O Guarani, De José De Alencar, Posto Novamente Em “Romance”
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Oralizando a Escritura: O guarani, de José de Alencar, Posto Novamente em “Romance” Francisco Cláudio Alves Marques Universidade Estadual Paulista – UNESP [email protected] Resumo: Segundo Paul Zumthor, o romance nasce por volta de 1160, atrelado à voz daqueles poetas de praça que traduziam em língua vulgar obras da literatura erudita escritas originalmente em latim. Assim nasce a expressão “mettre en roman”, colocar em romance. Segundo Zumthor (2003), “pôr em romance”, naquele contexto, significava “‘glosar’ em língua vulgar, ‘pôr, clarificando o conteúdo, ao alcance dos ouvintes, fazer compreender, adaptando às circunstâncias’.” Não muito distante dos canterini medievais, os poetas de cordel nordestinos adaptaram textos herdados do romanceiro ibérico para a literatura de folhetos, como a História de Carlos Magno, da Imperatriz Porcina e outras tantas, aproximando-as da realidade de seus leitores e ouvintes. Nesta comunicação pretendo demonstrar que o poeta Klévisson Viana, ao adaptar O guarani, de José de Alencar, para a literatura de cordel, utilizou técnicas semelhantes às empregadas pelos antigos poetas populares, numa espécie de glosa do texto erudito. Palavras-chave: O guarani; Glosa; Literatura de Cordel. Abstract: According to Paul Zumthor, the romance rises around 1160, linked to the voice of those square poets who translate works of learned literature originally written in Latin into vulgar language. Thus the expression "mettre en roman", put into romance, rises. According to Zumthor (2003), “to put into romance”, in that context, meant “‘glossing’ in vulgar language, ‘to put, by clarifying the content, within the reach of listeners, to make them understand, adapting to circumstances’.” Not far from the Medieval canterini, twine poets from the Northeast Brazil adapted texts inherited from the Iberian Romance into the literature of pamphlets, such as the History of Charlemagne, History of the Empress Porcina and others, bringing them closer to the reality of their readers and listeners. In this communication I intend to demonstrate that the poet Klévisson Viana, in adapting for twine literature José de Alencar’s The guarani, used techniques similar to those used by the old popular poets, in a kind of glossing of the erudite text. Keywords: The Guarani; Gloss; Twine Literature. O conceito medieval de “romance” segundo Paul Zumthor A adaptação de O guarani, de José de Alencar, para a literatura de cordel, por Klévisson Viana, é uma prova cabal de que os poetas que compõem no âmbito da cultura popular sempre tiveram em contato, desde os primeiros folhetos impressos na Europa, em meados do século XV, com matrizes escritas. O fato de uma obra pertencente à literatura erudita passar por um processo de reescritura em outro contexto cultural nem sempre coincidente com aquele que caracteriza o universo letrado, remete a uma questão já discutida por Bakhtin e retomada por Carlo Ginzburg em O queijo e os vermes (1987). Falando sobre a cultura popular, e mais especificamente da cultura camponesa da Europa pré-industrial, marcada pela difusão da imprensa, Ginzburg remete ao fato de as produções escritas fundadas numa visão de mundo típica do mundo camponês dialogar estreitamente com a cultura letrada, o que ele resolveu chamar, apoiado em Bakhtin, de “circularidade”: [...] entre a cultura das classes dominantes e a das classes subalternas existiu, na Europa pré-industrial, um relacionamento circular feito de influências recíprocas, que se movia de baixo para cima, bem como de cima para baixo (exatamente o oposto, portanto, do “conceito de absoluta autonomia e continuidade da cultura camponesa” que me foi atribuído por certo crítico). (GINZBURG, 1987, p.12). O fato é que antes mesmo de as primeiras prensas serem instaladas na Europa, em meados do século XV, muitas narrativas originalmente escritas em latim já vinham sendo vulgarizadas, por volta do século XII, por canterini e charlatães, cantores e vendedores ambulantes que ganhavam a vida traduzindo narrativas alheias para a língua vulgar, as quais eram lidas ou cantadas nas praças, feiras e estradas por onde passasse um potencial comprador daquelas narrativas. Assim surge o “romance”, observa Paul Zumthor (1993, p. 266), por volta de 1160-70, “na junção da oralidade com a escritura”: “Logo de saída colocado por escrito, transmissível apenas pela leitura (com a intenção, é verdade, de atingir ouvintes), o ‘romance’ recusa a oralidade das tradições antigas, que terminarão, a partir do século XV, marginalizando-se em ‘cultura popular’”. A vulgarização de obras traduzidas diretamente do latim dá origem à expressão mettre em roman, frequente no francês do século XII. Segundo Zumthor (1993, p. 266), operada por um indivíduo apenas arranhado pela letra, a colocação em romance tinha por destinatário qualquer pessoa do meio cavalheiresco e nobre. O medievalista observa ainda que “romance”, originariamente advérbio, provindo do latim romanice, refere-se ao vernáculo e, portanto, de modo primário, ao oral. (ZUMTHOR, 1993, p. 266) Com a finalidade de desfazer certos nós conceituais em torno da ideia de pôr em romance, definido por muitos medievalistas equivocadamente por “traduzir”, Zumthor (1993, p. 267) salienta que a expressão parece referir-se mais do que apenas à transferência linguística, ao comentário que um mestre pronuncia sobre um livro de autoridade: “Pôr em romance é propriamente ‘glosar’ em língua vulgar, ‘pôr, clarificando o conteúdo, ao alcance dos ouvintes’, ‘fazer compreender, adaptando às circunstâncias’”. A vulgarização de textos eruditos tem início antes mesmo da invenção da imprensa, alargando-se com a difusão desta. Na Itália, por exemplo, a partir do século XV tais vulgarizações eram impressas em folhetos chamados “libretti muriccioli”, estampadas em papel ordinário e vendidas a baixo custo pelos canterini e ciarlatani. Os pliegos sueltos espanhóis são da mesma época, bem como a literatura de colportage francesa e a literatura de cordel portuguesa. O fato é que a técnica de adaptar narrativas eruditas para o folheto sobrevive às intempéries do tempo, atravessa oceanos e continentes para continuar sobrevivendo no Nordeste brasileiro. A transformação do “Livro da Cidade” em “romance” Quando se trata da adaptação de histórias da literatura erudita para a literatura de cordel, uma das primeiras perguntas que se faz é: porque o leitor de cordel não lê o romance na sua versão original? Segundo os poetas de cordel, dois são os motivos que os levam a “traduzir” em versos as notícias veiculadas pelos meios de comunicação escritos e as histórias de heróis e heroínas difundidas por meio da literatura erudita. O poeta Manoel de Almeida Filho (Apud. ALMEIDA, 1979, p. 202) explica que um desses motivos relaciona-se com o fato de o público nordestino estar acostumado a ler “rimado”, “versado”: [...] a grande maioria dos nossos fregueses lê o livro cantando. Como a gente lê, eles aprendem as músicas dos violeiros, e eles cantam aquilo. [...] E, em casa reúnem uma família, três, quatro, e cantam aquilo, como violeiro mesmo [...] O folheto tem essa doçura do verso. E o povo nordestino se acostumou a ler o verso. Então o livro em prosa mesmo, ele não gosta e nem gosta do jornal, a notícia do jornal. [...] Ele não entende. [...] Porque está acostumado a ler rimado, a ler versado. O outro motivo, ainda de acordo com Manoel de Almeida Filho, está relacionado com o fato de que o leitor “não entende” ou “não gosta” do livro em prosa, de modo que o poeta, embora muitas vezes semiletrado, “traduz” em versos a obra escrita em prosa, colocando-a ao alcance do leitor/ouvinte. A mesma explicação é apresentada pelo poeta de cordel Altino Alagoano, pseudônimo de Maria das Neves Batista Pimentel. Referindo-se ao folheto O Violino do Diabo, recriado em versos a partir de uma tradução do romance homônimo de Victor Pérez Escrich, autor espanhol do século XIX, a poeta revela parte dos mecanismos que presidem a recriação poética, ideológica e textual por que passam muitos textos da literatura erudita: Você sabe que o romance é feito numa literatura alta. O povo não entende, mesmo lendo não entende, não compreende e nem vai perder tempo para ler o romance. Então eu transformei aquela literatura no linguajar do povo, no modo que o povo fala, que o povo entende. [...] eu peguei o miolo. A coisa mais, que me interessa. [...] O romance é o roteiro, agora aqui eu vou transferir toda essa história para o linguajar do povo e versar. [...] Eu não posso me afastar da linha do romance, eu posso criar, ajudar no mesmo sentido. [...] Então aqui neste romance O violino do Diabo ou o Valor da Honestidade, então, a lição que eu salientei neste romance, foi a honestidade da moça e do velho, entendeu? Que aquele homem fez toda a trapalhada, toda a trapaça para iludir esta moça. [...] Para fazer o folheto, eu leio a parte, analiso e formo o verso dentro daquela parte. Não vou ler todo o livro, eu leio aquela parte, aí vou fazendo os versos aos poucos conforme a leitura. [...] Muita coisa a gente tem que abandonar, a gente não pode pegar um romance e fazer ao pé da letra, tem que aproveitar o pensamento do escritor e transformar ao nosso pensamento, quer dizer, fazer aquilo de maneira que seja fiel: o histórico do escritor mais resumido. (Apud. MENDONÇA, 1993, p. 86). Câmara Cascudo (1978, p. 12) observa que “o poeta popular transforma o livro da cidade, do autor letrado em romance, romance na acepção clássica de adaptação e assimilação destinada a um certo ambiente social.” Os autores de textos de cordel costumam denominar “romance” ou “obra feita” exatamente os folhetos com 24 ou mais páginas resultantes de recriações poéticas a partir de narrativas pertencentes à tradição escrita. Essa prática consiste na transformação do “livro da cidade” em folheto, um gênero particular de “romance” adaptado a um ambiente social específico e colocado ao alcance do leitor/ouvinte, como faziam os primeiros autores medievais ao “traduzir” em língua vulgar os textos latinos.