TERRITÓRIO E a SEDE DOS LANCIENSES (OPPIDANI E TRANSCVDANI) E OUTRAS QUESTÕES CONEXAS “Conimbriga” XLVI (2007) P
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AMÍLCAR GUERRA Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa Investigador da UNIARQ. [email protected]. SOBRE O TERRITÓRIO E A SEDE DOS LANCIENSES (OPPIDANI E TRANSCVDANI) E OUTRAS QUESTÕES CONEXAS “Conimbriga” XLVI (2007) p. 161-206 RESUMO: No âmbito da investigação sobre povos e lugares do mundo pré- -romano e romano do Ocidente hispânico, os problemas relativos aos Lancienses da Lusitânia constituem um dos tópicos que originaram mais ampla discussão e maior diversidade de propostas. Na sequência de um conjunto considerável de intervenções arqueológicas na Beira Interior, perspectivaram-se novas hipóteses e estabeleceu-se já, com bases sólidas, a identificação da sede dos Lancienses Transcudani com os vestígios subsistentes no sítio do Mileu, Guarda, cujos funda- mentos aqui se sintetizam e reforçam. Reanalisando a documentação atinente aos Lancienses Oppidani, enunciam-se as razões da sua iden- tidade com os Ocelenses e sistematizam-se os argumentos que sus- tentam a sua localização no território correspondente, de forma apro- ximada, à Cova da Beira. Por outro lado, reinterpretando-se os restos materiais descobertos na chamada Torre de Centum Celas e sua envol- vência, aponta-se este lugar como a sede desta última entidade. ABSTRACT: Issues related to the Lancienses of Lusitania rank among the most discussed and interpreted topics regarding research on peoples and places of the Pre-Roman and Roman world in Western Iberia. Follo- wing considerable archaeological surveys and excavations in the Por- tuguese region of Beira Interior, new hypotheses have been raised that solidly identify the remains extant at the site of Mileu, in Guarda, as the capital of the Lancienses Transcudani. In this paper, we syn- thesize and strengthen the grounds on which this new interpretation is based. Having reviewed the sources concerning the Lancienses Conimbriga, 46 (2007) 161-206 162 AMÍLCAR GUERRA, Sobre o território e a sede dos Lancienses Oppidani, we give reasons for identifying them with the Ocelenses and provide systematic arguments in favour of their location in the territory that approximately corresponds to Cova da Beira. Further- more we re-interpret the materials found at the so-called Tower of Centum Celas and its surroundings, indicating this place as the capi- tal of this people. Conimbriga, 46 (2007) 161-206 A. ARRUDA, R. VILAÇA, A Proto-História no curso médio e no estuário do Tejo 163 SOBRE O TERRITÓRIO E A SEDE DOS LANCIENSES (OPPIDANI E TRANSCVDANI) E OUTRAS QUESTÕES CONEXAS 1. Introdução A identificação das entidades étnicas dos mundos pré-romano e romano e dos territórios e cidades por elas ocupados constituiu uma das preocupações da historiografia. Por isso, inventariar as antigas realida- des geográficas da Península Ibérica, entre elas os nomes e localização no espaço dos povos antigos se afirmou como um objectivo específico de alguns trabalhos de grande alcance, em especial do projecto Iberis- che Landeskunde, lançado por Adolf Schulten (1955; 1957) e comple- tado por António Tovar (1974; 1976; 1989). Mais recentemente, a União Académica Internacional, através do seu Comité Espanhol, concretizou a sua parte do ambicioso projecto da Tabula Imperii Romani, de natureza idêntica, mas com uma dife- rente organização e um leque amplo de colaboradores, tarefa que se apresenta como uma actualização e ampliação da obra levada a cabo por aqueles dois investigadores. Infelizmente, circunstâncias concretas do desenvolvimento deste projecto ditaram que uma pequena parte do território hispânico, respeitante a TIR K-29, não fosse tratada, precisa- mente aquela em que se incluem as entidades que são objecto deste contributo. No sentido de contribuir para o preenchimento dessa lacuna e pelo facto de uma das vertentes do trabalho que há alguns anos me ocupou (Guerra, 1998) se ter orientado para este domínio da investigação, reto- mam-se aqui algumas das ideias então expendidas, acrescentadas de novas reflexões que, partindo de uma base textual, confluem em pro- blemas de geografia antiga e de organização político-administrativa desse território do Ocidente hispânico. Conimbriga, 46 (2007) 161-206 164 AMÍLCAR GUERRA, Sobre o território e a sede dos Lancienses Inicia-se a exposição com a análise da documentação de natureza literária e epigráfica a respeito de diversas entidades da Beira Interior, procurando completar o quadro com os dados de natureza arqueológica, conferindo-se uma especial atenção aos traçados viários pela importân- cia que estes assumem no caso vertente. O objecto essencial deste contributo diz, no entanto, respeito aos diversos Lancienses, “povo” que, no âmbito geográfico referido, mais concitou a atenção dos investigadores, talvez pelo conjunto de pro- blemas que o tema suscita. O feixe de questões que o estudo destas enti- dades coloca tornou-se progressivamente mais complexo, graças a um amplo número de trabalhos a elas dedicados, entre os quais avultam as variadas análises que consagrou a este assunto Jorge de Alarcão (1988a; 1988b; 1988c; 1990a; 1990b; 1998; 2001, 2005a; 2005b; Alarcão e Im- perial, 1996). Para além disso, a realização na Beira Interior de impor- tantes trabalhos arqueológicos ao longo das últimas décadas, teve ine- vitáveis consequências neste domínio da investigação, cujos resultados mais sugestivos se podem encontrar na dissertação de mestrado de Helena Frade (2002), nas Actas do Colóquio “Lusitanos e Romanos no Nordeste da Lusitânia” e na dissertação de doutoramento que recente- mente Pedro Carvalho (2006) apresentou à Universidade de Coimbra. Há que ter consciência, em primeiro lugar, que uma abordagem destas questões deve assentar numa análise o mais ampla possível dos materiais de natureza diversa e que a fundamentação das hipóteses beneficia substancialmente se esses elementos de origem díspar parece- rem concordantes. Por isso, manusear-se-ão, para além dos já referidos elementos de natureza arqueológica e epigráfica, alguns dados linguís- ticos, não apenas reportáveis ao mundo antigo, mas igualmente os que as realidades medieval e moderna proporcionam, com a convicção de que quase sempre se identificam elementos nestas épocas que remon- tam ao período pré-romano ou romano e podem ajudar a confirmar ou infirmar as diferentes hipóteses. As considerações que se seguem resultam de uma prolongada re- flexão e de uma postura crítica em relação a uma ampla massa de dados, originando em algumas circunstâncias uma rotura com a tradição. Este texto contribui essencialmente com uma nova interpretação para a muito debatida questão do território e da sede dos Lancienses Oppidani, que ponho à consideração da comunidade científica. Conimbriga, 46 (2007) 161-206 AMÍLCAR GUERRA, Sobre o território e a sede dos Lancienses 165 2. Os Lancienses da Lusitânia Pondo de lado os registos atinentes aos Lancienses que se incluem no âmbito dos Ástures, os autores clássicos referem uma única vez esse nome étnico de forma incontestável. Ocorre, em concreto, no famoso passo de Plínio (nat. 4,118) em que o enciclopedista latino faz o elenco de alguns dos oppida stipendiaria da Lusitânia. De qualquer modo, admitiu-se geralmente que essa entidade teria que ver com o topónimo Lagkía Oppidána das tábuas de Ptolomeu, nas quais aquela cidade se incluía entre os Vetões, o que aumentaria as menções a ela concer- nentes. Ao contrário, a segunda ocorrência do termo Lancienses, também ela documentada no mesmo passo da Naturalis Historia (PLIN. nat. 4,118), está há vários séculos envolvida em alguma controvérsia, que persiste até ao momento. Depois de as mais antigas edições impressas aceitarem ampla- mente a sua repetição nesse parágrafo, a ideia foi recusada por uma parte dos editores modernos do texto pliniano, os quais, de uma maneira geral, não consideram viável essa hipótese. Apesar disso, a interpreta- ção tradicional tem sido pontualmente admitida em fase recente, mais por razões histórico-epigráficas que de outra natureza, ganhando ulti- mamente alguns adeptos entre os investigadores que analisaram a ques- tão dos Lancienses. Esta hipótese assenta em argumentos atendíveis. Desde logo, tem a seu favor uma ampla tradição da crítica textual, que tem ponderado, ao longo do tempo, como interpretar o facto de alguns importantes ma- nuscritos da Naturalis Historia registarem o mesmo nome uma segunda vez, na sequência Ocelenses Lancienses, que habitualmente separam por vírgulas. De uma maneira geral uma boa parte dos antigos editores deste texto, achando estranha a repetição de Lancienses, além do mais fora da ordem alfabética normal nesse elenco, propuseram uma solução habitual nas listas de Plínio, onde é frequente ocorrerem designações alternativas de povos, ligadas por qui ou qui et. Refira-se, a título de exemplo, que nesse mesmo parágrafo a enumeração de oppida se con- clui com a sequência “/.../ Turduli qui Bardili et Tapori”. A primeira opção, que segue uma importante tradição manuscrita, ocorre especialmente nas edições quatrocentistas ou de inícos de qui- nhentos, entre elas a impressa por Andrea Portilia (1481) ou as editadas por Ermolao Barbaro (1497) e Alessandro Benedeto (1507). A interpre- Conimbriga, 46 (2007) 161-206 166 AMÍLCAR GUERRA, Sobre o território e a sede dos Lancienses tação que prefere Ocelenses qui et Lancienses, forma que se impõe a partir daí, domina a ampla tradição editorial, sendo claramente majo- ritária no período correspondente aos séculos XVI a XIX: assim, a título exemplificativo, as edições de S. Ghelen (1539), J. Dalechamps (1587), Carl. Herm. Weisio (1841), I. Silig (1851)