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TESES E DISSERTAÇÕES Foto: Frederico Boza

Qual é a classe do ?

Tese de professor da UFJF, premiada pela Capes, analisa a trajetória do samba e do , chegando a conclusões curiosas sobre a diversidade de classes sociais e culturais que habitam os gêneros musicais mais representativos da identidade nacional

BÁRBARA DUQUE Repórter

itmo nacional por excelência, o samba dos cursos de Direito e Economia da Universi- trajetórias de músicos, jornalistas, gravadoras e é amplamente debatido, inclusive no dade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Dmitri críticos em uma análise sócio-histórica da as- Rmeio acadêmico. Na busca pela expli- Cerboncini Fernandes, recebeu o prêmio em censão da música popular urbana brasileira e cação da formação deste símbolo, historiado- julho de 2012. Intrigado com questões sobre suas contradições. res, jornalistas, músicos, cientistas sociais e como um só ritmo é capaz de abrigar persona- pesquisadores estudam esse gênero transfor- gens tão díspares como o samba, o trabalho “A A sua busca começou no século XIX, resgatan- mador da cultura popular em cultura nacional. Inteligência da Música Popular, a ‘autenticida- do onde e como essa história começou, pas- Questões que permeiam esse identificador de’ no samba e no choro” desvenda qual é sua sando por personagens que traçaram esses nacional nortearam a melhor tese de Sociolo- verdadeira classe. rumos, levando o samba a um sectarismo do gia, segundo a Coordenação de Aperfeiçoa- erudito versus popular. Na década de 30, mento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Para estudar as relações sociais que estrutu- quando o amálgama do gênero se formou, ini- defendida em 2010. O autor e professor de ram o domínio do samba e do choro, desenvol- ciaram-se as disputas de quais seriam os artis- Sociologia das Artes e Introdução à Sociologia veu trabalho rico de histórias que entrelaçam tas e as obras adequados ao desempenho de

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representantes do samba. A partir de então, foi Surgiu, então, nas três primeiras décadas do momento em que deveria por outras razões, necessário estabelecer padrões para regular o século XX, uma cultura popular lato sensu di- como falta de legisladores especializados em que seria regional ou nacional; bom ou ruim; fundida por veículos de comunicação. Novida- samba paulista nos anos 30, momento de belo ou feio; autêntico ou inautêntico; e quem des da época como o rádio e as novas tecnolo- definição simbólica do gênero. O samba que seriam as personagens desse elenco de “for- gias de reprodução de discos, além de teatro representaria São Paulo ficou geneticamente madores de opinião” que traçaram os rumos de revista, jornais e revistas, passaram a divul- vinculado aos meios de reprodução comercial. da categorização do samba, gerando, nos anos gar notícias antes renegadas. Na década de 90, uma polarização hierarquicamente distinta. 30, no Governo Getúlio Vargas, o momento A maior preocupação dos chamados represen- carecia de unificação simbólica. Foi, então, tantes “verdadeiros” da música popular e de- bem visto um elemento nacional-popular nas fensores da autenticidade do samba era reafir- Para estudar as relações artes como grande conciliador, por isso, a as- mar o descompromisso com o sucesso comer- sociais que estruturam o censão do samba, elevado ao status maior. cial. Apesar das diferenças claras entre um subgênero do samba e outro, como uso de domínio do samba e do Porém, essa unicidade geraria discordâncias e instrumentos diferentes, levada rítmica especí- choro, docente desenvolveu tensões insolúveis. As principais seriam quanto fica e velocidade característica, quem corrobo- à forma correta de reprodução, assim como a rava a “autenticidade” eram os críticos e os trabalho rico de histórias natureza territorial das origens dessa arte. especialistas. Apesar de essa taxação já acon- que entrelaçam trajetórias Como bem definiu Fernandes, “estava aberta a tecer no florescer do movimento, como no de músicos, jornalistas, contenda pela paternidade, origem e ‘correta’ caso do samba-jóia, de Benito de Paula, desva- manutenção do samba”. Nomes importantes lorizado desde o início, e o , enalte- gravadoras e críticos em uma protagonizariam o debate: os compositores cido, as opiniões sobre os músicos podiam análise sócio-histórica da e Assis Valente ressaltavam essas mudar, havendo promoção de status, desde questões em suas letras; e os jornalistas Va- que não cometessem sacrilégio. ascensão da música popular galume e Orestes Barbosa em livros, como o urbana brasileira e suas “Samba: sua história, seus poetas, seus músi- Quanto mais indefinido um artista se colocasse contradições cos e seus cantores”, de Barbosa. Naquele no início da carreira, mais fácil obter glamouri- momento estava eleito o , capital zação. Entre os músicos que passaram por federal, como berço do samba. A grande cisão essa mudança, , Adoniran Bar- ficava por conta do morro versus cidade, “arte- bosa e Clara Nunes. Zeca Pagodinho e outros Nacionalização do samba sanal-autêntico-comunitário” versus “comer- mais, afilhados de Beth Carvalho, iniciaram cial-inautêntico-individualista”. E sobre quem novo subgênero, evoluindo para o “pagode A delimitação inicial dos gêneros musicais bra- seriam os legisladores que defenderiam a mú- comercial”, considerado heterodoxo pela críti- sileiros se deu desde o último quartel do século sica popular urbana tida como pura e autênti- ca, gerando lucros jamais vistos até então. O XIX, quando estilos desiguais se fundiram. De ca, para resguardar o legado de ouro, a música rótulo de invencionice e malandragem visando um lado, padrões europeus, como polka, xote, popular, contra distorções menos autênticas. lucro sempre estigmatizou o pagode. valsa e habanera e, de outro, estilos nativos, do meio rural ou urbano, como jongo, modinha, Além da mídia, personagens como Almirante e O samba que tematizava o papel do negro na batuque, cateretê, alguns definidos como rit- Jacob do Bandolim defenderam a legitimidade sociedade, fruto de fatores que incluíam ações mos da senzala. Essa disparidade geraria um do samba e do choro. Mais à frente, Hermínio afirmativas originadas nos anos 70, teve como híbrido que, à frente, seria chamado de samba, Bello de Carvalho, Tinhorão e Sérgio Cabral, representantes , e quando canção versificada, e choro, quando apoiados por instituições como Funarte e Mu- Candeia. Já na década de 80, instrumental. seu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, foi o precursor de grupos paulistas como Raça elegeriam como inimigos a ditadura e as “alie- Negra e Negritude Júnior que obtiveram su- Alguns personagens reformaram os estilos re- nações internacionais” que assombraram nos cesso inimaginável, desvirtuando o viés politi- cém-chegados e rejuvenesceram os existentes. anos 60 e 70. zado dos pioneiros. Esse novo som obteve as Conferiram ar de distinção às consideradas piores classificações da crítica, acusado de ser baixas manifestações culturais, acrescentando Já no final da década de 70, brancos, teleguiado por produtores norte-americanos, ornamentação erudita às composições. Esses universitários, conhecedores da teoria musical, reforçando o antigo estereótipo dado a São nomes ocupavam posições indefinidas na so- de famílias remediadas de São Paulo, marcaram Paulo como “o túmulo do samba”. Embora a ciedade: nem brancos, nem negros; nem erudi- a modificação do samba paulista,rixa entre Rio e São Paulo tenha se reafirmado tos, nem populares; nem chancelados, nem simbolizando-o como elemento distintivo da com o samba, tanto cariocas, “donos” do au- deslegitimados; representando um elo neste cultura popular. O movimento teve origem têntico samba, e paulistanos, responsáveis cenário. A presença deles nos eventos mais fi- com Adoniran Barbosa, elevado a maior pelo samba comercial, experimentaram recor- nos era enobrecedor, pois tinham contato com sambista de São Paulo, e suas parcerias com des de vendas, entre 1995 e 2005, como os figuras mais desprestigiadas. Entre os princi- compositores da classe média. Apesar disso, o cariocas Martinho da Vila, Zeca Pagodinho e pais nomes, Ernesto Nazareth, Chiquinha Gon- que poderia se tornar uma produção popular Molejo; e os paulistanos Art Popular, Exalta- zaga, Joaquim Calado e Anacleto de Medeiros. autêntica em São Paulo não aconteceu no samba e Negritude Júnior. Mesmo sabendo

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Dmitri: “Acredito que dei conta de problemas não atentados pela literatura especializada”

que muitos grupos de “neopagode”, represen- nários em quatro casas de espetáculos no Rio relacionei esses achados com suas funções tantes da inautenticidade do samba, eram do e quatro em São Paulo. O intuito foi revelar sociais, como conectar conceitos de ‘autentici- Rio de Janeiro, a crítica taxava o movimento possíveis tendências dos públicos frequenta- dade’ e ‘inautenticidade’. Assim, compreendi como oriundo de São Paulo, reforçando que no dores de cada local visitado, estabelecendo porque uma classe média escolarizada tende a samba os grupos se igualam e se separam de coordenadas importantes às hipóteses nortea- usar como marcador de sua posição social o forma radical. doras do trabalho. amor pelas músicas julgadas mais ‘autênticas’, como o choro ou o samba tradicional. Já as Pesquisa “Acredito que dei conta de problemas não camadas subalternas tendem a um gosto mal- atentados pela literatura especializada. Ao visto pelas superiores, consumindo músicas mesmo tempo, revelei aspectos de interesse erotizadas e sem a tradição do gênero. Espero Para finalizar o trabalho, Fernandes expôs os para apreciadores desses gêneros. Foi impor- ter mostrado que as músicas tidas como as resultados do cruzamento de dados da investi- tante apresentar a constituição histórica e o mais brasileiras, só poderiam ter se conforma- gação para a tese e informações de pesquisa funcionamento da linguagem usada pela críti- do no Brasil, país de uma riqueza imensa, em Ibope sobre audiência de rádio entre 94 e 99. ca, que também estrutura a cabeça de músi- todos os sentidos, só comparável à sua pobre- Na sua pesquisa foram aplicados 160 questio- cos, compositores e público. Por outro lado, za, em todos os sentidos”, resume Fernandes.

mais Dmitri Cerboncini Fernandes

Professor Adjunto I do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFJF (PPGCSO - UFJF); doutor em Sociologia e pós-doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); líder do grupo de pesquisa do CNPq “Música Popular e Intelectuais” http://www.ufjf.br/ppgcso

Leia a tese na íntegra: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8132/tde-15092010-171819/publico/2010_DmitriCerbonciniFernandes.pdf

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