mesma, que se sabe presença, que intervém, que transforma, que fala do que faz mas também do que sonha, que constata, compara, avalia, valora, que decide, que rompe. (FREIRE, 1997, p. 20)

É nessa existência histórica inacabada que se encerra a educabilidade do homem. Educabilidade no sentido em que o descrevem Houaiss e Villar (2001) em seu dicionário: procedente do verbo educar – do latim educare – dar a alguém todos os cuidados necessários ao pleno desenvolvimento de sua personalidade.

Garantir a autonomia dos educandos, por meio da educação, exige uma reflexão crítica sobre a prática, tanto por parte dos educadores, cujo papel é auxiliar na construção desta autonomia discente de reflexão, como por parte dos educandos, que precisam assumir os estudos como forma de compartilhamento, de troca de experiências, de interação dialógica, não somente deles com os professores e vice-versa, mas também deles com os colegas e vice-versa.

É nessas interações que o professor, ajudando a desvelar o que já conhece e mesmo revelando seu desconhecimento nas horas oportunas, colaborando para criar no educando uma curiosidade que, mais do que ingênua, seja verdadeiramente epistemológica, poderá propiciar que a educação seja uma das formas a contribuir na formação das autonomias pensantes, críticas e criativas dos alunos, o que mais tarde resultará na formação de cidadãos que ajam e decidam com essa mesma reflexão, criticidade e criatividade. Dessa forma, como diz Freire (1997), o educador que sabe que a educação é uma forma de intervenção no mundo, terá contribuído para que o educando se tornasse verdadeiramente o artífice de sua própria formação, pois como nos alerta ainda Severino Antônio (2009): 28

Dissociar a consciência crítica e a consciência criativa é uma forma de desfiguração. Por isso, reiteramos: precisamos educar a inteligência, mas também a sensibilidade e a imaginação. Os sentidos têm sua história, assim como os sentimentos e a imaginação. Sem educá-los, não há desenvolvimento significativo das possibilidades humanas, não ampliamos as margens da consciência, da capacidade criativa e da própria existência. E ainda há outra questão: dissociado da sensibilidade, a inteligência tende a se tornar um espectro. Conceitos abstratos tendem a tornar-se ideias mortas, que ressecam o sentimento de estarmos vivos, vivendo e convivendo. (SEVERINO ANTÔNIO, 2009, p. 58)

Considerar-se, como já dito, a historicidade o elo a ligar neste capítulo educação, literatura e linguagem, implica, ao falar-se desses três tópicos, em compreender-se que, historicamente, cada indivíduo nasce e se insere dentro de uma cultura, que lhe dá um tipo de educação, que se faz dentro de algumas determinadas linguagens, entre as quais de alguma forma se inscreve a literatura pela qual esse indivíduo é permeado, o que origina a maneira como o educando as assume em suas vivências, resultando todas essas confluências em sua identidade cultural, que deve ser respeitada durante seu processo de ensino–aprendizagem, visto que só assim o professor poderá colaborar para a formação de cidadãos críticos, reflexivos, criativos e essencialmente éticos, necessidade preconizada por Freire (1997), para que o educando possa exercitar com sabedoria sua liberdade de estar-no-mundo:

A invenção da existência envolve, repita-se, necessariamente, a linguagem, a cultura, a comunicação em níveis mais profundos e complexos do que o que ocorria e ocorre no domínio da vida, a ―espiritualização‖ do mundo, a possibilidade de embelezar como enfear o mundo e tudo isso inscreveria mulheres e homens como seres éticos. Capazes de intervir no mundo, de comparar, de ajuizar, de decidir, de romper, de escolher, capazes de grandes ações, de dignificantes testemunhos, mas capazes também de impensáveis exemplos de baixeza e de indignidade. Só os seres que se tornam éticos podem romper com a ética. (FREIRE, 1997, p. 57)

Quando mais tarde voltar a afirmar minhas concepções educacionais em capítulo subseqüente deste estudo, será para debater uma das questões centrais deste trabalho: a maneira como a literatura vem muitas vezes sendo 29

instrumentalizada em nome dos exames vestibulares e daquilo que dela dizem os textos críticos. Essa seria uma forma de agir que Freire classificaria como parte daquilo que chama em outro de seus ensaios – a Pedagogia do Oprimido (1970) – de educação bancária, na qual se ―depositam‖ no educando os conhecimentos ―transmitidos‖, de forma linear, unívoca e cumulativa. Combater práticas como essa ou tentar propor, como neste estudo, formas de que essa instrumentalização não ocorra ou ao menos aconteça menos freqüentemente, me leva a concordar novamente com o autor quando ele diz que o futuro é sim problemático, mas não inexorável. Isso me faz reafirmar o caráter ideológico da educação e, por extensão, do papel do educador e dos educandos neste processo, já que se trata de uma relação dialógica. No entanto, é necessário ter cuidado ao combater-se a instrumentalização pela qual passa hoje a literatura, e fazê-lo de forma que essa manifestação artística não seja transformada em outro tipo de instrumento de manipulação de idéias: o instrumento de combate ideológico e de doutrinação. Proceder-se dessa maneira é apenas modificar-se a localização do problema; sai-se então do reducionismo um tanto mecanicista e muitas vezes mercadológico proposto pelas memorizações condicionantes, freqüentes nos exames vestibulares e textos críticos acerca da literatura, para entrar-se no reducionismo de transformar o artístico na mera refutação de alguma ideologia que nos incomoda, o que, para nossos alunos, é igualmente perigoso e sem vantagens no que concerne a sua formação crítica e criativa. Trata-se aqui sim de entrar em consonância não com a ética do mercado – responsável pela pedagogia bancária – mas com a ética universal do ser humano, aquela em que essa interação e dialogicidade que preconizo são a tônica e matriz indispensável.

1.4. Arte, Alteridade, Autonomia e Intersubjetividade

Nada existe sobre a face da terra que seja mais ávido de beleza e que embeleze mais facilmente do que a alma humana... É por isso que 30

poucas almas na terra resistem ao domínio de uma alma que se devote à beleza.

É o belo que provém de uma necessidade interior da alma.

É belo o que é belo interiormente! (Wassily Kandinsky,1996)

A respeito daquilo que penso sobre educação, cabe ainda centrar este estudo no veio da educação sócio-comunitária, eixo que propicia a existência do Programa de Mestrado no qual me inscrevi para realizar esta pesquisa. O presente estudo é adequado à educação sócio-comunitária como área de concentração deste Programa de Mestrado, na medida em que os objetivos deste estudo têm por base a independência, criticidade e criatividade das vidas dos sujeitos históricos de nosso tempo. Sei, como professora que sou, que é somente colaborando para a formação da independência, criticidade e criatividade de meus alunos, que verei construir-se sua autonomia social como descrita por este Programa de Mestrado: produtiva, revolucionária e socialmente ativa. Minha forma de colaborar para essa construção é contribuir para fazer da literatura um caminho que proporcione a meus alunos um aprofundamento da cultura, história e sociedade em que estão inseridos, por meio do contato não exclusivamente com os métodos de análise literária, mas com as obras propriamente ditas, do ambiente micro para o macro, do individual para o coletivo, ajudando-os, assim, a garantir sua autonomia social e intelectual.

No que tange às linhas de pesquisa deste Programa de Mestrado, minha dissertação é adequada à linha 2: "A intervenção educativa sócio-comunitária: linguagem, intersubjetividade e práxis". A arte literária, assim como as artes de modo geral, é uma forma bastante eficaz de intervenção educativa sócio- comunitária, pois esta manifestação artística, assim como todas as outras, só existe para dar conta da existência do homem como ser social, coletivo. Todos os anseios, sonhos, pensamentos, sentimentos, objetivos, etc., representados pelas formas de arte são concernentes a várias pessoas de variadas épocas e distintas sociedades. Não existe uma forma de arte que surja para representar 31

um único ser humano; este ser, isoladamente, não poderia perpetuar a duração nem a multiplicidade dessa linguagem artística, fosse ela qual fosse. Eis o porquê de o caráter da arte literária, de intervenção educativa sócio- comunitária, ser tão evidente, corroborando também assim o papel do pesquisador como interlocutor e intérprete das distintas realidades e existências humanas.

Sendo a literatura uma linguagem essencialmente coletiva, como se caracterizam as linguagens, seu componente intersubjetivo é inegável, pois ela transita do particular para o geral e vice-versa, conforme convém àquele que a utiliza para manifestar-se subjetivamente. Ao considerar-se a literatura lugar e abrigo de tantas subjetividades, assim como as demais formas de arte, é natural que elas se interpenetrem, complementem e mostrem antagonismos de um indivíduo para outro ou de uma sociedade para outra, pois não cabe à arte estabelecer juízos de valor ou de moral; cabe-lhe apenas manifestar subjetivamente o que se passa com seus apreciadores e, por meio dessas manifestações, modificar ou não o mundo a sua volta. Esta modificação cabe aos sujeitos históricos que se manifestam por meio das representações artísticas. A partir desse desejo de mudar é que elas podem agir e intervir conforme seja necessário. A arte se mescla à vida de seus apreciadores, fazendo-se parte deles e guiando-os em meio ao caos que se nos apresenta, embora conduzindo-nos de maneira nem sempre perceptível, como nos diz o escritor alemão Johan Wolfgang Goethe (1749-1832) no início de seu Fausto (2002):

Deixai que assim se faça o teatro e iniciem / As cenas de verdade / Penetrai bem profundo em toda a vida humana! / Embora todos a vivam, não muitos a conhecem, / A muitos ela engana. / E onde se a surpreende é sempre interessante / Em quadros matizados, pouca claridade / Muita ilusão brilhante, / Muito engano e um tênue raio de verdade; / Assim é fermentada a bebida mais pura, / Que o mundo todo alegra, eleva e reergue / Em qualquer latitude. (GÖETHE, 2002, p. 18)

1.5. Italo Calvino: um olhar estético sobre a linguagem 32

Em latim "tenho falado" se diz "locutus sum", que morfologicamente significa "tenho sido falado". E Heidegger dizia: "O homem não fala a linguagem, mas a linguagem fala ao homem.". se aceitássemos que a língua circula em nós como o sangue que nos sustenta, ou que nos penetra como o ar que respiramos, estaríamos mais abertos a "ser falados" pelas línguas mais do que a falá-las, a ser inspirados e aspirados por elas mais do que a aspirá-las ou inspirá-las unipotentemente, como em vão tentamos fazê-lo. Por alguma razão, os maias diziam em seu idioma que a língua era um sentido comparável à vista ou ao ouvido. Precisamos reencontrar um ar mais livre, onde as palavras, restituídas a si mesmas, a sua própria personalidade, nos surpreendam e nos iluminem, conversem e riam de nós e delas mesmas conosco, espiãs ou crianças mensageiras. (Ivonne Bordelois, 2005)

Discutidas já a essa altura minhas concepções educacionais, passarei agora a falar de minhas concepções de linguagem, visto que somente dentro da linguagem o projeto estético-literário-educacional que esbocei pode se dar.

Para falar sobre minhas concepções de linguagem, farei um caminho que talvez o leitor considere um pouco enviesado. Falarei da linguagem por meio de atributos contidos na literatura, que é já uma linguagem, cujo uso artístico faz parte do tema deste trabalho. Entende-se por linguagem – do provençal lenguatge – qualquer meio sistemático de comunicar idéias ou sentimentos por meio de signos convencionais, sonoros, gráficos, gestuais etc.

É certo que, ao escolher a linguagem literária como matriz por meio da qual delinearei as concepções de linguagem que norteiam este trabalho, estou privilegiando a palavra, a linguagem verbal; mais ainda do que isso: estou privilegiando a palavra em seus usos artísticos. Porém, tenho perfeita ciência, como declararei adiante, de que também as linguagens não-verbais são igualmente ricas, expressivas e dinâmicas, e igualmente dignas de apreciações e reflexões por parte dos respectivos estudiosos de cada uma delas. Conforme diz o filósofo norte-americano Charles Sanders Peirce (1839-1914), a mim 33

apresentado quando da leitura de O Que É Semiótica? (1983), da escritora, semioticista e filósofa brasileira contemporânea Lúcia Santaella, uma das vozes mais respeitadas em se falando de semiótica neste país, a semiótica, ciência geral de todos os signos, os classifica e descreve logicamente, tantos signos quantos sejam possíveis. Isso claramente remete o homem à aceitação de que os signos podem ser verbais ou não-verbais, representando e fazendo representar, por conseguinte, por meio de linguagens verbais e não-verbais. Por isso, preocupo-me em, antes de me debruçar nitidamente sobre a literatura – linguagem verbal por excelência – para dar prosseguimento a esta pesquisa, esclarecer que estou a par do debate que envolve a lingüística – ciência das linguagens verbais – e a semiótica – ciência que visa a contemplar todas as linguagens, verbais e não-verbais (das palavras especificamente, dos signos, dos indícios, dos ícones etc.), direcionando meu foco explicitamente para as linguagens verbais e, no caso deste estudo, especificamente para a literatura. Escolhi então uma das facetas desse debate plural para recortar nesta pesquisa, mas, como nos atesta a professora contemporânea brasileira Samira Chalhub em suas Funções da Linguagem (2000):

No entanto, nem só de mensagens verbais vive o ser humano. A linguagem participa de aspectos mais amplos que apenas o verbo.

O corpo fala, a fotografia flagra, a arquitetura recorta espaços, a pintura imprime, o teatro encena o verbal, o visual, o sonoro, a poesia -- forma especialmente inédita de linguagem -- surpreende, a música irradia sons, a escultura tateia, o cinema movimenta etc. (CHALHUB, 2000, p. 06)

Porém, esse debate entre lingüística e semiótica, no contexto mais amplo em que se pode entender a linguagem em suas distintas e complementares manifestações, não precisa representar necessariamente uma cisão. Essa ligação entre a literatura – prosa e poesia – e as demais linguagens, não apenas existe, mas, muito além de existência, dá sinais vigorosos de vida vívida e pulsante. O já citado teórico mexicano da literatura Octavio Paz (1982) nos dá mostra clara e significativa dessas interpenetrações e complementaridades das manifestações humanas em sua essência, que são as linguagens: 34

O caráter irrepetível e único do poema é compartilhado por outras obras: quadros, esculturas, sonatas, danças, monumentos. A todas elas é aplicável a distinção entre poema e utensílio, estilo e criação. Para Aristóteles a pintura, a escultura, a música e a dança também são formas poéticas, tal como a tragédia e a épica. Daí que, ao falar da ausência de caracteres morais na poesia de seus contemporâneos, cite como exemplo dessa omissão o pintor Zêuxis e não um poeta trágico. Com efeito, acima das diferenças que separam um quadro de um hino, uma sinfonia de uma tragédia, há neles um elemento criador que os faz girar no mesmo universo. Uma tela, uma escultura, uma dança são, à sua maneira, poemas. E essa maneira não é muito diferente da do poema feito de palavras. A diversidade das artes não impede sua unidade. Ao contrário, destaca-a. (PAZ, 1982, p. 21-22)

Aprofundando-me mais então agora nas questões concernentes propriamente à lingüística e retomando o supracitado debate, contudo, sempre no âmbito da complementaridade e nunca do antagonismo, segundo o filósofo alemão Ernest Cassirer (1874-1945), o que diferencia o homem dos outros animais é a palavra, que lhe dá a capacidade de simbolizar. Por isso, ele denomina o homem não apenas como um animal racional, mas também como um animal simbólico, conforme se pode inferir de suas palavras:

O homem não vive em um universo puramente físico, mas em um universo simbólico. Língua, arte, mito e religião... São os diversos elos que compõem o tecido simbólico... Qualquer progresso humano no campo do pensamento e da experiência reforça este tecido... A definição do homem como animal racional não perdeu nada de seu valor... Mas é fácil observar que esta definição é uma parte do total... Porque, ao lado da linguagem conceitual, há uma linguagem do sentimento, aliada à linguagem lógica ou científica está a linguagem da imaginação poética. No princípio, a linguagem não expressa pensamentos ou idéias, se não sentimentos e afetos. (CASSIRER, 1948, p. 47-49, tradução minha)

Também para esta pesquisadora, como já explicitado, a autonomia crítica e criativa dos educandos se dá por meio da palavra, essencialmente, e mais especificamente ainda, por meio da palavra em seus usos artísticos, simbólicos, representativos. Eis aqui então a razão por que elegi a linguagem literária como ponto de partida para que sejam tratadas as concepções de linguagem a serem apresentadas neste estudo. 35

Para fazer esse caminho pouco convencional de tratar as linguagens verbais a partir de características da linguagem literária, me acompanhará a partir deste momento o escritor e ensaísta italiano Italo Calvino (1923-1985), personificado em seu Seis Propostas para O Próximo Milênio (1990).

Sendo a linguagem da maneira como a entendo neste trabalho uma qualidade essencialmente humana, ela só pode existir e se desenvolver porque o homem é um ser social. Graças à interação com seus pares ele, com o passar do tempo, se desenvolve na linguagem, pela linguagem e para a linguagem. Como a relação entre linguagem e pensamento, cognição, reflexão, criatividade seja por demais estreita, é sempre por meio de alguma linguagem que o homem expressa o que pensa, o que sente e o que deseja, sempre em interação, em relação a alguém e com alguém.

Sabemos que, ao longo de sua presença no mundo, o homem desenvolveu várias linguagens, cada uma apropriada a um tipo de contexto, de situação e de necessidade social: a linguagem do desenho, a falada, a escrita, a da matemática, a da música, a do trânsito, mesmo a dos sinais para aqueles que estejam impossibilitados de falar. O ponto a partir do qual discutirei concepções de linguagem neste trabalho será a linguagem escrita; mais do que isso, será a linguagem literária, como já dito algumas vezes, por intermédio da qual, por força da representação, o homem aprendeu a expressar-se dos mais diferentes modos. Nela, por ser igualmente linguagem como as outras, guardando porém com elas diferenças que a tornam num tipo particular entre todas as demais linguagens, estão os pressupostos básicos que me norteiam a esse respeito.

Para Calvino (1990), a linguagem pode ter peso ou leveza, exatidão ou inexatidão, rapidez ou lentidão, etc., de acordo com aquilo que se queira expressar. Como veremos mais adiante endossado por diferentes autores, a expressão carrega em si o ápice do existir artístico, sendo o cerne da representação; encerra seu fazer e seu conhecer, tanto quando vem daquele que criou a obra de arte como quando captura um apreciador, guardando em si aquilo que ele gostaria de expressar. A leveza da linguagem se traduz em precisão, não vaguidade, determinação, sendo o peso, em certa medida, o 36

oposto de tudo isso, embora não nos devamos esquecer de que, como diz o autor, mesmo para criar a imprecisão é necessário ter-se uma precisão minuciosa. Ainda que a determinação, precisão e não vaguidade sejam almejadas pelo artista quando faz suas representações, no caso deste trabalho, por meio da escrita, nunca é possível saber se a obra de arte será ou não dotada dessas características quando chegar ao público apreciador a que se destina e aos demais apreciadores vindouros ao longo dos séculos ou até milênios decorridos desde sua concepção pelo artista. Isso somente o tempo e o público poderão dizer.

A exatidão da representação artística como linguagem, por ser já um cálculo abstrato cuja intenção é um esforço para dar conta da representação sensível das coisas, e por ser por outro lado lacunosa e fragmentária, não é possível de ser mensurada, apenas planejada. Se a obra artística tiver cumprido seu papel representativo, tornar-se-á clássica, tema ao qual Calvino (1993), falando explicitamente dos clássicos da literatura, dedicou uma outra série de ensaios sobre os quais me deterei mais adiante.

Em nossos dias, com o tal derrame de informações pelo qual passamos, informações que não muitas das vezes se tornam conhecimentos, nos alerta Calvino (1990) para uma peste da linguagem, peste essa que dilui seus significados e expressões, ou seja, dilui a essência mesma da linguagem, visto que de sentidos e daquilo que expressam ou ensejam é composta a representação, cerne da linguagem artística, no caso ora em questão, da literária. A generalização, segundo ele, é a praga que dissemina essa peste, é o pior dos atributos que carrega a escrita de nosso tempo. Haveria apenas um antídoto contra essa diluição de significados e expressões, apenas um lugar de salvação da linguagem: a própria literatura, visto que a esperança e a imaginação que ela guarda em si são o consolo do homem e não podem ser diluídas pela praga da generalização:

Às vezes me parece que uma epidemia pestilenta tenha atingido a humanidade inteira em sua faculdade mais característica, ou seja, no uso da palavra, consistindo essa peste da linguagem numa perda de força cognoscitiva e de imediaticidade, como um automatismo que tendesse a nivelar a 37

expressão em fórmulas mais genéricas, anônimas, abstratas, a diluir os significados, a embotar os pontos expressivos, a extinguir toda centelha que crepite no encontro das palavras com as novas circunstâncias.

Não me interessa aqui indagar se as origens dessa epidemia devam ser pesquisadas na política, na ideologia, na uniformidade burocrática, na homogeneização dos mass-media ou na difusão acadêmica de uma cultura média. O que me interessa são as possibilidades de salvação. A literatura (e talvez somente a literatura) pode criar os anticorpos que coíbam a expansão desse flagelo lingüístico. (CALVINO, 1990, p. 72)

Ainda segundo o autor, o homem se apercebe de sua imaginação por meio das sensações que nele desperta seu imaginário, o qual lhe é fornecido pela cultura em que socialmente se insere e por meio da qual desabrocha para a linguagem e a ela dá continuidade e significação, naquilo que veremos mais tarde o ensaísta brasileiro Alfredo Bosi (1986) chamar de perspectiva cultural, que se aplica não só à literatura, mas também à educação e à linguagem como já salientei, indissociáveis como são.

1.6. As Antenas de Ezra Pound

Penetra surdamente no reino das palavras./ Lá estão os poemas que esperam ser escritos. / Estão paralisados, mas não há desespero, / há calma e frescura na superfície intata. / Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário. / Convive com teus poemas, antes de escrevê- los. / Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam. / Espera que cada um se realize e consume / com seu poder de palavra / e seu poder de silêncio. / Não forces o poema a desprender-se do limbo. / Não colhas no chão o poema que se perdeu. / Não adules o poema. Aceita-o / como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada no espaço. (Carlos Drummond de Andrade,1967) 38

Fixadas também já minhas concepções de linguagem, creio agora ser possível em definitivo iniciar as considerações a respeito do que seja literatura, a fim de delinear as concepções que nortearão a visão dela como linguagem de representação artística, que me acompanharão ao longo e ao largo deste trabalho. Vários serão os autores recrutados para me ajudar em minhas considerações sobre o assunto. É, pois, prudente iniciar, então, pelo escritor e ensaísta norte-americano Ezra Pound (1885-1972), em suas ponderações acerca das funções sociais imprescindíveis do artista como comunicador das representações humanas e da arte como linguagem, encontradas em ABC da Literatura (1977).

Para o autor, o artista representa as antenas da raça humana; por meio de sua arte, representa o passado e o presente e arrisca projeções sobre o futuro da humanidade, já que vislumbra dimensões que os demais normalmente não vêem. Por isso Pound atribui-lhe a função social de manter eficiente a comunicação das representações dos pensamentos, ações, anseios e sentimentos humanos por meio da linguagem artística que lhe é familiar, seja ela qual for.

Em conseqüência dessa manutenção também é atribuído ao artista o papel de civilizar, ou seja, tornar os seres humanos mais sociáveis por meio daquilo que lhes comunica a linguagem artística, a literária no caso desta pesquisa. À medida que mais se socializa por meio das representações contidas na literatura, o leitor, independentemente da crítica literária e de seu saber sistematizado, aprende a ver por si próprio e, assim, a refletir crítica e criativamente sobre o que vê, reflexão que se torna a seiva vital de seu existir histórico, de seu ser-no-mundo. Essa condição é indispensável aos existires humanos, pois aquela nação que negligencia as percepções humanas comunicadas por seus artistas entra fatalmente em declínio:

A linguagem é o principal meio de comunicação humana. Se o sistema nervoso de um animal não transmite sensações e estímulos, o animal se atrofia.

Se a literatura de uma nação entra em declínio a nação se atrofia e decai. (POUND, 1977, p. 36) 39

Porém, só é possível não negligenciar as percepções do artista quando se está familiarizado com essa linguagem, sendo assim lícito dar-lhe o valor e a atenção que merece.

Então, qual seria a condição necessária para familiarizar o leitor com a literatura? Como se formariam estudantes que, muito além de estudar a disciplina literatura, fizessem da arte literária parte integrante, ativa e necessária de suas vidas? A melhor forma de incentivar os alunos com a literatura, não com a disciplina, mas com a arte literária, tornando-os leitores, é incentivá-los a ler, não por obrigação, mas por gosto. E a forma que o professor tem de incentivar os alunos a lerem é sendo também leitor.

Pretender formar alunos leitores implica dizer que o educador que se propõe a tão alto objetivo deve também ser necessariamente leitor, e um bom leitor. De nada adianta tornar obrigatório que os alunos leiam determinada obra por exigência desta ou daquela avaliação, por sugestão deste ou daquele compêndio, ou por demanda deste ou daquele exame se, em segredo, o professor lhes diz: ―Olha, vocês precisam ler, mas tenho que concordar que esse livro é chato pra caramba, além de grosso e com essa letrinha do tamanho de uma mosca, que não rende enquanto a gente vira páginas e páginas. Mas leiam, é para o seu bem!‖ Como pode um professor de literatura fazer tais afirmações, que eu mesma já ouvi em minha época de discência, reiterando com falsa veemência uma necessidade ou a eficácia de um procedimento no qual ele mesmo não acredita?

Para começar, amor pela literatura, como amor pelo conhecimento e busca do prazer, não é procedimento pontual, não é hábito automático, é gosto cultivado desde cedo, sem interesse imediato e sem pressa. E o professor tem um papel muito ativo e relevante nisso quando leciona por vocação. O escritor contemporâneo francês Daniel Pennac nos dá, em sua obra Como Um Romance (1993), um exemplo praticamente irrefutável desse papel conciliatório do professor vocacionado entre o aluno e a leitura da literatura, ao reportar-nos a relação de um determinado professor francês com seus alunos, narrada por uma delas: 40

--Sim, era a vida: uma meia tonelada de livros, cachimbos, fumo, um exemplar dos jornais France-Soir ou l’Equipe, chaves, carnês, recibos, uma vela de sua moto... Dessa desordem ele puxava um livro, nos olhava, começava com um riso que nos aguçava o paladar e se punha a ler. Ele caminhava, lendo, uma das mãos no bolso, a outra, a que segurava o livro, estendida, como se, lendo-o, ele o oferecesse a nós. Todas as suas leituras eram como dádivas. Não nos pedia nada em troca. Quando a atenção de um ou de uma entre nós esmorecia, parava de ler um segundo, olhava o sonhador e assobiava. Não era uma repreensão, era um alegre apelo à consciência. Ele não nos perdia nunca de vista. Mesmo do fundo de sua leitura, ele nos olhava por cima das linhas. Tinha uma voz sonora e clara, um pouco nasalada, que enchia perfeitamente o volume das salas de aula, como teria ocupado todo um anfiteatro, um teatro, o Champ de Mars, sem que jamais uma palavra fosse pronunciada mais alto que outra. Guardava, instintivamente, as dimensões do espaço e dos nossos miolos. Ele era a caixa de ressonância natural de todos os livros, a encarnação do texto, o livro feito homem. Por sua voz, descobríamos de repente que aquilo tudo tinha sido escrito para nós. Essa descoberta surgia após uma interminável escolaridade em que o ensino das Letras nos havia mantido a uma respeitosa distância dos livros. O que fazia ele a mais do que os nossos outros professores? Não muito. Sob certos aspectos fazia mesmo muito menos. Só que não nos entregava a literatura num conta-gotas analítico, ele a servia a nós em copos transbordantes, generosamente... E nós compreendíamos tudo que ele nos lia. Nós o escutávamos. Nenhuma explicação do texto seria mais luminosa do que o som da sua voz quando ele antecipava a intenção do autor, acentuava um subentendido, revelava uma alusão... Ele tornava impossível o contra-senso. (PENNAC, 1993, p. 86-87)

Segundo Pound (1977), afirmação com a qual concordo sem hesitação, literatura – a arte – não se ensina exatamente: se mostra, afere, recomenda. E isso só pode ser feito sob duas condições: a primeira, quando o professor acredita que a literatura tem, em sua existência e nas dos alunos, um papel muito mais do que meramente escolar; a segunda, quando o professor, ele mesmo, acredita na eficácia da representação artístico-literária como linguagem comunicante das genuínas representações humanas, e as compartilha com os alunos; não somente com a racionalidade exigida pelo ambiente escolar, mas também com a paixão por aquilo que faz estampada no rosto e no gesto, despertando os alunos não pela obrigação institucionalizada, 41

mas pelo exemplo reafirmado a cada dia e pela vontade de que, além dos exames e avaliações, os alunos compartilhem com ele da beleza no contato com a literatura.

Isso também implica que o professor, como já dito, ajude a desvelar o que aprendeu a conhecer e revele o que ainda não conhece, mas que está disposto a conhecer ao lado dos alunos, pois, como educador, conforme afirma Paulo Freire (1997):

Minha segurança não repousa na falsa suposição de que sei tudo, de que sou o "maior". Minha segurança se funda na convicção de que sei algo e de que ignoro algo que se junta à certeza de que posso saber melhor o que já sei e conhecer o que ainda não sei. Minha segurança se alicerça no saber confirmado pela própria existência de que, se minha inconclusão, de que sou consciente, atesta, de um lado, minha ignorância, me abre, de outro, o caminho para conhecer. (FREIRE, 1997, p. 153)

Consciente da inconclusão, do inacabamento histórico, seu e de seus alunos, o professor de literatura, no contato com ela, pode olhar seu mundo e sua cultura de forma mais lúcida, despertando também nos alunos essa vontade de lucidez a ser conquistada pelo contato com a representação. Nesse movimento se garante a familiarização do ser humano com a linguagem artística, de modo a que toda uma nação não negligencie suas percepções artísticas e permaneça viva e ativa.

1.7. Do Clássico na Arte, Esboçado por Italo Calvino

A obra agora se encerra, e nem a ira de Jove / nem ferro nem fogo, / e nem o tempo voraz poderão destruí-la. / Quando quiser venha o dia, / que força não tem a não ser sobre o corpo, / em que se ponha então fim / ao meu cálculo incerto dos anos: / Ainda, o melhor do que sou / perene estará entre as altas estrelas, / e o meu nome, 42

indelével. / A toda parte onde estenda / Roma o poder sobre as terras, / os lábios lerão minhas palavras; / e sob a Fama por séculos, / se vale o presságio de poeta: / Estou vivo. (Ovídio, 2007)

O escritor e ensaísta italiano Italo Calvino, que já mencionei detidamente em oportunidade anterior, em sua coletânea de ensaios Por Que Ler Os Clássicos (1993), nos mostra, a partir da literatura, um conjunto de representações artísticas universalmente valorizadas no Ocidente, que por isso se tornaram clássicas e assim permanecerão enquanto o homem e as antenas de sua raça existirem, esboçando a razão da necessidade que nós, contemporâneos, temos de lê-las, constituindo-nos nos seres lúcidos e não resignados de que fala Pound (1977).

É recomendável, assim, que eu me detenha agora, então, sobre esse exame minucioso, de valor incalculável e simultaneamente de rara beleza, por meio do qual será possível depreender um pouco daquilo que se configuraria como o não negligenciar as percepções humanas iluminadas pelo ver transformador do artista, nesse caso, do escritor. Juntamente com o exame sobre os critérios propostos por Calvino (1993), procederei uma exemplificação de cada um deles, permeada por clássicos da literatura de minha escolha, forma que encontrei de manifestar meu entendimento dos critérios que, segundo Calvino, nos ajudam a compreender o que é ser clássico em se tratando de literatura, exemplificação feita bem à maneira memorialista do escritor brasileiro Antonio Carlos Villaça (1928-2005), que entrelaça sua vida pessoal às leituras que fez ao longo de sua existência, até a publicação de O Nariz do Morto (1970). É claro que não vou, aqui, narrar minha vida, o que já foi feito oportunamente no memorial que acompanha este trabalho, mas utilizar- me-ei de minhas leituras, não apenas para exemplificar as inferências de Italo Calvino (1993), como também as de Alfredo Bosi (1986), Walter Benjamin (1994), Alberto Manguel (1997) entre outros a serem convidados a me acompanhar nesta viagem pela literatura. 43

É importante esclarecer que as demonstrações de representações literárias que passarei a fazer a partir deste momento, baseadas nos critérios sobre o que significa ser clássico na arte elaborados por Calvino, não esgotam as possibilidades de interpretação a serem feitas a partir das obras escolhidas da literatura universal e não são únicas de modo algum, visto que a literatura é plurissignificativa, ou seja, tem inúmeras interpretações possíveis, assim como a arte de modo geral; tem inúmeras, mas não todas, somente aquelas que possam ser comprovadas pela própria obra de arte a ser analisada. É claro que há muitos clássicos da literatura que deveriam ser comentados neste ínterim, mas ficarão de fora, pois nunca houve nem haverá estudo que possa dar conta de todas as nuances da arte, já que, segundo as próprias palavras do autor, ―Um clássico é um livro que vem antes de outros clássicos; mas quem leu antes os outros e depois lê aquele, reconhece logo o seu lugar na genealogia‖ (CALVINO, 1993, p. 14.).

Conforme o autor e como pude constatar durante a feitura deste trabalho, os comentários analíticos feitos a seguir são, algumas vezes, de ordem estritamente pessoal de cada apreciador, já que, ainda de acordo com ele, cada um pode escolher seus próprios clássicos independentemente dos clássicos que já se tornaram coletivos, consoante defronta-se com as obras de arte. Segundo Calvino, a obra de arte Clássica, seja ela antiga ou moderna, é aquela que é sempre revisitada por seu apreciador, cuja maturidade "aprende" a apreciar os detalhes mais recônditos dessa obra, justamente porque, dentre outros motivos que podem até mesmo ser apontados pelos leitores desta dissertação que se aventurarem nessa busca, a obra de arte clássica:

Constitui-se numa riqueza singular, tanto para aquele que já a conhece, quanto para aquele que ainda irá conhecê-la: comecemos por voltar nossas atenções para um clássico da Literatura Universal fundador da arte literária do ocidente, que desfruta desse status por séculos e séculos até onde sei: a Ilíada (2001) do poeta grego Homero, que viveu provavelmente no século VIII a.C.

Claro, a Guerra de Tróia já aconteceu há muito, muito tempo, e mesmo hoje, muitos especulam a respeito de sua real existência como fato histórico; não me cabe aqui julgar o mérito da questão da existência do autor desta 44

epopéia, e muito menos da real existência histórica do fato narrado em si. Ocorre que, além de poder apreciar a vivacidade literária de Homero em suas descrições detalhadas e cheias de cor, pompa e seres mitológicos fantásticos dos mais variados tipos - o que muitas vezes se considera surpreendente advindo de um poeta a quem os estudiosos atribuem cegueira - o leitor também pode descobrir todo o universo apaixonante de um povo que, à época da qual se fala, não tem sua existência histórica-social-cultural documentada de outra forma a não ser pelos registros de tradição oral deixados por Homero em suas duas grandes epopéias, registros assim mantidos por muitas gerações, até serem passados para a linguagem escrita muito tempo depois (falarei da segunda epopéiahomérica mais adiante) . Não é à toa que, a este período da história da Civilização Grega, é atribuído o nome de Período Homérico nos livros didáticos, pois além de seu incontestável valor artístico-literário, as epopéias homéricas têm inegável valor documental, já que guardam em seu bojo uma cultura, uma sociedade, em suma, vivências exclusivamente nelas registradas, e de tamanha importância que até hoje nos referenciam, e já são quase trinta séculos passados desde então.

Fato semelhante quanto ao valor histórico-cultural da obra ocorre em Os Lusíadas (2005) do português Luís Vaz de Camões, um dos maiores poetas da língua portuguesa que, além de retomar mitos greco-romanos em pleno século XVI, como era típico da Arte Renascentista de sua época, conseguiu, ainda, um outro feito: anexou a esses mitos uma importante parte da história de seu povo pouco anterior a sua própria existência, que data aproximadamente de 1527 a 1580 de nossa era: a descoberta de um novo caminho marítimo para as Índias em 1498, pelos portugueses sob a liderança do navegador luso Vasco da Gama, fato que lhes traria a glória das Grandes Navegações − que, por meio do descobrimento de novas terras, os tornaram no maior império do mundo até então conhecido − tempo este que até hoje os portugueses recordam saudosamente. A junção de riqueza cultural e atenção a importantes fatos históricos é um dos fatores que me permitem afirmar que tais obras se constituem em grandes riquezas para seus apreciadores antigos, atuais e vindouros. 45

Continuando na linha das definições de Calvino, a obra de arte clássica influencia o apreciador e o mundo a sua volta quando é inesquecível, tornando- se parte do indivíduo e / ou da coletividade: isto se dá, por exemplo, com o Dom Quixote (2002) do espanhol Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616) que, além de marcar o fim da Cavalaria, o qual representou também o fim de uma era, põe em pauta ainda uma questão que sempre esteve presente nas mentes humanas: o indissolúvel confronto entre sonho e realidade, razão e emoção, o antigo conflito platônico entre os mundos sensível e inteligível, sendo a realidade, razão e sensibilidade (em termos de sensação literalmente falando) representadas pelo humilde e sempre pronto Sancho Pança, e o sonho, emoção e inteligibilidade, pelo intrépido e incansável Cavaleiro da Triste Figura. A personificação tão perfeita de um conflito humano tão antigo tornou essa obra em parte de cada pessoa, pois todos podemos nos identificar com parte dela quando não com o todo, e em parte de toda a coletividade, pois tanto o mito do cavaleiro destemido e de seu fiel escudeiro, quanto a existência das condutas humanas que esta obra representa estão presentes em todos nós, seja em nossos imaginários, seja diretamente em nossas vidas.

Em uma terceira abordagem pode-se dizer que a obra de arte clássica se modifica em consonância com as mudanças históricas vivenciadas por seus apreciadores: tradicionalmente estamos acostumados a associar o nome de Dom Juan a sedutores incorrigíveis, incansáveis e irresistíveis assim que ouvimos falar nele; não é preciso nem ao menos ter lido a obra de tantos escritores das mais variadas procedências ou ouvido a música do compositor austríaco Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791), tal é a força que este mito tem em todo lugar de que temos notícia no Ocidente. Ocorre, porém, que a imprevisibilidade da arte moderna e sua ânsia pelo novo estão buscando outros caminhos mesmo para os objetos artísticos mais cristalizados. A imaginação do escritor contemporâneo português José Saramago, por exemplo, já encontrou razões suficientes para absolver Dom Juan de suas faltas, e mais ainda, para conceder-lhe felicidade ao lado de um amor verdadeiro; é o que pode ser percebido em Dom Giovani ou O Dissoluto Absolvido (2005), cujo nome italiano traz grande intertextualidade com a ópera de Mozart a respeito do mesmo personagem lendário. 46

Por outras razões, também a escritora norte-americana Marion Zimmer Bradley (1930-1999) solicitou mudança grandemente impactante na história do Rei Arthur por meio de seu livro As Brumas de Avalon (1989), que tomarei a liberdade de usar ilustrativamente, mesmo sabendo que esta obra não pertence, ao menos até o presente momento, aos cânones consagrados da literatura universal; arrisco-me no entanto a isso, ainda assim, visto que, como já dito, o próprio Calvino (1993) assegura a cada leitor o direito de escolher seus próprios clássicos, baseado em suas inferências estéticas pessoais, independentemente dos clássicos que já se tornaram coletivos e consagrados.

Diferentemente da história cuja versão mais popular é a escrita pelo inglês Thomas Malory (1405-1471), A Morte de Arthur (1987), em que a voz predominante é a masculina − exatamente o que se espera da Idade Média −, época na qual se passa a história de Arthur, Bradley (1989) solicitou que Morgana, meia-irmã do afamado rei e que tem papel de menos destaque do que o de Arthur na trama de Malory, narrasse com seus motivos femininos e por meio de seus próprios e distintos pontos de vista a lenda do grande rei unificador dos anglos, saxões e celtas, bem como o confronto entre o culto à deusa-mãe dos celtas e o Cristianismo que começava a se estabelecer na região. Para compreendermos o valor da inovação proposta por Bradley (1989), lembremo-nos de que a preocupação com a volta às origens célticas do povo britânico já é esboçada muito anteriormente por outro inglês apenas um pouco posterior a Malory − William Shakespeare (1564-1616) - em Macbeth (1981), um de seus muitos clássicos acerca dos meandros do espírito humano, quando o dramaturgo, ao contar a história do rei homônimo da Escócia, evoca mais de uma vez a presença das bruxas, ícones por excelência da composição céltica do povo britânico. Revisitar a arte muitas vezes significa modificá-la, ainda que em relativa medida, de acordo com a história e as necessidades humanas mais prementes no momento.

Outro ponto importante a destacar é que a obra de arte clássica, mesmo quando revisitada por seu apreciador, continua a trazer-lhe descobertas, como ocorreu quando do primeiro encontro deste com determinado objeto artístico; por outro lado, essas descobertas são sempre novas e muitas vezes determinam até mesmo mudanças nas convicções do apreciador, tanto a 47

respeito da obra de arte, quanto a respeito de si mesmo: descobrir durante a adolescência obras como Senhora (2000) e O Guarani (2000), do romancista brasileiro José de Alencar (1829-1877), A Moreninha (2000), primeiro romance brasileiro, escrito por Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882), Amor de Perdição (1979), do português Camilo Castelo Branco (1825-1890), O Primo Basílio (1982), do também lusitano Eça de Queirós (1845-1900), Dom Casmurro (2000), do mestre do Realismo brasileiro, (1839- 1908), Vidas Secas (1986), do modernista brasileiro Graciliano Ramos (1892- 1953) e Morte e Vida Severina (1969), do poeta modernista brasileiro João Cabral de Melo Neto (1920-1999), pode fazer o leitor olhá-las com olhos sonhadores e inexperientes, o que o leva ao encanto absoluto com a felicidade de Aurélia e Fernando, apesar de todos os contratempos; a submissão de Peri a Ceci ao ponto dele arriscar sua vida para salvá-la inúmeras vezes o fascina puerilmente, fazendo-o desejar tal dádiva inatingível; o amor puro e duradouro de Augusto e Carolina, em detrimento das adversidades e da passagem do tempo, alimenta suas tão difundidas ilusões a respeito do inabalável encantamento com e pelo outro; o amor persistente de Simão e Teresa, bem como o amor solitário e calado de Mariana, o faz desejar destinos menos trágicos para as personagens, ou ainda desejar estar na pele de alguma delas, assim como deseja que Luísa, de O Primo Basílio (1982), possa ser feliz, mesmo tendo cometido o adultério numa sociedade tão provinciana quanto a portuguesa do século XIX, e como deseja também que Bentinho nunca tivesse pensado que Capitu o traíra, para que o amor de infância jamais acabasse; a leitura de Vidas Secas (1986) o leva a ficar confuso com a independência dos contos, a quase abstrata linguagem de Fabiano, mediada somente pelo narrador e uma realidade tão distante para ele quanto à nordestina, - quando se localiza geograficamente em outra região do Brasil, confusão semelhante àquela que lhe é trazida por Morte e Vida Severina (1969), apesar da maleabilidade do teatro.

Uma releitura destas obras numa fase cronologicamente diferente, na qual já se notem os sinais da maturidade de leitor preconizada por Calvino (1993), propicia a este mesmo leitor que agora relê, perceber que aquilo que pensou estar retratado inicialmente na obra nem sempre, ou ainda melhor, 48

quase nunca é exatamente o que lhe pareceu quando da primeira leitura: o amor pode ser somente um pano de fundo para o interesse, seja ele monetário ou não; a submissão cega ao outro poda irremediavelmente a individualidade de cada ser humano, anulando-o como uma pessoa distinta de todas as outras; o encantamento pelo outro pode durar, mas certamente tem seus percalços, que não são poucos e que necessitam fazer parte da vida a dois, como comumente se diz; a vida real nem sempre é da maneira como se deseja ou se sonha, mas sim daquela como tem de ser; atos cometidos ou presumivelmente cometidos, como por exemplo o adultério, sempre têm seu preço, que é igualmente parte da vida daquele que aviltou, como da vida daquele que se julga ou é aviltado; a Linguagem Literária dispõe de inúmeros recursos para se expressar, e o choque com aqueles que vivem numa realidade distinta daquela vivida pelo leitor lhe deve abrir os olhos para a existência dessa realidade e não escondê-lo dela.

Como se vê, as descobertas trazidas pela obra Clássica se modificam de acordo com as mudanças ocorridas com o apreciador e seu contexto de inserção, sendo sempre novas e impactantes, muito embora a obra já possa ser conhecida do leitor de longa data. Graças a sua maturidade adquirida de leitor, ele fará novas descobertas com a arte clássica, no caso em questão com os clássicos da literatura, tantas vezes quantas forem as releituras que dela fizer, visto que nem a obra relida será a mesma, tampouco o leitor o será.

Outra característica da Arte Clássica é que travar conhecimento com uma obra desse gênero é sempre revisitá-la, mesmo que o apreciador a conheça pela primeira vez na ocasião dessa visita, já que a obra, por ser clássica, deve oferecer a ele surpresas com relação à imagem anterior que ela possuía advinda de um outro apreciador, pois sempre há, por trás dessa obra de arte, as descobertas feitas pelo apreciador que a visita pela primeira vez, aquelas feitas pelos muitos apreciadores dessa mesma obra que o precederam, assim como haverá aquelas feitas pelos apreciadores que o sucederão, descobertas essas todas feitas por muitos homens e mulheres do passado, presente e futuro, e que deixam vestígios indeléveis na cultura à qual se agregam: o poeta latino Virgílio (70 a.C.-19 a.C.), ao narrar em sua Eneida (2002) os acontecimentos subseqüentes à Guerra de Tróia e a viagem dos 49

troianos remanescentes até a Itália, troianos esses que futuramente dariam origem a Roma – que seria posteriormente uma das grandes civilizações ocidentais -, agregou à Cultura Ocidental, talvez sem saber ou sem querer, acontecimentos, valores, procedimentos de um povo que soube deixar muitos de seus vestígios às gerações futuras, ajudando a compor a cultura que se estabeleceria no Ocidente e que conhecemos hoje.

Também advindo de um tempo mais antigo que o nosso, o escritor renascentista francês Cyrano de Bergerac (1619-1655) ajudaria a revolucionar as convicções de então com suas pesquisas a respeito da astronomia e os livros de ficção científica que já na época escrevera, como Viagem À Lua (2007); tanto assim que, alguns séculos depois, seu compatriota Edmond Rostand (1868-1918) o personificaria em peça homônima, no lendário espadachim, cujo imenso nariz o fazia ser alvo de chacotas e sentir-se solitário e preterido, nutrindo por sua prima Roxana (segundo ele a mais bela de todas as mulheres) um amor aparentemente não correspondido e secreto acima de tudo, regado por muitos anos de paciência e que só obtém êxito no fim de sua vida, quando Roxana descobre o amor de que é alvo, porém já não pode mais concretizá-lo por ter então perdido terrenamente o amado de forma definitiva. A persistência nos ideais é o que liga o historicamente verdadeiro Cyrano de Bergerac ao Cyrano de Bergerac (2002) personificado na peça de Rostand, ligação essa que garante a presença de ambos na cultura que é a nossa e da qual inegavelmente fazem parte.

Um outro ponto a destacar é que a obra de arte Clássica nunca acaba de dizer aquilo que veio para dizer: a distância cronológica do tragediógrafo grego Sófocles (496 a.C.-406 a.C.) não impede que sua Antígona (2006), mesmo estando inserida em uma sociedade patriarcal que não dava voz à mulher, ensine a sua legião de apreciadores que vem das quatro eras nas quais dividimos tradicionalmente a história, inclusive aos contemporâneos, o respeito à fé, para nós tão dessacralizada e que, sendo do âmbito do sagrado, jamais deve ser sobrepujada pelas leis dos homens, visto que é a ela que eles se apegam quando já não encontram soluções terrenas para os problemas que os afligem. 50

Peço licença para destacar a esta altura do trabalho três clássicos da Literatura Infanto-Juvenil: O Picapau Amarelo (1994), do brasileiro José Bento Monteiro Lobato (1882-1948), O Menino Maluquinho (1980), do também brasileiro contemporâneo Ziraldo e As Aventuras de Huckleberry Finn (2001), do norte-americano Mark Twain (1835-1910), que, se lidos pelas crianças, mostram a força do místico em nossas vidas e mostram também como é possível, maravilhoso e importante ter uma infância feliz e, se relidos pelos adultos, lembram-nos de princípios que, às vezes, há muito já nos esquecemos de cultivar.

E em se falando em arte que nunca acaba de dizer a que veio, o já mencionado escritor José Saramago, em seu Memorial do Convento (2001), nos aponta cruamente a desumanidade da história, que não se importa em perder muitas vidas para satisfazer os interesses dos monarcas, condenando, em Autos-de-Fé, ideologias diversas daquelas vigentes:

Sebastiana Maria de Jesus, um quarto de cristã-nova que tenho visões e revelações, mas disseram-me no tribunal que era fingimento, que ouço vozes do céu, mas explicaram-me que era efeito demoníaco, que sei que posso ser santa como os santos o são, ou ainda melhor pois não alcanço diferença entre mim e eles, mas repreenderam-me de que isso é presunção insuportável e orgulho monstruoso, desafio a Deus, aqui vou blasfema, herética, temerária, amordaçada para que não me ouçam as temeridades, as heresias e as blasfêmias, condenada a ser açoitada em público e a oito anos de degredo no reino de Angola. (SARAMAGO, 2001, p. 50-51)

Substituindo-se o Auto-de-Fé por outras punições e a Monarquia por outro regime em alguns casos, nada mais atual, não? Por razões como essas a obra de arte que é Clássica nunca acaba de dizer aquilo que veio para dizer a seus apreciadores.

Sempre no âmbito das reflexões de Calvino (1993), a obra de arte Clássica deve tanto provocar quanto repelir discursos críticos: tendo a arte vários significados e cabendo a ela não fazer juízos de valor, mas tão-somente constatar e aceitar o mundo e o homem que representa, analisá-la de acordo com o ponto de vista de cada um desses significados nos faz provocar ou repelir discursos sobre essa arte. Se assumirmos o ponto de vista de como era 51

tedioso o casamento de Ema Bovary para a protagonista do romance do francês Gustave Flaubert (1821-1880), não pensaremos em adotar um discurso crítico sobre o adultério cometido, sendo conduzidos mesmo a fazer uma apologia da conduta de Madame Bovary (1973). Se assumirmos porém o ultraje a Charlie Bovary e à sociedade de seu tempo, perpetrado pelo adultério de sua esposa Ema, certamente o discurso crítico será inevitável; reside então nos vários significados da arte seu poder de atrair e repelir discursos críticos, conforme as necessidades demonstradas pela representação artística em questão e o contexto histórico-cultural em que se insere.

Outra definição de Calvino: obra de arte Clássica é aquela que não se conhece por ouvir dizer, mas por conhecer de fato: é muito comum ouvirmos que Grande Sertão: Veredas (1982), do brasileiro João Guimarães Rosa (1908-1967), retrata a vida dos jagunços em meio ao sertão, uma vida difícil e atribulada. Vamos convir, um enredo nada atraente quando descrito com essas palavras; nada poderia ser mais enganoso do que essa visão generalizante, pois a obra passa muitíssimo longe de ser pouco atraente, porém o senso comum acredita conhecê-la por meio delas. Bem nos avisou anteriormente Calvino (1990) de que a generalização é a pior das pragas constituintes da linguagem escrita de nosso tempo.

Ocorre que, lendo a obra de fato, além de termos contato com a grandiosidade de Guimarães Rosa, de sua linguagem inovadora, de seu vasto conhecimento do mundo e das coisas e de sua genialidade artística, percebemos que essa é apenas uma das questões que perpassam o enredo, já que ele propicia inúmeras oportunidades para a reflexão sobre a vida humana em seus mais variados aspectos, mas isso quase não é dito pelos resumos e clichês dos livros didáticos. ―Viver -- não é? É muito perigoso. Porque ainda não se sabe. Porque aprender-a-viver é que é o viver, mesmo‖. (GUIMARÃES ROSA, 1982, p. 442). Daí a importância de conhecer a obra de arte de fato e de não se deixar levar somente pelo que diz a voz das massas, pois a arte é extraordinariamente sublime, tanto individual quanto coletivamente, para ser descrita assim por poucas palavras, muitas vezes ditas ao acaso.

Entrando agora no campo das surpresas, a obra de arte Clássica é aquela que pode assim definir-se, tanto por relação, quanto por contraste com 52

seu apreciador. Na maior parte dos casos arrolados para este trabalho, defini as obras por relação com o apreciador-leitor, mas, convém, agora, que detenha meu olhar sobre as possíveis definições por contraste com ele, já que, como visto, também as manifestações artísticas, em sua dialogicidade, guardam um componente dialético: um dos elementos de contraste que posso destacar é o excesso de drama açucarado e pessimista das Viagens na Minha Terra (1997), do português Almeida Garrett (1799-1854), o qual percebo ser um clássico da literatura universal, embora me tenha sentido, como leitora, repelida de sua presença ao final da obra, o mesmo aplicando-se ao Werther (2002) de Göethe. Não se trata aqui de duvidar da grandiosidade das obras citadas, nem de induzir, ainda que involuntariamente, algum possível leitor a formar e propagar a mesma opinião sobre elas. Esta foi uma inferência estética minha, de leitora, que não espero nem desejo que seja propagada ou seguida, uma inferência que pode ou não brotar em outros leitores, talvez devida à dificuldade de alguns leitores contemporâneos, como eu, em ambientar-se no romantismo de tais romances. Apenas a destaco aqui nestas definições por contraste com o apreciador, como farei ainda uma vez nos próximos parágrafos com algumas outras obras, porque o próprio Calvino (1993) deixou em aberto, em Por que Ler Os Clássicos, a possibilidade de considerar-se o gosto pessoal do leitor na eleição de seus próprios clássicos. Também ressalto que o fato de relatar meus incômodos com as obras não significa que eu as esteja desqualificando. São apenas incômodos de leitora, como os pode sentir qualquer leitor a respeito de qualquer obra, seja ela clássica, canônica, ou não.

É importante lembrar que, conforme a maturidade ou não do leitor, os elementos que simbolizam para ele o contraste, o incômodo, em seu momento presente, podem já ter simbolizado relação, conforto no passado, considerando-se o caso das Releituras, como já abordado na quarta das definições ora apresentadas. Outros elementos de contraste com possibilidade de abordagem a esta altura da pesquisa podem ser o comportamento picaresco descrito em Memórias de Um Sargento de Milícias (1991), do brasileiro Manoel Antonio de Almeida (1830-1861), que também dificulta o despertar de minha empatia para a obra, embora não possa negar-lhe seu lugar ao sol na Literatura Brasileira, o mesmo aplicando-se a O Cortiço (2000) 53

e Casa de Pensão (1985), do também brasileiro Aluísio de Azevedo (1857- 1913). Igualmente, esta é uma inferência pessoal minha, que não ambiciono que seja acatada, nem pelos leitores das obras citadas, nem pelos leitores deste trabalho, ainda mais se for recordado que críticos como o estudioso contemporâneo brasileiro Antonio Candido, sempre conceituadíssimo e indispensável ao nos remetermos à literatura brasileira e que tem influência bastante forte neste estudo, classificam o comportamento picaresco de Leonardo – protagonista das Memórias de Um Sargento de Milícias (1991) – como característica emblemática do brasileiro em formação e o Naturalismo de Aluísio de Azevedo como um dos mais bem delineados da literatura universal, inclusive se comparado a Émile Zola (1840-1902), ícone do naturalismo francês. Como estou agora falando das definições por contraste com o apreciador, parece-me que as obras citadas cumpriram seu papel de despertar o leitor para a realidade que representam, sendo por isso imortalizadas entre os grandes clássicos da literatura brasileira e estrangeira e tendo, por isso, grandes méritos dentre as representações artísticas.

O Triste Fim de Policarpo Quaresma (2000), do carioca Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922), é um caso a parte, pois embora o comportamento extremamente ufanista e visionário do protagonista me cause, como leitora, certa estranheza, as questões sociais abordadas pela obra calam fundo em nossos dias e permanecem sem solução, martelando constante e profundamente as reflexões de nosso tempo; eis aí uma obra em que as definições por relação e por contraste se misturam, mais uma faceta da arte verdadeiramente Clássica.

Outro viés da concepção de Calvino explica que obra de arte Clássica é aquela que só deve ser apreciada a partir de um contexto definido: vale lembrar que o contexto definido "orienta" o apreciador em seu encontro com o objeto artístico, mas não deixa a obra desprovida de sua atualidade, de sua essência ou de qualquer outra de suas características. Vejamos: o Édipo Rei (1998), de Sófocles, tem um contexto histórico-social-cultural definido, mas as questões tratadas por ele são de tal maneira atuais e coletivamente provocantes, que foram elencadas pelo psicanalista austríaco Sigmund Freud (1856-1939) na fundamentação da psicanálise, e recorrer a elas é mais do que aceito em 54

nossos dias. As obras As Aves (2001) do antigo escritor grego de comédias Aristófanes, Comédia da Panela (1996) do também antigo comediógrafo latino Plauto, Auto da Barca do Inferno (1997) do dramaturgo português medieval Gil Vicente, O Avarento (1971) do francês moderno Molière, A Mandrágora (2003) do italiano Maquiavel, também moderno, e O Auto da Compadecida (1973) de nosso contemporâneo brasileiro Ariano Suassuna têm contextos sociais e culturais bem definidos a representar, mas estão longe de corresponder apenas aos anseios das sociedades e culturas de seus países e / ou civilizações de origem, sendo universais muito embora geográfica e temporalmente localizadas.

Destaco, ainda, Beowulf (1992), poema anônimo escrito em inglês antigo por volta do século X que, sendo o mais antigo poema épico da Literatura Inglesa, ao narrar as aventuras do guerreiro escandinavo de mesmo nome, nos permite, ainda que a partir do conturbado século XXI, termos acesso à cultura de um povo fascinante cuja existência deixou poucos, mas permanentes vestígios na atualidade; considerem-se por exemplo os traços deixados por esse povo na língua inglesa de nossos dias: sua presença ao referirem-se os falantes de inglês aos dias da semana, as tantas palavras referentes a armas, procedimentos de guerra, velocidade, ao universo marinho tão presente no imaginário do Reino Unido etc. Peer Gynt O Imperador de Si Mesmo (1985), do norueguês Henrik Ibsen (1821-1906), pai do teatro moderno, também merece ser ressaltado nesta etapa. Embora localizando-se firmemente nas antigas tradições nórdicas, oferece ao Ocidente, de maneira geral, a oportunidade de debruçar-se sobre várias das questões que continuamente o afligem.

Deter o olhar sobre os objetos artísticos também nos permite perceber que obra de arte Clássica é aquela que relega a atualidade a seu pano de fundo, sem, no entanto, prescindir dela, resistindo como rumor nessa atualidade com ela incompatível: iniciar uma leitura superficial de um clássico é uma empreitada que não deve jamais ser tentada, ainda mais em se tratando de um clássico como A Metamorfose (1988), do tcheco Franz Kafka (1883- 1924), escritor judeu que escrevia em alemão e fazia parte do então império austro-húngaro, ou seja, personificava e fazia representar um verdadeiro 55

caldeirão cultural; ou o leitor decide deter-se de maneira aprofundada na leitura da obra, ou seria melhor encontrar algo que mais lhe agradasse para ler, porque longe de ser apenas uma história sobre um homem que, certo dia ao acordar, vê-se metamorfoseado num inseto, esta obra reflete o deslocamento do homem atual, a falta de espaço que há para seus anseios, para sua existência propriamente dita, a dificuldade que este homem contemporâneo tem de se adaptar aos meios que hoje lhe são oferecidos, dificuldade que, ao mesmo tempo, precisa ser solucionada, pois de outra forma este homem será sumariamente "eliminado".

Esta questão não está evidente na obra em nível literal, mas se considerarmos o contexto sócio-histórico-cultural em que estamos inseridos e que foi o mesmo que inspirou Kafka, e a nossa perspicácia de leitores, é perfeitamente possível fazer essa transposição de nós mesmos para o nível literário da metáfora e, assim, assumirmos o lugar de Gregor, mergulhado em sua vida antiga, nas dificuldades que a nova lhe apresenta e em seus anseios de voltar a ser o que era, ou o de sua família, que já não tem mais espaço para ele da maneira como se encontra e não exita em descartá-lo assim que possível. Algo me diz que no futuro essa questão será cada dia mais atual do que já é.

E finalmente, como última característica oferecida por Calvino (1993), percebe-se que a obra de arte Clássica serve, em última instância, para entendermos quem somos e onde chegamos ou chegaremos: Machado de Assis pensou brilhantemente esta questão em seu Alienista (1997), no qual o doutor Simão Bacamarte, obcecado que era pela existência da loucura, acabou por considerar toda a população da cidade de Itaguaí como louca, internando- a. Os desdobramentos desse ato foram tais que o próprio médico percebeu que a loucura residia, de fato, nele mesmo, libertando a população e encerrando-se sozinho na Casa Verde, hospício que criara por sua pretensa filantropia. Mas, para que o corresse o desenrolar de todo esse processo, Bacamarte precisou "examinar-se" muito detidamente a fim de descobrir quem realmente era, a que tinha vindo, onde tinha chegado e onde chegaria em último plano. Machado de Assis é mais um dos tantos artistas a propor a arte como forma de encontro do homem consigo mesmo, por meio da qual ele pode 56

encontrar-se e conhecer-se, ainda que não inteiramente. Lembremo-nos que, um pouco desse conhecimento, já o almejava o filósofo grego Sócrates, de seu campo dileto de conhecimento, há mais ou menos vinte e cinco séculos: ―Nosce te ipsum”, ―Conhece-te a ti mesmo‖.

1.8. Perguntemos à própria Literatura a que veio

Mas a inspiração não pôde sair. Como um pássaro que acaba de ser preso, e forceja por transpor as paredes da gaiola, abaixo, acima, impaciente, aterrado, assim batia a inspiração do nosso músico, encerrada nele sem poder sair, sem achar uma porta, nada [...]. Nesse momento, a moça embebida no olhar do marido, começou a cantarolar à toa, inconscientemente, uma coisa nunca antes cantada nem sabida, na qual coisa um certo lá trazia após si uma linda frase musical, justamente a que mestre Romão procurara durante anos sem achar nunca. (Machado de Assis, 1884)

Como se depreende dos critérios enunciados por Calvino (1993) e das proposições que fiz acerca de ícones da literatura ocidental, o não negligenciar as percepções humanas compartilhadas conosco por meio dos artistas pode revelar-se de variadas maneiras quando, muito além de encarar a literatura como mera disciplina escolar protocolar da formação esperada do indivíduo, encaramo-la como caminho para representar e expressar aquilo que temos de mais caro e profundo. Na própria literatura, linguagem à qual sempre recorro quando sinto precisão de ilustrar este trabalho partindo de seu ponto de origem, diversos autores de distintas procedências delinearam a necessidade de elegê-la como condutora das existências humanas, e de eleger o artista como as antenas da raça às quais se refere Pound (1977). 57

Para ilustrar esse posicionamento assumido pela própria literatura no que concerne ao seu lugar dentro dos existires humanos, começarei por falar de uma ocasião literária em que essa condição não pôde ser assumida, e dos efeitos que essa não assunção acarretou na vida do narrador: em seu conto A Biblioteca (1979), Lima Barreto conta a história de Fausto, um homem que envelhecia em meio às lembranças de sua casa paterna, da qual fora forçoso livrar-se. Conservara, no entanto, a biblioteca do pai. Não entendia os livros, tendo-os estudado por anos a fio, com apaixonado desvelo, sem nunca ter conseguido absorvê-los. Para compensar essa frustração, ia todos os dias ler devotamente os jornais à mesma sala onde repousavam os livros. Assim, tinha esperanças de que a biblioteca paterna viesse a constituir patrimônio intelectual de seus filhos. Porém isso nunca aconteceu. Irremediavelmente frustrado nessa aspiração só sua de toda uma vida, um belo dia, tomado pelo desespero, amontoa os livros no quintal e ateia-lhes fogo, transformando em cinzas todo o conhecimento e deleite que potencialmente guardavam.

Um segundo exemplo literário da importância da arte nas vidas humanas e da falta que ela nos faz, percepção esta ainda que tardia, nos é dado por Ernest Hemingway em seu conto As Neves do Kilimanjaro (1968): em meio ao desolado cenário deste nevado pico africano, um escritor gravemente adoentado pensa numa possível história que poderia ter escrito com as aves do lugar. Impotente com relação a sua doença, a mulher que o acompanha tenta, sem êxito, trazer-lhe uns momentos de relativa tranqüilidade, mas a doença e as histórias que não escreveu o irritam tão progressivamente, à medida que sente o avanço da enfermidade, que ambos apenas discutem incessantemente. Somente depois sabe-se que a África foi o lugar onde o escritor havia sido mais feliz em sua vida, tendo por isso voltado. Porém, lá, sofrera um acidente, e seria vitimado pela gangrena. Imaginando tantas histórias que gostaria de ter escrito, prevê a própria morte para aquela mesma noite e fica consciente de sua impotência diante dela. Sente a morte a aproximar-se, sente seu hálito e o momento em que ela se aconchega a seu peito, enquanto a mulher, preocupada, vela. O escritor sonha que o avião que o resgataria chegara e ele voa sozinho pelo Kilimanjaro, até que finalmente 58

morre em sua realidade mesma, tendo sido a mulher alertada disso pelo pressago riso sarcástico de uma hiena.

Permitam-me falar agora de uma ocasião literária em que felizmente a importância da literatura como abrigo das representações humanas é percebida a tempo e valorizada como deve e merece. Trata-se de O Carteiro e O Poeta (1996), obra de Antonio Skármeta – chileno de Antofagasta, nascido no ano de 1940. Nesta obra, acompanhamos a descoberta de si mesmo, por meio da literatura, de Mario Jimenez, um pobre pescador que, por um golpe de sorte, torna-se o carteiro particular do célebre poeta chileno Pablo Neruda (1904-1973), em uma pequena aldeia onde o vate passa a residir. Com um livro do poeta nas mãos, adquirido com seu primeiro salário, Mario tanto faz que acaba por conseguir um autógrafo do ídolo, com quem termina por constituir uma bela amizade, reforçada sempre pelos laços cotidianos que os unem. Com Neruda, o carteiro tem seu primeiro contato com as metáforas, apercebendo-se de sua grande força de representação e encantando-se com elas pelo resto de sua vida:

Fez uma pausa satisfeito. - O que achas? - Estranho. - «Estranho» Que crítico mais severo és tu! - Não, Don Pablo. Estranho não é o poema. Estranho é como eu me sinto quando recitou o poema. - Querido Mario, vamos a ver se te despachas um pouco, porque não posso passar a manhã toda a disfrutar da tua conversa. - Como se pode explicar? Enquanto dizia o poema, as palavras iam de cá para lá. - Como o mar, claro! - Sim, pois, moviam-se tal como o mar. - Isso é o ritmo. - E eu senti-me estranho, porque com tanto movimento enjoei. - Enjoaste? - Claro! Eu ia como um barco balançando nas suas palavras. As pálpebras do poeta despegaram-se lentamente. - "Como um barco balançando nas minhas palavras", - Claro! - Sabes o que fizeste. Mario? - O que foi? - Uma metáfora. - Mas não vale, porque me saiu por simples casualidade. - Não há imagem que não seja casual, filho. (SKÁRMETA, 1996, p. 31-32) 59

De posse desse segredo agora revelado, Mario recorre ao poeta para conseguir chegar à sua amada Beatriz González e conquistá-la. Conquistada a amada, para quem Mario agora até declama poesias que a tocam profundamente e lhe faz luminosas metáforas, Neruda muda-se e ambos se distanciam. Porém o filho do carteiro recebe o nome de Pablo Neftalí, em homenagem ao poeta cujo nome verdadeiro era Neftalí Ricardo Reyes Basoalto, e um certo dia, no exílio, Neruda recebe uma fita de Mario com recordações do Chile, por ele selecionadas pessoalmente. Acompanhamos a mudança da vida do carteiro e a presença do poeta nela até sua morte e mesmo depois dela, quando Mario fora chamado em casa de madrugada por um homem de bigodes, para responder a algumas simples ―perguntas de rotina‖ em pleno golpe militar chileno, desfecho aberto que sugere aos leitores ter-lhe ocorrido o pior possível em tal circunstância.

E na literatura brasileira também há um exemplo cabal da força de ação e representação da arte nas vidas humanas, fornecido por Clarice Lispector (1920-1977), em seu conto Felicidade Clandestina (1998). Depois de muito implorar as Reinações de Narizinho emprestado a uma filha de dono de livraria que detestava ler, a narradora, por intermédio da mãe da inescrupulosa proprietária do livro, o consegue e volta com ele para casa, saltitante, adiando voluntariamente a leitura pelo prazer de fazê-la algum tempo depois, fingindo ter perdido o livro só para depois ter a satisfação de encontrá-lo e sabê-lo seu pelo tempo que quisesse. Quando finalmente decide entregar-se à leitura, a narradora já não se sente mais uma menina com seu livro. Sentada na rede e possuindo-o, sente-se uma mulher com seu amante.

1.9. Antonio Candido: a Assunção da Literatura como Necessidade Humana Fundamental

Vista deste modo a literatura aparece claramente como manifestação universal de todos os homens em todos os tempos. Não 60

há povo e não há homem que possa viver sem ela, isto é, sem a possibilidade de entrar em contato com alguma espécie de fabulação. (Antonio Candido, 1995)

Examinadas as implicações de assumir-se a literatura como lugar das mais genuínas representações humanas, acredito, neste ínterim, ser possível debruçar-me sobre as características que compõem a arte. Tratarei deste tópico na visão de quatro renomados pensadores que se detiveram cuidadosamente sobre o assunto: os brasileiros contemporâneos Antonio Candido e Alfredo Bosi, o também contemporâneo argentino naturalizado canadense Alberto Manguel e o filósofo judeu-alemão Walter Benjamin (1892- 1940), cujas ponderações no campo da crítica literária são sempre atuais e preciosas.

As primeiras inferências a esse respeito que observarei são de Antonio Candido, de longe a voz mais influente em se falando de literatura no Brasil, que, em seu texto O Direito À Literatura (1995), assenta-a como fundamental ao ser humano, assim como cita Alfredo Bosi, cujos argumentos sobre estética reproduzirei um pouco adiante. Para Candido (1995), a literatura é um direito tão básico e indispensável ao homem como todos os demais direitos a ele garantidos constitucionalmente. É tão importante para promover a integridade física e espiritual do homem quanto à comida, à moradia, o vestir e todas as outras necessidades básicas materiais a que sempre se alude, garantidas a cada um dos brasileiros nos artigos 3º, 5º e 6º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, nos quais discorre-se sobre os princípios fundamentais, os direitos e garantias fundamentais e os direitos sociais dos cidadãos brasileiros. Acerca destes pormenores tão indispensáveis a todos nós, diz Candido:

Nesse ponto as pessoas são freqüentemente vítimas de uma curiosa obnubilação. Elas afirmam que o próximo tem direito, sem dúvida, a certos bens fundamentais, como casa, comida, instrução, saúde − coisas que ninguém bem formado admite 61

hoje em dia que sejam privilégios de minorias, como são no Brasil. Mas será que pensam que o seu semelhante pobre teria direito de ler Dostoievski ou ouvir os quartetos de Beethoven? Apesar das boas intenções no outro setor, talvez isso não lhes passe pela cabeça. E não por mal, mas somente porque quando arrolam os seus direitos não estendem todos eles ao semelhante. (CANDIDO, 1995, p. 239-240)

Nesse mesmo viés, segundo Bosi (1977), a poesia, com seu inerente pensar por imagens, e por extensão a arte, exerce o papel humanizador das carências humanas do corpo: comida, calor, sono e amor:

A imagem, mental ou inscrita, entretém com o visível uma dupla relação que os verbos aparecer e parecer ilustram cabalmente. O objeto dá-se, aparece, abre-se (lat.: apparet) à visão, entrega-se a nós enquanto aparência: esta é a imago primordial que temos dele. Em seguida, com a reprodução da aparência, esta se parece com o que nos apareceu. Da aparência à parecença: momentos contíguos que a linguagem mantém próximos. (BOSI, 1977, p. 13)

Corrobora também essa tese de Candido e Bosi o argentino naturalizado canadense Alberto Manguel em A Cidade das Palavras (2008), afirmando que nós, seres humanos, somos gregários, sociais, para o bem e para o mal, por isso contamos histórias, para representar, de algum modo personificar aquilo que pensamos, sentimos, somos e vivemos, pois, no desenvolvimento dessas representações, as histórias concentram a sabedoria atingida e partilhada pelos homens e suas existências, por mais diversas e antagônicas que possam ser. Reunindo intersubjetivamente tantas existências, as histórias, como representações de períodos sócio-culturais determinados e como legados generosamente deixados a períodos posteriores, nos levam primeiro a indagar sobre aquilo que somos, depois a formular aquilo que desejamos conhecer e procurar maneiras de fazê-lo e finalmente a escolher como agiremos ao nos depararmos com o conhecimento desejado que encontramos por intermédio da representação. Sendo assim, e sendo a literatura co-irmã da história e da filosofia como enunciei, histórica e culturalmente a ontologia se configura em ponto de partida para nossas curiosidades epistemológicas, que por sua vez 62

desencadeiam as posturas de ação que assumimos perante o mundo onde historicamente nos inserimos.

Todo esse processo de ser, conhecer e agir encerrado pelas histórias, sejam elas contadas oralmente ou disseminadas por meio da escrita, leva o ouvinte ou leitor a epifanias – do grego epipháneia, as, epifania, aparição ou manifestação de algo descoberto normalmente de maneira simples e inesperada -, revelações que o conduzem para dentro do mundo representado, articulado pelo ver transformador do artista sobre a realidade, e permitem que esse apreciador pense, formule, repense e aja sobre seu próprio mundo real e concreto, que ainda que permeado por grandes catástrofes, origina sempre uma grande literatura, como diz o autor (2008). Esse ver transformador do artista é comparado por Manguel ao mito da profetisa grega Cassandra, que, amaldiçoada pelo deus Apolo, recebe o dom das profecias, mas ninguém jamais crê nelas, ainda que sempre sejam corretas. Mesmo com o descrédito de todos, Cassandra nunca deixa de profetizar, assim como o artista, que nunca deixa de revelar seu ver transformador da realidade por meio de suas representações:

Os artífices conferem forma e existência às coisas, conferem- lhes sua identidade intrínseca. Quietos num canto de suas oficinas e, contudo, movendo-se ao sabor das marés do resto da humanidade, os artífices refletem o mundo em suas rupturas e mudanças contínuas e espelham em si mesmos as formas instáveis de nossas sociedades, tornando-se o que o poeta nicaragüense Rubén Darío chamou "pára-raios celestiais", indagando repetidas vezes "Quem somos nós?" e oferecendo um esboço fantasmagórico de resposta com os mesmos termos da pergunta. Por isso, o artífice é uma figura perturbadora numa sociedade que busca, a todo custo, a estabilidade e a eficiência necessárias ao maior proveito econômico. (MANGUEL, 2008, p. 21)

Registrar suas representações transformadoras da realidade fenomênica utilizando-se de alguma manifestação artística torna o artista que assim procede imortal, e torna também imortais seu tempo histórico, sua cultura e sua realidade social, o que permite, por exemplo, a nós contemporâneos, carregarmos atrás de nosso horizonte histórico-cultural todos os demais 63

horizontes histórico-culturais que nos antecederam, e permitirá aos existires humanos futuros e distintos do nosso carregar todos os demais horizontes preexistentes, inclusive este no qual hoje nos inscrevemos.

1.10. Alfredo Bosi e As Três Vias da Reflexão Estética

Os poetas, ante as minhas grandes atitudes, / Que aos monumentos mais altivos emprestei, / Consumirão o ser nos estudos mais rudes; / Pois para esses servis amantes reservei / Um puro espelho em que é mais bela a realidade: / Meu olhar, largo olhar de eterna claridade! (Charles Baudelaire, 1944)

Nessa mesma esteira de raciocínio introduzida por Manguel (2008) pronuncia-se Bosi, que, além de salientar o papel insubstituível da arte nas vidas humanas em Reflexões sobre A Arte (1986), ainda nos fornece uma espécie de mapeamento detalhado de como essa função inalienável da literatura se fundamenta, considerações nas quais me deterei a partir de agora.

Para o teórico, a arte e, no caso deste estudo, por extensão de sentido, a literatura, é permeada por três vias da reflexão estética: o fazer a arte, o conhecer por meio da arte e o exprimir ou exprimir-se por meio da arte. Quanto à construção, ao fazer, a arte é regida por leis que constroem o discurso interior à obra, sendo a técnica vista como na acepção a ela dada pelos gregos – techné – como produção, trabalho, regras úteis a seu projeto e execução, o que acabou equivalendo à designação latina ars – segundo o Dicionário Escolar Latino-Português (1962), habilidade adquirida pelo estudo ou pela prática, conhecimento técnico -, não se devendo separar o artista, segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2001): aquele que tem o sentimento ou o gosto pelas artes, do artífice, segundo a mesma fonte: obreiro oficial que executa sua arte consoante as encomendas que recebe. Assim, o 64

fazer e o sentir artísticos se constituem em duas faces da mesma moeda, aliando-se deste modo o útil ao belo e vice-versa.

Nesse contexto, sendo a arte formalizadora, porém livre, concebe-se que o juízo estético e o fazer artístico se regulem mutuamente, configurando-se o espaço e o tempo em matérias primordiais da arte e detentoras do agrupamento de técnicas artísticas correspondentes a cada tempo e lugar. Em nossos dias, as leis da técnica artística são relativizadas tanto pela inspiração como pelo entusiasmo, tendo as regras do fazer artístico sentido por meio da imaginação, e a imaginação sentido por meio das regras do fazer artístico, proporcionando a arte que as formas vivam na matéria. E desse viver as formas na matéria, acaba cabendo à hermenêutica – relativa ao deus grego Hermes, mensageiro alado dos deuses – interpretar, por meio de uma análise histórico-estética, o sentido das formas que ganham vida na matéria concreta, naquilo que Bosi (1986) chama de ―fenomenologia do corpo‖. Histórica porque, como recém vimos, o tempo-espaço são as matrizes do fazer artístico; estética – do grego aisthetikós, relativo àquele que compreende, que sente, sensível – porque o papel da imaginação é hoje indispensável na compreensão do sentido do símbolo sensível, e disso é composta a arte, de representação, como veremos a seguir ao examinarmos a relevância que o autor dá a ela como processo de produção de conhecimento.

Dessas duas maneiras, munida da história e da estética, a hermenêutica – do grego hermeneutikós, ê, ón, próprio para fazer compreender – interpreta tanto o processo do fazer artístico quanto subsidia as interpretações que dele resultam na expressão artística, podendo responsabilizar-se também pelo que a arte traga ao apreciador em termos de produção de conhecimento a partir do contato com ela.

A arte em sua dimensão do conhecer, ainda de acordo com o teórico, pode firmar raízes nas compreensões natural, psíquica ou histórica, sendo o conhecimento produzido, em arte, por meio das representações, possíveis graças aos ícones – novamente segundo o Houaiss (2001), do grego eikón, ônos, imagem, semelhança –, concepção resguardada pela semiologia, sustentada na premissa de que o ícone é uma imagem que tem semelhança ou analogia com o objeto que representa. E, mais ainda, conhecimento em arte se 65

produz por meio dos contextos em que as representações artísticas são feitas. Nesse sentido, o ver do artista sobre a realidade é transformador, repensa a experiência sensível, a matéria concreta, dando-lhe vida, tornando-a simbolizável por meio da representação.

Esse processo de tornar a matéria concreta simbolizável se dá dentro daquilo que Bosi (1986) chama de ―perspectiva cultural‖. Perspectiva, do latim perspectiva, ae, aparência sob a qual algo se apresenta. Esta noção etimológica da palavra coloca a arte no universo da cultura e da época em que foi produzida, sendo típicos de cada época e de cada modo de pensar correspondente, certos tipos de técnica, certas formas de representação, o que nos mostra uma relação estreitíssima entre modos de compor e períodos culturais. A arte, nesse prisma, seria um movimento de epifania, de revelação de um novo ver daquilo que se nos apresenta. É a noção de perspectiva cultural que nos faz ver uma obra de arte grega, por exemplo, uma tragédia de Sófocles (496 a.C.-406 a.C.) ou uma comédia de Aristófanes (447 a.C.-386 ou 380 a.C.), de modo distinto daquele como a entendiam os gregos contemporâneos a ela, porém, que ainda assim, guarda algum tipo de semelhança com a arte que se faz hoje, sendo os gregos os iniciadores do que se entende por civilização ocidental, da qual somos nós agora os contemporâneos.

O fio que nos liga à arte grega, por exemplo, terceira via da reflexão estética de Bosi, a arte como exprimir ou exprimir-se, está no que o autor (1986) denomina ―expressão e seus graus‖, que são três: a efusão, o símbolo e a alegoria, os quais examinarei agora separadamente, buscando explicar esses graus da expressão artística por meio de ícones da literatura brasileira, já que é esta a forma de arte que motiva este estudo.

Efusão, do latim efusio, onis, é aquilo que se derrama, escoa, transborda. Esta gradação da expressão artística se dá de forma direta segundo o autor e encontra comprovação, por exemplo, em Iracema (1997), romance indigenista do cearense José de Alencar, expoente da primeira fase do Romantismo brasileiro, a fase nacionalista. A vitalidade e sanha guerreira da tribo dos ―Tabajaras‖ transbordam pelas páginas de certos trechos do romance, remetendo o leitor ao campo de guerra, fazendo-o sentir a emoção que escoa e 66

imaginar o cenário como descrito, tornando-o num combatente ou possível observador do confronto a ser travado.

Numa alusão à música ancestral e sagrada das línguas, da qual já nos falou Bordelois (2005) no início deste capítulo, é possível ainda a um leitor atento do romance sentir, ao ler o trecho que selecionei a seguir, o ritmo seco, compassado e de sons curtos que se imagina que tenha a guerra entre os indígenas, permeada que é pela percussão e pelo próprio ritmo atonal que sabe-se ser peculiar das línguas indígenas:

Eis retroa o boré pela amplidão do vale.

Travam das armas os rápidos guerreiros, e correm ao campo. Quando foram todos na vasta ocara circular, Irapuã, o chefe, soltou o grito de guerra:

— Tupã deu à grande nação tabajara toda esta terra. Nós guardamos as serras, donde manam os córregos, com os frescos ipus onde cresce a maniva e o algodão; e abandonamos ao bárbaro potiguara, comedor de camarão, as areias nuas do mar, com os secos tabuleiros sem água e sem florestas. Agora os pescadores da praia, sempre vencidos, deixam vir pelo mar a raça branca dos guerreiros de fogo, inimigos de Tupã. Já os emboabas estiveram no Jaguaribe; logo estarão em nossos campos; e com eles os potiguaras. Faremos nós, senhores das aldeias, como a pomba, que se encolhe em seu ninho, quando a serpente enrosca pelos galhos?

O irado chefe brande o tacape e o arremessa no meio do campo. Derrubando a fronte, cobre o rúbido olhar: Irapuã falou; disse. O mais moço dos guerreiros avança:

— O gavião paira nos ares. Quando a nambu levanta, ele cai das nuvens e rasga as entranhas da vítima. O guerreiro tabajara, filho da serra, é como o gavião. Troa e retroa a pocema da guerra. O jovem guerreiro erguera o tacape; e por sua vez o brandiu. Girando no ar, rápida e ameaçadora, a arma do chefe passou de mão em mão. (ALENCAR, 1997, p. 24)

Quanto à segunda gradação da expressão artística, a simbólica, leva em conta todas as manifestações dos signos, dos símbolos como sinais, portadores da representação, que é a essência mesma da arte e varia de 67

intencionalidade de acordo com o sentido que lhe achar por bem atribuir a consciência dotada de intenções do sujeito apreciador. É possível apontar um exemplo da gradação simbólica da expressão artística no livro Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres (1998), de Clarice Lispector, o maior presente que a Ucrânia poderia ter legado aos brasileiros. Esta obra, muito mais do que uma suave e contemporânea história de amor, de uma doçura pouco comum e mesmo inusitada nas obras da autora, narra os entrecruzamentos de Ulisses – professor de filosofia – e Lorelley – uma professora primária que, já tendo tido cinco amantes, no sentido mais romântico da palavra, porém não tendo, até então, descoberto o amor verdadeiro com nenhum deles, com Ulisses, descobre o amor em seu sentido mais genuíno e pleno e também a angústia sempre necessária e indispensável do viver. Na verdade, juntos, descobrem-se a cada dia.

Ainda que Clarice Lispector tenha tido reservas em admitir a presença nítida da filosofia em sua obra, é uma abordagem bastante semiótica a que ela escolhe para narrar as descobertas, tanto individuais quanto conjuntas, de Ulisses e Lorelley. A presença da simbologia já começa com os nomes das personagens: Ulisses é o nome latino do engenhoso marinheiro grego Odisseu, que idealizou o estratagema do cavalo de madeira, graças ao qual foi possível que os gregos vencessem os troianos depois de dez anos de guerra por Helena, esposa do rei Menelau de Esparta, epopéia narrada na Ilíada (2001) do grego Homero; aliás, a presença de Ulisses é forte nas duas epopéias homéricas, porque a história contada na segunda delas, a Odisséia (2002), também diz respeito a ele, ao trajeto de vinte anos que teve de fazer para regressar a sua amada pátria Ítaca e a sua amada esposa Penélope – que ainda o esperava. Lorelley, equivalente à Iara dos rios e lagos do Brasil, é a linda sereia germânica, de longos cabelos louros e olhos verdes que, dos lagos, canta maviosamente para atrair os marinheiros para si, e ao mesmo tempo para sua própria perdição, visto que terminam por ir ter ao fundo dos lagos, de acordo com as lendas populares alemãs.

Conhecendo essa simbologia contida nos nomes das personagens, percebe-se a inversão mítica efetuada por Clarice Lispector, pois ao invés de Lorelley atrair o tão sábio filósofo para a perdição a seu lado, ambos, na 68

verdade, acabam por resgatar-se por meio do amor, sendo presenças nos mundos um do outro, aprendendo a conhecer melhor a si mesmos e um ao outro a um só tempo. Além da beleza simbólica contida já nos nomes das personagens, toda a relação do filósofo e da professora primária – que já pressupõe nessa gradação profissional fases distintas do compartilhar do conhecimento - é construída e constituída por inúmeras simbologias: as rosas com que Ulisses espera Lorelley para seu primeiro encontro amoroso propriamente dito, a maneira como se reverenciam ao iniciarem esse encontro, as passagens do tempo de acordo com os amadurecimentos amorosos de ambos, os mudos e intensos olhares que tudo diziam em meio aos longos e profundos silêncios contemplativos e tantas outras simbologias que só podem ser compreendidas pelo leitor ao longo da leitura atenta desta narrativa tão belamente surpreendente quanto não-linear.

Em se falando na terceira gradação expressiva esboçada por Bosi (1986) – a alegoria – o termo vem do grego allegoría, que quer dizer significação encoberta. Nesta gradação expressiva, a representação aparente funciona como uma espécie de disfarce da idéia verdadeiramente representada na obra de arte.

Ainda na literatura brasileira do mineiro Fernando Tavares Sabino (1923- 2004), encontramos a representação perfeita desta gradação, em seu O Grande Mentecapto (1995). Nele, Geraldo Viramundo, o protagonista, apresenta um quadro leve de confusão mental, mas de uma espécie de loucura inofensiva e aberta às representações. Viramundo conhece a literatura, a religião cristã, tendo mesmo quase chegado a tornar-se padre. Esse quadro de loucura leve o conduz às mais variadas situações de exposição aos tratamentos dados àqueles considerados loucos pela sociedade. Passa por vários hospícios, pela cadeia, pelo serviço militar, pela vida errante de esmolas etc. Viramundo é submetido desde aos tratamentos ―terapêuticos‖ mais severos para tentar curar sua loucura, até chegar a um hospital em que é respeitado como a pessoa que é, aceito entre os demais companheiros de tratamento, chegando mesmo a ter seus gostos literários valorizados pelo diretor, que tinha com ele longas conversas acerca da poesia do vate modernista mineiro Murilo Mendes (1901-1975). Porém, desconfiados do 69

diretor deste último hospital, que trata os loucos assim tão bem e com tanta naturalidade, os presentes destituem-no de seu cargo, fazendo o hospital ficar como os outros. Viramundo chega mesmo a liderar sua ―trupe‖ de loucos contra os ―golpistas‖ numa ―revolução‖ para que se restaure o comando do estabelecimento ao sensato e cordato doutor P. Legrino, mas a ―revolta‖ é sufocada. Fugindo, Viramundo morre sozinho e ferido por um dos próprios irmãos. Esta é uma alegoria perfeita idealizada pelo autor, mostrando tanto as mazelas a que o louco é socialmente conduzido, quanto uma possibilidade mais humana de tratamento; possibilidade esta que, infelizmente, parece que não pode ser bancada pela sociedade que aí está, tanto assim que Viramundo é morto por seu próprio irmão de sangue, mas que pode ser entendido como um irmão, um membro da mesma sociedade que, no entanto, não pode suportá-lo harmoniosamente em seu convívio.

As três obras ilustrativas apresentadas só vêm corroborar as categorias de reflexão estética preconizadas por Bosi (1986), o fazer a arte, o conhecer por meio da arte e o expressar-se por meio dela. Examinando-as é possível depreender as diferentes técnicas utilizadas pelos artistas-artífices da literatura sobre os quais momentaneamente me debrucei. Analisando-as detidamente, nos é proporcionado que possamos entrar no universo colonial das guerras indígenas, conhecer o poder da simbologia evocado por Ulisses e Lorelley a cada um de seus passos e penetrar nas alegorias buscadas por Fernando Sabino para demonstrar seu incômodo com a maneira como se excluem socialmente aqueles que nem sempre precisariam ser excluídos.

Cada uma dessas gradações expressivas foi composta, como já visto, de acordo com determinadas técnicas, peculiares a um certo tempo-espaço, e com uma determinada cultura, o que só me leva a reforçar o conceito bosiano de perspectiva cultural.

1.11. Walter Benjamin e O Apreciador como Centro da Reflexão Estética 70

Salto a saudar-te, / Berro a saudar-te, / Desencadeio-me a saudar- te, aos pinotes, aos pinos, aos guinos! / Por isso é a ti que endereço / Meus versos saltos, meus versos pulos, meus versos espasmos / Os meus versos-ataques-histéricos, /Os meus versos que arrastam o carro dos meus nervos. / Aos trambolhões me inspiro, / Mal podendo respirar, ter-me de pé me exalto, / E os meus versos são eu não poder estoirar de viver. (Álvaro de Campos / Fernando Pessoa, 1974)

O filósofo alemão Walter Benjamin, permeado por seu marxismo heterodoxo, também se dedicou a categorizar as etapas componentes das linguagens que contêm as representações humanas:

A produção artística começa com imagens a serviço da magia. O que importa, nessas imagens, é que elas existem, e não que sejam vistas. O alce, copiado pelo homem paleolítico nas paredes de sua caverna, é um instrumento de magia, só ocasionalmente exposto aos olhos dos outros homens: no máximo, ele deve ser visto pelos espíritos. (BENJAMIN, 1994, p. 173)

Para Benjamin (1994), a arte pode ser analisada a partir de quatro pilares estéticos principais, sem os quais ela não faz sentido para seu apreciador: a percepção, a experiência, a expressão e a mímese, sobre as quais falarei com mais atenção a partir deste momento. Assim como fiz com Calvino (1993) e Bosi (1986), examinarei mais detalhadamente cada uma dessas categorias pensadas por Benjamin, exemplificando-as com obras da literatura universal que delas dêem boa mostra.

Percepção – do latim perceptio, onis, compreensão, faculdade de perceber – é uma característica da arte que, aliando os estímulos sensoriais e a imaginação, causa uma sensação elaborada no apreciador. Vejamos como ela pode se mostrar na literatura: fartamente, nessa forma de representação artística, em nossos dias, esse apreciador se depara com a fragmentação que, levando-se em conta o crescimento e o caos instaurados nas cidades 71

contemporâneas, não poderia deixar de surgir, dado cenário tão propício a sua aparição.

Dão conta desse esfacelamento escritores como os supracitados Clarice Lispector, Fernando T. Sabino, João Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, o norte-americano Edgar Alan Poe (1809-1849), o brasileiro Rubem Braga (1913- 1990), o lusitano Miguel Torga (1907-1995), etc., que, transformando pequenos momentos do cotidiano em arte por meio de seus concisos contos e crônicas, nos tornam conscientes das difíceis referências que nos norteiam nos dias atuais.

No que tange à experiência, segunda categoria artística elencada por Benjamin – do latim experientia, ae, prova, ensaio, tentativa – mesmo sabendo que ela é individual de cada apreciador, dado que cada um tem sua forma de ―ler‖ a arte e o olhar transformador do artista sobre a realidade que a nós se apresenta, percebemos que a angústia e o tédio têm nos assolado de maneira impactante. Machado de Assis, do alto de seu Realismo, já nos dava, em Memórias Póstumas de Brás Cubas (1997), uma amostra exata do que nos esperava, dizendo-nos da angústia de pertencer à raça humana com extremo pessimismo:

Porque, ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: - Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria. (MACHADO DE ASSIS, 1997, p. 176)

Mesmo pessimismo é demonstrado por Eça de Queirós em romances como A Relíquia (1997) e O Crime do Padre Amaro (1997), nos quais condena os hábitos provincianos da sociedade portuguesa, salpicando seus textos com grandes pitadas de ironia, exatamente como Machado de Assis, e dando, muitas vezes, aos personagens que representam os ícones dessa sociedade que condena, destinos atrozes. Praticamente à mesma época o também português José Joaquim Cesário Verde (1855-1886), com sua poesia, nos dava igual incisivo testemunho da marginalidade humana: ―Dói-me a cabeça. Abafo uns desesperos mudos; / Tanta depravação nos usos, nos costumes! / Amo, intensamente, os ácidos, os gumes / E os ângulos agudos”. 72

(CESÁRIO VERDE, 1998, p. 33). Igual desespero, tédio de viver, nos mostra Florbela Espanca ainda em Portugal um pouco mais tarde, já no século XX: ―É vão o amor, o ódio ou o desdém; / Inútil o desejo e o sentimento [...]‖ (DAL FARRA, 2002, p. 79).

Mesma postura melancólica, porém, com ares simbolistas, é assumida ainda pela modernista brasileira Cecília Meireles em seus poemas, cuja musicalidade é a marca registrada para mostrar a desordem racional e emocional do eu lírico, desordem também abordada com brilhantismo por outro poeta português, igualmente moderno, Fernando Pessoa, em seus diversos heterônimos e mostrada ainda por ele mesmo em Mensagem (1995), seu único livro publicado em vida, no qual, por meio da melancolia que acompanha o povo português ao longo de sua história e formação, nos alerta para o fato de que Portugal parece sempre ter estado um pouco a frente de seu tempo no que tange à angústia do Homem Contemporâneo, prendendo-se ao passado nostálgico e melancólico mesmo em seu auge enquanto nação mais poderosa do mundo conhecido e ainda agora, quando esta nação envida, em várias frentes, esforços para retomar seu mítico império quando retornar seu tão desejado rei agora encoberto, muito embora espere por sua volta não sem oposição, representada também em Pessoa pelas tendências rebeldes e futuristas de seu heterônimo Álvaro de Campos: ―Louco, sim, louco, porque quis grandeza / Qual a Sorte não a dá. / Não coube em mim minha certeza; / Por isso onde o areal está / Ficou meu ser que houve, não o que há‖. (PESSOA, 1995, p. 51).

Por meio desse paradoxo tão presente no imaginário e na própria vida do povo português, assim como está presente o mar, Pessoa nos dá sempre conta da presença constante do desespero de viver inerente ao ser humano e presentificado pelos lusos tanto no Sebastianismo quanto na saudade, essa palavra portuguesa singular cujo encantamento ancestral é desconhecido por todas as demais línguas até onde sei.

E, ainda falando em Portugal, por mais que pensemos que a angústia foi um "mal do século XX", adentramos o XXI com Saramago, em seu Ensaio Sobre a Cegueira (2003), cegando todo um país para mostrar a angústia de viver em meio ao caos instaurado, em que mulheres são exigidas como 73

pagamento por comida, cachorros devoram homens para matar a fome e a paralisia de tudo se sobrepõe, enquanto todos se perguntam, sufocados e sufocantes, o que será do amanhã. ―Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.‖ (livro dos conselhos). A utilização do fictício para conscientizar o homem de sua fragilidade é manipulada por Saramago como tática infalível também em seus romances Ensaio sobre a Lucidez (2004), no qual o caos se instaura quando todo o país toma subitamente consciência da importância do voto, e As Intermitências da Morte (2005), no qual a morte, cansada de ouvir as reclamações sempre feitas por todos a seu respeito, decide proporcionar-lhes um período de imortalidade no qual o caos se instaura, pois assim como a vida é essencial para a continuidade da espécie humana, a morte também igualmente o é, numa relação dialética perfeita.

Destaco ainda uma outra face da angústia, aquela retratada por Ernest Hemingway em seu já mencionado O Velho e O Mar (2003), no qual o velho pescador Santiago luta por sua vida e a de seu extraordinário peixe, sua única fortuna, e para conquistar por meio dele o respeito dos moradores de sua aldeia, em detrimento de sua idade já avançada; toda essa luta, interna e externa, com os limites físicos impostos pela idade, e a perseverança do espírito forte e sempre alerta, se dá em meio à solidão e à imensidão vasta, desoladora, azul e perigosa das profundas águas do alto-mar em redor de Gulf Stream.

Em se tratando da expressão da obra de arte, - do latim expressio, onis, representar, retratar -, está sempre presente no objeto artístico e precisa ser apreendida pelo apreciador conforme este é confrontado com a obra de arte.

O poeta francês Charles Baudelaire (1821-1867) prenuncia brilhantemente o tipo de arte que está reservado ao apreciador do Mundo contemporâneo; abramos alas à "beleza da feiúra", como ele diz, lado mais negro da cidade no qual a arte insufla sua seiva vital. Para ele, seja ao lado da opulência, seja ao lado da miséria, a beleza reina estática e soberana, assistindo ao girar do mundo a sua volta e emprestando-lhe, quando assim lhe permitem a genialidade dos artistas e / ou a perspicácia dos apreciadores, sua sempre possível presença: ―Eu impero no azul, esfinge singular; / Alio o cisne branco a um coração de neve; / Odeio o movimento e a linha que o descreve, / 74

E nem sei o que é rir, nem sei o que é chorar‖. (BAUDELAIRE, 2003, p. 30). Farei agora um pequeno passeio pela história do fim do século XIX e também pela do XX a fim de enunciar algumas manifestações da expressão artístico- literária como compreendida por Benjamin e convido ainda uma vez os leitores a me acompanharem nesta incursão.

Depois do crescimento das cidades e trazida por ele dentre tantos outros eventos importantes, vem a Revolução Socialista de 1917. A Rússia, país regido pelo Sistema Feudal aproximadamente até meados do século XIX, época em que todos os outros lugares que haviam registrado o uso desse sistema já o tinham abandonado, instaura uma nova ordem sócio-econômica por meio da revolução e de seu conceito inerente de ruptura, ordem esta já prevista, por exemplo, pelo russo Anton Tchekhov (1860-1904) em As Três Irmãs (2002), peça na qual o refletir sobre a vida presente e futura, a utilidade ou não do trabalho na vida do homem e a imobilidade enjoada imposta pelo tédio da hipócrita vida burguesa é ingrediente fundamental. A formação desse mundo em separado, que duraria até a Perestróica (a qual modernizou a economia e a política russas) e a independência das repúblicas do Leste europeu em 1991, tem como uma de suas talvez imprevistas conseqüências a condução desses vários países, dentre eles a atual República Tcheca do Contemporâneo Milan Kundera, ao ostracismo quase absoluto. Mas como a arte sempre encontra uma maneira de não deixar morrer sua existência de representação pensante e criativa, Kundera trata de, exaltando a sexualidade, dar voz e vez às convicções de seus oprimidos personagens em toda sua plenitude, escrevendo o surpreendente A Insustentável Leveza do Ser (1985).

Lance parecido utiliza o escritor contemporâneo colombiano Gabriel Garcia Márquez, evidenciando não a sexualidade, mas sua cidadezinha imaginária, a pequena, isolada e desolada Macondo – que muito já foi acusada de parodiar sua Aracataca natal –, para que o mundo, sempre tão eurocêntrico, possa finalmente ouvir e conhecer a voz clamante da América Latina.

Na mesma esteira de pensamento está o modernista Mário de Andrade (1893-1945), que revoluciona a Literatura Brasileira por meio da coletânea de 75

lendas e afins relacionados à América Latina contida em Macunaíma (1984), fazendo de seu ―Herói Sem Nenhum Caráter‖ o símbolo de toda uma era.

Em se falando uma vez mais em emancipação como tendência da expressão da Arte de nosso tempo, cabe-me lembrar o romancista francês Honoré de Balzac, que ainda no século XIX concede à sua Mulher de Trinta Anos (1945) o direito de ser plena, de governar sua vida, escolher seus amores mesmo contra as convenções da sociedade e traçar seu futuro, independente das conseqüências que esta iniciativa possa trazer. E até mesmo o já citado Henrik Ibsen, às portas do século XX, dos fiordes gelados da Noruega, em sua peça Casa de Bonecas (2003), emancipa a mulher, tornando-a condutora de sua vida, para desespero da sociedade machista e patriarcal do Ocidente.

E a mímese artística? Quarta e última das características da arte nomeadas por Benjamin (1994) – do grego mimeses, eós, imitação –, é o parâmetro que a arte necessita ter com o mundo que denominamos real, mas que permite que se crie um universo não necessariamente real, embora fatalmente plausível.

Além do próprio Baudelaire (2003), claro, que brilhantemente antecipou as questões que tirariam o sono dos artistas contemporâneos e de seus apreciadores, a escritora inglesa Mary Shelley (1797-1851), em seu Frankenstein (2001), dá ao monstro, criado pelo cientista homônimo do título do livro, uma aparência terrivelmente humana, constituindo-o de pedaços de cadáveres diferentes e colocando-nos no limite entre o natural (a pretendida forma humana do inominado monstro) e o artificial (o resultado que se obteve a partir da medonha junção de corpos em que se converteu sua grotesca aparência).

Ao voltarmos nossos olhos para a controvertida Irlanda e uma vez mais para o século XIX, Oscar Wilde (1854-1900), em sua obra O Retrato de Dorian Gray (2002), nos proporciona uma reflexão sobre o limite entre o homem e sua arte, fundamentando toda a vida do jovem Dorian Gray no retrato deste. Tendo um desejo atendido, Dorian vive uma vida suja e medíocre, escondendo toda sua pequenez sob seu retrato, que envelhece tornando-se 76

horrendo, enquanto ele tem aparência cada vez mais rejuvenescida. A beleza estética aflora em seu rosto sempre majestoso, enquanto sua essência corrupta se transfere para a obra de arte, enfeiando-a cada dia mais.

A fusão entre o homem e sua criação artística e a utilização ou não do sentido da visão na condução do apreciador à real essência da arte são questionamentos postos por Mary Shelley, ainda em seu Frankenstein (2001), nas passagens em que optou por confrontar a feiúra estética do monstro com a cegueira do velho que o recebe e conversa com ele com naturalidade na cabana, pois, apreciando os atributos do ser que o visitava, não tinha conhecimento de sua aparência externa - da mesma maneira que já faziam os gregos como Sófocles, que em seu já mencionado Édipo Rei (1998), exorta Édipo a curvar-se ante as profecias de Tirésias, o profeta cego - e do mesmo modo pelo qual ainda hoje a figura do cego como condutor para além da aparência das coisas é importante para orientais, como os budistas, para os muçulmanos, etc., conforme apurei em Do Essencial Invisível - Arte e Beleza Entre Os Cegos (2002), de João Vicente Ganzarolli de Oliveira. Cabe ainda relembrar que Édipo, ao descobrir que havia assassinado o próprio pai, casando-se posteriormente com a mãe e tendo com ela quatro filhos que refletiriam a maldição dessa condição incestuosa, decide cegar-se, para não mais ver as misérias que o cercam, ficando para sempre do outro lado da visão das coisas, e exilar-se em Colono acompanhado da filha Antígona, cuja tragédia também já mencionei, até que lhe sobreviesse a morte.

O que se pode perceber dessas abordagens distintas das dimensões da obra de arte, é que difere para os autores estudados o lugar a partir do qual se interpela a relação obra-apreciador. Note-se que diferir-se o ponto de partida não significa que haja polarização ou predominância de um elemento sobre o outro. Sendo essa uma relação dialógica, no que insisto desde o início deste trabalho, o apreciador constitui a obra, assim como esta constitui o apreciador. São maneiras ligeiramente diferentes de pensar-se a mesma totalidade. Para Candido (1995) e Bosi (1986), o ponto a partir do qual se enxerga a relação obra-apreciador é a própria obra; por isso, examina-se seu fazer, seu conhecer e seu exprimir pelo artista-artífice e pelo apreciador, como categorias que lhe dão sentido e a constituem. Para Benjamin (1994), o ponto a partir do qual se 77

observa essa mesma relação é o apreciador, pois a percepção é a sensação elaborada que nele causa a obra de arte; a experiência, ainda que presente em todo apreciador no contato com o objeto artístico, é individual de cada um deles; a expressão, único ponto comum a ambas as análises, está presente na obra e deve ser apreendida pelo apreciador; e a mímese é a imitação de um universo que necessariamente deve ter plausibilidade a fim de ganhar sentido diante do apreciador. Juntando-se esses dois veres apenas aparentemente antagônicos, mas que em muito se tocam e interpenetram, me é já possível agora dedicarme à relação arte literária-leitor, cerne desta pesquisa.

78

CAPÍTULO II

O LEITOR E A LEITURA DA LITERATURA

Tenho o livro aberto diante de mim, sobre a minha mesa. E escrito de forma amistosa (tenho a sensação exata de seu tom), acessível e erudito ao mesmo tempo, informativo e, contudo, reflexivo. O autor, cujo rosto vi no belo frontispício, está sorrindo com satisfação (não posso dizer se é homem ou mulher; a face barbeada poderia ser de ambos os sexos, o mesmo podendo acontecer com as iniciais do nome) e sinto que estou em boas mãos. Sei que, à medida que avançar pelos capítulos, serei apresentado àquela antiga família de leitores, alguns famosos, muitos obscuros, da qual faço parte. Aprenderei suas maneiras e as mudanças nessas maneiras, e as transformações que sofreram enquanto levaram consigo, como os magos de outrora, o poder de transformar signos mortos em memória viva. Lerei sobre seus triunfos e perseguições, sobre suas descobertas quase secretas. E, no final, compreenderei melhor quem eu - o leitor - sou. (Alberto Manguel, 1997)

Para que possa desvelar detidamente a complexidade que envolve a relação de mão dupla que se deve dar entre a arte literária e seu leitor, enunciada neste capítulo, contarei com o auxílio de quatro pensadores da literatura: os argentinos Jorge Luís Borges (1899-1986), o anteriormente citado Alberto Manguel – que teve a existência profundamente tocada pela de Borges, demonstrando a amplitude dessa experiência até hoje em seus escritos, o contemporâneo israelense Amos Oz, e o francês Daniel Pennac, igualmente fruto de nosso tempo. Solicitarei também que me acompanhe o já citado cientista político italiano contemporâneo Giovanni Sartori, para que sejam 79

complementadas algumas enunciações feitas por Pennac mais ao final deste capítulo. Começarei então esse deleitoso passeio conduzindo o leitor desta pesquisa pela latinidade de Borges e Manguel, que igualmente constitui os brasileiros.

2.1. Jorge Luís Borges e O Encontro Primeiro e Verdadeiro com A Literatura

Ninguém rebaixe à lágrima ou reprove / esta declaração da maestria / de Deus, que com magnífica ironia / me deu de uma vez os livros e a noite. / desta cidade de livros fiz donos / uns olhos sem luz, que só podem / ler nas bibliotecas dos sonhos / os insensatos parágrafos que cedem / as alvas a seu afã. Em vão o dia / lhes prodigaliza seus livros infinitos, / árduos como os árduos manuscritos / que pereceram em Alexandria. / de fome e de sede (narra uma história grega) / morre um rei entre fontes e jardins / eu me fatigo sem rumo pelos confins; / desta alta e profunda biblioteca cega. / enciclopédias, atlas, o Oriente /e o Ocidente, séculos, dinastias, / símbolos, cosmos e cosmogonias / brindam os muros, porém inutilmente. / lento em minha sombra, a vã penumbra / exploro com o báculo indeciso, / a mim, que me parecia o paraíso / uma biblioteca. / algo, que certamente não se nomeia / com a palavra azar, rege estas coisas; / outro já recebeu em outras borrosas / tardes os muitos livros e a sombra. / ao errar pelas lentas galerias / costumo sentir com vago horror sagrado / que sou o outro, o morto, que haverá dado / os mesmos passos nos mesmos dias. / quem; qual dos dois escreve este poema / de um eu plural e apenas uma sombra? / quem; que importa a palavra que me nomeia / se é indiviso e único o anátema? / Groussac ou Borges, olho este querido / mundo que se deforma e que se apaga / em uma pálida cinza vaga / que se parece com sonho e com esquecimento. (Jorge Luís Borges, 2003 - Tradução minha)

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Para Borges (2000), ao abordar-se a relação livro-leitor, mesmo que façamos releituras posteriores de uma obra, a primeira leitura é sempre a verdadeira, visto que constituiu o encontro primeiro entre aquela determinada obra de literatura e aquele determinado leitor que, dali por diante, fará parte da história dessa obra, assim como ela fará inexoravelmente parte da história desse leitor. Essa concepção se justifica pela consciência que o autor tinha da importância do contar histórias oralmente ou do ouvir histórias, como forma de assimilar o que há para ser assimilado. A Borges era lícito falar disso com bastante propriedade, visto que, já um escritor reconhecido, começou a perder progressiva e irreversivelmente a visão na década de 30 do século XX, já não tendo mais resquício dela na década de 50 do mesmo século e tendo morrido na de 80, ou seja, passando cego por mais de trinta anos de sua vida e contando com diversos ledores para continuar a ser o incansável e ávido leitor que sempre fora:

Quer dizer, muitas coisas aconteceram comigo, como a todos os homens. Tirei prazer de muitas coisas – de nadar, de escrever, de contemplar um nascer do sol ou um crepúsculo, de estar apaixonado e assim por diante. Mas, de algum modo, o fato central de minha vida foi a existência das palavras e a possibilidade de tecê-las em poesia. A princípio, certamente, eu era apenas um leitor. Porém acho que a felicidade de um leitor está além da de um escritor, pois o leitor não precisa experimentar aflição nem ansiedade: seu negócio é simplesmente a felicidade. E a felicidade, quando se é leitor, é freqüente. (BORGES, 2000, p. 106)

Creio aqui ser necessário estabelecer-se a diferença entre leitor e ledor, usados distintamente no português brasileiro contemporâneo principalmente entre os cegos até onde sei, mas que são designações reconhecidas e dicionarizadas, para melhor entendimento dos leitores deste trabalho. Leitor – do latim lector, oris, é aquele que lê para si. Em contrapartida, ledor é aquele que lê em voz alta para outra pessoa que, ouvindo a leitura do ledor, torna-se leitor ainda que não disponha dos olhos para ler. Para tornar a diferença mais clara, da mesma forma há o escritor – do latim scriptor, oris, aquele que escreve, redige o que se passa consigo mesmo e o que deseja representar por 81

meio da linguagem escrita - e o escrevedor − aquela figura que escreve o que outra pessoa, que não sabe ou não pode fazê-lo, deseja que seja posto no papel – figura personificada, por exemplo, no filme Central do Brasil (1998) e no livro O Cortiço (2000), de Aluísio de Azevedo, por meio da personagem Pombinha. Como se vê, o ledor e o escrevedor, formas populares de algum modo advindas de leitor e escritor, dão vida na língua portuguesa do Brasil a papéis e funções que não seriam fidedignamente representados por essas formas cultas já existentes, ou então sê-lo-iam de uma forma ambígua, difícil de esclarecer-se quanto ao sentido assumido em contextos determinados. Por isso, principalmente os falantes do português brasileiro atual, escolheram o uso dessas formas populares, que acabaram por ganhar usos e acepções peculiares e distintas das formas cultas que as originam, para tratar daquele a quem por algum motivo é vetado ler com os olhos, ou daquele a quem faltou passar mesmo que pelos processos mais básicos da escolarização, a quem, portanto, é vetado escrever ou ler por si. De agora por diante, até o final deste capítulo, a figura do ledor será aventada e retomada em suas diferentes facetas e acepções, com a finalidade de delinear com tanta precisão quanto possível a amplitude de seu papel nesse nosso mundo contemporâneo.

Nessa condição de ser leitor ao mesmo tempo em que convive com a escuridão dos olhos, como ele mesmo diz, mais do que em outra em nosso tempo, era fácil a Borges perceber a importância que a oralidade tivera para os gregos antigos da época de Homero – que, também cego como Borges, cantava em versos suas histórias acompanhado pela lira, celebrando a ligação mítica inicial existente entre música e poesia - e dos grandes tragediógrafos, como Sófocles, por exemplo, para quem a presença do mensageiro que trazia as notícias que tinham de ser retidas de imediato pela memória e repassadas com fidelidade era indispensável em suas tragédias, assim como a do também mítico profeta cego Tirésias e suas infalíveis profecias que, guardadas de memória por todos que as ouviam, assim como pelo próprio profeta que as fizera, eram temidas e respeitadas mesmo pelos reis mais tiranos, já que nunca deixavam de concretizar-se em seus mínimos pormenores:

Então fica sabendo, e bem, que não verás / o rápido carro do sol dar muitas voltas / antes de ofereceres um parente morto / 82

como resgate certo de mais gente morta, / pois tu lançaste às profundezas um ser vivo / e ignobilmente o sepultaste, enquanto aqui / reténs um morto sem exéquias insepulto, / negado aos deuses ínferos. Não tens, nem tu, / nem mesmo os deuses das alturas, tal direito; / isso é violência tua ousada contra os céus! / Estão por isso à tua espreita as vingativas, / terríveis Fúrias dos infernos e dos deuses,/ para que sejas vítima dos mesmos males. / Vê bem se é por ganância que digo estas coisas! / Num tempo não muito distante se ouvirão / gemidos de homens e mulheres de teu lar. / levantam-se como inimigas contra ti / as terras todas cujos numerosos filhos / dilacerados só tiveram funerais / feitos por cães, por feras ou por aves lépidas / que a cada uma das cidades onde tinham / seus lares levaram sacrílegos miasmas. / Já que me provocaste, vou dizer agora: / as flechas dirigidas ao teu coração / fui eu que as disparei em minha indignação, / certeiras como as de um arqueiro experiente, / e da pungência delas não escaparás. (SÓFOCLES, 2006, p. 240-241)

Cego e sábio, Tirésias era, na cosmovisão mítica grega, a personificação perfeita da habilidade da memória de muitos cegos; sim, de muitos, mas não de todos, porque nem todos os cegos têm boa memória pelo fato de um ledor os tornar leitores, assim como também é falso que todos os cegos tenham bom ouvido musical, mas isto tudo é material para outros futuros escritos.

Voltando ao paralelo entre Homero e Borges, o primeiro não era leitor, porque naquele tempo de Homero e Sófocles o que valia era mesmo a tradição oral, a palavra empenhada de cada homem que assim procedia, mas Borges, que carregava atrás de si outros três horizontes histórico-culturais além do seu próprio – o antigo, o medieval e o moderno - sabia o que era ser cego e leitor a um só tempo, tanto que dizia a respeito de sua própria condição, citado por Manguel (1997, p. 326): ―Que ninguém avilte com lágrimas ou reprove Esta declaração da habilidade de Deus Que em sua ironia magnífica Deu-me escuridão e livros ao mesmo tempo‖.

Desta condição do cego-leitor compartilho desde o início de minha existência, e muito me honro em pertencer a este mesmo mundo obscurecido e pleno de epifânicos alumbramentos no qual se inscreve este escritor-fênix que, ao contrário de mim, conheceu a visão antes da cegueira, e, após seu 83

renascimento – constante e sempre renovado como o desta mítica ave grega que igualmente renasce das próprias cinzas, reúne coragem para afirmar tais palavras com tal altiva dignidade, que me esforço para cultivar em medida o mais semelhante possível à de Borges, embora saiba que estou apenas no início deste caminho. Vejamos, com Yves Bonnefoy (2009), um dos maiores nomes da poesia francesa atual, em poema homônimo à ave em questão, um pouco acerca dos atributos da mítica fênix e, por extensão, de Borges:

Sobre nós o grande pássaro veremos./Toda ferida por sua causa sanará./Ele alçará suas asas aos extremos/Da árvore- corpo que você lhe ofertará./E cantará longo tempo na ramagem./As sombras hão de transpor o cimo do seu grito./Recusará a morte inscrita na folhagem/E, ousado, galgará as cristas do infinito. (BONNEFOY, 2007, p. 17)

Para Borges, assim como para mim, este primeiro encontro, muitas vezes guiado pelos olhos e lábios de outrem, com uma determinada obra de literatura, é precioso, pois pode ser o primeiro e único encontro que eu tenha com essa obra ao longo de toda a minha vida;quando algum de meus ledores (minha avó – sempre, Talita, Carol, Neusa, Margareth – as mais constantes entre outros de atividade mais espaçada) lê para mim, seja um pequeno trecho, seja um livro todo, sinto e sei que devo me esforçar ao máximo para reter o mais que puder das palavras e idéias que me estão sendo lidas, pois, como já aconteceu inúmeras vezes, esta pode ser uma oportunidade única e irrepetível de um encontro meu com esta obra, principalmente se esta leitura estiver sendo feita de viva voz. Por esta razão, esmero-me em saber o maior número de idéias e trechos a ela concernentes de memória, assim como o fazia incansavelmente Borges, cujas estratégias de leitura mental pós-cegueira discutirei mais adiante.

Desta forma, valorizo como verdadeiro esse primeiro encontro do leitor com a obra de literatura, e por isso tenho consciência da importância do saber narrar e do saber ouvir, já salientados pelo supracitado filósofo alemão Walter Benjamin na década de trinta do século XX, em seu O Narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov (1994), no qual reforça a importância de o homem saber narrar, de saber recorrer às experiências 84

próprias e àquelas passadas de pessoa para pessoa, experiências essas que, nesse movimento de compartilhamento, tornam-se comunicáveis, propiciando, entre muitas outras coisas, que se possa dar conselhos ou seja, compartilhar- se o saber cotidiano e adormecido encerrado por trás das palavras ao qual já aludi, visto que o aconselhar, na habilidade de sugerir que é peculiar a este ato, encerra o saber cotidiano de milênios a ser reconhecido e elaborado conjuntamente pela humanidade, assim como partilhado por todos os seus membros sempre que se queira, cabendo este papel à arte de narrar que, segundo Benjamin, está em declínio, sufocada pelo romance de características burguesas que a sobrepuja, encerrando as histórias apenas nos gêneros escritos e furtando a comunicabilidade às experiências humanas cotidianas.

2.2. A Metáfora Sentida e Entendida como Metáfora

Divertiu-me uma idéia – a idéia de que, embora a vida de uma pessoa seja composta de milhares de momentos e dias, esses muitos instantes nesses muitos dias podem ser reduzidos a um único: o momento em que a pessoa sabe quem é, quando se vê diante de si. (Jorge Luís Borges, 2000)

Assim, para Borges (2000), ler um livro, interpretá-lo, significa compreender que, a um só tempo, as palavras carregam dois sentidos primordiais: o literal e o metafórico. Por meio da poesia em seu sentido original grego de criação, as palavras são despertadas de seu sentido primevo, concreto, dicionarizado, cristalizado, para receber sentidos metafóricos mais amplos que lhes permitem dar conta de uma gama muito maior de representações humanas do que a originalmente ―suportada‖ por elas, antes de terem seus significados ampliados pelas iluminações das metáforas – do grego 85

metaphorá, âs, metáfora, mudança, transposição (do sentido próprio, literal, ao metafórico, figurado). Igualmente o afirma o já mencionado Octavio Paz (1982), de forma também luminosa:

O poeta, em contrapartida, jamais atenta contra a ambigüidade do vocábulo. No poema a linguagem recupera sua originalidade primitiva, mutilada pela redução que lhe impõem a prosa e a fala cotidiana. A reconquista de sua natureza é total e afeta os valores sonoros e plásticos tanto como os valores significativos. A palavra, finalmente em liberdade, mostra todas as suas entranhas, todos os seus sentidos e alusões, como um fruto maduro ou como um foguete no momento de explodir no céu. O poeta põe em liberdade sua matéria. O prosador aprisiona-a. Assim também ocorre com formas, sons e cores. A pedra triunfa na escultura, humilha-se na escada. A cor resplandece no quadro; o movimento, no corpo, na dança. A matéria, vencida ou deformada no utensílio, recupera seu esplendor na obra de arte. A operação poética é de signo contrário a manipulação técnica. Graças à primeira, a matéria reconquista sua natureza: a cor é mais cor, o som é plenamente som. Na criação poética não há vitória sobre a matéria ou sobre os instrumentos, como quer uma vã estética de artesãos, mas um colocar em liberdade a matéria. Palavras, sons, cores e outros materiais sofrem uma transmutação mal ingressam no círculo da poesia. Sem deixarem de ser instrumentos de significação e de comunicação, convertem-se em ―outra coisa‖. Essa mudança – ao contrário do que ocorre na técnica – não consiste em abandonar sua natureza original, mas em voltar a ela. Ser ―outra coisa‖ quer dizer ser a ―mesma coisa‖: a coisa mesma, aquilo que real e primitivamente são. (PAZ, 1982, p. 25-26)

Porém, ainda que as palavras portem ambos os sentidos a um só tempo, a metáfora deve sempre ser sentida como metáfora por aqueles que, dentro de sua cultura e história, fazem uso dela para representar e expressar o que desejam, pois aquilo que é sugerido, em se falando de representação, é sempre mais eficaz do que o que é apregoado.

Neste lugar entra mais uma vez o fenômeno que Bosi (1986) explicitou muito bem, emprestando à pintura o conceito da perspectiva e aliando-o a cultura, o que já retratei anteriormente. Por exemplo, o já mencionado poema épico inglês Beowulf (1992) é riquíssimo em metáforas típicas do modo de pensar e representar da sociedade desta época antiga, os kennings, que 86

consistiam em frases poéticas as quais representavam nomes de pessoas ou coisas por meio de metáforas tais como: beowulf, significando lobo das abelhas, ou seja, urso; caminho das baleias, significando mar; senhor dos anéis, significando rei etc.

Escolhi este tipo particular de metáfora para ilustração, porque, como estou agora dedicada a Borges, com quem tenho afinidades trazidas pela vida, embora numa época distinta da sua, destaquei propositadamente os kenings dentre todos os outros tipos possíveis de metáforas com o intento explícito de homenageá-lo onde quer que esteja. Esta forma de representação era muito sua conhecida graças à ascendência inglesa de sua mãe, por causa da qual fora bilíngüe desde criança, o que ajudou a propiciar-lhe um intenso contato com a literatura inglesa, inclusive a feita em inglês antigo, uma de suas paixões ao longo de toda a vida, gênero artístico no qual floresceram os kennings. Se hoje falamos do rei, os escandinavos falavam do senhor dos anéis, sentiam-no como senhor dos anéis pela simbologia que o anel carregava dentro dessa sociedade tribal. Aquele que tinha vários anéis era o que mais tinha poder, ou seja, o rei; se falamos do urso, esses povos falavam do lobo das abelhas, sentiam-no assim por sua ligação com o mel por elas produzido; se falamos do mar, os nórdicos falavam do caminho das baleias, sentiam-no como o caminho percorrido pelas baleias. Assim, quando Borges nos pede para sentirmos a metáfora como metáfora, significa dizer que, independente do sentido literal inerente a cada palavra, o que importa na metáfora é sua carga de representação, isto é, ainda que a metáfora explique algo, ela existe para ser sentida; a explicação, nesse caso, fica sendo uma conseqüência da fruição artística, uma forma que, ao envolver-se na produção de algum conhecimento, se for esse o caso, alia nessa produção o pensar e o sentir de seu apreciador. Os modelos metafóricos, que não são tantos, por seu gigantesco potencial de representação, são capazes de variações infinitas, o que só beneficia o apreciador, que vê nelas representado aquilo que talvez não saiba ele mesmo como dizer por si, como mostra Severino Antônio (2009):

Imagens podem participar da elaboração de novos conceitos; conceitos podem participar da gestação de novas imagens. 87

A imaginação é vital, para a sabedoria e a prática de sobrevivência, assim como para a construção de conhecimento, não só o artístico e o literário, mas também o filosófico, o científico e o cotidiano. Sem imaginação não haveria conhecimento, não haveria elaboração ativa dos dados, não haveria interpretação nem construção de teoria.

A desconsideração do pensar por imagens significa também não considerar a literatura, e as artes em geral, como forma genuína de conhecimento e de reflexão, especialmente sobre nós mesmos. O pouco que sabemos de nossa condição humana estaria vastamente empobrecido e desfigurado se não existissem as tragédias gregas, a comédia, Dom Quixote, Fausto, Hamlet, assim como os romances de Balzac, Dostoievski e Machado de Assis – para citar apenas algumas das obras e de autores mais significativos na tradição ocidental, que são constitutivos do que sabemos e do que somos.

Assim também, em termos do século XX, em igualmente breve enumeração: Em busca do tempo perdido, O homem sem qualidades, Ulisses, O processo, O castelo, Grande sertão: veredas. Na criação poética: A terra devastada e os Quatro quartetos, as Elegias de Duíno; O cemitério marinho, dentre outras obras imprescindíveis. De modo especial, a poesia é um pensar por imagens. Um conhecer por imagens. Um criar por imagens. (SEVERINO ANTÔNIO, 2009, p. 67)

Já que esta altura do trabalho foi oportuna para dedicar-me a Borges e ao tema do cego-leitor, creio que eu mesma posso atestar uma vez mais, como já venho fazendo ao longo desta pesquisa, a necessidade e validade do conhecimento por meio de imagens, remetendo-me a um episódio do meu tempo de estudante de Letras. Numa certa ocasião,na disciplina de Estudos Literários, lá bem no começo do curso, estávamos lendo o poema Garoa do Meu São Paulo (1995), do já citado escritor brasileiro Mário de Andrade, até que me deparei com uma questão que, por conta da minha cegueira total – fisicamente falando -, comprometia todo o meu entendimento do poema. Reproduzo-o a seguir, para explicitar mais claramente o caminho que desejo perfazer:

Garoa do meu São Paulo, / -Timbre triste de martírios- / Um negro vem vindo, é branco! / Só bem perto fica negro, / Passa 88

e torna a ficar branco. / Meu São Paulo da garoa, / -Londres das neblinas finas- / Um pobre vem vindo, é rico! / Só bem perto fica pobre, / Passa e torna a ficar rico. / Garoa do meu São Paulo, / -Costureira de malditos- / Vem um rico, vem um branco, / São sempre brancos e ricos... / Garoa, sai dos meus olhos. (ANDRADE, 1995, p. 38)

Percebe-se que a garoa impede aquele que vê de ter noção real e concreta, sensível, das desigualdades sociais que abundam na cidade de São Paulo; até aqui, estamos bem. Porém, o poeta compara São Paulo a Londres, dando-lhe um belo e multifacetado epíteto: Londres das neblinas finas... Como explicar a uma estudante cega praticamente desde o nascimento, sem memórias visuais ou resíduos visuais quaisquer, o que são as tais neblinas finas de Londres?

A professora Vadinea A. D. Corbini apurou e descobriu que eu não sabia o que era a neblina. Ou seja, referenciações visuais não me ajudariam a desvendar esse enigma. Após quase meia aula de conversa com toda a classe, concluímos todos juntos que eu conseguira imaginar apropriadamente algo coberto de espessa fumaça, de fuligem. Então tive uma vaga idéia do efeito que a garoa produzia nos transeuntes de São Paulo, mais precisamente, nos olhos daquele que os observava. Somente no ano seguinte, na aula de Teoria Literária da professora Josiane M. de Souza, consegui terminar de montar este quebra-cabeça.

Certo dia, numa aula de assunto apropriado, retomei com Josiane e a classe esta questão da neblina, que não me deixara desde a leitura daquele poema de Mário de Andrade no ano anterior. Então, obtive a seguinte resposta: ―Yara, imagine que você está tocando um objeto envolvido em uma fina camada de algodão. Você vai tocar e perceber os contornos, ter uma idéia mais ou menos precisa do que seja este objeto, não vai?‖ Concordei. ―Pois é‖ – continuou ela – ―O algodão vai turvar as suas impressões táteis assim como as neblinas finas de Londres e a garoa de São Paulo turvam os nossos olhos.‖ Neste momento, compreendi com vigor o porquê daquele apelo do poeta para que a garoa abandonasse seus olhos.

Naquele mesmo ano, íamos para o teatro da universidade, eu e uma amiga, para uma palestra – e chovia! Como chovia... E a umidade fina da 89

chuva intensa resvalava por nós conforme andávamos pela parte coberta do caminho. Então Cibele, a amiga que me acompanhava, reiterou: ―Yara, essa, que você está sentindo agora na pele, é a consistência e a temperatura da neblina. Junta com as informações que você colheu ao longo do curso para ter uma imagem mais completa.‖ E foi o que fiz. Juntando as concretizações que obtive à imagem construída literariamente por Mário de Andrade, pude conhecer e compreender a garoa e a Neblina sem vê-las. Hoje elas fazem parte do meu repertório literário e pessoal; me são familiares, ou seja, por meio da imagem, da metáfora, compartilhei e apreendi conhecimentos racional e imaginativamente necessários, que agora ampliam e ecoam no meu repertório de leitora, já que neblina, garoa e afins são muito recorrentes em inúmeras situações literárias, como a literatura de terror, por exemplo. Constituem também o meu repertório de professora e o de pesquisadora, visto que as uso agora para exemplificar a amplitude, necessidade e eficácia do conhecimento por meio de imagens. Logo, tem razão Severino Antônio (2009) quando nos diz que, caso o conhecimento por imagens, por meio da literatura, não existisse ou não fosse considerado válido, o que sabemos do outro e de nós mesmos, daquilo que somos, pensamos e de como agimos, de como vivemos e vivenciamos, nossa elaboração ativa dos dados, nossa capacidade de construir e compreender teorias, nossa capacidade imaginativa e criadora estariam seriamente comprometidas.

2.3. Da Versatilidade das Modalidades Literárias

Chamarei de literatura, da maneira mais ampla possível, todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o que chamamos folclore, lenda, chiste, até as formas mais complexas e difíceis da produção escrita das grandes civilizações. (Antonio Candido,1995)

90

Guardando ambos os sentidos ao mesmo tempo, o literal e o metafórico, e revelando-se a todo e qualquer apreciador, independentemente de oportunidade, de classe social, de idade, de sexo, de qualquer categorização, a palavra é, para Borges (2000) e para mim, sempre o modo de representação mais próximo do homem das ruas, por ser uma manifestação artística de existência possível de dois modos, a palavra escrita – nem sempre acessível a todos como já vimos quando discorri sobre o ledor e o escrevedor – e a palavra em seus gêneros orais – que nunca se negam às representações de apreciador algum. Um exemplo cabal dessa proximidade, tê-mô-lo aqui mesmo no Brasil, advindo de uma das regiões mais pobres e desprovidas de nosso país, personificado na presença e produção do poeta cearense Antônio Gonçalves da Silva (1909-2002), conhecido entre seus apreciadores e entre a crítica literária pelo singelo e poético pseudônimo de ―Patativa do Assaré‖ – sua cidade natal no estado nordestino de Alagoas. Tendo freqüentado a escola por apenas seis meses e abandonando-a para ajudar a manter a família com seu trabalho, segundo suas próprias palavras, Patativa do Assaré teve ainda assim sua veia poética revelada, nos havendo deixado uma produção grande e cheia da busca intensa de sentido que é típica da arte, e tendo granjeado reconhecimento não somente entre os apreciadores da região brasileira que retrata em seus costumes, fatos e personagens, mas também pelo restante do Brasil, inclusive no que diz respeito à crítica. Escolhi um de seus poemas, Aos Poetas Clássicos (2002), que apresenta essa impressionante trajetória e nos dá uma mostra de sua genialidade de poeta das ruas, corroborando assim a tese de Borges (2000) da universalidade da palavra como representação artística, para ilustrar este trabalho:

Poetas niversitário, / Poetas de Cademia, / De rico vocabularo / Cheio de mitologia; / Se a gente canta o que pensa, / Eu quero pedir licença, / Pois mesmo sem português / Neste livrinho apresento / O prazê e o sofrimento / De um poeta camponês. / Eu nasci aqui no mato, / Vivi sempre a trabaiá, / Neste meu pobre recato, / Eu não pude estudá / No verdô de minha idade, / Só tive a felicidad / De dá um pequeno insaio / In dois livro do iscritô, / O famoso professô / Filisberto de Carvaio. / No premêro livro havia / Belas figuras na capa, / E no começo se lia: / A pá — O dedo do Papa, / Papa, pia, dedo, dado, / Pua, o pote de melado, / Dá-me o dado, a fera é má / E tantas coisa 91

bonita, / Qui o meu coração parpita / Quando eu pego a rescordá. / Foi os livro de valô / Mais maió que vi no mundo, / Apenas daquele autô / Li o premêro e o segundo; / Mas, porém, esta leitura, / Me tirô da treva escura, / Mostrando o caminho certo, / Bastante me protegeu; / Eu juro que Jesus deu / Sarvação a Filisberto. / Depois que os dois livro eu li, / Fiquei me sintindo bem, / E ôtras coisinha aprendi / Sem tê lição de ninguém. / Na minha pobre linguage, / A minha lira servage / Canto o que minha arma sente / E o meu coração incerra, / As coisa de minha terra / E a vida de minha gente. / Poeta niversitaro, / Poeta de cademia, / De rico vocabularo / Cheio de mitologia, / Tarvez este meu livrinho / Não vá recebê carinho, / Nem lugio e nem istima, / Mas garanto sê fié / E não istruí papé / Com poesia sem rima. / Cheio de rima e sintindo / Quero iscrevê meu volume, / Pra não ficá parecido / Com a fulô sem perfume; / A poesia sem rima, / Bastante me disanima / E alegria não me dá; / Não tem sabô a leitura, / Parece uma noite iscura / Sem istrela e sem luá. / Se um dotô me pergunta / Se o verso sem rima presta, / Calado eu não vou ficá, / A minha resposta é esta: / Sem a rima, a poesia / Perde arguma simpatia / E uma parte do primô; / Não merece munta parma, / É como o corpo sem arma / E o coração sem amô. / Meu caro amigo poeta, / Qui faz poesia branca, / Não me chame de pateta / Por esta opinião franca. / Nasci entre a natureza, / Sempre adorando as beleza / Das obra do Criadô, / Uvindo o vento na serva / E vendo no campo a reva / Pintadinha de fulô. / Sou um caboco rocêro, / Sem letra e sem istrução; / O meu verso tem o chêro / Da poêra do sertão; / Vivo nesta solidade / Bem destante da cidade / Onde a ciença guverna. / Tudo meu é naturá, / Não sou capaz de gostá / Da poesia moderna. / Deste jeito Deus me quis / E assim eu me sinto bem; / Me considero feliz / Sem nunca invejá quem tem / Profundo conhecimento. / Ou ligêro como o vento / Ou divagá como a lesma, / Tudo sofre a mesma prova, / Vai batê na fria cova; / Esta vida é sempre a mesma. (PATATIVA DO ASSARÉ, 2002)

Lendo o poema, percebemos, pela variante lingüística não padrão utilizada na escritura do poeta, tratar-se de um homem das ruas, no sentido mais nobre que esta expressão pode adquirir. Se nos detivermos em peculiaridades como o uso não prestigiado gramaticalmente que se faz dos plurais (coisas por coisa, bonitas por bonita, foram por foi, livros por livro etc.), a substituição de determinados fonemas por outros (em por in, escritor por iscritô, que por qui etc), a omissão de fonemas iniciais ou finais em certos vocábulos (universitários por niversitário, academia por cademia, estudar por 92

estudá, autor por autô etc), o uso de superlativos absolutos analíticos inadmissíveis na norma culta brasileira como ―mais maior‖, o uso de duas conjunções em seqüência para exprimir a mesma idéia semântica quando apenas uma delas já garantiria o delineamento da idéia pretendida pelo escritor (mas porém), entre outros traços que se podem perceber, é possível depreender a condição socialmente desfavorecida em que ainda assim desabrocha este poeta.

Todavia, além dessas particularidades que saltam aos olhos ao primeiro e conservador exame no que toca aos usos, cultos ou não de nossa língua, que especialmente não desabono como lugar de representação de todo um universo, meritoriamente esta poesia dá mostras do quanto a arte revelou ao poeta, propiciando-lhe tanto conhecimento quanto prazer. Falando aos poetas clássicos, ele diz que evoca aqueles que são poetas universitários, de academia, cujo vocabulário é rico e cheio de mitologia. Pensemos na maravilha de conhecimento que se operou nesta mente que, mesmo sem poder ser lapidada pelos processos de escolarização, como era do gosto do próprio poeta, descobriu por si mesma o que é mitologia, o que é lira selvagem, o que é poesia branca...

De algum modo, Patativa do Assaré descobriu que a lira e a poesia têm uma ligação bastante estreita em se falando em determinados gêneros poéticos. Descobriu também que sua própria concepção de poesia é diferente daquela a que se atribui o nome de poesia moderna, pois para ele, para que haja poesia, é fundamental a presença da rima, contestada fervorosamente na Semana de Arte Moderna de 1922, segundo Campedelli (1997).

E tudo isso para que não se mencione a riqueza representativa das metáforas escolhidas pelo poeta, para quem a poesia sem rima é uma flor sem perfume, uma noite escura, sem estrelas nem luar, um corpo sem alma, um coração sem amor. O poeta ainda nos revela que sabe que sua poesia tem grande probabilidade de não ser aceita, nem pela academia, nem pela crítica, mas mesmo assim não abre mão de escrevê-la exatamente da forma como é. Depois de tão fartas evidências, como negar a razão a Borges (2000) quando o autor afirma que a palavra é a representação artística que mais se aproxima do 93

homem das ruas e nunca se lhe nega, mesmo sob as condições mais adversas?

Detendo-me sobre este poema, ainda me é possível corroborar outra afirmação do artista-artífice argentino: aquela de que o escritor não precisa necessariamente compreender tudo o que escreve, ou sua finalidade primeira; precisa sim é escrever. E ao findar esse processo, acaba tecendo sua escritura a partir de eventos, sensações e opiniões pessoais, que nada mais seriam do que relatos da vida de um homem entre tantos homens, se não fossem enriquecidos pela imprescindível presença do leitor que, com o escritor-artista- artífice, compõe a dialogicidade que move esta relação, sobre a qual discorrerei a partir de agora amparada pelas iluminações de outro argentino coincidentemente muito próximo de Jorge Luís Fênix Borges – Alberto Manguel, um de seus muitos dedicados e afortunados ledores.

2.4. Alberto Manguel, A Leitura e O Leitor

Contudo, nessa aparente aleatoriedade, há um método: este livro que vejo diante de mim não é somente a história da leitura - é também a história de leitores comuns, dos indivíduos que, ao longo dos séculos, escolheram certos livros em detrimento de outros, aceitaram em alguns casos o veredicto dos antepassados, mas em outras ocasiões resgataram títulos esquecidos do passado ou puseram na estante os eleitos entre seus contemporâneos. Esta é a história de seus pequenos triunfos e de seus sofrimentos secretos, e da maneira como essas coisas aconteceram. A crônica de como tudo ocorreu está minuciosamente registrada neste livro, na vida cotidiana de umas poucas pessoas comuns descoberta aqui e ali em memórias de família, histórias de aldeias, relatos de vida em lugares distantes, há muito tempo. Mas fala sempre de indivíduos, nunca de vastas nacionalidades ou gerações cujas escolhas não pertencem à história da leitura, mas à da estatística. (Alberto Manguel, 1997) 94

A leitura, muito mais do que um mero ato de decodificação de símbolos escritos e assimilação dos conteúdos que eles portam, transporta o leitor a muitos mundos e descobertas quando ele assim o permite. Opostamente à esfinge – monstro alado com corpo de leão e cabeça de mulher que passou a aterrorizar Tebas depois do assassinato do rei Laio por seu próprio filho Édipo, segundo nos conta o mito (2001) – a leitura é quem conta seus segredos ao leitor, ao invés de interpelá-lo com a ameaçadora frase: ―Decifra-me ou devoro- te‖. Continuando-se em uma perspectiva mítica, a relação leitura-leitor se aproxima muito mais do mito bíblico narrado no Antigo Testamento, no Livro de Ester (1993) – rainha judia que, após receber esse título no lugar de Vasti, tornando-se esposa do grande rei Assuero, dos persas e dos medos, que reinava da Índia à Etiópia, apenas revela ao marido sua procedência judia e, portanto, monoteísta, no momento oportuno em que o rei lhe diz que suas palavras são bem-vindas e que atenderá seu pedido e seu desejo, ou seja, quando Assuero se mostra preparado para recebê-las dos lábios de sua esposa e rainha.

Da mesma forma, se o leitor estiver aberto para isso, para aferir da leitura conhecimento e prazer, muitos e inimagináveis são os segredos que ela pode revelar-lhe, atraindo-o magneticamente sempre mais para o interior de seus enigmas prontos a serem por ele desvelados. Assim, cada leitor, com seus conhecimentos de mundo e vivências peculiares, faz sua interpretação de cada obra que lê, de modo que, conforme já visto, a literatura, como representação artística, nunca se esgota, como que chamando cada leitor por seu nome e proporcionando-lhe uma sensação de liberdade jamais experimentada de outra forma, pois essa liberdade o torna independente, pensante, criativo, e por essa independência de reflexões, até mesmo perigoso. Essa relação de familiaridade, de coexistência, explica o por quê de inevitavelmente sentirmos que a edição da obra que estamos lendo é mais verdadeira do que todas as outras, pois ela encerra em si o primeiro encontro do leitor com a obra, a intersecção mais do que vital desses dois mundos diversos e complementares de que nos fala Borges (2000). 95

Parece-me que por essa familiaridade os óculos, ou seja, os segundos olhos de muitos homens sobre a Terra, sejam o emblema primeiro e imediatamente lembrado do leitor, ainda que haja outros tipos de leitores como já vimos e veremos, considerando-se que este leitor que usa óculos, mesmo percebendo que a visão física começa a faltar-lhe, nunca deseja dar-se por vencido, uma vez introduzido aos encantos da leitura, incorporando os óculos a si mesmo e tornando-os co-participantes nessa sua relação até um tanto mística com as obras a serem desveladas. Assim nos mostra Manguel em Uma História da Leitura (1997):

São todos gestos comuns: tirar os óculos da caixa, limpá-los com papel ou tecido, com a bainha da blusa ou a ponta da gravata, empoleirá-los no nariz e firmá-los atrás das orelhas antes de olhar para a página agora lúcida diante de nós. Então, ajustá-los para cima ou para baixo sobre o nariz, para colocar as letras em foco, e, depois de algum tempo, levantá-los e esfregar a pele entre as sobrancelhas, apertando os olhos fechados para manter afastado o texto-sereia. E o ato final: tirá- los, dobrá-los, e inseri-los entre as páginas do livro para marcar o lugar onde paramos a leitura. Na iconografia cristã, Santa Luzia é representada carregando um par de óculos numa bandeja; os óculos são, com efeito, olhos que os leitores de visão ruim podem pôr e tirar à vontade. São uma função destacável do corpo, uma máscara através da qual o mundo pode ser observado, uma criatura semelhante a um inseto, carregada como um animal de estimação à caça de um louva- deus. Discretos, sentados de pernas cruzadas sobre uma pilha de livros ou em pé, em espectativa, num canto atravancado da escrivaninha, eles se tornaram o emblema do leitor, a marca da presença do leitor, um símbolo do ofício do leitor.

É desnorteante imaginar os muitos séculos anteriores a invenção dos óculos, séculos durante os quais os leitores se envesgaram para penetrar nas linhas nebulosas de um texto, e é emocionante imaginar se o alívio extraordinário, quando surgiram os óculos, ao ver subtamente, quase sem esforço, uma página escrita. Um sexto de toda a humanidade é míope; entre os leitores, a proporção é muito maior, perto de 24%. Aristóteles, Lutero, Samuel Pepys, Schopenhauer, Goethe, Schiller, Keats, Tennyson, o dr. Johnson, Alexander Pope, Quevedo, Wordsworth, Daute Gabriel Rossetti, Elizabeth Barrett Browning, Joseph Rudyard Kipling, Edward Lear, Dorothy L. Sayers, Yeats, Unamuno, Rabindranath Tagore, 96

James Joyce - todos tinham visão fraca. Em muitas pessoas essa condição piora, e um notável número de leitores famosos ficou cego na velhice, de Homero a Milton, James Thurber e Jorge Luis Borges. (MANGUEL, 1997, p. 325-326)

Suponho que esse nunca se deixar vencer seja um dos motivos pelos quais a figura do leitor seja tão temida pelos não leitores, visto que ele está sempre procurando formas que o façam burlar qualquer adversidade que o impeça de entregar-se à leitura: desde os óculos que acabei de mencionar até os ledores aos quais antes me referi, papel exercido brilhantemente pelo próprio Manguel, o leitor sempre dá um jeito de dizer não a qualquer adversidade cujo objetivo seja ceifar a leitura de sua vida. Por isso sua reputação nas comunidades não leitoras é tão ambígua, deitando invariavelmente todos sobre ele olhares e atitudes de extrema desconfiança:

Em quase toda parte, a comunidade dos leitores tem uma reputação ambígua que advém de sua autoridade adquirida e de seu poder percebido. Algo na relação entre um leitor e um livro é reconhecido como sábio e frutífero, mas é também visto como desdenhosamente exclusivo e excludente, talvez porque a imagem de um indivíduo enroscado num canto, aparentemente esquecido dos grunhidos do mundo, sugerisse privacidade impenetrável, olhos egoístas e ação dissimulada singular ("Saia e vá viver!", dizia minha mãe quando me via lendo, como se minha atividade silenciosa contradissesse seu sentido do que significava estar vivo) O medo popular do que um leitor possa fazer entre as páginas de um livro é semelhante ao medo intemporal que os homens têm do que as mulheres possam fazer em lugares secretos de seus corpos, e do que as bruxas e os alquimistas possam fazer em segredo, atrás de portas trancadas. O marfim, de acordo com Virgílio, é o material de que é feito o Portal dos Sonhos Falsos; segundo Sainte-Beuve, é também o material de que é feita a torre do leitor. (MANGUEL, 1997, p. 35)

Além dos óculos e dos ledores, tantas outras mais são as estratégias desenvolvidas pelo leitor para jamais separar-se da leitura uma vez a tendo conquistado. Uma delas, talvez a mais tradicional visto que possa ser feita a qualquer tempo e lugar, é a leitura silenciosa. Essa modalidade de leitura, como vimos, ajuda a consolidar a reputação ambígua do leitor, porque uma vez que ele se concentra, mergulha em seu mundo e no da obra, misturando-os, 97

não é notado pelos demais que o rodeiam, seja em casa, na folga do trabalho, em algum meio de transporte ou em algum lugar onde haja apenas burburinho a sua volta. O leitor silencioso se comunica diretamente com o livro e se perde (ou seria se encontra?) no devanear que a leitura lhe proporciona.

2.5. Um Olhar Atento À Leitura Ouvida

O homem que lê de viva voz se expõe totalmente. Se não sabe o que lê, ele é ignorante de suas palavras, é uma miséria, e isso se percebe. Se se recusa a habitar sua leitura, as palavras tornam-se letras mortas, e isso se sente. Se satura o texto com a sua presença, o autor se retrai, é um número de circo, e isso se vê. O homem que lê de viva voz se expõe totalmente aos olhos que o escutam.

Se ele lê verdadeiramente, põe nisso todo o seu saber, dominando seu prazer, se sua leitura é um ato de simpatia pelo auditório como pelo texto e seu autor, se consegue fazer entender a necessidade de escrever, acordando nossas mais obscuras necessidades de compreender, então os livros se abrem para ele e a multidão daqueles que se acreditavam excluídos da leitura vai se precipitar atrás dele. (DANIEL PENNAC, 1993)

Já a leitura feita em voz alta, por si mesmo ou emprestando-se os lábios e olhos de outrem, sendo uma estratégia diferente para que se exerça o ato de ler, envolve outras variantes. Ler-se em voz alta envolve ler pelo prazer dos sons, pelo encantamento provocado pela cadência ancestral e sempre reencontrada daquilo que se lê. Ler em voz alta é dialogar em alto e bom som com aquele que está ausente durante a leitura, seja esse alguém o escritor que concebeu a obra, sejam eles os tantos outros leitores passados, presentes e futuros que travarão conhecimento com ela, pois, como afirma Manguel (1997), 98

a palavra dita em voz alta é alada, podendo portanto chegar a qualquer tempo e distância e mesmo imortalizar-se nos olhos, lábios, pensamentos e produções de milhões de leitores por ela cativados.

É claro que o ler para alguém e o ouvir uma leitura dos lábios de alguém envolvem alvitres nos quais normalmente não se pensa. Por exemplo, quando um ledor lê para um cego e o torna leitor, esse ledor é forçado a ler detalhe por detalhe, estando proibido de pular palavras, devendo respeitar estritamente a pontuação do texto, não podendo também avançar ou recuar trechos sem aviso prévio, e devendo avisar àquele que ouve a leitura quando o escritor se refere às palavras de uma outra pessoa, ou seja, o ledor necessita ser extremamente meticuloso. Por outra parte, aquele que ouve a leitura, seja ele cego ou simplesmente não alfabetizado, está igualmente privado da liberdade de manipular o livro a seu bel-prazer, estando subordinado ao ledor; isso implica dizer que o cego leitor de minha suposição, por exemplo, também não pode recuar ou avançar sozinho na leitura, precisa confiar na entonação do ledor para depreender as marcas escritas protocolares do texto etc.

Do que foi dito se vê que esta é uma relação baseada na confiança a toda prova de ambos os lados, mas o resultado dela é sempre recompensador, tanto para o ledor quanto para aquele que se torna leitor por meio do feitiço de suas palavras. Testemunho isso não apenas por minha experiência mais do que prazerosa de ser, em meu dia-a-dia, o cego-leitor, mas também por aquilo que Manguel (1997) nos diz do tempo em que foi ledor de Borges.

Conta o autor que, trabalhando numa livraria de , certo dia, deparou-se com Jorge Luís Borges à procura de alguns livros. Depois de um pouco de conversa com Manguel, Borges lhe perguntou se o jovem não gostaria de ler para ele – já cego – visto que sua mãe se queixava de estar fatigada desta ocupação que assumira desde os primeiros sinais da cegueira hereditária e vindoura do escritor, dada a idade avançada da senhora e a paixão de Borges pela literatura escrita em inglês antigo, que já começava a tornar-se maçante para ela, devido à necessidade de lê-la em voz alta para o filho, ocupação que Manguel logo aceitou, preenchendo com ela suas noites, como nos relata: 99

Nos dois anos seguintes, li para Borges, tal como o fizeram muitos outros conhecidos afortunados e casuais, à noite ou, quando a escola permitia, pela manhã. O ritual era quase sempre o mesmo. Ignorando o elevador, eu subia pelas escadas até o apartamento (escadas semelhantes àquelas que uma vez Borges subira levando um exemplar recém-adquirido das Mil e uma noites; ele não viu uma janela aberta e fez um corte profundo que infeccionou, levando-o ao delírio e à crença de que estava ficando louco); tocava a campainha; era conduzido por uma criada, através de uma entrada acortinada, até uma pequena sala de estar onde Borges vinha ao meu encontro, a mão macia estendida. Não havia preliminares: enquanto eu me acomodava na poltrona, ele se sentava ansioso no sofá e, com uma voz levemente asmática, sugeria a leitura daquela noite. "Deveríamos escolher Kipling hoje? Hein?" E é claro que não esperava realmente uma resposta.

Naquela sala de estar, sob uma gravura de Piranesi representando ruínas romanas circulares, li Kipling, Stevenson, Henry James, vários verbetes da enciclopédia alemã Brockhaus, versos de Marino, Enrique Banchs, Heine (mas esses últimos ele sabia de cor, de forma que eu mal começava a ler e sua voz hesitante passava a recitá-los de memória; a hesitação estava apenas na cadência, não nas palavras, que lembrava corretamente). Eu não lera muitos desses autores antes, e assim o ritual era curioso. Eu descobria um texto lendo-o em voz alta, enquanto Borges usava seus ouvidos como outros leitores usam os olhos, para esquadrinhar a página em busca de uma palavra, de uma frase, de um parágrafo que confirme alguma lembrança. Enquanto eu lia, ele interrompia, fazendo comentários sobre o texto a fim de (suponho) tomar notas em sua mente. (MANGUEL, 1997, p. 30-31)

E confirmo que Manguel supôs certo. A finalidade de ler-se em voz alta para um cego – e isso tenho o prazer de corroborar embasada por minha própria experiência prática e cotidiana de quem também tem vários ledores ao longo da vida - é proporcionar-lhe, falando numa linguagem muito contemporânea, ocasiões para que ele, ainda que não possa ler com os olhos, faça links em sua mente: anote, guarde epígrafes, descubra as intertextualidades daquilo que ouve no momento com outros textos e até mesmo com outras linguagens artísticas como a da pintura, a do teatro, a da música, a do cinema etc. Ao tornar-se os olhos de Borges e proporcionar-lhe 100

que continuasse a desfrutar de uma atividade que para ele era vital, que além de trabalho era lazer, ou seja, que era toda sua vida, era isso tudo o que Manguel (1997) lhe propiciava, ainda que inicialmente sem sabê-lo. Por isso eu disse que o autor teve a existência profundamente tocada pela de Borges, tão profundamente que seu nome e literatura são recorrentes nos escritos de Manguel, tendo-lhe oferecido experiências de leitor que até hoje são fontes de formulações e argumentos em suas brilhantes reflexões acerca da relação livro-leitor.

Ao termos conhecimento desses laços tão estreitos que uniram Manguel e Borges, é possível compreendermos bem quando o argentino naturalizado canadense hoje diz que quem lê livros, na verdade não os lê, mas de fato habita neles; era isso o que ambos faziam a cada noite enquanto um lia e descobria livros ao lê-los em voz alta para que o outro os retivesse de memória, usufruindo deles inclusive para dar continuidade a seu trabalho genial de escritor: habitavam juntos nos livros escolhidos por Borges e aceitos de bom grado por Manguel.E assim, depois de perder a visão progressiva e irreversivelmente como seu pai, Borges precisou elaborar suas próprias estratégias de leitura mental, das quais Manguel (1997) também nos dá conta, por tê-las acompanhado diariamente durante o tempo em que se tornara ledor do escritor-fênix argentino:

Detendo-me depois de uma linha que achou hilariante em New Arabian nights [Novas noites árabes], de Stevenson ("vestido e pintado para representar uma pessoa na penúria ligada à Imprensa" "Como pode alguém se vestir assim, hein? No que você acha que Stevenson estava pensando? Em ser impossivelmente preciso? Hein?"), passou a analisar o procedimento estilístico de definir alguém ou algo por meio de uma imagem ou categoria que, ao mesmo tempo em que parece ser exata, força o leitor a criar uma definição pessoal. Ele e seu amigo Adolfo Bioy Casares tinham brincado com essa idéia em um conto de dez palavras: "O estranho subiu as escadas no escuro: tic-toc, tic-toc, tic-toc".

Ouvindo-me ler uma história de Kipling, "Beyond the pale" [Fora dos limites], Borges interrompeu-me após uma cena em que uma viúva hindu manda uma mensagem a seu amante, feita de diferentes objetos reunidos numa trouxa. Chamou a atenção 101

para a adequação poética disso e perguntou-se em voz alta se Kipling teria inventado aquela linguagem concreta e, não obstante, simbólica. Depois, como que consultando uma biblioteca mental, comparou-a com a "linguagem filosófica" de John Wilkins, na qual cada palavra é uma definição de si mesma. Por exemplo, Borges observou que a palavra salmão não nos diz nada sobre o objeto que representa; zana, a palavra correspondente na língua de Wilkins, baseada em categorias preestabelecidas, significa "um peixe de rio escamoso e de carne vermelha": z para peixe, za para peixe de rio, zan para peixe de rio escamoso e zana para peixe de rio escamoso e de carne vermelha. Ler para Borges resultava sempre em um novo embaralhamento mental dos meus próprios livros; naquela noite, Kipling e Wilkins ficaram lado a lado na mesma estante imaginária.

Em outra ocasião (não lembro do que me pedira para ler), começou a compilar uma antologia improvisada de versos ruins de autores famosos, incluindo "A coruja, apesar de todas as suas penas, estava com frio", de Keats, "Oh, minha alma profética! Meu tio!", de Shakespeare (Borges achava a palavra "tio" não-poética, inadequada para Hamlet pronunciar - teria preferido "Irmão de meu pai!" ou "Parente de minha mãe!"), "Somos apenas as bolas de tênis das estrelas", de Webster, em The duchess of Malfi [A duquesa de Malfi], e as últimas linhas de Milton em Paraíso reconquistado," ele, sem ser observado,! para o lar de sua Mãe solitário voltou" - o que, pensava Borges, fazia de Cristo um cavalheiro inglês de chapéu-coco retornando para casa a fim de tomar chá com a mamãe.

Às vezes, fazia uso das leituras para seus escritos. Descobrir um tigre fantasma em "The guns of fore and aft" [Os canhões de popa a proa], de Kipling, que lemos pouco antes do Natal, levou-o a compor uma de suas últimas histórias, "Tigres azuis"; "Duas imagens em um lago", de Giovanni Papini, inspirou o seu 24 de agosto de 1982", uma data que ainda estava no futuro; sua irritação com Lovecraft (cujas histórias me fez começar e abandonar meia dúzia de vezes) levou-a criar uma versão corrigida" de um conto de Lovecraft e a publicá-la em O informe de Brodie. Pedia-me amiúde para escrever algo na guarda do livro que estávamos lendo - uma referência a algum capítulo ou um pensamento. Não sei como fazia uso dessas anotações, mas o hábito de falar de um livro nas costas de sua capa tornou-se meu também. (MANGUEL, 1997, p. 31-32) 102

Este trecho nos dá a idéia exata da vivacidade de leitor que Borges possuía, travando tanto com seu ledor, quanto com o texto que ambos de alguma forma liam, uma relação dialógica e dinâmica. Prova disso são os comentários feitos em voz alta pelo escritor enquanto ouvia, comentários que são nada mais nada menos do que a sonorização dos pensamentos que lhe ocorriam durante a leitura, como acontece com todos os demais leitores. Ao lermos um texto, sozinhos ou acompanhados, é impossível deixar de compará- lo com outros textos ou obras artísticas provenientes de outras linguagens que não a literária, mas que tratem da mesma temática ou de temáticas que a confrontam, lembrar autores que defenderam idéias parecidas ou diametralmente opostas àquela que no momento lemos, lembrar estilos de escrever, referências comuns, imaginarmos e refletirmos sobre o mundo que estamos conhecendo enquanto fazemos a leitura etc. Foi graças a esse processo que Borges pôde elencar a antologia de versos poeticamente ruins que Manguel (1997) mencionou. Se Borges, ao lembrar-se deles enquanto lia, disse que todos esses versos famosos não lhe pareciam tão bons, em se falando de sua condição de leitor, quem somos nós para discordar de leitor tão ávido e habituado a refletir sobre a obra de arte que é sua própria vida?

Também eu, lendo por meio de ledores, já pude perceber o jogo imbricado de reciprocidades envolvido nessa relação: quando o ledor lê para mim algo que ele mesmo não entende, mas que eu gostaria ou preciso ler, tenho o prazer de elucidar-lhe algumas idéias, de arriscar conjeturas conjuntas, de ver despertar seu interesse por um assunto inédito graças à leitura que agora temos em comum; quando meu ledor conhece, por exemplo, alguma ou, com muitíssima sorte, algumas línguas estrangeiras, aprendo com ele a música da pronúncia de nomes, expressões etc., que me descortina toda uma vontade e uma oportunidade de pesquisas ainda não empreendidas; também eu sempre solicito aos meus ledores que façam anotações nos meus livros, como se eu mesma as tivesse feito, mesmo sendo elas registradas em uma linguagem que não poderei ler sozinha, pois, quando essas anotações forem necessárias, sempre haverá um ledor disposto a sonorizá-las, basta que eu saiba onde encontrá-las, e nada melhor para isso do que mantê-las no livro que 103

as originou; e também eu, como Borges, sou surpreendida por certas maneiras de vestir ou por determinados traços deste ou daquele personagem literário.

Uma vez ocorreu-me isso ao defrontarme com a descrição do Conselheiro Acácio, feita com enorme precisão por Eça de Queirós em seu O Primo Basílio (1982): ao perceber que sua altura, magreza e extrema palidez realçada pelos trajes completamente pretos contrastavam com uma calva reluzente, cabelos tingidos de um preto lustroso que lhe formavam um colar por traz da nuca e bigodes grisalhos sem tingir caídos pelos cantos da boca, imaginei tudo isso e, agora, compreendo o que Borges quer dizer quando pergunta a Manguel se achava que Kippling pretendia ser extremamente preciso numa determinada descrição constante de um trecho que supracitei.

A literatura tem a faculdade de conquistar o leitor atento a cada detalhe que lhe expõe, com a vantagem de que, se vinte leitores lerem a mesma descrição, chegarão a figuras humanas semelhantes, mas, ao mesmo tempo, cada um deles a terá imaginado de uma forma peculiar; mesmo os leitores cegos como Borges e eu mesma imaginarão esta figura com semelhanças e diferenças, ao ouvirem a descrição dela da boca de outrem. Como salienta Pennac em seu Como Um Romance (1993), assistir a filmes ou programas de tevê, é receber descrições, pessoas, situações prontas e acabadas; ler, pelo contrário, à caça de cada um desses detalhes para formar o todo que encontramos caleidoscopicamente na leitura, é conquistar tudo isso de pouco em pouco.

Enfim, independente da maneira como o leitor tenha acesso ao livro, ele sempre gosta de compartilhar suas descobertas, de possuir tanto o livro na memória como de guardá-lo fisicamente como um talismã, um amuleto que lhe assegura a entrada na memória comunal das sociedades leitoras. Para Manguel (1997), a leitura é um rito de passagem e o leitor deve passar por ele para ser aceito na memória comunal desta sociedade em que se insere. E depois que nos tornamos leitores, ainda que façamos releituras de uma obra, relembrando o grego Heráclito, jamais voltaremos ao mesmo livro ou a mesma página, e jamais seremos novamente o leitor das leituras anteriores. A cada uma das leituras que fazemos, influenciados tanto por nossas vivências como por outras obras, temos uma diferente visão do mundo, o que faz de cada 104

releitura uma nova e surpreendente leitura, como já salientou Leonardo Boff (1997) na introdução deste trabalho.

E depois dessa aceitação na memória comunal social, por parte dos demais leitores, este leitor agora aceito descobre que aquilo que ele lê leva as outras pessoas a fazerem juízos, tanto acerca dele quanto a respeito das leituras que escolhe para si. Na literatura, segundo o que consegui apurar, esses indícios e juízos de valor sobre livros e leitores foram explorados de duas formas predominantemente: Eça de Queirós e Gustave Flaubert mostraram como mentes frívolas, burguesas e entediadas à maneira de suas protagonistas Luísa e Ema Bovary podem ser negativamente influenciadas pelos livros que lêem, pois não os lêem visando a refletir neles, mas tão somente a espelhar-se em suas páginas como rota de fuga das vidas frustradas que levam. Somente os romances açucarados poderiam fazer a burguesa e voluntariosa Luísa interessar-se por um tipo como seu Primo Basílio que, por mais atraente que fosse, era atavicamente inescrupuloso. A vida acomodada e conveniente de Luísa, somada à aventura romanesca representada por Basílio, faz os leitores suporem que foram sim os romances açucarados que conduziram a frívola moça à sua própria perdição na sociedade burguesa e provinciana do Portugal do século XIX.

Aliás, não foi essa a única ocasião na literatura em que os romances açucarados levaram uma moça frívola e acometida pelo tédio enjoado de sua existência a cometer adultério contra um marido praticamente submisso. A já lembrada Ema Bovary fez o mesmo que Luísa e também era uma assídua leitora de romances açucarados, como, por exemplo, os cheios de castelos e aventuras à moda do escocês Walter Scott (1771-1832), dos quais Luísa também tanto gostava, cujos principais personagens faziam frente à vida entediada e entediante da moça. Luísa nos demonstra esse tédio muito bem na cena em que se imagina adormecendo preguiçosamente numa banheira de mármore cor-de-rosa e água tépida e perfumada, e fita indolentemente as veiazinhas azuladas dos mimosos pés. Será isso um afazer que se apresente?:

Luísa espreguiçou-se. Que seca ter de se ir vestir! Desejaria estar numa banheira de mármore cor-de-rosa, em água tépida, perfumada, e adormecer! O numa rede de seda, com as janelas cerradas, embalar-se, ouvindo música! 105

Sacudiu a chinelinha; esteve a olhar muito amorosamente o seu pé pequeno, branco como leite, com veias azuis, pensando numa infinidade de coisinhas: - em meias de seda que queria comprar, no farnel que faria a Jorge para a jornada, em três guardanapos que a lavadeira perdera... (QUEIRÓS, 1982, p. 17).

E é inútil pensarmos que este, como a tuberculose, foi um mal do século XIX, pois hoje este papel de proporcionar ao leitor um estado de acomodação que o faça resignar-se a vida de tédio enjoado que leva é fidedignamente desempenhado pelos livros de auto-ajuda, à maneira dos escritos pelo autor contemporâneo brasileiro Paulo Coelho, que descobriu o que exatamente seus leitores gostariam de ouvir, e lhes diz exatamente aquilo que desejam que lhes seja dito. Não se trata aqui de comparar a escrita ou as obras de Eça de Queirós ou Gustave Flaubert às de Paulo Coelho; não se engane o leitor deste trabalho, esta não é uma comparação nem ao menos longincuamente possível. Porém, a faceta da auto-ajuda é a representação da acomodação que temos hoje na literatura, e que grande influência exerce sobre os leitores de nosso tempo. Cabe aqui explicitar as diferenças entre a acomodação registrada por Eça de Queirós e Gustave Flaubert e a delineada por Paulo Coelho. O escritor lusitano e o francês registram a acomodação das moças burguesas que protagonizam seus romances, mas as fazem pagar um preço altíssimo por ela: o fim de seus casamentos aparentemente sólidos e a extinção de suas próprias vidas. Ao contrário, Paulo Coelho não registra a acomodação apenas; mais do que isso, ele a proporciona, a vende mundialmente embutida em seus livros, em porções abundantes, como receita, promessa certa de uma vida mais feliz, tranqüila e realizada.

Por outro lado, Miguel de Cervantes e Lima Barreto detectaram um outro juízo de valor feito a respeito de certos livros e certos leitores, aquele que atesta a loucura ou quase loucura do intelectual visionário: Policarpo Quaresma, protagonista do Triste Fim de Policarpo Quaresma (2000), de Lima Barreto, de tanto ler sobre o Brasil e estudar tupi, chegou ao ponto de solicitar ao Congresso que aquela se tornasse a língua oficial do Brasil, motivo pelo qual foi considerado louco, internado e posteriormente condenado à morte por alta-traição. E já antes dele o também visionário Dom Quixote (2002), de 106

Cervantes, depois de ler muitos livros de cavalaria, resolve ele mesmo sagrar- se cavaleiro, escolher um escudeiro e sair montado em seu magro pangaré, lutando contra moinhos de vento e protegendo donzelas indefesas que, de fato, não o são, sempre inspirado por sua inacessível amada, Dulcinéia de Toboso. Sua alegoria simboliza na literatura o fim da era medieval, teocêntrica e palaciana do amor cortês e o início da moderna, antropocêntrica e renascentista, na qual serão resgatados e, em certa medida reassumidos, os ideais clássicos da antiguidade.

Contudo, não é esse tipo de ação desvairada, desmedida e catastrófica exemplificada pelos quatro protagonistas citados que creio que a literatura pode oferecer quando se torna efetivamente parte das vidas dos leitores. Como arte livre e formalizadora preconizada por Bosi (1986), ela deve ajudar a fazer brotar no educando o discurso crítico e criativo, filho da reflexão muito bem feita e cada vez mais amadurecida, e o pensar criativo, objetivos por excelência deste trabalho.

2.6. Amos Oz e Os Pactos Silenciosos entre A Literatura e O Leitor

Então, você se senta e se pergunta o que deveria vir primeiro; como chegar a esse début do meio do caminho? Sentando-se. Rabiscando a página. Amassando-a. Jogando-a fora. Rabiscando a página seguinte: formas, flores, triângulos, losangos, uma casa com uma pequenina chaminé, um gato pelado. (Amos Oz, 2007)

E pensando nisso e relembrando que não há de fato tantos enredos distintos, mas infinitas formas de contá-los, tudo por causa das combinações infinitas das metáforas de Borges (2000), é que adentro as considerações de mais um dos autores elencados para minha viagem empreendida neste 107

capítulo acerca da leitura, da literatura e de seus leitores, viagem na qual espero poder ter a companhia de alguns possíveis leitores deste estudo. Vou deixar-me agora conduzir pelo israelense Amos Oz, que em seu E A História Começa (2007), alerta sorrateiramente seus leitores sobre os estratagemas que cada tipo de leitura exige secretamente deles. Já de começo o autor alerta para a diferença da leitura voltada para a pesquisa e da leitura voltada para a própria leitura e seus desvelamentos, contando-lhes que seu pai tinha ―inveja‖ da liberdade de romancista de que Oz dispunha para escrever, enquanto Oz tinha ―inveja‖ do apoio acadêmico do qual seu pai, como pesquisador, dispunha para escrever, nunca necessitando estar sozinho com a página em branco diante de si, à espera da primeira palavra que às vezes demorava tanto a chegar:

Ele jamais tinha que se sentar, como eu faço, e encarar uma única e zombeteira página em branco no meio de uma mesa árida, como uma cratera na face da lua.

Somente eu e o vazio e desespero. Experimente alguma coisa a partir de absolutamente nada. Aliás, refiro-me à mesma mesa. Quando meu pai morreu, herdei sua mesa, que por anos e anos foi densamente povoada, como uma favela em Calcutá, ao passo que agora está deserta feito a pista de pouso em Kosovo.

Na verdade, quem não passou pela medonha experiência de sentar-se diante de uma página em branco, com sua boca sem dentes rindo com escárnio para você: vá em frente, quero ver você encostar o dedo em mim?

Uma página em branco é, na verdade, uma parede caiada sem porta ou janela. Começar a contar uma história é como passar uma cantada numa pessoa inteiramente desconhecida, num restaurante. (OZ, 2007, p. 7-8)

Refletindo sobre esta verdadeira odisséia do começar, que eu mesma experimentei no início deste trabalho, ainda que contando com o apoio acadêmico de que fala o autor, Oz começa a elencar as estratégias por meio das quais se pode iniciar a escritura de um romance: pelo meio da história; escrevendo e reescrevendo a primeira frase; do jeito que for, em suma, assim 108

que se iniciar o big bang, o alumbramento que propiciará ao autor começar a história. E é precisamente pensando nesses começos de romances e contos que Oz aborda as estratégias que a literatura acaba exigindo por parte do leitor, das quais falarei agora, mas utilizando obras da literatura universal que conheço, visto que infelizmente ainda não me foi possível ler a maioria das elencadas pelo escritor israelense.

A primeira das coisas que o autor diz que a leitura exige dos leitores é a paciência para descrições lentas e sóbrias, o que muitas vezes é um problema para quem lê hoje, considerando-se que os leitores contemporâneos geralmente não têm paciência para descrições detalhadas que falam das severidades geométricas, da observação do escorrer do tempo como em uma ampulheta, de paisagens minuciosamente retratadas antes de personagens, bem como das descrições detalhe por detalhe de cada personagem: suas vestimentas, características físicas, psicológicas etc. Na literatura do século XIX, como, por exemplo, Os Maias (1998) de Eça de Queirós, e o conto Um Homem de Negócios (1958), de Balzac, encontramos farta exemplificação desta exigência literária.

A segunda das exigências da literatura seria a disponibilidade do leitor em voltar ao início da história depois de já ter avançado até determinado ponto, a fim de desfazer incidentes relativos a identidades equivocadas ou enganosas das personagens, como alguém que se dispõe a examinar as letras miúdas de um contrato, alguém que já leu a história aceleradamente e depois volta a lê-la à caça dos detalhes. Os contos de Edgar Allan Poe, como, por exemplo, O Barril de Amontillado (1988), são mestres em exigir esta conduta do leitor, pois a ambientação sempre rebuscada e detalhadamente descrita, o uso do raciocínio lógico para compreender-se os indícios espalhados pelos contos e a ambigüidade sinuosa das mentes de cada personagem quase nunca conseguem ser satisfatoriamente desvendados apenas em uma primeira e rápida leitura.

Outra exigência que a literatura faz ao leitor é a disposição para os começos burocráticos e as lógicas belamente oblíquas e desconstruídas tão comuns, por exemplo, da literatura russa; em se tratando de contos, que nesse aspecto são tão complexos quanto os romances, o já mencionado Anton 109

Tchekhov é um mestre nessa exigência. Na literatura brasileira, temos o começo belamente desarmonioso do Macunaíma (1984), de Mário de Andrade, que descreve o nascimento do herói de maneira tão estrondosa que o grito de sua mãe ao dar-lhe à luz tapou a boca da noite.

A quarta das reivindicações da literatura ao leitor é compreender que, em determinadas vezes, o enredo da história já é apresentado pelo próprio título, então o leitor precisa lidar com essa previsibilidade aparente, que no fim das contas sempre acaba por surpreendê-lo, já que por trás de cada elemento previsível se escondem muitos imprevisíveis, não raras vezes surpreendentes, que levam ao desencadeamento do desfecho quase nunca esperado pelo leitor. O romance Ana Terra (1973), do brasileiro Érico Veríssimo (1905-1975), é um bom exemplo disso. O título por si já nos diz que a história há de girar em torno da personagem feminina que recebe este nome, mas mesmo apercebendo-nos disso, olhando o título e o início do romance, é impossível saber quais são as adversidades que esperam pela moça e muito menos que sua história é o início de uma saga familiar que será contada mui detalhadamente pelo escritor em diversas etapas, que tratarão cada uma de um determinado personagem do clã que se iniciou com os Terra. Cada uma das mencionadas etapas gravita em torno do personagem escolhido como protagonista dileto do autor, mas ao mesmo tempo nos fornece elementos que dizem dos sucedidos com todos os outros personagens da família.

Outro atributo que a literatura solicita a seu leitor é a paciência para os insolúveis conflitos internos em que o ridículo e o pungente se equilibram. A Metamorfose (1988), de Franz Kafka, é um bom exemplo disso: muitos que imaginem o absurdo de uma situação em que um homem, ao acordar, se vê metamorfoseado num inseto gigantesco de horrenda aparência, podem achar essa situação ridícula. Mas, ao prosseguirmos a leitura, damo-nos conta das pungências dos conflitos de Gregor Sansa consigo mesmo e com sua família e também da família consigo mesma e com Gregor, e percebemos que, concedendo à arte literária o componente mimético de plausibilidade reclamado por Benjamin (1994), esses conflitos também são nossos e, em sendo nossos, são igualmente insolúveis, restando-nos apenas equilibrarmo-nos na instabilidade que essa situação nos traz. 110

Mais uma das demandas da literatura em relação ao leitor é o estar aberto para lidar com situações em que tem apenas as informações necessárias. O conto São Marcos (1980), de Guimarães Rosa, nos exige exatamente isso. As informações são ofertadas ao leitor uma a uma, com um intervalo de tempo entre elas, como que incitando-nos a usar nossas habilidades para montar um quebra-cabeça. Somente ao final, descobrimos que a entrada nesse mundo, criado pelo autor, só nos será permitida se soubermos aliar nossas sensações conscientes e sempre presentes a nossa consciência momentaneamente vazia de sensações, encontrando assim, cada um de nós, um sentido, uma leitura a ser feita da obra lida.

Outra coisa que a literatura nos pede é que tomemos uma posição ideológica frente àquilo que nos oferece, e isso é fundamental, pois essa etapa já bastante amadurecida é que há de revelar se já lemos reflexiva e criativamente ou se ainda não descobrimos como fazer isso; esta é uma questão fundamental neste estudo, pois somente se o leitor compreender a necessidade de refletir sobre aquilo que está lendo e tomar ideologicamente sua posição frente ao que lê, é que se pode averiguar, no capítulo subseqüente deste estudo, se a literatura se configura hoje importante na formação crítica e criativa dos leitores do Ensino Médio ou não, e por quê. As epopéias, romances, contos - que têm a história por pano de fundo -, como, por exemplo, a já citada Ilíada (2001), narrando a Guerra de Tróia, são muito propícias a nos mostrar qual é nossa posição ideológica diante da história, tanto da história da humanidade quanto da história narrada que a tem como pano de fundo: conhecemos essa posição quase imediatamente ao momento em que nos inteiramos do conflito narrado. Porém, a literatura, como um todo, exige que o leitor tome sua posição frente àquilo que lhe é contado, por isso, quando essa posição não pode ser encontrada tão aparentemente quanto na literatura que tenha por pano de fundo a história, a procura dos detalhes, a retomada de certos pontos e mesmo do início da história são imprescindíveis.

Por exemplo, ao iniciarmos a leitura dos romances ingleses Frankenstein (2001), de Mary Shelley, e O Morro dos Ventos Uivantes (2002), de Emily Brontë, decidimos quase imediatamente que o monstro é um monstro e pronto, e que Heathcliff é a mais perversa e sinistra das criaturas, 111

dadas sua extrema fleuma e dissimulação. Porém, ao final do Frankenstein (2001) percebemos que, apesar de ser fisicamente monstruoso, tudo o que o monstro mais queria era que o cientista lhe desse uma companheira com a qual pudesse estar menos sozinho, no que, aliás, não é atendido; e ao terminarmos O Morro dos Ventos Uivantes (2002), percebemos que toda a dureza de coração e caráter do protagonista se deve ao fato de ele não ter podido concretizar seu amor por Catarina, não sabendo jamais lidar com isso depois de sua perda terrena definitiva. Em seus momentos finais o personagem inclusive torna-se cada vez mais frágil, até se configurar numa sombra débil daquilo que um dia fora. Essas duas grandes mudanças nos romances nos levam a assumir, em seus finais, posições ideologicamente antagônicas àquelas que tínhamos quando os começamos, mas isso só nos é revelado depois do término absoluto das leituras.

Outra das cláusulas dessa espécie de contrato entre literatura e leitor é a perspicácia suficiente do leitor para entrever-se com histórias cujo começo é o próprio fim, fato que, contudo, compreendemos apenas depois de ter passado pelo processo todo da leitura. Esse fenômeno pode ser observado fazendo-se a leitura atenta do conto A Terra Que Nos Deram (1976), do escritor mexicano Juan Rulfo (1917-1986). Falando-nos das extremas dificuldades de sobrevivência e trabalho dos mexicanos ―deserdados‖ pelo governo, o narrador nos conta da secura e esgotamento do solo a que chama llano, rachado e arenoso, no qual os governantes desejam que os mais pobres plantem e dele sobrevivam, nem ao menos dando atenção às tentativas de justificativa dos camponeses para que se lhes desse um pedaço de terra mais fértil do que o ―llano grande‖, ordenando desdenhosamente que fizessem sua reivindicação por escrito, como se esses camponeses sempre tivessem sabido escrever.

O conto se inicia com a caminhada do narrador e outros três camponeses que ainda o acompanhavam até aquela altura árida e deserta do caminho em que só cresciam arbustos secos e sobreviviam lagartixas, aquele caminho onde nunca chove. E terminamos a leitura com a afirmação do narrador de que a terra que lhes haviam dado ficava lá em cima, e não no povoado, retomando-se ciclicamente a condição do início do conto: para tentarem retirar da terra esgotada aquilo que porventura ainda pudesse 112

oferecer aos camponeses com ela ―presenteados‖, era necessário novamente andar, andar e andar pelo llano, e, dia após dia, banhar-se no seu pó antes de regressar ao povoado, depois do trabalho.

Outra das demandas literárias ao leitor é que ele complete as lacunas do texto por si mesmo. Um dos mais exímios contistas brasileiros, Machado de Assis, nos dá mostra de como extrair essa habilidade do leitor. Em seu conto A Causa Secreta (1946), o autor pede, a todo momento, que o leitor acompanhe as lacunas obscuras da mente psicótica do protagonista Fortunato, que sente extremo prazer nos sofrimentos alheios, de animais, de estranhos, de amigos ou de sua própria mulher. No início do conto não se sabe da condição de psicopata do protagonista, mas chegando-se a seu fim, juntando-se aí todos os indícios fornecidos pelo comportamento de Fortunato, o leitor que preencheu por si as lacunas propostas por Machado de Assis não tem mais dúvidas sobre a condição patologicamente perturbada da mente do personagem.

E a última das exigências que o israelense salienta que a literatura faz ao leitor é a de que ele saiba desfrutar da ausência de fronteiras temporais na história. Desse estratagema se utiliza Gabriel Garcia Márquez em seu já citado Cem Anos de Solidão (2003). A saga da família BuenDía é narrada; sabe-se que o alvo são os cem anos de solidão da matriarca Úrsula, mas são explorados os pontos de vista de distintas personagens ao longo da narrativa, pontos de vista esses que se entrelaçam e antagonizam, e o tempo cronológico não é sistematicamente definido, sendo comuns relatos de leitores desta obra que se perdem em meio à genealogia dos Buendía e aos acontecimentos que lhes sobrevêm. Mesmo o espaço não é rigorosamente definido; sim, sabemos que a história se passa na desolada aldeia que tem por nome Macondo, mas, dentro da própria aldeia, o espaço geográfico por onde transitam as personagens não é definido e descrito de maneira sistemática, o que ajuda a corroborar a impressão da ausência de fronteiras temporais minuciosamente estipuladas com que o leitor deve lidar.

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2.7. Homo Videns: O Conhecimento e O Homem de Nosso Tempo

[...] e a tese de fundo é que o vídeo está transformando o homo sapiens, produto da cultura escrita, em um homo videns para o qual a palavra estádestronada pela imagem. Tudo acaba sendo visualizado. Mas o que sucede com o não visualizável (que é a maior parte)? (Giovanni Sartori,1998)

Sendo os adolescentes alvos primeiros desta pesquisa, e examinadas distintas facetas da relação arte literária-leitor, nada mais justo agora do que dedicar um último olhar às relações delicadas, e na maioria das vezes bastante difíceis, dos adolescentes com a leitura da literatura, antes de terminar este capítulo. Para isso, contarei com o auxílio do escritor contemporâneo francês Daniel Pennac que, narrando-nos sua experiência como professor de francês e amante da literatura, em seu livro Como Um Romance (1993), inventaria tanto as possíveis causas que levam um adolescente a não gostar de ler, quanto os posicionamentos possíveis a um leitor frente a seu livro, a que ele chama direitos imprescritíveis do leitor, dos quais falarei mais oportunamente.

Finalizarei então este capítulo debruçando-me sobre as causas que levam os adolescentes a repelirem a leitura da literatura de suas vidas, solicitando também as elucidações já previstas de Giovanni Sartori (1998), pois, no capítulo seguinte, examinarei tanto as causas de ordem acadêmica que levam a essa postura por parte dos alunos, quanto as tentativas que vêm sendo feitas para remediá-la ou modificá-la.

Para Pennac (1993), há certos verbos, em todas as línguas, que não suportam o imperativo; o verbo ler é um deles, acompanhado do amar e do sonhar. Essa tríade tem uma ligação intrínseca, comprovada por um dos atos mais comuns dos pais para com suas crianças: o contar-lhes histórias antes que elas durmam. Contar histórias às crianças faz delas leitores dessas histórias. Quando adormecem, sonham com elas; quando acordadas, refugiam- 114

se nesse mundo maravilhoso encerrado pelos livros, abstraem-se do mundo concreto em que vivem para dar-lhe sentido por obra e graça da leitura feita por seus pais-ledores, encontrando-se consigo mesmas nesse processo. E tanto o contar histórias aos filhos como o ouvi-las de modo enlevado dos lábios dos pais encerram em si atos de amor que, portanto, devem ser conquistados, jamais ordenados.

E novamente estou eu aqui falando na figura do ledor, já tantas vezes evocada: o ledor das crianças, dos adultos ainda não alfabetizados, dos cegos, e recordo-me agora de um outro exemplo de uma ledora incansável, que tornou leitora uma criança a qual veio a ser uma pessoa iluminada, considerada a maior vitória da educação individual de que se tem notícia. A criança que se tornou leitora foi a futura escritora, filósofa e conferencista norte- americana Helen Keller (1880-1968). Nascida no estado americano do Alabama, ainda bebê, Helen foi acometida pelo que os médicos, à época, diagnosticaram como uma febre cerebral, mas que hoje, se supõe, tenha sido escarlatina. A menina sobreviveu, porém a doença deixou-lhe como seqüela a surdo-cegueira.

Indômita, incontrolável, já que os pais não conseguiam de modo algum comunicar-se com ela, até os sete anos Helen permaneceu dona de si, vivendo instintivamente, sobrevivendo. A par do caso da menina, o governo americano designou uma jovem professora – Anne Sullivan – para dar educação à pequena. Sem experiência alguma no trato com portadores de necessidades especiais e tendo ela mesma quase perdido a visão por conta de um grave problema ocular, Miss Sullivan, como Helen carinhosamente passou a chamá- la assim que aprendeu a comunicar-se, desenvolveu seus próprios métodos educacionais para lidar com sua jovem aluna surda-cega.

Com ela, Helen aprendeu o alfabeto manual e o Braille, bem como a vertente norte-americana da língua de sinais. Ane Sullivan descrevia-lhe tudo o que se passava à sua volta, para que ela pudesse participar das conversas, reproduzia-lhe todos os diálogos e repassava suas respostas. A jovem leu autores como Victor Hugo, Goethe, Homero, Virgílio, Mark Twain etc. em seus idiomas originais, doutorou-se em filosofia aos vinte e quatro anos, passou a vida ministrando conferências sobre educação de portadores de necessidades 115

especiais e apoiando a criação e manutenção de escolas para eles em todo o mundo, tendo estado inclusive no Brasil, e chegou mesmo a aprender a falar. Foi essa a atividade que mais a frustrou, por não ter muito bons resultados, mas seu aparelho fonador era perfeito, inapto apenas pela falta da audição. A grande paixão da vida da moça foi sua sempre crescente e variada biblioteca.

E além de Anne Sullivan, sua ledora constante do mundo inteiro que a rodeava, e não apenas dos livros, Helen relata a experiência de ter ouvido, ainda criança, do próprio escritor Mark Twain, algumas de suas histórias. Acomodada nos joelhos dele, Helen tateava-lhe o rosto e a garganta, a fim de perceber-lhe os movimentos da boca, do pescoço e da face e associá-los às vibrações que sentia nas mãos, para identificar o que ele lhe contava.

Como se pode depreender, muitos são os papéis possíveis de serem exercidos pelos ledores, e muitos são os tipos de ledores que podem haver. Voltemos a falar das crianças e dos porquês de não lerem, pois mais adiante a figura do ledor será ainda uma vez evocada pelo próprio Pennac (1993).

Quando nossos filhos aprendem a ler sozinhos, e nos sentimos libertados da tarefa de ledores, das leituras noturnas que afinal nem nos tomavam tanto tempo assim, perguntamo-nos incessantemente o porquê de não gostarem de ler sozinhos, se isso lhes dava tanto prazer quando líamos juntos. Tanto a postura de castigá-los por algum motivo, privando-os da história daquele dia, quanto o fim das leituras noturnas, por já os julgarmos capazes de fazer esse ato de modo auto-suficiente, podem estar nas raízes desse processo, pois o que a criança aprende primeiro é o gesto do ato de ler, mas nós, erroneamente, pensamos que ela já aprendeu a ler propriamente, e a deixamos sozinha, na companhia do livro que hoje é hostil e ontem fora um de seus melhores amigos. Essa mudança tão brusca e repentina pode me ajudar a explicar o porquê de o adolescente, alvo prioritário das inferências deste trabalho, erguer, com o passar dos anos, uma barreira quase intransponível entre ele e os livros solicitados pela escola, concebendo a televisão como recompensa e as leituras como obrigações. Analisemos por um momento esta maneira peculiar de conceber a televisão e os livros por parte dos adolescentes. 116

A esta altura então da pesquisa é hora de examinar cuidadosamente o que diz o cientista político italiano Giovanni Sartori (1998) acerca do homem de nosso tempo, a que ele chama muito acertadamente de homo videns, ou seja, o homem da imagem. Afirma Sartori, em seu livro Homo Videns (1998), que, com a chegada da televisão, do computador e mídias afins, as crianças e adolescentes de hoje estão deixando de ser o homo sapiens – homem da palavra – para tornar-se o homo videns - homem da imagem. Sartori, apoiado pelas elucidações do sociólogo italiano contemporâneo Franco Ferrarotti (1998), fornece uma explicação bastante razoável para esta transformação pela qual passa o homem de nosso tempo e, concomitantemente, para o fato de o lugar da palavra estar sendo como que usurpado pela imagem sintética, pelo fato de o homem poder ver:

Como observa com agudeza Ferrarotti (1997, págs 94-95), ―A leitura requer solidão, concentração nas páginas, capacidade de apreciar a claridade e a distinção"; enquanto que o homo sentiens (o equivalente ferrarottiano de meu homo videns) mostra características totalmente opostas: a leitura o cansa [...]. Intui. Prefere o significado resumido e fulminante da imagem sintética. Esta o fascina e o seduz. Renuncia ao vínculo lógico, à seqüência racional, à reflexão que necessariamente implica o regresso a si mesmo [...]. Cede ante o impulso imediato, cálido, emotivamente envolvente. Elege o living on self-demand, esse modo de vida típico do infante que come quando quer, chora se sente alguma incomodidade, dorme, desperta e satisfaz todas suas necessidades no momento. (SARTORI, 1998, p. 148-150, tradução minha)

E a criança, e conseqüentemente o adolescente assim formado, se torna, para Sartori (1998), num homem que não tem um mínimo contato com a leitura, com a palavra. Há então, ou ao menos assim parece, um conflito a ser contornado nesta nova formação que o nosso homo videns, deixado sozinho com seus livros hostis, recebe desde a mais tenra idade: do já mencionado animal simbólico de Cassirer (1948), esta criança passa a estranhar a aproximação das palavras, a acostumar-se tão somente àquilo que lhe é ―dito‖ pelas imagens sintéticas que recebe, pois, como se sabe, dos cinco sentidos que temos, a visão é aquele que segue o caminho mais diferente: ao falarmos 117

no paladar, na audição, no olfato e no tato, primeiro recebemos aos poucos as informações e as analisamos, para depois sintetizá-las, descobrindo assim de que tratam. Em se falando da visão, olhamos, sintetizamos, temos um panorama rápido e geral daquilo que é visto, para depois podermos analisá-lo e prestar atenção aos detalhes daquilo que vemos, deixando por último a composição mais apurada e, na maioria das vezes, nem chegando a executá- la, por julgar que não seja necessária, visto que a imagem já disse tudo o que era preciso saber acerca daquilo que foi visto. Ou seja, a visão é o sentido perfeito para equiparar-se, complementar e auxiliar a velocidade de nosso tempo. Assim, percebe-se que este animal simbólico que é o homem não sabe mais lidar com aquilo que lhe permite simbolizar e representar o mundo: a palavra. Ouçamos mais uma vez Sartori (1998) acerca desta inabilidade do homo videns de lidar com sua capacidade de simbolizar, que seria inerente a todo ser humano:

[...] mas por que limitá-lo à violência? Acima de tudo, a verdade é que a televisão é a primeira escola do menino (a escola divertida que precede à escola chata); e o menino é um animal simbólico que recebe seu imprint, sua marca educacional, em imagens de um mundo centrado no fato de ver. Nesta paedéia, a predisposição para a violência é, como eu dizia, somente um detalhe do problema. O problema é que o menino é uma esponja que registra e absorve indiscriminadamente tudo o que vê (já que não possui ainda capacidade de discriminação). Pelo contrário, de outro ponto de vista, o menino formado na imagem se reduz a ser um homem que não lê, e, portanto, na maioria das vezes, é um ser "embotado pela televisão", viciado nos videogames. (SARTORI, 1998, p. 36, tradução e grifos meus)

A palavra permite ao homem simbolizar, representar, formular, enquanto que o que a imagem faz é fornecer ao homem comodamente todas as representações, prontas e acabadas. Desse distanciamento entre o menino e a palavra, e posteriormente entre o adolescente e a palavra, resultam dificuldades na capacidade de abstrair conceitos, de fazer inferências, de levantar e/ou debruçar-se sobre hipóteses. Ironicamente, este homem das imagens – das imagens sintéticas da televisão – não sabe lidar com o conhecimento por meio de imagens proporcionado pela literatura, do qual 118

também já tratei anteriormente neste estudo. Nosso homo videns sabe olhar fisicamente imagens sintéticas, fornecidas por sua primeira escola, a televisão, mas não se sente nem crê capaz de formular, ele mesmo, agrupando os detalhes como se faz num quebra-cabeça, as imagens que podem ser compostas por meio da literatura, por meio da análise e elaboração deste algo que está sendo mostrado e necessita da participação de todos os nossos sentidos, bem como de nossa imaginação e entendimento para ser alcançado.

Imagens ainda por conquistar, podem proporcionar ao leitor um conhecimento mais aprofundado e diferenciado daquele conhecimento homogêneo e já pronto propiciado pela maioria das sínteses televisivas. E este movimento resulta, infelizmente, na dificuldade de entendimento, haja vista a pouca inteligibilidade que a imagem oferece por si mesma. Estamos, então, num círculo vicioso: dificuldade de abstrair, dificuldade de entender, o que vai tornando o abstrato cada vez mais distante, mais abstrato do que já é por natureza, e cada vez menos inteligível ao nosso homo videns:

O dado de fundo é o seguinte: o homem que lê está decaindo rapidamente, bem se trate do leitor de livros como do leitor de periódicos. Na Espanha como na Itália, um adulto de cada dois não lê nem sequer um livro ao ano. Nos Estados Unidos, entre 1970 e 1993, os diários perderam quase uma quarta parte de seus leitores. Por mais que se queira afirmar que a culpa deste veloz descenso é da má qualidade ou da equivocada adaptação dos periódicos à competência televisiva, esta explicação não é suficientemente aclaratória. Aclara-o mais profundamente o fato de constatar que se nos Estados Unidos a sessão televisiva dos núcleos familiares cresceu das três horas ao dia em 1954 a mais de sete horas diárias em 1994, quer dizer que depois do trabalho não sobra tempo para nada mais. Sete horas de televisão, mais nove horas de trabalho (incluindo os trajetos), mais seis ou sete horas para dormir, assear-se e comer, somam vinte e quatro horas: a jornada está completa.

Contas aparte, temos o fato de que a imagem não dá, por si mesma, quase nenhuma inteligibilidade. A imagem deve ser explicada; e a explicação que se dá dela na televisão é insuficiente. Se no futuro existir uma televisão que explique melhor (muito melhor), então o discurso sobre uma integração positiva entre homo sapiens e homo videns poderá ser 119

retomado. Mas pelo momento, é verdade que não há integração, se não subtração e que, portanto, o ato de ver está atrofiando a capacidade de entender. (SARTORI, 1998, p. 49- 50, tradução minha)

E creio que é por todos esses fatores, elencados por Sartori e endoçados por mim neste momento da pesquisa, que ocorre esse distanciamento tão brilhantemente retratado por Pennac em seu Como Um Romance (1993), entre o adolescente e a leitura da literatura que a escola exige dele:

Ei-lo agora, adolescente recluso em seu quarto, diante de um livro que não lê.

Todos os seus desejos de estar longe erguem, entre ele e as páginas abertas, uma tela esverdeada que perturba as linhas. Ele está sentado diante da janela, a porta fechada às costas. Página 48. Ele não tem coragem de contar as horas passadas para chegar a essa quadragésima oitava página. O livro tem exatamente quatrocentas e quarenta e seis. Pode-se dizer 500 páginas! Se ao menos tivesse uns diálogos, vai. Mas não! Páginas completamente cheias de linhas apertadas entre margens minúsculas, negros parágrafos comprimidos uns sobre os outros e, aqui e acolá, a caridade de um diálogo – um travessão, como um oásis, que indica que um personagem fala a um outro personagem. Mas o outro não responde. E segue- se um bloco de doze páginas! Doze páginas de tinta preta! Falta de ar! Ufa, que falta de ar! Merda, puta que pariu! Ele xinga. Muitas desculpas, mas ele xinga. Livro filho da puta, burro. Página quarenta e oito... Se ao menos conseguisse lembrar do conteúdo dessas primeiras quarenta e oito páginas! E nem ousa se colocar a pergunta que lhe será feita, inevitavelmente. A noite de inverno caiu. Das profundezas da casa chega até ele o sinal do jornal da televisão. Ainda meia hora a empurrar antes do jantar. (PENNAC, 1993, p. 22-23)

Como podemos depreender do trecho supracitado, o livro constitui, para o adolescente, a materialização do tédio e do peso do conhecimento, visto como um sofrimento bem-comportado. O encantamento com o maravilhoso de outrora passa a estar reduzido aos meros signos impressos de agora.

Mas, o que levaria este jovem da ilustração de Penac, que ora torno minha, a ficar tanto tempo emperrado na página 48, a vomitar-lhe vitupérios, 120

sem desistir do livro que tanto o desagrada? O que este adolescente tenta fazer, na véspera para que termine o prazo demarcado pelo professor, é responder a ficha de leitura exigida pela escola. Nessa ficha, com perguntas técnicas de cunho dissertativo, porém relacionadas quase tão-somente à crítica literária, o aluno escreve aquilo que o professor espera ouvir, copiando de outro colega mais aplicado, ou modernamente, pesquisando na Internet, selecionando, copiando e colando no Word. E o professor que pediu que se respondesse a ficha, mesmo tendo recebido o que esperava, fica desapontado por perceber que o sujeito que transparece naquelas linhas não é o mesmo aluno que lhe entrega as respostas solicitadas.

2.8. Daniel Pennac e A Reconciliação do Leitor com A Leitura

Quando um ser querido nos dá um livro para ler, é a ele quem primeiro buscamos nas linhas: seus gostos, as razões que o levaram a nos colocar esse livro entre as mãos, os fraternos sinais. Depois é o texto que nos carrega e esquecemos aquele que nos mergulhou nele: toda a força de uma obra está, justamente, no varrer mais essa contingência!

Entretanto, com o passar dos anos, acontece que a evocação do texto traz a lembrança do outro; certos títulos se transformam, então, em rostos. (Daniel Pennac, 1993)

Como professor de francês e tendo escolhido a literatura como forma de promover o contato dos alunos com a língua, Pennac descobre, numa classe de 35 refratários à leitura, que o segredo para conquistar os alunos é dar-lhes a ler a literatura estrangeira, traduzida para o francês, que não está, portanto, no programa da disciplina. O segredo é dar-lhes obras que eles sabem que não serão atacadas como se fossem verdadeiros problemas de pesquisa, e não 121

obras de arte dedicadas a encerrar e expressar as tão imprescindíveis representações dos conflitos humanos. Esta forma equivocada de olhar a literatura será detalhadamente abordada no capítulo seguinte, amparada pelas considerações do estudioso búlgaro Tzvetan Todorov (2009); por agora basta- nos saber que, como Pennac (1993) salienta, a existência da literatura não se dá para que seja comentada, mas sim para que seja lida se assim nossos corações nos ordenarem. É possível que, por esse motivo, muitas pessoas adquiram a maior parte de sua cultura literária fora da escola, e relatem esse desconforto que sentem dentro dela com relação à literatura e a tudo quanto lhe diga respeito:

--E um leitor? Descrevam-me um leitor.

--Um verdadeiro leitor?

--Se assim vocês quiserem, se bem que eu não saiba o que é que vocês chamam de um verdadeiro leitor.

Os mais ―respeitosos‖ entre eles me descrevem Deus Pai, ele mesmo, uma espécie de eremita ante-diluviano, sentado desde a eternidade sobre uma montanha de livros dos quais ele teria sugado o sentido até compreender o porquê de todas as coisas. Outros me desenham o retrato de um altista profundo, tão absorvido pelos livros que esbarra contra todas as portas da vida. Outros ainda me fazem o retrato inverso, se apegando a enumerar tudo aquilo que um leitor não é: não é esportivo, não é vivo, não é engraçado, não encara um ―rango‖, nem roupas, nem ―máquinas‖, nem tevê, nem amigos... E outros, enfim, com mais estratégias, constroem diante do professor a estátua acadêmica do leitor consciente dos meios postos a sua disposição pelos livros para aumentar seu saber e aguçar sua lucidez. Alguns misturam esses diferentes registros, mas nenhum, nenhum só, se descreve a si mesmo nem descreve um membro de sua família ou um desses inúmeros leitores com que eles cruzam todos os dias no metrô. (PENNAC, 1993, p. 133-134)

Conforme se vê, fora da escola é possível ler aquilo que nos agrada como leitores. Por outro lado, muitas vezes, dentro da escola, quando lemos literatura, fazê-mo-lo porque os programas das disciplinas, fichas de leitura e professores cujo maior objetivo é cumpri-los nos levam a fazê-lo: 122

Se fizéssemos o inventário das grandes leituras de que somos devedores à Escola, à Crítica, a todas as formas de publicidade ou, ao contrário, ao amigo, ao amante, ao camarada de classe, até mesmo à família – quando ela não coloca os livros no armário da educação – o resultado seria claro: aquilo que lemos de mais belo deve-se, quase sempre, a uma pessoa querida. E é a essa mesma pessoa querida que falamos primeiro. Talvez porque, justamente, é próprio do sentimento, como do desejo de ler, preferir. Amar é, pois, fazer dom de nossas preferências àqueles que preferimos. E esses partilhamentos povoam a invisível cidadela de nossa liberdade. Somos habitados por livros e amigos. (PENNAC, 1993, p. 84)

Quando, pelo contrário, o que move os professores é o poder encantatório da literatura como manifestação artística, e eles sabem como tornar seus alunos leitores, em sua companhia, sua voz se confunde com a do autor, se confunde com a do texto em si, dissipando-se assim a ilusão de que determinada pessoa não gosta de ler. Para isso, nada melhor do que o professor dar-se o direito e o prazer de ler em voz alta trechos de literatura para os alunos, inclusive para aqueles que dizem categoricamente que não gostam de ler. Tanto o ouvir alguém ler, quanto o ouvir alguém contar uma história, presentear-nos ainda que involuntariamente com o resgate do prazer de nossas leituras noturnas de infância, se é que as tivemos, são excelentes maneiras de promover-se a reconciliação entre o leitor e a leitura da literatura.

A leitura, quando descobrimos o modo de nos refugiarmos no mundo que nos oferece, é uma forma de resistência a todas as contingências humanas, inclusive a nós mesmos quando isso se faz necessário, por isso não se deve pedir nada em troca dela, mas sim oferecê-la gratuitamente a todos aqueles que desejem penetrar em seu mundo, que mais cedo ou mais tarde se torna nosso.

E é só depois de propor essa reconciliação tão necessária e meios aptos a promovê-la, que Pennac (1993) se permite enumerar aqueles que são os direitos imprescritíveis de todo leitor:

E o primeiro direito enumerado pelo autor, numa lista feita muito democraticamente, é justamente o direito de não ler, porque, para ele, se é quase unânime que a leitura da literatura humaniza, como Candido (1995) faz 123

questão de frisar em seu texto, também é preciso ponderar o fato de que haja possíveis exceções a essa regra. Consideremos o exemplo dos nazistas que, lendo rotineiramente Goethe, procederam ainda assim o massacre de seis milhões de judeus, numa das mais cruentas passagens da história do século XX:

O aumento criminal provocado pelas grandes ideologias do século XX, obrigou àqueles a tomarem consciência do valor insubstituível da existência humana. Auschwitz não tornou a poesia impossível, como disseram tolamente. Foi mais a ausência de poesia que tornou Auschwitz possível. (BONNEFOY, 2007, p. 14)

O segundo dos direitos do leitor é o direito de pular páginas. Para exemplificar essa possibilidade, Pennac utiliza-se do próprio exemplo. Quando pequeno, interessara-se pelos dois volumes de Guerra e Paz, do escritor russo Liev Tolstoi (1828-1910). Ganhara-os de presente, informado pelo irmão mais velho de que se tratava de uma história de encontros e desencontros amorosos – seu estilo predileto. Natasha, a protagonista do livro, sendo a personagem que mais lhe interessava, foi a única a quem o autor deu atenção, pulando cerca de três quartos do livro pelo prazer de estar exclusivamente com ela. Não pular as páginas de um livro acaba por dar este direito a uma outra pessoa, além do mais, chega um tempo em que nós mesmos nos proibimos de pular qualquer palavra daquilo que estamos lendo.

O terceiro direito concedido ao leitor é o direito de não terminar um livro, pelo estranhamento que lhe causa. Aqui, sou obrigada a confessar que eu mesma já exercitei esse direito, e com um dos clássicos da literatura brasileira – o Macunaíma (1984) de Mário de Andrade. Somente depois da terceira tentativa consegui vencer a ―carta pras icamiabas‖ e terminar a saga do herói sem nenhum caráter.

O quarto direito do leitor é o direito de reler: para reconciliar-se com o que foi rejeitado, para ler sem pular páginas, para ler sob outros ângulos, para ter o prazer do reencontro... Este direito, já o explorei à exaustão ao tratar da quarta definição do que é ser clássico na arte, oferecida por Calvino (1993), no primeiro capítulo deste trabalho. 124

O quinto direito do leitor é o direito de ler qualquer coisa. Aqui cabe-me admitir, por mais que me custe, a presença da literatura industrial na vida do leitor, aquela literatura que valoriza a reprodução e explora suas sensações imediatas. Corrobora-o também o estudioso Tzvetan Todorov (2009), a quem dedicarei várias páginas no capítulo seguinte deste estudo:

Pensar e sentir adotando o ponto de vista dos outros, pessoas reais ou personagens literárias, é o único meio de tender à universalidade e nos permite cumprir nossa vocação. É por isso que devemos encorajar a leitura por todos os meios – inclusive a dos livros que o crítico profissional considera com condescendência, se não com desprezo, desde Os Três Mosqueteiros até Harry Potter: não apenas esses romances populares levaram ao hábito da leitura milhões de adolescentes, mas, sobretudo, lhes possibilitaram a construção de uma primeira imagem coerente do mundo, que, podemos nos assegurar, leituras posteriores se encarregarão de tornar mais complexas e nuançadas. (TODOROV, 2009, p. 82)

O sexto direito do leitor é o direito ao bovarismo – satisfação de suas sensações imediatas, que Pennac chama de uma doença textualmente transmissível, por intertextualidade com a protagonista de Flaubert. Ao contrário do que se possa pensar, e como o fez sempre Pennac em seu Como Um Romance (1993), também já experimentei o bovarismo entregando-me, depois de formada no curso de Letras, ano após ano, aos sete volumes da saga do bruxinho Harry Potter. A oportunidade de desalojar anualmente meus estereótipos, bem como o encontro com esse mundo de magia que tanto me atrai desde a infância, sempre me pareceram atrativos suficientes para iniciar um novo volume, e me parecem ainda agora convites à releitura quando eu tiver a intenção de ler para relaxar, pelo simples prazer da leitura sem maiores compromissos.

O sétimo direito imprescritível do leitor, o direito de ler em qualquer lugar, inclusive nos mais insólitos, é fartamente comentado por Alberto Manguel em Uma História da Leitura (1997), caso os leitores deste trabalho desejem alongar-se mais nele. 125

Ao oitavo direito do leitor, o direito de ler uma frase aqui e outra ali, igualmente enumerado por Pennac (1993), Fernando Pessoa, claro, sem saber, dedica um extraordinário monumento: o Livro do Desassossego (2006). Escrito de forma fragmentária, permite ao leitor ler frases e trechos ao acaso o quanto quiser, sempre que sentir vontade, independentemente do restante da obra.

Quanto ao nono direito, o direito de ler em voz alta, também já tratei dele abundantemente neste trabalho, referindo-me a Borges, a Pennac e a mim mesma: concerne não apenas às crianças, àqueles a quem falta a visão ou que não tenham sido alfabetizados, mas a todo e qualquer aluno que precise ser reconciliado com a literatura, a todos aqueles que tenham prazer em ouvir ou contar histórias, ou seja, concerne a todo e qualquer leitor. Sabemos que, muitas vezes, a inteligibilidade do texto passa pelo som das palavras, o que nos é exemplificado fartamente pela escritura do português José Saramago, a cujos trechos, inúmeras vezes, é necessário dar voz, a fim de que finalmente possamos compreendê-los com clareza.

E o último dos direitos do leitor enunciados por Pennac (1993), o décimo, é o direito de calar.

Desveladas já a esta altura minhas concepções do que sejam educação, educando, linguagem, literatura; examinadas as implicações da arte literária como ordenadora desordenante dos existires humanos; estudadas concepções de diversos pensadores sobre a arte literária e a leitura em si, e lançadas algumas luzes sobre a relação leitura-leitor, acredito já ser possível partir para o terceiro capítulo deste estudo, do qual o ensino de literatura será o foco principal.

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CAPÍTULO III

A LITERATURA E A ESCOLA

Conhecer novas personagens é como encontrar novas pessoas, com a diferença de que podemos descobri-las interiormente de imediato, pois cada ação tem o ponto de vista do seu autor. Quanto menos essas personagens se parecem conosco, mais elas ampliam nosso horizonte, enriquecendo assim nosso universo. (Tzvetan Todorov, 2009)

3.1. Tzvetan Todorov, Algumas Considerações Acerca do Vestibular, do Uso de Textos Críticos e da Literatura na Escola

Classificar não é entender. E menos ainda compreender. Como todas as classificações, as nomenclaturas são instrumentos de trabalho. No entanto, são instrumentos que se tornam inúteis quando queremos empregá-los para tarefas mais sutis do que a simples ordenação externa. Grande parte da crítica consiste apenas nessa ingênua e abusiva aplicação das nomenclaturas tradicionais. (Octavio Paz, 1982)

Graças aos exames vestibulares, o ensino de literatura no Brasil – ao menos no que toca ao âmbito privado -, assim como em outros países, tem 127

passado atualmente por uma indesejável instrumentalização que, em última análise, o reduz a mera disciplina escolar com finalidade explícita de atender aos requisitos desta avaliação, eliminatória para tantos e benfazeja para outros, de forma a preenchê-la bem sucedidamente. Mesmo quando a preocupação escolar não se centra nos exames vestibulares, como veremos mais adiante que também ocorre no Brasil, no âmbito da educação pública, a literatura pode vir a ser instrumentalizada, se o professor desta disciplina estiver atento somente aos textos críticos, que deveriam servir-lhe apenas como apoio. Esta será a questão chave deste capítulo, que discutirá as práticas concernentes ao ensino atual da literatura em nosso país no que tange ao Ensino Médio em suas duas distintas vertentes, o que ele vem acarretando a esta manifestação artística da forma como se dá e as tentativas que vem sendo feitas para começar a modificar este estado de coisas.

Para tanto, acho por bem deter-me um instante, primeiramente, sobre a história do vestibular no Brasil, em seus pontos mais relevantes para este estudo, a fim de contextualizar melhor os possíveis leitores deste trabalho acerca da discussão a ser feita. Como vimos fazendo ao longo desta pesquisa, ouçamos uma vez mais a poética voz do ancestral cotidiano e deixê-mo-lo acrescentar agora então que vestibular – originada do latim vestibulum, i – é aquilo que dá acesso à entrada principal, ou seja, em nosso caso, o exame que ―abre as portas‖ dos cursos superiores aos alunos egressos do Ensino Médio. Segundo informações divulgadas pelo site www.uol.com.br acerca da história do vestibular no Brasil, com a chegada da família real portuguesa ao país em 1808 e a transferência da Corte para cá, são instituídos os exames preparatórios para os cursos superiores existentes no Brasil.

Em 1911 o chamado Exame de Admissão se torna obrigatório, recebendo em 1915 o nome de Vestibular, graças ao decreto n.11530. A responsável pela criação do Vestibular como se dá até nossos dias no Brasil, no ano de 1964, é a Fundação Carlos Chagas, criada para selecionar os candidatos aos vestibulares no Estado de São Paulo. Sendo muito grande o número de candidatos a entrar nas universidades paulistas, concebe-se uma prova processada em computadores, na qual as questões passam a ser de múltipla escolha, formato que reconhecemos até hoje nos exames vestibulares 128

pelo país afora e que facilita, em muito, as correções em se falando de tempo e velocidade. Este sistema é organizado e unificado nacionalmente em 1970. Em 1976 a Universidade de São Paulo – USP - unifica seu vestibular por meio da Fundação Universitária para o Vestibular - FUVEST, e em 1994 altera suas provas, fazendo que a parte destinada aos conhecimentos gerais seja ampliada, passando essa primeira fase a ser eliminatória, e a segunda, específica da área escolhida pelo candidato ao curso pretendido. Por coincidência, essa distinção entre as duas fases da FUVEST, ao menos no concernente aos conhecimentos exigidos de literatura, será alvo deste estudo, posto que provoca comportamentos bastante díspares com relação às exigências solicitadas aos candidatos quanto a esta disciplina em cada uma das fases do mencionado exame, comportamentos que examinarei um pouco mais adiante ao falar da relação vestibular-obra literária-candidato.

Sabe-se, de acordo com algumas leituras deste fenômeno que vêm sendo feitas hodiernamente, que essa relação estabelecida atualmente, por exemplo nas universidades brasileiras, entre os candidatos aos diversos cursos e a literatura como disciplina escolar, é um processo cujos desdobramentos fincam raízes em elementos da estética Moderna, como acredita o estudioso, historiador e semiólogo francês de origem búlgara Tzvetan Todorov, um dos mais respeitados intelectuais europeus da contemporaneidade que, mesclando sua biografia intelectual a uma abordagem crítica de como se dá o ensino ocidental de literatura nos dias atuais, nos faz refletir sobre esse fenômeno em seu A Literatura em Perigo (2009). Nascido no ano de 1939 na cidade de Sófia, Todorov, em suas produções iniciais, academicamente falando, caracterizou-se pela aplicação das análises estruturais à literatura. Porém, nos últimos vinte e cinco anos, tem se dedicado ao que ele mesmo chama de análise cultural da história e das idéias, o que lhe rendeu, no ano de 2008, o prêmio Príncipe de Astúrias de Ciências Sociais, concedido pela Espanha.

Ao iniciarmos a leitura de A Literatura em Perigo, ficamos sabendo, pelas palavras do próprio Todorov, que sua infância e adolescência foram cercadas de livros advindos de seus pais, ambos bibliotecários e sempre ocupados com o planejamento de espaços que conseguissem absorver os novos volumes constantemente adquiridos. Influenciado por esse ambiente, o 129

autor já sabia que o que quer que escolhesse como profissão, teria certamente a ver com livros. Até que, quando chega a hora da escolha, decide optar por cursar Letras em sua Bulgária natal, país membro do regime totalitário instaurado pela União Soviética, segundo as observações do próprio Todorov.

Naquele contexto, a literatura considerada ―boa‖, ―digna de valor‖, e que portanto poderia e deveria ser estudada nas faculdades, nos cursos de Letras, era aquela que ratificava a ideologia marxista-leninista vigente, sendo completamente negligenciados em seu país, tanto quanto nos demais membros da chamada ―cortina de ferro‖ – denominação também utilizada pelo próprio autor – todos os temas e autores que discordavam desse padrão, por não servirem convenientemente à ideologia comunista. Estudar Letras num regime totalitário, com cuja ideologia nem sempre se concorda, acaba por revelar-se uma tarefa difícil, por conta de a literatura ser uma guardiã das representações humanas, em sua pluralidade e multiplicidade, e, por isso, não se deixar aprisionar ou manipular por esta ou aquela ideologia, como logo o próprio autor descobriria.

Em sua monografia de conclusão de curso, opta então por confrontar duas edições de uma novela búlgara, analisando as diferenças gramaticais entre elas, sendo esse um dos poucos caminhos pelo qual se podia fugir à tomada de posição ideológica, que colocaria Todorov numa condição pouco confortável em seu país, caso decidisse assumir a posição ideológica discordante do marxismo-leninismo, que era a sua. Filho do formalismo russo, que fora motivado pela lingüística saussuriana, é analisando a materialidade dos textos e seus aspectos lingüísticos que o autor consegue manter-se neutro em seu curso superior, como necessitava naquele momento. Até que surge a oportunidade de estudar em Paris, onde acreditou que seria possível dedicar- se à literatura mais livremente do que na Bulgária.

No entanto, ao chegar à Sorbonne, nosso estudante búlgaro descobriria que estudar literatura livre de ideologias, ou sem ter de curvar-se a elas quando delas discordava, não seria assim tão simples. Todorov fora informado de que, na França, o ensino de literatura nas universidades se subdividia em nações e séculos, necessitando o aluno saber qual nação e qual época gostaria de estudar. Acostumado a abordar a literatura de modo imanente em suas 130

estruturas, em sua forma lingüística, ao ser perguntado sobre o que gostaria de estudar em Paris, o autor responde que gostaria de dedicar-se a questões de teoria literária em geral, apercebendo-se logo, porém, de que isso não seria possível, dadas às divisões que se aplicavam à literatura como disciplina nas universidades francesas. Por indicação, Todorov passa a estudar com o semiólogo francês Roland Barthes (1915-1980), cuja vida intelectual fora dedicada aos estudos de cunho estruturalista que, portanto, adaptavam-se aos ansei os de estudos literários cultivados pelo búlgaro, o qual acaba por fazer seu doutorado com Barthes em 1966 e por destacar-se, no início de sua carreira, como um fidelíssimo discípulo do semiólogo francês, aplicando o estruturalismo à literatura em seus estudos, e chegando a verter para o francês textos dos formalistas russos, os mesmos responsáveis pelo início de sua formação acadêmica.

Já estabelecido na França, de onde não mais regressaria, contrariando seus planos iniciais, é com os filhos que Todorov percebe certas lacunas do ensino francês de literatura. Fica ciente de que o contato entre a literatura e os jovens se dá não a partir dos textos literários propriamente ditos, mas sim daquilo que deles dizem os críticos. Para seu espanto, ainda que tenha sido afeito aos livros desde muito cedo e com absoluta constância, os conselhos e intervenções que fazia quando os filhos lhe pediam ajuda com deveres ou exames de literatura proporcionavam-lhes apenas notas medíocres.

Acostumando-se a viver em um regime democrático, que se caracteriza pela possibilidade da pluralidade de idéias, e enfronhando-se mais a fundo nas questões acadêmicas que permeiam o ensino de literatura na França como disciplina, é que Todorov percebe que é possível a exploração das obras literárias a partir de distintos pontos de vista como o da psicologia, da antropologia, da história... Advindo de uma formação formalista russa aperfeiçoada no contato com o estruturalismo imanente de Barthes, Todorov acaba por descobrir posteriormente, contrariando as expectativas que pudéssemos ter ao nos depararmos com seu perfil acadêmico narrado até esta altura, que a literatura se constitui em discursos vivos a respeito do mundo que representa, tendo com ele estreita e indissociável relação. 131

E foi esse caminho labiríntico tão à moda do nosso estimado Borges (2000) que conduziu este estudioso búlgaro a sua análise cultural da história e das idéias. Hoje, para ele, amamos a literatura, independentemente de sua materialidade, simplesmente pelo fato de que ela nos ajuda a viver; somos feitos daquilo que outros seres humanos nos dão e, com e por meio dela, respondemos a nossa ―vocação de seres humanos‖, reflexão parecida com aquela à qual chega Paulo Freire (1970) e que apresentei no primeiro capítulo deste trabalho, a qual diz que o homem deve atender e cultivar sua ―vocação ontológica para ser mais‖.

É a partir de seu formalismo originário, corroborado pelo estruturalismo, que depois o constituiu academicamente em suas primeiras produções, que Todorov nos põe diante do intrigante questionamento: o que deve constituir o núcleo da literatura como disciplina escolar, recordando-se que, independentemente disso e de sua materialidade imanente, ela deve prioritariamente nos ajudar a viver? Sabemos que, antes do estruturalismo, o qual viria a proporcionar que o autor desabrochasse em sua formação acadêmica, a disciplina que dominou por muito e muito tempo os estudos das letras foi a filologia, com seu cunho comparativo, histórico e literário.

Depois dela, sobreveio a onda estruturalista desencadeada pelo lingüista suíço Ferdinand de Saussure (1857-1913), que fundou com o Curso de Lingüística Geral (2006), compilação das anotações de seus alunos acerca das aulas que proferia, publicada postumamente em 1916, a chamada lingüística moderna, que alicerçaria suas bases na corrente filosófica que viria a ser denominada estruturalismo – corrente de estudos que firmaria sua influência também nos estudos literários, dos quais as produções iniciais do próprio Todorov nos dão boa mostra. Embora a influência desta corrente venha diminuindo progressivamente no ensino atual de letras, cedendo lugar, por exemplo, à análise cultural da história e das idéias preconizada por Todorov, ainda pode ser sentida ocidentalmente não somente nas universidades que se destinam ao ensino de letras, mas também e muito fortemente nos cursos preparatórios para o ingresso dos alunos nas universidades de maneira geral, conforme veremos logo adiante. 132

Como docente da área das letras, concordo que os estudantes desse curso devam sim conhecer a abordagem estruturalista, inclusive no concernente à literatura, assim como também devem conhecer a abordagem que a filologia fez acerca dos mesmos estudos, e devem também agora familiarizar-se com a análise cultural da história e das idéias proposta por Todorov. O equívoco não está em familiarizar, de certa maneira, os futuros professores com essas abordagens, ainda que em seus princípios básicos, pois, em última instância, elas são instrumentos válidos, aceitos e legítimos de análise de determinados aspectos das obras literárias; ele reside na crença, se existente, de que esses métodos, de que esses caminhos epistemológicos por meio dos quais se pode aceder a aspectos do sentido das obras literárias propriamente ditas, possam ser e tenham sido vistos como fins em si, e ―transmitidos‖ aos estudantes dos cursos preparatórios para as universidades, como se fossem eles mesmos a obra literária em sua totalidade e inteireza.

A palavra método – originada dos vocábulos gregos methodos, ou, metá, atrás, em seguida, através, e hodos, caminho – é o procedimento ou conjunto de procedimentos que auxilia o sujeito do conhecimento em sua intersecção com o objeto que deseja conhecer; ou seja, o método é um caminho possível, mas não necessariamente obrigatório, que o sujeito do conhecimento tem para encontrar-se com o objeto que deseja conhecer e, de algum modo, conhecê-lo, ainda que em parte de sua totalidade.

Sendo assim, tanto a filologia, quanto o estruturalismo e a análise cultural da história e das idéias, são instrumentos, métodos, caminhos epistemológicos igualmente válidos em se tratando da busca do sentido ou sentidos de determinada obra literária. Portanto, como salienta sabiamente Todorov (2009), não há um consenso entre os pesquisadores da literatura acerca de qual deva ser o núcleo desta disciplina, que não deve pretender-se fechada e auto-suficiente, o que valida os diversos métodos de abordá-la, bem como a utilização de procedimentos concernentes a mais de um deles ao mesmo tempo caso seja necessário.

Por isso afirmo que os professores de letras a serem formados nas universidades devem conhecer esses métodos, ao menos em suas linhas gerais, para apenas posteriormente optarem por uma definição desse tipo caso 133

essa opção seja necessária, processo pelo qual eu mesma passei em minha época de discência no curso de letras, para poder agora escrever este trabalho da forma como vem a configurar-se. Devem conhecer as linhas gerais dos métodos, mas não podem e muito menos devem obrigar os alunos a conhecerem os métodos de análise das obras literárias, ou os juízos da crítica de literatura, em detrimento delas mesmas. Não se trata aqui de abolir as apreciações dos estudiosos ou os métodos de análise, mas sim de apresentar aos alunos as obras propriamente ditas, antes de dizer-lhes como devem analisá-las. E o como apreciá-las... Já é uma outra história.

Como vimos no primeiro capítulo desta pesquisa, quem tem consigo a chave do sentido da obra de arte é o apreciador, que em última instância lhe dá vida e valida sua existência, assim como a obra de arte encerra em si o sentido das existências humanas e também as torna vívidas e luminosas; o crítico de arte pode corroborar o apreciador, contrariá-lo, como queira. Só não deve pretender supremacia sobre ele, pois o mais severo, austero e entendido crítico de arte já foi também, um dia e primeiramente, um apreciador, e provavelmente foi cativado pela arte ela mesma, com seu encantamento inerente e dela natural, não necessitando ser induzido a adorá-la ou detestá-la.

Por isso, não deve o crítico de arte pretender dizer onipotentemente ao apreciador como apreciar a obra de arte: pode aconselhá-lo, auxiliá-lo em suas descobertas, pode caminhar lado a lado com ele, mas nunca deve pretender sobrepujá-lo pelo fato de ter, de algum modo, sistematizado seus estudos estéticos e sabê-los largamente reconhecidos; afinal de contas, sejamos aqui muito realistas: o apreciador existe sem o crítico de arte; apreciar o artístico é uma necessidade primordial e profundamente humana desde nossos primórdios pré-históricos, sem a qual ser humano algum pode viver, como já salientou neste trabalho Candido (1995). Porém, o crítico de arte não existe sem o apreciador; muito pelo contrário, seu ofício é, em última análise, tentar ―convencer‖ o apreciador da veracidade do saber por ele sistematizado, embora isso nem sempre ocorra.

Sendo inicialmente um tão importante divulgador do método estruturalista para proceder análises da literatura, não há como não reconhecer hoje a autoridade de Todorov (2009), quando o estudioso diz que a imanência 134

estruturalista, quando se torna fim exclusivo como perspectiva por meio da qual se concebe a literatura como disciplina, afasta a obra de arte do mundo empírico e da realidade que em última análise ela busca representar, tendo sido para isso concebida. Essa imanência da literatura, para o autor, é que faz que ela esteja correndo perigo; por isso ele intitula dessa maneira sua obra mais recente: A Literatura em Perigo, perigo de que a literatura, reduzida à forma como disciplina escolar, não mais consiga e nem possa participar da formação cultural dos indivíduos, cedendo esse lugar, que sempre foi seu, à música e ao cinema; de que ela perca seu poder encantatório de representação, sobrepujada pela história vazia e pelos gêneros literários e convenções, estudados metodicamente em detrimento do contato com a manifestação artística propriamente dita. A única forma de evitar esse perigo que a literatura corre é permitir e contribuir para que ela crie raízes no leitor, a fim de não ser podada pelos métodos de análise que a ela são aplicados, como o são a qualquer das disciplinas escolares, visto que o panorama do ensino atual da literatura nos dá uma idéia de como vem se procedendo o ensino de todos os outros saberes constantes do currículo e que são por ela perpassados, enunciados e representados.

3.2. As Raízes Estéticas do Desencantamento da Literatura

Os bons vi sempre passar/No Mundo graves tormentos;/E pera mais me espantar,/Os maus vi sempre nadar/Em mar de contentamentos.

Cuidando alcançar assim/O bem tão mal ordenado,/Fui mau, mas fui castigado./Assim que, só pera mim,/Anda o Mundo concertado.(Luís de Camões, 1976)

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A temática do desencantamento do mundo moderno tem sido debatida em algumas vertentes, como pode inclusive ser aferido de referências constantes da bibliografia deste trabalho, posto que já se nos apresenta desde um período relativamente espaçado da história ocidental. Aparece primeiramente trazida a nosso cenário cultural pelo poeta alemão Johann Friedrich von Schiller (1759-1805), com a retomada do mundo medieval pelo romantismo alemão, em contraposição à retomada da antiguidade clássica, perpetrada pela renascença em período anterior.

Também Tzvetan Todorov (2009) se propõe a nos falar sobre esse desencantamento que ainda vivenciamos, porém, de uma perspectiva diferente desta anteriormente retratada do romantismo alemão. Tendo iniciado sua formação acadêmica inserido no formalismo russo – portanto sob a repressão do socialismo soviético - e depois continuando sua trajetória na tradição do estruturalismo francês, como vimos, apresenta-nos uma leitura desse desencantamento motivada pelo iluminismo francês e a premissa do homem como centro das reflexões concernentes ao nosso tempo, inclusive no tocante à estética.

Ainda segundo este estudioso búlgaro radicado na França (2009), como dito no início deste capítulo, o próprio nascimento da estética moderna como hoje se configura pode ajudar a explicar as razões desta possível perda de poder da literatura, que tanto preocupa o estudioso e esta pesquisadora. Para entender o papel de nosso tempo neste processo, Todorov nos convida a fazermos com ele uma breve incursão pela estética ocidental, sublinhando particularmente as transformações ocorridas neste campo dentro da literatura, examinando desde suas origens gregas antigas até o estar-sendo estético- literário de nosso tempo.

A fim de começar então esta viagem para a qual Todorov nos convida, acompanhada pela tradicional seleção de representações literárias exemplares que já se tornou costume desta pesquisadora em suas explanações acerca dos temas elencados para discussão neste estudo, é fundamental recordar que o sentido original grego do estético, inerente à arte, é relativo àquele que sente, que percebe. Portanto, sendo a estética intersubjetiva, é plausível e compreensível que a arte tenha o dom de nos falar acerca de várias verdades, 136

e não apenas de uma, como busca fazer a ciência. Assim, na antiguidade, a arte deve prestar-se a três papéis distintos: imitar o mundo e a natureza, agradar a seu apreciador e instruí-lo. Isso pode ser verificado, por exemplo, na Teogonia (2001) do poeta grego antigo Hesíodo e na citada Eneida (2002) do latino Virgílio, cujos versos dão a explicação mítica do mundo que imitam, instruindo seus contemporâneos acerca da cosmovisão do mundo em que vivem, e proporcionando-lhes o deleite da poesia a eles inerente; na medievalidade, seria concernente à arte transmitir e glorificar a divindade que florescia – Cristo, exaltado, por exemplo, nos já mencionados Auto da Barca do Inferno (1997) de Gil Vicente, e A Morte de Arthur (1985) de Thomas Malory; na modernidade, a arte se fundiria ao belo, ao verdadeiro e ao bom, retomando a transcendência desses conceitos platônicos e encadeando-os, o que desembocaria na secularização religiosa e na sacralização do artístico. Essa retomada dos princípios antigos pode ser vista em Os Lusíadas (2005) de Camões, que retoma a mitologia greco-romana e o modo épico de narrar, exaltando o que há de mais belo no povo português, filiando-o aos deuses olímpicos e elevando a nação lusa a um alto lugar, como antes fora feito por outros grandes poetas com a Grécia e Roma. Neste tempo renascentista, o Belo é o harmonioso e proporcional; o belo, harmonioso e proporcional é Verdadeiro; e o belo, harmonioso, proporcional e Verdadeiro é inerentemente Bom. O artista é valorizado como criador, como portador das revelações reservadas aos homens, revelações estas que não mais advêm do onisciente, onipotente e onipresente Deus medieval. Naquele contexto, estando o estético ligado indissociavelmente ao belo, tem lugar a contemplação desinteressada das idéias, já que o Belo é desinteressado, subjetivo e ligado à moralidade, ou seja, ligado ao homem de modo inextricável.

Já no fervilhante século das luzes, com a revolução francesa e a ascensão burguesa ao poder, a idéia do artista como criador fica um tanto abandonada, sendo aceito desde então o ―receptor‖ da obra de arte, que quer contemplar belos objetos e identificar-se neles, por meio deles e com eles. Podemos exemplificar esta tendência com os folhetins escritos pelo português Camilo Castelo Branco e pelo brasileiro José de Alencar, nos quais a 137

preocupação de atender ao público é bem pronunciada, mostrando uma nova faceta da arte que então se apresenta.

Em meio a essas transformações até então inéditas pelas quais passa a arte ocidental, ocorre a cisão entre o artista e o artífice, da qual já tratei no primeiro capítulo deste trabalho. As próprias artes são separadas, categorizadas individualmente, visando a recepção por parte do público, surgindo então a Pintura, a Escultura, a Música, a Fotografia, o Cinema, a Literatura...

O juízo de gosto e o valor estético são finalmente trazidos ao cenário cultural e filosófico ocidental pelo filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804), e passam a ditar os veredictos da crítica de arte. Essa nova prática acarreta desdobramentos como o estudo da história da literatura, por exemplo, e a criação de lugares para se consumir as obras de arte, como museus, cinemas, livrarias etc. Em decorrência disso, a crítica de arte passa a querer ensinar ao apreciador como ler uma obra de literatura, como apreciar uma pintura ou escultura no museu, como ouvir esta ou aquela música, valorizando mais aquilo que se diz a respeito da obra nos livros do que as considerações, inferências e aprendizagens, vivências estéticas que o apreciador faz com e pela obra, supervalorização da qual se apercebe Todorov e para a qual nos alerta em seu A Literatura em Perigo (2009), e que passa diretamente à escola e configura o ensino da disciplina literatura como se dá hoje, tanto nas universidades quanto no Ensino Médio, quando prepara os alunos para o ingresso nelas.

No século XX, com o advento das vanguardas européias, a dualidade que vinha forjando a arte desde a Antiguidade até então, se mostra mais nitidamente e de forma mais imbricada e arraigada: imitação x beleza; não basta mais ao artístico imitar mimeticamente o mundo que representa, tampouco basta-lhe agora ser belo esteticamente, degladiando-se e interpenetrando-se incessantemente esses dois atributos na busca pelo apreciador, como já bem predizia Baudelaire (2003) que, antenado além de seu tempo, nos alertava para o fato de que deveríamos, a partir de então, aprender a abrir alas à beleza da feiúra. O prestígio da ciência como caminho para a descoberta da Verdade cresce, usurpando ao artístico o lugar de produtor de 138

conhecimento válido e aceito. O objeto artístico não mais tem necessariamente a ver com o Verdadeiro, embora fale a seu apreciador de um mundo ainda plausível, como nos salienta Benjamin (1994), no conceito de mímese que examinamos no primeiro capítulo deste estudo.

Então, passamos a ter, na contemporaneidade, dois tipos distintos e separados de verdades: as verdades científicas – de adequação ou correspondência ao e com o Real – que são aceitas quase como absolutas, passando muito relutantemente por questionamentos, que ainda assim necessitam ser empiricamente comprovados e reafirmados, para ganhar a aceitação consensual e modificar a chamada ciência normal vigente, por meio deste novo paradigma historicamente construído, como nos diz o físico norte- americano Thomas Samuel Kuhn (1922-1996), em sua Estrutura das Revoluções Científicas (2000); e verdades de desvelamento – aquelas reveladas pela arte, que não têm necessariamente a ver com o Real, mas sim com o plausível. Nesse sentido o artístico, sendo uma verdade por si mesma, conduz ao desvelamento do mundo e ao mesmo tempo revela a existência dessa verdade diversa que reside igualmente em outros discursos interpretativos como o histórico e o filosófico, o que em nossos dias sabemos que nos leva a um conhecimento distinto do científico, mas nem por isso menos importante ou válido. O artístico, em última instância, dá forma, representa fidedignamente o real, não sendo nem objetivo, nem subjetivo, mas, intersubjetivo. Prova disso é a tendência que a arte dessa época adquiriu e ainda apresenta para a abstração, o além do mundo fenomênico, que pode ser verificado, por exemplo, na pintura com nomes como o pintor e teórico de arte russo Wassily Kandinsky (1866-1944), e na literatura por meio da literatura fantástica latino-americana dos já mencionados Jorge Luís Borges e Gabriel Garcia Márquez, do mexicano Carlos Fuentes, da brasileira Lygia Fagundes Telles, entre outros contemporâneos.

Também em consonância com as cogitações de Todorov acerca das raízes estéticas do desencantamento da literatura e, por conseqüência do homem e do tempo que representa, está o supracitado poeta francês Yves Bonnefoy (2009) que, ao que parece, se dá conta, embasando a leitura já vista que a tradição francesa faz desse desencantamento, da falta que o elemento 139

intersubjetivo incorporado pela religião e pela arte faz ao pensamento desta tradição e à sua forma de lidar com este desencantamento do mundo moderno que nos assola em nossas parcas referências restantes:

O que se perdeu foi a percepção da realidade do mundo e da vida como presença além das representações que nos dá o pensamento conceitual. Essa exagerada crença na realidade sobre suas imagens, essa transcendência da menor coisa sobre a idéia que nossos conceitos nos oferecem, creio decorrer do fato de que as religiões sabiamente recordavam os fatos designando-os pelos mitos.

Como nós não podemos mais crer nesses mitos, com efeito estamos sob o risco de pensar que o mundo não tem nenhum sentido, que não há mais nada a esperar. Eis a razão pela qual a desesperança caracteriza nosso tempo, a exemplo do pessimismo absoluto de Samuel Beckett. O mesmo sentimento pesa sobre esses milhões de signos que disputam nossa atenção. Não há nada mais lamentável que a indiferença da matéria. A poesia, porém, ensina outra coisa. Colocando a pessoa do poeta em relação de respeito e de sintonia com as outras pessoas, ela nos diz que entre eles todos podem começar o debate. Será no espaço desordenado, descentralizado e destroçado do discurso presente onde se entrecruzam cegamente as ciências e os projetos comerciais, fazendo com que surja um elo cujas necessidades e valores próprios, para nós, terão sentido. Então, de novo, poderemos convencer o ser. Convencê-lo a viver em novo céu e em nova terra, então, criados pela troca humana vigorosamente expressa pela mais lúcida lição que nos dá a poesia. (BONNEFOY, 2007 p. 15.)

Assim como na antiguidade, a arte de nossos dias, consoante o diz a crítica, deve agradar (um pouco) ao apreciador, ao mesmo tempo em que deve sobretudo instruí-lo, e deve adicionalmente alertar o ―público ingênuo‖ acerca das mazelas do mundo, mesmo que se tenha podido acreditar, enquanto durou a fase ferrenha da influência estruturalista na literatura, que a linguagem não tenha necessariamente a ver com o mundo que representa. Dedicar um tempo neste estudo a esta concepção significa estabelecer com Todorov, o estruturalista e o pós-estruturalista, um diálogo que pode nos permitir investigar mais a fundo muito das diretrizes que regem o atual ensino ocidental de literatura. 140

Segundo Todorov (2009), sob essa influência estruturalista, a literatura, de acordo com a ótica predominante nos estudos de linha francesa, foi assolada por três grandes tendências: o formalismo com suas normas e regras estritas, o niilismo nietzschiano que pôs em dúvida qualquer vestígio de base sólida no qual pudéssemos ainda que dubiamente nos assentar – e a relação com a arte não escapou disso – e o solipcismo, que com seu mergulho no mais profundo de si mesmo, nos fez encarar a literatura como algo fechado em si, em copas. Essas três tendências fizeram a crítica desvincular do mundo a literatura de nosso tempo, e induziram também os apreciadores a fazê-lo, privando-os do contato com as obras propriamente ditas, para informá-los a priori acerca daquilo que dizem os críticos de cada obra, de quais são suas opiniões unânimes e desacordos, e fazê-los reter e disseminar esses juízos, como se eles próprios fossem a essência mesma da obra lida.

Numa representação muito clara dessa cisão retratada por Todorov (2009) entre o artístico e a crítica de arte, vejamos o que nos diz o poeta gaúcho Mario Quintana (1906-1994) em um pequeno texto, acerca da diferença entre as posturas do crítico e do poeta, e do lugar que o leitor ocupa nessa tripartição: ―Cada vez que o poeta cria uma borboleta, o leitor exclama: "Olha uma borboleta!". O crítico ajusta os nasóculos e, ante aquele pedaço esvoaçante da vida, murmura: - Ah! sim, um lepidóptero...‖ (QUINTANA, 2005 p. 249). Acredito que depois da exposição dos argumentos de Todorov (2009) e do exemplo poético tão pertinente que nos foi legado por Quintana, não sejam necessários maiores comentários a este respeito, não?

3.3. Da Materialidade do Texto Literário

A linguagem / na ponta da língua, / tão fácil de falar / e de entender. / A linguagem / na superfície estrelada de letras, / sabe lá o que ela quer dizer? / Professor Carlos Góis, ele é quem sabe, / e vai desmatando / o amazonas de minha ignorância. / Figuras de gramática, esquipáticas, / atropelam-me, aturdem-me, seqüestram- me. / Já esqueci a língua em que comia, / em que pedia para ir lá 141

fora, / em que levava e dava pontapé, / a língua, breve língua entrecortada / do namoro com a prima. / O português são dois; o outro, mistério. (Carlos Drummond de Andrade,1969)

E é na soma desses três elementos elencados por Todorov (2009) e pela tradição francesa à qual se filia, que desembocou o furor estruturalista do qual até hoje padece o ensino de literatura, no Brasil de onde escrevo, e na França onde se radicou Todorov, porque este ensino valorizou tão radical e exclusivamente a imanência do texto literário. Para não falar apenas, antes de combater ou tecer críticas, mostrarei minimamente agora como essas análises estruturais da literatura são feitas, para que os leitores deste estudo possam imaginar, ao menos em linhas gerais, o que passarei a discutir logo adiante acerca das obras solicitadas pela FUVEST em 2007, 2008 e 2009, e aquilo que elas exigiram aos ingressantes na Universidade de São Paulo, nas disparidades de ambas as fases deste exame, numa exemplificação de como se pode instrumentalizar a literatura. Para mostrar esse tipo de análise, muito basicamente, destacarei logo abaixo um trecho de um ensaio de cunho estruturalista que eu mesma escrevi em minha época de discência (2001) no curso de Letras. Baseada na teoria estruturalista de Roland Barthes (1987) analisei o conto O Gato Preto (2000), do já citado Edgar Allan Poe. Selecionei para isso o parágrafo introdutório de minha análise que, creio, será suficiente para um bom começo de reflexão:

Faremos a seguir uma análise estrutural do conto O Gato Preto de Edgar Allan Poe, baseada na teoria de Roland Barthes. Para orientarmos a análise dividiremos o conto em cinco elementos principais: Seqüências (S), Funções Cardinais (F), Catálises (C), Informantes (IF), Indícios (I).

Iniciaremos apresentando a hipótese levantada: O ambiente psíquico e físico interagindo no comportamento do homem. 142

Para isso disporemos dos dados (além dos elementos principais a paragrafação) arrolados no anexo que poderá ser consultado ao final deste trabalho. Tomaremos a liberdade de utilizar informações disponíveis nos dicionários, para melhor fundamentarmos a hipótese levantada.

Para que facilitemos o entendimento deste trabalho, apresentaremos as seqüências, seus dados (F, C, IF e I); e as nomearemos, o que será verificado logo a seguir: (ANDRADE, 2001)

Deixem-me os leitores esclarecer, após a leitura deste fragmento, as divisões estabelecidas por Barthes (1987). O número de seqüências em que se divide o texto a ser analisado varia de acordo com a hipótese formulada para análise, assim como o local de início e fim de cada seqüência; as funções cardinais são as ações que ocorrem no texto, decisivas para a consolidação de cada seqüência, e também variam, posto que os eventos importantes para uma hipótese de análise podem não o ser para outra em absoluto. Os indícios são os elementos que chamam repentinamente a atenção do leitor para mudanças que estão prestes a ocorrer no equilíbrio até então apresentado pelo texto, de que nos fala o acadêmico russo Vladimir Propp (1895-1970) em seu A Morfologia do Conto Maravilhoso (2001); e os informantes são as circunstâncias indicadas, pelos advérbios por exemplo, já que funcionam como modificadoras daquilo que está sendo apresentado. Cada seqüência escolhida, ou conjunto delas, influencia na conformação desses quatro grupos, pois se pode descartar ou não determinado elemento, levando-se em conta sua relevância ou não para a hipótese de análise escolhida.

3.4. A Literatura como Instrumento

A borboleta mais difícil de caçar é o adjetivo. (Mario Quintana, 2005)

143

Como se vê, uma análise dessas é como que uma dissecação do texto em suas categorias gramaticais, em sua materialidade, como inicialmente preferia Todorov (2009): verbos, tempos e modos, nomes, advérbios etc; demonstra aspectos do sentido da obra literária analisada, mas torna também clara uma das mais marcantes possibilidades de instrumentalização da literatura. A influência dessa abordagem imanente no vestibular da FUVEST, considerado pelos estudantes um dos mais importantes do país e por isso arrolado para ilustrar este trabalho, será o alvo deste estudo a partir de agora, examinando-se as obras destacadas para que os alunos lessem no mencionado triênio, bem como as questões de ambas as fases da FUVEST a elas concernentes e suas implicações para o ensino de literatura e para os leitores, que lêem as obras visando a este difícil exame e suas questões. Notar-se-á que esta é uma das formas sob a qual a instrumentalização do ensino de nosso tempo se mostra no currículo escolar e, conseqüentemente, reflete-se, quando ocorre, na formação de nossos alunos.

Falarei das obras deste triênio que passou dividindo-as de acordo com os movimentos literários a que pertencem, por uma mera questão didática, típica de alguém cuja formação se deu permeada pela história da literatura; são elas: Auto da barca do inferno (1997) – peça do dramaturgo medieval português Gil Vicente; Memórias de um sargento de Milícias (1991) – romance romântico e picaresco do brasileiro Manoel Antônio de Almeida; Iracema (1997) – também romance romântico, porém indianista, do igualmente brasileiro José de Alencar; Dom Casmurro (2000) – desta vez um romance realista de Machado de Assis, que dispensa apresentações; A Cidade e As Serras (1978) – outro romance realista do igualmente conhecido escritor português Eça de Queirós; Vidas Secas (1986) – livro de contos inter- relacionados de Graciliano Ramos, da fase regionalista do Modernismo brasileiro; A Rosa do Povo (2001) – livro de poesias do modernista brasileiro Carlos Drummond de Andrade; Poemas Completos de Alberto Caeiro (2006) – heterônimo do também modernista português Fernando Pessoa – livro cujo gênero já se mostra ao leitor no próprio título; e Sagarana (1980) – livro de contos de João Guimarães Rosa, da terceira fase do Modernismo brasileiro. Abaixo, elenco, em um quadro, algumas questões elaboradas pela FUVEST, 144

relativas às obras há pouco citadas, acerca tanto da instrumentalização da literatura nos vestibulares, quanto de sua assunção como forma de arte que pode levar o leitor a pensar crítica e criativamente, assunção esta encontrada, com satisfação, nos mesmos exames. Assumo como matriz, para a seleção de ambas as categorias de questões, o vestibular da FUVEST. Posteriormente a esta seleção, passarei aos comentários analíticos a ela concernentes.

Ofereço então, agora, na série de questões da FUVEST que segue, tanto perguntas que são críticas, criativas, reflexivas, privilegiando assim o potencial do aluno como leitor e os conhecimentos textuais e contextuais de literatura dos quais ele compartilha, quanto questões cuja meta foi exatamente abordar os alunos com indisfarçável objetividade, a fim de dimensionar o que eles sabem, ou talvez aquilo que não saibam, acerca das nomenclaturas gramático-literárias e/ou dos textos críticos concernentes às obras cuja leitura é solicitada como preparação para este exame:

Questões Objetivas e Dissertativas

Para efeitos de enumeração, a fim de tornar mais didático o panorama a ser oferecido aos possíveis leitores deste trabalho, separarei as questões entre objetivas e dissertativas, numerando-as de acordo com essas duas subdivisões, como segue:

Objetiva 1 (FUVEST 2007 – 1ª fase):

73 Um tipo social que recebe destaque tanto nas Memórias de um sargento de milícias quanto em Dom Casmurro, merecendo, inclusive, em cada uma dessas obras, um capítulo cujo título o designa, é o:

a) traficante de escravos.

b) malandro.

c) capoeira.

d) agregado. 145

e) meirinho.

Dissertativa 1 (FUVEST 2007 - 2ª fase):

E chegando à barca da glória, diz ao Anjo:

Q.07

Brísida. Barqueiro, mano, meus olhos, prancha a Brísida Vaz!

Anjo. Eu não sei quem te cá traz...

Brísida. Peço-vo-lo de giolhos!

Cuidais que trago piolhos, anjo de Deus, minha rosa?

Eu sou Brísida, a preciosa, que dava as môças aos molhos.

A que criava as meninas para os cônegos da Sé...

Passai-me, por vossa fé, meu amor, minhas boninas, olhos de perlinhas finas!

(...)

Gil Vicente, Auto da barca do inferno.

(Texto fixado por S. Spina) a) No excerto, a maneira de tratar o Anjo, empregada por Brísida Vaz, relaciona-se à atividade que ela exercera em vida? Explique resumidamente. b) No excerto, o tratamento que Brísida Vaz dispensa ao Anjo é adequado à obtenção do que ela deseja -- isto é, levar o Anjo a permitir que ela embarque? Por quê?

Objetiva 2 (FUVEST 2008 – 1ª fase):

54 Entre os seguintes versos de Alberto Caeiro, aqueles que, tomados em si mesmos, 146

expressam ponto de vista frontalmente contrário à orientação dominante que se manifesta em A rosa do povo, de Carlos Drummond de Andrade, são os que estão em:

a) “Se o que escrevo tem valor, não sou eu que o tenho: / O valor está ali, nos meus versos.” b) “Eu nunca daria um passo para alterar / Aquilo a que chamam a injustiça do mundo.” c) “Como o campo é grande e o amor pequeno! / Olho, e esqueço, como o mundo enterra e as árvores se despem.” d) “Quando a erva crescer em cima da minha sepultura, / seja esse o sinal para me esquecerem de todo.” e) “Quem me dera que eu fosse o pó da estrada / E que os pés dos pobres me estivessem pisando...”

Dissertativa 2 (FUVEST 2008 – 2ª fase):

Q.10

Em seu poema chamado “Graciliano Ramos:”, João Cabral de Melo Neto coloca-se no lugar desse escritor e desenvolve quatro afirmações:

I. “Falo somente com o que falo:” (= com os meios que uso para expressar-me, com o estilo que emprego).

II. “Falo somente do que falo:” (= dos assuntos de que trato, dos aspectos que privilegio).

III. “Falo somente por quem falo:” (= em nome de quem falo, a quem dou voz em minha obra).

IV. “Falo somente para quem falo:” (= a quem me dirijo ao escrever, de que modo trato o leitor).

Imitando o procedimento de João Cabral, coloque-se no lugar de Graciliano Ramos e desenvolva cada uma dessas quatro afirmações, tendo como referência o romance Vidas secas.

(Observação: As quatro afirmações a serem desenvolvidas encontram-se reproduzidas na página de respostas) 147

I. “Falo somente com o que falo:”

II. “Falo somente do que falo:”

III. “Falo somente por quem falo:”

IV. “Falo somente para quem falo:”.

Objetiva 3 (FUVEST 2009 – 1ª fase):

Texto para as questões de 17 a 20

Vestindo água, só saído o cimo do pescoço, o burrinho Btinha de se enqueixar para o alto, a salvar também de fora o focinho. Uma peitada. Outro tacar de patas. Chu-áa! Chu-áa... — ruge o rio, como chuva deitada no chão. Nenhuma pressa! Outra remada, vagarosa. No fim de tudo, tem o pátio, com os cochos, muito milho, na Fazenda; e depois o pasto: sombra, capim e sossego... Nenhuma pressa. Aqui, por ora, este poço doido, que barulha como um fogo, e faz medo, não é novo: tudo é ruim e uma só coisa, no caminho: como os homens e os seus modos, costumeira confusão. É só fechar os olhos. Como sempre. Outra passada, na massa fria. E ir sem afã, à voga surda, amigo da água, bem com o escuro, filho do fundo, poupando forças para o fim. Nada mais, nada de graça; nem um arranco, fora de hora. Assim.

João Guimarães Rosa. O burrinho pedrês, Sagarana.

20 Como exemplos da expressividade sonora presente neste excerto, podemos citar a onomatopéia, em “Chu-áa! Chu-áa...”, e a fusão de onomatopéia com aliteração, em:

a) “vestindo água”. b) “ruge o rio”. c) “poço doido”. d) “filho do fundo”. e) “fora de hora”.

Dissertativa 3 (FUVEST 2009 – 2ª fase):

Q.08 148

Leia o trecho de A cidade e as serras, de Eça de Queirós, e responda ao que se pede.

Então, de trás da umbreira da taverna, uma grande voz bradou, cavamente, solenemente:

-- Bendito seja o Pai dos Pobres!

E um estranho velho, de longos cabelos brancos, barbas brancas, que lhe comiam a face cor de tijolo, assomou no vão da porta, apoiado a um bordão, com uma caixa a tiracolo, e cravou em Jacinto dois olhinhos de um brilho negro, que faiscavam. Era o tio João Torrado, o profeta da serra... Logo lhe estendi a mão, que ele apertou, sem despegar de Jacinto os olhos, que se dilatavam mais negros. E mandei vir outro copo, apresentei Jacinto, que corara, embaraçado.

-- Pois aqui o tem, o senhor de Tormes, que fez por aí todo esse bem à pobreza.

O velho atirou para ele bruscamente o braço, que saía, cabeludo e quase negro, de uma manga muito curta.

-- A mão!

E quando Jacinto lha deu, depois de arrancar vivamente a luva, João Torrado longamente lha reteve com um sacudir lento e pensativo, murmurando:

--Mão real, mão de dar, mão que vem de cima, mão já rara!

[...] Eu então debrucei a face para ele, mais em confidência:

-- Mas, ó tio João, ouça cá! Sempre é certo você dizer por aí, pelos sítios, que el rei D. Sebastião voltara?

Eça de Queirós. A cidade e as serras.

a)No trecho, Jacinto é chamado, pelo velho, de “Pai dos Pobres”. Essa qualificação indica que Jacinto mantinha com os pobres da serra uma relação democrática e igualitária? Justifique sua resposta.

b) Tendo em vista o contexto da obra, explique sucintamente por que o narrador, no final do trecho, se refere a “el-rei D. Sebastião”.

Quadro 1 – Seleção de questões objetivas e dissertativas FUVEST de 2007 a 2009 Fonte: site FUVEST

149

Da Análise: o que podemos dizer das transformações que o currículo vem sofrendo?

Falo aqui da literatura, área de atuação que rege esta pesquisa. Porém, as considerações analíticas que farei a partir de agora, com relação aos livros de literatura solicitados pela FUVEST no triênio a que se refere esta pesquisa desde sua introdução e já elencados, se aplicam também às outras áreas do currículo do Ensino Médio, pois o vestibular, quando aventado como prioridade por parte do sistema educacional brasileiro, não direciona apenas o ensino da literatura, mas de todas as matérias cobradas dos candidatos.

Como se pode depreender da seleção feita (que é uma amostragem das questões das provas de literatura do último triênio da FUVEST) em que foram válidos os livros anteriormente citados, na primeira fase desse vestibular, como já adiantei, são cobrados dos alunos, em questões objetivas de múltipla escolha, dados pontuais, de contexto geral e, às vezes, de pouquíssima significação diante do todo da obra, baseados naquilo que os jovens costumam chamar de ―decoreba‖, enquanto que na segunda fase as questões dissertativas têm profundo cunho interpretativo e estampada preocupação com o componente artístico que constitui a literatura e seu bom leitor. Por mais que eu tente localizar a razão desta falta de sincronia entre as duas fases da mesma prova, não sou capaz de desvinculá-la do afunilamento buscado e proporcionado pelo próprio mecanismo que rege o vestibular; primeiramente se verifica quem são os mais bem preparados e que, portanto, devem estar na universidade, e depois, cobra-se desses alunos mais bem preparados o bom preparo que sempre tiveram, como que apenas uma confirmação do mérito de sua entrada. Passarei agora a examinar um pouco mais detidamente as questões selecionadas – em igual e ímpar número entre ―boas‖ e ―ruins‖ – para que não se diga que fui tendenciosa, a fim de confirmar a suspeita que levanto.

Deixem-me os leitores começar então pela primeira fase de 2007: pergunta-se aos candidatos, na questão objetiva 1, qual é a palavra, o substantivo pelo qual são denominados dois personagens de obras distintas, devendo-se assinalar a alternativa correta. No caso, esta denominação é agregado. Mais especificamente, Leonardo – o protagonista - em se tratando 150

das Memórias de Um Sargento de Milícias (1991), e José Dias com seus infindáveis superlativos, pensando-se em Dom Casmurro (2000). Vale ressaltar que esta questão torna homogênea a figura do agregado, como se fosse possível atribuir a ambos os personagens a mesma carga de significação, visto que a carga semântica só é evidenciada na questão por seu uso socialmente massificado. É inegável que o personagem José Dias representa essa massificação, pois é um parasita ardiloso que bajula a matriarca, para continuar a beneficiar-se indefinidamente de seus favores, e, quando convém, adula outros personagens de seu círculo. Dom Casmurro o apresenta como quase que um mero ―acessório‖ da casa. Já Leonardo, adquire um dos outros sentidos dicionarizados deste mesmo vocábulo (aquele que se agrega a uma família como se fosse parte dela), e é o protagonista da obra em que se insere. Ou seja, não há possibilidade de uma comparação rasa, como a que foi feita na pergunta citada. Duas obras de movimentos literários distintos, portanto, dois universos a serem explorados, tanto individual quanto coletivamente. E os senões concernentes à questão não são apenas esses: além de lembrar-se da existência dos personagens apenas por lembrar-se, para assinalar a resposta certa, o candidato ainda precisa saber que um capítulo de cada obra recebeu a denominação genérica, igual e icônica dos respectivos personagens, alegando-se como motivo desencadeador dessa pergunta a importância social do agregado para as épocas e grupos sociais retratados. Não descarto nem desminto essa importância; mesmo o historiador francês Fustel de Coulanges (1830-1889), ao escrever seu A Cidade Antiga (2006), nos relata a importância que os agregados tinham nas antigas sociedades indo-européias, tanto para os futuros gregos e romanos que nos originariam, quanto para os árias que hoje habitam a Ásia, mais especificamente a Índia, e que continuaram tendo, de um modo ou de outro, até chegarmos às sociedades constituintes do ocidente do século XIX, universo apresentado e representado por ambas as obras.

Mas será que não haveria uma maneira mais inteligente de fazer identificar e explorar essa importância pelo leitor? Ou seja, não importa o que houve nesses capítulos; não importa o desenrolar das tramas; não importam seus impactos – distintos – para a arte literária e para os leitores; Importa 151

apenas o título dos capítulos. No mínimo, lamentável. Será que o vestibular busca de fato encontrar os reais, bons e apaixonados leitores de literatura, ou busca apenas identificar, no primeiro exame, quem foram aqueles que, ao invés dos livros, leram os resumos? Se for mesmo este o objetivo, deveria um exame com tantas responsabilidades imputadas como o vestibular prestar-se a esse desserviço?

Já na segunda fase do mesmo ano, àqueles que chegaram até lá, pergunta-se, na questão dissertativa 1, após a citação literal de um diálogo entre a alcoviteira Brísida e o anjo do Auto da Barca do Inferno (1997), se a malícia com que a alcoviteira trata o anjo traria êxito a ela e se essa malícia se relaciona ao ofício da mulher em vida, uma questão bastante interessante, visto que permite aos leitores explicitar resumidamente algo sobre o entendimento que tiveram após ler a obra e, por conseqüência, sobre o impacto que ela teve em suas vidas, sobre o conhecimento que travaram com essa sociedade medieval, sobre o real contato que tiveram ou não com a peça do dramaturgo português propriamente dita, e não com o que foi dito ou não sobre ela pela crítica.

Passando-se à primeira fase de 2008, na questão objetiva 2, o aluno se defronta com duas tarefas distintas e que têm rigorosamente pouco a ver com o ser-leitor: a primeira é tomar, isoladamente, versos de Alberto Caeiro (2006) para analisar em intertexto com a ―orientação dominante‖ na Rosa do Povo (2001) de Drummond; a segunda, é tornar-se crítico literário por alguns breves momentos e descobrir essa ―orientação dominante‖. Pergunto a mim e a todos os que lêem este trabalho: por que deve o aluno saber o que o crítico literário considera, tecnicamente, como a orientação que predomina em uma obra? E por que fazer este aluno, que se desejaria que fosse um leitor contumaz e apaixonado, tomar versos isolados de uma outra obra – como se a poesia se pudesse dissecar – para confrontá-los com essa orientação predominante que o candidato nem ao menos sabe se realmente conhece? Ao tratar do diálogo que Tzvetan Todorov (2009) faz com o formalismo russo e o estruturalismo saussuriano, agora por meio de sua análise cultural da história e das idéias, já estudamos com certo detalhamento os males provocados por esta dissecação, seja ela intentada contra a língua, seja contra a literatura. Também o francês 152

Yves Bonnefoy (2001), já evocado algumas vezes durante esta pesquisa, tem algo a nos dizer acerca desse tratamento típico da crítica literária, que é dado à literatura em geral e à poesia em particular nos bancos escolares:

Mas no segundo grau? Nesse momento exato da vida em que ainda não se teve a ocasião de encontrar a poesia é que ela vai ser apresentada, comentada por professores? Se se insiste demais nesse tipo de explicação por meio da análise de texto que é a crítica contemporânea em suas mais recentes modalidades, corre-se o risco, como eu dizia agora mesmo, de substituir a fala de plenitude que é a poesia pelo discurso do conceito e de impedir, em conseqüência disso, que o jovem descubra essa espontaneidade de uma voz, esse apelo que ela faz à sua capacidade de emoção, de sonho, de entusiasmo. Assim vão se perder de vista, aliás, esses limiares da presença do mundo que são os ritmos, as aliterações, toda a música dos versos que só se revelam quando se lê em voz alta. É como se, escutando Beethoven ou Ligeti, substituíssemos a leitura pelo ensaio de um musicólogo: e essa substituição é tão mais perigosa quanto os adolescentes, pouco precavidos e facilmente crédulos, têm uma disposição natural para deslocar a própria confiança e o desejo de amar para o objeto cujos prestígios são realçados. Eles farão do método de ensino um absoluto, o que transformará um método crítico, de início aberto e sério, numa ideologia que passará a ser defendida com fanatismo, o belo poema não mais passando de texto que só se presta a esse tipo de leitura. A necessária presença da poesia no ensino secundário não me parece, portanto, corretamente assegurada pela iniciação à pesquisa crítica. (BONNEFOY, 2001 p. 295)

Arrisco-me a dizer que, mesmo para certos professores de literatura que se regem tão somente pelas solicitações dos vestibulares ou pelos fechados ditames da crítica de arte, sem considerar a formação autônoma, crítica e criativa que a literatura pode proporcionar aos educandos e aos próprios professores, a questão ora analisada é um verdadeiro enigma e que, claro, pode ter mais de uma resposta válida, visto que a arte não é e nem se pretende exata; ao contrário, sua plurissignificação é o que ela tem de mais instigante e belo...

Por outro lado, naquele mesmo ano, pergunta-se na segunda fase, na questão dissertativa 2, acerca do entendimento do aluno a respeito de Vidas 153

Secas (1993), interrogando-se se ele sabe como o leitor é visto por Graciliano Ramos, o estilo do autor, de que assunto a obra trata etc, em comparação com caminho semelhante já tomado por João Cabral de Melo Neto (1969) e oferecido como modelo, coisas que um leitor atento pode perfeitamente responder, que lhe são acessíveis conforme se defronta com a obra; esta é outra questão bastante interessante, pois perscruta sobre diversas competências do leitor de literatura: a de comparar, a de relativizar, a de inferir etc. Deve-se apenas lembrar que a segunda fase tem dez questões dissertativas de português, tirando-se outras possíveis matérias presentes no mesmo dia, bem como a redação. Minha única preocupação neste caso seria o tempo hábil, porque é sabido que esta questão tomaria uma boa porção de tempo até ser respondida a contento em seus mínimos detalhes.

E finalmente, chegando-se ao ano de 2009 com a questão objetiva 3, da primeira fase, temos, para ilustrá-la, um exemplo clássico de onomatopéia: ―chu-áa‖. Baseando-se neste exemplo, pede-se que o aluno encontre qual das alternativas têm uma fusão de onomatopéia com aliteração. Já não bastaria pedir que se encontrasse uma figura? Precisaria ser uma figura em fusão com outra? Várias perguntas acerca desta questão podem ser levantadas. A primeira, que em parte já formulei e da qual falarei exaustivamente a partir de agora, é a falha na correlação entre o exemplo ilustrativo – que trata de uma representação sonora relativamente perfeita, como são de fato as onomatopéias, e a designação dicionarizada – ou cujo significado só pode ser encontrado em comparação com outros trechos literários - presente na resposta que se apresenta como a mais correta para esta questão – ―ruge o rio‖.

E aqui preciso fazer uma digressão um tanto quanto longa a fim de retomar a questão dos dicionários, porque o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2001), ao qual recorri ao longo de todo este trabalho, não registra que o rio ruge, bem como vários outros dicionários que consultei não registram essa nomenclatura do som emitido pelo rio; apresento a seguir uma compilação de doze (12) dicionários acerca do verbete ―rugir‖, compilação que discutirei com mais ênfase logo adiante: 154

Dicionário Popular Brasileiro (1957):

Rugir, v.int. Soltar rugidos; emitir a voz (o leão); bramir; urrar; fazer ruge-ruge; T. roçar, arrastar pelo chão com ruído; bradar, proferir num rugido (Normalmente só é usado nas terceiras pessoas); S.M. rugido. (TERSARIOL, 1957, p. 480)

Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa (1958):

Rugir, v. intr. emitir rugido ou urro (o leão); bramir; fremir: E as feras rugindo (Gonç. Dias)./ Causar estridor./ Produzir fragor semelhante a rugido: Rugindo o temporal passa pelos cedros e estronca-os (R. da Silva); a tormenta rugia ao longe (Idem) [...] (CALDAS AULETE, 1958 p. 4488)

Novíssimo Dicionário da Língua Portuguesa Ilustrado (1971):

Rugir, v.int. Soltar rugidos; emitir a voz (o leão); bramir; urrar; fazer ruge-ruge; t. roçar; arrastar pelo chão com ruído. (LUZ, 1971, p. 721)

Dicionário Escolar da Língua Portuguesa (1979): rugir, v.int. Soltar rugidos; emitir a voz do leão; bramir; urrar; produzir sons semelhantes a rugidos, sussurrar; ressoar; t. roçar; arrastar pelo chão com ruído; bradar; s.m. ruggido. (Só é usado nas terceiras pessoas). (BUENO, 1979, p.1011)

Dicionário Junior da Língua Portuguesa (1996):

Rugir – Soltar rugidos – o leão ruge. (MATTOS, 1996,p.476)

Minidicionário Luft (1998): rugir. v. int. 1. Soltar rugido (o leão). 2. Urrar, berrar. S.m. 3. Rugido - rugidor adj. e s.m. (LUFT, 1998, p. 587)

Minidicionário Compacto da Língua Portuguesa (1999):

Rugir – vi. Soltar rugidos. (ROSA, 1999, p.432)

Michaelis: minidicionário escolar da língua portuguesa (2000):

Rugir vint 1 Soltar a voz (o leão); urrar. Vtd 2 Proferir num rugido; bradar. Conjuga-se como mugir. 155

(MICHAELIS, 2000, p. 526)

Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2001):

Rugir v. (sxiii cf FichiVpm) 1 int. Soltar ou emitir rugidos; bramir, urrar, fremir (alguns felinos rugem) 2 int. produzir sons semelhantes a rugidos (ruge a ventania) 3 t.d.int. arrastar pelo chão com ruído; roçar, farfalhar, ruflar (as damas rugiam suas sedas) (saias longas que rugem) 4 int. sussurrar brandamente; rumorejar (as folhas rugem ao sabor do vento) 5 int. refletir som com estrondo; ecoar, ressoar, retumbar (som de contrabaixos que rugem) 6 t.d. proferir em tom furioso; bradar (r. blasfêmias) – s.m. 7 som estrepitoso; frêmito, bramido, rugido GRAM ger. Considerado defectivo, só se conjugando na 3ª p.s. e pl; a respeito da conj. Deste verbo, ver – ugir ETIM lat. Rugio, is, ivi, itum, ire ‘rugir, roncar, berrar, gritar’; ver 2rug-; f.hist. sxiii rogir, sxiv rugir, sxv rrogiam. HOM ruge (3ª p.s.), ruges (2ª p.s.) / ruge (s.m.) e pl. (HOUAISS e VILLAR, 2001, p. 2482)

Miniaurélio Século XXI: O minidicionário da língua portuguesa (2001): rugir v. int. 1. Soltar rugido (o leão ou outra fera); urrar. 2. Fazer rugido. 3. Fazer ruge-ruge. [Conjug: 3A [ru]gir. Norm. é unipess.] (FERREIRA, 2001, p. 654)

Dicionário UNESP do português contemporâneo (2004):

RUGIR ru-gir Vi 1. imitar a voz; urrar; bramir: A fera rugiu. 2. produzir som semelhante a rugido: O homem rugiu de dor. O motor rugiu. 3. causar estridor; ressoar: A tempestade rugia. Vt 4 . proferir em tom furioso; bradar: o homem rugia ameaças. 5. arrastar ou roçar, produzindo ruído característico; farfalhar: as damas rugiam sedas pelo salão. (BORBA, 2004, p.1411)

Minidicionário da Língua Portuguesa (2005):

Rugir N. defect [conjug: dirigir]. 1. Soltar rugidos; bramir, urrar. 2. Proferir num rugido (normalmente só se conjuga nas 3ª pessoas). (ROCHA, 2005,p.622)

Quadro 2 – Compilação – verbete rugir Fonte: dicionários constantes da bibliografia desta dissertação.

Observação da autora desta pesquisa sobre o Quadro 2: é conveniente ressaltar que, de 1982 para cá, nada mudou semanticamente no verbete, tendo este mais recente apenas ligeiras inversões e supreções sintáticas que em nada alteram as informações daquela 5ª ed. do Minidicionário da Língua Portuguesa (1982), para esta, revista e ampliada,do Miniaurélio Século XXI: 156

O minidicionário da língua portuguesa (2001), que optei por reproduzir nesta pesquisa, por ser a que mais facilmente chega às mãos dos alunos de hoje, alvo deste trabalho.

Analisando-se a compilação apresentada, pode-se verificar que, dentre dicionários distintos, de bolso e de mesa, escolares ou não, o mais próximo que chegam da acepção solicitada de ―rugir‖ pela FUVEST é contemplando ventanias e tormentas; nenhum deles explicita que o rio ruge, porém, assim se denomina seu som, o que induz ou induziria os alunos a uma determinada resposta, caso tivessem esse conhecimento que, contrariamente àquilo que se possa pressupor, não faz parte obrigatoriamente do chamado vocabulário passivo de todos os estudantes, de todo o Ensino Médio, em todas as escolas brasileiras. Porém, o que é realmente implicador nesta questão dos dicionários é a falta do registro. Como subsidiar o aluno neste caso? Deve-se contar apenas com a fala do professor na sala de aula? Ou será que se espera deixar esse conhecimento tácito por conta dos compêndios gramaticais que tanto atemorizam os estudantes, seja perto, seja longe dos professores de língua portuguesa ou literatura? De qualquer forma, se o professor e alguns dicionários dizem, com exemplos semanticamente assemelhados, que o rio ruge, e o aluno se lembra disso examinando a questão que deve responder no vestibular, para que discutir?

Quanto à comparação do trecho fornecido na questão com outros trechos literários, como faz Caldas Aulete (1958) em seu verbete, como esperar que o aluno seja capaz de fazê-la se a própria questão, objetiva, restrita e fechada, à qual, ao menos é o que indica que consideram aqueles que preparam esse tipo de questionamento, parece não fazer falta a reflexão crítica e criativa, pressupõe que o candidato não seja um bom leitor de literatura? Esta questão objetiva cumpre brilhantemente o papel que é o da grande maioria das questões objetivas: obter a resposta que se espera, sem necessidade do auxílio da reflexão.

O problema é que um aluno que faça uma leitura mais aprofundada do livro, que tenha mais traquejo com a leitura da literatura, como tanto se desejaria que fosse com a maioria deles, pode subjetivar a questão, encontrando a figura de linguagem na alternativa D, por exemplo, - ―filho do 157

fundo‖ - e responder erroneamente a questão por ter refletido acerca do que se pedia, já que o apelo a evidências já dicionarizadas e disseminadas de forma cristalizada, inclusive pela literatura, não deixa margem à subjetividade que, mesmo em se tratando de uma questão objetiva, pode brotar em determinados alunos que, bons leitores, criam, refletem.

Lembremos que os futuros profissionais brilhantes que sabemos que sairão da Universidade de São Paulo daqui a alguns anos, que chegaram à segunda fase de 2009 e demonstraram seus excelentes desempenhos, recebendo como recompensa o acesso à USP, tiveram, antes, de responder a esta pergunta, que é apenas de descarte escancarado, para chegar à universidade. Questão de descarte puro sim, porque se primou por retirar todas as alternativas oferecidas do texto de Guimarães Rosa (1980), para dar a impressão de valorizá-lo sobremaneira, mas o efeito causado é justamente o contrário, pois torna absurdas e de fácil e quase imediato descarte três das cinco alternativas oferecidas, induzindo-se o candidato a ficar indeciso entre duas das opções e, depois de examiná-las, ter chances de acertar ou errar, meio a meio, dando a resposta que se quer dele, ou descartando-a também como já feito antes, e escolhendo a alternativa cujo papel é exatamente o de representar o engodo para os menos sortudos ou desavisados. Assim como a questão objetiva 1, esta aqui também me parece que visa a descobrir o que os alunos não sabem, ou, quem são os alunos que sabem fazer um bom descarte; a leitura do conto, do livro em que ele se insere, o ver do artista, seu estilo, como naquele caso, aqui também, parece que pouco ou nada importa.

Continuando a falar sobre a falha na correlação entre a onomatopéia relativamente perfeita do exemplo e as ocorrências imperfeitas da onomatopéia nas alternativas, devo lembrar que, nelas, não se trata de uma representação o mais fiel possível do som, mas sim de uma designação dada pelos gramáticos, escritores e lexicógrafos, como acabamos de ver; e mesmo assim, se forçarmos a marcação do ―r‖ em uma possível leitura em voz alta, o que, convenhamos, ninguém faz. Ninguém busca forçar o rio a rugir quando lê. Ele ruge naturalmente. Essa marcação do fonema é opcional e depende muito dos propósitos que o leitor tem quando a faz. Por exemplo, se ele estiver dramatizando o que lê, para si mesmo ou para outros, se estiver lendo em voz 158

alta determinado trecho para compreendê-lo melhor, como já vimos que ocorre costumeiramente com trechos do supracitado escritor português José Saramago, ou se estiver lendo para alguém, o que também oferece riscos, afinal o ledor deve dar o menos possível sua interpretação àquilo que lê, para não induzir aquele que se torna leitor por suas palavras a aceitar imagens já acabadas; esta não é a função da leitura que, como já vimos com Pennac (1993), conquista os leitores aos poucos, detalhe por detalhe. E ainda assim, os casos que elenquei acima são necessidades particulares de cada leitor, e não requisitos inerentes à obra lida.

Isso tudo para não se falar no absurdo de se tomar uma passagem como estas, depois de ter-se selecionado todo um trecho de um conto de um mestre da literatura como Guimarães Rosa (1980), apenas para perguntar-se acerca de uma figura de linguagem, ou da fusão de duas figuras em uma, um detalhe técnico, concernente apenas àqueles que um dia serão professores de línguas ou literaturas e assuntos relacionados. Um advogado, um arquiteto, um médico, um químico, um psicólogo, um filósofo, podem ser e muitas vezes são excelentes leitores de literatura, têm uma ótima relação com os livros, os estilos, os autores, mas para que precisam saber os nomes das figuras de linguagem que o autor usou para construir e/ou constituir o conto, se, como sabemos, há muitos escritores que não se preocupam conscientemente com isso quando representam por meio das palavras? Usar a literatura como pretexto para tratar-se de questões gramaticais também é uma prática que em nada ajuda na formação do leitor, seja ele de literatura ou não. É certo que não se deve separar a literatura da gramática, o que causa uma idéia de fragmentação que na verdade é falsa, mas a utilização de um trecho grande de um conto de Guimarães Rosa (1980), que os alunos leram com afinco para a prova, apenas para tratar-se de uma questão de figuras de linguagem, que são detalhes técnicos cobrados, e aí sim com razão, dos profissionais da área das Letras, é um despropósito; disseca o livro, tornando-o numa fonte inesgotável de exemplos gramaticais, como se ele não fosse muito mais do que isso, como se não fosse, na verdade, arte da melhor qualidade, que causa reflexão e impactos nas vidas dos apreciadores, quando se defrontam e familiarizam com ela. 159

E a última questão que escolhi para analisar, a dissertativa 3, da segunda fase de 2009, também trata com respeito o leitor, assim como as dissertativas anteriormente citadas, interrogando-o, após a reprodução de um trecho de A Cidade E As Serras (1978), qual o tipo de relação que o protagonista, Jacinto, mantinha com os camponeses, o que o leitor só poderá responder se tiver feito uma boa leitura do livro em sua integralidade, e acerca da relação deste personagem com Dom Sebastião, rei de Portugal pertencente à dinastia de Avis, - desaparecido na batalha de Alcácer-Quibir, cujo mito originou a crença messiânica portuguesa no sebastianismo e está entranhado no imaginário do povo português e preservado, por exemplo, no supracitado Mensagem (1995) de Fernando Pessoa, e cuja exploração demanda do leitor uma boa contextualização histórica que acompanhe a leitura do livro e uma boa dose de reflexão para entrelaçar o personagem de Eça de Queirós (1978) e o rei agora mitificado de Portugal, que até hoje, quase quinhentos anos depois de seu desaparecimento, é, de certa forma, esperado, literal ou metaforicamente, com verdadeira fé por parte de seu povo.

Como veremos logo adiante, ao serem discutidas as Orientações Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (2006) no que concerne à literatura, tem-se discutido bastante o papel da história da literatura no contexto escolar desta disciplina, como inclusive já fez Todorov (2009). Acredito que o estudo da literatura não se restringe somente à sua história, como aparentemente se pensa; a despeito de minha formação escolar – que se deu em meio aos estudos da história da literatura desde o Ensino Médio, porque a preocupação com a história literária era grande nessa época, inclusive por causa das demandas dos exames vestibulares, conforme já salientei neste capítulo, o contato com a obra propriamente dita deve vir em primeiro lugar, mas se houvesse, depois disso, tempo para um pouco de história da literatura nas aulas desta disciplina, ou talvez se ela pudesse mesmo ser pincelada junto à disciplina de história mesma ou à de filosofia no contexto escolar, como acontece por exemplo com a pintura, não haveria mal algum e se poderia trabalhar perfeitamente bem com uma questão como essas.

Registre-se que, apesar de ser perfeitamente compreensível o incômodo atual com a grande presença da história no ensino de literatura, não creio que 160

seja o caso de estirpar o contexto histórico desta disciplina do currículo escolar, pois assim ela faria falta não apenas à formação do leitor, como à sua formação para a própria cidadania, que é proposta pelas Orientações Curriculares Nacionais para O Ensino Médio (2006). Sendo o homem representante de seu tempo, não é execrando-se a história que veremos formar-se melhores cidadãos do que aqueles que atualmente temos. Já que os exames vestibulares não abrem mão da história da literatura, como é possível observar nesta última questão analisada e naquela que toca ao Auto da Barca do Inferno (1997), e já que nós, como frutos de nosso tempo, tampouco podemos abrir mão dela, de nada adianta as Orientações Curriculares Nacionais para O Ensino Médio (2006), que tocam ao ensino da literatura, dizerem que o professor não precisa cobrir toda a história literária, postura que antecipo aqui e que será mais bem discutida dentro em pouco. O problema é a ênfase que essa história recebe por parte da crítica e que atinge o ensino de literatura, em detrimento do contato dos educandos com a obra mesma. Parece-me que uma simples inversão de papéis resolveria condignamente o problema.

Cabe ainda salientar que os exames de seleção para o Ensino Superior, representados atualmente pelo vestibular como o conhecemos hoje, estão iniciando um processo de mudança que, ao que parece, procura enfatizar mais a leitura e interpretação das obras literárias do que os contextos críticos de análise dessas obras. Então, os próprios exames que propõem esse impacto da história e dos juízos da crítica na formação do leitor estão se encarregando de efetuar a inversão de papéis que resolveria este impasse. Por tratar-se de mudanças muitíssimo recentes, ainda em vacilante implantação e execução, este processo não poderá ser profundamente discutido neste estudo, mas é indispensável sinalizar sua existência, que pode vir a possibilitar novos rumos à discussão que ora apresento de forma sintetizada no quadro que segue, numa tabela organizada por mim após um exame atento das questões selecionadas, que dá conta de ilustrar bem as condutas ―positivas‖ e ―negativas‖ assumidas pelos exames vestibulares, especificamente o da FUVEST no caso desta pesquisa, no que concerne a avaliar o trato que os alunos têm ou não com a 161

literatura como disciplina escolar e/ou com as obras literárias propriamente ditas:

CRITÉRIOS DE VERIFICAÇÃO QUESTÃO QUESTÃO

OBJETIVA DISSERTATIVA

A. Atendimento de questões pontuais desprendidas do significado 1,2,3 3 artístico e amplo da obra literária. B. Reflexão, por parte do leitor, acerca do papel da obra literária em seu contexto próprio de produção, na sociedade que representa e nos horizontes históricos, sociais e culturais em que se inserem seus 1,2,3 demais leitores até chegar a nós, os leitores contemporâneos. C. Exigência de que o aluno-leitor cumpra, ao ter contato com a obra 1,2 literária, aquelas que são as tarefas do crítico literário. D. Investigação acerca de competências inerentes ao aluno-leitor, como 2 1,2,3 a de relativizar, a de comparar, a de inferir etc. E. Utilização da literatura como pretexto para tratar de questões técnicas relacionadas à gramática e \ ou especificamente ao profissional da área das Letras. 3

F. Exigência, em uma questão objetiva, de que o aluno, leitor de literatura ou não, tenha dissernimento suficiente para comparar trechos de literatura aventados com outros trechos literários que o 2,3 questionamento não supõe que ele conheça. G. Cobrança, do aluno, acerca de informações dicionarizadas que não são facilmente encontráveis nos dicionários mais comuns de que alunos e professores se utilizam, como pretexto para perguntar-lhe 3 acerca de associações com pontuações gramaticais, conceituais, que quase nada têm a ver com o fato de o aluno ser ou não um bom leitor de literatura. H. Redução, da obra literária e de seu criador, ao mero preenchimento de conceitos e exemplos gramaticais e/ou estilísticos. 3

I. Falha na correlação entre o exemplo fornecido no corpo da questão e as alternativas disponíveis oferecidas para respondê-la 3

J. Exigência, por parte de um aluno de quem não se espera uma leitura subjetiva, o uso de estratégias de leitura da literatura que são comuns ao aluno-leitor, acostumado a subjetivar as obras que lê. 2,3

K. Investigação da intertextualidade possível entre a obra lida e o contexto histórico de que trata ou com outro. 1,3

L. Exploração do mito e do imaginário de cada leitor ou de determinado povo por meio das representações contidas na literatura. 2,3 1,2

M. Questionamento criativo e crítico acerca das relações amplas existentes entre os personagens de uma mesma obra e o contexto em 162

que se inserem, ou da intertextualidade entre personagens e 3 contextos de diferentes obras. Quadro 3 – Critérios de verificação das questões objetivas e dissertativas da FUVEST de 2007 a 2009. Fonte: produção da pesquisadora

3.5. A Literatura e As Orientações Curriculares Nacionais para O Ensino Médio

O ensino médio, visto como transição para o superior ou término da etapa estudantil para aqueles que não podem ou não querem cursar a faculdade, constituiu (e ainda constitui) um grande problema para a elaboração de um currículo que pudesse beneficiar ambas as modalidades, já que sempre emerge no horizonte a questão do trabalho. As Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional editadas refletem bem o debate ou a ausência dele, como ocorreu com a Lei nº 5.692/71, de péssima lembrança. (Orientações Curriculares Nacionais para O Ensino Médio, 2006)

Por outro lado, ao serem examinadas as Orientações Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (2006) para a disciplina de literatura, é possível perceber que é distinto o tratamento dado a esta disciplina em nível nacional, no que se refere ao ensino público; ainda não me cabe aqui dizer se esse tratamento é melhor ou pior do que o anterior, cujo exemplo por excelência foi aventado nas condutas adotadas pelos exames vestibulares; classifico-o, neste ínterim, como apenas distinto.

Esclarecem as referidas orientações que visam a uma educação básica pública de qualidade, mas que não se deve denominar este documento como 163

um manual ou cartilha. As disciplinas curriculares não são abordadas isoladamente por este documento, pois, para seus organizadores, ―O currículo é a expressão dinâmica do conceito que a escola e o sistema de ensino têm sobre o desenvolvimento dos seus alunos e que se propõe a realizar com e para eles.‖; são, assim, as disciplinas escolares, divididas entre três grandes áreas do conhecimento, buscando sua integração e articulação, bem como a reconstrução sócio-histórico-cultural deste conhecimento:

- Linguagens, códigos e suas tecnologias: compreende arte, educação física, língua estrangeira, espanhol, língua portuguesa e literatura;

- Ciências da natureza, matemática e suas tecnologias: abarca matemática, física, química e biologia;

- Ciências humanas e suas tecnologias: é dedicada à sociologia, filosofia, história e geografia;

A apresentação do documento nos chama a atenção para aqueles que, segundo os organizadores da proposta, amparados pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (nº. 9394/96), devem ser os objetivos do Ensino Médio:

o aprimoramento do educando como ser humano, sua formação ética, desenvolvimento de sua autonomia intelectual e de seu pensamento crítico, sua preparação para o mundo do trabalho e o desenvolvimento de competências para continuar seu aprendizado. (Art. 35)

Falando-se especificamente dos conhecimentos de literatura, a linguagem é vista, nesta concepção, como um espaço literário de comunicação, e a literatura como o menos pragmático dos modos discursivos, aquele que mais permite, portanto, o chamado exercício da liberdade. No entanto, examina-se o aspecto de que a literatura tem cada vez mais dificuldade de incidir naquele que o documento chama de mundo hipermoderno, discussão que já desenvolvi neste trabalho sob outras distintas denominações, amparada por Sartori (1998) e Todorov (2009). Os elementos primordiais desta pesquisa, e que também foram elencados pelo documento (2006) – educação da sensibilidade, formação crítica e humanização por meio 164

da literatura, já foram igualmente aqui abordados, examinando-se as inferências de Pound (1977), Freire (1997) e Candido (1995) entre outros.

Considerando-se essas premissas básicas, o documento sugere que o professor de literatura, como já antecipado no item anterior, não precisa preocupar-se em cobrir todas as épocas, estilos e escolas literárias. Esta sugestão é mesmo posta em prática no material de literatura que é destinado às escolas públicas, no qual, por exemplo, o movimento árcade, situado historicamente por volta do século XVIII, não tem abordagem histórica consistente, prática contrária àquelas que vimos anteriormente que são adotadas pelos organizadores dos exames vestibulares, especialmente o da FUVEST, adotado como ponto de referência neste estudo. Aliás, é importante notar que as Orientações Curriculares Nacionais para O Ensino Médio (2006) fixam os exames vestibulares como um ponto ao qual os professores não se devem submeter e que não tem necessidade de ser debatido ao se falar em Ensino Médio, já que a preocupação da educação pública brasileira, segundo o referido documento (2006), é com a formação para a cidadania, o que, não necessariamente, passa pelo ingresso no Ensino Superior, como pode ser observado voltando-se aos objetivos do Ensino Médio, já elencados um pouco mais acima e também na epígrafe deste item. Sugere-se que o ingresso no mundo do trabalho não tem necessidade de passar especificamente pela formação superior. Não me cabe aqui levantar os motivos que levam a esta sugestão, que são de outra e complexa ordem. Limito-me apenas a reportar o que é afirmado pelas Orientações Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (2006).

O professor deve, então, preocupar-se com o letramento literário de seus alunos, por meio do contato com a obra em si, e não somente com a história da literatura ou os textos críticos referentes à obra a ser estudada, enunciação com a qual concordo indubitavelmente, já que a literatura não deve ser literatura / arte apenas porque o professor diz que assim é, ou porque a crítica de arte o afirma ou deixa de afirmar; Lembremos que Calvino (1993) já nos falou anteriormente acerca da importância das inferências pessoais do leitor na escolha dos clássicos das representações humanas. Esta escolha só pode se dar, no entanto, se a formação do apreciador for propiciada 165

primordialmente no contato com as obras de arte. O aluno precisa ser subsidiado de forma a poder, por si mesmo, concordar ou discordar desse conceito do artístico advindo do professor e da crítica, e isso só pode ser conseguido por meio do letramento literário, definido pela pesquisadora mineira contemporânea Graça Paulino (2001) da seguinte maneira:

Usamos hoje a expressão letramento literário para designar parte do letramento como um todo, fato social caracterizado por Magda Soares como inserção do sujeito no universo da escrita, através de práticas de recepção/produção dos diversos tipos de textos escritos que circulam em sociedades letradas como a nossa. Sendo um desses tipos de textos o literário, relacionado ao trabalho estético da língua, à proposta de pacto ficcional e à recepção não-pragmática, um cidadão literariamente letrado seria aquele que cultivasse e assumisse como parte de sua vida a leitura desses textos, preservando seu caráter estético, aceitando o pacto proposto e resgatando objetivos culturais em sentido mais amplo, e não objetivos funcionais ou imediatos para seu ato de ler. (PAULINO, 2001, p. 117)

Registre-se que, para este estudo acerca da importância da literatura na formação crítica e criativa dos educandos do Ensino Médio, em consonância com as considerações ora apresentadas por Paulino (2001), letramento literário é o envolver-se com as práticas sociais da leitura e da escrita do texto literário, o que resguardaria o leitor a ser formado, suas leituras de mundo e as intertextualidades a que será conduzido, as apropriações que faz ou não do texto que lê.

Esta preocupação com o letramento literário, a leitura crítica e criativa do mundo, neste caso por meio da literatura, se justifica, na medida em que a fruição estética, para os organizadores das Orientações Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (2006), bem como para esta pesquisadora, é uma forma aceita e válida de produção de conhecimento, como já visto nos itens que dizem respeito às inferências sobre Todorov (2009). No entanto, em detrimento das boas intenções do documento ora examinado, há um ponto, localizado à página 57 deste texto, do qual devo falar com mais vagar. A certa altura, diz-se a respeito da fruição estética das obras de arte, neste caso, de literatura, por parte do ―receptor‖. Ocorre que este esquema estruturalista, por meio do qual 166

se pode também conceber a linguagem, que pode ser visto com detalhes consultando-se Chalhub (2000) – emissor/canal/mensagem/receptor – não é adequado à concepção interacionista de linguagem que rege as Orientações Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (2006), estejamos ou não falando da linguagem literária. Para esta concepção, a linguagem é vista de forma dialógica, portanto, quem frui esteticamente uma obra na concepção interacionista, que por sinal está também presente neste estudo, é o interlocutor desta obra, e jamais seu ―receptor‖. Consultando-se os interlocutores que referenciaram a construção desta proposta, percebe-se que seu cunho é ou pretende ser interacionista, verificando-se mesmo a recorrência aos pressupostos estabelecidos pelo teórico russo Mikhail Bakhtin (1895-1975), o maior dos representantes desta corrente de pensamento. Sendo assim, como falar-se em receptor quando se busca um norte no compartilhamento, na responsividade e no diálogo? A função destas observações não está em condenar os adeptos da concepção estruturalista de linguagem, que vê aquele que frui a obra como receptor, apesar do cunho deste estudo ser marcadamente interacionista; sabe-se que cada teoria do conhecimento dá conta dos pontos que se dispõe a abarcar e tem suas próprias verdades teóricas, sempre relativas, como já visto no início deste capítulo. Contudo, mesclar conceitos de teorias distintas não é admissível, principalmente em se falando de uma proposta que vigora em âmbito nacional e objetiva ajudar a subsidiar a educação pública brasileira. A condenação aqui contida não se refere à concepção estruturalista em si mesma; já censurei, por minha formação interacionista, a utilização deste método como fim em si, em outra etapa anterior deste trabalho. Refiro-me agora ao documento que está sendo analisado, que mistura indistintamente pressupostos de diferentes aportes teóricos, como se sinônimos fossem. Ou bem a concepção desta proposta é estruturalista, ou bem centra-se no sócio-interacionismo. O meio termo, neste caso, é que não é possível.

Mas, voltando-se ao proposto nas Orientações Curriculares Nacionais para O Ensino Médio (2006) quanto à literatura, o documento reporta que, no Ensino Fundamental, há o predomínio da literatura infanto-juvenil – propensa àquilo que Pennac (1993) denominou bovarismo, ou seja, a satisfação das 167

sensações imediatas do leitor -, não havendo grande contato deste leitor com os textos canônicos, e destaca a raridade das publicações críticas para jovens. Também quanto a este ponto, esta pesquisadora discorda da proposta apresentada; se já foi examinado e assentado que os textos críticos não devem ser oferecidos aos leitores, de qualquer idade, em detrimento das obras propriamente ditas, repudio ainda mais esta atitude no que se refere ao Ensino Fundamental, no qual começam a se formar os leitores. Também Todorov (2009) já enunciou neste trabalho os três grandes males de que a literatura passou a padecer quando o contato com as obras foi relegado à leitura dos textos críticos. Esses textos, em última e definitiva análise, se destinam aos professores das áreas sobre as quais discorrem; nunca aos estudantes. Para eles, existem as obras propriamente ditas. Com elas devem se dar os seus encontros e/ou desencontros, que podem confundir-se e inclusive passar de um desses estágios ao outro. É certo que a escolha dos textos a serem lidos, no Ensino Fundamental e no Médio, passa ou passaria pelo crivo de bibliotecários e professores, mas não considero isto anormal, visto que se espera de leitores já formados, que ajudem na formação dos leitores vindouros; O repertório canônico é ―difícil‖? Imagina-se que sim, embora eu não concorde com esta assertiva, pois penso que quem deve experimentar e decidir o grau de dificuldade ou facilidade daquilo que experimenta são os próprios alunos, porque as decisões que tomam a este respeito são, com freqüência, diferentes daquelas que os professores tomam. Porém, ainda que assim seja, Ítalo Calvino (1993) também já nos falou, neste trabalho, acerca da necessidade de lerem-se os clássicos. E, para esta pesquisadora, quanto mais cedo esta leitura puder ser iniciada, claro que com todos os cuidados devidos, melhor. Saliente- se que ter cuidado significa apenas e tão somente o que literalmente é dito: ter cuidado. Ter cuidado não significa decidir por, escolher por, poupar para não assustar. Ainda sobre o oferecimento apenas de textos ―divertidos‖ ou ―leves‖, em detrimento dos clássicos da literatura, o já citado poeta francês Yves Bonnefoy (2001) alerta, endossado por esta pesquisadora:

E eis por que também me parece inteiramente prejudicial o fato de dar a ler às crianças textos divertidos, supostamente divertidos, retirados por exemplo de poetas como um Prévert, reduzido a alguns aspectos marginais, ou como um Robert 168

Desnos, mal compreendido, com o pretexto de que esses jovens leitores não passam de crianças e que é preciso não assustá-los. Muito ao contrário, tudo o que esperam esses jovens seres é que grandes signos plenos de mistério e de gravidade erijam-se diante deles, pois eles sabem muito bem que logo será preciso enfrentar o mistério, a gravidade, a vida. (BONNEFOY, 2001 p. 296)

Parece-me que este panorama do Ensino Fundamental, descrito pelas Orientações Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (2006), é visto com bons olhos pelos organizadores desta proposta, pois afirmam que o Ensino Médio, no que toca à literatura a ser compartilhada com os alunos, se perde no pragmatismo. Esta postura é natural neste documento, já que o exame de seleção do Ensino Superior não é visto como uma prioridade pelos mentores da educação pública nacional. Se a visão for mesmo essa, é natural chamar a seleção para o Ensino Superior de pragmatismo e os critérios de escolha adotados pelos professores de literatura de preconceitos didáticos. Não estou com isso querendo dizer que a formação para a cidadania não seja importante; pelo contrário, ela deve, certamente, vir em primeiro lugar. Também não estou afirmando que a preocupação com os exames vestibulares deva ser o ponto mais importante a se destacar no que concerne à formação do leitor de literatura ou à sua interação com o currículo como um todo. Porém, quem deve decidir se deseja ou não continuar os estudos no Ensino Superior ou ingressar para o mundo do trabalho após terminar o Ensino Médio são os estudantes, e não a onipotência do meio social em que se inserem. A obrigação do país é oportunizar aos seus alunos o acesso àquilo que desejarem seguir – quer se trate da educação pública, quer da privada -, e a dos professores, zelar para que os alunos tenham as condições necessárias para ingressar no caminho que realmente desejam perfazer. Se este documento aponta, reportando-se a Candido (1995), uma das grandes e respeitadas referências que fazem interlocução com este estudo, que muitos brasileiros têm sido privados de vários direitos, inclusive o de pensar por si mesmos – como pode ser visto à página 52 do referido texto -, por que então decide o Estado mesmo o que devem ou não seguir aqueles que são formados dentro da educação que proporciona? Esta postura não seria ao menos um tanto contraditória? Assim me parece. 169

Seguindo esse raciocínio, o documento aponta o lugar do livro didático somente como apoio para a escolha do material a ser compartilhado com os alunos, delegando esta função diretamente ao professor, com o que concordo; ninguém melhor do que o professor para conhecer as potencialidades de seus alunos e, com eles, decidir como deve se dar sua formação. Parece-me que este ponto visa a garantir outra sugestão contemplada na proposta, aquela de se encontrar tempo para leituras imprevistas e, por que não, anárquicas. Neste espaço entraria inclusive a literatura estrangeira, que raramente vai além da literatura lusitana no Ensino Médio. Contudo, parece-me que, se o professor é realmente apto para perfazer com os alunos o caminho de sua formação, as leituras não previstas, anárquicas, de autores de outras nacionalidades etc, estarão incluídas no fazer do aluno. Ou não estarão? Entendo esta preocupação do documento, mas penso que ela se revele graças a fatores de outra ordem, que, ainda que percebidos pelos organizadores da referida proposta, não cabem ser discutidos nela e tampouco neste trabalho, mas que certamente serão percebidos pelos leitores atentos deste estudo.

Para finalizar, cabe esclarecer que uma tentativa vem sendo feita em âmbito nacional tanto para sanar ou diminuir o abismo existente entre a educação privada e a educação pública brasileiras, quanto para solucionar as lacunas propiciadas pelos exames vestibulares no tratamento da literatura como disciplina escolar e, por extensão, do restante do currículo, porque, guardadas as especificidades de cada disciplina protocolar da formação escolar do indivíduo, todas elas são tratadas da mesma maneira pelo referido exame. Se não for possível, com esta tentativa, solucionar estes problemas, tenta-se ao menos iniciar este processo, sem que se saiba, no entanto, se todas as metas que estão sendo esperadas dele poderão ser alcançadas.

E esta referida tentativa está no ENEN – Exame Nacional do Ensino Médio, que já começou a ser utilizado por universidades federais brasileiras como possibilidade de acesso dos alunos que o prestam ao Ensino Superior. Dividido por áreas, as mesmas do currículo da educação pública brasileira, visa a uma abordagem interdisciplinar do conhecimento e de sua produção, com a intenção de que os alunos mais reflitam no conhecimento do que decorem conceitos e fórmulas estabelecidas. Pretende-se que, futuramente, as notas 170

obtidas com este exame, a ser realizado pelos alunos ao final do Ensino Médio, substituam as provas do vestibular no acesso ao ensino superior. Há mesmo universidades que já iniciaram essa substituição, e se vê nisso uma forma promissora de garantir um ensino de qualidade e uma abordagem menos condicionante desse conhecimento produzido no ambiente escolar do que aquela que muitas vezes se apresenta. Esta substituição, como dito, garantiria ainda que fosse unificado o tratamento dado à educação nacional. As intenções são boas e os esforços promissores. Aguardemos então para ver o que o futuro de fato nos reserva.

3.6. Do Poder da Literatura: Tzvetan Todorov e Yves Bonnefoy

E nos momentos graves de sua vida, o leitor que sabe de cor terá assim à sua disposição os meios - alguns poemas - para melhor compreender a si mesmo, para não se desesperar, para estabelecer consigo mesmo, ou com outros, juras das quais esses versos serão a garantia mais natural. (Yves Bonnefoy , 2001)

Agora que já observamos as facetas do ensino de literatura no Brasil e as maneiras pelas quais ela, como disciplina escolar, pode ser instrumentalizada em nome desse ensino, e que estamos chegando ao fim das labirínticas veredas pelas quais se conduziu este estudo, é oportuno retomar o fio do diálogo que veio sendo feito desde o início deste capítulo com Tzvetan Todorov (2009), para que se possa receber definitivamente neste convívio e neste diálogo sobre o desencantamento com o mundo moderno e os perigos que corre a literatura de nosso tempo o poeta francês Yves Bonnefoy, por meio de suas tão pertinentes Observações sobre o Ensino de Poesia (2001). Estes dois estudiosos, coincidentemente situados histórico-culturalmente na 171

França de nossa contemporaneidade, nos falarão, em se tratando de estudos detidos acerca da prosa e da poesia, juntos, sobre o que realmente pode a literatura na formação dos sujeitos históricos de nosso tempo, tanto no âmbito escolar, quanto no pessoal.

Segundo Bonnefoy, neste ensaio, é o mundo oculto por trás das coisas que nos dá o acesso à poesia que, como visto, está contida na criação desde suas origens gregas clássicas. Afirma ainda que, desde que o leitor a conheça a ponto de sabê-la de cor, terá com ela uma intimidade que não será perturbada, nem pelas questões desconfiadas do crítico, nem pelas triunfantes indagações do teórico da leitura, pois muito mais do que o contido nesses questionamentos, a literatura se torna parte dos leitores quando tem valor de vida vivida, ponto de vista que compartilha com Todorov (2009).

De acordo com Bonnefoy (2001), o fato literário não necessita ser explicado, nem pela psicologia, nem pela sociologia, ou qualquer outra das ciências, a despeito das contribuições daqueles que o poeta chama de os Galileus de nosso tempo – nomeadamente Freud e Saussure; o fato literário existe pura e simplesmente, e é com essa existência do fato literário como tal que os leitores devem defrontar-se e familiarizar-se, pois a literatura, como todas as demais linguagens, é, antes de tudo, origem e causa da condição humana e, portanto, simbólica, simbolizada, simbolizável e simbolizante. Como Calvino (1993), o poeta francês também acusa e apóia a necessidade de que se leiam os textos clássicos. Ressalta que a literatura não existe para estar a serviço do mundo cotidiano e de seu imediatismo e elenca possíveis causas para que essa busca do imediato seja feita dentro da arte literária pelo homem de nosso tempo, causas que, como poderá ser notado, têm a ver e muito com as já enumeradas por Sartori (1998):

Há nos programas matérias demais para que continue existindo um lugar suficiente para a leitura das obras. Somos praticamente levados a sacrificar o estudo das línguas clássicas, na 5ª série é preciso escolher entre o grego e o latim. É verdade que apenas uma dessas duas línguas poderia bastar ao aluno para uma inesquecível experiência, mesmo que ele deva parar de estudá-la no final do segundo grau, caso siga estudos mais técnicos. Mas o próprio mundo exterior é menos favorável ao interesse pela linguagem, especialmente 172

devido à multiplicação das imagens. A imagem, mesmo a mais rudimentar, é uma boa coisa para o espírito. Uma consciência privada de imagens seria sufocada. Mas para que a consciência possa respirar, por meio de um quadro, de um desenho animado, de uma fotografia numa revista também é preciso que ela tenha tempo de projetar na imagem suas obsessões, que ela possa experimentar sua fala em relação à imagem, que possa verbalizar o que vê, por assim dizer. E em certo sentido nada mais favorável ao espírito do que uma certa raridade de imagens, pelo menos durante a infância. Quando se tem apenas uma pintura para olhar, pode-se entrar nela com toda sua capacidade de sonho, e bem depressa o sonho se ampliará, tornar-se-á mais profundo, estruturando o ser que nos vamos tornando. Ah, essa espécie de pobreza transformou-se, no final do século XX, num privilégio quase inacessível. A televisão é onipresente, e ela fica até mesmo ligada mais tempo nos meios culturalmente mais desfavorecidos - ora, a característica da televisão é de fazer com que, incessante e rapidamente, uma imagem substitua outra: a criança que olha não tem mais tempo, portanto, para imaginar, para ser. Ainda mais que, para despertar sua atenção sonolenta, a televisão recorre a efeitos de surpresa que apelam para o medo, para a violência, e mergulham a criança, literalmente, num estado de estupefação. Tanto quanto a ausência completa de imagens, sua multiplicação quebra a espontaneidade da imaginação que, entretanto, é o que assegura a vida das palavras e confere assim presença e vigor à linguagem. (BONNEFOY, 2001 p. 291)

Guardadas as diferenças existentes entre o ensino francês e o brasileiro, por exemplo observando-se a questão do estudo das línguas clássicas salientada por Bonnefoy (2001), que quase não é mais contemplada pelo ensino brasileiro nem mesmo em se falando no nível superior, vemos que, uma vez mais, a televisão e a proliferação de imagens, que apelam aos instintos infantis, os quais deixam os pequenos mais alerta, são novamente responsabilizadas, ainda que em parte, pela perda de lugar da poesia, e por conseguinte da literatura de modo geral, na vida do homem contemporâneo, e por seu destronamento pela imagem visual. E por quê? Porque não basta apenas olhar; olhar e deixar as imagens passarem; olhar e saturar os olhos com repetições ou indefinições fugidias; olhar e verdadeiramente não ver.

Com isso, Bonnefoy (2001) ressalta a capacidade que a literatura tem de nos fazer construir e constituir imagens, projetadas e experimentadas, 173

lapidadas, algo que vem se mostrando de difícil feitura para os sujeitos de nosso tempo, porque para ele, e para esta pesquisadora, as imagens tem de conservar um pouco de raridade, alguma peculiaridade, para que aquele que as constrói ou as vê possa assimilá-las em todo seu potencial de linguagem, de lugar de conhecimento e de prazer.

Em determinado ponto deste estudo, foi dito que a instrumentalização da literatura que se dá em nosso tempo seria examinada e poderia nos dizer algo sobre as transformações pelas quais vem passando o currículo escolar de modo geral, citando-se as do âmbito literário como exemplos neste trabalho. Também em Bonnefoy (2001) é possível encontrar subsídios para esta premissa, já que ele se dá conta do potencial que a literatura tem de perpassar e representar todas as demais linguagens e de perpassar e representar os distintos campos do nosso conhecimento - quer sejam a própria arte, a ciência, a filosofia, a religião, pois a literatura encontra, por seu potencial de enunciação e representação, os sentidos negligenciados ou ignorados daquilo que enuncia e / ou representa, já que, por excelência, é, em si e por si, a transgressão dos conceitos, quando efetivamente dialoga crítica e criativamente com seu apreciador.

Complementando a exposição de Bonnefoy (2001), que nos fala acerca daquilo que pode a literatura no âmbito escolar – além do individual, Todorov (2009) nos mostra uma outra dimensão, complementar também à acadêmica, é claro, a respeito daquilo que pode a literatura nas vidas humanas. Relata-nos experiências de como personalidades do nosso tempo suportaram males como a depressão e atrocidades como campos de concentração por meio da literatura, das interações com ela, do companheirismo que nos oferece quando nos julgamos sozinhos, porém temos um livro nas mãos, pois, acima de tudo, ela não fala apenas de si mesma, mas, contrariamente àquilo que muitas vezes dizem os críticos, ela, como já afirmei desde o início deste trabalho, amparada por distintos autores, dá sentido às vidas humanas, estando aí a sua maior e mais sagrada dimensão:

A literatura pode muito. Ela pode nos estender a mão quando estamos profundamente deprimidos, nos tornar ainda mais próximos dos outros seres humanos que nos cercam, nos fazer 174

compreender melhor o mundo e nos ajudar a viver. Não que ela seja, antes de tudo, uma técnica de cuidados para com a alma; porém, revelação do mundo, ela pode também, em seu percurso, nos transformar a cada um de nós a partir de dentro. (TODOROV, 2009 p. 76)

E mesmo a condição diversa da cegueira física pode ser vencida e transposta por meio da literatura. Não apenas a cegueira, mas qualquer das diferenças físicas existentes pode ser vencida por meio da literatura. Mesmo para aqueles que estejam acometidos por comprometimentos mentais menos moderados e não possam defrontar-se com a literatura escrita, como pode ser verificado em artigo constante da bibliografia deste estudo, o contato com as histórias contadas por alguém, ou o ato de contar as próprias histórias propicia sempre algum tipo de conhecimento, considerando-se as várias modalidades literárias explicitadas por Candido (1995) em epígrafe a um item do capítulo anterior. Atenho-me a falar especificamente da cegueira, por Borges (2000) e por mim, pois, das diferenças físicas, é aquela a respeito da qual tenho mais conhecimentos, tanto no âmbito da teoria quanto no da prática, mas creio ser possível transpor qualquer das diferenças físicas que podem assolar o homem por meio da literatura.

No que me concerne, posso descrever aqui, como última contribuição a este estudo, uma passagem que me fez, por meio da literatura, conhecer a beleza esplendorosamente melancólica do pôr-do-sol. Estava eu uma noite no computador, preparando aulas, quando recebo de uma amiga o seguinte e- mail, enviado em meio aos tantos e sempre rápidos fazeres cotidianos, quase telegráfico, contudo não menos afetuoso: ―Amiga querida esses são poemas gestados há pouco beijão Líris‖

Sim, Líris, este é o nome daquela a quem as musas escolheram para me dizer da beleza a um só tempo incandescente e morredoura do pôr-do-sol. Anexados a este e-mail que reproduzi a pouco, estavam alguns poemas escritos pela Líris, os tais ―poemas gestados há pouco‖ – três, se não me falha a memória. E um deles dizia justamente, por meio de luminosa e lânguida metáfora, como era o pôr-do-sol que o eu lírico admirava em êxtase na tarde daquele dia, segundo descrição constante ao fim do próprio poema, colocada junto à data desta fruissão. E o poema era o seguinte: ―A dourança bordada / 175

da ante noite / delírio do Deus amante / chama à alcova / mais uma vez / a quentura da tarde / que vai / espelhada de carmim‖. (AZEVEDO, 2008)

Não saberia explicar exatamente como se deu esta epifania do pôr-do- sol para mim por meio do poema, mas o fato é que, dois dias depois, ao rever Líris, trocamos impressões e assertivas mais concretas sobre o fenômeno físico do pôr-do-sol e descobrimos que a poesia, por meio de seu inalienável sentido metafórico, me havia dado a idéia correta e concreta de como ele aparece àqueles que o vêem e de como se dá. Porém, assim como a construção literária da imagem da neblina, que citei ao tratar da construção de imagens propiciada pela literatura, a construção literária do pôr-do-sol se reflete, tanto nos usos que dela faço em minha vida profissional, já que agora conto com esta imagem literária no repertório que posso compartilhar com os alunos e as pesquisas, e em âmbito pessoal, pois há certas imagens fundadoras que nos constituem desde sempre, e esta, a do pôr-do-sol, para todos os seres humanos, é uma delas.

Para mim, esta é uma prova irrefutável daquilo que pode a literatura: restituir o perdido, dar a conhecer o nunca encontrado, anunciar o não sabido, concretizar o abstrato e tornar abstrato o concreto. Para findar este trabalho, resta-me apenas expressar aqui a minha gratidão a todos os arautos: conhecidos e desconhecidos; famosos e anônimos; canônicos ou ainda não canônicos; longínquos ou mais acercados; reais ou ficcionais; enfim, a todos aqueles que, de alguma forma, me deram a conhecer o desconhecido que sempre tanto procuro nessa busca incessante de sentido que é a existência humana e seus imprevistos e necessários desvelamentos. Minha gratidão a todos aqueles que, ainda que este desconhecido nunca se revele da forma tradicional, me fizeram e fazem compreender que as formas distintas do conhecer são igualmente válidas e dadivosas e conduzem, de uma forma ou de outra, à representação e ao desvelamento dos nossos mais caros projetos, ações e pensamentos, e das nossas mais acalentadas aspirações e irrealizáveis ou irrealizados sonhos.

A poesia serve para nos dar consciência de que a palavra é mais significativa do que os conceitos e que a palavra, em si, pode se modificar. Vale compreender e pressentir que os 176

grandes vocábulos da língua nos permitem perceber, sobre tais conceitos (os significados que eles articulam) a coisa (do mundo natural), ou os seres – naquilo que a coisa ou os seres têm de realidade própria, infinita e não destruído pelas análises que propõe o discurso: o ―não destruído‖ manifesta-se, então, como unidade, na qual descobrimos também, nesse instante, que nós mesmos somos uma parte dele. (BONNEFOY, 2007, p. 11)

177

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar. Viajaram para o Sul. Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando.

Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza.

E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai: -- Me ajuda a olhar! (Eduardo Galeano, 2002)

Retomando-se a pergunta que norteou os rumos desta pesquisa, qual seja: como se dá a formação do leitor de literatura no Ensino Médio brasileiro em suas duas distintas vertentes – pública e privada?, temos, por um lado, a instrumentalização pela qual a literatura, como disciplina escolar, vem passando nas escolas privadas em nome dos exames vestibulares e, por outro, a tentativa da educação pública brasileira de oferecer aos estudantes uma formação para a cidadania, por meio da leitura da literatura.

Como visto ao longo de todo este trabalho – especialmente de seu primeiro capítulo, a concepção educacional que o norteia é a de que no compartilhamento, na dialogicidade entre alunos e professor e entre os próprios alunos, a formação educacional deve ser pautada pela possibilidade da autonomia, criticidade e criatividade dos educandos, visando a formar cidadãos regidos pelo pensamento independente, crítico e criativo, para que assim se mostrem no meio social em que se inserem.

Este projeto educacional só pode se dar por meio de uma linguagem que o subsidie. Para esta pesquisadora, a linguagem encarregada de subsidiá-lo é 178

a linguagem verbal. Mais especificamente, das linguagens verbais, este trabalho centrou-se na linguagem literária e suas potencialidades de produção de conhecimento e de prazer, simultaneamente, já que esses dois componentes podem propiciar a formação educacional acalentada por esta pesquisa.

Definidas estas diretrizes, este trabalho se deteve em considerações acerca da literatura como forma de arte, sob a perspectiva de distintos autores, acima de tudo acentando-a como necessidade humana fundamental – Candido (1995), pressuposto que permite a existência da concepção educacional delineada por esta pesquisadora. Também a necessidade da leitura dos clássicos destacada por Calvino (1993) é um ponto importante a ser observado neste contexto de estudo.

Em seu segundo capítulo, esta pesquisa discorreu sobre as relações existentes entre a literatura e seu leitor, destacando como sua principal inovação o espaço aberto à leitura ouvida, às relações que envolvem o processo da escuta da leitura da literatura, já que, como visto ao observarem- se as inferências de Pennac (1993), mesmo os alunos que se dizem refratários à leitura não lhe resistem ao ouvi-la, sem contar a importância que este ato tem para as crianças, para os não alfabetizados e para aqueles que porventura sejam ou estejam acometidos por uma diferença física como a cegueira, por exemplo, situação que muitas vezes só proporciona o encontro com a literatura por meio da leitura ouvida. A primazia da imagem visual em lugar das imagens construídas literariamente também foi ressaltada neste trabalho graças a Sartori (1998), pois tem papel importante na relação que os adolescentes, alvo prioritário desta pesquisa e público do Ensino Médio, têm com a literatura em nosso tempo.

E o capítulo III e último foi dedicado a iniciar o desvelamento das questões concernentes à relação literatura-escola, perpassando o processo e os efeitos da influência da abordagem estruturalista no ensino da literatura, bem como de outras abordagens que vêm sendo feitas nas últimas décadas, como por exemplo a chamada análise cultural da história e das idéias, proposta por Todorov (2009). 179

Neste ponto, esta pesquisa retornou ao seu tema – A Importância da Literatura na Formação Crítica e Criativa dos Educandos do Ensino Médio – e à sua pergunta fundadora, ao verificar que há dois tratamentos distintos no que concerne à formação do leitor de literatura em se tratando do Ensino Médio brasileiro: aquele conferido pelas escolas privadas, nitidamente preocupado em preparar o aluno para responder às solicitações dos exames vestibulares que, por sua vez, iniciam um processo de mudança o qual, por sua recentíssima e ainda indefinida conformação, não pôde ser contemplado por este estudo, e aquele conferido pelas escolas públicas, cuja preocupação é com a formação para a cidadania e o mundo do trabalho, não necessariamente passando pelo Ensino Superior

Ao analisar as Orientações Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (2006) no que toca à literatura, depois de já se ter debruçado sobre as exigências feitas pelo vestibular aos alunos das escolas privadas, e fazer a descoberta desta verdadeira cisão educacional que existe quanto à formação do leitor brasileiro de literatura, esta pesquisadora se deteve diante da intrigante questão de como seria o desempenho dos estudantes das escolas públicas brasileiras nos exames vestibulares – que são a porta de entrada para o Ensino Superior – visto que esta não seja abordada como uma preocupação prioritária dos mentores da educação pública nacional, conforme pode ser constatado ao fazer-se a leitura das referidas propostas nacionais para o Ensino Médio e a formação do leitor.

Como as questões de vestibular analisadas como parâmetro para dimensionar o tratamento dado à literatura por esses exames e, por conseguinte, pelas escolas privadas brasileiras, foram as da FUVEST, achei por bem proceder uma pesquisa sobre como é a relação da Universidade de São Paulo com os alunos egressos das escolas públicas brasileiras. Constatei que, de fato, a presença desses referidos alunos vem aumentando gradativamente na USP de 2006 para cá, como pode ser verificado na leitura das notícias e argumentações nos sites constantes da bibliografia do estudo realizado por esta pesquisadora. Porém, a Universidade de São Paulo atribui esse aumento não à formação de leitores recebida nas escolas públicas brasileiras, considerando ainda não satisfatório o número de egressos das 180

escolas públicas absorvido pela USP, mas à implantação do programa de ações afirmativas tomado pela universidade desde 2006, denominado INCLUSP. Este programa, que também causa controvérsias, inclusive dentro da própria Universidade de São Paulo – assim como causam controvérsias todos os programas de ações afirmativas adotados no Brasil -, concede bônus de até 12% na pontuação que os candidatos advindos das escolas públicas obtiveram no vestibular da USP, considerando-se determinados critérios que podem ser aferidos na antologia de notícias e afins arrolada na bibliografia deste estudo, principalmente a condição de o candidato ter cursado todo o Ensino Médio em escolas públicas.

Não me cabe, e nem tenho competência para discutir aqui se o motivo de ter aumentado o número de egressos da escola pública na USP é devido à formação dos alunos ou ao programa de assimilação de alunos de baixa renda implantado pela universidade – que se reserva o direito de não aderir ao programa de cotas existente no país, considerando todas as denominadas raças dos estudantes e o fato de serem de baixa renda e terem cursado o Ensino Médio em escolas públicas. Apenas me é possível tecer considerações a respeito do fato de as formações oferecidas pelo Ensino Médio brasileiro, em suas vertentes pública e privada, serem nitidamente distintas.

O que é certo é que, em assumindo a postura de nem sequer considerar a existência dos exames vestibulares na formação que oferecem aos alunos, as escolas públicas brasileiras estão, voluntariamente e sem cerimônias, vedando o acesso de seus estudantes ao Ensino Superior, supondo, sem consulta prévia, que os alunos lá formados dedicarão, com todo o gosto, suas existências e atividades exclusivamente ao mundo do trabalho. Porém, como vimos ao longo de toda esta pesquisa, a formação escolar recebida pelos indivíduos deve garantir, primordialmente, que eles tenham condições de pensar reflexivamente e tomar suas decisões de forma criativa, crítica e autônoma; portanto, não cabe ao sistema educacional brasileiro, em sua vertente pública, decidir se os alunos irão para o mundo do trabalho ou para as universidades. Esta é uma decisão que compete aos próprios alunos. Logo, quando esta pesquisadora detecta que o sistema público de educação brasileiro é omisso em se tratando de propiciar o acesso de seus alunos ao 181

Ensino Superior, detecta simultaneamente uma lacuna cujos propósitos de facção não me cabe aqui enumerar, mas que existem e, mascarados por trás do compromisso com a cidadania, muito têm de intenções não tão boas, menos nobres e comprometidas do que se poderia esperar.

Creio que, sim, é importante formar o leitor para a cidadania por meio da leitura da literatura, como propõem as escolas públicas brasileiras na formação constante da proposta feita a elas nas Orientações Curriculares Nacionais para O Ensino Médio (2006), assim como também é importante que os alunos sejam formados de maneira apta a obterem bons resultados nos exames vestibulares, preocupação escancarada do ensino privado brasileiro. Porém, o intrigante é o abismo existente entre ambos os sistemas de educação no Brasil. Como dito no início deste capítulo, creio não ser de competência do ensino público decidir se o aluno pode ou não prestar os exames vestibulares e ingressar no Ensino Superior. Esta, a meu ver, é uma decisão que compete aos estudantes, cabendo ao ensino público brasileiro oportunizar ao aluno os subsídios necessários para que ele siga a formação que desejar, passando ela ou não pelo Ensino Superior, como já salientei.

Tampouco compete ao ensino privado no Brasil adivinhar que todos os seus alunos desejam ingressar no Ensino Superior e preocupar-se tão somente com os exames vestibulares. Não saberia dizer como, mas seria necessário e desejável que houvesse, no país, um equilíbrio entre as duas formações oferecidas aos estudantes do Ensino Médio brasileiro, que englobasse, simultaneamente, os exames de seleção para o Ensino Superior e a formação cidadã por meio da leitura da literatura.

Parece-me que, se tudo correr como vem sendo esperado e tem sido propagado, o Exame Nacional do Ensino Médio poderá vir a oferecer uma alternativa a este abismo educacional que se nos apresenta, forçando ambos os ensinos brasileiros - público e privado - a mudarem ou acentuarem mais decisivamente suas posturas.

O que importa aqui, para finalizar este trabalho, é reafirmar minha certeza de que a literatura, como salientado por Bonnefoy (2001), Todorov (2009) e endossado indubitavelmente por esta pesquisadora, tem potencial de 182

enunciar, representar e espelhar as demais linguagens, sendo por isso uma das melhores possibilidades de boa formação de cidadãos – neste caso leitores – que podemos oferecer aos jovens de nosso tempo, oportunizando assim a possibilidade de sua formação autônoma, crítica e criativa, que refletir- se-á não apenas no ambiente escolar, mas durante todo o desenrolar das próprias vidas dos cidadãos assim formados.

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197

ANEXO

198

Memorial – saber o sabor do sentir e sentir o sabor do saber

Yara Helena de Andrade

“Um livro aberto é um cérebro que fala; fechado, um amigo que espera; esquecido, uma alma que perdoa; destruído, um coração que chora.” (RabindranathTagore)

“Sim, eu quero saber. Saber para melhor sentir. Sentir para melhor saber.” (Paul Cézanne)

“Todos os procedimentos são sagrados, quando interiormente necessários.” (Wassily Kandinsky)

“Onde o mundo interior e o exterior se tocam, aí se encontra o centro da alma” ( G. P. F. H. Novalis)

Quando eu era pequena, não me sabia diferente, nem sabia que teria de fazer um grande número de coisas de forma diferente. Mas minha avó Adalgisa, que me criou e a quem chamo de mãe, logo descobriu essas várias dessemelhanças que eu ainda não conhecia, e prontamente decidiu que seria ela a estar comigo mais de perto, fazendo tudo aquilo que fosse preciso para me ajudar a desvelar minha própria diferença, a cegueira, e a lidar com ela como parte da minha vida sim, mas nunca como um problema intransponível. Pautada por esse objetivo, professora primária, aposentou-se quando eu tinha dois anos, para me levar a uma escola especial em Campinas, a qual freqüentei até os sete anos, e para vivenciar comigo a minha vida até que eu 199

estivesse pronta para cuidar dela sozinha, a fim de que os meus pais pudessem trabalhar, terminar de estudar e cuidar do meu irmão. Lembro-me de estar em Campinas, com meus avós no carro, e de meu avô Sebastião baixando o vidro para perguntar onde ficava a Rua Barreto Leme, na qual estava a escola que me abriria as portas de um novo mundo – uma sala de recursos no Colégio Batista. Lá, com a tia Vilma, fiquei, com outros colegas cegos de delicada lembrança, por anos corroborando as teses empiristas de Locke, descobrindo as texturas, os sons, os cheiros, as temperaturas, o equilíbrio e as potencialidades do meu próprio corpo. Foram muitos e muitos exercícios que teriam por finalidade estimular meus quatro sentidos restantes de modo a compensar a ausência da visão. Lá também fui alfabetizada em Braille e, aos seis anos, estava pronta para começar paralelamente o pré na escola Tio Patinhas, uma escola ―normal‖, em Limeira, a minha cidade. Minha avó sempre achou, driblando a ausência de leis concernentes à inclusão dos ―diferentes‖ na época e as recusas recorrentes e diplomaticamente ―bem- intencionadas‖ dos estabelecimentos escolares ditos ―normais‖, que eu deveria transitar simultaneamente pelos dois mundos: o dos videntes e o dos invidentes, por isso, por um bom tempo, tive essa dupla jornada de estudos, mas em nenhum momento me arrependi. Graças a Deus essa dualidade me constitui.

Mais ou menos por essa época fui descobrindo a minha afinidade com os estudos, a escola e as leituras. Meu tio Arnaldo costumava reunir os dois filhos dele, meu irmão, uma outra prima e eu no ―play ground‖ da chácara para recordarmos as famílias silábicas, e começava a cantilena de que me recordo com saudades: ―bê com á, ba‖, respondíamos ―efe com á, fá‖, e assim por diante, com todas as vogais e muitas consoantes, formando muitas palavras. Eu acertava quase todas e pedia para continuar.

Até que veio o dia em que finalmente descobri por que era diferente das outras crianças e onde essa pequena diferença residia. Brincando com os amigos no parquinho do pré, no intervalo, recordo-me de ouvi-los comentar sobre a beleza de uma grande folha verde que haviam encontrado caída na areia: ―olha, nossa, que bonita! Que grande!Que verde legal!‖ Aí me inquietei: 200

bonita tudo bem, grande, tudo bem, mas o que seria o tal do ―verde legal‖? Toquei a folha com toda a atenção possível, cheirei

mas nada descobri, claro. Perguntei às crianças que me responderam que ―verde era verde e pronto, oras!‖ A professora se desculpou por não ter uma resposta a contento a essa mesma pergunta que lhe fiz imediatamente ao chegar à classe de volta e, sem jeito, achou melhor que eu perguntasse a minha avó, o que fiz assim que cheguei em casa. E então é que ela me contou que eu não ia poder ver o verde como as outras crianças, mas que as plantas, as florestas e as árvores eram verdes, e que, se Deus quisesse, um dia eu saberia tudo isso – o que ainda espero. Ela me recomendou não ficar triste com essa diferença e sempre responder todas as perguntas de qualquer pessoa, pois só assim todos veriam que eu era diferente só na aparência e eu poderia, com vagar, conquistar o meu espaço. E assim tenho procurado proceder até hoje. Esse episódio da folha verde, mais tarde, teria uma outra repercussão na minha vida: já quase em vias de terminar a universidade, minha amiga Mariana, que se formaria em Jornalismo ao mesmo tempo em que eu me formaria em Letras, quis fazer da minha história até então um livro- reportagem com o qual concluiu seu curso, encontrando nessa folha verde, que me fez descobrir a minha diferença e assumi-la para o mundo, o título de seus escritos, o que me deixou muito comovida.

A primeira e a segunda séries, fiz aqui em Limeira, numa escola especial para cegos da qual minha avó foi a fundadora, por minha causa, o Centro Educacional João Fischer Sobrinho. Tendo aulas quase individualmente com a tia Marly, uma antiga e grande amiga de magistério da minha avó, tive acesso às mesmas matérias que as crianças ―normais‖ aprendiam com a minha idade nas escolas públicas,estando, na terceira série, pronta para ingressar definitivamente em escolas ―normais‖ a partir de então. Eu e a tia Marly sempre brincamos muito enquanto eu estudava. Para ela, até hoje, eu sou a Yarinha; não há cristão que consiga fazê-la mudar de idéia.!

Minha infância, em certa medida, foi diferente da infância das crianças da minha geração: enquanto elas ainda brincavam nas ruas, jogando queimada, correndo, subindo em árvores de vez em quando e soltando pipas, eu, criada pelos meus avós e pela minha bisavó Quita, brincava em casa, de 201

bonecas e de casinha, sempre depois de chegar da escola e ter terminado todos os deveres, um combinado que fiz com minha avó desde sempre. E quando enjoava de brincar assim, eu ia ler. Como a dificuldade de encontrar materiais em Braille era infinitamente maior na minha infância do que hoje, e ainda não havia livros falados gravados em fitas cassete ou cds e muito menos livros eletrônicos para baixar e ler no computador (aliás ainda não havia nem o computador), eu relia muitas coisas. A Literatura sempre foi um dos modos que encontrei de suprir a falta da visão. Foi assim que aprendi, já na faculdade, com minhas professoras de Literatura, Vadinea e Josiane, o que era, como se comportava e qual a sensação da neblina. Do mesmo modo compreendi como funcionavam as imagens invertidas, como no espelho, algo que eu penaria tanto para entender nas aulas de Física. Minha avó foi quem se incumbiu de datilografar em Braille para mim os materiais de todas as disciplinas da escola, missão que ela levou a cabo quase até que eu terminasse o Ensino Médio.

Lá pelos dez anos, embora eu não soubesse ainda o que iria fazer profissionalmente, minha afinidade com a Língua Portuguesa já era bem pronunciada. Quando a professora nos dividia em grupos para escrever e ilustrar livrinhos sobre histórias que ela nos havia apresentado, descobri, com o meu grupo, que o que eu mais sabia fazer era ajudar a escrever os textos, pois eu sempre me lembrava de tudo, bem como a pontuá-los e a dividi-los em parágrafos. Então fui eleita a ―escritora‖ do grupo. Eu ditava e a Fabiana, a minha assistente, escrevia e ajudava a revisar. E os outros membros restantes, a Jô, o Éverton e mais alguém de quem não me lembro, se encarregavam das ilustrações, enfim, da organização de todo o resto.

Quando eu contava essas coisas em casa, todos gostavam de ouvir que eu estava me dando bem na escola regular, que freqüentei em paralelo com a especial até mais ou menos uns doze anos, época a partir da qual passei a estudar somente em escolas ―normais‖. Minha bisavó ficava orgulhosa de ouvir sobre os livrinhos. Ela, naquela sabedoria de quem tinha estudado tão pouco, mas ainda assim sabia tanto, me dizia: ―Filha, você faz muito bem. A gente tem que gostar muito dos livros; eles são sagrados. Nunca arranca uma folha de um livro, porque, se a gente tira uma página dele, ele chora, sabia?‖ Sim, de alguma forma eu sabia que nos livros eu teria amigos, confidentes, 202

companheiros de viagens, de aventuras, de aspirações e também de horas complicadas. De algum modo eu compreendi o que ela falava e os venerei desde sempre.

E aos treze anos, depois de ter sido muito pressionada pelos meus pais – ambos advogados – para fazer Direito, foi numa aula de Português com a dona Inês que comecei a delinear o que sou hoje. Ela queria saber por que leitura, venda e destruição são substantivos abstratos e pediu algum voluntário para responder. Aguardei, mas como ninguém se aventurasse, resolvi tentar: ―Porque os três só existem a partir da existência do homem. Se não existisse o homem, não haveria nem o que ler, nem quem lesse; se não existisse o homem, não existiria o ato de vender; e se não existisse o homem, não existiria a destruição, porque os animais só tiram da natureza o necessário para sua subsistência, sem nunca destruí-la.‖ Quando terminei, ela veio se chegando com passos ligeiros e a admiração no sorriso e nos olhos, para me dizer que, já que estávamos no último dia de aula de junho, que eu aproveitasse para pensar com carinho na hipótese de fazer Letras, porque eu seria uma senhora professora de Português. Tanto pensei com carinho que prestei o vestibular logo depois de terminar o Ensino Médio, me candidatei somente para Letras pelo que me lembro, e ingressei cheia de empolgação e planos na UNIMEP.

E da gramática para a literatura foi um passo, que dei no Ensino Médio com o Marcos, que adorava ser chamado de mestre e me alcunhou de ―minha cara discípula‖. Debaixo desse conservadorismo todo, a Literatura começou a me ser apresentada, sem nunca descuidar do bem escrever e do bem falar, claro. Não sei se o Marcos se dava conta, mas cada aula dele carregava a Literatura e também a História e a Filosofia, uma tríade que me acompanha até hoje em muito de tudo o que faço. O Marcos e a Zezão, professora de História, compartilhavam dos meus planos profissionais e me prepararam para eles com esmero, tanto assim que até hoje me dão pequenas consultorias.

Na minha escolarização, sempre contei com todo o carinho e boa vontade da grande maioria dos professores – auxiliados de perto pela minha avó sempre que necessário, no concernente às adaptações que porventura precisassem ser feitas para que eu assimilasse os conteúdos. Quase unanimemente, fui a primeira aluna ―diferente‖ de todos eles; sei que depois de 203

mim, outros alunos surdos, cadeirantes, invidentes surgiram, mas eu fui quase sempre a primeira, então era inevitável que aprendêssemos juntos. Creio que ainda no Mestrado seja assim. E é inclusive por tudo isso que não posso me esquecer de mencionar a incansável participação e o apoio dos amigos, que ditavam para mim o que havia na lousa, iam comigo para todos os lados, ajudavam os professores a desbravar a Geofísica que sempre me fascinou tanto – parece-me que mais ainda sem poder ver a conformação do mundo -, a Física, a Matemática, a Química, a Biologia..., brincavam inclusive de pega- pega quando éramos crianças, me ensinando a correr na ponta dos pés ao passar pela janela da diretoria, estudavam comigo, liam e lêem livros inteiros para mim e conversavam conforme fomos crescendo: a Luciana no Pré, a Jô, o Vitão e o Rodrigo no Ensino Fundamental, a Vanessa e a Mariana no Ensino Médio, a Mírian, a Rosinele, a Ivana, a Cibele e a Camila na faculdade - como são inesquecíveis as reuniões de estudo na casa da Cibele, com as rapaduras de gengibre e as enormes e intermináveis canecas de café! É um prazer para mim que Cibele e Camila tenham podido me acompanhar inclusive nesta etapa do Mestrado. E tem também a Talita, que não fez parte da minha vida dentro da escola, mas com quem leio e compartilho muitas coisas, inclusive um bando de viagens de busão pra Americana; tanto o meu Mestrado quanto a faculdade dela de Direito, nós fazemos juntas no que concerne às leituras e reflexões. Ainda a Carol, a Margareth e a Neusa são minhas ledoras constantes. Todas essas são pessoas que até hoje tenho comigo com alegria.

No fim do Ensino Médio fui indicada pela minha escola, o Colégio São José, para concorrer ao Troféu Fumagalli, um prêmio concedido aos destaques aqui da cidade; ganhei como um dos dois melhores alunos do Ensino Médio e recebi a estatueta de Atena já na faculdade. O melhor de ganhar esse prêmio foi que pude dedicá-lo a minha avó, como reconhecimento por tudo o que ela fez por mim e ainda faz, porque tenho consciência de que, se não fosse pela decisão dela de assumir a minha diferença e me ajudar de perto a tocar em frente, e pelo grande incentivo da tia Cecília, eu não teria chegado até aqui, assim como não posso me esquecer do apoio dos meus padrinhos na digitalização de vários livros que minha avó já não podia mais datilografar no Ensino Médio por causa da LER, e da presença indispensável da minha 204

madrinha e da minha mãe durante o Mestrado. E olha que esse reconhecimento a minha avó não é só meu: a minha classe combinou que, na formatura da universidade, depois que eu recebesse o diploma, como fosse a última por causa da inicial Y, minha avó receberia um diploma dado por eles em reconhecimento à participação dela na minha vida educacional. Foi uma surpresa para nós duas, um momento emocionante demais!

E foi na faculdade que descobri quais seriam as minhas grandes paixões, duas das quais me acompanhavam já, embora eu não soubesse conscientemente disso, e uma que descobri lá: a Literatura, a Filosofia e o Latim, que veio junto com a amizade da Sônia. Nessa época havia, nas paradas de sucesso do rádio, um grupo chamado ―Venga Boys‖. Nunca fui uma grande fã deles, mas tinham uma música de letra simpática, porém cheia de paralelismos, e melodia fácil e insistente, ―Shalalalala‖. Aos sábados eu saía de casa por volta de meio-dia, era uma das primeiras a ser pega. O motorista da van sempre deixava o rádio na mesma emissora. Todos os sábados, entre meio-dia, quando eu saía para a universidade, e uma da tarde, quando chegávamos para as aulas – as minhas eram de Filosofia -, aquela música tinha de tocar ao menos uma vez. Disso resultou que, sempre que a ouço, sinto o cheiro de grama aparada da UNIMEP, o calor ardente do Sol do meio-dia, a rapidez do almoço engolido para não perder a van, o odor da sala onde fiz, por meio de muitos lábios e olhos atentos, principalmente os da Fernanda, a leitura de O Mundo de Sofia, que levou quase o semestre para se completar, enfim o gosto instigante de pensar o que ainda não havia sido pensado. Por muitos anos, procurei essa música para deixá-la junto das minhas preferidas sem êxito. Eu a ouvia apenas casualmente e mal podia prestar-lhe atenção, tamanha a quantidade e intensidade das lembranças que me assaltavam já aos seus primeiros compassos. Até que no ano passado consegui encontrá-la; agora ela está no meu celular, no mp3, no computador... Vai comigo para onde eu for, trazendo-me sempre que quero o sabor de uma das épocas mais felizes que tive, se não a mais feliz de todas elas. Ao som dessa música conheci conscientemente a Filosofia. Também ao som dela pensei, no último sábado de aula, que teríamos de nos despedir, a Filosofia e eu. Felizmente para mim, já 205

há tantos anos passados, e ainda mais depois deste Mestrado tão recheado de tais contribuições, sei que essa despedida jamais vai acontecer.

E foi na aula de Filosofia, que era uma mescla dessas três paixões das quais dei acordo na universidade, mediadas pela simplicidade, humildade e vastíssimos conhecimentos do professor Edivaldo, resguardados sempre pela sua modéstia sem par, que tive a sensação de acolhimento e a certeza de estar no lugar certo, em detrimento do pleonasmo. Uma feita, já no fim do citado módulo introdutório de Filosofia, ele nos disse com a sua voz profunda e compassada: ―Quem lê, seja com as mãos ou com os olhos,está lendo a realidade.‖ Caramba, em tanto tempo de estudos, era aquela a primeira vez que eu via a minha forma de leitura incorporada à leitura tradicional. Eu sabia que ambas faziam parte da mesma totalidade, do mesmo processo, mas era a primeira vez que alguém me dizia que também sabia disso. Nossa, fui tomada por uma sensação tão grande e tão boa de pertencimento, de estar no meu lugar, que jamais deixei que esse momento se desvanecesse, e jamais me esqueci da clareza espantosa e sonora com que nos foram ditas aquelas palavras que permaneceriam comigo para sempre. Naquele contexto, a Etimologia e a Hermenêutica com seus horizontes eram constantes. Para mim, que resolvi me dedicar às línguas e suas representações escritas, muitas delas contempladas na Literatura, aquilo era o que de melhor eu poderia desejar; até hoje só pude conhecer um pouco da dureza doce do espanhol e da melodia maravilhosamente maviosa do italiano, além do parco latim da faculdade que me fazia sentir uma perfeita romana ao proferir aqueles sons, estruturas e sentidos, e a concisão e o uso reduzido das vogais no inglês ainda me acompanham com tenacidade e já com algum afeto, mas quando me lembro do banho de etimologia das aulas do Edivaldo, sinto ainda mais vontade do alemão e do grego quem sabe para continuar. O som melancólico e um tanto gutural do árabe e a lembrança da magia das Mil E Uma Noites também me despertam sensações interessantes. As aulas de Filosofia sempre me foram um lugar de reconhecimentos e descobertas. Introduzindo-nos à história da Filosofia, Edivaldo dividia a lousa em sua inteireza em quatro partes que me pareciam iguais, com riscos verticais: a primeira da esquerda para a Antiguidade, a segunda para a Medievalidade, a terceira para a Modernidade e 206

a extrema direita para a Contemporaneidade, andando pela largura da sala, conforme falava de cada parte, colocando no lugar convencionado os eventos oportunos. Ele me dizia com aquele sorriso terno e radiante que é a minha maior e melhor experiência estética: ―Yara, tô desenhando um gráfico no quadro; vai enxergando aí!‖ E de fato eu enxergava. Eu pensava que esse fosse um procedimento comum dele a todas as aulas, mas no ano passado descobri que aquela tinha sido uma tentativa muito bem-sucedida de me fazer compreender por meio do som da voz, do giz escrevendo e dos passos que iam e vinham, aquilo que ele estava tentando de algum modo geometrizar visual e concretamente para os alunos. E sem querer fiz história, pois ele me disse que aquela se tornara uma prática comum a todas as aulas de Filosofia que ministrou a partir de então. E a acolhedora sensação de pertencimento continuou após a faculdade e perdura. Um pouco depois de formada, num ensaio que se propôs a fazer o diálogo das diferenças físicas com a Filosofia, constante de um livro dedicado à temática da Educação Especial, li por meio de vários olhos e bocas a maneira como Edivaldo defendeu a inexistência do ―corpo deficiente‖ nesse nosso mundo Contemporâneo, Neo-Barroco e constituído belamente pelo ―imperfeito‖.E desde então vamos nos entrelaçando em conferências e reflexões que mesclam a Literatura e a Filosofia, que despertam o que tenho, sou e sei fazer de melhor.

Recordo-me com satisfação de uma oficina sobre tragédias gregas que o C.A. de Letras, presidido pela Cibele, ofereceu em 2001 aos estudantes. Numa leitura dramatizada, fui Antígona, a personagem forte, decidida, que sabia honrar o que merecia e deveria ser honrado e colocar as demais coisas em seus devidos lugares. Li a tragédia com afinco naquela semana e fui à oficina pedindo intimamente para ser Antígona; e fui Antígona! Minha diferença me impediu de ser atriz de teatro no interior do estado, mas me senti realizada naquele dia. Também adorei quando a Beth, descrevendo a Mona Lisa e percebendo que eu não estava conseguindo captar certos detalhes, foi até mim, me pediu para sentar reta na cadeira, posicionou os meus braços como os da pintura, alinhou o meu rosto como o da Giocconda, ajeitou com as mãos os meus cabelos de forma a ficar parecido e me pediu um sorriso enigmático. Acabei sorrindo demais e ela me pediu para diminuir até chegar ao ponto certo. 207

Gostei tanto daquilo que fiquei naquela posição e com a mesma expressão de encantamento até o fim da aula. Desde então, mesmo sem nunca tê-la visto, tenho uma espécie de magnetismo, um afeto todo especial por essa florentina misteriosa, pois com ela, naquele dia, tive meu encontro mais próximo e perfeito com a pintura, mesmo sem ter olhos de ver.

E foi nessa mesma especialização que me apresentou a Mona Lisa que comecei a pensar a respeito das questões que seriam o cerne do meu projeto de Mestrado. Mas na primeira vez em que escrevi sobre isso como um trabalho final da disciplina da Josiane, propus um diálogo entre a Literatura e a Música - que eu começara a estudar por prazer desde cedo -, passando pela experiência, percepção, expressão e mímese de Walter Benjamin, abordando questões da comunicação de massa e elencando obras de Literatura e Música que representassem esses quatro pilares delineados pelo filósofo. Sempre que ouço a Bachiana Brasileira nº 5 de Villa Lobos tudo isso me volta a memória. Essa acabou ficando uma música-tema desse período.

Já no Mestrado na UNISAL, no ano passado, quando eu já tinha decidido que o tema da minha pesquisa seria mesmo esse que se apresenta, ―A Importância da Literatura na Formação Crítica e Criativa dos Educandos do Ensino Médio‖, fiz com a Líris o que o professor Severino chamou de uma experiência iniciática. Com ela, o equilíbrio perfeito entre a medicina e a poesia, a aristotélica mais platônica que já conheci, descobri a beleza do pôr-do-sol, ao ler a sua ―Dourança Bordada‖. Sempre que tenho vontade de relembrar o impacto dessa descoberta, releio o poema e tudo vem de novo. Tivemos ainda um outro dentre tantos momentos legais: a tão famosa aula de Fenomenologia que demos a Líris, Camila, Cibele e eu, e que se espalha pelo Mestrado como eu já soube, na qual Líris e eu executamos um duo musical com O Caderno, do Toquinho; realmente foi mágico. Igualmente cheios de magia foram dois momentos que tive com o Júnior durante os almoços posteriores às aulas de Psicodrama da professora Norma. Um deles foi quando ele conseguiu me fazer compreender o arco-íris; puxa vida, eu achei que nunca fosse entender isso! E o outro foi durante uma aula de Psicodrama em que ele fazia uma dinâmica com dois, três, quatro bastões, jogando e pegando. Eu achei que talvez ele pensasse que eu não fosse conseguir fazer aquilo, mas, para minha própria 208

surpresa, consegui jogar com os quatro bastões sem derrubar depois que peguei o jeito e fui uma das únicas que conseguiu fazer a dinâmica até esse estágio; foi tanto surpreendente quanto engraçado, rendeu muita conversa boa depois. Também os almoços e cafés em si, com a turma do psicodrama, Seminários de Pesquisa e da História da Educação, a Lidiane e sua personalidade forte, Wellington e sua paixão pela Etimologia, Eugênia e seu jeito de chegar chegando, Jaqueline e seu travesseirinho, Conrado com sua gargalhada gostosa, Maromo com seu gosto pelo chorinho e facilidade com os computadores, as Ritas que de semelhantes só têm os nomes, o Bibiano e seu perfume que o denunciava a distância, Ingrid que divide comigo e o Júnior uma grande paixão pelo universo das artes, Maria José - a ―dalit‖ que nunca tem crédito para responder as mensagens que a gente manda pro celular dela -, Neusa com sua incansável procura pelo tema da pesquisa, Érika com seu sotaque diferente e rosto delicado, e outros, vão ficar na história, assim como os famosos cata-cuspes das aulas de Seminários do professor Paulo de Tarso, conforme os batizou a Líris por causa dos primeiros lugares que ocupávamos ambas na sala. Toda a classe sempre ria a valer, porque eu invariavelmente conseguia interpretar as recorrentes caras e bocas que o Paulo fazia, sem jamais precisar de tradução. Ele conhece Braille, conhece as tecnologias – eletrônicas ou não - disponíveis aos cegos a ponto de saber lidar com elas, manejá-las, enfronhando-se por isso a fundo nas dificuldades escolares que os invidentes enfrentam. Creio que esse seja um dos motivos pelos quais sempre esteve muito à vontade para brincar com a minha diferença de modo a incorporá-la com irreverente mordacidade ao cotidiano da classe. Foi uma experiência diversa, bacana, ter, já no Mestrado, um professor que conhecia de antemão um pouco desse meu universo na maioria das vezes tão peculiar a todo mundo. Têm também as eletrizantes aulas de Filosofia do professor Marcos – nas quais era desaconselhável até mesmo piscar, para não perder nada – e as transcendentes aulas do professor Severino.A sala tem duas portas. Ele entrava sempre sorrateiramente pela porta de trás e normalmente ia chegando quase sem ser percebido. Como fizesse questão de me avisar da sua presença quase ao mesmo tempo em que a conheciam os outros, colocava a mão larga e grande de leve sobre as costas da minha e dava três batidinhas amigáveis com ela espalmada, enquanto me sorria aquele sorriso 209

largo que tinha a serenidade de um rio caudaloso, porque chegou um tempo em que aquele sinal da mão foi ficando uma coisa nossa, dessa espécie de cumplicidade boa que a gente lembra com saudades depois. Eu já sabia que ele faria questão de me contar que havia chegado à classe e ele já sabia que minha mão estaria repousando na carteira, esperando pelas três palmadinhas compassadas do costume. Impossível falar do Severino nessas memórias se não assim, por meio de uma das tantas gentis metonímias que perpassaram todo o nosso caminhar. Cabe ainda mencionar o professor Groppo que, virtual ou pessoalmente, sempre teve para mim modos invariavelmente prontos e corteses, embora nunca tenhamos estado juntos em uma disciplina do Mestrado, mas as suas intervenções sempre rápidas, pontuais e perspicazes, feitas com dedicado empenho, foram indispensáveis para o êxito desta pesquisa.

Quero ainda dedicar umas linhas ao meu avô que, assim como a minha bisavó, já não está mais comigo neste momento importante da minha vida, mas ele ainda chegou a me ver começando o Mestrado e sabia como ninguém se encantar com O Velho E O Mar. Um dia eu estava pesquisando Aristóteles para a aula do Severino. Imprimi a pesquisa e desci para ficar com ele, já que ele não podia mais se deslocar para ficar comigo. Me sentei no sofá perto da cama e ele perguntou o que era aquela papelada. Respondi que era Aristóteles. ―O estagirita‖? ―O quê?‖ – perguntei. ―É verdade, esse era o apelido dele.‖ Fiquei me perguntando como ele sabia disso, mesmo com tão poucas oportunidades de estudar, mas o fato é que uma das primeiras frases da pesquisa que li foi algo como:‖Aristóteles, filósofo grego nascido na cidade de Estagira, ficaria mais tarde conhecido simplesmente como ‗o estagirita‘.‖

Para mim, a minha família, diferente como grande parte daquilo que me cerca, sempre foi o que houve de mais importante. Sei que todos estão comigo, embora alguns eu não mais possa ver, e que é graças ao apoio incondicional de cada um deles e à generosidade divina que poderei concluir mais esta etapa do percurso que me propus, fato pelo qual serei sempre infinitamente grata.