Frequentemente, os álbuns póstumos de temas inéditos são percepcionados como se de jóias raras e inesperadas ou tesouros sobreviventes, se tratasse. Mas o facto de “Mãe Carinhosa”, décimo segundo álbum de estúdio de Cesaria Evora, ter sido lançado um ano depois da sua morte, em breve será esquecido. Nele, a cantora cabo-verdiana traz-nos clássicos do repertório do arquipélago, assim como, novos temas - mornas comoventes e elegantes - espreitando a América Latina e a atmosfera intemporal dos piano-bar em todos os portos do mundo. “Mãe Carinhosa” é como um último mimo que Cesaria nos deixa, após uma carreira internacional algo milagrosa. Antes de Cesaria, tinha de se ser geógrafo, navegador ou cabo- verdiano, para saber onde ficava Cabo Verde,…o arquipélago em tempos colonizado por portugueses, algumas centenas de quilómetros ao largo do Senegal. Em 1986, Cesaria tinha 45 anos e ainda cantava por algumas notas amarrotadas nos bares do Mindelo em Cabo Verde. No ano seguinte, já em Lisboa, José da Silva, francês de origem cabo-verdiana, encontrou-a a cantar num restaurante cabo-verdiano da cidade e identificando de imediato as suas potencialidades, propôs-lhe ser seu produtor. Cesaria lentamente dominou o panorama musical do Ocidente. O seu primeiro feito foi o de conquistar o público francês. O grande avanço acontece em 1992, com “” e “Angola”, os dois "hits" do seu álbum “”. Agora a estrela de Cesaria estava em forte ascensão. Ela cantou por todo o mundo. A sua irresistível voz conquistou corações em toda a parte. Era o início de um conto de fadas único na história da música popular - que duraria quase 20 anos. Cesaria foi galardoada com prémios da Victoires de la Musique e da Légion d'Honneur, em França, e um Grammy Award® nos Estados Unidos. Os seus discos foram ouro em todo o mundo. Cesaria Evora viveu o incrível privilégio de ser mais famosa do que o nome de seu país natal. O Governo de Cabo Verde concedeu-lhe um passaporte diplomático e o seu rosto foi emitido em selos. Estrela? Anti-estrela? Pouco importa. Estava-lhe destinado o mundo. A aventura da diva dos pés descalços começa a fascinar. A crítica aclama-a como uma das melhores de sempre, ao lado de Billie Holiday, Edith Piaf e Umm Kulthum. A comparação da sua ascensão à de Bob Marley era inevitável - uma ilha desconhecida, e uma música a movimentar multidões tanto no Ocidente, como no Terceiro Mundo... Uma espécie de vingança dos povos, até então confinados às margens da história mundial... E o público, esse, foi tomado pela emoção, país a país e álbum após álbum. Agora, “Mãe Carinhosa” vem ampliar o encantamento e prolongar a magia. Não é realmente um álbum póstumo, pois foi gravado como todos os outros, com a mesma paixão e vontade. O que é do desconhecimento do público em geral, é que durante os cerca de 20 anos, que Cesaria Evora passou em tournées pelo mundo, vendendo mais de seis milhões de discos, foi sistematicamente gravando mais temas do que os necessários para cada novo álbum. Isto acontecia, por duas razões: Primeiro, a riqueza do material que lhe era proposto, quer se tratasse do repertório dos grandes autores da históra da música cabo-verdiana, ou de obras dos jovens compositores, por si inspirados. Depois, a singularidade dos álbuns de Cesaria: cada disco, uma viagem, com a sua própria atmosfera, coerência e cor. O desafio era proporcionar ao seu público, álbuns sublimes e perfeitos, que pudessem ser desfrutados repetidamente desde a primeira à última faixa. Isso significava que, a elaboração da lista de temas era um exercício subtil em proporção e equilíbrio, excluindo muitos dos temas que a cantora gravava, ou por não se enquadrarem na linha do disco, ou por parecer repetitivo para o mesmo álbum, ou por outra razão estratégica editorial. Sem deliberadamente acumular esse material, a equipa de Cesaria gradualmente reuniu um conjunto de temas que nunca tinham integrado qualquer um dos seus álbuns, muitos deles já totalmente orquestrados e misturados. Aquando do seu desaparecimento, em 17 de dezembro de 2011, ninguém inicialmente pensou em transformar, este tesouro escondido de temas não editados, num álbum. No entanto, a força do sentimento expresso em tributos à cantora (seis mil espectadores num evento especial no Festival Rio Loco em Toulouse e três datas com lotação esgotada no Cirque d'Hiver em Paris), reconfirmou o apreço e lealdade do seu público. José da Silva, seu produtor até ao fim, foi bombardeado com propostas que pretendiam preencher o vazio que o seu desaparecimento acabava de deixar: discos de covers, homenagens de prestígio… A ideia que então lhe pareceu mais justa, foi a de oferecer ao mundo um novo álbum da artista com temas nunca antes escutados. O exercício, foi o mesmo que para todos os outros álbuns de Cesaria: delinear uma viagem por uma dúzia de temas, que se harmonizassem perfeitamente no conjunto, isentos de qualquer similaridade e que levassem ao encontro da magia da sua voz, proporcionando grandes surpresas... O trabalho em “Mãe Carinhosa” não foi mais simples ou mais fácil do que a produção dos 11 álbuns de estúdio que o precederam. Houve apenas uma diferença: a própria cantora não mais estaria envolvida. O material não foi gravado no espaço de algumas semanas ou meses, como de costume, mas estendeu-se por diferentes sessões de gravação - desde “Cabo Verde” em 1997, até “” em 2005. Sendo que, parte das músicas foram inteiramente orquestradas e misturadas quando, no Verão passado, José da Silva começou a trabalhar no álbum. Ele não se deixa guiar senão pelo desejo de dar a Cize um novo disco, que a homenageie e de que ela fosse gostar. Inconscientemente, deu por si a reunir novamente as preferências de Cesaria, a sua guarda de honra de compositores. Muitos dos temas que escolheu são dos "veteranos", B.Leza (as soberbas mornas “Dor di Sodade” e “Talvez”), Manuel de Novas (o impressionante “Cmê Catchôrr”), Epifania Evora (a grande Tututa, uma das poucas mulheres a escrever mornas, incluindo “Sentimento”, o tema de abertura do álbum), Gregório Gonçalves e Frank Cavaquinho. Outros temas são da nova geração de músicos cabo-verdianos, que ganharam notoriedade ao serem cantados por Cesaria Evora: Teófilo Chantre, com o extremamente dançante “Mãe Carinhosa”, Jon Luz com o irónico “Emigue Ingrote” ("Juninha era jovem e fresca, tu estavas passando pela andropausa"), Nando da Cruz com “Esperança” (sobre o qual Manu Dibango tocou marimba) e “Tchon de França”… Esta frenética gravada em 2005, descreve a melancolia de um cabo- verdiano que ao ir viver para França, perde o seu "Mar Azul" - uma figura central em muitas das canções favoritas de Cesaria. A diva também se encantava com letras cáusticas, como a de “Quen Tem Ódio”, ajuste de contas entre dois grupos de carnaval no Mindelo dos anos 60. Assola-nos a impressão de sentir Cize deambulando pelos caminhos da sua memória, quando escutamos o tema “Dos Palavras”, bolero mexicano da sua juventude que cantava nos bares do Mindelo, trazendo lágrimas aos olhos dos marinheiros hispânicos. Cesaria amou todas estas músicas, que selecionou e interpretou com paixão. “Mãe Carinhosa” reflete o caráter da cantora: forte, comovente, denso, rico, eclético e leal.

DISCOGRAFIA OFICIAL “Studio” albums: 1988 « » (), album producer: José da Silva. 1990 « Distino di Belita » (Lusafrica), album producer: José da Silva & Ramiro Mendes. 1991 « Mar Azul » (Lusafrica), album producer: José da Silva. 1992 « Miss Perfumado » (Lusafrica), album producer: Paulino Vieira. 1995 « Cesaria (Lusafrica), album producer: Paulino Vieira. 1997 « Cabo Verde » (Lusafrica), album producer: José da Silva & Rufino Almeida (Bau). 1999 « Café Atlantico » (Lusafrica), album producer: José da Silva. 2001 « São Vicente di Longe » (Lusafrica), album producer: José da Silva. 2003 « Voz d’Amor (Lusafrica), album producer: José da Silva & Nando Andrade. 2006 « Rogamar » (Lusafrica), album producer: José da Silva & Nando Andrade. 2009 « » (Lusafrica), album producer: José da Silva & Nando Andrade. 2013 « Mãe Carinhosa » (Lusafrica), album producer: José da Silva. Album including tracks taken from the recording sessions made from 1997 (Cabo Verde) to 2006 (Rogamar).