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SECRETARIA DA COORDENAÇÃO E PLANEJAMENTO ISSN 0103-3905 FUNDAÇÃO DE ECONOMIA E ESTATÍSTICA Siegfried Emanuel Heuser Indicadores Econômicos

A revista Indicadores Econômicos FEE é uma publicação trimestral da Fundação de Economia e Estatística Siegfried Emanuel Heuser que divulga análises socioeconômicas de caráter conjuntural no âmbito das econo- mias gaúcha, nacional e internacional.

EDITOR Maria Heloisa Lenz

SECRETÁRIA EXECUTIVA Lilia Pereira Sá CONSELHO EDITORIAL CONSELHO DE REDAÇÃO Maria Heloisa Lenz Maria Heloisa Lenz Álvaro Antônio Louzada Garcia Adalberto Alves Maia Neto Maria Aparecida Grendene de Souza Maria Lucrécia Calandro Pedro Cezar Dutra Fonseca Martinho Roberto Lazzari Otília Beatriz K. Carrion Miriam De Toni Dercio Garcia Munhoz Teresinha da Silva Bello Leda Paulani Maurício Coutinho Luiz G. Belluzzo

Trimestral

Indic. Econ. FEE Porto Alegre v. 31 n. 3 p. 01-206 Nov. 2003 2

Indicadores Econômicos FEE está indexada em: Ulrich's International Periodicals Directory Índice Brasileiro de Bibliografia de Economia (IBBE) International Bibliography of The Social Sciences (IBSS) Citas Latinoamericanas en Ciencias Sociales y Humanidades (CLASE) Cambridge Science Abstracts (CSA) Hispanic American Periodicals Index (HAPI)

INDICADORES ECONÔMICOS FEE / Fundação de Economia e Estatística Siegfried Emanuel Heuser. — v. 16, n. 2 (1988)- . - Porto Alegre: FEE, 1988 - . - v.- Trimestral Continuação de: Indicadores Econômicos RS, v. 16, n. 2, 1988. Índices: 1973-1988 em v. 17, n. 1; 1973-1990 em v. 19, n. 1; 1973-1992 em v. 21, n. 4; 1992-1994 em v. 23, n. 3. ISSN 0103-3905 1. Economia - periódicos. 2. Estatística - periódicos. I. Fundação de Economia e Estatística Siegfried Emanuel Heuser. CDU 33(05) CDU 31(05)

Tiragem: 600 exemplares. Os artigos assinados são de exclusiva responsabilidade dos autores.

Toda correspondência para esta publicação deverá ser endereçada à: FUNDAÇÃO DE ECONOMIA E ESTATÍSTICA Siegfried Emanuel Heuser (FEE) Revista Indicadores Econômicos FEE - Secretaria Rua Duque de Caxias, 1691 - Porto Alegre, RS — CEP 90010-283 Fone: (51) 3216-9049 — Fax: (51) 3225-0006 E-mail: [email protected] www.fee.tche.br 3

Sumário

Transporte aéreo no Brasil: a crise da aviação comercial — Lauro Lobo Burle ...... 5

Complexidade produtiva e aprendizado na indústria eletrônica, na fronteira norte do México — Maria del Rosio Barajas E. e Carmen Rodríguez Carrillo ...... 19

Concentração de renda dos ocupados nas regiões metropolitanas: a influência da escolaridade — Jéferson Daniel de Matos ...... 47

Comércio bilateral Brasil-Estados Unidos: uma qualificação das pautas de exportação e importação — Carlos Américo Leite Moreira e Maria Cristina Pereira de Melo ...... 71

O cenário regional gaúcho nos anos 90: convergência ou mais desi- gualdade? — José Antonio Fialho Alonso ...... 97

Infra-estrutura de transporte e potencialidade agrícola do Brasil — Juan Vicente Jose Algorta Plá e Salimar Salib ...... 119

A modernização do Estado gaúcho: qual é a agenda? — Jorge Blascoviscki Vieira ...... 135

Autonomia em tempos de guerra — Enéas de Souza ...... 155

Fracasso em Cancun? — Teresinha da Silva Bello ...... 173

Ônibus: um segmento industrial em expansão — Maria Lucrécia Ca- landro e Silvia Horst Campos ...... 189 4 5 Transporte aéreo no Brasil: a crise da aviação comercial

Lauro Lobo Burle* Economista com Mestrado pela Universidade de Brasília (UnB), Professor licenciado de Economia Brasileira do Centro de Ensino Unificado de Brasília (CEUB) e ex-Assessor Econômico da Confederação Nacional dos Trabalhadores nas Empresas de Crédito (Contec) no ano do Plano Collor (1990).

Resumo O artigo analisa os principais aspectos econômicos e atuais do transporte aéreo no Brasil, destacando a crise recente da aviação comercial, incluindo-se nesta as aviações regional, econômica e executiva, os impactos da crise sobre os segmentos de manutenção de aeronaves e de carga aérea e sobre o sistema aeroportuário brasileiro. O artigo conclui que a fusão da TAM com a é um passo essencial para a reestruturação da aviação comercial brasileira.

Palavras-chave Crise da aviação comercial; aeroportos; transporte aéreo.

Abstract This article analyzes the main economical and current aspects of air , pointing out the recent commercial aviation crisis, the regional, economical and executive aviation, the crisis impacts on aircrafts maintenance and air cargo segments, the Brazilian airport system and the crisis impacts on the Brazilian airports. The article concludes that the coalition of TAM and Varig is an essential step for restructuring the Brazilian commercial aviation.

* O autor agradece os comentários dos dois pareceristas anônimos desta Revista e aos revi- sores do Centro de Editoração, isentando-os de erros e omissões porventura remanescen- tes.

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 5-18, nov. 2003 6 Lauro Lobo Burle

Os originais deste artigo foram recebidos por esta Editoria em 30.06.03.

1 - Introdução

O transporte aéreo é um tema de particular interesse do autor, que vem acompanhando diariamente o assunto através da leitura de jornais e revistas especializadas. O que se pretende nesta oportunidade é trazer para uma revista acadêmica e bem-conceituada — como a Indicadores Econômicos FEE — um artigo que não tem a pretensão de ser muito elaborado em termos teóricos, mas que incorpora a experiência do autor no assunto, que é pouco estudado, embora bastante divulgado pela mídia na atualidade. Cabe destacar que o transporte aéreo faz parte do Setor Terciário da eco- nomia de um país, ou seja, é um setor de serviços, de acordo com as Contas Nacionais. O setor de transporte aéreo envolve todas as atividades que, de uma forma ou de outra, têm a função de propiciar o transporte de passageiros e de carga por meio de avião. Tais atividades envolvem os serviços de tripulantes e comissários, de manutenção e revisão de aeronaves e peças, de venda de pas- sagens e apoio aos passageiros e à carga nos aeroportos e em agências de passagens, de administração e operação de aeroportos, de apoio aos aviões nos aeroportos, de auxílio à navegação aérea, de abastecimento de combustí- vel, os investimentos em aeroportos, dentre outras atividades. A aviação comercial é a base do transporte aéreo moderno e, dentro dela, encontra-se a aviação comercial de grande porte (ou simplesmente aviação comercial), que será tratada de forma destacada neste trabalho. Ao se falar na aviação comercial de grande porte, que, no caso do Brasil, inclui TAM, Varig, Gol, Vasp e, às vezes, a inoperante , é indispensável tratar-se da crise que a atinge atualmente (que se estende também às aviações regional, de vôos econômicos e executiva), procurando-se as possíveis soluções para a mesma. Assim, aqui se usa a expressão “aviação comercial” para representar a aviação comercial de grande porte, conforme definido acima. Ademais, enquanto as aviações regional e de vôos econômicos (ou vôos fretados) são segmentos da aviação comercial, no conceito mais geral, a aviação executiva não o é. A avia- ção civil é uma definição mais ampla, pois inclui a aviação comercial e a aviação executiva. Neste trabalho, não se considera a aviação militar. Assim sendo, fazem parte da aviação comercial, no conceito amplo, as quatro grandes empre- sas aéreas (TAM, Varig, Gol e Vasp), as empresas aéreas regionais, as empre- sas aéreas cargueiras e as empresas aéreas de vôos econômicos, conforme se

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 5-18, nov. 2003 Transporte aéreo no Brasil: a crise da aviação comercial 7 verá em mais detalhes adiante. Os serviços de manutenção de aeronaves consi- derados são os prestados principalmente para a aviação comercial (Varig e TAM), embora se faça menção, também, a esses serviços para a aviação executiva (caso da TAM Jatos Executivos). Em síntese, o transporte aéreo é essencial para o desenvolvimento e a integração nacional de um país de extensão continental como o Brasil. Este artigo não pretende esgotar o tema, mas, sim, contribuir para o entendimento do mesmo, com ênfase nos aspectos atuais e econômicos do setor no País. Após esta introdução, apresentam-se algumas considerações a respeito da crise da aviação comercial mundial e no Brasil (seção 2), uma análise das aviações regional, de vôos econômicos e executiva no País (seção 3), o setor de manu- tenção de aeronaves (seção 4), o setor de carga aérea (seção 5), o sistema aeroportuário brasileiro e os impactos da crise sobre os aeroportos (seção 6), a fusão da Varig com a TAM como solução para a crise da aviação comercial brasileira (seção 7) e as considerações finais (seção 8).

2 - A crise da aviação comercial

A aviação comercial, em todo mundo, está passando por uma profunda crise, agravada pelos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, pela Guerra do Iraque em 2003 e, mais recentemente, pela pneumonia asiática (EN- VOLVIDAS..., 2003). Nos Estados Unidos, com a desregulamentação do setor iniciada em 1978 (e que terminou em 1990) e a Guerra do Golfo em 1991, muitas empresas faliram, destacando-se a Pan Am em 1991. No Brasil, as raízes da crise são, principalmente, a desregulamentação em 1992 (Alonso, 2003), que permitiu que Transbrasil, Vasp e TAM (esta um pouco depois) operassem vôos para os Estados Unidos (ao lado da Varig), o que, em contrapartida, fez com que quatro empresas norte-americanas (American, United, Continental e Delta) pas- sassem a operar vôos para o Brasil, estabelecendo uma competição desigual para as brasileiras, conforme se verá adiante. Na verdade, o setor de aviação comercial vive uma crise estrutural, ou seja, há um excesso de oferta permanen- te, e a taxa de retorno tem se apresentado bastante baixa. No Brasil, três gran- des empresas (Varig, TAM e Vasp) apresentaram um prejuízo total de R$ 3,3 bilhões no período jan.-set./02, sendo de R$ 2,5 bilhões para a Varig, R$ 600 milhões para a TAM e R$ 200 milhões para a Vasp. A Gol apresentou um peque- no prejuízo nesse período, mas os dados de dezembro já acusaram um pequeno lucro (Corrêa, 2003a). A tendência nos Estados Unidos tem sido (na Europa também já começa a ser) a incorporação das empresas menores pelas maiores, a fusão de pequenas

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 5-18, nov. 2003 8 Lauro Lobo Burle empresas, com o objetivo de formar empresas fortes, ou o crescimento das empresas de baixo custo, baixo preço (tal como a Gol no Brasil). Uma das razões para a crise da aviação comercial mundial seria a resistência dos gover- nos de certos países em aceitar essa tendência para a fusão e a unificação, defendendo, pelo contrário, empresas aéreas estatais e ineficientes e que distorcem o mercado como um todo. No Brasil, dentre as medidas adotadas para se debelar a crise, destaca-se a Portaria nº 243, de março de 2003, do Ministério da Defesa, que estabeleceu a redução do número de vôos nas linhas em que há excesso de oferta, passou a exigir das empresas um plano de racionalização das linhas aéreas e proibiu a importação de mais aviões (Adachi, 2003; Manera; Satomi, 2003). Essas medi- das teriam a duração necessária para a conclusão da reestruturação da aviação comercial brasileira, com destaque para a fusão da TAM com a Varig. O Ministério da Defesa, o Departamento de Aviação Civil (DAC), o BNDES, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) do Ministério da Justi- ça, o Ministério do Desenvolvimento, dentre outros órgãos, empenham-se para uma solução definitiva para a crise da aviação comercial brasileira, e a fusão da TAM com a Varig é vista como passo essencial para esse processo. A Varig propicia mais de US$ 1 bilhão anuais para o País, com a venda de passagens dos seus vôos internacionais (Ferrari, 2003). Apesar de esse mon- tante ser expressivo, ele poderia ser maior, considerando-se que a Varig e a TAM (esta tem poucos vôos internacionais) transportam apenas 40% dos passagei- ros internacionais que tenham o Brasil como destino ou origem. Isto é, as em- presas aéreas estrangeiras ficam com os 60% restantes desse mercado (Burle, 2003). Na linha Brasil—Estados Unidos, o predomínio das empresas estrangei- ras é ainda maior. Para a Varig e a TAM, não será uma tarefa fácil aumentar a participação nos vôos internacionais, visto que sua carga de impostos é maior e seus custos de leasing e de combustível, além de serem maiores do que o das empresas estrangeiras, são pressionados pelas constantes desvalorizações do real. Para a Varig, por exemplo, 60% das receitas originam-se nos vôos interna- cionais (receitas em dólar), o que evidencia a importância desses vôos para o faturamento de uma empresa aérea. Além disso, do total de custos de uma empresa aérea no Brasil, 35% são imposto (16% na Europa e 7,5% nos Esta- dos Unidos), 20% são mão-de-obra, 25% são combustível, 15% são despesa de leasing, e 5% são outros custos. Por fim, o tamanho do mercado das empresas brasileiras é muito menor do que o das empresas norte-americanas, o que expli- ca o porquê de estas últimas praticarem passagens mais baratas e, assim, ganharem a concorrência com as brasileiras. Por outro lado, a legislação brasileira não permite que uma empresa tenha mais do que 45% do mercado doméstico (pelos dados de maio de 2003, Varig

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 5-18, nov. 2003 Transporte aéreo no Brasil: a crise da aviação comercial 9 e TAM tiveram 66% desse mercado; Gol, quase 20%; Vasp, 12%; e as regionais e as empresas de vôos econômicos, cerca de 2%). No entanto, isso deverá ser flexibilizado pelo CADE, pois se trata de uma situação de emergência para se salvar a aviação comercial brasileira de um colapso. No passado, já ocorreram situações similares, em que uma empresa alcançou mais de 45% do mercado doméstico, como nos casos das incorporações da Panair e da Cruzeiro do Sul pela Varig. Os aviões Airbus A-319 e A-320 da TAM são dos mais modernos, tecnologicamente falando. O problema é que esses aviões exigem uma taxa de ocupação um pouco alta para o lucro, o que faz com que a TAM utilize mais esses aviões nas principais linhas domésticas de alta movimentação de passa- geiros. Para as linhas de menor movimento do Norte, Nordeste e Sul, a empresa ainda utiliza o Fokker 100 — apesar dos incidentes com esse avião —, o qual é bastante econômico. A TAM deverá continuar a receber novos Airbus — tão logo se conclua a fusão dela com a Varig —, assim como a substituir os F-100 pelos jatos fabricados pela nossa Embraer a partir de 2004. No caso da Varig, o principal tipo de avião utilizado nas linhas domésticas é o Boeing 737-300, o qual, apesar de um pouco ultrapassado, ainda atende satisfatoriamente a essas linhas e a algumas linhas da América do Sul. A Varig é a única empresa brasileira que opera o jato regional Embraer 145 para 50 passageiros nas linhas de menor demanda. Uma das vantagens desses aviões (como também dos da TAM) é que os mesmos são mais silenciosos do que os jatos mais antigos, tais como os do tipo B737-200 (estes ainda usados pela Vasp) e B727-100. Com a Gol, mais brasileiros passaram a viajar de avião, o que foi importan- te para a aviação comercial brasileira. A filosofia dessa empresa (baixo custo, baixo preço) é a cobrança de preços mais baixos, pois sua estrutura de custos é mais enxuta (os serviços de bordo e de atendimento ao passageiro são mais simples) do que a das demais empresas. Além disso, seus aviões (B737-700 e B737-800) são dos mais modernos e econômicos existentes no mercado. Recentemente, a seguradora norte-americana AIG comprou 20% das ações da empresa (a legislação brasileira só permite um máximo de 20% de capital es- trangeiro nas empresas aéreas nacionais), o que será importante para os inves- timentos futuros da Gol, incluindo a ampliação da frota (após a conclusão da fusão da TAM com a Varig) e a construção de um hangar próprio no aeroporto de Viracopos, em Campinas. A razão principal do crescimento da Gol, entretanto, está em que o Gover- no (DAC) permitiu que ela operasse nas rotas onde existia maior movimento, nos principais centros, competindo com as empresas regulares sem ter as mes- mas obrigações. Além disso, a Gol não precisou investir em treinamento de

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 5-18, nov. 2003 10 Lauro Lobo Burle pessoal, pois o mercado estava com oferta abundante de mão-de-obra qualifica- da (da Vasp e da Transbrasil). Por fim, a Gol não tinha uma imensa dívida (porque é nova) e, por isso, opera com custos menores. Por sua vez, a Transbrasil poderá voltar a operar em outubro de 2003, não se sabendo, ainda, se somente com carga ou com passageiro também. No caso da Vasp, após um esforço para enxugar custos e racionalizar a frota em 2000, inclusive com o fim dos vôos internacionais (Burle, 2000, p. 184-185), essa empresa está prometendo, para novembro deste ano (mês dos seus 70 anos), a sua entrada, finalmente, no mercado regional (pode ser com os aviões da Embraer ou com os aviões da Airbus) e a sua volta para os vôos internacionais de passageiros. Varig, Vasp e Transbrasil têm elevadas dívidas com a Empresa Brasileira de Infra-Estrutura Aeroportuária (Infraero) — taxas aeroportuárias, taxa de em- barque, etc. —, com a Petrobrás Distribuidora (combustível), com a Previdência Social (INSS), dentre outras. Além disso, Varig e Transbrasil têm dívidas exter- nas das despesas de leasing das aeronaves, visto que seus aviões são (eram, no caso da Transbrasil) alugados. A Vasp não tem dívidas de leasing, pois seus aviões são próprios.

3 - As aviações regional, econômica e executiva

Com as dificuldades das grandes empresas aéreas nacionais, muitas rotas menos movimentadas estão sendo suprimidas, o que abre espaço para as pequenas empresas aéreas regionais, como a Trip, a Total, a Rico, a Meta, a Tavaj, a , a Air Minas, a Cruiser, Ocean Air, a Sete, etc. (Vargas, 2003). Cabe destacar que, segundo a Associação Brasileira do Transporte Aéreo Regional, as empresas regionais transportam 720 mil passageiros por ano, e as suas principais reivindicações seriam a criação da agência nacional reguladora do setor — Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC) —, a qual se encarregaria da redução da carga tributária sobre o combustível, da criação das linhas de financiamento e da suplementação tarifária (1% sobre o valor das passagens das grandes linhas domésticas subsidiaria as linhas regionais de menor movi- mento e do interior do País). As empresas de vôos regionais ligam pequenas cidades do Interior dos estados com as respectivas capitais e utilizam aviões de pequeno porte, que podem ter de 10 a 50 lugares. Até recentemente, a Rio-Sul e a TAM realizavam os Vôos Diretos aos Centros (VDCs) como alternativa aos aeroportos melhor aparelhados e mais distantes dos centros urbanos (casos de Guarulhos, Galeão e Confins). Assim, as ligações entre os aeroportos de Congonhas, Santos Dumont,

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Pampulha, bem como de Brasília e Curitiba, eram considerados vôos regionais (exceto a ponte aérea Rio—São Paulo). Atualmente, os vôos regionais abrangem rotas de menor movimento do Interior, conforme visto antes, e que não se compensam em termos de custos para as grandes empresas cobrirem. Por outro lado, existe uma tendência de redução do número de cidades atendidas por vôos regulares no Brasil (atualmente, esse número é de cerca de 150 cidades), e isso, de fato, está ocorrendo. O aumento da produção e da utilização dos ônibus rodoviários contribuiu, em par- te, para que isso acontecesse. O papel da política de aviação regional é justa- mente estabelecer condições para que mais cidades sejam atendidas pelo trans- porte aéreo regular. Por outro lado, tem-se o segmento de vôos econômicos (vôos fretados ou vôos charteres) formado por BRA (sócia da Rotatur, a qual pertence à Varig), TAM Viagens, Fly, Team, ATA e Gensa. A rigor, a Gol é uma empresa de vôo econômico, no entanto, neste trabalho, esta é considerada dentro da aviação comercial vista anteriormente, porque ela faz bastante vôos regulares e diários com grandes jatos. Além dos preços das passagens mais baixos e do serviço de bordo simplificado, essas empresas vendem passagens acompanhadas de pacotes (hotel, estadia mínima, etc.). Além do caso da Gol, a TAM realiza vôos fretados com seus aviões Fokker e Airbus nos fins de semana, quando os mesmos ficam ociosos. Basicamente, a TAM faz vôos fretados entre a Cidade de São Paulo, interior desse estado, Brasília, Rio, Belo Horizonte e as principais cidades turísticas nordestinas, tais como Porto Seguro, Salvador, Maceió, Fortaleza e Natal. Por sua vez, de acordo com a Associação Brasileira de Aviação Geral (ABAG), a aviação executiva brasileira possuía, em maio de 2003, uma frota de 300 aviões a jato, 650 aviões turboélices e 600 helicópteros à turbina, ou seja, a frota brasileira de aviões executivos (ou táxi aéreo) é somente superada pela dos Estados Unidos (Manera, 2003). As empresas de táxi aéreo faturam cerca de R$ 900 milhões por ano, o que evidencia a importância desse segmento da aviação civil brasileira. Dentre as empresas de táxi aéreo, destacam-se a Líder Táxi Aéreo (de Belo Horizonte) e a TAM Jatos Executivos (de São Paulo). Tal como com a aviação comercial, a aviação geral (ou executiva) defronta-se com o alto custo das despesas em dólar, representada pelo leasing de aeronaves importadas, compras de peças e de combustível, etc. Existe uma competição desigual da aviação geral (esta sempre perde) com a aviação comercial na disputa dos espa- ços de tempo (slots) para as decolagens e os pousos nos aeroportos centrais, tais como os do Santos Dumont, no Rio, e, principalmente, os do Congonhas, em São Paulo. A saída para a aviação executiva está na construção de mais

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 5-18, nov. 2003 12 Lauro Lobo Burle aeroportos específicos para esse segmento da aviação civil. Nos Estados Unidos, por exemplo, o número de aeroportos especializados na aviação executiva é bastante elevado.

4 - O segmento de manutenção de aeronaves

Com relação à manutenção e ao reparo de aeronaves comerciais, tem-se a Varig Engenharia e Manutenção (VEM), que faturou R$ 415 milhões em 2002, sendo 34% dos serviços prestados para terceiros, inclusive para empresas estrangeiras (Corrêa, 2003). A VEM possui grandes instalações industriais e de manutenção nos aeroportos Galeão (o maior hangar da América Latina, utili- zado para a manutenção dos grandes jatos Boeing 767-300 e MD-11, usados nos vôos internacionais), de Porto Alegre (três hangares, onde são feitas as revisões completas dos Boeing 737, usados nos vôos domésticos), Congonhas e Santos Dumont. Por sua vez, a TAM está investindo no Centro Tecnológico de São Carlos, onde já são feitas as manutenções completas dos aviões Airbus-319 e 320 e, no futuro, também dos Airbus-330, estes utilizados nas linhas internacionais. A TAM ainda tem hangares para manutenção de aviões comerciais em Congonhas, sem contar os hangares para manutenção de aviões executivos em diversos aeroportos, dentre os quais o de Brasília. Têm-se, ainda, as instalações da Vasp no aeroporto de Congonhas (dois hangares) e toda a estrutura de manutenção da Varig, da Vasp e da TAM existente nos diversos aeroportos brasileiros. A oficina de manutenção de turbinas da Celma (comprada pela General Eletric no processo de privatização da empresa), em Petrópolis, é a maior do gênero da América do Sul. Têm-se, ainda, as instalações de revisões de turbi- nas da Rolls Royce, em São Bernardo do Campo-SP, que presta serviços de manutenção das turbinas dos jatos da Embraer (Embraer-145), dentre outros serviços e empresas. Em síntese, os serviços de manutenção de aeronaves e turbinas proporcionam divisas para o País (pois são prestados, em parte, para companhias aéreas estrangeiras), apesar de estarem em retração, como reflexo da crise da aviação comercial em geral.

5 - O segmento de carga aérea

A crise da aviação comercial parece não estar se refletindo na carga aérea, ou seja, ela se restringe ao segmento de passageiros, o qual, entretanto, está

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 5-18, nov. 2003 Transporte aéreo no Brasil: a crise da aviação comercial 13 perdendo importância em termos de participação na receita das empresas (na Varig, por exemplo, a carga já representa 20% do faturamento total). Em 2003, o volume de carga aérea vem aumentando no Brasil, especial- mente as exportações, por causa da desvalorização do real. Conforme os dados do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (MDIC), as importações por via aérea passaram de 22,4% do valor total das importações brasileiras em 1992 para 28,9% em 2000 (Estrella, 2002, p. 29), o que demonstra que o trans- porte aéreo está assumindo importância crescente para o transporte de produ- tos de alto valor agregado, e isso é uma tendência mundial. Mais recentemente, com a desvalorização do real frente ao dólar, as exportações por via aérea tam- bém estão aumentando, destacando-se os aeroportos do Galeão e, especial- mente, de Viracopos, em Campinas. A carga doméstica também está em franco crescimento em 2003 (Luna, 2003). Na Vaspex (subsidiária da Vasp para carga), o crescimento da carga movimentada nos quatro primeiros meses deste ano foi de 34,5% em relação a igual período de 2002. A Transbrasil poderá voltar a operar em outubro deste ano, focando-se no transporte de carga. A VarigLog (subsidiária da Varig para carga) deverá lucrar entre R$ 35 milhões e R$ 40 milhões neste ano, além de faturar nada menos do que R$ 1,3 bilhão. Essa empresa transporta carga em aviões especificamente cargueiros e nos porões dos aviões de passageiros, inclusive nos vôos internacionais. Conforme a Infraero, em 2002, as receitas com armazenagem e capatazia aumentaram 39,2% em relação a 2001. Em 2002, foram transportadas 1,253 milhão de toneladas de carga aérea no Brasil, sendo que 546 mil toneladas foram de exportação. A carga aérea, em 2002, gerou US$ 1,3 bilhão em fretes para as empresas nacionais, e a previsão é que se atinjam US$ 2 bilhões em 2003. Há importantes empresas aéreas cargueiras, tais como a Absa (que faz vôos internacionais inclusive), a Skymaster, a Beta e a Total. Esta última se destaca no transporte de malotes pela Rede Postal Noturna dos Correios, além de ser uma empresa regional de passageiros, conforme visto antes. A Brasmex é a mais nova empresa aérea cargueira, já atua na rota São Paulo-Manaus (a principal linha cargueira do País) e começará a fazer vôos internacionais para a Europa em junho de 2003. Em síntese, as perspectivas da carga aérea no Brasil são favoráveis, valendo acrescentar que a Vasp e, especialmente, a Varig se destacam por terem terminais de carga próprios em vários aeroportos brasileiros.

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 5-18, nov. 2003 14 Lauro Lobo Burle

6 - O sistema aeroportuário brasileiro

Com relação ao sistema aeroportuário brasileiro, a Empresa Brasilei- ra de Infra-Estrutura Aeroportuária administra os 65 principais aeroportos bra- sileiros e 83 estações de apoio à navegação aérea, agrupados em sete superin- tendências regionais, com sede nos Aeroportos Internacionais de Belém, Brasília, Manaus, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo (INFRAERO, 2003). A Infraero tem que ser estatal, pois, dentre outros motivos, investe em aeropor- tos deficitários e de menor movimento do Interior, o que dificilmente seria feito por uma empresa privada. Os aeroportos do Interior têm uma importância estra- tégica para o desenvolvimento regional e a integração nacional. Em 2002, as receitas operacionais da Infraero foram de R$ 1.459,7 milhões, sendo 53,6% de receitas comerciais e 46,4% de receitas aeronáuti- cas. Dentre as receitas comerciais, têm-se as de armazenagem e capatazia (ligadas à carga aérea) e as de concessão de áreas aeroportuárias (áreas para lojas e hangares). Por sua vez, dentre as receitas aeronáuticas, há as receitas de embarque de passageiros (taxa de embarque), pouso, permanência e comu- nicação e auxílio à navegação aérea. Os aeroportos administrados pela Infraero concentram 97% do movimento do transporte aéreo regular no Brasil, equivalen- do a dois milhões de pousos e decolagens anuais, 75 milhões de passagei- ros embarcados e desembarcados e 1,2 milhão de toneladas de carga movimentada. A Infraero adota uma taxa de embarque menor para os aeroportos de Guarulhos, Galeão e Confins, visando incentivar tais aeroportos melhor apare- lhados e maiores do que os aeroportos centrais e congestionados de Congonhas (São Paulo), Santos Dumont (Rio) e Pampulha (Belo Horizonte). Além disso, a recente redução de vôos decidida pela TAM e pela Varig, visando ao compartilhamento de vôos e à racionalização da oferta de assentos, ajudou a desafogar o tráfego nesses aeroportos centrais. A Infraero está fazendo investimentos nos aeroportos centrais, tais como a construção de um novo terminal com oito pontes de embarque e um edifício-garagem em Congonhas (passou a ser o mais movimentado em 2002, com 12,2 milhões de passageiros embarcados e desembarcados); um novo ter- minal com nove pontes de embarque e edifício-garagem no Santos Dumont; e a ampliação do terminal de passageiros no Pampulha. Além disso, o aeroporto de Guarulhos (o segundo mais movimentado, com 11,8 milhões de passageiros) deverá ganhar o terceiro terminal e a terceira pista, assim como o de Brasília (6,5 milhões de passageiros em 2002) estará ganhan- do a ampliação do terminal e uma segunda pista, esta prevista para o final de 2004. Por fim, tem-se o programa do aeroporto-indústria, que visa estimular a

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 5-18, nov. 2003 Transporte aéreo no Brasil: a crise da aviação comercial 15 exportação por via aérea de produtos manufaturados produzidos nas áreas dos aeroportos, tais como os de Confins (beneficiamento de gemas e pedras precio- sas), Galeão (equipamentos eletrônicos) e Petrolina (beneficiamento de frutas). Com o agravamento da crise da aviação comercial brasileira a partir de 2001, em 2002 notou-se uma maior concentração do movimento nos aeroportos centrais, enquanto, em 2003, essa concentração vem se esgotando, isto é, todos os aeroportos estão apresentando redução do movimento de passageiros e de vôos, inclusive os aeroportos centrais, o que é explicado, em grande parte, pela retração da atividade econômica no País. Para ilustrar isso, no período jan.-abr. deste ano em relação a igual período de 2002, o número de pousos e decolagens reduziu-se 17,8% no Santos Dumont, 14,8% em Guarulhos, 13,1% em Congonhas e 1,9% em Brasília, dentre outros casos (Rutkowski, 2003b).

7 - Saídas para a crise: a fusão Varig-TAM

A fusão da TAM com a Varig, como anteriormente citado, visa ao aumento da produtividade operacional dessas empresas através do corte de pessoal, da devolução de aviões e do aumento da taxa de ocupação dos assentos para um patamar que propicie lucro, ou seja, 65% para os vôos domésticos e 75% para os vôos internacionais. Em maio de 2003, por exemplo, a taxa de ocupação média dos vôos domésticos estava em 55%, o que ainda estaria refletindo uma situação de prejuízo das principais empresas aéreas brasileiras (Burle, 2003a). O BNDES injetará cerca de US$ 1 bilhão na nova empresa em dois anos e, em troca, receberá debêntures, que poderão ser vendidas a terceiros (Rutkowski, 2003). Após dois anos, se o BNDES não tiver conseguido revender as debêntu- res, poderá resgatá-las ou convertê-las em ações, hipótese em que, possivel- mente, assumirá o controle da nova empresa. Está previsto que, ao final de dois anos, os credores estrangeiros ficarão com 20% do capital; os credores nacio- nais, com 40%; a TAM, com 35%; e a Varig, com 5% do capital da nova empre- sa, sendo que as subsidiárias de carga da Varig (VarigLog) e de manutenção (Varig Engenharia e Manutenção) deverão ficar de fora da fusão, ou seja, perma- necerão sob o controle da Fundação Rubem Berta (FRB), que é a atual proprie- tária da Varig. Os planos de milhagens da TAM e da Varig serão unificados, apesar dos sistemas diferenciados de cálculo — a TAM faz a contagem em pontos; a Varig, em milhas — (Rutkowski, 2003a). Há dúvidas sobre como será a conversão dos dois padrões. Por outro lado, benefício da fusão seria o de evitar que as duas maiores empresas brasileiras de aviação quebrem, levando o transporte aéreo doméstico ao colapso; além disso, impedir que, em um quadro caótico, o Brasil

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 5-18, nov. 2003 16 Lauro Lobo Burle seja obrigado a adotar uma política de céus abertos, permitindo a atuação de companhias estrangeiras no mercado interno. Por fim, a fusão permitiria a redução dos gastos operacionais (especialmente arrendamento de aviões e combustível), o que poderia levar à queda dos preços das passagens para os passageiros. Vale acrescentar que a Associação dos Pilotos da Varig (Apvar), através de seu Plano de Reestruturação Ampliado (PRA), é favorável à fusão e propõe, adicionalmente, a conversão do passivo trabalhista da Varig (de R$ 700 milhões), além da dívida com o fundo de pensão Aerus (R$ 1,8 bilhão), em participação no capital social da nova empresa a ser formada (Adachi, 2003b). Essa proposta recebeu o sinal verde do BNDES e deve ainda ser melhor negociada, inclusive no que diz respeito aos créditos do Aerus, que, de fato, poderiam ser convertidos. Por outro lado, existe uma proposta dos que são contra a fusão, que con- siste num encontro de contas com o Governo, visto que a Varig tem créditos a receber (pendências jurídicas) de R$ 4,5 bilhões, sendo R$ 3 bilhões de perda de receita com o controle dos preços das passagens dos planos de estabiliza- ção do período 1987-91 e R$ 1,5 bilhão de ICMS pago indevidamente para os estados. No entanto, essa proposta não será aceita face à necessidade do ajuste fiscal do Governo. A Varig acusou um patrimônio líquido negativo de R$ 4,5 bilhões em dezembro de 2002 (Adachi, 2003a) e, assim, não tem como sobreviver sem a ajuda do BNDES, ajuda que só se concretiza com a fusão com a TAM, conforme visto antes.

8 - Considerações finais

Um dos principais objetivos deste artigo foi fazer uma avaliação atual do setor de transporte aéreo no Brasil, com destaque para as razões, as conse- qüências e as possíveis soluções para a crise da aviação comercial brasileira que vem atingindo fortemente o setor, evidenciada na redução do número de passageiros transportados por avião em 2003. Os aeroportos brasileiros, inclusi- ve os aeroportos centrais, já estão acusando, neste ano, redução da movimenta- ção de passageiros e de vôos, conforme se viu neste trabalho. No entanto, com relação à carga aérea, constatou-se que esse segmento da aviação comercial está apresentando crescimento no volume transportado e no faturamento para certas empresas, mesmo com a crise. Em síntese, este artigo procurou contribuir para o debate sobre a reestruturação da aviação comercial no Brasil, e a fusão da TAM com a Varig foi defendida como passo crucial para esse processo. Se concretizada a fusão TAM-Varig, nascerá uma grande empresa aérea, com uma frota de cerca de 150

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 5-18, nov. 2003 Transporte aéreo no Brasil: a crise da aviação comercial 17 jatos comerciais e um faturamento anual de R$ 9,5 bilhões, capaz de represen- tar o Brasil, em termos competitivos, no mundo globalizado da aviação. Ade- mais, espera-se a redução das taxas de juros para se propiciar a retomada do crescimento, o que se refletirá no aumento da demanda de passageiros e, assim, na volta dos investimentos das empresas aéreas na renovação da frota, inclusive, em parte, com os aviões fabricados pela Embraer. Afinal, o Brasil tem um dos setores de transporte aéreo que mais se desenvolveu nos últimos 30 anos e que ainda tem um largo potencial de crescimento.

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Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 5-18, nov. 2003 Complexidade produtiva e aprendizado na indústria eletrônica, na fronteira norte do México 19 Complexidade produtiva e aprendizado na indústria eletrônica, na fronteira norte do México*

Maria del Rosio Barajas E.** Doutora em Ciências Sociais. Pesquisadora e Professora do Colegio de la Frontera Norte de Tijuana, B. C., México. Carmen Rodríguez Carrillo** Mestre em Assuntos Internacionais da Faculdade de Economia (UABC) de Tijuana, México.

Resumo O objetivo, neste documento, é analisar-se o grau de complexidade produtiva e organizacional do setor eletrônico da "maquiladora" de exportação em três cida- des da fronteira norte do México: Tijuana, Mexicali e Ciudad Juárez. Procura-se determinar qual a correlação existente entre essa complexidade e o desenvolvi- mento de capacidades de aprendizado tecnológico e organizacional das plantas "maquiladoras" eletrônicas e de que maneira se expressa essa complexidade na sua capacidade inovadora, na sua relação entre as capacidades produtiva e de inovação com a mudança técnica nas empresas eletrônicas, nessas três cida- des fronteiriças do norte do México.

Palavras-chave Aprendizado tecnológico; capacidade produtiva de inovação organizacional e tecnológica; maquiladoras.

* Este documento deriva do projeto de pesquisa Aprendizado Tecnológico e Escalada Industrial: Perspectivas para a Formação de Capacidades de Inovação na Maquiladora do México, financiado por Conacyt nº 36947-s, coordenado pelo Dr. Jorge Carrillo de El COLEF, pelo Dr. Arturo Lara da UAM, Xochimilco, e pela Dra. Mônica Casalet da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais do México (Flacso). ** As autoras agradecem ao Mestre Leonel González pelos comentários e à Irasema Osuna pela assistência técnica.

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 19-46, nov. 2003 20 Maria Del Rosio Barajas E.; Carmen Rodríguez Carrillo

Abstract The objective of this document is to analyze the level of production and organizational complexity of the electronics industry in the maquiladora plants in three cities of the northern border of México (Tijuana, Mexicali and Ciudad Juárez). We are trying to determine the level of correlation between the production, organizational and technological complexity and the development of the technological and organizational capacities of the electronic firms. We analyze how that complexity is expressed in the innovative capacity of the firms, as well as in the relationship between the production and innovative capacities and the technical change in the electronic firms of the three cities of the northern border of México.

Os originais deste artigo foram recebidos por esta Editoria em 29.09.03.

Introdução

O aspecto central abordado neste trabalho é o grau de complexidade pro- dutiva e organizacional alcançada pelo setor eletrônico da maquiladora de expor- tação em três cidades da fronteira norte do México: Tijuana, Mexicali e Ciudad Juárez. Tenta-se correlacionar esse nível de complexidade com a capacidade de aprendizado organizacional e tecnológico dessas plantas industriais, por isso, é também um estudo comparativo das estruturas produtivas e organizacionais dessas plantas nas três cidades mencionadas. O estudo centraliza-se em analisar e determinar a importância e os limites da complexidade dessas estru- turas e as diferenças que elas apresentam em cada cidade. De modo particular, analisa-se de que maneira se expressa essa complexidade na capacidade inovadora das plantas eletrônicas, como se relaciona o vínculo que existe entre as capacidades produtivas e as de inovação e qual o papel das capacidades organizacionais e tecnológicas com a mudança técnica das empresas. Na fronteira norte, a existência de plantas industriais com maior complexi- dade produtiva e organizacional favorece os processos de aprendizado mais sistemáticos e de maior conteúdo, apesar de que o modelo de desenvolvimento industrial no qual se inscreve a maquiladora não propicia a coordenação de esforços que se originam no interior das empresas, limitando-se imensamente os estímulos para o aprendizado e a capacidade inovadora das mesmas. Embora a complexidade produtiva e organizacional alcançada pelas plan- tas eletrônicas tenha gerado um capital social importante nos territórios em que

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 19-46, nov. 2003 Complexidade produtiva e aprendizado na indústria eletrônica, na fronteira norte do México 21 se encontram, esse capital teve pouca capacidade de se difundir para outros setores da economia das cidades analisadas. O trabalho divide-se em quatro partes: na primeira, há uma reflexão sobre os elementos conceituais que apóiam a análise sobre a complexidade produtiva e organizacional das plantas e os processos de inovação; na segunda, explica- -se brevemente a metodologia utilizada no estudo; na terceira, são expostos os resultados da pesquisa sobre os níveis de complexidade produtiva em 156 plan- tas eletrônicas; na quarta, enunciam-se algumas conclusões sobre a situação encontrada.

As capacidades de produção e sua capacidade inovadora

Nos últimos 20 anos, a literatura relativa à criação do conhecimento desen- volveu-se a partir de conceitos como: aprendizagem tecnológica e organizacional; aprendizagem individual e organização; conhecimento tácito e explícito, codifi- cado e não codificado; e o conceito de escalada tecnológica e industrial, assim como o de capacidades inovadoras. É por meio desses conceitos que se procura explicar os limites e alcances dos processos de aprendizado e escala- da tecnológica que acontecem tanto em países desenvolvidos como nos em desenvolvimento. Autores como Bell e Pavitt (1992) afirmam que a complexidade produtiva não gera, necessariamente, aprendizado tecnológico nem desenvolvimento de capacidades de inovação. No entanto, esses autores também consideram que, dado o processo evolutivo das firmas, estas vão desenvolvendo diversas capaci- dades em diversos graus, mas que tais capacidades são limitadas e só podem ser potencializadas quando se desenvolvem vínculos maiores entre a firma e as instituições do entorno, como universidades, centros de pesquisa e outros cen- tros de educação (Villavicencio; Lara, 2002; Casalet; Sanchez; Gonzales, 2002). Por outro lado, Ariffin e Figueiredo (2002) indicam que, em muitos dos estu- dos sobre câmbio tecnológico — como os desenvolvidos por Ghoshal e Barnett (1987) —, se ignoram os processos de internalização que acontecem tanto en- tre as subsidiárias das empresas transnacionais como entre elas e suas forne- cedoras de insumos e componentes, desprezando os processos de mudança que se geram nessas empresas como parte de um processo de mudança con- tínuo e como conseqüência de mudanças de incremento com base, principal- mente, num conhecimento adaptativo. Nesse sentido, a ênfase dos estudos sobre geração de aprendizado e conhecimento concentrou-se basicamente na-

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 19-46, nov. 2003 22 Maria Del Rosio Barajas E.; Carmen Rodríguez Carrillo quele que se consegue por meio da pesquisa e do desenvolvimento (P&D). Argu- menta-se que as corporações transnacionais seguem controlando as tecnologias centrais e os segmentos produtivos onde se gera maior valor, enquanto as em- presas subsidiárias estão localizadas em segmentos de baixo valor agregado, o que se vê com maior clareza em países em desenvolvimento como o México. Entretanto as empresas subsidiárias encontram-se, de alguma maneira, vinculadas às redes de inovações de suas corporações, e, por isso, ao se am- pliar a participação das empresas subsidiárias na rede, incrementa-se a competitividade da transnacional, como demonstrado em diferentes estudos empíricos que documentam a mudança tecnológica acontecida no caso da in- dústria maquiladora no México (Barajas; Rodríguez, 1991; Carrillo; Hualde, 1997). Apoiando esse ponto de vista, Villavicencio (1994) destaca o fato de que, no entorno das empresas, não é possível generalizar que a introdução de mu- danças tecnológicas produza mudanças na maneira de organizar o trabalho ou, pelo contrário, que a forma de organizar o trabalho exija necessariamente intro- duzir mudanças tecnológicas. Entretanto, dado que existe certa conexão entre mudança tecnológica e organizacional, é de se esperar, sim, que se desenvolva na organização uma certa capacidade inovadora como conseqüência dessa mudança. De fato, Villavicencio aceita que existe uma relação de causalidade entre variáveis independentes: tecnologia, organização do trabalho e atividade trabalhista. Ariffin e Figueiredo afirmam, também, que o desenvolvimento de capacida- des tecnológicas inovadoras está associado aos diferentes vínculos inter e intra-organizacionais que desenvolvem essas empresas (empresa matriz, subsi- diárias, clientes, fornecedores de insumos e de serviços). Esses resultados fo- ram confirmados num trabalho empírico realizado sobre redes industriais e em- presariais, que informa a intensidade e a direção desses fluxos (Barajas, 2000). Continuando com o argumento de Bell e Pavitt (1992), os dois autores afirmam que, na experiência dos países em desenvolvimento, nem todas as empresas participam de mudanças técnicas, e, por isso, nem sempre a tecnologia consegue potencializar a capacidade produtiva das firmas, principalmente quan- do não se desenharam políticas públicas e nem foram criadas as instituições de caráter público e privado para gerar capacidades endógenas de desenvolvimen- to. A partir da perspectiva da mudança técnica que assumem esses autores, eles sustentam que a acumulação de tecnologia em países de industrialização recente está ligada à capacidade produtiva, ou seja, que a mudança técnica está associada à complexidade produtiva das empresas, que inclui, também, o desenvolvimento de capacidades tecnológicas sempre que estas não se encon- trem na fronteira do conhecimento. Este último é um dos argumentos centrais deste trabalho.

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 19-46, nov. 2003 Complexidade produtiva e aprendizado na indústria eletrônica, na fronteira norte do México 23

A diferenciação entre inovação e difusão da inovação realizada pelos men- cionados autores é muito útil porque distingue a existência de três etapas na acumulação do conhecimento, o que estaria sugerindo a presença de mudan- ças incrementais como: (a) as empresas acumulam habilidades e know-how para desenvolver novos processos; (b) as empresas acumulam formas de apren- dizado e experiências derivadas de mudanças incrementais ou melhorias na tecnologia utilizada por indústrias fornecedoras; (c) as empresas podem criar novas capacidades para produzir uma mudança técnica maior. Para esses mesmos autores, é de absoluta importância distinguir entre os conceitos de capacidade de produção e capacidade tecnológica. A capacidade de produção abrangeria os recursos usados para criar um bem em um certo nível de eficiência e sob uma combinação dada de insumos, que inclui o equipamen- to, a tecnologia e as habilidades da força de trabalho — os recursos humanos, gerenciais, as especificações dos produtos, os insumos e os sistemas organizacionais. Quanto à capacidade tecnológica, é definida como a incorpora- ção de um tipo de recurso diferente para gerar a mudança técnica — inclui habilidades, capacidades, conhecimento, experiência e uma estrutura institucional e seus vínculos. As maiores inovações requerem desenho, constru- ção, prova de protótipos de produtos, provas-piloto e apoio econômico a progra- mas de pesquisa1. Cabe salientar, como argumenta Villavicencio (1994), que os processos de mudança, sejam operados em nível do uso da tecnologia, sejam em nível da organização do trabalho, produzem um efeito nas relações sociais construídas pelos atores da produção, como afirma o autor, “(...) numa tentativa por controlar, assimilar e se apropriar da tecnologia”. Para Dutrénit e Vera-Cruz, a forma utilizada pelas empresas para a cons- trução de suas capacidades tecnológicas é, fundamentalmente, a utilização dos processos de aprendizado, razão pela qual eles se referem ao aprendizado tecnológico como um processo altamente dinâmico de aquisição de capacidade tecnológica. Nesse sentido, esses autores resgatam a importância de diferen- ciar entre capacidade produtiva e capacidade tecnológica, pois essa diferencia- ção não somente permite formular políticas para propiciar o desenvolvimento das capacidades produtivas das empresas, mas fundamentalmente estimula suas capacidades de mudança técnica. A mudança tecnológica, que anteriormente só se reconhecia como a incor- poração de maquinário e equipamento especializado, vincula-se agora à busca

1 Como o que realizam países como Coréia e Taiwan, que conseguiram acumular capacidades substanciais para gerar uma mudança técnica em suas empresas.

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 19-46, nov. 2003 24 Maria Del Rosio Barajas E.; Carmen Rodríguez Carrillo contínua de desempenho tecnológico e a um processo de inovação, como indica Villavicencio (1994, p. 112), “(...) não somente no referente ao maquinário e às técnicas de produção, mas também referente à organização do trabalho e à empresa como um todo”. No México, a maquiladora eletrônica de exportação é um dos ramos com melhor desempenho e maior atração de investimento estrangeiro (Alonso; Carrillo; Contreras, 2000). Carrillo (2000) e Barajas (2000) atribuem esse desempenho a uma série de estratégias das plantas filiais e de suas corporações, baseadas no uso de recursos humanos e de novas tecnologias de classe mundial. A automação2 e a especialização de pessoal em empresas do tipo Samsung ou Delphi provo- caram a passagem para processos produtivos de maior complexidade (Carrillo; Hualde, 1997; Carrillo, 2001), sendo um dos aspectos mais importantes dessa complexidade produtiva o fato de, em geral, vir acompanhada por processos de transferência de conhecimentos e por um aprendizado contínuo, com saldos positivos nas economias locais (Carrillo, 2001). Sob essa lógica, a geração e a acumulação de conhecimento poderiam representar câmbios qualitativos importantes para as regiões, já que são os diferentes atores locais, dentro das empresas, os que estão envolvidos nesses processos de aprendizado e porque as experiências cotidianas, assim como as atividades dos engenheiros, os representantes de vendas e outros funcionários, influenciam de maneira importante o desempenho das firmas (Barajas, 2000). Nesse sentido, para conseguir que os processos de aprendizado levem ao desenvolvimento de novos produtos dentro da indústria eletrônica, é necessário aliar conhecimento e habilidades que se encontram dispersos em várias áreas e níveis hierárquicos das plantas. Até hoje, essa dispersão tem ocasionado pro- blemas de coordenação e integração do conhecimento do nível individual ao nível organizacional, onde o conhecimento pode ser compartilhado com os membros que o solicitem dentro da organização. No setor eletrônico, os processos produtivos não são somente determina- dos pela forma de organização das empresas, pelos indivíduos e pelos conheci- mento, mas também pelas relações que existem entre eles e pelos mecanis- mos que dão forma aos processos de aprendizado tecnológico e organizacional dessas plantas. Alguns estudos mostram que os incrementos na competitividade da indús- tria eletrônica estão associados principalmente a uma maior autonomia na orga-

2 Segundo Villavicencio (1994, p. 113), “(...) o uso massivo de máquinas automáticas e programáveis se caracteriza pela multiplicação de suas aplicações, a multiplicação dos usuários e, principalmente, pela integração das máquinas automáticas em sistemas total- mente automatizados”.

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 19-46, nov. 2003 Complexidade produtiva e aprendizado na indústria eletrônica, na fronteira norte do México 25 nização e na operação dos processos de produção (Barajas, 2000; Carrillo, 2001), mas esses estudos não conseguiram recolher evidências empíricas suficientes sobre as características do pessoal e os mecanismos que agilizam os proces- sos de aprendizado organizacional e tecnológico e também não conseguiram analisar em detalhe a forma como se realiza a transmissão de conhecimento do nível individual para o organizacional, que inclui o resto dos membros da organização. Há quase 40 anos que a região fronteiriça do norte do México vem partici- pando de um modelo de desenvolvimento industrial cuja evolução ficou documentada em vários estudos de caso e pesquisas mais amplas que identifi- caram as mudanças provocadas na maquiladora, mostrando evidências dos re- centes processos de aprendizado tecnológico e organizacional na indústria maquiladora (Barajas; Rodríguez, 1989; Carrillo; Hualde, 1997; Barajas, 2000). Neste trabalho, analisam-se as mudanças mais recentes observadas nessa indústria, particularmente com relação aos níveis de complexidade produtiva e organizacional. Não obstante, apresentam-se antes as principais característi- cas das plantas eletrônicas incluídas no estudo.

Metodologia

Este trabalho é fundamentalmente de corte empírico, tendo como base os resultados da pesquisa Aprendizado Tecnológico e Escalada Industrial em Plantas Maquiladoras3 que o Colégio de la Frontera Norte realizou entre março e julho de 2002, nas cidades de Mexicali, Tijuana e Ciudad Juárez, e está centrado especificamente no setor eletrônico. A pesquisa foi aplicada a 156 plantas eletrônicas e incluiu um importante número de variáveis de tipo numérico e categórico que possibilitaram identificar as capacidades de aprendizado tecnológico e organizacional nas plantas eletrônicas, assim como também os mecanismos por meio dos quais essas empresas geram um processo de esca- lada industrial para as três cidades mencionadas. O estudo fornece informações sobre as várias atividades das maquiladoras pesquisadas, o que permite estimar em que níveis da organização produtiva elas se encontram. Por meio da constru- ção de uma taxinomia sobre complexidade produtiva, documentam-se os níveis de aprendizado tecnológico e organizacional das empresas eletrônicas em estu-

3 Essa pesquisa foi desenvolvida no âmbito do projeto de mesmo nome, na indústria maquiladora dos setores eletrônico, de autopeças e seus fornecedores.

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 19-46, nov. 2003 26 Maria Del Rosio Barajas E.; Carmen Rodríguez Carrillo do. O trabalho foi reforçado com entrevistas realizadas em empresas selecionadas e com informações colhidas em outras pesquisas. Retomamos a metodologia proposta por Bell e Pavitt (1992, 1995) e Lall (1992),4 assim como a classificação elaborada por González e Leonel (2002)5, para construirmos nossa própria taxinomia sobre complexidade produtiva, considerando três níveis de complexidade: (a) básico, (b) intermediário e (c) avançado.

Complexidade produtiva das plantas eletrônicas e seu vínculo com as capacidades de aprendizado

Antes de começar a análise sobre a complexidade produtiva e organizacional encontrada nas empresas eletrônicas que participaram da pesquisa, é importan- te ver suas principais características, considerando-se variáveis de controle como: a idade da planta, seu tamanho, a origem do capital, a localização da empresa e o subsetor a que pertencem. Posteriormente, apresenta-se o que a pesquisa achou com relação à complexidade produtiva das empresas estudadas.

Características das plantas eletrônicas

Embora o regime de maquila tenha começado a operar em 1965, o maior crescimento dessa indústria deu-se a partir de 1986, com a entrada do México no GATT, mantendo-se até a entrada em vigor do Tratado de Livre Comércio entre México, Estados Unidos e Canadá, em 1994.6 Chama atenção que 74%

4 Esses autores distinguem dois tipos de capacidade: (a) a capacidade tecnológica rotineira de produção, que é necessária para usar e operar a tecnologia que já existe na empresa; e (b) a capacidade tecnológica inovadora, que é, essencialmente, a capacidade que permite gerar e administrar a mudança técnica nas empresas. 5 Eles, por sua vez, adaptaram a taxinomia sobre capacidade tecnológica e aprendizado organizacional desenvolvida por Bell e Pavitt (1992,1995) e Lall (1992). 6 Num estudo sobre a maquiladora chamado As Três Gerações, Carrillo e Hualde (1997) levantaram a hipótese de que, a partir da maior abertura comercial iniciada pelo México, um novo tipo de planta maquiladora começaria a se estabelecer no País. Os autores considera- ram que essas plantas teriam como característica principal serem produtiva e tecnologicamente

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 19-46, nov. 2003 Complexidade produtiva e aprendizado na indústria eletrônica, na fronteira norte do México 27 das empresas entrevistadas se estabeleceram em uma das três cidades estu- dadas, entre 1986 e 2002. De fato, quase 43% delas se instalaram em alguma das três cidades fronteiriças entre 1986 e 1996, ou seja, essas plantas maquiladoras têm entre 16 e seis anos de existência, enquanto uma alta per- centagem (31%) o fez nos últimos cinco anos. É importante precisar que, entre 1965 e 1985, se instalaram pouco mais de 25% das plantas maquiladoras que estão operando em 2002. Em termos do peso que têm as plantas maquiladoras, medido em número de trabalhadores, seguindo a metodologia do Instituto Nacional de Estatística, Geografia e Informática (INEGI), optou-se por classificar as empresas em micro, pequenas, médias e grandes. Quase 51% delas pertencem à categoria de em- presas grandes, contando com mais de 251 funcionários. Seguem em importân- cia as plantas pequenas e médias, com quase 19% e 17%, e a percentagem das microempresas é baixa, representando menos de 3%.7 O fato de que na região fronteiriça se encontrem, principalmente, empresas eletrônicas de grande porte confirma o papel incentivador que elas desempe- nham na indústria maquiladora, pois se espera que sejam elas as que possuam uma complexidade produtiva e tecnológica maior. Chama atenção que outras plantas de pequeno e médio portes também contêm um nível de representação importante, embora não constituam o equivalente às grandes empresas. A gran- de maioria delas operam sob o regime de maquila e são filiais de importantes corporações, como Sony, Sanyo, Matsushita, Hitachi, Hewlett Packard, etc. Presume-se que em particular as pequenas e as médias empresas operem tam- bém sob o Programa Shelter8. A localização geográfica da fronteira norte do México mostrou-se estratégi- ca para muitos dos processos de realocação industrial acontecidos no contexto da globalização econômica, já que, historicamente, os principais fluxos de in- vestimento provêm do sul dos Estados Unidos, com 55% do capital investido nas empresas pesquisadas. Entretanto também é verdade que existem novas rotas de fluxos procedentes de países asiáticos. Na referida pesquisa, consta-

mais complexas. Mesmo que seu estudo não tivesse como base uma evidência empírica ampla, a taxinomia proposta por eles serviu de base para falar de plantas maquiladoras de primeira, segunda e terceira geração, partindo, em primeiro lugar, de suas características tecnológicas. 7 Cabe indicar que a pesquisa informou que quase 12% das empresas entrevistadas não forneceram o dado referente ao número de trabalhadores, por ser esta uma política da empresa. 8 Período da empresa no qual transnacionais e corporações internacionais trabalham com empresários mexicanos encarregados de um programa de resguardo.

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 19-46, nov. 2003 28 Maria Del Rosio Barajas E.; Carmen Rodríguez Carrillo tou-se que 28% das plantas têm como origem países asiáticos, dentre eles Japão, Coréia e Cingapura. Alguns estudos mostraram que a principal caracte- rística das empresas de capital asiático que operam no regime de maquila é a sua complexidade produtiva. Os processos de subcontratação internacional e a localização de filiais de grandes corporações também foram atrativos para empresas cujo capital pro- vém de países como Bélgica, França, Holanda, Suíça, dentre outros, e que, na pesquisa, está representado por quase 17% do investimento total. Enquanto isso, o investimento de capital mexicano nessas plantas maquiladoras é de apenas 8%. Isso se explica pela natureza desses processos de subcontratação e dos programas de resguardo ou de empresas Shelter, que, na sua grande maioria, são empresas mexicanas de serviços que oferecem administrar os processos de produção sob a direção e liderança de empresas contratadoras. Como foi indicado na metodologia o número de casos foi de 156, represen- tando 100% das plantas pesquisadas no setor eletrônico, nas três cidades selecionadas. Em Tijuana, aplicaram-se 82 pesquisas (52,56%); em Ciudad Juárez, 57 (36,52%); e, em Mexicali, 17 (10,89%). Levando-se em conta as características dessas cidades, pode-se indicar que Tijuana se distingue por contar com um número maior de plantas que Ciudad Juarez, enquanto as plantas de Ciudad Juárez são maiores que as de Tijuana. Em Mexicali, acontece algo similar, já que tem um menor número de plantas que Tijuana, porém de maior porte. Seguindo a taxinomia proposta por Peter Dicken (1992), a indústria eletrônica foi organizada em quatro subsetores segundo o seu nível de complexidade produtiva: (a) componentes eletrônicos passivos; (b) componentes eletrônicos ativos; (c) bens de consumo eletrônicos; e (d) equipamento eletrônico.9 Segundo os resultados encontrados a partir da análise por subsetores, é nos componentes eletrônicos passivos que se concentra uma maior proporção de plantas maquiladoras (45%), enquanto o equipamento eletrônico concentra 30%; os eletrônicos de consumo e os componentes ativos partilham a mesma proporção. A forte concentração de empresas maquiladoras em componentes eletrônicos passivos nessas três cidades representa um sério limite à expansão

9 Segundo esse autor, o equipamento eletrônico e os componentes eletrônicos ativos são os subsetores mais complexos produtiva e tecnologicamente, enquanto os outros dois subsetores, componentes eletrônicos passivos e bens de consumo eletrônicos, se encontram num nível produtivo e tecnológico menos complexo, especialmente no caso dos componentes eletrôni- cos passivos, onde se encontram componentes como conectores, capacitores, resístores, cabos e arneses de muito baixo conteúdo tecnológico e baixo valor agregado.

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 19-46, nov. 2003 Complexidade produtiva e aprendizado na indústria eletrônica, na fronteira norte do México 29 de uma maior complexidade produtiva, mas não no caso de uma maior comple- xidade organizacional, já que os processos de produção de ensamble e/ou manufatura não são muito complexos. O desenvolvimento organizacional é uma condição necessária para se conseguir uma maior competitividade, principal- mente num setor com produtos amplamente estandardizados e competitivos.10 Entretanto subsetores como o de equipamento eletrônico demonstram uma estrutura produtiva um pouco mais complexa, e é onde se encontra uma terceira parte das plantas maquiladoras que compõem a pesquisa. Nesse subsetor, des- taca-se a produção de equipamento de cálculo, de equipamento médico e de radiocomunicação, dentre outros. No próximo item, apresenta-se parte dos resultados da pesquisa, que caracteriza a complexidade produtiva das empre- sas maquiladoras do ramo eletrônico que se incorporaram ao estudo.

Complexidade produtiva

Neste item, apresentam-se as evidências encontradas sobre a complexi- dade produtiva na indústria eletrônica de exportação do México. Nesse sentido, são as diferentes atividades das empresas as que ajudam a explicá-las. Além disso, para essa análise, considera-se o tamanho da planta, o seu tempo de atividade, a localização por cidade dessas empresas e o subsetor a que perten- cem. Uma análise nesse nível permite explicar melhor a razão da existência dessas atividades e os departamentos nas empresas estudadas, assim como sua relação com os processos de aprendizado individual e organizacional. O tipo de atividade produtiva que realiza cada planta maquiladora permite localizar as mesmas num determinado nível de complexidade produtiva, de tal maneira que as atividades de ensamble de partes, componentes e/ou “subensambles”, ensambles de produtos terminados e empacotamento são de- nominadas de atividades de uma capacidade básica. Como se vê no Gráfico 1, mais de 90% das plantas maquiladoras pesquisadas realizam ensambles de partes, componentes e “subensambles”; somente 83% delas empacotam seus produtos, talvez porque as outras transfi- ram o ensamble a outra linha e/ou a outra planta da mesma corporação.

10 A incursão de países como a China na produção de componentes passivos tornou esse setor altamente vulnerável no México, já que sua principal fonte de competitividade conti- nua sendo o baixo custo da mão-de-obra. Entretanto é necessário indicar que essas mesmas empresas penetram em outros subsetores, onde os seus produtos têm maior valor e um conteúdo tecnológico mais alto.

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 19-46, nov. 2003 30 Maria Del Rosio Barajas E.; Carmen Rodríguez Carrillo

Gráfico 1

Atividades básicas de produção no setor eletrônico — 2002

(%) 100 90 80 70 60 50 40 30 20 10 0 EnsambleEnsamble dede partes,partes, EnsambleEnsamble de de produtos produtos Empacotamento componentes e terminados "subensambles" FONTE: Pesquisa "Aprendizaje Tecnológico y Escalamiento Industrial en Plantas Maquiladoras", Colef, 2002. Proyecto Conacyt nº 36947-s "Aprendizaje Tecnológico y Escalamiento Industrial. Perspectivas para la Formación de Capacidades de Innovación en las Maquiladoras en México", COLEF/ /FLACSO/UAM.

Com relação às atividades intermediárias de produção (Gráfico 2), conside- ram-se oito categorias — manufatura do produto final, fabricação de insumos e componentes (que vá além do ensamble), fabricação de ferramentas, maquina- dos, fabricação de maquinaria e equipamento, inserção automática de compo- nentes, injeção de plástico e prova de produtos —, que, em conjunto, se carac- terizam por seu nível intermediário de complexidade produtiva, ou seja, não é mais o ensamble simples, mas inclui o processo de manufatura e a elaboração de ferramentas e utensílios que a produção requer. Sem deixar dúvidas, a prova de produtos junto com a manufatura do produto final são atividades bastante difundidas entre as empresas pesquisadas, tendo ambas uma representação de 83% e 74% respectivamente. Além de 90% das empresas realizarem tarefas de ensambles, também realizam em proporção muito elevada atividades de manufatura e prova de produtos. Se se lembrar que mais de 50% dessas empre- sas correspondem à categoria de empresas grandes, então, deduz-se que uma boa percentagem delas realiza processos de manufatura, o que indica a existên- cia de um maior grau de complexidade produtiva.

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Gráfico 2

Atividades intermediárias de produção realizadas nas empresas pesquisadas — 2002

(%)

70

60

50

40

30

20

10

0 Prova de produtos plástico plástico Injeção de Inserción Inserção Maquinados insumos e insumos ferramentas produto final Maquinados maquinária e componentes equipamento automática de componentes Fabricação de Fabricação de Fabricação de Manufatura do

FONTE: Pesquisa "Aprendizaje Tecnológico y Escalamiento Industrial en Plantas Maquiladoras", Colef, 2002. Proyecto Conacyt nº 36947-s "Aprendizaje Tecnológico y Escalamiento Industrial. Perspectivas para la Formación de Capacidades de Innovación en las Maquiladoras en México", COLEF/ /FLACSO/UAM.

Também sobressai o caso da inserção automática de componentes, atividade realizada por 40% das empresas estudadas. Como já se mostrou, o subsetor de componentes eletrônicos passivos está centrado de maneira importante no ensamble e na fabricação de componentes. A inserção automática de compo- nentes é uma atividade altamente generalizada, principalmente entre as grandes empresas, por isso, é muito comum encontrar grandes plantas maquiladoras que combinam a inserção automática com a manual. As plantas eletrônicas que possuem uma complexidade produtiva interme- diária se caracterizam por contar com equipamentos modernos. Entre essas empresas, encontram-se aquelas especializadas no subsetor de equipamento eletrônico, especialmente para a produção de computadores pessoais, equipa- mento médico e de telecomunicações, que contêm um alto número de compo- nentes minúsculos.

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Porém as empresas que realizam atividades de produção avançada são menos comuns que as que executam atividades intermediárias e básicas. Entretanto os resultados mostrados no Gráfico 3 não deixam de ser impor- tantes para a indústria eletrônica, já que, das três atividades colocadas como avançadas, se destaca em primeiro lugar a elaboração de protótipos, que é realizada por 41% das empresas que participaram da amostragem. Essa é uma percentagem muito alta, que se explica pelo tempo de atividade da planta e pelo seu tamanho, e indica que, no interior das plantas maquiladoras, se realiza um processo permanente de aprendizado tanto no plano individual quanto no coletivo, tornando possível que a organização acumule conhecimentos e comece a parti- cipar, de forma destacada, de processos de elaboração de protótipos que pode- riam ser considerados como um passo anterior ao desenho, ou serem percebi- dos como resultado de um processo de aprendizado adaptativo, onde o staff técnico — os engenheiros e os técnicos — se limita a adaptar os protótipos desenhados na matriz. Do mesmo modo, a grande percentagem de plantas que realizam protótipos também pode ser evidência de um processo evolutivo de processos de aprendizado que, no caso do México, infelizmente, não se inscre- vem dentro de nenhuma política institucional expressa, mas obedecem às pró- prias necessidades das empresas. Só 15% das plantas maquiladoras participantes da pesquisa realizam tare- fas de desenho, e quase 14% realizam atividades de pesquisa e desenvolvimen- to. Portanto, ainda são poucas as empresas que se aventuram em atividades avançadas de apoio à produção, talvez pelo fato de que, no México, o modelo de crescimento da indústria maquiladora nunca considerou implementar políticas orientadas a elevar as capacidades de aprendizado nessas empresas, já que, por muitos anos, essa indústria só foi pensada como uma fonte de geração de empregos.11

11 De alguma maneira, essa indústria global tinha poucas possibilidades de gerar processos produtivos mais avançados, principalmente numa região e num país com baixa qualificação de sua força de trabalho.

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Gráfico 3

Atividades avançadas em apoio à produção realizadas nas empresas pesquisadas — 2002

(%) 45 40 35 30 25 20 15 10 5 0 DesenhoDiseño del do producto produto Investigación P&D y Desarrollo ElaboraçãoElaboración de prototiposprotótipos (I&D) FONTE: Pesquisa "Aprendizaje Tecnológico y Escalamiento Industrial en Plantas Maquiladoras", Colef, 2002. Proyecto Conacyt nº 36947-s "Aprendizaje Tecnológico y Escalamiento Industrial. Perspectivas para la Formación de Capacidades de Innovación en las Maquiladoras en México", COLEF/ /FLACSO/UAM.

Complexidade produtiva e tamanho da planta Ao acrescentar a variável tamanho da planta à análise das atividades classificadas como intermediárias (Gráfico 4), nota-se que, à medida que o tamanho da planta aumenta, também aumenta a proporção de maquiladoras que realizam manufaturas do produto final.12 Com relação à fabricação de insumos e componentes, chama atenção que são as plantas pequenas e grandes as que, de forma preponderante, realizam essas atividades. Isso pode ser explica- do pelo fato de que as pequenas empresas estão se especializando não somen- te no ensamble, mas também na manufatura de insumos e componentes, en- quanto, nas grandes empresas eletrônicas, a maior complexidade dos seus produtos as tem levado a que internamente se manufaturem as partes e compo- nentes necessários a seu produto final ou, como no caso dos Original Equipments Manufacturing, insumos, componentes e bens finais para diferentes clientes e/ou consumidores.13

12 Isso é importante se se levar em consideração que, entre os anos de 1970 e 1980, só o ensamble de partes, componentes e bens intermediários era a atividade predominante nessas empresas. 13 Um exemplo são os casos de empresas como a Hewlett Packard, a Samsung e outras, que, além de produzirem os monitores para computador, também produzem alguns outros aces- sórios que requerem esses equipamentos eletrônicos de consumo.

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Outra atividade que tende a se expandir dentro das plantas maquiladoras é a fabricação de ferramentas nos chamados “talleres de maquinados” (oficinas de maquinados). Quanto maior a planta, maior é a proporção de empresas que têm entre as suas funções a produção de ferramentas e utensílios para a produção. Isso surge como uma necessidade diante da complexidade produtiva das em- presas maquiladoras, que vão desenvolvendo estratégias para depender menos de sua casa matriz e/ou encurtar o tempo de aquisição de equipamentos e reparo de ferramentas. No Gráfico 4, vê-se que 23% e 45% das empresas médias e grandes, respectivamente, realizam esse tipo de atividade.

Gráfico 4 Atividades intermediárias, segundo o tamanho da planta, realizadas nas empresas pesquisadas — 2002 (%) 90 80 70 60 50 40 30 20 10 0 Pequena MediaMédia Grande

Legenda: Manufatura do produto final Fabricação de insumos e componentes Fabricação de ferramentas Fabricação dede maquináriomaquinária ee equipamentoequipamento Inserção automática de componentes Injeção de plástico Maquinados Prova de productosprodutos FONTE: Pesquisa "Aprendizaje Tecnológico y Escalamiento Industrial en FONTE: Pesquisa Plantas "Aprendizaje Maquiladoras", Tecnológico Colef, y Escalamiento 2002. Proyecto Industrial Conacyt en Plantas nº Maquiladoras", 36947-s "Aprendizaje Colef, 2002. Tecnológico Proyecto Conacyt y Escalamiento nº 36947-s "AprendizajeIndustrial. Tecnológico Perspectivas y Escalamiento para la Formación Industrial. de Perspectivas Capacidades para dela Formación Innovación de Capacidades en las Maquiladoras de Innovación en México en las ", Maquiladoras COLEF/FLACSO/UAM. en México", COLEF/ /FLACSO/UAM.

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Com relação à inserção automática de componentes, o resultado encontrado também é importante. Enquanto essa atividade é realizada por pouco mais da quar- ta parte das pequenas e médias empresas, nas grandes esse número alcança quase 50%. Deve-se assinalar que, nas visitas a algumas dessas empresas, foi constatado que, na inserção automática de componentes, também não se eliminou a inserção manual. Por exemplo, na fabricação de televisores e equipamento médi- co, parte do processo de inserção de componentes faz-se manualmente, principal- mente os componentes muito pequenos, enquanto outra parte dessa atividade está automatizada e utiliza equipamentos com uma idade média de 10 anos. Essa tendência também se encontra na atividade produtiva da injeção de plástico; quanto maior a planta, maior a proporção de empresas que realizam essa atividade — 39% no caso da grande empresa. Deve-se mencionar que esta é considerada parte das atividades intermediárias de produção, já que a tecnologia usada para realizá-la é bastante padronizada e são processos automatizados com maquinaria de programação numérica com certo grau de complexidade. No referente à prova de produtos, essa atividade implica o uso de certas tecnologias para sua realização, já que se trata de provas que, na sua maioria, utilizam como base o computador. Como se vê no Gráfico 4, é significativo que 69% das empresas pequenas realizem essa atividade e 88% no caso das em- presas médias ou grandes. A partir das visitas realizadas às plantas, observou- -se que as empresas que realizam esse tipo de provas se encarregam de pro- cessos de maior complexidade produtiva e tecnológica, sem que isso signifique que são necessariamente as mais avançadas. Finalmente, entre as atividades de produção consideradas avançadas, en- contra-se uma situação bastante paradoxal. No Gráfico 5, estima-se que são as empresas médias as que realizam em maior proporção (22%) atividades de de- senho de produtos. Provavelmente, isso tem a ver com o fato de que as empre- sas médias são mais flexíveis quanto ao produto e, por isso, sempre estão buscando novos produtos para criar, melhorar, modificar, etc., enquanto, na grande empresa, essa atividade está reservada principalmente à grande corporação. No caso da atividade de pesquisa e desenvolvimento, é importante constatar que perto de 22% das pequenas, médias e grandes empresas pesquisadas realizam essa atividade. Pode parecer, então, que a importante e cobiçada atividade de pesquisa e desenvolvimento não é exclusividade da grande empresa. Isso é notado à medi- da que as empresas menores têm também a oportunidade de realizar essa atividade avançada, que, embora seja limitada, é significativa não somente para os engenheiros que se envolvem nela, mas também para o lugar onde se encon- tram as empresas, pois contribui para elevar o conhecimento da força de traba- lho local, principalmente do pessoal mais qualificado.

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Gráfico 5

Atividades avançadas, segundo o tamanho da planta, realizadas nas empresas pesquisadas — 2002

(%) 50 45 40 35 30 25 20 15 10 5 0 PequeñaPequena MedianaMédia Grande

Legenda: DiseñoDesenho del do producto produto InvestigaciónP&D y Desarrollo (I&D) ElaboraciónElaboração de protótiposprototipos

FONTE: Pesquisa "Aprendizaje Tecnológico y Escalamiento Industrial en Plantas Maquiladoras", Colef, 2002. Proyecto Conacyt nº 36947-s "Aprendizaje Tecnológico y Escalamiento Industrial. Perspectivas para la Formación de Capacidades de Innovación en las Maquiladoras en México", COLEF/ /FLACSO/UAM.

No que se refere à elaboração de protótipos, observa-se que mais de 40% das médias e grandes empresas realizam essa atividade. Pela natureza dos produtos do setor eletrônico, onde um produto pode ter até 500 modelos, a elaboração de protótipos é uma atividade bastante difundida atualmente entre as plantas maquiladoras, diferentemente das décadas anteriores em que os protó- tipos eram recebidos da matriz e somente se adaptavam durante o processo de produção. Nessa atividade, também se encontra uma maior complexidade tecnológica, pois, para realizá-la, é necessário contar com uma maior informação sobre o desenho, as características e outras informações relevantes.

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Complexidade produtiva e localização da empresa Sem dúvida, outro determinante da complexidade produtiva e organizacional é a localização das plantas. Como já foi indicado, a pesquisa foi aplicada em três cidades fronteiriças: Tijuana, Mexicali e Ciudad Juárez. Em particular Tijuana e Ciudad Juárez são considerados dois dos principais centros maquiladores do País e, junto com Mexicali, sobressaem pela sua participação na indústria eletrônica, enquanto Ciudad Juárez também se destaca na produção de autopeças. Com relação às atividades e aos departamentos básicos nas três cidades, observa-se uma representação bastante homogênea, ou seja, um nú- mero muito alto e similar de empresas que cobrem essas categorias. O Gráfico 6 mostra que, em termos de atividades intermediárias, Mexicali se destaca na manufatura de produtos finais. Das três cidades, o centro maquilador mais novo é Mexicali, que se caracteriza por ser um centro de manufatura. Sobre a fabricação de insumos e componentes, Mexicali e Ciudad Juárez apresentam uma proporção maior que Tijuana, sendo 41% para cada uma; por outro lado, Tijuana destaca-se na fabricação de ferramentas, com quase 33%. Porém essa atividade não é muito significativa em Ciudad Juárez, já que ali proliferaram os centros de maquinado, que não só oferecem às plantas o serviço de conserto de ferramentas e utensílios, mas também constroem algumas peças e ferramentas, tendo em vista que as plantas preferem obtê-las localmen- te ao invés de devolvê-las ou, ainda, ter que repô-las às suas matrizes, como era o costume até bem pouco tempo atrás. Isso afetava tanto o tempo quanto o custo da produção. Sobre as atividades avançadas por cidade, o Gráfico 7 mostra que, com relação ao desenho do produto, Tijuana se destaca com 24%, e, quase na mes- ma proporção, realizam-se nessa cidade atividades de pesquisa e desenvolvi- mento. O mesmo gráfico mostra que as tarefas de pesquisa e desenvolvimento realizadas nas plantas eletrônicas situadas em Mexicali são, em termos relati- vos, maiores do que as realizadas em Tijuana. Em Mexicali, existe uma alta concentração de empresas que produzem equipamentos de telecomunicação e aeroespacial. Essas empresas se caracterizam por seu maior conteúdo tecnológico. Esse dado é muito importante, já que, em Tijuana, 50% das plantas em estudo elaboram protótipos, além de existir um número considerável de empresas do tipo multiproduto, que trabalham com diferentes modelos. É por causa disso que a participação da força de trabalho na elaboração de protótipos está bastante generalizada, o que constitui uma das fontes de aprendizado indi- vidual mais importante nas plantas maquiladoras.

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 19-46, nov. 2003 38 Maria Del Rosio Barajas E.; Carmen Rodríguez Carrillo

Gráfico 6 Atividades intermediárias nas empresas, nas Cidades de Tijuana, Mexicali e Ciudad Juárez — 2002 (%) 90

80

70

60

50

40

30

20

10

0 Tijuana Mexicali Ciudad Juárez Legenda: Manufatura do produto final Fabricação de insumos e componentes Fabricação de ferramentas Fabricação de maquinário e equipamento Inserção automática de componentes Injeção de plástico Maquinados Prova de produtos

FONTE: Pesquisa "Aprendizaje Tecnológico y Escalamiento Industrial en Plantas Maquiladoras", Colef, 2002. Proyecto Conacyt nº 36947-s "Aprendizaje Tecnológico y Escalamiento Industrial. Perspectivas para la Formación de Capacidades de Innovación en las Maquilado- ras en México", COLEF/FLACSO/UAM.

O Gráfico 7 ilustra também que Tijuana e Mexicali se destacam na propor- ção de empresas que contam com atividades de pesquisa e desenvolvimento e elaboração de protótipos. Tijuana destaca-se com relação ao número de depar- tamentos de desenho de produtos. Lembre-se que ali está concentrado um im- portante número de empresas terminais, especializadas na produção de televi- sores e equipamentos de cálculo. Essas empresas estão dominadas pelos in- vestimentos asiáticos, que propiciam e estimulam uma maior participação da força de trabalho qualificada em tarefas de criação de conhecimento.

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Gráfico 7

Atividades avançadas nas empresas, nas Cidades de Tijuana, Mexicali e Ciudad Juárez — 2002

(%)

50 45 40 35 30 25 20 15 10 5 0 Tijuana Mexicali Ciudad Juárez TijuanaTijuana MexicaliMexicali Ciudad JuárezCd. Juárez

Legenda: Desenho do produto

PesquisaP&D e desenvolvimento (P&D)

Elaboração de protótipos

FONTE: Pesquisa "Aprendizaje Tecnológico y Escalamiento Industrial en FONTE: CARRILLO, Jorge; LARA, Arturo; CASALET, Monica (coord.). PlantasAprendizaje Maquiladoras", tecnológico Colef, y escalamiento 2002. Proyecto industrial: Conacyt perspectivas nº 36947-s "Aprendizajepara la formación Tecnológico de capacidades y Escalamiento de innovación Industrial. en Perspectivas las maqui- paraladoras la Formación en México. de CapacidadesMéxico, D. F., de COLEF/FLACSO/UAM, Innovación en las Maquilado- 2002. rasProjeto en México", Conacyt COLEF/FLACSO/UAM. n. 36947-s.

Numa análise sobre a indústria japonesa, Kenney e Florida (1993) afirmam que a ampliação de atividades produtivas na maquiladora está relacionada com a necessidade da indústria global de partilhar seus custos de operação, já que, em países como o México, os custos da mão-de-obra não qualificada e qualifi- cada são mais competitivos. Em uma das entrevistas realizadas com engenhei- ros do departamento de pesquisa e desenvolvimento de uma empresa asiática, percebeu-se que a política da corporação é a de contratar engenheiros recém- -formados. Dessa forma, a empresa pode obter mão-de-obra a custo baixo e ainda treiná-la para trabalhar em seus departamentos. Levando-se em conta o perfil dos engenheiros contratados, percebe-se a preferência pelos que tenham trabalhado no setor educacional, porque compreendem melhor o trabalho de pesquisa e desenvolvimento de novos produtos. A última análise sobre complexi-

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 19-46, nov. 2003 40 Maria Del Rosio Barajas E.; Carmen Rodríguez Carrillo dade produtiva e organizacional é feita considerando os principais subsetores da indústria eletrônica, que, como já foi indicado, são, primeiro, o de componentes eletrônicos passivos e, em segundo lugar, o de equipamentos eletrônicos. Essa análise torna-se importante na medida em que o agrupamento das plantas maquiladoras se dá em função de seus produtos e destes em relação ao grau de complexidade produtiva e tecnológica. Aqui têm-se dois subsetores bastante diferentes. Por exemplo, sabe-se que os componentes passivos são, em grande parte, insumos e/ou componentes para produtos finais, enquanto equipamentos eletrônicos são produtos finais e/ou acessórios de equipamentos. No nível das atividades básicas — produção, provas e manutenção —, acredita-se que am- bos os setores cobrem perfeitamente esse nível básico. Onde aparecem algu- mas diferenças interessantes é na rubrica das atividades intermediárias por subsetor. No Gráfico 8, vê-se que as empresas de componentes passivos realizam, numa proporção maior que as de equipamento eletrônico, atividades de manufatura de produto final, fabricação de insumos e componentes, fabricação de ferramen- tas, fabricação de maquinaria e equipamentos, inclusive de inserção automáti- ca, embora em menor proporção que todas as outras atividades intermediárias, destacando-se a atividade de maquinados e a prova de produtos. Isso leva à constatação, apesar de que, no subsetor de componentes pas- sivos, os produtos são considerados de menor complexidade tecnológica e de menor valor agregado, da incursão dessas empresas em atividades produtivas como a fabricação de ferramentas e os maquinados (50% destas), onde se geram e somam conhecimentos, o que significa mudanças importantes e signi- ficativas em nível da organização, já que se amplia a função da empresa — do ensamble simples a atividades de produção mais complexas. Porém, como se vê no Gráfico 8, mais de 30% das companhias do subsetor de equipamento eletrônico participam de atividades intermediárias de produção. Isto torna-se importante à medida que esse é um subsetor relativamente novo na indústria maquiladora mexicana. Com relação às atividades avançadas, que, supõe-se, geraram maior nú- mero de capacidades de inovação, esses dois subsetores têm uma participação média, embora se encontre uma maior proporção de empresas de eletrônicos passivos participando de tarefas de desenho do produto (35%) e de elaboração de protótipos (42%) em relação às empresas de equipamento eletrônico. No Gráfico 9, vê-se o caso em que o desenvolvimento das capacidades produtivas gerou também certas capacidades inovadoras, provavelmente do tipo adaptativo, mas que anteriormente estavam ausentes no setor eletrônico maquilador.

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Gráfico 8 Atividades intermediárias, por subsetores, nas empresas de equipamentos eletrônicos passivos e nas de equipamentos eletrônicos — 2002 (%) 60

50

40

30

20

10

0 EquipamentoEquipamento Eletrônicoeletrônico Componentes Componentes eletrônicosEletrônicos Passivos passivos

Legenda: Manufatura do produto final Fabricação de insumos e componentes Fabricação de ferramentas Fabricação dede maquináriamaquinário e e equipamento equipamentos Inserção automática de componentes Injeção de plástico Maquinados Prova de produtos FONTE: Pesquisa "Aprendizaje Tecnológico y Escalamiento FONTE: CARRILLO,Industrial en Jorge; Plantas LARA, Maquiladoras", Arturo; CASALET, Colef, 2002. Monica Pro- (coord.).yecto Conacyt Aprendizaje nº 36947-s tecnológico "Aprendizaje y escalamiento Tecnológico indus- y trial:Escalamiento perspectivas Industrial. para Perspectivasla formación para de lacapacidades Formación dede Capacidades inovación en de las Innovación maquiladoras en las en MaquiladorasMéxico. México, en México D. F., COLEF/FLACSO/UAM, ", COLEF/FLACSO/UAM. 2002. Projeto Conacyt n. 36947-s.

Entretanto, nas atividades de pesquisa e desenvolvimento, as empresas apresentam, no subsetor de equipamentos eletrônicos, a maior percentagem de participação, ou seja, 38% das plantas nesse subsetor realizam tarefas de pes- quisa e desenvolvimento. Deve indicar-se, porém, que, segundo as entrevistas realizadas, é significativo o fato de que, no México, seja realizado esse tipo de atividade, principalmente quando não existe estímulo por parte da instituição

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 19-46, nov. 2003 42 Maria Del Rosio Barajas E.; Carmen Rodríguez Carrillo para esse tipo de capacidade inovadora. Também não é de pouca importância que 30% das empresas de componentes passivos já estejam realizando no México trabalhos de pesquisa e desenvolvimento, gerando pequenos, mas signi- ficativos incrementos.

Gráfico 9

Atividades avançadas, por subsetores, nas empresas de equipamentos eletrônicos passivos e nas de equipamento eletrônico — 2002

(%) 45 40 35 30 25 20 15 10 5 0 EquipamentoEquipo Electrónico eletrônico ComponentesComponentes Electrónicos eletrônicos Pasivo passivos

Legenda: DiseñoDesenho del do producto produto

InvestigaciónP&D y Desarrollo (I&D)

ElaboraciónElaboração de protótiposprototipos

FONTE: Pesquisa "Aprendizaje Tecnológico y Escalamiento Industrial en FONTE: CARRILLO, Jorge; LARA, Arturo; CASALET, Monica (coord.). Apren- Plantas Maquiladoras", Colef, 2002. Proyecto Conacyt nº 36947-s dizaje tecnológico y escalamiento industrial: perspectivas para la "Aprendizaje Tecnológico y Escalamiento Industrial. Perspectivas formación de capacidades de innovación en las maquiladoras en para la Formación de Capacidades de Innovación en las Maquilado- México. México, D. F., COLEF/FLACSO/UAM, 2002. Projeto Cona- ras en México ", COLEF/FLACSO/UAM. cyt n. 36947-s.

Conclusão

Dado que a hipótese central deste trabalho foi a de que uma maior comple- xidade produtiva correspondia a uma complexidade tecnológica e ao desenvolvi- mento de uma maior capacidade inovadora, discutiu-se o limite que essa hipó-

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 19-46, nov. 2003 Complexidade produtiva e aprendizado na indústria eletrônica, na fronteira norte do México 43 tese merece. Em particular, depois de considerar o debate teórico que existe a esse respeito no campo do conhecimento, debateu-se o fato de que a acumula- ção de capacidades produtivas contém o desenvolvimento de capacidades organizacionais. Embora seja verdade, não existe uma relação direta entre complexidade produtiva e tecnológica, as evidências empíricas apresentadas nesta análise mostram, sim, que há um grau importante de correlação entre essas variáveis, ou seja, num processo evolutivo, a capacidade produtiva melhora, enriquece-se no seu conteúdo, e, junto com isso ou como resultado disso, a empresa vai se tornando tecnologicamente mais complexa. Isso acontece porque a empresa busca constantemente novas fontes de competitividade. A mudança ocorrida nos processos de ensamble simples e em processos produtivos mais comple- xos e tecnologicamente mais avançados ajuda a criar maior valor para a corporação, embora não gere maior valor para as regiões onde estão localizadas essas empresas subsidiárias e as filiais das grandes transnacionais. Em termos gerais, são encontradas uma completa incorporação dessas empresas às capacidades básicas rotineiras, uma forte participação em capaci- dades produtivas e organizacionais do tipo intermediário e uma incipiente, mas significativa, participação em níveis de complexidade produtiva do tipo avançado. Esses processos aconteceram porque foram induzidos, fundamentalmen- te, a partir das empresas e muito pouco pelo entorno institucional, o que legitima a crítica que constantemente se faz a essa indústria de que não ampliou e/ou compartilhou os benefícios dos desenvolvimentos das capacidades acumuladas e criadas para a própria região onde estão instaladas. Num sentido amplo e num processo evolutivo, para isso se concretizar são necessárias políticas coerentes e agressivas, como as implementadas por Japão, Coréia e Taiwan a partir da década de 70 (quando iniciou o processo de desconcentração industrial), parti- cularmente na área da educação, ampliando a oferta de mão-de-obra altamente qualificada, principalmente na área de engenharia, dedicando um número impor- tante de recursos à pesquisa básica e aplicada e realizando maiores esforços para criar vínculos mais consistentes entre as instituições educativas e de fo- mento com as empresas. Vê-se, claramente, que essa indústria propiciou mu- danças técnicas incrementais, acompanhadas de processos de aprendizado organizacional e tecnológico que incidem na capacidade inovadora das empresas. Em termos da análise da complexidade produtiva, infere-se que, na medida em que a empresa é de maior tamanho, existe uma maior complexidade, mas que, ao mesmo tempo, o nível de complexidade avançada contém em si mesmo uma maior capacidade inovadora. Isso não é exclusivo das grandes empresas, já que também as pequenas e médias geram essas capacidades.

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 19-46, nov. 2003 44 Maria Del Rosio Barajas E.; Carmen Rodríguez Carrillo

Com relação à idade da planta, foi detectado que as empresas estabelecidas depois de 1986 são as que mostram um maior nível de complexidade produtiva e organizacional, sem distinção entre as três cidades fronteiriças analisadas. Isso se explica porque foi nesse período que se aprofundou a abertura comercial no México, de onde se conclui que, a partir de uma maior liberalização econômica, as grandes transnacionais decidiram aprofundar sua estratégia de penetração e uso do território mexicano para buscar novas fontes de competitividade, pois, nesse contexto, é mais rentável para elas realizarem investimentos em proces- sos mais complexos, tanto produtiva quanto tecnologicamente. Respeitando o comportamento desses níveis de complexidade e conside- rando o local onde foi aplicada a pesquisa, observa-se que praticamente nas três cidades existe uma cobertura total de capacidades produtivas básicas. Em Tijuana e Mexicali, há uma participação importante das empresas em nível de complexi- dade produtiva intermediária, bastante maior que em Ciudad Juárez. Sobre o nível de complexidade avançada, em Tijuana é onde mais se realizam trabalhos de pesquisa e desenvolvimento de produtos, já que é ali que se encontram as plantas eletrônicas mais complexas tanto em termos do produto quanto em termos dos processos de produção e dos processos tecnológicos. A Cidade de Mexicali, por sua vez, destaca-se como centro de produtos avançados, especi- almente na área das telecomunicações e dos produtos aeroespaciais. Finalmente, os dois subsetores onde se concentra uma maior atividade industrial são os de componentes eletrônicos passivos e de equipamento eletrônico. Sem dúvida, isso tende a desenvolver uma complexidade produtiva de tipo intermediário, enquanto o segundo se destaca na complexidade produti- va do tipo avançado. O anterior mostra o processo evolutivo de que a região da fronteira norte do México vem participando, onde o desenvolvimento de capaci- dades de aprendizado caminha de mãos dadas com a complexidade produtiva e tecnológica das plantas eletrônicas.

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Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 19-46, nov. 2003 Concentração de renda dos ocupados nas regiões... 47 Concentração de renda dos ocupados nas regiões metropolitanas: a influência da escolaridade*

Jéferson Daniel de Matos** Estatístico da FEE.

Resumo O propósito deste artigo é comparar a distribuição de renda dos ocupados nas regiões metropolitanas utilizando dados da Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED). As regiões abrangidas neste estudo são: Porto Alegre, São Paulo, Belo Horizonte, Salvador e Recife. A variável estudada é o rendimento bruto recebido pelos ocupados no trabalho principal, no ano 2002. O indicador utilizado para medir o nível de concentração é o Índice de Gini, que é o utilizado pela ONU para comparar a concentração de renda dos países. A população de cada região metropolitana é segmentada conforme o grau de instrução dos ocupados, realizando-se inferências sobre o comportamento do Índice de Gini nos diferentes níveis de escolaridade. O estudo mostra que o nível de escolaridade afeta o nível de distribuição de renda dos ocupados.

Palavras-chave Distribuição de renda; concentração de renda; Índice de Gini.

Abstract The purpose of this article is to compare income distribution of workers in Brazilian Metropolitans Areas, based on data of the Employment and Unemployment Survey

* Uma versão preliminar deste texto foi apresentada em um encontro sobre estatísticas de emprego promovido pelo Cebrap, realizado em São Paulo, em setembro de 2003. ** O autor agradece a Roberto Wiltgen e André Chaves pela valiosa colaboração para a versão preliminar deste trabalho, aos colegas Martinho Lazzari e Ana Paula Queiroz Sperotto, às estagiárias Carolina Araújo Neumann e Michele Hartmann pela leitura atenta do texto e, por fim, a um(a) parecerista anônimo(a), designado pela revista Indicadores, pelas apropria- das sugestões.

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 47-70, nov. 2003 48 Jéferson Daniel de Matos

(PED), namely the gross income earned in 2002. The following areas are covered: Porto Alegre, São Paulo, Belo Horizonte, Salvador and Recife. The indicator by which I assess income concentration is the Gini Index, which is used in UN studies for international comparisons. The population of each Metropolitan Area is broken down into segments of workers grouped according to educational levels. This procedure is used to make inferences on the variation of the Gini Index in these different segments. The study shows that there is evidence that the educational level affect the level of income distribution of employees.

Os originais deste artigo foram recebidos por esta Editoria em 26.09.03.

Há muito tempo, a distribuição de renda é um dos temas básicos das Ciências Sociais e da Economia. Hoffmann (1998) lembra que David Ricardo, no início do século XIX, já destacava que a principal questão da Economia Política era determinar as leis que regulavam a distribuição do produto nacional entre proprietários de terra, donos de capital e trabalhadores, como renda, lucros e salários. Nali de Souza (1995) afirma que, tradicionalmente, a renda per capita tem sido utilizada como o principal indicador de desenvolvimento. Porém, em sendo uma média, tal indicador não mostra como se distribui essa renda entre os indivíduos e, portanto, não reflete o efetivo nível de bem-estar de uma população, especialmente da parcela de baixa renda, que pode ser bastante numerosa. Como o desenvolvimento é definido pelo aumento contínuo dos níveis de vida, incluindo maior consumo de produtos e serviços básicos para o conjunto da população, simplesmente o uso da renda per capita pode ser insuficiente para mostrar diferenciais de desenvolvimento entre países e regiões. Surge, então, a necessidade de se trabalhar com índices que apurem a distribuição ou a concentração de renda, tanto da renda pessoal como da renda funcional. O conhecimento e a análise desse tipo de indicador tornam-se relevantes pelo fato de que a busca por formas de incentivar uma distribuição de renda mais justa e igualitária entre a população deve ser uma das principais preocupações sociais dos governantes. No caso brasileiro, agrega-se a isso a gravidade da desigualdade de renda, que tem atingido índices alarmantes e colocado o País, sistematicamente, nas últimas posições no que se refere à distribuição de renda. Para se ter idéia da incômoda posição do Brasil no cenário internacional, basta observar os últimos

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 47-70, nov. 2003 Concentração de renda dos ocupados nas regiões... 49 dados da ONU apresentados no Relatório de Desenvolvimento Humano, que apontam o Brasil como sendo o 119º colocado dentre 124 países analisados. Atrás do Brasil, somente países africanos, como Suazilândia, Botswana, Namíbia, Serra Leoa e República Centro-Africana. Nesse mesmo relatório, o Brasil foi classificado como sendo o 65º país com melhor desenvolvimento humano dentre 175 países (PNUD, 2003). Os níveis de concentração de renda dos países variam muito entre os continentes e as regiões. Os países com as melhores distribuições de renda são os europeus, onde se destaca a situação privilegiada da Hungria, da Dinamarca, da Suécia e da Finlândia. O Brasil apresenta uma distribuição de renda muito pior do que a média da América do Sul. Países como Uruguai, Costa Rica, México, Venezuela, Jamaica, Peru e Equador apresentam índices bem mais favoráveis do que o Brasil, embora os quatros últimos tenham uma colocação inferior no conjunto de indicadores que medem o desenvolvimento humano. Os níveis de concentração de renda no Brasil variam bastante entre suas diversas regiões. Uma das medidas mais simples de se apurar a concentração de renda é calcular a relação entre os maiores e os menores rendimentos. Segundo um estudo do DIEESE (2001) reunindo dados de seis regiões metropolitanas do País para o ano de 1999, a Região Metropolitana de Porto Alegre (RMPA) foi apontada como sendo a que possui melhor distribuição de renda: 25% das famílias com rendimentos maiores recebiam aproximadamente 15 vezes mais que o rendimento de 25% das famílias com rendimentos menores. Essa relação é de 21 vezes para as Regiões Metropolitanas de São Paulo (RMSP) e Belo Horizonte (RMBH); situação mais grave vivem as famílias das Regiões Metropolitanas de Recife (RMRE), Salvador (RMSA) e Distrito Federal, onde a relação chega a 26, 29 e 33 vezes respectivamente. Através do tempo, foram sendo desenvolvidos alguns indicadores capazes de medir e avaliar a concentração de renda de populações ou regiões. Dentre os principais indicadores de concentração de renda, pode-se destacar a grande importância do Índice de Gini, que é o utilizado pela ONU para comparar a distribuição de renda dos países. A principal vantagem do Índice de Gini em relação aos demais indicadores de concentração de renda se deve a sua direta associação com a Curva de Lorenz. Outro índice muito conhecido é o Índice de Theil, que apresenta vantagem em relação ao Índice de Gini no que se refere à facilidade na decomposição de seus valores. Porém o Índice de Gini também pode ser decomposto, como se pode observar em uma seção posterior. Neste trabalho, será estudado o comportamento do Índice de Gini em cinco regiões metropolitanas pesquisadas pela Pesquisa de Emprego e Desemprego

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 47-70, nov. 2003 50 Jéferson Daniel de Matos

(PED)1. São elas: Região Metropolitana de Porto Alegre, Região Metropolitana de São Paulo, Região Metropolitana de Belo Horizonte, Região Metropolitana de Recife e Região Metropolitana de Salvador. A variável utilizada será o rendimento bruto no trabalho principal dos ocupados, e a população ocupada em cada região será segmentada de acordo com o grau de escolaridade. Com isso, será possível avaliar não somente a distribuição de renda entre ocupados nas cinco regiões metropolitanas, mas também inferir o quanto do nível de distribuição de renda é influenciado pela variável grau de instrução. Também será estudada a distribuição de renda dentro de cada grupo de grau de instrução, em cada região, e será traçado um comparativo entre as regiões nesse aspecto.

1 - Índice de Gini

O Índice de Gini foi proposto, em 1914, por Corrado Gini e, como salientado anteriormente, tem direta associação com a Curva de Lorenz. Esta pode ser entendida como um gráfico de freqüência relativa acumulada, que compara a distribuição empírica de uma variável com a distribuição uniforme. A distribuição uniforme em um gráfico de freqüência relativa acumulada é representada por uma reta com ângulo de 45º. Quanto mais próxima for a curva de freqüência relativa acumulada de uma variável em relação à reta diagonal que expressa a distribuição uniforme, menor será o coeficiente de Gini; da mesma forma que, quanto maior for a discrepância entre a curva empírica e a reta de igualdade, maior será o coeficiente de Gini, e, portanto, maior será a concentração dessa variável. O intervalo de resultados possíveis para o Índice de Gini varia de zero a um. O Índice de Gini igual a zero representa o grau máximo de igualdade e só ocorrerá se todas as unidades apresentarem o mesmo valor para a variável, no caso, quando cada indivíduo receber a mesma quantia recebida por cada um dos demais indivíduos em uma população. Por outro lado, o Índice será igual a um e representará o grau máximo de desigualdade e só ocorrerá quando apenas uma unidade for responsável pela totalidade dos recursos, sendo as demais unidades representadas pelo valor zero. Evidentemente, os dois casos expostos nunca ocorrerão e servem apenas de forma hipotética para representar a máxima igualdade e a máxima

1 No que respeita aos dados, o estudo baseia-se em informações coletadas pela Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED), que tem por objetivo fazer o acompanhamento conjuntural do mercado de trabalho através de levantamento sistemático, com periodicidade mensal, de dados sobre ocupação, desemprego e rendimentos da força de trabalho.

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 47-70, nov. 2003 Concentração de renda dos ocupados nas regiões... 51 concentração. A partir de dados reais, o Índice de Gini será sempre maior que zero e menor que um. No caso de máxima igualdade, ou seja, quando todos os indivíduos recebem o mesmo valor, facilmente se observa que a proporção de renda acumulada por um grupo será igual à proporção do grupo na população. Por exemplo: quaisquer 10% dos indivíduos serão responsáveis por exatamente 10% da renda total, 25% dos indivíduos serão responsáveis por 25% da renda, e assim por diante, gerando, então, a reta de igualdade máxima da Curva de Lorenz. Para a construção da Curva de Lorenz, devem ser ordenados, em forma crescente, os valores observáveis no conjunto de dados e, a partir da freqüência relativa acumulada de indivíduos e de renda, é possível plotar a Curva de Lorenz característica para a variável.

Considerando-se um conjunto de dados x = {x1,x2,...,xn}, ao ordená-los i de forma crescente, tem-se x ={}x *,x *,...,x * e define-se que Fru(i) = 1 2 n n i ∑ x j j=1 Frr(i) = n ∑ x j j=1

e para todo i entre 1 e n. A função Fru(i) significa a proporção relativa acumulada de unidades (no caso, os indivíduos) até a unidade i, enquanto Frr(i) significa a proporção relativa acumulada da variável (no caso, a renda) até a unidade i. Note-se que:

Fru(i) Frr(i) 1 <<∀> ni Fru(0) = Frr(0) = 0 Fru(n) Frr(n) == 1

Para cada diferente i do conjunto original de dados, resultam valores para as funções Fru e Frr, que serão as coordenadas de pontos pertencentes à Curva de Lorenz para a variável de interesse.

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 47-70, nov. 2003 52 Jéferson Daniel de Matos

Uma vez plotadas todas as coordenadas de pontos observados, tem-se a Curva de Lorenz. No Gráfico 1, é mostrado um exemplo da Curva de Lorenz, onde se pode observar que uma proporção b de indivíduos que ganham menos é responsável pela proporção a do total da renda; em seguida, verifica-se que uma proporção d de indivíduos recebe uma proporção c da renda, fazendo com que uma proporção 1-d de indivíduos que recebem mais seja responsável por uma proporção 1-c da renda total.

Gráfico 1 Curva de Lorenz Proporção da renda acumulada 1 0,9 0,8 0,7 0,6 d 0,5 0,4

0,3 b 0,2 c 0,1 a 0 1 0 0,1 0,2 0,3 0,4 0,5 Proporção 0,6 0,7de indíviduos 0,8 acumulados 0,9 1

A área formada entre a linha de perfeita igualdade e a Cuva de Lorenz é conhecida como área de desigualdade e pode ser denotada por . Note-se que, no caso da máxima desigualdade (uma única unidade se apropria de toda a renda, enquanto as n-1 unidades não se apropriam de nada), a Curva de Lorenz permaneceria na ordenada 0 até a abcissa (n-1)/n e saltaria para a ordenada 1 imediatamente quando a abcissa fosse igual a 1. Nesse caso, a área de desigualdade aproximar-se-ia de um triângulo com os vértices em (0,0); (0,1); e (1,1). Esse triângulo nada mais é do que a metade de um quadrado unitário e, portanto, tem área igual a 0,5. Como é desejável que um índice varie de 0 a 1, definiu-se que o Índice de Gini seria representado por duas vezes a área de desigualdade (2 α ). É comum a criação de classes de indivíduos para o cálculo do Índice de Gini e a apresentação da Curva de Lorenz, pois, muitas vezes, está-se trabalhando

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 47-70, nov. 2003 Concentração de renda dos ocupados nas regiões... 53 com um contingente muito grande de unidades, e torna-se desnecessário o cálculo do índice utilizando cada dado isoladamente, apesar de ser possível. O mais habitual é a criação de decís (grupos com 10% das unidades). É verdadeiro dizer que, quanto maior for o número de classes que se estiver trabalhando, mais aproximado será o valor de Gini calculado do verdadeiro valor observado em uma distribuição contínua. Existem diferentes formas distintas para se calcular o Índice de Gini com dados agrupados, não sendo necessário que cada grupo apresente a mesma proporção de unidades.

2 - Decomposição do Índice de Gini

A diferenciação entre os níveis de renda dos indivíduos pode ser explicada, em parte, por uma série de fatores ligados ao próprio indivíduo, que vai desde a escolaridade, sexo, idade até a experiência acumulada, região geográfica, dentre outros. Conseguir explicar os fatores que mais afetam os níveis de renda e, portanto, a distribuição da renda tem sido preocupação constante de muitos pesquisadores. Segundo Hoffman (1998), o Índice de Gini total de uma população pode ser decomposto se forem criados grupos de indivíduos disjuntos de uma população qualquer. Supondo-se que uma população seja subdivida em k grupos distintos, onde cada unidade pertencerá a um e a somente um grupo, então o Índice de Gini total pode ser decomposto da seguinte forma:

k G = Ge + ∑πh yhGh + Gs h=1 Onde:

Ge é o Índice de Gini entre os k grupos;

πh é a proporção de unidades no grupo h;

yh é a proporção de renda recebida pelo grupo h;

Gh é o Índice de Gini interno do grupo h;

Gs é o Índice de Gini associado à superposição dos grupos. Para facilitar o entendimento dos componentes do Índice de Gini, serão criados alguns exemplos extremos. Supondo-se que uma população seja dividida em três grupos (A, B, C) segundo determinado critério, se não houver desigualdade

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 47-70, nov. 2003 54 Jéferson Daniel de Matos dentro de cada grupo, ou seja, se cada indivíduo do grupo A receber igual ao valor médio do seu grupo e isso ocorrer também para os Grupo B e C, então

Gh = 0 para todo h. Por outro lado, se cada grupo apresentar médias iguais às dos demais grupos, ou seja, se a média de cada grupo for igual à média global, não haverá desigualdade entre os grupos, e então Ge = 0. Por sua vez, Gs = 0 somente ocorrerá quando não houver superposição de valores entre os grupos, ou seja, se cada indivíduo do grupo A ganhar mais ou igual a qualquer indivíduo do Grupo B, que, por conseguinte, ganhará mais ou igual do que qualquer indivíduo do Grupo C. No Quadro 1, são apresentados alguns exemplos numéricos. Exemplo 1: nesse exemplo, o Grupo A é formado por um indivíduo que recebe uma unidade monetária, enquanto o outro recebe 19 unidades monetárias, e o mesmo acontece nos Grupos B e C. Portanto, não existe desigualdade entre os grupos, a distribuição dentro de cada grupo é igual à distribuição da população total, e a componente que mais contribui para o Índice de Gini total é a que se refere à superposição dos grupos. Exemplo 2: nesse exemplo, o Grupo A é formado por dois indivíduos que recebem três unidades monetárias cada, o Grupo B é formado por dois indivíduos que recebem cinco unidades cada e, por fim, o Grupo C é formado por duas pessoas que recebem oito unidades monetárias. Dessa forma, não existem desigualdades dentro de cada grupo, não há superposição de valores entre os grupos, então o Índice de Gini total é resultante somente da desigualdade entre os grupos. Exemplo 3: o Índice de Gini total desse exemplo é maior do que o do Exemplo 2, porém o Índice de Gini entre os grupos continua igual, uma vez que a quantidade recebida por cada grupo permanece constante. Cada grupo apresenta um nível de desigualdade diferente; sendo destacado o Índice de Gini interno do Grupo A; não há superposição dos valores entre os grupos; portanto, o Índice de Gini entre grupos representa mais de 83% do Índice de Gini total. Exemplo 4: um exemplo mais próximo da realidade, onde existe desigualdade entre os grupos, cada grupo apresenta um nível de desigualdade diferente, e há superposição de valores entre os grupos.

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 47-70, nov. 2003 Concentração de renda dos ocupados nas regiões... 55 ;

= 0,0416 = 3 32 1 10 = s = 0,073 = 0,073 C G : 1;5 : 3;7 : 3;7 : 5;11 h π B = A B C 32 16 = 0,333 = 0,200 = 0,1875 = G y ; = 0,2083 h B A B C y C e π 6 h G G G = y 32 G = π A h ∑ A π y = 0,3229; portanto, portanto, = 0,3229; G

; = 0 3 1 s = 32 10

= G C = 0,0417 : 2;4 : 2;4 Grupo : 4;6 : 6;10 Grupo Grupo π B h = A B C 32 16 = 0,100 y = 0,167 = 0,125 = ; G = 0,2083 = 0,2083 B h B A C C e y π 6 G y 32 G G h

G = = π A h A = 0,25; portanto, portanto, 0,25; = ∑ π y G ;

h 3 1 32 10 = = 0

= C h π : 3;3 Grupo B : 5;5 : 8;8 Grupo Grupo G 32 16 = 0 = B C A = 0,2083 y h = ; s y G B C h G = = 0 para todo 6 π y 32 π e = h = h ∑ G A G A π y Exemplos de distribuições de renda e valores dos componentes observados observados dos componentes e valores de renda distribuições de Exemplos

3 1 3 1 = = = 0,15 C C π h y : 1;19 : 1;19 : 1;19 : 1;19 Grupo Grupo Grupo = 0 =

= B C G A h = 0,30 e h B B s y G todo para = 0,45 y π G h G = Grupo Grupo = Grupo π = A A h h ∑ y π G Quadro 1 1 Quadro Exemplo 1 Exemplo 2 Exemplo 3 Exemplo 4

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 47-70, nov. 2003 56 Jéferson Daniel de Matos 3 - Concentração de renda entre os ocupados das regiões metropolitanas

Como citado anteriormente, está-se trabalhando com a variável rendimento bruto no trabalho principal em 2002 a preços de março de 2003, e a unidade experimental são os indivíduos ocupados. Considere-se, ainda, que há diferentes variáveis que podem ser utilizadas para se representar o nível de desigualdade de renda, tais como renda familiar, renda do chefe do domicilio, renda familiar per capita, renda total do individuo, dentre outras. Normalmente, o estabelecimento da variável a ser utilizada em um trabalho surge da finalidade do estudo e da disponibilidade de informação da base de dados que se utilizará. Se o objetivo do estudo for analisar o nível de vida ou o bem-estar das pessoas, não será o rendimento da pessoa a variável mais apropriada, pois o nível de vida, em geral, é determinado pela renda familiar, uma vez que é possível que uma pessoa que ganhe relativamente pouco faça parte de uma família muito rica e tenha um bom nível de vida. A possível dissociação entre nível de vida e rendimento individual é ainda maior quando se consideram todas as pessoas acima de 10 anos (População em Idade Ativa), classificadas conforme seu rendimento, que é um tipo de distribuição de freqüência usual nas publicações do IBGE. Não tem sentido considerar as pessoas com 10 anos ou mais sem rendimento, já que se tratam, essencialmente, de donas-de-casa e de estudantes pertencentes a famílias dos mais diferentes níveis de renda. Uma alternativa seria considerar a renda familiar total, fazendo com que a unidade experimental fosse alterada para a família. Acontece que esse tipo de variável não capta exatamente as diferenças de nível de vida entre as famílias, pois não leva em conta o tamanho da família, ou seja, duas famílias podem ter o mesmo rendimento familiar total, mas terem níveis de vida completamente diferentes devido à quantidade de membros existentes em cada uma. Poder-se- -ia pensar, então, na renda familiar per capita, porém esta não considera as diferenças entre as necessidades para crianças conforme a faixa etária e as escalas de consumo diferenciadas em relação aos adultos. Tendo presentes tais considerações, este artigo tem o intuito de analisar a distribuição de renda dos ocupados no trabalho principal, ou seja, será avaliado como se comporta a distribuição de renda para aquela fatia da população que exerce atividade econômica em troca de remuneração. Como a variável utilizada será o rendimento bruto auferido pelo trabalhador no mês anterior à aplicação da pesquisa, se decidiu por descartar da análise os indivíduos que, por uma razão ou outra, não tenham recebido rendimento naquele mês. Dentro de cada região metropolitana, a população ocupada será dividida conforme seu grau de instrução, com a seguinte categorização: analfabetos ou

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 47-70, nov. 2003 Concentração de renda dos ocupados nas regiões... 57 sem escolarização, ensino fundamental incompleto, ensino fundamental completo, ensino médio incompleto, ensino médio completo, ensino superior incompleto e ensino superior completo. A criação de grupos segundo o grau de instrução servirá para avaliar a influência da variável escolaridade nos níveis de rendimento e, por conseguinte, na distribuição de renda. Além disso, será possível comparar a distribuição de renda dentro de cada segmento de grau de instrução. Para a execução da decomposição do Índice de Gini total (G) nas componentes Gini entre grupos ( Ge ), Índice de Gini de superposição ( Gs ) e a componente resultante da ponderação dos Índices de Gini internos ( ∑πh yhGh ), h será adotada a estrutura de cálculo através dos decís. Mesmo assim, será apresentado um número maior de pontos percentis intermediários entre os decís, a fim de permitir uma melhor compreensão da distribuição de renda em cada região; porém os mesmos não serão utilizados para o cômputo do Índice de Gini total e das componentes. A Tabela 1 mostra um panorama inicial da distribuição de renda entre os ocupados das regiões metropolitanas abrangidas pela PED. É possível observar que apenas 1% da população ocupada da RMPA recebe menos que R$ 85,00 mensais, enquanto, nas demais regiões, o percentual que recebe abaixo desse valor supera os 2%. Na RMSA, 10% dos ocupados recebem menos que R$ 115,00 mensais, sendo esse contingente responsável por apenas 1,05% da renda total; na RMPA, o percentual que recebe abaixo de R$ 115,00 por mês não chega a 2% e, em São Paulo, é de 4%. A RMBH apresenta uma aquisição maior de renda abarcada pelos primeiros percentis em relação à RMSP. Após o percentil 35, a RMSP mostra percentuais de aquisição de renda maiores que os observados em Belo Horizonte, que, novamente, começa a ter percentuais mais satisfatórios que São Paulo a partir do percentil 90. Isso aponta uma paridade entre o nível de concentração de renda nessas duas regiões, ao mesmo tempo em que mostra que São Paulo apresenta maiores concentrações de renda nos extremos (entre os que ganham mais e os que ganham menos) em relação a Belo Horizonte. A RMPA é a que apresenta os maiores percentuais de renda adquirida, independentemente dos 27 percentis estudados na Tabela 1. Note-se que, para qualquer percentil, o percentual da renda adquirido pelos ocupados na RMPA supera o percentual observado em todas as demais regiões metropolitanas. Isso sugere que o Índice de Gini de Porto Alegre deverá ser o menor dentre as regiões analisadas.

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 47-70, nov. 2003 58 Jéferson Daniel de Matos

Tabela 1

Valores de rendimento por percentil dos ocupados e percentual da renda apropriada, em regiões metropolitanas selecionadas — 2002

RMPA RMSP RMSA RMRE RMBH PERCENTIS Valor % da Valor % da Valor % da Valor % da Valor % da (R$) Renda (R$) Renda (R$) Renda (R$) Renda (R$) Renda 1 85 0,07 46 0,03 31 0,03 23 0,03 46 0,05 2 118 0,19 69 0,09 44 0,09 36 0,10 67 0,12 3 146 0,34 95 0,18 54 0,16 47 0,17 91 0,24 4 179 0,54 115 0,29 58 0,24 58 0,29 111 0,37 5 214 0,88 136 0,41 69 0,34 66 0,37 115 0,54 10 240 2,10 222 1,39 115 1,05 116 1,22 207 1,63 15 291 3,63 270 2,60 173 2,23 170 2,34 223 3,10 20 327 5,38 333 4,32 209 3,69 213 4,17 230 4,57 25 354 7,36 355 5,93 221 5,30 223 6,00 267 6,29 30 378 9,43 411 7,95 227 6,82 233 8,11 292 8,20 35 424 11,85 450 10,19 249 8,78 242 9,75 329 10,55 40 461 14,27 471 12,62 282 10,77 272 11,97 346 12,61 45 486 17,14 530 15,10 316 13,04 300 14,41 392 14,98 50 551 19,97 578 18,23 341 15,49 331 17,01 437 17,76 55 602 23,61 636 21,06 388 18,27 353 20,07 462 20,85 60 677 26,88 701 24,75 441 21,33 391 23,10 530 24,06 65 734 31,29 799 28,61 493 24,81 446 26,82 579 27,92 70 857 35,55 920 33,01 571 28,88 498 30,59 683 32,39 75 979 41,19 1 060 37,99 686 33,70 593 35,32 800 37,07 80 1 180 47,18 1 190 43,74 852 39,30 712 40,89 971 42,86 85 1 426 54,60 1 513 50,78 1 099 46,80 897 47,39 1 175 50,18 90 1 822 63,78 2 048 59,81 1 482 55,92 1 203 56,34 1 680 59,89 95 2 693 76,59 3 118 72,35 2 302 69,66 2 074 69,51 2 550 73,50 96 3 035 79,90 3 491 76,07 2 731 73,66 2 356 73,12 2 893 77,16 97 3 508 83,74 4 078 79,66 3 298 78,22 2 773 77,37 3 392 81,44 98 4 136 87,93 4 966 84,13 3 962 83,52 3 435 82,78 4 009 86,16 99 4 993 93,20 6 581 90,04 5 299 90,08 4 610 89,16 4 862 92,15

FONTE: Convênio DIEESE/SEADE, MTE/FAT e Convênios Regionais: FEE/FGTAS; CEI/ /FJP/SETAS/SINE-MG; SEI/SETRANS/UFBA; Seplandes-PE. NOTA: Valores em reais de março de 2003; inflatores IPC-IEPE-RS; IPCA-BH-Ipead;IPC- -Descon/Fundaj-PE;IPC-SEI-BA; ICV-DIEESE-SP.

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Realizando-se o exercício de dividir as populações de cada região em duas partes de mesmo tamanho (50% cada), conforme seu rendimento, e considerando- -se somente a metade que ganha menos em cada região, pode-se observar que, em Porto Alegre, a metade que ganha menos recebe aproximadamente 20% da renda total; nas Regiões Metropolitanas de São Paulo, Belo Horizonte e Recife, esse percentual gira em torno de 17% a 18%; enquanto, em Salvador, não chega a 16%. A partir da renda acumulada nos decis (percentis = 10, 20, 30, 40, 50, 60, 70, 80 e 90), foi possível calcular o Índice de Gini total para cada região metropolitana (Tabela 2).

Tabela 2 Índice de Gini para o rendimento bruto dos ocupados, utilizando decis, em regiões metropolitanas selecionadas — 2002

REGIÕES METROPOLITANAS ÍNDICE DE GINI Porto Alegre ...... 0,451 São Paulo ...... 0,492 Belo Horizonte ...... 0,493 Recife ...... 0,516 Salvador ...... 0,533 FONTE: Convênio DIEESE/SEADE, MTE/FAT e Convênios Regionais: FEE/ /FGTAS; CEI/FJP/SETAS/SINE-MG; SEI/SETRANS/UFBA; Seplandes- -PE.

O Índice de Gini para a RMPA (0,451) foi o menor, como já previsto, seguido pelas Regiões Metropolitanas de São Paulo e Belo Horizonte, com índices muito próximos (0,492 e 0,493), e, por último, aparecem as Regiões de Recife e Salvador, apresentando uma concentração de renda superior a 0,50. Calculado o Índice de Gini total, parte-se em busca da obtenção dos valores de cada componente, a fim de se obterem mais subsídios para uma melhor análise do comportamento da distribuição de renda nas regiões metropolitanas. k Da fórmula de decomposição , aplicada à G = Ge + ∑πh yhGh + Gs h=1 estrutura do trabalho proposto, h variará de um até sete, pois os grupos serão formados através dos níveis de grau de instrução, que são sete. Então π1 será a proporção de ocupados que são analfabetos ou sem escolarização; y4 , a

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 47-70, nov. 2003 60 Jéferson Daniel de Matos proporção da renda recebida pelos ocupados com ensino médio incompleto; e

G7 , o Índice de Gini calculado para o grupo dos ocupados com ensino superior completo; assim como Ge será o índice devido à diferença entre os grupos de ocupados com escolaridade distinta; e Gs , o Índice de Gini devido à superposição de valores entre os grupos de escolaridade. As Tabelas 3, 4 e 5 apresentam, respectivamente, os rendimentos médios, o percentual de ocupados e o Índice de Gini interno por grau de instrução e região metropolitana. Foi observado, em todas as regiões, que os ocupados com fundamental completo recebem, em média, mais que os ocupados com médio incompleto. Isso ocorre devido à maior jornada de trabalho dos ocupados com fundamental completo, que também apresentam idades mais avançadas, enquanto os ocupados com médio incompleto se referem a uma parcela de indivíduos, muitos dos quais, além da jornada de trabalho, ainda permanecem com os estudos. Todas as outras combinações apresentam maior rendimento médio para os ocupados com maior escolaridade. Como para o cálculo do Índice de Gini é necessário que os grupos estejam ordenados de forma crescente quanto ao rendimento, optou-se por apresentar essas três tabelas com o ordenamento conforme o rendimento médio de cada grupo.

Tabela 3 Rendimento médio dos ocupados no trabalho principal, segundo o grau de instrução, em regiões metropolitanas selecionadas — 2002 (R$)

GRAUS DE RMPA RMSP RMSA RMRE RMBH INSTRUÇÃO

Analfabetos ou sem es- colarização ...... 338 427 230 245 300

Fundamental incompleto 528 573 318 319 423

Médio incompleto ...... 576 626 395 420 482

Fundamental completo 635 721 435 451 540

Médio completo ...... 885 952 687 612 748

Superior incompleto ….. 1 149 1 434 971 931 945

Superior completo ...... 2 236 2 846 2 077 1 866 2 120

FONTE: Convênio DIEESE/SEADE, MTE/FAT e Convênios Regionais: FEE/FGTAS; CEI/ /FJP/SETAS/SINE-MG; SEI/SETRANS/UFBA; Seplandes-PE. NOTA: Valores em reais de março de 2003; inflatores: IPC-IEPE-RS; IPCA-BH-Ipead; IPC- -Descon/Fundaj-PE; IPC-SEI-BA; ICV-DIEESE-SP.

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Tabela 4 Distribuição dos ocupados, segundo o grau de instrução, em regiões metropolitanas selecionadas — 2002 (%)

GRAUS DE RMPA RMSP RMSA RMRE RMBH INSTRUÇÃO

Analfabetos ou sem es- colarização ...... 1,40 3,80 2,73 6,10 1,81 Fundamental incompleto 33,37 34,17 31,70 35,32 35,15 Médio incompleto ...... 7,18 7,30 8,45 7,31 7,39 Fundamental completo ..... 13,77 12,94 9,61 9,46 11,44 Médio completo ...... 24,98 26,13 32,07 27,97 28,58 Superior incompleto ...... 8,32 5,19 5,32 4,32 4,37 Superior completo ...... 10,98 10,47 10,12 9,52 11,26 FONTE: Convênio DIEESE/SEADE, MTE/FAT e Convênios Regionais: FEE/FGTAS; CEI/ /FJP/SETAS/SINE-MG; SEI/SETRANS/UFBA; Seplandes-PE.

Tabela 5 Distribuição do rendimento total auferido pelos ocupados, segundo o grau de instrução, em regiões metropolitanas selecionadas — 2002 (%)

GRAUS DE INSTRUÇÃO RMPA RMSP RMSA RMRE RMBH

Analfabetos ou sem es- colarização ……………. 0,54 1,67 0,94 2,54 0,73 Fundamental incompleto 20,20 20,13 15,18 19,12 19,95 Médio incompleto ……... 4,75 4,70 5,02 5,21 4,78 Fundamental completo 10,03 9,59 6,29 7,23 8,29 Médio completo ………. 25,36 25,59 33,16 29,00 28,67 Superior incompleto ….. 10,97 7,65 7,78 6,82 5,54 Superior completo ……. 28,15 30,67 31,63 30,08 32,04 FONTE: Convênio DIEESE/SEADE, MTE/FAT e Convênios Regionais: FEE/FGTAS; CEI/FJP/ /SETAS/SINE-MG; SEI/SETRANS/UFBA; Seplandes-PE.

Quanto ao grau de instrução (Tabela 4), observa-se que o maior percentual de ocupados analfabetos se encontra na RMRE, 6,10%, que representa mais de quatro vezes o percentual observado na RMPA, o menor de todos. Observa-se, com certa surpresa, que a parcela de ocupados com os níveis de instrução mais

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 47-70, nov. 2003 62 Jéferson Daniel de Matos altos é observada na Região de Salvador. Nessa região, 47,51% dos ocupados têm pelo menos o ensino médio completo, superando a RMPA — o segundo mais elevado, onde o percentual chega a 44,28%. Isso ocorre, provavelmente, devido ao alto nível de desemprego existente na RMSA (patamar de 27% da PEA) em comparação à RMPA (patamar de 15% da PEA), fazendo com que o mercado daquela região seja mais seletivo até mesmo que o da RMPA, onde o nível de escolaridade dos habitantes é reconhecidamente maior. Ao se comparar a distribuição por escolaridade na PEA, fica muito evidente a seletividade do mercado de trabalho de Salvador. Ou seja, enquanto na RMPA o percentual de ocupados com superior completo é de 10,98%, semelhante aos 10,87% da PEA, na Região de Salvador esses percentuais diferem muito: entre os ocupados, o percentual é de 10,12% e, na PEA, baixa para apenas 8,66%. A Tabela 5 mostra o percentual do rendimento total que é auferido por cada categoria de ocupados segundo o grau de instrução — esse percentual, sempre que analisado, deve ser comparado levando-se em conta o percentual de cada grupo no total de ocupados (Tabela 4). Por exemplo, na RMRE, os analfabetos são responsáveis por 2,54% do total dos rendimentos, enquanto, na RMSA, esse percentual é de apenas 0,94%. Isso poderia indicar que a RMRE tem uma distribuição de renda mais igualitária do que a RMSA, porém tem-se que levar em conta que a participação dos analfabetos no conjunto total do ocupados é de 6,10% em Recife e de 2,73% em Salvador. Algo que chama atenção e elucida bem a diferença entre as Regiões de Porto Alegre e Salvador é que, na RMPA, os quase 11% de ocupados com superior completo recebem 28,15% do total da renda, sendo que, na RMSA, um percentual menor de ocupados com superior completo (10,12%) recebe 31,63% da renda total. Observando os resultados da Tabela 6, verifica-se que há uma tendência de aumento do Índice de Gini à medida que se eleva o grau de instrução dos ocupados, até se atingir o superior incompleto. A partir daí, nota-se um decréscimo no Índice de Gini entre os ocupados com superior completo, o que ocorre em todas as regiões, com exceção de São Paulo. Esse decréscimo observado no grupo de ocupados com maior escolaridade se explica, em grande parte, pela eliminação dos valores de rendimento muito altos, conforme a metodologia do sistema PED.2 Como quase 85% do total de ocupados que ultrapassam o limite máximo de renda anualmente são pessoas com o superior completo, o Índice de Gini calculado para esse grupo se torna pouco confiável, ou seja, o valor apurado

2 Quando se trabalha com dados de rendimento, é comum a eliminação de valores extremos da distribuição, comumente chamados de outliers. Isso é realizado devido à grande influência de distorção na estimação da média que esses valores produzem.

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 47-70, nov. 2003 Concentração de renda dos ocupados nas regiões... 63 para o grupo de ocupados com superior completo é subestimado em relação ao valor verdadeiro para essa população.

Tabela 6 Índice de Gini interno dos ocupados, segundo o grau de instrução, em regiões metropolitanas selecionadas — 2002

GRAUS DE RMPA RMSP RMSA RMRE RMBH INSTRUÇÃO

Analfabetos ou sem es- colarização ...... 0,314 0,358 0,346 0,357 0,323 Fundamental incompleto 0,347 0,386 0,403 0,389 0,368 Fundamental completo .. 0,354 0,403 0,427 0,416 0,392 Médio incompleto ...... 0,367 0,415 0,416 0,406 0,418 Médio completo ...... 0,385 0,411 0,451 0,430 0,431 Superior incompleto ...... 0,410 0,400 0,475 0,484 0,459 Superior completo ...... 0,362 0,417 0,417 0,452 0,382 FONTE: Convênio DIEESE/SEADE, MTE/FAT e Convênios Regionais: FEE/FGTAS; CEI/FJP/ /SETAS/SINE-MG; SEI/SETRANS/UFBA; Seplandes-PE.

Através do Gráfico 2, pode-se observar que a RMPA apresenta índices bem mais favoráveis do que as demais regiões em todos os níveis de escolaridade, com uma pequena exceção em relação à RMSP quando se analisam os trabalhadores com superior incompleto. Já as Regiões Metropolitanas do Nordeste são as que apresentam a maior concentração de renda, sendo que, na RMSA, a concentração é mais elevada para os ocupados com baixa escolaridade, e a RMRE apresenta os piores índices quando se consideram os grupos de trabalhadores com maior escolaridade. Apesar de as Regiões Metropolitanas de São Paulo e Belo Horizonte apresentarem um Índice de Gini muito próximo, elas diferem, razoavelmente, em cada grupo de ocupados, por escolaridade. É possível notar-se que a RMBH apresenta índices mais favoráveis que a RMSP nos graus de escolaridade mais baixos, até o fundamental completo, enquanto, para os graus mais altos, até o superior incompleto, a RMSP apresenta distribuição mais igualitária. Somente no grupo de ocupados com médio incompleto, podem-se considerar semelhantes essas duas regiões (RMSP com 0,415 e RMBH com 0,418). A importância do fator escolaridade na determinação da distribuição de renda entre os ocupados atingiu um nível superior a 60% em todas as regiões. Na RMPA, o percentual do Índice de Gini explicado pela diferença entre os grupos

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 47-70, nov. 2003 64 Jéferson Daniel de Matos de escolaridade foi de 60,31%, enquanto, na RMSA, esse percentual chegou a 64,92%. Note-se que, apesar de todas as regiões apresentarem percentuais muito semelhantes, é possível observar uma correlação positiva forte entre o Índice de Gini total observado em uma região e o percentual da concentração explicado pela escolaridade nessa mesma região. Existe uma tendência de que, quanto maior for a concentração de renda, maior também será o percentual da desigualdade devido à escolaridade. É claro que se dispõe apenas de dados de cinco regiões metropolitanas, o que não permite entender esses resultados como sendo uma regra geral. Todavia a representatividade dessas regiões, em termos de população ocupada e de localização regional, não é desprezível, podendo sugerir a existência de um padrão ao menos no âmbito metropolitano nacional.

Gráfico 2

Índice de Gini interno para o grupo de ocupados, segundo o grau de escolaridade, em regiões metropolitanas selecionadas — 2002 0,500

0,450

0,400

0,350

0,300

0,250 0 Analfabetos 1º grau 2º grau 3º grau ou sem completo completo completo escolaridade Legenda: RMPA RMSP RMSA RMRE RMBH FONTE: Convênio DIEESE/SEADE, MTE/FAT e Convênios Regionais: FEE/FGTAS; CEI/ FJP/SETAS/SINE-MG; SEI/SETRANS/UFBA; Seplandes-PE.

Na Tabela 7, pode-se observar que o Índice de Gini de superposição da RMSA é o menor de todas as regiões metropolitanas, apesar de essa região apresentar a maior concentração de renda. Com isso, é possível inferir-se que a

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RMSA é a que mais faz valer a escolaridade como influenciadora no nível de rendimento, sendo mais rara a observância de rendimentos maiores para ocupados com menor escolaridade em relação aos ocupados com maior escolaridade.

Tabela 7 Estimativas dos componentes do Índice de Gini em regiões metropolitanas selecionadas — 2002

COMPONENTES RMPA RMSP RMSA RMRE RMBH

Índice de Gini total (G) 0,451 0,492 0,533 0,516 0,493 Entre grupos de escola-

ridade ( G e ) ...... 0,272 0,302 0,346 0,329 0,302 Somatório interno ( ∑ πh yhG h ) ...... 0,069 0,076 0,087 0,080 0,081 h Gini de superposição

( Gs ) ...... 0,110 0,114 0,100 0,107 0,110 Gini devido à escolari- dade (%) ...... 60,31 61,38 64,92 63,76 61,22

FONTE: Convênio DIEESE/SEADE, MTE/FAT e Convênios Regionais: FEE/FGTAS; CEI/FJP/SETAS/SINE-MG; SEI/SETRANS/UFBA; Seplandes-PE.

Por fim, o componente somatório interno refere-se a uma ponderação do Índice de Gini observado em cada grupo de ocupados conforme a escolaridade, sendo levados em conta o percentual de ocupados e a renda adquirida em cada nível de escolaridade. Esse valor pode ser interpretado como sendo a parte do Índice de Gini resultante das diferenças de renda entre ocupados com o mesmo nível de escolaridade, ou seja, o Índice de Gini intragrupos.

4 - Conclusão

A desigualdade na distribuição de renda observada entre os ocupados das regiões metropolitanas, obtida através do cálculo do Índice de Gini total, aponta uma condição ainda muito insatisfatória, tendo como parâmetros países de médio desenvolvimento. Mesmo que o índice calculado para os ocupados das regiões

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 47-70, nov. 2003 66 Jéferson Daniel de Matos metropolitanas não possa ser comparado diretamente com o Índice de Gini para os países, fica evidente que a distribuição de renda nas regiões metropolitanas não é favorável, devido à grande diferença observada entre os respectivos valores. Quando se compara a distribuição de renda das regiões metropolitanas, salta aos olhos o desempenho da RMPA como sendo a que possui a menor concentração de renda. Isso é verdadeiro tanto ao se analisar o Índice de Gini total como quando se analisam os Índices de Gini internos em cada nível de escolaridade, com exceção dos ocupados com superior incompleto, onde a RMSP apresenta uma distribuição ligeiramente melhor que a RMPA. As Regiões Metropolitanas de São Paulo e Belo Horizonte, apesar de possuírem patamares muito semelhantes no Índice de Gini total, apresentam, normalmente, uma diferenciação bastante razoável em cada uma das categorias de escolaridade. Assim, a RMBH apresenta melhores índices para os ocupados com baixa escolaridade, enquanto a RMSP tem uma melhor distribuição dentro dos segmentos de escolaridade mais alta. A RMSA é a que apresenta a pior distribuição de renda dentre as regiões analisadas, não obstante apresentar um patamar de rendimento médio superior ao dos ocupados da RMRE. Na RMSA, igualmente, o percentual de ocupados com médio e superior completos é maior do que em todas as demais regiões. Isso pode ser explicado pelo alto desemprego, o que pode tornar o mercado dessa região mais seletivo que o das demais. A RMRE é a segunda região com pior distribuição de renda e também com maior percentual de analfabetos ou sem escolaridade dentre os ocupados. Para finalizar, pode-se inferir que a RMPA apresenta a melhor distribuição de renda dentre os ocupados, considerando-se a renda oriunda do trabalho principal, seguida pelas Regiões Metropolitanas de Belo Horizonte e São Paulo. Em um plano mais abaixo, aparecem as Regiões Metropolitanas de Recife e Salvador, que apresentam Índices de Gini superiores a 0,5.

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Anexo

Tabela 1 Distribuição dos ocupados e dos desempregados, por escolaridade, em regiões metropolitanas selecionadas — 2002 (%)

RMPA RMSP RMSA GRAUS DE INSTRUÇÃO Ocupa- Desempre- Ocupa- Desempre- Ocupa- Desempre- dos gados dos gados dos gados Analfabetos ou sem esco- larização ...... 1,40 1,39 3,80 3,49 2,73 2,25 Fundamental incompleto … 33,37 38,77 34,17 36,17 31,70 38,71 Fundamental completo ..… 13,77 15,69 12,94 14,81 9,61 11,67 Médio incompleto ………… 7,18 12,66 7,30 13,52 8,45 13,74 Médio completo ………...… 24,98 22,31 26,13 24,69 32,07 27,25 Superior incompleto ……… 8,32 5,86 5,19 3,83 5,32 4,19 Superior completo ……….. 10,98 3,32 10,47 3,49 10,12 2,20

RMRE RMBH GRAUS DE INSTRUÇÃO Ocupa- Desempre- Ocupa- Desempre- dos gados dos gados Analfabetos ou sem esco- larização ...... 6,10 4,16 1,81 1,75 Fundamental incompleto … 35,32 36,48 35,15 38,78

Fundamental completo ….. 9,46 11,56 11,44 13,99 Médio incompleto ………… 7,31 13,24 7,39 12,19

Médio completo ………….. 27,97 28,76 28,58 25,80

Superior incompleto ……… 4,32 3,23 4,37 3,71 Superior completo ………... 9,52 2,58 11,26 3,78

FONTE: Convênio DIEESE/SEADE, MTE/FAT e Convênios Regionais: FEE/FGTAS; CEI/FJP/ /SETAS/SINE-MG; SEI/SETRANS/UFBA; Seplandes-PE.

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Tabela 2 Distribuição da População Economicamente Ativa, por escolaridade, em regiões metropolitanas selecionadas — 2002 (%)

GRAUS DE RMPA RMSP RMSA RMRE RMBH INSTRUÇÃO

Analfabetos ou sem esco- larização ...... 1,38 3,62 2,56 5,73 1,72 Fundamental incompleto .... 33,49 33,91 32,97 35,68 34,88 Fundamental completo ...... 13,86 13,23 10,27 9,90 12,09 Médio incompleto ...... 7,83 8,21 9,63 8,42 8,06 Médio completo ...... 24,54 25,71 30,84 27,83 27,91 Superior incompleto ...... 8,02 5,06 5,05 4,15 4,39 Superior completo ...... 10,87 10,26 8,66 8,31 10,96

FONTE: Convênio DIEESE/SEADE, MTE/FAT e Convênios Regionais: FEE/FGTAS; CEI/ /FJP/SETAS/SINE-MG; SEI/SETRANS/UFBA; Seplandes-PE.

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Referências

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Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 47-70, nov. 2003 Comércio bilateral Brasil-Estados Unidos:... 71 Comércio bilateral Brasil- -Estados Unidos: uma qualificação das pautas de exportação e importação

Carlos Américo Leite Moreira Doutor e Professor do Departamento de Teoria Econômica da Universidade Federal do Ceará. Maria Cristina Pereira de Melo Doutora e Professora do Departamento de Teoria Econômica da Universidade Federal do Ceará.

Resumo Neste artigo, propõe-se o exame das especificidades das trocas comerciais entre o Brasil e os Estados Unidos com base nas análises recentes da teoria do comércio internacional. Os estudos mostram que as relações comerciais entre países menos avançados tecnologicamente e países inseridos em uma economia baseada no conhecimento não se restringem à caracterização das trocas em termos de comércio intersetorial (especialização por países) e comércio intra- -setorial. Torna-se fundamental fazer a distinção entre diferenciação vertical (pela qualidade) e diferenciação horizontal (pela variedade) entre produtos pertencen- tes a um mesmo setor e objeto de um comércio cruzado. O fluxo de comércio bilateral entre o Brasil e os Estados Unidos favorece, predominantemente, o comércio intersetorial, mas também o comércio intra-setorial fundamentado na diferenciação vertical.

Palavras-chave Comércio internacional; comércio intersetorial; comércio intra-setorial.

Abstract The article proposes to examine the specificities of the comercial exchanges between Brazil and the United States on the basis of the recent analyses of theory of international trade. The studies show that commercial relations between

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 71-96, nov. 2003 72 Carlos Américo Leite Moreira; Maria Cristina Pereira de Melo less technologically advanced countries and those inserted on a knowledge- based economy, do not restrict to caracterize those exchanges in terms of intersectorial trade (specialization by countries) and intrasectorial trade. It is essencial to distinguish between vertical differentiation (on quality basis) and horizontal differentiation (on variety basis) among products that belong to the same sector which are objects of a cross trade. The bilateral flow of trade between Brazil and the United States predominantly favours intersectorial trade, as well as intrasectorial trade based on vertical differentiation.

Os originais deste artigo foram recebidos por esta Editoria em 30.09.2003.

1 - Introdução

Um dos instrumentos dinamizadores do fenômeno da globalização tem sido a queda generalizada das barreiras alfandegárias combinada à especialização econômica, à multiplicidade de acordos bilaterais e à criação de áreas de livre troca, das quais interessa o caso particular da formação da Área Livre de Comércio das Américas (ALCA). Esses mecanismos contribuíram consideravelmente, ao lado dos deslocamentos industriais, para que ocorresse um certo dinamismo no fluxo do comércio mundial. Em 1994, por exemplo, o volume das exportações mundiais cresceu 10%, o melhor resultado desde 1976, enquanto a produção mundial cresceu 4%. O crescimento do comércio intra-setorial é outro aspecto relevante no atual contexto mundial. Esse fluxo tende a ser mais significativo entre países com nível de desenvolvimento compatível; os países industrializados efetuam, essencialmente, trocas intra-setores e intrafirmas, ao passo que os fluxos entre esses países e os em desenvolvimento são, preferencialmente, intersetores, denotando a disparidade entre eles. Não obstante esse crescimento, o comércio mundial está concentrado nos países que compõem a Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), os quais respondem por cerca de 70% das compras mundiais de manufaturados. Dessa forma, o crescimento do comércio mundial vem sendo acompanhado de uma intensificação do comércio intra-regional, integrando, sobretudo, os países da OCDE e alguns Novos Países Industriais (NPI). O livre-comércio mundial, resultado da Rodada Uruguai, teve e tem conseqüências em termos de desempenho das empresas e da balança comercial dos países. A liberalização do comércio externo, no caso do Brasil, trouxe conseqüências virtuosas do ponto de vista da contestação dos preços e da

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 71-96, nov. 2003 Comércio bilateral Brasil-Estados Unidos:... 73 qualidade dos tradeables produzidos internamente e forçou uma reestruturação do aparelho produtivo industrial. A abertura comercial ofereceu a oportunidade de suprimento no mercado externo de insumos industriais a baixo custo e com melhor qualidade, proporcionando atualização tecnológica — fonte importante de competitividade — aos produtores domésticos. De fato, as importações brasileiras, que declinaram na década de 80, deram um expressivo salto na primeira metade da década de 90, crescendo num ritmo mais acelerado que as exportações nesse período. Como conseqüência, a participação do saldo da balança comercial no total do comércio mundial do País decresceu sistematicamente na década de 90, passando a ser negativa a partir de 1995 (Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (MDIC)). Neste artigo, propõe-se o exame das especificidades das trocas comerciais entre o Brasil e os Estados Unidos com base nas análises recentes da teoria do comércio internacional. Os estudos mostram que as relações comerciais entre países menos avançados tecnologicamente e países inseridos em uma economia baseada no conhecimento não se restringem à caracterização das trocas em termos de comércio intersetorial (especialização por países) e comércio intra- -setorial. Torna-se fundamental fazer a distinção entre diferenciação vertical (pela qualidade) e diferenciação horizontal (pela variedade) entre produtos pertencen- tes a um mesmo setor e objeto de um comércio cruzado. As trocas comerciais de produtos diferenciados pela qualidade revelam uma especialização no interior da indústria em detrimento de uma especialização por indústria. Essa configura- ção pode estar revelando uma nova divisão qualitativa do trabalho entre países especializados em produtos de alta qualidade e países especializados nos de baixa qualidade.

2 - Quadro de análise para interpretação dos fluxos de comércio exterior: breves considerações

A existência de processos simultâneos de importação e exportação no interior da mesma indústria (definido como comércio intra-setorial), entre países com níveis similares de desenvolvimento, constitui-se em uma das principais contribuições empíricas que surgiram nos anos 60 relacionadas com a teoria do comércio internacional. Essas evidências deram suporte, em um primeiro momento, ao questionamento das teorias tradicionais baseadas no conceito de vantagens comparativas. A tese das vantagens comparativas ricardianas sustenta que o comércio internacional produz um crescimento na produção mundial, dado que permite a

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 71-96, nov. 2003 74 Carlos Américo Leite Moreira; Maria Cristina Pereira de Melo cada país se especializar na produção do bem no qual apresenta vantagens comparativas. O padrão de comércio seria totalmente determinado pela oferta, resultando o comércio internacional das diferenças internacionais na produtividade do trabalho. Em termos gerais, um país tem vantagens comparativas na fabricação de um determinado produto se o custo de oportunidade da produção do bem em relação a outros bens é mais baixo que em outros países. Para se beneficiar do comércio, os países precisam importar produtos relativamente mais baratos do que se fossem produzidos internamente e exportar produtos relativamente mais caros do que se fossem vendidos internamente. O conceito fundamental desse modelo é o das vantagens comparativas, e estas, na perspectiva ricardiana, são capazes de determinar a estrutura produtiva do país. Sem dúvida alguma, a proposição de que as vantagens comparativas são a causa dos ganhos do comércio é muito forte e permeia as discussões ainda nos dias atuais. A teoria neoclássica do comércio internacional teve seus princípios básicos formulados no Modelo Hecksher-Ohlin. Nesse modelo, as diferenças de dotação fatorial são consideradas a base das vantagens comparativas. O Modelo parte da hipótese de que os países não possuem as mesmas dotações relativas de fatores, e, conseqüentemente, os custos relativos de produção são diferentes. Diversamente do modelo de Ricardo, dois fatores de produção são considerados: capital e trabalho. Dado que a remuneração do fator tem uma relação direta com sua escassez, o Modelo conclui que um determinado país tem vantagens comparativas nos produtos que utilizam intensivamente o fator no qual se verifica uma abundância fatorial relativa ao seu parceiro comercial. A abordagem neofatorial segue a mesma lógica do Modelo Heckscher- -Ohlin. No entanto, essa abordagem admite, de maneira mais forte, a existência de fatores de produção ligados, essencialmente, ao capital humano qualificado presente em quantidades diferentes segundo os países. Isso permite considerar que a educação é um dos fatores primordiais na industrialização dos países e na evolução de suas vantagens comparativas. Nesse modelo, o país relativamente abundante em capital exportará bens intensivos em trabalho qualificado, enquanto o país relativamente escasso em capital exportará bens intensivos em trabalho não qualificado (Findlay; Kierkowski, 1983). A análise do Modelo Heckscher-Ohlin, assim como os modelos ligados à abordagem neofatorial, mostra que o comércio internacional levaria, necessariamente, à equalização dos preços dos fatores, como mão-de-obra e capital, entre os países. Para chegar a essa conclusão, parte da suposição de que todos os países podem produzir todos os bens, dado que conhecem todas as tecnologias utilizadas para fabricar esses bens. Uma forma de abandonar essa hipótese é considerar que as funções de produção diferem. Com isso, a

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 71-96, nov. 2003 Comércio bilateral Brasil-Estados Unidos:... 75 equalização dos preços dos fatores não é verificada em função das diferenças internacionais de tecnologia. Contrariamente a essa hipótese de homogeneização do conhecimento tecnológico, a abordagem neotecnológica procura introduzir as evoluções tecnológicas e a aparição de novos bens nos determinantes das trocas comerciais. A versão modificada do Modelo Heckscher-Ohlin elaborada por Jones (1970) mostra que as diferenças tecnológicas entre países determinam suas vantagens comparativas e não a equalização dos preços dos fatores. Berglas e Jones (1977) incorporam em seus modelos um mecanismo de learning-by- -doing, caracterizado pelo aprendizado local, sobre as técnicas efetivamente utilizadas. Um dos primeiros questionamentos da abordagem tradicional do comércio internacional veio da teoria do hiato tecnológico de inspiração schumpteriana. O modelo de hiato tecnológico de Posner (1961) parte do princípio de que o comércio entre países é influenciado por transformações tecnológicas em algumas indústrias, mesmo entre países que utilizam os fatores de produção na mesma proporção. Existiria um gap entre o período em que houve uma inovação em uma determinada firma, em um determinado país, e o período em que essa inovação pode ser imitada em outros países. Durante esse gap, o país de origem da firma inovadora beneficia-se de uma renda fruto das exportações de produtos e processos até que outras firmas entrem no mercado com um produto semelhante. O avanço tecnológico de uma firma confere uma nova vantagem comparativa ao país de origem da firma inovadora. Essas inovações ocorreriam em função de pressões de demanda por inovações em produtos demandados conjuntamente com o produto inovado. Uma outra razão estaria relacionada às disparidades em termos de gastos com pesquisas geradoras de inovação. Finalmente, existiria uma vinculação entre a inovação ocorrida em um determinado momento e a inovação ocorrida no momento seguinte. Nesse modelo, o determinante do comércio internacional reside no diferencial tecnológico entre os países, na medida em que o país da firma inovadora exporta bens intensivos em novas tecnologias e os outros países, bens banalizados. Se a indústria no estrangeiro se torna um imitador eficaz e dispõe de fatores de produção a custos menores, a vantagem comparativa tradicional baseada na dotação de fatores pode desempenhar papel decisivo novamente. O modelo desenvolvido por Krugman (1979) procura, igualmente, confirmar a hipótese de que o determinante do comércio internacional está relacionado com o hiato tecnológico entre os países. Krugman considera dois países: o país do Norte e o país do Sul. O país do Norte é inovador, diferentemente do país do Sul. A inovação aparece através de novos produtos fabricados imediatamente no Norte e somente após algum período no Sul. O autor mostra como as inovações

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 71-96, nov. 2003 76 Carlos Américo Leite Moreira; Maria Cristina Pereira de Melo emergem permanentemente no Norte, com o objetivo de manter o nível de renda desse país, e como essas indústrias desaparecem cedo ou tarde em função da competição dos baixos salários do país do Sul. Os altos salários do país do Norte refletem a renda de monopólio em função da introdução de novas tecnologias. Para Krugman, o monopólio tecnológico do Norte é continuamente eliminado pela difusão de tecnologia e somente pode ser mantido através de inovações crescentes nos novos produtos. Do ponto de vista do comércio, o país inovador exportará bens diferenciados tecnologicamente, enquanto o país subdesenvolvido exportará produtos padronizados. Os argumentos de Posner foram também utilizados por Vernon (1966) no seu modelo de ciclo de vida do produto. Vernon procura mostrar que os “níveis” de vantagens comparativas podem mudar em função, basicamente, de três fatores. O primeiro estaria relacionado ao fato de as demandas nacional e internacional dos produtos não serem estáticas no tempo. Além disso, os produtos têm um ciclo de vida, e a estratégia de lucros das empresas multinacionais leva a que sua produção se translade para outros países. Relacionando tecnologia, ciclo de vida do produto e comércio internacional, o modelo de Vernon defende o argumento do monopólio tecnológico ligado à inovação e enfatiza a evolução da natureza do produto ao longo de seu ciclo de vida e as evoluções do comércio internacional. Nesse sentido, o produto no seu ciclo de vida conhece quatro períodos, e cada um corresponde a uma fase do comércio internacional. A primeira fase do ciclo (nascimento) não produz comércio internacional, dado que o produto é fabricado e consumido unicamente no país de origem da inovação. Na segunda fase do ciclo (maturação), dado que a demanda pelo produto é cada vez maior, são implementados métodos de produção em grande escala. A estabilização tecnológica do produto induz o produtor a ampliar o seu mercado nos países desenvolvidos, onde os consumidores de alta renda começam a ter condições de adquirir esses produtos. A exploração desses mercados pela firma inovadora é conseqüência do processo de imitação que eleva o número de concorrentes no mercado interno de origem da firma. De fato, a tecnologia utilizada já pode ser copiada por outras firmas nacionais. Como decorrência, verifica-se o surgimento de exportações do país inovador em direção aos seus parceiros desenvolvidos, o que torna a balança comercial do país inovador superavitária, enquanto a dos países desenvolvidos passa a ser fortemente deficitária. Na terceira fase do ciclo (padronização), observa-se uma inversão do fluxo comercial, dado que o país inovador se torna importador, e os países desenvolvidos imitadores passam a ser exportadores. Com a banalização do produto, a firma inovadora abandona sua produção para se concentrar na fabricação de novos produtos. Nesse processo, a demanda local pelo produto banalizado vai se

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 71-96, nov. 2003 Comércio bilateral Brasil-Estados Unidos:... 77 saturando, sendo atendida, principalmente, pelas importações, ao passo que surge uma nova demanda por produtos da nova geração. Com relação ao produto padronizado, o mercado tornar-se-á competitivo, e a competição será baseada, essencialmente, no preço ao invés de na qualidade do produto. Conse- qüentemente, a fabricação desses produtos estará concentrada, principalmente, nos países periféricos. Trabalho realizado por Pavitt, Dosi e Soete (1990), na linha evolucionista, procura mostrar a importância da construção de capacidades tecnológicas para dinamizar o comércio dos países. Partindo de uma série de indicadores (P&D, patentes), os autores mostram que as atividades relacionadas com a inovação se concentram, essencialmente, nos países desenvolvidos. Essas atividades são muito mais responsáveis pelo bom desempenho das exportações do que por alterações nos custos relativos de trabalho. São essas capacidades inovadoras e imitativas específicas a um setor e a um país que explicam os padrões de convergência ou divergência em termos de desempenho do comércio internacional. A constatação de comércio intra-setorial entre economias de níveis de desenvolvimento similares limitou consideravelmente, nos anos 60, o alcance das teorias tradicionais baseadas na tese das vantagens comparativas. O comércio intra-setorial não reflete, absolutamente, as vantagens comparativas. Sua importância depende de quão similares os países são. O comércio intra-industrial prevalecerá entre dois países, se estes forem similares na razão capital-trabalho. Caso contrário, o comércio baseado nas vantagens comparativas (intersetorial) tende a dominar. Algumas interpretações teóricas forneceram elementos para explicar o desenvolvimento do comércio intra-setorial. A teoria da demanda representativa de Linder (1961) contribui, significativamente, nesse sentido ao incorporar hipóteses considerando, particularmente, fenômenos ligados à demanda e não mais a oferta. Linder verifica a importância das trocas de produtos similares entre países de desenvolvimento comparável para questionar a teoria de Heckscher-Ohlin e tentar elaborar uma nova teoria baseada em alguns princípios básicos. O primeiro mostra que as condições de oferta não são independentes das condições de demanda, ou seja, a eficiência da produção está estritamente relacionada à dimensão da demanda. Além disso, o autor argumenta que as condições da produção doméstica são influenciadas, principalmente, pela demanda interna. A demanda doméstica representativa é o suporte da produção e a condição necessária para que um bem seja exportado. Finalmente, o mercado externo nada mais seria do que o prolongamento do mercado nacional, e o comércio internacional, a extensão das trocas regionais.

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Com base nesses princípios, o autor conclui que, para países com níveis de desenvolvimento semelhantes, as pautas de exportação e de importação tendem a ser idênticas. Os produtos transacionados entre países com níveis comparáveis de desenvolvimento são similares ou próximos. Essa proximidade em termos de desenvolvimento acaba por estimular uma demanda dos consumidores por produtos diferenciados pela variedade. O grande problema da análise de Linder foi se limitar à análise da intensidade do comércio cruzado entre países economicamente próximos sem explicar a natureza desses bens transacionados, assim como suas características intrínsecas. Entretanto sua teoria influenciou, substancialmente, novas interpretações do comércio internacional que procuraram questionar as teorias tradicionais incorporando uma estrutura de mercado de concorrência imperfeita e integrando vários conceitos da economia industrial. Duas grandes correntes destacam-se a partir daí. A primeira estuda a concorrência oligopolista e as trocas de produtos idênticos. Nessa abordagem, o comércio intra-setorial é visto como o resultado de trocas de bens estritamente idênticos. O modelo desenvolvido por Brander e Krugman (1983), considerando um bem e dois países, vai exatamente nesse sentido. A idéia subjacente a esse modelo é que o comércio aumenta o tamanho do mercado. Numa economia fechada, a produção é efetuada em cada país por um monopolista. A escala de produção seria limitada pela dimensão do mercado. Essa limitação deixaria de existir numa economia aberta, dado que os países passariam a comercializar entre si, formando, assim, um mercado mundial integrado que seria maior do que qualquer mercado individual. Os autores elaboram um modelo com duas firmas, cada uma pertencendo a um dos dois países e fabricando o mesmo bem. Com a abertura comercial, os dois mercados em autarquia unificar-se-iam, permitindo que cada firma passasse a deter uma parte do mercado do país estrangeiro. Haveria um modelo de duopólio onde cada firma deteria uma parte do mercado do país estrangeiro. O equilíbrio ocorreria quando cada firma detivesse a metade do mercado do país parceiro. Nessas condições, o comércio seria perfeitamente cruzado e intra-setorial. A segunda corrente analisa a concorrência monopolista e o comércio internacional de produtos diferenciados (Laussudrie-Duchêne, 1971; Helpman, 1981). Nessa abordagem, o comércio intra-setorial aparece como um comércio de bens similares, mas não idênticos. As diferenciações com relação aos produtos comparáveis vão permitir aos consumidores adquirirem o máximo possível de variedades de bens. No que se refere aos consumidores, a abertura comercial será motivada pela possibilidade de aumentar o número de variedades de um mesmo bem. Segundo os autores, a abertura da economia permitiria ao país especializar-se na produção de uma variedade menor de bens do que faria na

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 71-96, nov. 2003 Comércio bilateral Brasil-Estados Unidos:... 79 ausência de comércio. Mesmo não produzindo todos os bens, cada país aumen- taria a quantidade de bens disponíveis para seus consumidores. Observa-se, através dessa abordagem, que o comércio engendra resultados positivos mútu- os mesmo nos casos em que os países não diferem em termos de tecnologia. Posteriormente a essas abordagens que analisam a simultaneidade das importações e das exportações no interior de uma mesma indústria, uma síntese dos determinantes dos comércios inter e intra-setorial foi realizada. Essa síntese é baseada na idéia segundo a qual a concorrência monopolística e as economias de escala estão associadas ao comércio intra-setorial de produtos similares, enquanto o princípio das vantagens comparativas continua a ter poder explicativo para o comércio intersetorial entre economias diferentes em termos de proporção fatorial ou nível tecnológico (Helpman; Krugman, 1985). Os produtos diferenciados horizontalmente são disponíveis para os consumidores em diferentes variedades, e o comércio internacional, ao ampliar o mercado, fornece uma maior variedade de produtos, além de realizar economias de escala. Nesse contexto, a tendência é, justamente, que o comércio intra-setorial diminua com a distância econômica e que o comércio intersetorial aumente proporcionalmente ao crescimento da distância. Os modelos que analisam as trocas intra-setoriais impõem condições de simetria com relação à tecnologia e aos padrões de preferências dos consumidores. Ou seja, supõem que a tecnologia relacionada à produção de uma variedade de produto seja idêntica à de qualquer outra variedade. Supõem, também, uma simetria nos padrões de preferências: a curva de demanda para o produtor de uma variedade seria idêntica àquela do produtor de qualquer outra variedade. Como decorrência, qualquer novo entrante potencial apenas produziria uma variedade diferente daquelas que já estão no mercado. Entretanto os produtos não são unicamente diferenciados por características secundárias, dado que as suas qualidades, assim como seus preços, podem mudar. Essa diferenciação vertical dos produtos, ligada a fatores tais como as despesas de pesquisa e desenvolvimento ou a qualificação da mão-de-obra, foi incorporada somente recentemente na análise de economia internacional (Fontagné; Freudenberg; Péridy, 1998; Fontagné; Freudenberg, 1999). Nesse novo contexto, as diferenças entre os países não beneficiam unicamente o comércio intersetorial, mas também o comércio intra-setorial em diferenciação vertical; este último relacionado, sobretudo, à especialização dos países em produtos que diferem em termos de conteúdo tecnológico, mas que pertencem à mesma indústria. Como decorrência, haveria uma divisão qualitativa do trabalho entre países posicionados na produção de alta qualidade e países posicionados na de baixa qualidade, definindo uma nova relação entre centro e periferia.

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Portanto, no interior de uma determinada indústria, o comércio intra-setorial pode apresentar uma dupla configuração. A primeira seria o comércio intra-setorial de produtos idênticos, ou seja, o país exporta e importa bens que apresentam as mesmas características. Essa forma de comércio é denominada comércio cruzado intra-setorial fundamentado na diferenciação horizontal (de variedade). A segunda estaria relacionada com o comércio intra-setorial de produtos diferenciados em termos de conteúdo tecnológico, denominado comércio cruzado fundamentado na diferenciação vertical (de qualidade). Finalmente, uma terceira forma seria o comércio intra-setorial em diferenciação vertical, caracterizado pelo comércio cruzado entre componentes e produtos finais que não se encontram no mesmo estágio de fabricação. Seria o caso, por exemplo, de um país que exporta automóvel e importa os componentes para a sua fabricação. Esse tipo de comércio pode estar relacionado com um processo de decomposição internacional do processo de produção. A distinção entre o comércio intra-setorial com diferenciação de variedade e aquele com diferenciação de qualidade é efetuada a partir do cálculo dos valores das exportações e das importações. Considerando que esses valores são próximos (diferença inferior a 15%), as diferenças em termos de qualidade são consideradas baixas, e o fluxo estudado corresponde à diferenciação de variedade. Caso contrário, a diferenciação é considerada de qualidade, dado que o produto comparado é exportado e importado a preços significativamente diversos. As trocas de variedade e de qualidade podem ter determinantes diferentes, ou seja, no comércio de variedade, a origem do produto assim como a estrutura de marketing podem influenciar decisivamente na demanda de produtos estrangeiros, mesmo existindo similar nacional. A concorrência oligopolista entre grandes empresas disputando fatias do mesmo mercado constitui-se, igualmente, em determinante importante. Para o comércio de qualidade, os aspectos tecnológicos e de conhecimento são decisivos na escolha do produto. Assim, a existência de países menos avançados tecnologicamente e de países inseridos em uma economia baseada no conhecimento é suscetível de dar conta da fabricação de produtos pertencendo a qualidades diferentes. Nessas condições, esse tipo de comércio pode indicar uma divisão qualitativa de trabalho. Dessa forma, “(...) a alta qualidade implica mais despesas em P&D, uma melhor qualificação da mão-de-obra, uma organização específica dos procedimentos internos das firmas, custos fixos de publicidade, etc. Ela se traduz, pois, em custos de produção e preços muito elevados. A especialização de uma país em tal ou tal qualidade de produto tem conseqüências em termos de distribuição de renda, de catching up

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econômico ou de custos de produção” (Fontagné; Freudenberg, 1999, p. 43). São as interfaces entre os diversos elementos a serem considerados na análise do comércio entre países que respaldam a proposição de privilegiar os enfoques setoriais nas análises de comércio internacional. Segundo Fontagné e Freudenberg (2001), os diversos conceitos discutidos anteriormente podem ser resumidos como segue: a) a tradicional divisão do trabalho corresponde à teoria clássica do comércio conduzindo aos fluxos intersetor. A apreensão do comércio tanto pode ser no nível da indústria quanto no nível do produto — comércio em sentido único; b) no segundo caso, o comércio localiza-se na mesma indústria, mas em diferentes produtos, o que dá margem para diferentes interpretações. Analisando-se o comércio no nível da indústria, a primeira interpretação demonstraria cobertura de comércio, caracterizando, assim, o comércio intra-setorial. Entretanto, apreendendo-se o fluxo de comércio no nível do produto, ficaria evidenciada transação em sentido único de bens intermediários e bens finais na mesma indústria. Ocorreriam, portanto, importações e exportações na mesma indústria, mas em estágios de produção diferentes, o que não seria considerado comércio intra-setorial, mas uma divisão internacional do processo produtivo; c) o comércio intra-setorial precisa ser assim apreendido no nível do produto. Somente exportações e importações de produtos com as mesmas características técnicas podem ser consideradas como comércio em sentido duplo. Nesse caso, tanto faz serem tomados para análise bens finais ou bens intermediários; d) finalmente, a análise de valores unitários como proxy de diferenças de qualidade permite uma definição prática de dois conceitos importantes do ponto de vista teórico — comércio em sentido duplo de produtos similares, produtos diferenciados horizontalmente (correspondendo a uma troca de variedades), e comércio em sentido duplo de produtos diferenciados verticalmente (correspondendo a uma troca de qualidade). O Quadro 1 apresenta de forma esquemática diferentes interpretações correspondentes aos fluxos de comércio que servem de quadro de análise para a realidade observada na próxima seção.

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Quadro 1

Fluxos de comércio internacional, nível de análise e interpretação — 2001

COMÉRCIO NÍVEL DE ANÁLISE INTERPRETAÇÃO INTERNACIONAL Indústria Produto Indústria têxtil M (1) de camisas Comércio em Comércio sentido único intersetorial Tradicional divisão inter- Indústria automobilística nacional do trabalho X (2) de automóveis Comércio em sentido único

Indústria automobilística Produtos finais X de automóveis Comércio em Comércio sentido único Divisão internacional do intra-setorial processo produtivo Produtos intermediários M de motores Comércio em sentido único

Indústria automobilística Produtos finais X e M Comércio em Comércio em sentido de automóveis sentido duplo duplo de bens finais

Comércio intra-setorial Comércio em Comércio em sentido Produtos intermediários sentido duplo duplo de bens interme- X e M de motores diários

Indústria automobilística Valor unitário entre X e M Comércio em Comércio em sentido ≤ 15% sentido duplo duplo de bens finais similares X e M de automóveis Comércio intra-setorial

Valor unitário entre X e M Comércio em Comércio em sentido > 15% sentido duplo duplo de bens inter- X e M de motores mediários diferencia- dos verticalmente

FONTE: FONTAGNÉ L.; FREUDENBERG M. Intra-industry trade methodology issues reconsidered. Document de Travail CEPII, Paris: [s. n.], n. 97, 2001. (1) Importações. (2) Exportações.

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3 - Alguns aspectos metodológicos referentes ao tratamento dos dados

Com o intuito de analisar as especificidades das trocas comerciais efetuadas entre Brasil e Estados Unidos, trabalhou-se com o banco de dados do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio. Utiliza-se, dessa forma, a classificação segundo a Nomenclatura Comum do Mercosul (NCM), no nível de desagregação de capítulo (dois dígitos) para a análise dos fluxos intersetoriais e no nível de desagregação de produto (oito dígitos) para a análise intra-setorial, observando- -se os registros de exportação e importação de destino/origem para o ano 2001. Para a caracterização do comércio intersetorial, tomou-se por base a avaliação do conteúdo tecnológico embutido no referido conjunto de capítulos. Essa avaliação reflete o esforço de inovação e desenvolvimento tecnológico desenvolvido pelos dois países. Assim, os 99 capítulos de produtos exportados e importados foram decompostos em alta média alta, média baixa e baixa intensidade tecnológica. A taxionomia utilizada é aquela elaborada pela OCDE (1997), que estabelece relação entre gastos em pesquisa e desenvolvimento e valores das produções dos diversos setores industriais. Procura-se compatibilizar a classificação NCM (capítulos) com os setores propostos pela referida taxionomia. A essa classificação associa-se aquela referente à intensidade de fatores, ou seja, intensivo em capital, em mão-de-obra, em recursos naturais e em tecnologia, utilizada por Moreira e Correa (1996). Dois indicadores complementares (aplicados ao comércio bilateral com os EUA) fornecem uma caracterização aprofundada dessas trocas. São eles: o grau de concentração das trocas do país e o nível do comércio intra-setorial. O indicador de concentração (IC) está apresentado a seguir: 2  Xi  IC =100. ∑  i  X  onde X representa as exportações totais do país, e Xi, as exportações do produ- to i. O mesmo indicador pode ser obtido para as importações. O valor do coefici- ente de IC pode assumir grandezas de 0 a 100. IC = 0 indica uma distribuição uniforme entre os diferentes grupos de produtos comercializados. Esse caso corresponde ao grau de diversificação comercial mais importante e à concentra- ção mais fraca. Geralmente, o indicador IC das exportações é mais elevado que os das importações, na medida em que o comércio internacional leva a uma especialização da produção e a uma diversificação do consumo. É importante destacar que existe uma correlação negativa entre o indicador IC e o nível de desenvolvimento do país.

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O segundo indicador complementar refere-se ao comércio intra-setorial (IS). Utiliza-se o coeficiente de Grubel & Lloyde (1975) para estimar a intensidade das trocas de produtos do mesmo setor. O indicador pode ser apresentado como segue: IS = {1− []∑∑Xi − Mi / ()Xi + Mi }100 onde IS fornece a medida do comércio intra-setorial para o conjunto do setor industrial e não do produto em particular. Esse indicador varia de grandeza entre 0 e 100. Um valor de 100 significa um comércio intra-setorial o mais elevado possível. O desenvolvimento e a convergência progressiva dos níveis de renda e da complexidade tecnológica das nações conduzem a uma alta troca intra-setorial em oposição às trocas intersetoriais. O primeiro desenvolve-se com o papel crescente das economias de escala e com o aumento do grau de diferenciação dos produtos, e o segundo está relacionado às fontes tradicionais de vantagens comparativas, ou seja, à dotação relativa de fatores. Para a abordagem do comércio intra-setorial, tomaram-se por base, primeiramente, as transações efetuadas entre os dois países dentro do mesmo capítulo (ou setores), ou seja, agrupadas a dois dígitos na classificação da Nomenclatura Comum do Mercosul. Nessa etapa, foi escolhido, para uma análise mais específica, o setor de veículos automóveis, tratores e suas partes, a fim de identificar produtos semelhantes, com mesmo código (oito dígitos), e produtos finais e intermediários. Escolheu-se esse setor pelas suas características de exportador e importador de produtos finais e intermediários, com diferentes variações de conteúdo tecnológico entre eles, o que possibilita confrontação bastante interessante para a análise a ser efetuada. Por essa razão, a indústria automobilística serve, geralmente, de referência para esse tipo de análise. A intenção aqui é dar idéia da existência, ou não, de transação bilateral de partes e componentes contra produtos finais, assim como identificar as transações de produtos similares, caracterizando diferenciação horizontal e de produtos verticalmente diferenciados. A distinção que se pode estabelecer no interior do comércio intra-setorial através da diferenciação de variedade será efetuada calculando-se os valores unitários das exportações e das importações dos mesmos produtos (mesmo código NCM). Se esses valores são próximos (distância menor que 15%), as diferenças de qualidade são supostamente consideradas baixas, e o fluxo estudado corresponderá à diferenciação de variedade. Caso contrário, quando o mesmo produto é importado e exportado a preços muito distantes, a diferenciação será considerada de qualidade.

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4 - Fluxos comerciais entre Brasil e Estados Unidos: uma caracterização

O fluxo de comércio brasileiro durante os anos 80 demonstrou que, de uma maneira geral, a economia brasileira tinha acumulado maior déficit com as regiões nas quais se localizam países desenvolvidos, enquanto tinha obtido excedente com os países em desenvolvimento. Até 1994, tendo em conta a conjuntura de estagflação e a política de desvalorização da moeda nacional, o Brasil apresentou excedente comercial com a União Européia, a Ásia, o Nafta, a América Latina e o Caribe. Contudo o plano de estabilização inverteu essa tendência, fazendo com que, na segunda metade da década de 90, a balança comercial brasileira fosse sistematicamente deficitária. Os déficits comerciais resultaram, evidentemente, do processo de sobrevalorização da moeda brasileira, que estimulou as importações em detrimento das exportações, e foram conseqüência, em grande medida, do processo de reestruturação do aparelho produtivo brasileiro, que produziu um movimento de racionalização da produção. O efeito combinado de uma política de estabilização monetária e de liberalização comercial e financeira intensificou o movimento de reestruturação do aparelho produtivo já engajado nos três primeiros anos da década, conduzindo a déficits na balança comercial do País. A alta do coeficiente de importação acentuou-se muito mais nas indústrias intensivas em tecnologia (bens de capital, bens intermediários elaborados). Essas indústrias importam, notadamente, produtos de mais alta intensidade tecnológica enquanto produzem, localmente, bens de mais baixa intensidade tecnológica. No que se refere à indústria intensiva em recursos naturais (certos bens intermediários) e em mão-de-obra (bens de consumo não duráveis), esse coeficiente cresce em amplitude menor. Entretanto a produção de certos segmentos, como têxtil, vestuário e calçados, apresentou coeficiente de importação muito elevado, revelando uma verdadeira substituição da produção local por importações. Ocorreu um duplo processo de desengajamento produtivo e de déficit na balança comercial. Enquanto o crescimento médio do Produto Interno Bruto estava fraco, as importações aumentaram, e as exportações pouco evoluíram. No contexto de abertura comercial, as empresas não estão mais submetidas a medidas regulamentares para aumentar o conteúdo nacional de sua produção. A busca de ganhos de produtividade e de competitividade estimula-as a suprimirem as atividades julgadas insuficientemente competitivas. As atividades suprimidas são aquelas cuja competitividade não preço, que repousa na formação de um sistema nacional de inovação, exerce papel essencial no seu desempenho. Por

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 71-96, nov. 2003 86 Carlos Américo Leite Moreira; Maria Cristina Pereira de Melo outro lado, as atividades mantidas são essencialmente concentradas na impor- tância dos custos de produção. A geração de superávits no período mais recente se deve, sobretudo, à desvalorização cambial e à redução das importações, em função da queda do nível de atividade econômica. Também contribuiu para a geração desses superávits o redirecionamento das exportações para os mercados dos países desenvolvidos, em função da crise do mercado regional. Grande parte das trocas do Brasil com o mundo efetua-se em sentido único, isto é, sob a forma de importação ou de exportação, sem que o fluxo no sentido contrário tenha nível significativo. As exportações de produtos primários têm ainda forte inserção no comércio mundial. A outra parte decorre, principalmente, do comércio cruzado e se reparte entre as trocas de produtos com qualidades distintas (comércio cruzado em diferenciação vertical) e as trocas de variedade (comércio cruzado baseado em produtos similares de baixa e média qualidade). Uma outra forma de analisar o desempenho exportador do País seria apresentar os ganhos (ou perdas) de competitividade dos principais setores de exportação. Considerando os Estados Unidos como um de nossos principais parceiros (24,4% das exportações em 2001), pode-se detectar tal movimento.1 De uma forma geral, o Brasil vem obtendo ganhos de competitividade nos produtos destinados aos Estados Unidos desde a desvalorização cambial de 1999, não sendo suficientes, no entanto, para recuperar as perdas registradas entre 1994 e 1998 (excetuando-se o setor 88 - aeronaves e outros aparelhos aéreos, etc. e suas partes, cuja recuperação já se havia iniciado em 1996). Alia-se a essas características, o baixo dinamismo da demanda mundial pelos produtos exportados pelo Brasil (Fontenele; Melo, 2002). A análise dos fluxos comerciais brasileiros com os EUA, em 2001, a partir dos capítulos da NCM, permite constatar alguns resultados. Observa-se, primeiramente, que a pauta de importação comporta muito mais itens que a de exportação, no referido ano, foram importados 6.668 produtos diferentes e exportados 3.562. Contudo o indicador de concentração das exportações é de 27,17 e o das importações é de 37,74, o que reflete, em termos de valor, uma

1 O indicador básico de ganho ou perda de competitividade está apresentado em Batista (2002), ou seja, o indicador proposto pelo modelo de market share constante. Esse indicador decompõe as variações na participação das exportações do Brasil nas importações de um mercado (parceiro) em dois componentes: a medida do efeito do produto (por exemplo, calçados) e do efeito da competitividade. O efeito do produto reflete a diferença entre o dinamismo da demanda pelos produtos do setor e o dinamismo da demanda pelo total dos produtos do Brasil. Essa variação será, então, comparada com a mesma medida, caso o market share permaneça constante no período em análise — o que reflete o efeito da competitividade.

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 71-96, nov. 2003 Comércio bilateral Brasil-Estados Unidos:... 87 menor concentração nas vendas do que nas compras. Esse fato é corroborado pela revelação de que 90% das exportações brasileiras estão concentradas em 25 capítulos (ou setores), enquanto o mesmo percentual das importações totaliza 16 capítulos. Dois dos principais capítulos, quais sejam, 84 - reatores nucleares, caldeiras, máquinas, equipamentos mecânicos (terceiro no ranking das exportações e primeiro no das importações) e 85 - máquinas, aparelhos e material elétrico e suas partes (segundo colocado nas duas pautas), correspondiam, em 2001, a 49,8% do total do valor (em dólares correntes) das importações oriundas dos Estados Unidos e a 19,2% das exportações brasileiras para aquele destino. Em termos de número de itens (oito dígitos), os dois capítulos referidos são responsáveis pela importação de 23,5% e pela exportação de 27,6% do total das pautas (Tabela 1).

Tabela 1

Indicadores gerais do comércio bilateral Brasil-Estados Unidos — 2001

ESPECIFICAÇÕES INDICADORES

Índice de concentração das exportações ...... 27,17 Índice de concentração das importações ...... 37,74 Número de itens exportados ...... 3.562 Número de itens importados ...... 6.668 Número de setores responsáveis por 90% das exportações 16 Número de setores responsáveis por 90% das importações 25 Indicador de comércio intra-setorial ...... 15

FONTE DOS DADOS BRUTOS: MDIC.

Os aspectos quantitativos apresentados na Tabela 1 serão mais bem visualizados através da especificação dos setores segundo a intensidade fatorial e a tecnológica. Quando se classificam os fluxos comerciais segundo a intensidade fatorial, constata-se uma concentração das importações em setores intensivos em capital (27%) e tecnologia (64%) e das exportações em setores intensivos em recursos naturais (30%) e tecnologia (47%). Dentre os setores intensivos em tecnologia, há que destacar, do lado das exportações, a participação dos setores 88 - aeronaves e outros aparelhos aéreos, etc. e suas partes (17%) e 85 - máquinas, aparelhos e material elétrico e suas partes (11%) e, do lado das importações, a participação dos setores 84 - reatores nucleares, caldeiras, máquinas (25%) e 85 - máquinas, aparelhos e material elétricos e suas partes (25%).

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Quanto à intensidade tecnológica, os fluxos comerciais entre os dois paí- ses podem ser caracterizados pela participação significativa, no valor total das importações, dos setores com intensidade média alta (69%). No valor das exportações, destacam-se os setores de baixa e média alta intensidade, que, somados, atingem 65% (Tabela 2).

Tabela 2

Comércio Brasil-Estados Unidos segundo a intensidade fatorial e a intensidade tecnológica dos setores — 2001 (%)

DISCRIMINAÇÃO EXPORTAÇÃO IMPORTAÇÃO

Intensidade fatorial Intensivos em recursos naturais ...... 29,55 7,45 Intensivos em mão-de-obra ...... 12,27 2,06 Intensivos em capital ...... 11,39 26,97 Intensivos em tecnologia ...... 46,79 63,52 Intensidade tecnológica Baixa ...... 35,10 8,25 Média baixa ...... 18,30 18,15 Média alta ...... 29,68 69,45 Alta ...... 16,92 4,15

FONTE DOS DADOS BRUTOS: MDIC.

O indicador das trocas intra-setoriais entre Brasil e EUA apresenta um valor considerado relativamente baixo (15) para o ano 2001, fortalecendo o argumento de que o comércio em sentido único é predominante nos fluxos analisados. Apesar desse resultado, é importante qualificar as trocas no interior dos setores a fim de apreender em que níveis elas ocorrem, se diferenciação horizontal ou vertical. Esse indicador apresenta-se de forma diferenciada entre os setores analisados. Alguns deles merecem destaque, como é o caso de 53 - reatores nucleares, caldeiras e máquinas, 64 - máquinas, aparelhos e material elétrico e 54 - veículos automóveis, tratores. Esses resultados confirmam relações intra-setoriais mais fortes do que para o conjunto dos setores; são setores com forte presença de multinacionais, e, portanto, pode-se identificar a ocorrência de relação intrafirma de forma mais evidente. Precisa-se, contudo, observar mais de perto que tipo de troca ocorre no interior desses setores, se há comércio em

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 71-96, nov. 2003 Comércio bilateral Brasil-Estados Unidos:... 89 sentido único (produto final contra bens intermediários) ou em sentido duplo, caracterizado pelas trocas de produtos similares ou diferenciados. Inicialmente, tomam-se para análise os fluxos comerciais intra-setoriais brasileiros com os Estados Unidos através dos 100 principais produtos, em termos de valor, das pautas de exportação e importação do ano 2001. Isso permite melhor avaliação das especificidades dessas transações. Efetuando-se o confronto dos 100 principais produtos de exportação e importação, verifica-se que existe forte concentração desses produtos em alguns setores: do conjunto de produtos aqui considerado, registra-se que 48% dos importados pertencem a somente dois capítulos da NCM, 84 - reatores nucleares, caldeiras, máquinas, equipamentos mecânicos e 85 - máquinas, aparelhos e material elétrico e suas partes), enquanto 25% dos exportados compõem aqueles mesmos setores. O valor das importações dos 100 primeiros produtos corresponde a 46,2% do total da pauta, enquanto, para as exportações, essa participação é de 78,3% (MDIC, 2003). A observação dos 100 principais produtos revela que o maior número de itens da pauta de importação está concentrado em produtos com intensidade fatorial baseada em tecnologia (67). A concentração ocorre também quando se analisam os produtos segundo a intensidade tecnológica: aqueles produtos classificados como de média alta intensidade tecnológica correspondem a 52. Em valor, esses mesmos produtos respondem por 77% e 63%, respectivamente, do total do valor importado do conjunto de produtos considerados. Quanto às exportações, a maior quantidade de itens concentra-se em produtos de baixa intensidade tecnológica (46), contudo, em valor, há uma maior distribuição entre as demais categorias, se comparadas com as compras. A intensidade fatorial indica que, do conjunto considerado, o número de itens mais significativo é o referente aos produtos intensivos em tecnologia (43), seguido daqueles intensivos em recursos naturais (29), totalizando os primeiros 49,7% do valor total das exportações dos 100 produtos mais importantes no ranking. Esses resultados são, de certa forma, esperados, tendo em vista que os valores agregados aos produtos intensivos em tecnologia e aos produtos de alta e média alta intensidade são muito mais expressivos, e, por conseguinte, justificam-se as suas posições no ranking dos 100 principais produtos das pautas de importação e exportação (Tabela 3). A análise do comércio intra-setorial de maneira mais detalhada só é possível quando se compatibilizam produtos pertencentes à mesma indústria. Conforme foi argumentado na metodologia, a escolha do setor 87 (veículos, automóveis tratores, etc., suas partes/acessórios) deveu-se às suas características de exportador e importador de produtos finais e intermediários com conteúdos tecnológicos distintos entre eles.

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 71-96, nov. 2003 90 Carlos Américo Leite Moreira; Maria Cristina Pereira de Melo

Tabela 3

Comércio Brasil-Estados Unidos segundo a intensidade tecnológica e a intensidade fatorial dos 100 produtos mais importantes em valor — 2001

IMPORTAÇÃO EXPORTAÇÃO DISCRIMINAÇÃO Número % Número % Intensidade tecnológica Alta ...... 31 27,8 13 30,4 Média alta ...... 52 63,7 28 18,8 Média baixa ...... 9 3,1 13 7,3 Baixa ...... 8 5,4 46 43,5 Intensidade fatorial Intensivos em tecnologia ...... 67 77,0 43 49,7 Intensivos em capital ...... 27 18,2 12 13,2 Intensivos em mão-de-obra ...... 2 0,6 16 16,0 Intensivos em recursos naturais 4 4,2 29 21,1

FONTE DOS DADOS BRUTOS: MDIC.

Em 2001, o setor 87 brasileiro exportou para os Estados Unidos 59 produ- tos diferentes (13 produtos finais e 46 produtos intermediários) e importou 95 (33 produtos finais e 62 produtos intermediários). Desse conjunto, há ocorrência de 54 itens que são comuns nas pautas de exportação e importação (Tabela 4).

Tabela 4

Número de produtos do Capítulo 87 da NCM comercializados entre Brasil e Estados Unidos — 2001

PRODUTOS PRODUTOS COMÉRCIO TOTAL FINAIS INTERMEDIÁRIOS Exportação ...... 13 46 59 Importação ...... 33 62 95 Produtos comuns ...... 9 45 54

FONTE DOS DADOS BRUTOS: MDIC.

Pode-se constatar que o comércio intra-setorial é particularmente elevado na indústria automobilística. O indicador de Grubel & Lloyd desse setor para o comércio entre o Brasil e os Estados Unidos é de 53%, bem acima dos 15% do

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 71-96, nov. 2003 Comércio bilateral Brasil-Estados Unidos:... 91 conjunto dos setores brasileiros. Entretanto esse indicador revela o total das transações ocorridas dentro do mesmo setor, ou seja, tanto o comércio em sentido único (bens intermediários contra bens finais) quanto o comércio em sentido duplo, quando há trocas de produtos de diferentes variedades ou qualidades. Uma análise mais detalhada do comércio intra-setorial mostra o predomínio do comércio de qualidade sobre o de variedade. Observa-se que, do total de 45 produtos intermediários comuns (mesmo código NCM), 35 representam o comércio cruzado de qualidade (valores unitários superiores a 15%) e somente dois produtos estão relacionados com o comércio cruzado de variedade (valores unitários inferiores a 15%). Para os demais oito produtos não havia registro da quantidade exportada, o que não permitiu o cálculo dos respectivos valores unitários. Em relação, especificamente, às trocas de produtos diferenciados, 25 produtos intermediários mostram uma distância de valores unitários favorável às importações, e apenas em 10 produtos esse diferencial é em favor das exportações. Quanto aos produtos finais, dos nove produtos comuns, cinco são considerados similares, e quatro, com qualidades diferenciadas. Deve-se salientar que os produtos finais desse setor exportados pelo Brasil incluem componentes importados com conteúdo tecnológico mais forte, o que justifica, em parte, a proximidade dos valores unitários de alguns desses produtos exportados com os importados (Tabela 5).

Tabela 5 Produtos do Capítulo 87 segundo a diferença dos valores unitários entre exportação e importação — 2001

PRODUTOS FINAIS PRODUTOS ESPECIFICAÇÃO INTERMEDIÁRIOS (1) Valor X > M Valor X < M Valor X > M Valor X < M Produtos com diferença de valor unitário < 15% ...... 2 3 2 - Produtos com diferença de valor unitário > 15% ...... - 4 10 25

FONTE DOS DADOS BRUTOS: MDIC. (1) Para oito dos produtos intermediários não foi possível identificar o valor unitário.

Grande parte dessa configuração do comércio da indústria automobilística está relacionada com as estratégias de produção, assim como as modalidades de implantação das empresas multinacionais norte-americanas do setor. Essas empresas estabelecem uma estrutura de comércio entre a matriz e as filiais no

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 71-96, nov. 2003 92 Carlos Américo Leite Moreira; Maria Cristina Pereira de Melo contexto tanto de um comércio entre produtos finais ou entre produtos interme- diários quanto de uma integração internacional vertical entre componentes e bens finais.

5 - Notas conclusivas

O fluxo de comércio bilateral entre o Brasil e os Estados Unidos favorece, predominantemente, o comércio intersetorial, mas também o comércio intra- -setorial fundamentado na diferenciação vertical. O desenvolvimento das trocas bilaterais entre Brasil e Estados Unidos apresenta, portanto, dupla configuração. A primeira refere-se às trocas em termos de comércio intersetorial, ou seja, as trocas distinguem-se sensivelmente quando se consideram os setores exportadores segundo a utilização de fatores de produção e a intensidade tecnológica dos produtos. Quanto à intensidade de fatores, percebe-se uma concentração das importações em setores intensivos em capital e em tecnologia e das exportações em setores intensivos em recursos naturais e em tecnologia. Quanto à intensidade tecnológica dos produtos, os fluxos comerciais entre os dois países podem ser caracterizados pela forte presença no valor total das importações correspondente aos setores com intensidade média alta; e no valor das exportações, destacam-se os setores de baixa e média alta intensidade. A análise dos 100 principais produtos revela que a pauta de importação brasileira está concentrada em produtos de alta e média alta intensidade tecnológica, enquanto as exportações se concentram em produtos de baixa intensidade tecnológica. A intensidade fatorial indica que, do conjunto considerado, o número de itens exportados mais significativo é o referente aos produtos intensivos em tecnologia seguido daqueles intensivos em recursos naturais. As importações estão concentradas em produtos intensivos em capital e em tecnologia. A segunda está associada ao comércio intra-setorial, ou em sentido duplo, no qual os produtos são diferenciados verticalmente em razão de fatores tais como as despesas com inovação ou a qualificação da mão-de-obra. Esse tipo de troca está relacionado a uma especialização dos países em diferentes qualidades no interior de um mesmo setor. A análise do comércio intra-industrial para o setor automobilístico mostrou o predomínio do comércio de qualidade sobre o de variedade (bens similares). Em relação, especificamente, às trocas de produtos diferenciados verticalmente do setor automobilístico, os resultados revelam um diferencial de valores unitários sensivelmente favorável às importações, o que denota a composição dessa pauta recheada de produtos com conteúdo tecnológico mais denso do que a pauta das vendas. Nesse contexto, não se

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 71-96, nov. 2003 Comércio bilateral Brasil-Estados Unidos:... 93 pode deixar de salientar a importância das firmas multinacionais através do comércio intrafirma nesse setor, no caso brasileiro.

Referências

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Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 71-96, nov. 2003 O cenário regional gaúcho nos anos 90: convergência ou mais desigualdade? 97 O cenário regional gaúcho nos anos 90: convergência ou mais desigualdade?

José Antonio Fialho Alonso* Economista da FEE.

Resumo Neste artigo, estudam-se as mudanças no cenário regional do Rio Grande do Sul, nos anos 90. O objetivo central é avaliar como as mudanças ocorridas nas dinâmicas nacional e internacional afetaram a configuração espacial da produ- ção gaúcha nessa década. Teria havido convergência ou mais desigualdades inter-regionais de renda no Estado? A análise privilegiou duas dimensões territoriais. De um lado, as três macrorregiões (Sul, Norte e Nordeste) do Rio Grande do Sul. De outro, trabalhou-se com as Aglomerações do Sul e do Nor- deste, com a Região Metropolitana de Porto Alegre (RMPA) e com a Região Perimetropolitana de Porto Alegre (RPPA). Nas duas dimensões, observaram- -se uma ampliação das desigualdades regionais e também uma retomada do processo de concentração industrial na Região Metropolitana, permitindo antever dificuldades socioeconômicas para essa área do Estado.

Palavras-chave Desenvolvimento regional; desigualdades regionais; economia regional e urbana.

Abstract This paper presents the findings of a study of the South, North and Northeastern regions of the State of Rio Grande do Sul on the one hand, and of urban agglomerations in the South and the Northeastern, "vis-à-vis" the Perimetropolitan

* O autor agradece a leitura atenta, as críticas e as sugestões dos Economistas Ricardo Brinco e Carlos Águedo Paiva, isentando-os dos equívocos remanescentes. A organização das informações foi realizada pelo estagiário Rafael Amaral, a quem agradece a dedicação.

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 97-118, nov. 2003 98 José Antônio Fialho Alonso and the Greater Porto Alegre regions in the 90’s. The research question was to find out if the state production in the last decade had deepened or evened out the income gap among the regions studied. The findings point to a heavy concentration of industries around the capital city of Porto Alegre on the one hand and to a greater income regional differences on the other. Such findings allow the author to predict socio-economical difficulties for the Greater Porto Alegre region.

Os originais deste artigo foram recebidos por esta Editoria em 12.09.03.

A questão das desigualdades regionais no Rio Grande do Sul é um tema que tem ocupado espaço crescente na agenda política do Estado. É possível que, além do histórico quadro de disparidades regionais existentes em nosso meio, a criação dos Conselhos Regionais de Desenvolvimento (Coredes)1, em meados dos anos 90, e a proposta, felizmente frustrada, de criação do Estado de Piratini na porção Sul do Estado (Bandeira, 2003, p. 520) tenham contribuído de forma importante para a conscientização da questão regional, não só na metrópole, mas também em muitos lugares do interior do Estado. Tal aumento de interesse no campo político não tem tido contrapartida equivalente na área acadêmica, o que dificulta, sobremaneira, a compreensão dessa problemática, dado que vários aspectos que envolvem o tema das disparidades estão encober- tos ou são conhecidos apenas superficialmente, dificultando não só o debate, mas também a formulação de políticas nesse campo. As duas últimas décadas do século passado, em especial os anos 90, reuniram muitas particularidades, mas o mais relevante é, inegavelmente, o con- junto de transformações econômicas e sociais que vêm ocorrendo no capitalis- mo mundial, com reflexos diretos e diferenciados nas mais diversas regiões do globo. Obviamente, o Brasil vem incorporando os efeitos da reestruturação inter- nacional em sua dinâmica econômica desde o final dos anos 70. Além disso, nesse tempo, o País adotou, com muita ênfase, um conjunto de princípios e propostas para a superação da crise gestado nos países centrais, principalmen- te nos EUA e na Inglaterra, sob a égide do Consenso de Washington. Tais formu- lações, de certa forma dogmáticas, passaram a fazer parte do cotidiano brasilei- ro, em especial ao longo da década de 90, tendo representado um papel central

1 Os Coredes foram criados pela Lei nº 10.283, de 17.10.1994 (Coredes, 1999).

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 97-118, nov. 2003 O cenário regional gaúcho nos anos 90: convergência ou mais desigualdade? 99 na política econômica da União Federal e sendo imediatamente repassadas aos estados brasileiros. O Rio Grande do Sul teve uma “rica” (?) experiência nesse sentido. Na economia brasileira, as últimas duas décadas do século passado, pelo menos até 1994, foram caracterizadas por permanente instabilidade. Os anos 80 foram marcados por inflação galopante, endividamento interno/externo cres- cente, desemprego em alta e baixas taxas de crescimento do PIB. Isso tudo significou empobrecimento generalizado das camadas médias e aumento da exclusão social. No plano institucional, a política econômica esteve voltada a dois objetivos. De um lado, os esforços no sentido da estabilização dos preços foram todos frustrados em meio à edição sucessiva de “programas e pacotes” (Cruzado 1 e 2, Plano Bresser, Plano Verão). De outro, as energias do País eram postas a serviço da obtenção de saldos comerciais para fechar o balanço de pagamentos a cada final de ano. Pelo menos parcialmente, o Rio Grande do Sul foi beneficiado com os grandes estímulos às exportações concedidos nes- se período. No final dos anos 80, as expectativas eram positivas, imaginando-se que a década seguinte, de alguma forma, seria promissora, pois o País recuperara a “plena” democracia e havia promulgado uma nova Constituição. Todavia a situa- ção da economia brasileira estava estruturalmente deteriorada, dado que o volu- me de investimentos, públicos e privados, foi muito escasso na década anterior, o mesmo ocorrendo com a absorção de novas tecnologias. Portanto, no limiar dos anos 90, a economia brasileira encontrava-se muito fragilizada do ponto de vista dos fundamentos para o seu crescimento. O debate, à época, tanto na academia quanto no meio político, estava focado na questão de como encaminhar o País para a recuperação econômica e social com estabilidade. Predominaram as propostas de corte “neoliberal”, consideradas por seus defensores idéias “modernizantes”, que se contrapu- nham ao “atraso” das demais posições. Pode-se considerar que essas idéias “venceram”, na medida em que presidiram crescentemente a política econômica e os rumos adotados. Assim sendo, nos primeiros anos da década de 90, a política econômica estava baseada em dois pilares: a abertura comercial e a redução do tamanho do Estado. Esses dois componentes representaram precondições para a formulação, em 1994, do Plano Real, que incorporou o terceiro pilar, não menos importante: a âncora cambial. Portanto, os anos se- guintes até 1998 foram marcados pela consolidação da exposição do País à selvagem concorrência internacional, por um vigoroso processo de venda de ativos estatais e pela manutenção, por longo período, de uma taxa cambial irreal, falsa. Inegavelmente, a inflação crônica foi debelada, o componente inercial foi removido, e os preços mantiveram-se baixos até o fim da década. Todavia, o

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preço pago pela sociedade brasileira foi e está sendo elevado até hoje, e o será por vários anos ainda. As taxas de crescimento do produto apresentaram ten- dência cadente e em níveis que podem ser considerados medíocres face às necessidades do País. O desemprego, que já era elevado, praticamente dobrou em algumas regiões metropolitanas, no período 1994-99. Em janeiro de 1999, o Plano Real ruiu em sua concepção original, não sendo mais possível manter o câmbio artificialmente apreciado como nos cinco anos anteriores. O câmbio sobrevalorizado representava uma das principais restrições ao crescimento, prin- cipalmente através das exportações. Portanto, a maxidesvalorização estabele- ceu, em alguma medida, um espaço para o crescimento econômico, em espe- cial nas regiões cujas economias dispunham de maior abertura para o Exterior. A economia do Rio Grande do Sul sempre esteve integrada à economia brasileira, em especial à do Sudeste do País. Esteve também, historicamente, articulada ao mercado internacional, porque dispõe de um dinâmico segmento exportador. Nesse sentido, foi duplamente beneficiada pela nova situação: de um lado, houve a possibilidade de retomada das vendas ao Exterior, beneficiada pelo câmbio mais favorável; de outro, a possibilidade de uma articulação maior com o resto do Brasil, em especial com o eixo SP-RJ-MG, que também passou a operar sem as amarras da situação anterior. Afinal, uma taxa de câmbio mais realista acaba sendo uma barreira para a importação de bens que podem ser produzidos internamente, de forma competitiva. Na verdade, o Plano Real representou, nos anos 90, um divisor de águas para o desempenho da economia do Rio Grande do Sul. Esse fato é demonstra- do pelas taxas de crescimento do produto do Estado quando comparadas com as do País. Observa-se a ocorrência de duas inversões no comportamento das taxas relativas ao País e ao Estado em apenas uma década. As inflexões ocorrem, justamente, no início da implementação do Plano de Estabilização (1994) e no final de sua fase de concepção original (1998). As condições adversas para a economia gaúcha somente começaram a mudar a partir da maxidesvalorização (jan./99). Pelo menos, as condições externas passaram a ser mais favoráveis, permitindo que o segmento exportador vislumbrasse possibilidades de resgate de parcelas perdidas de mercado, principalmente devido ao câmbio apreciado.2

2 A desvalorização cambial não devolveu, nem automática nem imediatamente, a competitividade às exportações do Estado (e do Brasil). Alguns países parceiros comerciais, como a Argen- tina, tiveram suas condições econômicas agravadas com a mudança do câmbio brasileiro, diminuindo suas compras e, até mesmo, descumprindo quotas estabelecidas em acordos de comércio. A reação das exportações somente passou a ser percebida com mais nitidez no final do ano e durante o ano seguinte.

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Além disso, a produção para o consumo doméstico também foi favorecida em função do encarecimento das importações.

Tabela 1

Taxas médias anuais de crescimento do PIB do Rio Grande do Sul e do Brasil — 1990-01 (%) PERÍODO BRASIL RIO GRANDE DO SUL

1990-93 1,78 5,48 1994-98 2,56 0,17 1999-01 2,88 3,77

FONTE: FEE. IBGE.

Há uma questão central a ser estudada e respondida neste texto, qual seja, a do que teria ocorrido com a distribuição espacial da produção nas diferentes regiões do Estado. Ou, dito de outra forma, como esse conjunto de transformações, fora e dentro do País, que resultou em uma sucessão de resultados insatisfatórios, afetou o desempenho econômico das regiões no Rio Grande do Sul? Infelizmente não será possível realizar uma análise exaustiva de todas as regiões e/ou recortes regionais do Estado no âmbito deste artigo. Nesse sentido, optou-se por examinar o desempenho das três ma- crorregiões (Sul, Norte e Nordeste)3 num primeiro momento, passando, a seguir, à análise daquelas áreas que sediam as atividades mais represen- tativas da economia gaúcha em termos de produto e emprego, como a Região Metropolitana de Porto Alegre (RMPA)4, a Região Perimetropolitana de

3 Essa divisão regional foi estabelecida para estudar o crescimento sub-regional de longo prazo no Rio Grande do Sul a partir de um critério de “homogeneidade histórica”. Uma explicação metodológica sobre essa divisão regional pode ser encontrada na Parte IV de Alonso, Bandeira e Benetti (1994). 4 A RMPA, em 2001, último ano da série deste estudo, era constituída por 36 municípios, sendo 31 deles instituídos legalmente (14 por legislação federal e 17 por legislação estadual a partir de 1989). Fazem parte ainda da configuração da RMPA utilizada neste trabalho os municípios de Mariana Pimentel e Sertão Santana (desmembrados de Guaíba), Lindolfo Collor e Presi- dente Lucena (desmembrados de Ivoti) e Morro Rëuter (desmembrado de Dois Irmãos).

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Porto Alegre (RPPA)5, a Aglomeração Urbana do Nordeste (AUNE) e, por fim, a Aglomeração Urbana do Sul (Ausul)6. As informações utilizadas neste estudo são: PIB total e setorial, por município, calculados pela FEE; número de empre- gos formais da Relação Anual de Informações Sociais do Ministério do Trabalho e Previdência Social (RAIS-MTPS); e valor das saídas, da Secretaria da Fazen- da do Rio Grande do Sul.

1 - A distribuição do crescimento macrorregional no Rio Grande do Sul

Diversos estudos7 têm demonstrado, ao longo do tempo, os persistentes desequilíbrios regionais no Rio Grande do Sul. Trata-se de um processo secular, com tendência persistente ao agravamento, qualquer que seja a dimensão ou a divisão regional utilizada. Como nunca houve política regional que objetivasse, com seriedade e consistência, a redução das desigualdades regionais no Esta- do e o mercado é incapaz de reverter esse quadro, exceto em situações excep- cionais, o que observamos é a persistência de tais desníveis, seja em fases de expansão econômica, seja em períodos de crise. Nos anos 90, não foi diferente para as três grandes formações regionais do Estado (Regiões Norte, Sul e Nor- deste). Na Tabela 2, mostra-se uma tendência declinante na participação da Re- gião Sul no PIB do Rio Grande do Sul, até alcançar a posição mais baixa em

Esses municípios têm origem territorial em áreas que já faziam parte da RMPA legal, mas que deixaram de ser parte do aglomerado metropolitano ao se desmembrarem. Do ponto de vista da economia metropolitana, julgamos que os mesmos estão vinculados agora, tanto quanto antes, ao conjunto da RMPA. 5 A noção de Região Perimetropolitana foi extraída de Rio Grande do Sul (1974). Obviamen- te, foram feitos ajustes, principalmente em decorrência das emancipações ocorridas nas últimas décadas e de municípios que, ao longo do tempo, ingressaram na RMPA legal e que, originalmente, faziam parte da Região Perimetropolitana. Trata-se de um recorte que circun- da parcialmente a RMPA e representa uma área de transição entre esta formação e o Aglomerado Urbano do Nordeste, sendo, portanto, uma área de expansão dessas duas aglomerações. Em 1974, esse recorte contava com 42 municípios e, em 2001, com 53. 6 Nos casos das Aglomerações Urbanas do Nordeste (LC nº 10.335/94) e do Sul (LC nº 9.184/ /90), serão utilizadas as configurações legais em vigor, acrescidas dos novos municípios, cuja origem territorial estava em áreas das respectivas aglomerações. 7 Alonso (1984); Alonso e Bandeira (1990); Alonso, Bandeira e Benetti (1994); Governo do Estado do Rio Grande do Sul (1998); e Bandeira (2003).

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2000, com 17,20%,8 enquanto o Norte manteve a sua marca em torno de 27,5%, e o Nordeste, apesar das perdas verificadas entre 1990 e 1998, recuperou a posição inicial, alcançando 54,53% do produto total do Estado em 2001.

Tabela 2

Participação relativa das macrorregiões no PIB do Rio Grande do Sul —1990-2001

REGIÃO REGIÃO ANOS REGIÃO SUL TOTAL NORTE NORDESTE

1990 25,89 54,87 19,24 100 1996 28,87 52,27 18,86 100 1997 28,38 53,12 18,50 100 1998 28,56 52,08 19,36 100 1999 27,98 53,11 18,91 100 2000 26,42 56,38 17,20 100 2001 27,72 54,53 17,75 100

FONTE: FEE/Núcleo de Contabilidade Social.

A Região Sul, também conhecida como “Metade Sul”, manteve, ao longo da sua história, uma estrutura produtiva especializada em muito poucos pro- dutos — na verdade, apenas dois. No passado, carne bovina e lã. Nos últimos 60 anos, estruturou-se, predominantemente, com base em duas cadeias produ- tivas: a do arroz, que, de certa forma, substituiu a da lã, e a da bovinocultura, ambas responsáveis pela geração de grande parte da renda da agropecuária regional. Há, ainda, uma terceira cadeia, a da fruticultura, em Pelotas, muito menos importante do ponto de vista macrorregional, mas relevante do ponto de vista local. O desempenho da economia da Metade Sul depende, fundamentalmente, do dinamismo da agropecuária regional (em torno de 25% do total produzido provêm, exclusivamente, do campo). A região continuou passando por um per-

8 Lembre-se que, em 1939, a Região Sul gerava 38,33% do PIB gaúcho (Bandeira, 2003, p. 534).

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 97-118, nov. 2003 104 José Antônio Fialho Alonso sistente processo de desindustrialização relativa, tendo sua participação no pro- duto industrial do Estado baixado de 12,81% em 1990 para 9,60% em 2001.9 Em algumas áreas da região, constata-se, inclusive, um processo de desindustrialização absoluta, como é o caso das cidades da chamada Campa- nha e da Fronteira Oeste. Na esteira desse declínio, obviamente, os demais setores são atingidos negativamente. Assim, o comércio teve os efeitos da crise regional refletidos em seus indicadores econômicos, tendo reduzido sua partici- pação no PIB comercial do Estado de 18,62% para 15,07% no período 1990-01. Essa queda é um indicador inequívoco da redução do consumo na região. Vale destacar que, do ponto de vista do comércio de mercadorias, alguns municípios da Metade Sul apresentam certas peculiaridades. Algumas cidades fronteiriças, por exemplo, em determinados momentos da sua história, tiveram seu dinamismo dado pelos movimentos do comércio local em função das posições da taxa de câmbio do Brasil com relação aos países limítrofes, Uruguai e Argentina, e também das políticas praticadas por esses países para o comércio de fronteira. Os anos 90 foram dramáticos para o comércio dos municípios brasileiros na fronteira com o Uruguai, dado que este país estabeleceu, para algumas cidades (Rivera e Chuí), um regime comercial baseado na isenção fiscal para mercadorias importadas (free shops), em espe- cial para bens típicos da cesta de consumo das classes média-alta e alta, des- locando uma parcela considerável da demanda por alguns bens de luxo do lado brasileiro para o uruguaio. Essa situação perdurou até janeiro de 1999, quando o sinal foi invertido pela maxidesvaloriação do real, o que significou uma recuperação episódica, nesse ano, para o comércio brasileiro nessa faixa de fronteira. No ano seguinte, o Governo uruguaio adotou medidas rígidas de controle das compras dos seus cidadãos no lado brasileiro, fazendo com que a posição relativa dessa parte da Metade Sul, no contexto do Estado, voltasse a cair novamente, configurando um aprofundamento de uma crise regional semi-secular.10 Outro local que guarda uma especificidade é Santa Maria, que tem sua economia altamente terciarizada, tendo em torno de 83% do PIB originado nesse setor. Grande parte do Terciário

9 Para uma região que chegou a gerar 34,57% de toda a produção industrial do Rio Grande do Sul em 1939, alcançar uma participação de 9,6% em 2001 é revelador da perda acentuada de dinamismo do seu parque industrial na segunda metade do século XX. As principais causas dessa derrocada, certamente, não estão localizadas no plano externo à região, mas, sim, em aspectos estruturais de natureza interna. Não há, igualmente, restrições ambientais, tal como ocorre em outras regiões deprimidas do País. 10 Os municípios que mantêm relação comercial mais direta, pela sua proximidade física, com o Uruguai são os seguintes: Santa Vitória do Palmar (mais Chuí), Jaguarão, Bagé (mais Aceguá),

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 97-118, nov. 2003 O cenário regional gaúcho nos anos 90: convergência ou mais desigualdade? 105 dessa cidade é constituído por atividades governamentais das três esferas de governo. Isso significa que, mensalmente, há um grande ingresso líquido de renda (massa de salários) pago a residentes pelo setor público (estadual e fe- deral). Ora, essa massa salarial, bem como outras despesas de custeio do setor público, sofreu uma notável queda real nos anos 90, por conta do corte neoliberal que caracterizou as políticas públicas durante a década,11 em especial o enxugamento do setor público. A Região Norte, em grande parte formada pelo planalto rio-grandense, tem apresentado desempenho diferente do da Região Sul, embora mantendo em comum o fato de sua base econômica estar calcada na agropecuária (27,6% do PIB regional provêm desse setor). As semelhanças, todavia, param por aí. Além de possuir uma estrutura de propriedade da terra rural predominantemente cons- tituída por pequenas e médias propriedades, e, talvez, até por essa razão, reto- mou, nos anos 80 e 90, o caminho da diversificação econômica, rearticulando pelo menos seis linhas de produção ou cadeias representadas por soja, milho, carnes suínas e de aves, laticínios e fumo.12 Apesar de todas as dificuldades internas e externas à economia brasileira nos anos 90, os resultados obtidos foram significativamente superiores aos da Região Sul, igualmente de base agropecuária. De fato, a Região Norte manteve participações relativas no PIB estadual flutuando em torno de 27,68% (média aritmética de sete anos da déca- da). Esse resultado global foi assegurado pelos desempenhos integrados da agropecuária e da indústria regional,13 dado que o setor serviços experimentou pequena queda relativa com relação ao Estado nesse período.

Santana do Livramento e Quaraí. Esses municípios, agregadamente, geravam 2,58% do PIB comercial do Rio Grande do Sul em 1990; 2,00% em 1996; 1,62% em 1998; 2,17% em 1999; 2,00% em 2000; e 1,71% em 2001. 11 Em 1990, Santa Maria gerava um PIB comercial de 2,69% do comércio estadual, passando a 3,12% em 1996. Todavia, no período do auge das privatizações e do enxugamento do setor público (Administração Direta), o declínio foi constante. Nesse sentido, em 1998, a participação havia caído para 2,45%; para 2,41% em 1999; para 2,12% em 2000; e para 1,99% em 2001. 12 Antes do “boom agrícola do milagre” (1968-80 aproximadamente), a produção primária regional caracterizava-se por um regime de policultura. Durante o milagre, especializou-se rapidamente no binômio trigo-soja, configurando uma situação de quase-monocultura. Du- rante a crise dos anos 80, sem o crédito barato, nem os subsídios, nem os preços mínimos dos anos 70, essa estrutura teve flexibilidade suficiente para articular o importante proces- so de diversificação produtiva acima referido. 13 A agropecuária regional produz mais da metade do PIB do setor no Estado. Em 1990, produziu 52,73% do setor no Rio Grande do Sul e, em 2001, atingiu 54,63%. A agroindústria da região acompanhou essa tendência, mas com cifras mais expressivas. Em 1990,

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Três aspectos relevantes contribuíram para o avanço do setor produtivo regional da Região Norte na década de 90. O primeiro refere-se à reconversão operada pelos produtores agrícolas regionais face ao corte do apoio governa- mental à agricultura a partir do início dos anos 80. O segundo foi o papel de articulador exercido, junto aos produtores rurais da região, pelas cooperativas remanescentes da crise que as atingiu nos anos 80. O terceiro foi a reestruturação internacional, reproduzida e consolidada no País, nos anos 90. Tal como ocorreu em âmbito nacional, a reestruturação do agronegócio na região fez-se com base na concentração, na centralização e na desnacionalização de atividades, tanto a montante quanto a jusante da agropecuária. Os segmentos mais atingidos por esse processo foram a avicultura, os derivados do leite e do fumo e as máquinas e implementos agrícolas.14 A Região Nordeste reveste-se de características bem distintas das de- mais macrorregiões do ponto de vista da estrutura econômica. Apenas 3,50% (em 2001) da sua produção é de origem agropecuária, sendo o restante (96,50%) gerado pela indústria e pelos serviços, atividades tipicamente urbanas. Outra característica que a distingue do resto do Estado procede do fato de mais da metade do seu PIB (51,57% em 2001) ser industrial. Do ponto de vista do desenvolvimento econômico, é a área que acumulou maior volume de investimentos em geral ao longo do século XX, mas especial- mente na sua segunda metade, assegurando-lhe a consolidação da posição de região mais desenvolvida do Estado. Corrobora essa afirmação o fato de esta- rem aí concentrados 70% (em 2001) do parque industrial gaúcho, 61% (em 2001) de todo o movimento comercial e, ainda, mais da metade da oferta dos demais serviços do Rio Grande do Sul. Tal volume de atividades econômicas e de infra- -estrutura, aglomerado numa extensão territorial equivalente a 9,7% do total do Estado, exerce uma forte atração em relação não só aos capitais, mas também à população em busca de melhores condições de vida. Nesse sentido, o movi-

contribuía com 17,24% do PIB industrial do Estado e, em 2001, com 20,06%. Os principais gêneros industriais são: produtos alimentares (carnes de aves e suínas, soja e lácteos), mecânica (máquinas e implementos agrícolas) e fumo. Embora os dois primeiros ramos tenham localização dispersa na região, deve-se destacar que uma parte desses três gêneros, tendencialmente, vem se localizando a oeste e próximo da RMPA. Dos 20,06% de participação relativa da indústria regional, 8,44% são produzidos em apenas sete municí- pios localizados nas proximidades da RMPA (Estrela, Lajeado, Santa Cruz do Sul, Taquari, Teutônia, Venâncio Aires e Vera Cruz), constituindo, em alguma medida, uma extensão do seu campo aglomerativo. 14 Sobre a reestruturação do agronegócio no Brasil e no Rio Grande do Sul, nos anos 90, ver Benetti (2000).

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 97-118, nov. 2003 O cenário regional gaúcho nos anos 90: convergência ou mais desigualdade? 107 mento migratório entre as três macrorregiões apresenta saldo positivo somente na Região Nordeste, apresentando-se negativo nas demais.15 Outra característica peculiar da Região Nordeste refere-se à sua territorialidade, na medida em que reúne, pelo menos, duas dimensões aglomerativas, uma de caráter metropolitano (RMPA) e outra, ainda, não metro- politana (AUNE). Essas áreas são, inegavelmente, as mais dinâmicas da eco- nomia gaúcha. Há, ainda, uma extensa área situada entre esses dois aglomera- dos, denominada Região Perimetropolitana, cuja dinâmica espacial depende, fundamentalmente, do desempenho dos dois aglomerados anteriormente cita- dos.16 As mudanças estabelecidas pela política econômica do País (abertura co- mercial, Plano Real com câmbio apreciado artificialmente e política monetária com altas taxas de juros) representaram um remédio amargo para a economia gaúcha, pelo menos até janeiro de 1999. Nesse período, o segmento industrial exportador foi duramente atingido, perdendo competitividade devido ao câmbio sobrevalorizado. Grande parte desse segmento está localizada na Região Nor- deste, o que levou a mesma a sofrer uma perda na participação no PIB industrial do Estado, de 69,96% em 1990 para 66,15% em 1998. A maxidesvalorização de janeiro de 1999 representou a remoção da principal restrição à expansão das exportações na época. O reflexo dessa ocorrência sobre o desempenho indus- trial da Região Nordeste foi a retomada do espaço perdido no contexto estadual, alcançando 67,95% em 1999, 71,81% em 2000 e 70,35% em 2001.17

15 Estimativa realizada por Bandeira (2003, p. 541) mostra que, no período 1980-91, o saldo migratório da Região Nordeste foi de 414.565 habitantes e de 153.431 habitantes entre 1991 e 1996. Apesar da tendência decrescente desse saldo, o mesmo pode ser conside- rado elevado. 16 Há outros recortes territoriais singulares na Região Nordeste, como o Litoral Norte e a Área Turística da Serra (Gramado, Canela e Nova Petrópolis). Esta última está incluída na RPPA. O Litoral Norte não será analisado no âmbito deste artigo devido à sua baixa participação na formação do PIB gaúcho: apenas 0,88% em 2001. Todavia merece registro devido à sua própria configuração espacial. Trata-se de um conjunto de municípios (Arroio do Sal, Capão da Canoa, Cidreira, Imbé, Osório, Torres, Tramandaí e Xangri-Lá), cujas áreas urbanas estão situadas ao longo da costa (Litoral Norte), grande parte delas conurbadas. A economia desse recorte depende, fundamentalmente, do fluxo sazonal (dezembro a fevereiro) de turismo interno. Na verdade, são cidades balneárias. 17 A queda na participação entre 2000 e 2001 foi devida, no plano externo, à desaceleração sincronizada da economia mundial, com forte retração nos EUA, desaceleração na Europa, recessão no Japão e agravamento da crise argentina (Calandro; Campos, 2002, p. 129). No plano interno, a taxa de juros interrompeu a tendência declinante do ano anterior, o câmbio deixou de se desvalorizar, e reduziu-se, significativamente, a capacidade ociosa do parque fabril do Estado. Resultado: a indústria de transformação do Rio Grande do Sul cresceu apenas 2,7% em 2001. Grande parte dos gêneros que apresentaram resultados

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O Setor Terciário apresentou resultado mais consistente do que a indústria da Região Nordeste no contexto do Estado, na medida em que elevou persisten- temente, sem flutuações significativas, sua participação no PIB do setor do Rio Grande do Sul, passando de 51,03% em 1990 para 53,24% em 2001. Até onde a abertura dos dados do PIB terciário permite observar, foi o comércio de merca- dorias o maior responsável pelo avanço verificado por esse tipo de atividade da Região Nordeste no contexto estadual. O comércio da região elevou expressiva- mente sua participação no PIB do comércio do Rio Grande do Sul, de 55,93% em 1990 para 61,28% em 2001.18 Uma confirmação dessa constatação pode ser observada pelo tamanho do emprego formal (RAIS) da Região Nordeste no total do Estado. Em 2001, essa região detinha 65,8% do emprego formal urbano do Rio Grande do Sul, uma prova inconteste da grande concentração da deman- da por consumo no Estado. Com base nessas observações, que envolvem as macrorregiões Sul, Norte e Nordeste, pode-se concluir, portanto, que o quadro de desigualdades regionais no Rio Grande do Sul agravou-se nos anos 90. Numa década de taxas de cres- cimento modestas, tanto no Brasil como no Rio Grande do Sul, a iniqüidade macrorregional foi aprofundada, principalmente, pelo declínio persistente da Re- gião Sul, uma tendência semi-secular.

2 - O desempenho de alguns recortes regionais notáveis no Rio Grande do Sul

O aprofundamento das disparidades regionais no Estado é revelador da ineficiência relativa dos mercados na tarefa de alocação eficiente dos recursos

negativos mais expressivos são aqueles que estão, majoritariamente, situados na Região Nordeste (química; produtos alimentares; vestuários, calçados e artefatos de tecidos; e material elétrico e de comunicações). Apresentaram desempenho positivo os gêneros material de transporte e mecânica. Ambos estão localizados predominantemente na Região Nordeste, mas a mecânica tem forte presença na Região Norte do Estado, com a produção de máquinas e implementos agrícolas. Foi justamente esse segmento o que mais cresceu em 2001, movido pela forte expansão agrícola e por um expressivo programa de crédito do BNDES, o Moderfrota. Essa expansão contribuiu para o aumento da participação relati- va da Região Norte no PIB industrial do Estado, de 19,03% em 2000 para 20,06% em 2001, e para uma queda dessa participação da Região Nordeste, de 71,81% para 70,35% no mesmo período. 18 O aumento mais significativo ocorreu entre 1990 e 1996, quando a participação relativa passou de 55,93% para 59,92%. A partir daí, o avanço obedeceu a pequenas flutuações até alcançar 61,28% em 2001.

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 97-118, nov. 2003 O cenário regional gaúcho nos anos 90: convergência ou mais desigualdade? 109 no território e de estabelecimento de processos convergentes de desenvolvi- mento, bem como da incapacidade governamental para mitigar, através de suas políticas, esses desequilíbrios regionais. Apesar de esclarecedoras, essas constatações encobrem alguns aspectos próprios do desenvolvimento regional, principalmente no interior dessas formações regionais. Por essa razão, convém examinar o desempenho e a configuração territorial dos recortes mais importan- tes dessas macrorregiões, em termos de dinamismo, sob os impactos da reestruturação e das políticas econômicas vigentes nos anos 90.19 Na Macrorregião Sul, destaca-se o conjunto de municípios que constitui a Ausul20, localizada no sudeste da região. A importância dessa aglomeração, em termos de geração do produto, variou, nos anos 90, com tendência de queda relativa, acompanhando o comportamento da região como um todo. Essa ten- dência verificou-se não só com relação ao produto total, mas também setorialmente. A Ausul, em especial as Cidades de Pelotas e Rio Grande, sem- pre exerceu um papel polarizador do desenvolvimento regional, não só nas fases de expansão econômica, quando chegou, inclusive, a ser o principal centro in- dustrial do Estado,21 mas também durante o longo declínio econômico e social experimentado pela região. Nos anos 90, a Ausul produziu em torno de um quarto do PIB total da macrorregião, mais de 50% do seu PIB industrial e pouco mais de um terço do comercial, tendo, inclusive, ampliado sua participação nes- ses dois setores, no contexto da Região Sul, nos anos 90. Cabe, no entanto, desagregar essas informações para verificar o que, de fato, ocorreu com a eco- nomia desses dois centros urbanos. Do ponto de vista econômico, a Cidade de Pelotas foi a mais atingida pelos impactos da reestruturação, pela abertura comercial e pelo acordo do Mercosul nos anos 90. Esses fatores acabaram por reforçar, nesse período, o longo declínio econômico a que o município esteve submetido por muitas décadas. Em 1990, o município gerava 2,64% do PIB estadual, caindo para 1,70% em 2001.22 A queda ocorreu em todos os setores da economia urbana, mas o pior resultado foi observado na indústria pelotense, outrora o carro-chefe da economia do muni- cípio. Esse setor representava 3,01% da produção industrial do Estado em 1990,

19 Considera-se que as políticas econômicas incorporaram, por inteiro, os freqüentes cho- ques externos nos anos 90, que afetaram, tão diretamente, a economia brasileira. 20 Essa aglomeração foi constituída inicialmente por Pelotas e Capão do Leão (LC nº 9.184, de 26.12.1990). Em dezembro de 2002, foi acrescida de Rio Grande, São José do Norte e Arroio do Padre (LC nº 271/2002). 21 Até, pelo menos, o final do século XIX. 22 Em 1939, essa participação era de 4,78%.

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 97-118, nov. 2003 110 José Antônio Fialho Alonso passando para 1,02% em 2001, certamente a marca mais baixa da sua história. Tal desempenho teve como contrapartida, no plano social, a perda de 50,37% dos empregos formais (RAIS) do setor,23 queda não determinada pela moderni- zação do parque industrial, mas, sim, pela perda pura e simples da função manufatureira que a cidade desempenhou no passado.24 Nesse sentido, há si- nais de que Pelotas consolida o papel de importante centro regional de comércio e serviços do sudeste do Estado. A economia da Cidade de Rio Grande teve uma trajetória distinta da de Pelotas nos anos 90. Embora façam parte da mesma formação regional, há, no caso de Rio Grande, algum tipo de singularidade,25 que lhe tem assegurado resultados distintos dos alcançados pela cidade vizinha. Na verdade, pelo me- nos depois de 1939, a economia de Pelotas apresentou níveis mais elevados de atividade em termos do PIB, todavia a diferença veio diminuindo até que, a partir de 1996, Rio Grande passou a ocupar a dianteira. O que impulsionou a economia de Rio Grande nos anos 90 foi, novamente, a performance expressiva do setor industrial, que produzia 2,98% do produto industrial gaúcho em 1990 e passou para 4,08% em 2001.26 Essa expansão foi calcada em dois gêneros industriais presentes há muito tempo no município, a saber, o de produtos alimentares — com destaque para a produção de óleos vegetais em bruto — e o da química — constituído por dois segmentos, o de refino de petróleo e derivados e a fabricação de fertilizantes fosfatados, nitrogenados e potássicos. O ramo dos fertilizantes teve um forte estímulo nos últimos anos desse período, integrado que esteve à notável expansão da agricul- tura. Cabe sublinhar que o avanço industrial de Rio Grande apenas consolidou a especialização do município na produção de produtos químicos e alimentares,

23 Em 1990, a indústria pelotense empregava formalmente 16.320 trabalhadores (RAIS), pas- sando para 8.100 em 2001. 24 Em 1939, o parque industrial de Pelotas representava 5,97% do produto do setor manufatureiro do Rio Grande do Sul. 25 Historicamente, a Cidade de Rio Grande tem sido a porta de saída e de entrada da produção do Estado. Por essa razão, dispõe de uma infra-estrutura portuária que a credencia a se integrar a todo o movimento de expansão da economia gaúcha. Na verdade, a cidade tem sido privilegiada com o aporte de investimentos, públicos e privados, toda vez que a economia do Estado necessita melhorar a circulação de suas mercadorias até o Exterior. Foi assim nos anos 70, com investimentos na modernização do próprio porto, na construção de terminais graneleiros e na melhoria dos acessos rodoviários (rodovia 392). Mais recentemente, nos anos 90, verificou-se novo movimento no sentido de modernizar o porto para atender às demandas oriundas do acordo do Mercosul, bem como do(s) projeto(s) automotivo(s) que ingressava(m) no Rio Grande do Sul. 26 Em 1990, o município gerava 2,37% do PIB estadual, passando para 2,58% em 2001.

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 97-118, nov. 2003 O cenário regional gaúcho nos anos 90: convergência ou mais desigualdade? 111 não havendo nada que aponte para o início de um processo de diversificação industrial, o que seria desejável. Esse movimento da indústria rio-grandina asse- gurou, pelo menos, a manutenção dos empregos formais do setor, chegando ao ano 2001 com 8.845 empregados (RAIS), praticamente o mesmo número exis- tente em 1990. A análise do desempenho da Ausul permite concluir que a passagem de mais uma década reproduziu, para o principal pólo de desenvolvimento da Macrorregião Sul, a mesma tendência declinante dos decênios anteriores quan- to à sua importância relativa no quadro do Estado. Nesse cenário, dois aspectos devem ser destacados. De um lado, a recuperação expressiva da indústria de Rio Grande, insuficiente para compensar as perdas do resto da economia da Ausul. De outro, a acentuada desindustrialização, absoluta e relativa, de Pelotas e sua consolidação no papel típico de centro regional de comércio e serviços.27 Há, ainda, outros três recortes regionais importantes a serem estudados: a RMPA, a AUNE e a RPPA.28 Esses três conjuntos regionais têm características próprias, mas funcionam articuladamente entre si, com o resto do Estado e com o Exterior, constituindo o maior complexo urbano industrial do Estado. Em torno de 94% da produção dos três recortes é urbana. Além disso, em apenas 10,35% do território estadual estão concentrados 79,19% do parque industrial gaúcho, 63,32% do movimento comercial e 55,05% das atividades terciárias. Esse grau de concentração espacial aumentou nos anos 90, especialmente nos setores comercial e industrial. Qual foi, então, o desempenho de cada um desses três recortes regionais? Iniciemos com a RMPA. Foi na RMPA que ocorreram as mudanças mais significativas observadas na década. Na área do trabalho, o aspecto mais negativo foi o aumento persis- tente do desemprego até 1999 pelo menos,29 acompanhado de forte precarização das condições de trabalho. Mudança igualmente relevante ocorreu na trajetória espacial da indústria, na década de 90. Na segunda metade dos anos 70 e nos anos 80, havia indicativos de que se desenhava um processo de desconcentração industrial no Estado a partir de Porto Alegre (Alonso; Bandeira, 1988). Nesse

27 Vinte e cinco por cento dos empregos formais (RAIS) do comércio e 28% do Setor Terciário da Macrorregião Sul estavam na Ausul, nos anos 90. 28 Esses três recortes regionais são contíguos e estão localizados majoritariamente, mas não totalmente, na Macrorregião Nordeste. A RPPA ultrapassa os limites dessa macrorregião a oeste, configurando um trecho territorial contíguo à RMPA com significativa expressão econômica. 29 Em 1993 (primeiro ano da pesquisa PED-RMPA), a média anual do desemprego foi de 12,2%; em 1994, 11,3%; em 1995, 10,7%; em 1996, 13,1%; em 1997, 13,4%; em 1998, 15,9%; em 1999, 19,0%; em 2000, 16,6%; e, em 2001, 14,9%.

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 97-118, nov. 2003 112 José Antônio Fialho Alonso sentido, diversos ramos industriais passaram a preferir o entorno da capital em suas escolhas por localização. Mais ainda, alguns gêneros passaram a crescer mais rapidamente fora dos limites da RMPA, reforçando o processo de desconcentração da indústria de forma ampliada. Na verdade, o que se proces- sava no Rio Grande do Sul nada mais era do que a reprodução do que vinha ocorrendo em nível de Brasil.30 A queda relativa da participação da indústria metropolitana no total do pro- duto do parque industrial gaúcho, nos anos 90, ocorreu até, aproximadamente, 1998, tendo, a partir daí, havido uma inflexão nessa tendência. Os anos 1999, 2000 e 2001 atestam, cabalmente, uma clara tendência à reconcentração indus- trial na RMPA.31 A retomada do processo de concentração espacial da indústria ocorreu com maior intensidade em apenas três municípios, dois deles (Canoas e Gravataí) localizados em áreas bastante críticas do ponto de vista da aglome- ração de atividades. O terceiro é Triunfo, que sedia o Complexo Petroquímico do Sul. Esses três municípios, em conjunto, representavam 18,57% do PIB indus- trial do Estado em 1990, passando a 23,28% em 2001.32 As redefinições espaciais da indústria na RMPA contemplam também o recuo de centros manufatureiros tradicionais como Porto Alegre, Novo Hambur- go e São Leopoldo. Em conjunto, esses três municípios geravam 16,55% da produção manufatureira gaúcha em 1990, diminuindo para a 12,19% em 2001. Na verdade, essa tendência não é recente. Sinais evidentes de desindustrialização relativa já haviam sido constatados, a partir de 1970, em Porto Alegre (Alonso; Bandeira, 1988) e, desde os anos 80, nos casos de Novo Hamburgo e São Leopoldo. Simultaneamente, os três centros vêm assumindo, progressivamen- te, o papel de cidades “terciárias”,33 sendo esta uma tendência revelada nos anos 90. Na origem dessas mudanças, estão os altos preços da terra urbana e os custos generalizados de congestionamento, que decorrem de excessiva aglo- meração de atividades em limitados recortes territoriais.

30 Sobre a desconcentração industrial brasileira, ver Diniz e Lemos (1986), Azoni (1986) e Diniz (1993). 31 A RMPA gerava 47,91% do PIB industrial do Rio Grande do Sul em 1998; em 1999, 50,67%; em 2000, 54,70%; e, em 2001, 54,10%. 32 Certamente, esse avanço foi decorrente dos novos investimentos realizados na expansão da indústria química em Canoas (Refinaria Alberto Pasqualini), em Triunfo (Pólo Petroquímico) e também em Gravataí (implantação do complexo automotivo da General Motors). 33 Esse fato pode ser comprovado pelo tamanho das atividades de serviços na estrutura do produto local. Em Novo Hamburgo, por exemplo, o Terciário representava 33,51% do pro- duto local em 1985; em 1990, 40,64%; e, em 2001, 44,62%. Já em São Leopoldo, nos mesmos anos, os serviços representavam 32,67%, 37,14% e 55,04% respectivamente.

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A mobilidade espacial das atividades econômicas urbanas (indústria mais serviços), que reflete tanto o processo de dispersão de algumas quanto o de concentração de outras, acaba por extravasar os limites da região metropolitana legal, apesar dos repetidos redimensionamentos territoriais ocorridos na mes- ma, durante a década em estudo. Nesse sentido, o entorno da RMPA transfor- mou-se, progressivamente, em um receptáculo de atividades, geralmente indus- triais, que se tornaram “quase inviáveis” nas aglomerações mais densas do pe- rímetro metropolitano. Com efeito, quando precisam expandir suas plantas, as empresas buscam alternativas em áreas próximas à metrópole, para não perder o vínculo com algumas externalidades positivas da mesma e, ao mesmo tempo, para reduzir custos. O entorno da mesma é a RPPA. No seu todo, esse recorte regional manteve, praticamente, sua participa- ção na formação do PIB estadual em torno de 9% ao longo da década de 90. Todavia a RPPA apresenta algumas especificidades em pelo menos duas áreas. A primeira é constituída pelos Municípios de Canela, Gramado, Nova Petrópolis e São Francisco de Paula, que muitos consideram o principal eixo turístico do Estado, devido à desenvolvida infra-estrutura turística ali existente. A segunda área está localizada a oeste da RPPA, sendo constituída por oito municípios,34 em certa medida contíguos e que receberam, nas últimas décadas, investimen- tos industriais que, no passado, tenderiam a dirigir-se à RMPA. Na verdade, parece tratar-se de uma extensão do campo aglomerativo da RMPA. Esse con- junto de municípios representava 8,69% da produção industrial do Estado em 2001, 6,64% em 1985 e 8,27% em 1990. Tais resultados são puxados pela indústria do fumo, localizada, predomi- nantemente, em três municípios: Santa Cruz do Sul, Venâncio Aires e Vera Cruz. Na verdade, a indústria fumageira é, historicamente, ligada a essa região, em especial a Santa Cruz do Sul. A reestruturação procedida nesse ramo indus- trial, nos anos 90, foi marcada por grandes investimentos realizados por empre- sas multinacionais do setor em plantas novas e no reforço dos vínculos com o mercado externo. A indústria de produtos alimentares exerceu, igualmente, um papel importante na formação dos resultados obtidos por esse conjunto de mu- nicípios. Desde a década anterior, essa área da RPPA foi receptora de parte da cadeia coureiro-calçadista35, que, já nos anos 80, se “desprendia” dos municí- pios do Vale do Sinos em busca de mão-de-obra barata e de outros custos menores nas imediações da RMPA.

34 Os municípios são os seguintes: Estrela, Lajeado, Roca Sales, Santa Cruz do Sul, Taquari, Teutônia, Venâncio Aires e Vera Cruz. 35 Estamos nos referindo, especialmente, às atividades compreendidas pelos gêneros “couros, peles e similares” e “vestuário, calçados e artefatos de tecidos”.

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 97-118, nov. 2003 114 José Antônio Fialho Alonso

A AUNE e a RMPA constituem as duas regiões mais dinâmicas do Rio Grande do Sul. Na década de 90, a AUNE praticamente manteve sua posição relativa na formação do PIB estadual em torno de 9%. Do ponto de vista setorial, a única modificação importante registrou-se na agropecuária regional, com o aumento da participação no produto agropecuário estadual de 3,96% para 5,38% entre 1990 e 2001. Em 1985, essa participação era de 2,59%, o que marca 16 anos de crescimento acima da média da agropecuária do Estado.36 Os segmen- tos que mais contribuíram para a consolidação dessa tendência foram, na pro- dução de origem animal, a suinocultura e a avicultura (galinhas e ovos). A lavoura teve três destaques especiais, sendo o primeiro a produção de alho, que passou de 2.991 toneladas em 1990 (32% da produção estadual) para 13.784 toneladas em 2001 (56% do total do Estado). Na fruticultura regional, dois produtos fize- ram diferença significativa na década, comparativamente à produção total do Estado. De fato, a participação relativa na produção de pêssego passou de 10,54% em 1990 para 25,50% em 2001, e, no caso do caqui, evoluiu de 15,93% em 1990 para 36,19% em 2001. O setor industrial, por sua vez, é o carro-chefe da economia regional, tendo realizado — já a partir do final dos anos 80 e durante a década seguinte — um intenso movimento de ajuste estrutural, o que lhe garantiu a continuidade da inserção favorável na acirrada concorrência global.

3 - Considerações finais

As repercussões territoriais das mudanças econômicas ocorridas, nos anos 90, no Rio Grande do Sul acabaram por confirmar algumas constatações e pre- visões realizadas anteriormente, no sentido de que as disparidades regionais tenderiam a se agravar, se nenhuma providência fosse estabelecida com a fina- lidade de mitigar a tendência divergente dos padrões de renda regional no Esta- do. Em termos de política regional, pouco ou nada foi feito na década de 90. Apenas algumas intervenções pontuais foram realizadas, tendo sido este o caso do Programa Reconversul (linha de crédito do BNDES para empreendimentos da Metade Sul), sendo elas impotentes, todavia, para iniciar e sustentar um movi- mento de recuperação da renda regional.

36 Essa marca da agropecuária regional foi obtida mediante a diversificação do perfil de produtos e do aumento de produtividade em geral. Considere-se que a AUNE representa apenas 1,36% do território gaúcho e que boa parte das áreas destinadas ao setor são impróprias ou inadequadas para os diversos cultivos ou criações, devido ao fato de a topografia ser muito acidentada.

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Sem política, ou com uma política regional insuficiente para romper o círcu- lo vicioso das disparidades no Rio Grande do Sul, os resultados da análise do desempenho das macrorregiões apontam um alargamento dos diferenciais de renda entre a Região Sul (Metade Sul) e as demais (Regiões Norte e Nordeste). Mais ainda, a Metade Sul perdeu participação no PIB estadual em todos os setores. Não é uma tendência nova. É antiga, semi-secular, apenas agravada entre 1990 e 2001 pelo ajuste estrutural a que foi submetida a economia brasilei- ra. A Macrorregião Norte, por seu turno, apresentou crescimento acima da mé- dia do Estado tanto na agropecuária quanto na indústria, e a Macrorregião Nor- deste somente apresentou expansão na agropecuária. A iniqüidade regional gaúcha não se esgota nessa dimensão regional. Ao contrário, quanto mais desagregadamente analisarmos as disparidades, mais nítido fica o cenário desigual que caracteriza a economia do Estado. Nesse sentido, tomando quatro recortes regionais (RMPA, RPPA, AUNE e Ausul), observa-se a mesma tendência e também outros aspectos das desigualdades regionais, como, por exemplo, a questão da concentração geográfica da produ- ção industrial e dos serviços e todas as implicações econômicas que daí advêm. As análises do tema da concentração espacial das atividades (uma das faces das disparidades regionais) urbanas realizadas com informações até 1998 não revelavam com clareza um movimento de inflexão do processo de desconcentração produtiva no Rio Grande do Sul. Todavia, examinando a rela- ção dos novos investimentos industriais, em especial os incentivados pelo Go- verno, observava-se uma nítida opção locacional dos grandes empreendimentos no interior do complexo metropolitano. Era o prenúncio de um movimento de reconcentração urbano-industrial no Estado. A produção industrial da RMPA, que havia perdido peso no total do Estado — de 51,26% em 1990 para 47,55% em 1997 —, passou a crescer no período posterior, até atingir 54,1% em 2001. A mesma tendência ocorreu com o comércio de mercadorias da região. Fica evidente, sob essa ótica, um agravamento do quadro de disparidades regionais no Rio Grande do Sul. Os sinais de convergência apontados por algumas análi- ses — até 1980-85 para o Brasil e até 1997 para o Rio Grande do Sul — não se confirmaram nos anos seguintes. Ao contrário, ao final do século XX, o que presenciamos não foi a continuidade da convergência, mas, sim, uma amplia- ção das desigualdades regionais de renda.

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 97-118, nov. 2003 116 José Antônio Fialho Alonso Referências

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Infra-estrutura de transporte e potencialidade agrícola do Brasil

Juan Vicente Jose Algorta Plá Professor Adjunto da Faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS. Salimar Salib Aluna de Graduação da Faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS.

Resumo A expansão agrícola no Brasil, em anos recentes, seguiu um padrão regional bem-definido: começando na Região Sul, evoluiu para a Região Sudeste na década de 70 e, mais tarde, para a Centro-Oeste. Entre 1970 e 1995, foi a Região Centro-Oeste a que maior expansão produtiva apresentou. Essa expan- são incluiu, principalmente, a soja, o arroz, o girassol, o milho e o algodão. A disponibilidade de uma adequada infra-estrutura de transporte e beneficiamento é a condição necessária para que essa expansão aconteça, abrindo novas áreas para a agricultura. Os corredores de transporte multimodal constituem a peça-chave que vem possibilitando essa expansão.

Palavras-chave Expansão agrícola; transporte multimodal; agroindústria.

Abstract The expansion of agriculture in Brazil, in recent years, adopted a well defined regional pattern: starting from South it advanced towards the South-East in the decade of 70, and later on towards the Center-West. Between 1970 and 1995 the Central Western region exhibited the greatest expansion of production, including soybeans, rice, sunflower, corn and cotton. The availability of an adequate infrastructure for transport and processing is the necessary condition for this expansion, allowing for the opening of new areas for agriculture. Multimodal

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 119-134, nov. 2003 120 Juan Vicente Jose Algorta Plá; Salimar Salib transport systems constitute the main piece for the materialization of that expansion.

Os originais deste artigo foram recebidos por esta Editoria em 13.05.03.

Muitas áreas com grande potencial agrícola no Brasil permanecem impos- sibilitadas de contribuir produtivamente devido a dificuldades causadas pela falta de uma adequada infra-estrutura de transportes. Com o objetivo de viabilizar o escoamento da produção de regiões que, embora apresentem um ótimo poten- cial de produção, estão localizadas a grandes distâncias dos centros de processamento e de comercialização, vem-se estudando alternativas de trans- porte através do uso combinado de rodovias, hidrovias e ferrovias. A importância dos transportes em relação à expansão agrícola já foi estu- dada anteriormente por vários autores. As primeiras análises sobre a distribui- ção espacial da produção foram conduzidas por Von Thünen (1826), Economista da escola alemã, em estudo sobre a questão da localização das atividades econômicas, privilegiando o custo do transporte das commodities na explicação do desenvolvimento dos espaços geográficos. O modelo de Von Thünen sugere que, quanto menor for a relação valor/ /volume da produção agrícola, menor deverá ser a distância entre a região de produção e o centro consumidor. Segundo esse modelo, quanto mais o pro- dutor se afastar do centro consumidor, menor será a renda de localização perce- bida, devido ao esgotamento do sobrelucro dado pelo diferencial do custo de transporte. Há uma percepção generalizada da necessidade de investimentos em infra-estrutura, visando à redução dos custos de transportes no Brasil, haja vista a existência de enormes áreas potenciais para a expansão agrícola. Este traba- lho busca reunir as estimativas da área potencial a ser incorporada à produção agrícola no Brasil, no médio prazo, com a implantação de corredores de trans- porte multimodal nas Regiões Noroeste, Centro-Oeste, Nordeste e Centro- -Leste.

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1 - A infra-estrutura de transportes do Brasil

A partir da segunda metade dos anos 50, concedeu-se prioridade, no Bra- sil, ao desenvolvimento do modal rodoviário de transporte. A justificativa foi que o investimento na construção de rodovias era menor em comparação com o reque- rido pelas ferrovias, ao que se deve acrescentar a maior flexibilidade do transpor- te rodoviário (serviço de porta em porta). Por outro lado, não foi pouco importante a pressão das montadoras automobilísticas que estavam se instalando no Brasil. A malha ferroviária hoje existente foi implantada, em sua maior parte, antes da década de 50, e sua manutenção não foi adequada, enquanto as hidrovias permaneceram abandonadas por longos períodos até sua revalorização recente, sendo as mais importantes as do Tietê—Paraná, Araguaia—Tocantins, Madeira e São Francisco (Licio, 1996). Apesar de os modais ferroviário e hidroviário serem os mais adequados aos produtos agrícolas, continua existindo, no Brasil, uma concentração no uso do modal rodoviário para escoamento de grãos. A modalidade rodoviária passou a ser a mais utilizada, apesar dos custos variáveis elevados, o que prejudica a competitividade internacional dos grãos brasileiros. O transporte por rodovias torna-se mais caro por razões como a precariedade das estradas e as longas distâncias percorridas. Dentre os seus principais problemas, podemos citar incorreções de traçado, inadequação das superfícies de rolamento, falta de manutenção, deficiências de sinalização e até ausência de acostamentos (Cunha, 1999). Os modais ferroviário e hidroviário são mais adequados para o transporte de produtos agrícolas devido às características das cargas e às respectivas movimentações no Brasil, ou seja, grandes volumes, com concentração em curtas épocas do ano, baixos quocientes valor/frete das mercadorias e longas distâncias. Com um melhor aproveitamento das ferrovias e das hidrovias, além de investimentos na melhoria de estradas, seria possível reduzir custos e aumentar a competitividade dos produtos agrícolas nos mercados.

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Gráfico 1

Matriz de transporte de cargas do Brasil — 1999

Cabotagem (3%)

Ferroviário (33%)

Rodoviário (63%) Hidroviário (1%)

FONTE: Empresa Brasileira de Planejamento de Transportes (Geipot).

1.1 - Exemplo: o caso da soja

Com os altos custos em transporte devido à utilização de malha viária inadequada para grandes distâncias e serviços portuários caros e ineficientes, a soja brasileira fica em desvantagem nas exportações, quando comparada à soja produzida nos outros dois principais países produtores: a Argentina e os Esta- dos Unidos. A Argentina, apesar de ter a rodovia como principal via de transporte, tem menores distâncias a percorrer. Já nos Estados Unidos, onde, assim como o Brasil, há grandes extensões a percorrer, a soja é transportada principalmente por hidrovia. O alto custo com transporte limita a expansão da agricultura devido ao impacto que tem sobre o custo final de colocação dos produtos agrícolas nos mercados nacional e internacional. Para a soja produzida na região central do Brasil, os custos de transporte entre Campo de Parecis (MT) e o Porto de Paranaguá (PR) chega a 30% do preço recebido (Anu. bras. Soja, 2001).

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Tabela 1

Matriz de transportes da soja nos principais países produtores — 2001

VIAS DE TRANSPORTE E ESTADOS BRASIL ARGENTINA DISTÂNCIA UNIDOS

Hidrovia (%) ...... 61 5 2

Ferrovia (%) ...... 23 28 16

Rodovia (%) ...... 16 67 82

Distância média ao porto (km) 1 000 900 a 1 000 250 a 300

FONTE: Associação Nacional de Exportadores de Cereais.

1.2 - Evolução regional da produção de soja

Na atualidade, a soja é o principal produto agrícola do Brasil. Os estados de produção mais tradicionais são: Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e São Paulo, que apresentaram uma forte expansão entre 1965 e 1990. Houve uma retomada da expansão da soja nesses estados, nos anos 2000 e 2001, e também nos Estados do Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Goiânia, Maranhão e Bahia, principalmente devido à utilização de tecnologias mais sofisticadas, como o plantio direto, ou a utilização de novas cultivares. O desenvolvimento da tecnologia para cerrado possibilitou a expansão da soja nas Regiões Centro-Oeste e Nordeste. A expansão mais recente, no entan- to, vem acontecendo no Estado do Amazonas, em função da inauguração da hidrovia do rio Madeira. As hidrovias do Araguaia e do Tocantins possibilitarão a incorporação de novas regiões no médio prazo.

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Gráfico 2

Evolução da produção brasileira de soja em cada região — 1994/95-2001/02

(t) 20 000 000 18 000 000 16 000 000 14 000 000 12 000 000 10 000 000 08 000 000 06 000 000 04 000 000 02 000 000 00 000 000

5 6 7 8 9 0 1 2 -9 -9 -9 -9 -9 -0 -0 -0 4 5 6 7 8 9 0 1 9 9 9 9 9 9 0 0 9 9 9 9 9 9 0 0 1 1 1 1 1 1 2 2

Legenda: Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste

FONTE: Conab.

2 - A expansão da agricultura no Brasil

Para atender às necessidades estratégicas da produção agrícola brasileira no que se refere à infra-estrutura de transportes, é necessária a criação de uma rede intermodal de transporte, com o objetivo de viabilizar a produção e o escoamento de grãos, integrando racional e competitivamente as áreas de pro- dução e os centros de consumo no país, ou pontos para exportação/importação. O Governo Federal vem desenvolvendo, há alguns anos, estudos dirigidos à avaliação econômica das alternativas de escoamento da produção agrícola mediante o uso combinado de rodovias, hidrovias e ferrovias. Essa alternativa abriria novas fronteiras agrícolas, aumentando, assim, a área agrícola brasileira. As perspectivas de abertura de novas fronteiras agrícolas em decorrência dos corredores de transporte multimodais são as de que a atual área agrícola

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 119-134, nov. 2003 Infra-estrutura de transporte e potencialidade agrícola do Brasil 125 brasileira possa dobrar, com os respectivos impactos sobre a renda e o empre- go. As áreas que podem ser incorporadas à produção agrícola a médio prazo são as dos cerrados, na região central e na nordeste do Brasil (Licio, 1996). Essa expansão da agricultura não iria provocar nenhum desmatamento, já que as áreas de florestas não seriam destinadas à produção agrícola.

Mapa 1

Região dos cerrados no Brasil

Cerrados

FONTE: USDA.

2.1 - O cerrado brasileiro

O cerrado brasileiro é, desde os anos 70, a grande fronteira agrícola nacio- nal. É a região onde mais cresce a produção de grãos, considerada o grande potencial agropecuário do País. A ocupação da imensa área dos cerrados deu-se a partir dos anos 70, com a criação de tecnologias específicas para a condição de solo ácido e de baixa fertilidade e clima tropical. Antes disso, a região era vista como improdutiva para a agricultura. A tecnologia para produção no cerrado incluiu a calagem do solo, a fertiliza- ção adequada e a utilização de rotações convenientes. O plantio direto possibi- litou a utilização de máquinas de alto rendimento, apropriadas ao trabalho nas extensas glebas da região.

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Em 1975, foi lançada, por pesquisadores da Empresa Brasileira de Pesqui- sa Agropecuária (Embrapa), uma cultivar da soja adaptada à região e altamente produtiva chamada Tropical. Havia interesse do Governo brasileiro pela expan- são da produção da soja devido às crescentes demandas interna e externa. A criação da cultivar Tropical possibilitou a rápida expansão da soja para as regiões de fronteira. Isso viabilizou a implantação de indústrias de óleo, fomentou o mercado de sementes e deu estabilidade à exploração econômica de terras onde antes só existiam matos e cerrados. A produção brasileira de grãos passou de 29,2 milhões de toneladas em 1970 para 82,8 milhões de toneladas em 2000 (um aumento de 184%). Para 2003, a produção de grãos está prevista em 122 milhões de toneladas. Junto com a soja, houve uma importante expansão do girassol, do arroz, do milho e do algodão. Hoje, o cerrado produz cerca de 50% de toda a produção nacional de soja, com média de rendimentos superiores à dos estados do sul e à nacional (Coelho, 2001).

2.1.1 - Tecnologia O desenvolvimento de tecnologias eficientes tornou produtivo e rentável o cultivo das terras antes ácidas e pouco férteis, incluindo a utilização de calcário para neutralização do solo, de fertilizantes químicos e de cultivares adequadas ao clima (EMBRAPA, 2002). Assim, a tendência de aumento na produção de grãos pode ser atribuída tanto ao aumento da área como ao da produtividade. A adoção do plantio direto representou um ponto de inflexão na evolução da agricultura, em função da redução dos custos, ao mesmo tempo em que contri- buiu para o controle da erosão do solo. Embora os pacotes tecnológicos tenham obtido resultados positivos em relação à produção e à produtividade a curto e a médio prazo, questionam-se seus impactos distributivos e ambientais no longo prazo.

2.1.2 - Impacto social e ambiental Com a ocupação dos cerrados, houve um aumento da concentração da propriedade das terras. Todo o incentivo se deu para a grande produção, e os produtores que obtiveram acesso ao crédito subsidiado optaram pelo plantio de culturas de maior rentabilidade, particularmente a da soja. A renda da terra aumentou fortemente com o aproveitamento das terras disponíveis nas localiza- ções mais vantajosas.

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A falta de políticas para a agricultura familiar levou ao êxodo rural. Entre 1985 e 1996, houve uma diminuição de 19% nos postos de trabalho no campo, na Região Centro-Oeste (IFAS, 2002). Além disso, a produção em grande escala da soja vem apresentando pro- blemas ambientais, como a erosão do solo; seria necessário aprimorar o uso da técnica de plantio direto e das rotações agrícolas. O desenvolvimento agrícola na Região deve levar em consideração os princípios conservacionistas na produ- ção de lavouras, viabilizando a produção com reduzidos impactos ambientais. O planejamento deve incluir um zoneamento ecológico que indique quais as áreas propícias para a agricultura e quais devem ser destinadas à preservação. As hidrovias, quando manejadas corretamente, são menos impactantes para o ambiente do que as rodovias, já que não comprometem diretamente a biodiversidade. Obras de infra-estrutura devem ser planejadas de forma a evitar o desmatamento, a poluição e a inviabilização da pesca nos rios (Cunha, 1994). As nascentes das três principais bacias hidrográficas — Platina, Amazônica e São Francisco — estão localizadas nos cerrados, logo, o mau uso do solo na região pode trazer problemas, em particular, o assoreamento das barragens e a erosão das terras agrícolas.

2.1.3 - Área potencial agrícola dos cerrados A área potencial agrícola dos cerrados poderá ser utilizada sem causar maiores problemas de natureza ambiental sempre que existir a preocupação com a manutenção das áreas de reserva legal para conservação e com a utiliza- ção de técnicas de cultivo sustentável. A área dos cerrados apresenta as condições ideais para o Brasil aproveitar um novo segmento do mercado agrícola mundial: a agricultura natural ou biológica. O Brasil dispõe do maior rebanho bovino verde (alimentado com pastagens) do mundo, e vários locais já estão produzindo os chamados produ- tos orgânicos (Coelho, 2001). Apesar da grande expansão verificada na produção agrícola nos cerrados, ainda existe uma imensa área pronta para entrar no processo produtivo. Segun- do dados da Embrapa, a área total dos cerrados é de 204 milhões de hectares, dos quais 77 milhões de hectares não podem ser cultivados, sendo áreas de conservação. Dos outros 127 milhões de hectares de área agricultável, 10 milhões são utilizados com culturas anuais, 2 milhões com culturas perenes e 35 milhões com pastagem cultivada. O potencial agrícola dos cerrados permite, assim, uma expansão em 80 milhões de hectares (Coelho, 2001).

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Essa grande área disponível carece de maior infra-estrutura. Grandes projetos do Governo Federal estão sendo implementados para melhorar a eficiência e viabilizar o escoamento dos grãos, como os corredores de transporte multimodal.

2.2 - Os corredores de transporte multimodal

Os corredores de transporte Multimodal estudados neste trabalho são: Noroeste, Centro-Norte, Nordeste e Centro-Leste (Tabela 2).

Tabela 2

Área potencial para a expansão agrícola no Brasil

(milhões de ha)

CORREDORES ÁREA POTENCIAL

Noroeste ...... 20

Centro-Norte ...... 40

Nordeste ...... 10,4

Centro-Leste ...... 9,6

TOTAL ...... 80

FONTE: LICIO, Antonio; CORBUCCI, Regina. A agricultura e os corredores de transporte multimodais. Revista de Economia Agrícola, Brasília: Ministé- rio da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, v. 5, n. 2, p. 22-36, 1996.

2.2.1 - Corredor Noroeste

Área de influência e principais modais de transporte A área de influência do Corredor Noroeste abrange áreas do norte do Mato Grosso, Rondônia e sul do Amazonas. Os principais modais de transporte são o fluvial (rios Madeira e Amazonas, entre sua foz e Itacoatiara) e o rodoviário (BR-364 e BR-163, entre Porto Velho e a Chapada dos Parecis).

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Situação atual A maior parte da área de influência do Corredor Noroeste está localizada na região pré-amazônica e dispõe de excelentes condições de produção agrícola: solos (boa textura e profundidade), topografia plana, clima com períodos bem- -definidos (chuva/estiagem) e precipitações totais bem-distribuídas, grande luminosidade/insolação, temperaturas equilibradas com as necessidades do ciclo produtivo de grãos e com o desenvolvimento da pecuária. Os principais produtos da região são grãos, sendo os principais soja, milho e arroz.

Situação potencial As condições agroclimáticas na área de influência do Corredor Noroeste são extremamente favoráveis à produção de grãos. Existe um potencial agrícola a ser incorporado ao processo produtivo de, pelo menos, 20 milhões de hectares (Licio, 1996). O custo de transporte interno para as regiões da fronteira representou, nos últimos anos, até 35% a 40% do preço final (CIF) da soja. Com a introdução dos modais integrados de transporte, prevê-se substancial redução dos custos de transporte, com aumento da renda para o produtor brasileiro e de competitividade do produto nacional (Anu. bras. Soja, 2001). Os investimentos projetados para viabilização de infra-estrutura para a ope- ração desse corredor foram calculados pelo Ministério dos Transportes em US$ 238 milhões entre investimentos públicos (estadual e federal) e privados (Licio, 1996).

2.2.2 - Corredor Centro-Norte

Área de influência e principais modais de transporte A área do Corredor Centro-Norte compreende grande parte dos cerrados centrais e setentrionais, abrangendo todo o Estado do Tocantins, sul do Maranhão e do Piauí, sudeste do Pará, leste do Mato Grosso e noroeste de Goiás. Os principais modais de transporte são os rios Araguaia, das Mortes e Tocantins, as ferrovias Carajás e Norte—Sul, a rodovia Belém—Brasília e os portos Ponta da Madeira e Itaqui-MA, objetivando a exportação de grãos para a Europa e o Oriente.

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Situação atual Essa região é constituída por cerrados, com topografia plana, rica em águas fluviais e com alto índice de insolação, condições propícias à produção de grãos, à pecuária e à silvicultura. Mas, apesar das condições favoráveis ao desenvolvi- mento agrícola, a região apresenta, ainda, pouca expressão na produção nacional de grãos (menos de 5% da produção nacional). Os principais pólos pro- dutores de soja na área do Corredor Centro-Norte são: Balsas (MA), Pedro Afonso e Gurupi (TO), Uruçuí (PI), Nova Xavantina (MT), Barreiras (BA) e Rio Verde (GO).

Situação potencial As melhores condições potenciais para a produção de grãos estão nessa região, que tem uma perspectiva fantástica em termos de rendimento agrícola. Essa região tem um potencial produtivo para grãos entre 30 milhões e 40 milhões de hectares, o que representa mais da metade da área plantada nacional (Braga, 1996). Esse corredor tem potencial de canalização dos fluxos de cargas destina- das tanto à exportação, via portos de Itaqui e Ponta da Madeira (São Luís-MA), quanto ao abastecimento de grãos para os mercados internos dessa e de outras regiões do País. Os investimentos projetados para a implantação de infra-estrutura e logística de transportes multimodais são de cerca de US$ 209 milhões (Ministério dos Transportes, 1996).

2.2.3 - Corredor Nordeste

Área de influência e principais modais de transporte O Corredor Nordeste abrange os Estados de Minas Gerais (norte), Bahia, Pernambuco e Piauí. O eixo viário principal desse corredor é o rio São Francisco e seus afluen- tes navegáveis (margem esquerda), a BR-242 (Barreiras—Salvador) e a BR-365 (Pirapora—Entroncamento BR-040). No longo prazo, devem-se interligar às atuais ferrovias Salgueiro—Recife e Missões Velhas—Fortaleza, assim como suas extensões programadas até Petrolina e Juazeiro. Portanto, sua abrangência deve ser vista pela seguinte ótica:

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- a extensão navegável do rio São Francisco, de Pirapora a Petrolina e Juazeiro, com três importantes portos intermediários — Januária (MG), Ibotirama e Barra (BA) —; - a malha rodoviária a partir de Pirapora, num raio aproximado de 300km; - a malha rodoviária a partir de Petrolina e Juazeiro às Cidades de Recife e Fortaleza, numa distância aproximada de 900km; - a ligação ferroviária entre Unaí e Pirapora (MG) e desta última ao Porto de Tubarão (ES).

Situação atual Essa região tem predominantemente o clima semi-árido tropical, apresen- tando temperaturas altas e constantes, insuficiência e irregularidade de precipi- tações, baixa umidade relativa do ar e alta luminosidade/insolação. Essas con- dições climáticas, embora desfavoráveis à agricultura de sequeiro, se tornam extremamente favoráveis quando associadas à irrigação. Em função dos custos e dos níveis tecnológicos hoje existentes, a agricultura fica restrita a grãos (soja, milho, arroz e feijão) e à agricultura irrigada.

Situação potencial A pecuária é uma atividade estratégica para o desenvolvimento dessa região. O Corredor Nordeste é de importância fundamental para a agropecuária nacional, visto que a pecuária dessa região (uma das poucas atividades conso- lidadas e geradoras de emprego na região semi-árida) vem aumentando a sua demanda por milho e rações à base de soja. Isso favorece uma maior integração com a Região Centro-Oeste, que, com a implantação dos corredores, poderá abastecer essa região com custos de transporte altamente competitivos. Os investimentos projetados para esse corredor são de US$ 743 milhões (Ministério dos Transportes, 1996), o que viabilizaria a expansão de 10,4 milhões de hectares (Licio, 1996).

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 119-134, nov. 2003 132 Juan Vicente Jose Algorta Plá; Salimar Salib

2.2.4 - Corredor Centro-Leste

Área de influência e principais modais de transporte A área de influência do Corredor Centro-Leste atém-se ao entorno do Distri- to Federal e ao Noroeste de Minas Gerais até Pirapora (MG) e desta a Belo Horizonte. Seu tronco viário é formado pela Estrada de Ferro Vitória—Minas, entre o porto de Tubarão e Belo Horizonte, da Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) pelo ramal ferroviário da RFFSA entre Belo Horizonte e Pirapora (MG), em fase de privatização, assim como pela extensão desse ramal — até a cidade de Unaí (MG), em fase de negociação para construção e operação pela CVRD. Desta última cidade, deverá estender-se ao sul de Goiás, até o Município de Formosa.

Situação atual Essa região é constituída basicamente por cerrados, já em franca produ- ção, mas ainda com grande potencialidade de expansão tanto para grãos como para pecuária. Atualmente, a área ocupada com grãos e pecuária está em torno de 1,5 milhão de hectares.

Situação potencial Estimativas feitas em 1995 indicam uma área agricultável potencial para a região do corredor em torno de 13 milhões de hectares, dos quais 9,6 milhões são considerados como áreas mecanizáveis para a produção de grãos (Licio, 1996). Os investimentos projetados para esse corredor são de US$ 292 milhões (CVRD, 1995), oriundos da CVRD para a implantação do trecho ferroviário Uraí—Pirapora, com o objetivo de transportar grãos para exportação via porto de Tubarão. Segundo a CVRD, a vantagem de escoamento de grãos pelo porto de Tubarão em relação ao escoamento via porto de Santos é de mais de US$ 25 por tonelada.

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 119-134, nov. 2003 Infra-estrutura de transporte e potencialidade agrícola do Brasil 133

3 - Outras considerações

A forte expansão da produção agrícola no Brasil deve-se, em larga propor- ção, à expansão da soja viabilizada pelas novas tecnologias e estimulada pela demanda insatisfeita. Na segunda metade da década de 90, observou-se uma rápida expansão da parcela exportada in natura. Contribuiu para esse fato a intensificação da demanda por grãos da China, que instalou, em anos recentes, sua indústria de esmagamento de soja. Por outra parte, a Lei Kandir (1996) equalizou o tratamento tarifário dos componentes do complexo/soja, tirando a vantagem que vinha sendo concedida aos produtos derivados, com a finalidade de estimular o processamento no Brasil. Espera-se, no entanto, que a iniciativa privada venha a instalar maior capacidade de esmagamento nas regiões do Brasil central. A expansão da produção de outros grãos como arroz, girassol, milho e algodão, foi conseqüência do melhoramento dos corredores de transporte multimodal e da utilização de planos racionais de rotação de culturas e do desenvolvimento da avicultura e da suinocultura. Há perspectivas de que a pro- dução de grãos venha a aumentar nos próximos anos em função da construção de ampla rede de agroindústrias (Barbosa; Assumpção, 2001).

4 - Conclusão

A abertura dos novos corredores de transporte favorecerá a expansão da área agrícola brasileira. No interior da área de influência de cada corredor, será necessário desenvolver, ainda, malhas rodoviárias de alimentação. Ao mesmo tempo, deve-se construir uma capacidade de armazenar e de processar ou de exportar a produção. A máxima expansão da área agrícola poderá atingir 80 milhões de hectares (Tabela 2). A capacidade de beneficiamento de grãos na Região Centro-Oeste apre- sentou forte expansão nos anos 90. A expansão da agricultura deverá continuar, e o beneficiamento do grão no Brasil deverá aumentar, na medida em que sejam restabelecidos os incentivos para o processamento. A iniciação de novas opções tecnológicas, como a utilização do biodiesel, levará ao fortalecimento da demanda por óleo vegetal, estimulando o beneficiamento do grão no Brasil. Cabe um chamamento à necessidade de evitar os perigos da monocultura, definindo rotações longas e sustentáveis, em que a soja seja apenas um componente.

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 119-134, nov. 2003 134 Juan Vicente Jose Algorta Plá; Salimar Salib Referências

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Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 119-134, nov. 2003 135 A modernização do Estado gaúcho: qual é a agenda?*

Jorge Blascoviscki Vieira** Economista da FEE.

Resumo O artigo examina alguns pontos relacionados à problemática da gestão pública no Rio Grande do Sul, na perspectiva da montagem de uma agenda para sua modernização. O ponto articulador é a concepção de que os avanços societais, que expressam uma diversificação social, com a afirmação de novos atores e de um novo elenco de temas, desafiam e impulsionam a máquina administrativa do Estado gaúcho no sentido da implantação de um processo de modernização administrativa. A par dessas transformações na sociedade, está ocorrendo uma renovação tecnológica, derivada do campo das Tecnologias de Informação (TI), que questiona procedimentos burocráticos e instiga a gestão pública a implementar programas de qualificação dos servidores públicos. O texto traba- lha, também, com a idéia da necessidade de retrabalhar o "ethos" do servidor público, isto é, construir valores ético-políticos, visando estabelecer o interesse da “coisa pública” como elemento alicerçador do serviço público (a boa gestão, os resultados e o atendimento ao cidadão).

Palavras-chave Reforma do Estado; gestão pública; modernização administrativa.

Abstract This article examines some issues related to the problematic of the management in Rio Grande do Sul, from the perspective of setting an agenda for its

* Este trabalho representa uma tentativa de reflexão sobre a experiência recente do autor junto à Secretaria de Administração e dos Recursos Humanos do Estado do Rio Grande do Sul, no período de 1999 a 2002. ** O autor agradece aos colegas Renato Dalmazo e Carlos Paiva pela leitura e observações feitas e isenta-os de qualquer falha ou vinculação com as idéias aqui aventadas.

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 135-154, nov. 2003 136 Jorge Blascoviscki Vieira modernization. The articulating point is the conception that social advancement expresses a social complexity with the affirmation of new actors and a new cast of themes, challenging and driving the administrative machine of the Gaucho State, in the sense of implanting a process regarding the administrative modernization. Along with these changes in society, a technological renewal is occurring, derived in the field of Information Technologies – IT, which inquires about bureaucratic procedures and urges the public administration towards the implementation of qualification programs for civil servants. The text also deals with the idea of the need for revising the civil servant’s "ethos", that is, to construct ethical and political values seeking to establish an interest in the “public thing”, as a fundamental element for the public service (an effective administration, results and citizen’s service).

Os originais deste artigo foram recebidos por esta Editoria em 23.06.03.

O tema da gestão pública estatal, nas suas inúmeras variantes e ângulos para análise, está, já há um bom tempo, em agenda de discussão, bem como sinaliza um avanço no sentido da constituição de acúmulos e ações, particular- mente na trajetória da União, em especial durante os anos 90. Nesse sentido, há uma profusão de trabalhos analíticos, bem como de relatos de inovações tanto por parte de técnicos da estrutura federal como no mundo acadêmico. Diversas unidades regionais também viabilizaram ações visando à recomposi- ção das estruturas de gestão, buscando uma compatibilização com os novos métodos empregados na esfera federal. Em termos do Rio Grande do Sul, ape- sar de ocorrerem eventos significativos ao longo dos anos 90, há poucos traba- lhos analíticos disponíveis que possam ser referência para novas decisões ou busca de alternativas. Nesse período, ocorreram extinções de unidades de governo e alienações de empresas estatais, significando que, no momento atual, o Estado gaúcho, ou melhor, o Poder Executivo do Rio Grande do Sul, é marcadamente diferente, na composição, se comparado com o do final dos anos 80. O presente artigo propõe-se a examinar alguns elementos que caracteriza- riam o estágio atual da gestão pública do Estado do Rio Grande do Sul, mais precisamente no tocante ao seu Poder Executivo, visando à composição de uma agenda de modernização administrativa. No que diz respeito à estruturação do trabalho, optou-se por dividi-lo em três partes, além de uma conclusão. Na primeira parte, far-se-á um recorte teórico para, minimamente, situar alguns pon-

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tos e dar sustentação conceitual; numa segunda parte, apresentar-se-ão alguns elementos de composição de uma visão, aproximada de um diagnóstico, dos problemas atuais da máquina administrativa; e, por último, o artigo centrar-se-á na afirmação de uma hipótese/possibilidade de agenda para a modernização administrativa do Poder Executivo estadual.

Alguns elementos conceituais

Após diversas experiências reformistas implementadas, especialmente ao longo dos anos 90, nos casos brasileiro e da América Latina, que têm como expressão mais visível as privatizações de diversos tipos de serviços, verificou-se um esforço expressivo de análise em torno do papel do Estado. Verifica-se a presença de uma expressiva bibliografia que recoloca na agenda de discussão a “questão do Estado” e que, em um período anterior, ostentava um viés abstrato de concepção, particularmente aquelas concepções ancoradas na ortodoxia marxista. Mais recentemente, tem-se o conteúdo analítico fortemente influenciado pela realidade empírica, a partir do exame do Estado em ação, implementando políticas públicas, sem que tal enfoque signifique ausência ou pobreza teórica.1 Nesse sentido, duas boas contribuições para esse tema estão em Noguei- ra (1998a) e Keinert (2000). O primeiro apresenta uma trajetória do Estado brasi- leiro desde os anos 30 até os anos 90, onde constam, entre outros pontos, os diversos momentos da constituição da burocracia brasileira, assim como as razões para a montagem das unidades autônomas da Administração Indireta (fundações, autarquias, etc.), que propiciaram a formação dos mecanismos de insulamento burocrático. Ao diagnosticar o atual momento da burocracia brasi- leira, Nogueira trabalha com a idéia da presença de uma “sedimentação passi- va”, qual seja, ao longo dos tempos, algumas práticas foram assumidas cotidia- namente e assim reproduzidas, o novo incorporando o velho a partir da ausência de rupturas. Já em Keinert, tem-se uma cuidadosa análise no sentido de estabelecer alguns conceitos, em especial aqueles relativos ao espaço “público” e ao espa-

1 O Centro Latino-Americano de Administração para o Desenvolvimento (CLAD) tem sido um importante canal de difusão e de relatos de experências nos diversos processos de refor- mas levados a termo na América Latina. Nos congressos anuais dessa entidade, são apre- sentados inúmeros trabalhos: por exemplo, no encontro de Buenos Aires, em 2001, foram mais de meio milhar.

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 135-154, nov. 2003 138 Jorge Blascoviscki Vieira

ço “privado”. Mais precisamente, ao modo como algumas instâncias do Estado trabalharam essa dicotomia dos anos 30 aos anos 90. Além disso, Keinert executa a análise na perspectiva de demonstrar que a linha temporal da trajetória do Estado brasileiro possuía unidade interna até o final dos anos 70, em termos da presença de um paradigma, e que, nos anos 80, tem-se uma crise com o esgotamento de um modelo específico de composição estatal — o Estado desenvolvimentista. Os anos 90, na opinião dessa autora, descortinam um novo paradigma para o Estado brasileiro, muito diferente, quanto à forma e ao conteú- do, na comparação com aquele que atuou até o final dos anos 70, como conse- qüência do caráter mais complexo da estrutura social brasileira.2 O formulador central do debate recente da reforma do Estado no Brasil, sem dúvida, é Bresser Pereira, tanto em termos da produção própria como de organizador. Para Bresser Pereira (Pereira, 1995), o processo de reforma do Estado desponta como produto de um duplo movimento combinado; de um lado, a reforma deve ser interpretada como “(...) uma resposta ao processo de globalização em curso”, a qual provoca um reposicionamente estratégico dos atores econômicos, inclusive o Estado, pela necessidade de desregulamentação; de outro lado, é um produto da “(...) crise do Estado, que começa a se delinear quase mundialmente nos anos 70, mas só assume plena definição nos anos 80” (Pereira, 1995, p. 17) . Esse processo de redefinição do Estado, para Bresser Pereira, teria duas vertentes fundamentais na perspectiva brasileira. Em primeiro lugar, houve uma crise econômica profunda, que se expressou de forma aguda num processo hiperinflacionário, tornando imperiosa a reforma do Estado diante do expressivo déficit fiscal; ou seja, havia uma determinante de conteúdo material. Em segundo lugar, em termos das relações internacionais, estava em movimento a necessidade de responder o desafio da “(...) globalização em curso” (Pereira, 1995, p. 17), que reduzia a capacidade do Estado brasileiro em formular e implementar políticas públicas. Portanto, os referenciais a balizar as concepções desse autor são fundamentalmente, de duas ordens: crise fiscal e competição internacional. A primeira impõe-se como necessidade de reconstru- ção do Estado, e a segunda, como um imperativo de redefinição de papéis. No tocante ao diagnóstico da crise, Bresser Pereira aponta que a paralisia do Estado brasileiro se sustentava “(...) pela perda da capacidade do Estado de

2 Um dos primeiros autores a trabalhar essa idéia (o aumento da diversificação da sociedade brasileira) foi Santos (1985). Na concepção desse analista, a “(...) recuperação da adminis- tração pública, depurada de clientelismos e das alarmantes taxas de corrupção que se observam agora, é algo que também se situa no horizonte (...)” das possibilidades, para adequá-la aos requisitos de “uma sociedade moderna e dinâmica” (Santos, 1985, p. 308).

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 135-154, nov. 2003 A modernização do Estado gaúcho: qual é a agenda? 139 coordenar o sistema econômico de forma complementar ao mercado” (Pereira, 1995, p. 20) e, também, a partir da “(...) crise da forma burocrática de administrar [do Estado] devido à incapacidade de extirpar as práticas patrimonialistas ou clientelistas da administração” (Pereira, 1995, p. 21). Para encaminhar a máqui- na burocrática para outro patamar, o Estado, apesar de ser “(...) reflexo da sociedade” (Pereira, 1997, p. 21), deve ser visto “(...) como sujeito, não como objeto” (Pereira, 1997, p. 21), ou seja, Bresser Pereira apostava em um proces- so de auto-reforma. Diante disso, a reforma teria como alvos, no curto prazo, o ajuste fiscal, especialmente nos estados regionais e nos municípios, os quais são identificados com evidentes excessos de funcionários, e, no médio prazo, a modernização do aparato administrativo. Para o ajuste fiscal, seria buscada a implementação de três medidas: (a) demissão de funcionários, por excesso de quadros; (b) implantação de teto salarial; e (c) recomposição do sistema de aposentadorias. No médio prazo, buscar-se-ia estabelecer um complexo con- junto de mudanças, para fortalecer a Administração Direta e a descentralização da gestão pública, através da implantação de “agências executivas” e de “organizações sociais” com base nos contratos de gestão. Em outro trabalho, Bresser Pereira (Pereira, 1997) salienta que o processo de reforma do Estado envolve quatro problemas: “(...) a) um problema econômico-político — a delimitação do tamanho do Estado; b) um outro também econômico-político, mas que merece tratamento especial — a redefinição do papel regulador do Estado; c) um econômico-administrativo — a recuperação da governança ou capacidade financeira e administrativa de implementar as decisões políticas tomadas pelo governo; e d) um político — o aumento da governabilidade ou capacidade política do governo de incrementar interesses, garantir legitimidade e governar” (Pereira, 1997, p. 7). Em termos dos propósitos deste artigo, caberia ainda chamar atenção para o terceiro problema (item c), ou seja, a recuperação econômico-administrativa ou governança. As dificuldades no gerenciamento do Estado brasileiro, que resultariam em má governança, decorreriam, fundamentalmente, da crise fiscal dos anos 80, o que explicaria a necessidade de as primeiras medidas de ajuste serem nesse campo. O aumento da capacidade de governança derivaria de uma reforma administrativa que teria como centro substituir o atual modelo burocrático por uma concepção de “administração pública gerencial”3.

3 Nesse momento, poder-se-ia situar a administração pública gerencial, ou, ainda, a nova administração pública, como sendo compatível com os avanços tecnológicos atuais, focada mais nos resultados do que nos controles, como tendo, dentre outros, os seguintes compo- nentes: foco no cidadão, controle de resultados, aumento da autonomia da burocracia,

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Resolvidos esses quatro gargalos, o Estado brasileiro transitaria de um modelo estatal centrado na promoção direta do desenvolvimento econômico e social para outro que atuaria como elemento regulador e facilitador ou financiador, a fundo perdido, desse desenvolvimento. Assegura, ainda, esse autor que esse Estado terá um sentido social- -liberal: “(...) porque continuará a proteger os direitos sociais e a promover o desenvolvimento econômico; liberal, porque o fará usando os controles de mercado e menos os controles administrativos, porque realizará seus serviços sociais e científicos principalmente através de organizações públicas não-estatais competitivas, porque tornará os mercados de trabalhos mais flexíveis, porque promoverá a capacitação dos seus recursos humanos e de suas empresas para a inovação e competição internacional” (Pereira, 1997, p. 18).

Já em Martins (1997), haveria uma preponderância de alguns temas em relação a outros, particularmente privatização e desregulamentação. Dessa for- ma, “(...) assim uma atenção menor tem sido dada aos problemas da organiza- ção interna dos aparelhos de Estado e ao desempenho de suas burocracias” (Martins, 1997, p. 12). Para esse autor, qualquer empreendimento reformista das organizações do Estado deve ter em conta a atuação dos seguintes pontos: (a) presença de uma cultura política particular; (b) processos condutores das disfunções do serviço público; e (c) identificação dos gargalos da administração pública. Cabe destacar que a cultura política do Brasil deve ser percebida em uma dimensão histórica, bem como contrapô-la aos fatores recentes na desarti- culação dos serviços públicos. Em conseqüência, segundo Martins, tem-se a possibilidade de que “(...) o patrimonialismo, o clientelismo, a burocracia exten- siva e a intervenção do Estado na economia estão inscritas na tradição brasileira como características persistentes da herança colonial” (Martins, 1997, p. 15). A combinação dessa herança histórica barrou, em diversos momentos, variados processos de revisão das estruturas administrativas, impossibilitando a monta- gem de uma burocracia do tipo weberiana, no entendimento desse autor4. Martins também chama atenção, a partir da análise dos primeiros governos civis após o

separação entre instâncias formuladoras e executoras, criação de unidades públicas não estatais para aquelas agências não diretamente envolvidas em ações típicas de Estado e controle social com contrato de gestão. 4 Certamente, esse autor está se referindo às seguintes características: seleção universal dos agentes, impessoalidade das práticas, ordenamento hierárquico e racionalidade em relação a fins.

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 135-154, nov. 2003 A modernização do Estado gaúcho: qual é a agenda? 141 fim da ditadura militar, para a necessidade da constituição de uma estratégia no processo de reforma, particularmente na adoção de movimentos flexíveis e incrementais, bem como no sentido do estabelecimento de diretrizes sólidas. Por último, ainda se pode destacar desse autor a necessidade da presença de um “arcabouço conceitual”, sendo que um segmento compreende três questões inter-relacionadas: (a) o tipo de Estado projetado; (b) o modelo de burocracia adequado; e (c) a coalizão política para sustentar a reforma. Em Nogueira (1998b), numa perspectiva diferenciada na comparação com Bresser, percebe-se uma ampliação do cenário do processo de reforma para além da esfera estatal, ou seja, considera como relevante a incorporação da sociedade, dado que: “Qualquer reforma do Estado digna do nome não pode se reduzir ao plano da administração, do funcionalismo público ou dos ajustes fiscais, tributários e previdenciários: seu nervo, a rigor, está fora do Estado, assentando-se na firme revisão das articulações entre o Estado e a sociedade e na reinvenção do modo de se pensar e praticar política” (Nogueira, 1998b, p. 22). Ou seja, a reforma do Estado (mesmo nas variantes da modernização ou da reforma administrativa) deve ser situada, no limite da discussão, como tendo a dimensão de um reposicionamento entre a estrutura estatal, de uma parte, e a sociedade, de outra, na medida em que ambos são produto de uma trajetória histórica. Uma outra abordagem para situar a reforma do Estado está na concepção de Matus (1997) sobre o Triângulo de Governo, que é composto pelos vértices projeto de governo, governabilidade e capacidade de governo. O primeiro abran- ge um conteúdo propositivo de ações (o plano de governo exposto no período eleitoral) e é da alçada exclusiva do gestor político, para definir uma direção e orientar o conjunto do Governo. A governabilidade representa as variáveis, ou recursos políticos, que o gestor controla, ou não, como o peso da bancada de apoio político na área parlamentar, o volume de recursos orçamentários disponí- veis, dentre outros. Por último, a capacidade de governo é um conjunto de técni- cas, métodos, e diz respeito ao modo de condução, visando viabilizar o projeto de governo. Ou seja, a “(...) capacidade de governo expressa-se na capacidade de direção, de gestão e de administração e controle” (Matus, 1997, p. 22). A reforma do Estado aqui pensada refere-se ao terceiro vértice, pois é aquele que abarca a máquina administrativa e dá viabilidade e potencializa os outros dois. Um bom projeto de governo aliado a bons recursos, sejam políticos ou materiais, poderá alcançar ótimos dividendos, mas será potencializado para níveis mais elevados, se articular boas técnicas e métodos de gestão.

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 135-154, nov. 2003 142 Jorge Blascoviscki Vieira

Para encerrar esta parte, deve-se observar que o Estado regional é parte de um todo articulado. O Estado subnacional é tributário e, portanto, dependente, de modo expressivo, das normas e dos regulamentos definidos na esfera maior da nação. Em conseqüência, deve-se ter como referencial a existência de uma margem estreita, para conceber um programa de reformas dentro de um marco regulatório jurídico dado. Mesmo assim, apresenta-se como tarefa necessária para atualizar métodos e ferramentas de gestão pública diante do avanço tecnológico e das profundas transformações ocorridas no âmbito da sociedade.

Cenário atual — impasses e desafios

O exame das dificuldades da administração pública gaúcha na perspectiva deste trabalho passa pela compreensão alicerçadora de que o modelo de gestão do tipo departamental está esgotado e superado. A forma como os diversos órgãos estão estruturados, ou, em uma expressão simplificada, de ordenamento das “caixinhas”, tem como resultado final um cenário do tipo “federação de ilhas”, com baixa interação operacional, com estruturas pesadas/dispendiosas e com demora no fluxo das respostas de trabalho. Esse esgotamento do modelo departamental reverbera, fortemente, também na composição das carreiras dos servidores, a partir da presença de inúmeros quadros diferenciados entre si, tendo em vista a definição de que a cada órgão corresponde uma burocracia específica. A grande conseqüência do modo de agir departamental, mas não única, é potencializar a fragmentação da ação de governo, dificultar o gerenciamento e a avaliação dos resultados. Outro resultado derivado da experiência departamental diz respeito à pro- blemática da responsabilização tanto do servidor público perante o gestor como deste perante a população. O trâmite burocrático interdepartamental dificulta ou ofusca, senão elimina, os processos de responsabilização. O envolvimento de mais de uma unidade burocrática na formulação ou na resolução de problemas enfraquece esse componente básico dos movimentos da ação estatal. Ao lado do baixo grau de responsabilização, firmou-se, como elemento estruturante do modelo departamental, a Função Gratificada (FG) como parcela relevante na composição remuneratória e fator importante para recrutamento e seleção de servidores. Ou seja, determinadas tarefas ou atividades só logram obter apoio ou adesão se ocorrer a contrapartida da FG. A concessão da FG assumiria a dimensão de que determinadas tarefas só serão realizadas se for concedido esse diferencial; em outras palavras, realiza-se determinada atividade se for concedida a FG, caso contrário, o servidor, em geral, evita assumir a responsa- bilidade.

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Sob outro ângulo, se se tiver o cidadão como alvo fundamental da política pública, apresenta-se como forte equívoco buscar soluções da racionalidade departamental, na medida em que os resultados são parciais e fragmentados. Se, no passado, se poderia conceber que, por exemplo, os problemas da área rural seriam resolvidos a partir das formulações exclusivamente da política agrí- cola, hoje, obrigatoriamente, a questão é mais complexa. Situar os problemas do campo rural apenas a partir de uma unidade de governo é fragmentar a cida- dania, já que a solução dos possíveis gargalos agrícolas, envolve outras áreas, como, por exemplo, a ambiental, tendo em vista o uso das águas e o de pesticidas, ou, ainda, a educacional. Assim, uma visão complexa e, portanto, modernizante da ação estatal deve formular soluções integradas, suplantando a proposta departamental. Outra variante da fragmentação administrativa liga-se às coordenadorias no interior do Estado. Quer dizer, inúmeros órgãos possuem, em seus organogramas, unidades regionalizadas na perspectiva de potencializar um intercâmbio de infor- mações da região com a unidade central, identificando problemas específicos e acompanhando e gerenciando as ações. O baixo grau de articulação das unida- des centrais também é reproduzido, obviamente, no nível das coordenadorias regionais, com o agravante de que diversas dessas delegações estão localiza- das em cidades diferentes. Isto é, a coordenadoria da unidade A está em uma cidade, e a da unidade B, em outra. O distanciamento burocrático e físico dificul- ta a articulação das diversas políticas de governo. Portanto, repensar a questão da regionalização de atuação no Interior (regionalização do Governo), para am- pliar o grau de interlocução horizontal e não apenas vertical, é uma medida relevante em se desejando aproximar o cidadão e os serviços do Estado. Cami- nhando na busca de uma maior integração das unidades regionalizadas, certa- mente se criarão as condições objetivas para a implantação, no interior do Esta- do, de centrais de serviços, evitando, com isso, o deslocamento e a perda de tempo do cidadão. Outra face perversa da fragmentação administrativa expressa-se no tema do funcionalismo público, particularmente na presença de 45 carreiras com atri- buições, modelos de avaliações, remuneração e perspectivas funcionais muito diferenciadas entre si. Nessa situação, torna-se extremamente difícil (se não impossível) articular e implementar uma política de recursos humanos de con- teúdo geral, decorrente do desequilíbrio remuneratório existente entre as carrei- ras. Diante desse contexto, os diversos governos do passado têm procurado implementar políticas pontuais, dada a inviabilidade dos movimentos gerais, ou têm sucumbido à pressão dos grupos politicamente melhor articulados. Nesse mesmo tema, verifica-se que a pauta de debate de interesse dos servidores possui um estreitamento elevado, basicamente nas questões

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 135-154, nov. 2003 144 Jorge Blascoviscki Vieira econômicas, dificultando a discussão de outros temas, como aqueles relaciona- dos aos ambientes de trabalho e treinamento, por exemplo. O resultado imedia- to desse cenário é um distanciamento (ou apatia) entre gestores e servidores, particularmente naqueles temas que dizem respeito às tarefas da gestão públi- ca, ou seja, a oferta de assistência e serviços à população. Não estão nessa pauta de debate os diversos processos do cotidiano operacional da burocracia, sejam avaliações de resultados alcançados ou mesmo melhorias nos fluxos de trabalho. Não há uma sistemática que provoque o servidor a desenvolver, de modo autônomo, soluções para gargalos e entraves. Uma hipótese para esse cenário de apatia talvez esteja relacionada à inexistência de espaços (ou fóruns) de discussão nos locais de trabalho, que puxem e sustentem uma discussão acerca das atividades administrativas, nos quais o servidor público possa expor suas avaliações e sugestões. Deve-se ter como referência central ainda que o ato de governar deve incluir o servidor público, e não excluí-lo, como se o Gover- no fosse uma ação exclusiva do gestor público. Não pode ser esquecido que as políticas públicas são implementadas pela burocracia do Estado, e que esta pode retrabalhá-las ou retardá-las ou, até mesmo, impedi-las, e sempre há mar- gem de manobra para isso. Ou ainda, de outro modo, a decisão de empreender está na alçada do gestor público, mas a implementação não pode dispensar o servidor público. O padrão de fragmentação das carreiras vai se refletir, de modo mais impactante ainda, na atividade política das entidades de representação de inte- resses dos servidores. A existência de 45 quadros de funcionários traduz-se na presença de mais de três dezenas de entidades de representação sindical e na presença de diversas associações que desempenham uma atuação aproximada daquela de um sindicato. Nesse cenário, caracterizado por intensa luta intraburocrática de interesses divergentes, tendo em vista as limitações orça- mentárias, tem-se, ainda, como elemento complicador, a presença de inúmeras entradas para as reivindicações corporativas. Ou seja, os processos de negociação, em geral longos e difíceis, facilmente podem ser rompidos pela ação em outro ambiente político, não anteriormente envolvido, como se a ação negocial estivesse permanentemente aberta, o que é uma característica persis- tente do corporativismo praticado no setor público brasileiro. A atividade sindical das inúmeras entidades de representação vai contribuir para uma hiperpolitização dos ambientes de trabalho, especialmente nos mo- mentos de ativismo negocial. Com isso, deseja-se frisar que o serviço público está imerso na política, o que, talvez, dificulte (ou no limite impeça) a implanta- ção de uma rotina administrativa do tipo weberiana, fundada na obediência, na eficiência e na busca de resultados. Esse cenário fica complicado ainda mais com as práticas clientelistas, sejam elas na relação entre colegas, sejam na

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 135-154, nov. 2003 A modernização do Estado gaúcho: qual é a agenda? 145 interação com as chefias, bem como a partir das práticas dos gestores. Ou seja, o ambiente organizacional está eivado de diversas racionalidades, todas, de algum modo, com variados graus de legitimidade para o agente envolvido, derivadas de inúmeros interesses, que podem assumir uma dimensão conflitante ou convergente, sejam eles individuais ou coletivos.5 A dificuldade que se percebe nesse quadro complexo seria definir uma publicidade, do tipo quem defende o quê, ou, no sentido do estabelecimento de uma hierarquia, acordando que o interesse público, ou seja, a sociedade, é o elemento preponderante. Portanto, deseja-se afirmar que o determinante no amálgama dos interesses deve ser um sistema no qual haja, por parte dos atores envolvidos, processos simultâneos de cooperação e competição, tendo sempre um grande “foco”, o cidadão. Assim, é afirmada a pluralidade de interesses no interior da estrutura administrativa, mas, em um avanço em relação ao passado, busca-se um modo de trabalhar na montagem de mecanismos de explicitação destes. Também se deve trabalhar com a hipótese de que um dos elementos de composição desse quadro é o desenvolvimento parcial de um ethos estruturante para o servidor público. Ele seria parcial por estar desenvolvido apenas em alguns lócus operacionais, em geral ilhas de excelências, nos quais os servido- res possuem elevado grau de qualificação técnica e de remuneração salarial, o que cria as condições adequadas para expressar orgulho e a contraface da obrigação política do pertencimento. O pragmatismo das diversas formas de recrutamento para as fileiras do Estado está na origem da dificuldade da compo- sição de valores ético-políticos capazes de instituírem um ethos de servidor público na densidade adequada à gestão da “coisa pública”. A questão da má remuneração e a inadequação e/ou degradação dos ambientes de trabalho cer- tamente são elementos que contribuem para entravar a constituição desse ethos. Além da melhoria remuneratória, deve-se levar em consideração a necessidade de criar canais de interlocução que não aqueles da representação sindical junto aos gestores, capazes de propiciar trocas com os servidores, integrando-os na gestão das unidades de governo, com isso criando as condições do respeito mútuo e não desconfiança ou desconsideração. A par da fragmentação das estruturas administrativas, houve a perda de uma tradição de planejamento, a partir do fim dos anos 70, em função da degra- dação do equilíbrio das contas públicas e do processo inflacionário, que se tra- duziu numa preocupação excessiva com o curto prazo. Nesse quadro, as projeções mais largas foram relegadas em função das necessidades imediatas

5 A. M. Nogueira (1998) discute o sindicalismo no setor público brasileiro.

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 135-154, nov. 2003 146 Jorge Blascoviscki Vieira do “caixa do tesouro”, mas o momento atual é diverso daquele, no qual há equi- líbrio nos preços, o que cria as condições para uma retomada das práticas de planejamento do setor público. Ou, usando as idéias de Matus, ocorreu uma perda na capacidade de simulação do futuro e que, portanto, precisa ser readquirida para romper com as práticas da improvisação. Torna-se imperativo retomar os processos de pensar as políticas públicas em prazos largos, para, pelos menos, os quatros anos de um governo. O referencial fundamental deve ser a erradicação dos imensos déficits sociais que a sociedade apresenta. Esse movimento de planejamento das ações deve ser tanto para fora do Estado, ou seja, para a sociedade, como também para dentro das estruturas administrativas, em especial naquilo que é chamado de custeio, visando potencializar recursos existentes. Assim, recursos importantes podem ser perfeitamente alocados com uma adequada previsão em termos da frota de veículos (modos de uso, manutenção, etc.), dos imóveis (racionalização de espaços, compartilhamento das unidades, conservação, etc.) e das redes lógicas (melhor comunicação, controle de materiais diversos, etc.). Estes são apenas alguns exemplos que demarcam uma margem ampla para o emprego de diversas técnicas de planejamento interno. Além da questão de uma melhor alocação dos recursos públicos, a adoção de uma visão de longo prazo amplia o grau de legitimidade governamental tanto junto aos atores sociais como perante os servidores, que visualizam um sentido para o cotidiano administrativo. Retomar uma idéia de planejamento impacta, inclusive, no sentido de uma melhoria das técnicas e dos métodos de gestão públicas que estão, na atualidade, voltados para metodologias ad hoc, não só em termos de componentes do custeio, como no tocante ao gerenciamento administrativo dos servidores. Outro fator importante a impulsionar a retomada do planejamento, especialmente interno ao Estado, diz respeito à adoção das novas Tecnologias da Informação (TI). No presente momento, há uma impossibilidade de executar a gestão sem o uso das TI, pelo que elas representam em termos de agilidade e economicidade. Deve-se ter em mente que o emprego dessas novas tecnologias implica trabalhar uma visão de longo prazo, dada a impossibilidade de mudan- ças abruptas ou intempestivas ao sabor da ação do gestor. Deve-se, além disso, ter o referencial da questão espacial e o conjunto das diversas unidades no Interior, tendo em vista a magnitude dessa implantação, em especial na área educacional, o que, necessariamente, emerge como tarefa para mais de um governo, com isso pressionando na direção da montagem de uma escala de prioridades. A aplicação das TI vai se refletir na premência de um requalificação dos servidores, dado o impacto dos novos métodos de trabalho e a redefinição em

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 135-154, nov. 2003 A modernização do Estado gaúcho: qual é a agenda? 147 direção a uma outra cultura administrativa. Com isso, deseja-se afirmar que os métodos de trabalho advindos da informatização se consolidam no sentido da afirmação de um novo tipo de servidor, especialmente no tocante à agilidade de resposta que essa tecnologia produz nos fluxos administrativos (ou seja, o pro- cesso administrativo não poderá mais “dormir” em cima da mesa), bem como na perspectiva de assumir uma postura não fragmentada. Por último, cabe fazer ainda uma reflexão sobre o estágio atual da socieda- de como elemento impulsionador na reforma do Estado. São inegáveis os avan- ços em termos da diversificação social a partir da afirmação sociopolítica de diversos atores da estrutura social. Há uma multiplicidade e inúmeros mecanis- mos de expressão de interesses, que emergem no debate político com forte conteúdo societal, independentes da sanção e da validação do Estado. Com isso, pode-se afirmar o esgotamento de uma ordem social simplificada, na qual alguns poucos agentes se constituíam como elementos centrais na arena políti- ca; em sentido inverso, firma-se uma estrutura social setorizada, onde se for- mam múltiplos interesses e representações. O processo de urbanização, uma estrutura econômica dinâmica, a ampliação da oferta educacional em diversos níveis, as conquistas de direitos de expressão política e a normalização de prá- ticas democráticas criaram as condições objetivas para a afirmação política de inúmeros atores e temas. Nesse contexto, uma nova ordem social será afirma- da, na qual o peso político de antigos interesses é questionado — em especial aqueles ligados à estrutura agrária —, e novos atores vão instalar-se no cenário político. Refletindo esse avanço, diversos espaços de atuação política são cons- tituídos, o que significou deslocar o papel do Estado como ator constituidor e ordenador do jogo político. Nesse cenário, diversas racionalidades divergentes logram se constituir e expressam seus interesses. Se se considerar o Estado como uma expressão de uma correlação de forças, esses novos tempos, a presença de novos atores e uma nova agenda de interesses vão impulsionar no sentido de tornar a estrutura estatal compatível com o atual cenário socialmente complexo. Um Estado mais aberto, não refém de grupos, que busque atender a amplos segmentos sociais, no sentido de atenuar os déficits sociais, passa a ser mais do que uma necessidade dos novos tempos, um imperativo para dar conta dessa nova correlação de forças existentes, em especial levando em consideração a emergência de atores repre- sentativos dos segmentos de “baixo”. Na perspectiva deste texto, a reforma do Estado (mesmo suas variantes de reforma administrativa) assume a dimensão de busca de equalização entre, de um lado, uma sociedade que avançou, ama- dureceu e se tornou complexa e, de outro lado, um Estado com práticas administrativas defasadas, fragmentadas e com carências tecnológicas. Esse é o desafio fundamental desse processo reformista, colocar Estado e sociedade

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 135-154, nov. 2003 148 Jorge Blascoviscki Vieira no mesmo patamar, sem que um prepondere sobre o outro, mas sendo da sociedade a palavra final.6

Uma hipótese/possibilidade de agenda

Inicialmente, é pertinente situar que se trabalha com o prognóstico de que o processo de reforma aqui examinado deve corresponder a duas condicionantes fundamentais para o sucesso desse movimento. A primeira diz respeito à pre- sença de uma estratégia de ação dando conta de diversos elementos, como: diagnóstico, alcance, razão, modo, prazos, dentre outros.7 A segunda tem a ver com a presença de uma coalizão política de sustentação no nível parlamentar e na estrutura social. Por conseguinte, a realização dessa agenda vai depender de uma adequada combinação dessas duas condicionantes.8 O primeiro passo transformador da gestão pública gaúcha passa pela adoção, ou resgate, de uma cultura de planejamento, que tanto pode ser de curto prazo (para explicitar as urgências) como de longo prazo (para revelar o importante). Cabe ressaltar que esse planejamento não seria de caráter normativo, isto é, elaborado por um grupo de iluminados, que se expressa em um plano. Trata-se de um outro tipo de planejamento, como uma aposta na qual diversos resultados são possíveis, ou, ainda, “(...) uma simulação constante do futuro (...)” (Matus, 1997, p. 191), no qual atuam diversos jogadores, alguns com racionalidades não convergentes, mas que estão sob a direção de uma autoridade com legitimidade política que é possuidora de uma visão de futuro.9 Portanto, é um planejamento do tipo estratégico situacional que abarca toda a estrutura de governo, que se retroalimenta, bem como tem uma prática reativa, estabelecendo, dentre outros pontos, tarefas, responsabilidades, metas, que devem ser monitoradas e, se for o caso, alteradas. Essa ação de planejamento não tem fronteira explícita entre o

6 Uma boa discussão das implicações entre reforma do Estado e sociedade está em M. A. Nogueira (1998a), que afirma: “A reforma do Estado, nesse sentido, é o prolongamento de uma reforma da própria sociedade, tanto quanto é a remodelação das relações entre Estado e sociedade civil” (Nogueira, 1998a, p. 212). 7 Para Martins (1997), o êxito da reforma vai depender “(...) da adoção de uma estratégia flexível, baseada em mudanças incrementais” (Martins, 1997, p. 48). Salienta esse autor, também, que “(...) somente parecem ter chance de sucesso as iniciativas realistas de reforma” (Martins, 1997, p. 46). 8 Uma discussão sobre estratégia no setor público está em Matus (1996). 9 Uma alternativa para o arranque do planejamento estratégico poderia ser a mobilização da organização/órgão, ou mesmo do Governo, no sentido de responder a uma questão: qual é o principal problema da área?

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 135-154, nov. 2003 A modernização do Estado gaúcho: qual é a agenda? 149 planejador e o executor na medida em que todos os atores são envolvidos no diagnóstico, na busca de soluções e alternativas, bem como na avaliação perió- dica; de outro modo, todos planejam e todos executam. Ao optar por essa metodologia de planejamento, são criadas as condições adequadas para a integração departamental, impulsionando as organizações públicas para a ruptura com a fragmentação do passado, do mesmo modo que, nessa alternativa de ação, o grau de responsabilização do setor público se amplia consideravelmente, tendo em vista que todos são responsáveis. Soma- -se ainda a isso o fato de que são geradas as condições objetivas para o gerenciamento das ações planejadas. A adoção do planejamento como método norteador vai repercutir no posicionamento do servidor público nas atividades e compromissos da gestão, em um duplo movimento combinado. De uma parte, puxa o servidor público para o ato de governar, à vista de que não há governo sem esse ator, assim como a qualidade de um reflete na qualidade do outro, além de mover, positivamente, os mecanismos de responsabilização, como já foi salientado, em especial aqueles que são ligados aos funcionários públicos. Não se trata de transferir para os servidores públicos a decisão de o que fazer, esta sempre cabe aos gestores, sem sombra de dúvida, mas cabe, sim, incorporá-los numa parte do processo de decisão, tendo em vista que serão eles que vão executar a implementação da política pública. De outra parte, emerge a necessidade da constituição de um processo de requalificação do servidor diante de um novo método de gestão — o planejamento estratégico situacional. A difusão de uma nova metodologia de trabalho vai requerer preparar difusores desse método de trabalho, ou seja, diante de um novo tempo, em que modificações nos sistemas de gestão são introduzidas, elas se traduzem na “reformatação” dos métodos de trabalho, revelando um novo tipo de funcionário público. De modo mais enfático, pode-se afirmar que todo processo reformista que almeje sucesso deve, necessariamente, passar por uma seqüência de eventos de treinamento para os servidores abrangidos por essa ação. A preparação dos servidores públicos na aplicação desses métodos de trabalho vai se refletir na necessidade da constituição de um espaço — ou de uma Escola de Governo10, já existente no passado, todavia, na atualidade, desativada — para ser um ambiente de difusão e reflexão para viabilizar e potencializar os novos tempos. Ora, sendo o cidadão o alvo de um novo Esta-

10 Nogueira (1999) reflete acerca do papel das Escolas de Governo no contexto de implanta- ção das reformas do Estado.

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 135-154, nov. 2003 150 Jorge Blascoviscki Vieira do, supõe-se que os resultados sejam fundamentais. Esse paradigma represen- ta uma transformação dramática na postura da burocracia, demandando claros movimentos na capacitação para o trabalho a partir de novas habilidades e valores. Na medida em que se efetiva um envolvimento amplo das unidades admi- nistrativas na execução da política, a fragmentação tenderá a diminuir, senão a desaparecer. Em conseqüência, rompe-se com um modelo de trabalho clássico da postura departamental, aproximado de um “fordismo burocrático” em que o funcionário executa parte de uma tarefa e não percebe o todo, e caminha-se para um processo do tipo matricial, mais complexo, porém transparente em objetivos, metas e resultados. Evidentemente, a implantação de uma nova cultura administrativa, na qual o vetor fundamental é um novo tipo de planejamento, vai requerer paciência, firmeza e tempo. Além disso, fica implícito que algum grau de mediação política será necessário adotar entre a visão do gestor, de um lado, e a prática dos servidores, de outro, do mesmo modo que alguns interesses vão se manifestar visando algum tipo de vantagem, sejam esta simbólica ou material. Portanto, algum filtro para retrabalhar esses movimentos deve existir, para evitar desvio do foco inicial, que é o interesse público voltado para o cidadão. Concomitantemente à retomada das ações sob a ótica do planejamento, seria desejável o aprofundamento do emprego das Tecnologias de Informação. Além dos impactos na melhoria dos fluxos administrativos, das revisões dos modos de trabalhar, da celeridade nas informações e da redução dos recursos orçamentários, as TI devem produzir mais três efeitos relevantes. O primeiro diz respeito ao monitoramento das ações de planejamento, pois se torna inimaginável pensar que esse controle possa ser efetivo sem o apoio das TI. O segundo se refere ao impulsionamento que as TI provocam no sentido de que os servidores trabalhem em rede. Ou seja, o grau de comunicação e intra-relacionamento da burocracia pública deve aumentar significativamente. O terceiro compreende a abertura que as TI proporcionam ao cidadão, a partir do fornecimento de informa- ções e no atendimento de serviços. Tendo em vista que parcela expressiva da população não tem acesso ao uso de computadores ou tem dificuldades em utilizá-los, é adequado instituir um programa de inclusão digital a partir da forma- ção de postos de acesso gratuito. Também deve ser enfrentado o tema da regionalização, particularmente a busca de uma melhor articulação e compatibilização das diversas representa- ções dos órgãos no Interior, pois há uma margem para trabalhar na direção de uma otimização, com isso melhorando a presença do Governo junto às co- munidades do Interior. A equalização das unidades de representação proporcio- naria as condições para uma descentralização administrativa — o que é uma

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 135-154, nov. 2003 A modernização do Estado gaúcho: qual é a agenda? 151 preocupação inclusive de organismos internacionais como o Banco Mundial —, rompendo com a idéia simplória de que o Governo está em Porto Alegre, quando na realidade é apenas a unidade principal. A par da descentralização administra- tiva (à semelhança de um Centro Administrativo Regional), ter-se-iam as condi- ções propícias para instituir a interiorização dos postos de atendimentos de serviços, processo semelhante ao implantado em Porto Alegre e conhecido como “Tudo Fácil”. Por último, no tocante à questão dos interesses corporativos e para fazer avançar o processo democrático, deveria ser constituído um espaço formal único de negociação entre os gestores e a representação sindical dos servido- res. Esse fórum de negociação explicitaria as agendas de interesses, portanto, democratizaria e produziria transparência, bem como evoluiria no sentido de o setor público ter política remuneratória única para os servidores, escapando das pressões localizadas. Tal tipo de espaço de discussão poderia derivar, também, para a discussão de outros temas, para além da questão salarial, como, por exemplo, a Reforma Administrativa. Cabe destacar que não se trata de negar ou de derrotar a representação corporativa, mas de democratizar essa prática a partir do tornar pública a pauta de interesse. Fica o alerta final de que, tendo em vista seu conteúdo, sua magnitude e suas implicações, um programa de modernização, nos termos aqui aventados, representa uma atividade para ser executada para além de um mandato eleitoral de quatro anos. Resumidamente, pode-se situar que uma agenda, em termos da modernização administrativa do Executivo do Rio Grande do Sul, compreenderia os seguintes pontos: ·• foco no cidadão e nos resultados; ·• planejamento da gestão e do gerenciamento administrativo; ·• escola de governo e plano de treinamento dos servidores; ·• aprofundamento das tecnologias de informação; ·• regionalização administrativa e descentralização do Governo; ·• fórum de negociação.

Conclusão

O objetivo primário deste artigo foi apresentar uma agenda que contem- plasse um programa de modernização administrativa para o Poder Executivo do Rio Grande do Sul. Essa agenda é apresentada como hipótese, na medida em que há uma imbricação forte desta com o diagnóstico da realidade imediata, e, evidentemente, existem filtros que variam de um analista para outro.

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 135-154, nov. 2003 152 Jorge Blascoviscki Vieira

Para realizar esse intento, resgataram-se algumas formulações teóricas do debate geral da reforma do Estado, especialmente as contribuições de Bresser Pereira e Martins. Auxiliaram na argumentação as idéias de Nogueira, pela con- cepção da necessidade de incorporar a sociedade no processo de reforma do Estado, e de Matus, a partir da defesa da ampliação dos mecanismos de direção, gestão e de administração e controle. Em exame mais empírico da máquina administrativa do Poder Executivo do Rio Grande do Sul, postulamos que a questão central é o esgotamento do modelo de gestão do tipo departamental. Esse modelo proporciona uma frag- mentação da ação de governo e dificulta o gerenciamento e a avaliação dos resultados. Defendeu-se que um dos principais efeitos dessa fragmentação se localiza na presença de inúmeros quadros de carreira para os servidores com modelos de avaliações, remunerações e perspectivas funcionais muito dife- renciadas entre si. Tal estrutura, fragmentada e díspar, dificulta a elaboração e a implementação de uma política de recursos humanos de conteúdo geral, impe- lindo os gestores a produzirem políticas pontuais, que, via de regra, ou potencializam o fracionamento, ou tencionam as relações intraburocráticas. Chamou-se atenção para o desenvolvimento parcial de um ethos estruturante para o servidor público, porquanto este existiria apenas em alguns lócus operacionais, em geral ilhas de excelência, nos quais os servidores possam expressar orgulho e a contraface da obrigação política do pertencimento. Como argumento legitimador para o processo de modernização adminis- trativa, alegou-se, de um lado, a ampla diversificação social existente no Rio Grande do Sul, que desafia politicamente na direção de uma nova postura das estruturas administrativas do Estado gaúcho e, de outro, os avanços das novas tecnologias da informação. Finalizando, tem-se como vigamestra para recomposição das atividades burocráticas a instituição de um novo método de planejamento, isto é encami- nhar uma solução para a fragmentação das atividades de oferta de serviços públicos. A cidadania passa pelo resgate da prática do planejamento, agora não mais normativo, mas estratégico e situacional, por não dicotomizar planejadores e implantadores, pois quem planeja executa, e quem executa planeja.

Referências

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Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 135-154, nov. 2003 Autonomia em tempos de guerra 155 Autonomia em tempos de guerra

Enéas de Souza Economista da FEE.

Resumo Este artigo tenta compreender os primeiros meses do Governo Lula dentro do momento atual da liderança norte-americana no mundo. E o projeto de autonomia brasileira, tanto da política externa como do desenvolvimento econômico e social, encontra a sua verdade na relação com a dominância do capital financeiro, o que permite apreender as suas possibilidades e a amplitude de suas tarefas.

Palavras-chave Soberania norte-americana; autonomia brasileira; novo Governo do Brasil.

Abstract This paper attempts to understand the beginning of Lula’s Administration, within the present moment of American leadership in the world. Brazilian autonomy project (foreign policy as well as economic and social development) finds its truth in the relationship with the financial capital dominance, which allows to perceive its possibilities and the extent of its tasks.

Os originais deste artigo foram recebidos por esta Editoria em 15.09.03.

O fim do êxtase dos negócios da Bolsa dos anos 90 e o fogo dos canhões no deserto do Iraque em 2003, essa combinação entre finanças e guerra, como uma festa macabra e diabólica, marcam o fim e a transição para uma nova fase do capitalismo financeiro, que podemos, ao analisarmos a política e a economia, chamar de neoliberalismo da força ou neoliberalismo militar. Estamos en- trando num novo período da sociedade ocidental, um vento ainda não definido,

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p.155-172, nov. 2003 156 Enéas de Souza mas certamente sombrio, envolto em dúvidas e penumbra. Na verdade, a etapa já começa a estar vigorosamente presente. E o resultado é o aparecimento de diversos aspectos naquilo que alguns chamam de globalização de corte norte- -americano. Enquanto isso, gesta-se, nas entranhas do vasto mundo, um movimento adverso, inusitado, peculiar, atípico, denominado de “altermondia- lização”, cuja amplitude e cujos efeitos ninguém ainda é capaz de dizê-lo. É um movimento mais ideológico que político, mais político que econômico, e que, em princípio, não disputa o poder do Estado, disputa o poder das idéias. Este momento do processo, globalização e “altermondialização”, visto como um todo, é a transformação de uma etapa da forma financeira do capital, o prosseguimento das relações sociais e políticas e econômicas liberais sob outra faceta. Vivemos a passagem de um ponto para outro na topologia do capitalismo. E é dentro dessa etapa que emerge o Governo Lula. Explicitamos nosso propósito: o objetivo técnico deste texto é pensar o Brasil na sua dupla determinação, interna e externa. E vamos começar pela última, que formularemos sinteticamente, deixando para a problemática brasileira um maior espaço.

1 - Se vis pacem para bellum ou o prazer do Império

O novo é, certamente, a reorganização da política e da estratégia norte- -americana para o presente. Ela está fundamentada na introdução e no domínio da ação militar, que visa ao estabelecimento de uma soberania absoluta, um império incontrastável, uma clara e distinta hegemonia dos Estados Unidos. Passamos, no largo vôo da águia, por uma metamorfose, pois saímos de um multilateralismo consentido da era Clinton para um unilateralismo sem igual do Governo Busch. Temos, nessa viagem do pássaro, a dominância estrutural do militar que dá gênese a uma política forte, por que não dizer, chegando à autori- tária. Trata-se da pax americana, que, imperial, exprime uma vontade inolvidável e suprema de definir uma nova ordem política no Planeta. Naturalmente, temos um duplo movimento. De um lado, a queda da bipolaridade, Estados Unidos e Rússia, em função da derrota do comunismo, da autoderrota, diga-se, enfatica- mente, que deu origem à insuperável leveza do multilaleralismo do Governo Clinton. De outro lado, este último aspecto permite o surgimento de um segundo passo, que é a busca de um império absoluto, onde se constroem inimigos como o “eixo do mal” no curto prazo e, no médio, a fatal ameaça da China.

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Mas a proposição do império, que começa e se inaugura com o Iraque, em germe já na guerra contra o Afeganistão, é uma tentativa que sustenta outra, ainda que precária e simbolicamente provisória, de reformulação da crise da economia norte-americana, embaraçada entre a longa queda da Bolsa de Valo- res, a derrapagem de uma forma do capital financeiro — a governança corporativa com seus escândalos — e o estacionamento do investimento produtivo conse- qüente da superacumulação de capital. Pois o que a Guerra do Iraque trouxe foi a introdução de um novo núcleo dinâmico de expansão, ou seja, a combinação da Indústria Bélica, da Indústria do Petróleo e da Indústria da Construção Civil Não Residencial, substituindo e dando continuidade ao antigo núcleo Finanças, Novas Tecnologias de Informação e Comunicação e Mídia. Embora o fôlego do primeiro seja curto, pois ele depende de um conjunto de guerras que ainda não estão em andamento, salvo justamente as do Afeganistão e do Iraque, temos uma nova articulação do capital, que, expressando conflitos entre os grupos dominantes, gera uma tentativa de um novo caminho. O capitalismo financeiro opera, então, na busca, paralela e dialeticamente com a dimensão política, de uma nova ordem econômica internacional. A guerra também é uma proposta para relançar algum movimento que vise à ascendência cíclica da economia norte-americana, mas que se completa com uma série de acontecimentos e de exigências, onde estão visíveis o surgimento do euro, a necessidade de reformulação da política econômica da União Européia, a tentativa de recuperação econômica do Japão, o estabelecimento da ALCA, etc. Isso quer dizer que o ponto-chave de todos esses aspectos é colocar como pólo indispensável e agudo da economia a retomada do investimento dos Estados Unidos, que, se de fato, por magia ou por realidade, acontecesse, a sinergia com as outras economias do mundo se faria com relativa facilidade, dando adventícias possibilidades de a economia internacional crescer.1 Olhemos as coisas por outro lado. O grupo social dominante nos Estados Unidos é formado por acionistas e investidores que constituem as finanças e que usufruem rendimentos do múltiplo jogo financeiro e que se expressam, não diretamente, por meio de partidos nacionais que, por sua vez, ativam políticas de cunho neoliberal. A grande transformação desse momento ocorre no palco do teatro político, quando um grupo militarista, jogando com razões políticas e estratégicas, recompõe o neoliberalismo. Seu objetivo, explícito e implícito, visa definir tanto uma ordem política quanto uma ordem econômica. Promulga e tece, dessa forma, uma nova ideologia — para a qual contribui notavelmente a mídia — que chamaremos de neoliberalismo da força. A guerra, por motivos

1 Para maiores detalhamentos dos assuntos abordados, ver Souza (2003).

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p.155-172, nov. 2003 158 Enéas de Souza militares e políticos, vira um suporte fundamental, ao menos na transição, na construção e no exercício inaugural da nova fase do capitalismo financeiro. E vejamos o incrível dessa exótica flor: a base de sustentação sendo as finanças, a preocupação com o produtivo é menor. O grupo mais poderoso do capital busca renda vinda de investimento financeiro e não necessariamente renda vinda da produção. Ou seja, ele não é contra a produção, porém o mais ambicionado está na figura dos rendimentos financeiros (Duménil; Lévy, 2003). Com o liberalismo da força, o que essa economia pretende é recuperar a dinâmica econômica produtiva, sobretudo pela queima de capital e pela ascensão da taxa de lucro. O que poderá, pensam assim seus entendidos, retomar, pela recuperação das ações, a dança livre dos preços dos títulos nas Bolsas de Valores, somando, assim, guerra, política e economia e sonho do unilateralismo — a combinação da soberania absoluta com a retomada arborescente das finanças privadas. Em resumo, é diante desse neoliberalismo da força que o Brasil tem e terá que se posicionar, tanto no campo político como no plano econômico.

2 - A estratégia da autonomia

2.1 - O fracasso da estratégia subordinada

A grande realidade da eleição brasileira de 2002 foi, sem dúvida, a consciência que a elite econômica teve de sua profunda e equivocada estratégia dos anos 90. A partir do final do Governo Sarney, os donos do capital passaram a desenvolver uma idéia que lhes era cara, a da sua sempre desejada articulação com o capital estrangeiro, o seu sonho de progresso e renda. Assim como a inflação é uma memória, as soluções dos problemas econômicos também o são. Nos anos 50, houve um enlace duradouro e especial entre o nosso capital e o forâneo, uma amizade frutífera para os dois lados. A razão ativa desse pacto se expressou brilhantemente no governo de Juscelino Kubitschek, onde foram implantadas as bases do desenvolvimentismo brasileiro mais moderno. Porém a colheita do que foi plantado se deu plenamente nos governos militares, quando o Brasil, com notável desempenho, alcançou o estatuto de oitava potência do mundo. Ou seja, foi uma aliança que se tornou um pacto e que deu certo. Desenvolvimento, expansão do capital, lucros — e posição invejável no mundo. Apenas o que empanava ligeiramente a música de tal acontecimento eram a má distribuição da renda e uma cortina de miséria em torno do palco da exuberância produtiva. Essa memória, a do sucesso econômico, vivia, e ainda vive, fortemente nas classes produtivas e financeiras do País. No final dos anos 80, quando trilháva-

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 155-172, nov. 2003 Autonomia em tempos de guerra 159 mos a “década perdida”, circulou entre o empresariado a gloriosa idéia de reno- var o pacto com o Exterior, jamais pensando que se estava assumindo o papel de Fausto e, como tal, contratando um pacto com o diabo. Em função da dívida externa de então, em função da longa ausência de aportes de capitais estrangei- ros, em função dos atrasos tecnológicos gritantes — inclusive oriundos de um protecionismo arcaico e incompetente — e, igualmente, em função de uma de- sejada nova modernidade, o Brasil fez o seu pacto goethiano, ou seja, vendeu sua alma ao diabo. O problema é que, ao fazer esse pacto, o empresariado e os políticos brasileiros (Collor e Fernando Henrique; Itamar, com uma ótica mais nacionalista) deixaram de ver o que estava acontecendo, a extraordinária mu- dança no capitalismo mundial, a fase da globalização norte-americana, tanto econômica quanto política. O jardim agora não plantava mais rosas, havia outras plantas, algumas mais venenosas, outras tóxicas. Falando sem metáforas, o capitalismo tinha mudado, e a forma do capital financeiro punha em primeiro lugar não mais o lado produtivo da economia, mas, sim, a máquina financeira, a busca infatigável de rendas. E o Brasil, na sua ânsia de sair da década com resultados, ofereceu o seu tesouro, ampliou a abertura comercial, provocou a abertura financeira e privatizou o capital estatal. E isso sem considerar, o que não estava tão claro naquele momento, que, na política internacional, o multilatera- lismo consentido já escondia, estruturalmente, um unilateralismo da força. O que aumentava a solução geopolítica brasileira, a do alinhamento automático. Uma enorme venda cobriu os olhos da nossa política e da nossa economia, e o gesto do príncipe da sociologia, Fernando Henrique, querendo ser presiden- te, senão maior, pelo menos no mesmo nível de Vargas e de JK, expressou a vontade das elites dominantes, abrindo a Nação para o capital internacional, como se elas, ao igual como ele pensava, fossem dar um salto fantástico no êxito. É preciso destacar e reforçar: FHC não decidiu sozinho; as elites assim o desejavam. E tudo parecia ir ao encontro e na direção da felicidade de todas as empresas e do Presidente. O totalitarismo soviético tinha caído, e o capital do mundo inteiro, incluindo o nosso, assumiu a posição de liderança e sabedoria. Qual foi a opção dos brasileiros? A pílula ideológica dizia: o capitalismo é um sistema de livre concorrência; e o neoliberalismo, a proposta econômica ade- quada para a nova fase da sociedade planetária; portanto, o que é bom para o Primeiro Mundo, é bom para o Brasil. Nunca esquecendo a regra de ouro: deixar o liberalismo penetrar em todas as partes do País. Com isso, ampliou-se a nossa liberdade do comércio externo, abriu-se afanosamente o circuito financei- ro. E mais, em nome desse neoliberalismo encantado e maravilhoso, começou- -se a fazer a metamorfose do Estado, a começar pelo encurtamento da política econômica. Dito de outra forma, só as políticas monetária, financeira, cambial e fiscal tinham direito de cidadania. Nada de políticas industrial, agrícola, de em- prego, de rendas, nada de política tecnológica.

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p.155-172, nov. 2003 160 Enéas de Souza

Houve um cuidado especial e praticamente único com o curto prazo. O pensamento fundamental era que as empresas atentavam, e bem, para a política do longo curso, ou seja, produção, tecnologia e emprego. O mercado, nas suas opções, culminaria por fazer, então, a política dos diversos setores. Abdicou-se integralmente, com essas idéias, daquilo que tinha sido a arma bá- sica da economia brasileira, o Estado, inclusive como praticante do investimen- to autônomo. Mergulhamos, assim, no neoliberalismo mais fundo, abandonando e perdendo, sem pensar, o investimento estatal. As empresas produtivas do Estado poderiam ser vendidas, e o foram, para empresas que, por hipótese, trariam capital, inovações tecnológicas e eficiência, mas com contratos monopólicos, onde havia, obra de gênio, a indexação tarifária (e se embutiu aí uma das futuras causas da inflação de custo, nós que, supostamente, estáva- mos nos encaminhando para a competitividade empresarial e para a estabilida- de de preços). Chegamos à era dourada da privatização e à desfiguração pro- posta para o Estado. O capital impôs sua face, e os trabalhadores, em função do refluxo socialista no mundo, não conseguiram anular essa opção estratégica. Não se pode ocultar, também, que o desejo de aumentar a capitalização das áreas públicas chegou à saúde, à previdência e à educação, onde os primeiros passos foram dados com uma força e um sopro animados pelo próprio Estado. O Estado neoliberalizado. E que passou a ter um desempenho que o tornou um Estado financeiro.2 Foi essa estratégia que, macroeconomicamente, se revelou inviável, se o critério para avaliação e ajuizamento for o desenvolvimento econômico e social. Basta olhar o PIB e ter acompanhado a montanha russa da política econômica do Governo FHC. Verificou-se o que Gerard Duménil e Dominique Lévy chamam de uma “crise neoliberal crônica”. Lembremos do crescimento anual sempre crítico, a tal ponto que qualquer movimento cíclico ascensional tinha que ser abortado com o freio de uma política monetário-financeira contracionista. Enquanto os Estados Unidos tiveram uma fase cíclica ascendente de oito anos, o Brasil teve dois miniciclos nesse período. Eles foram acompanhados de duas espetaculares crises cambiais, a de 1999 e a de 2002. Para não citarmos o desemprego crítico, apesar de uma boa distribuição da renda por ocasião da implementação do real. Ou seja, a tão acalentada estratégia de liberdade dos capitais, ponto de partida para um crescimento sustentável, assumida por um chamado país emergente, é um jogo fora do seu alcance. No nosso caso, uma meta além das aspirações do Brasil. O resultado em termos de produto, de renda, de capacidade de efetuar investimentos, de poder de influência e regulação

2 Ver Souza (1999, 2000).

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 155-172, nov. 2003 Autonomia em tempos de guerra 161 do Estado na economia, de distribuição efetiva e persistente da renda, do de- senvolvimento de tecnologias, de expansão de capitais brasileiros, de alianças e de associações empresariais, etc. foi adverso e completamente longe do projeto do empresariado brasileiro. Salvo, talvez, para a área do setor bancário nacional — que limpou suas excrescências, fortaleceu seu domínio de mercado diante dos estrangeiros e ampliou a sua renda como nenhum outro setor. A evidência do equívoco dessa estratégia foi sempre decorada e ornamentada pelo notável fracasso da Argentina, a que adotou a âncora cambial inflexível — a paridade chamada de “uno por uno” — e que seguia, como um exemplo para todos, o modelo neoliberal da moda. Em 2002, o fracasso do país vizinho esteve sempre no horizonte brasileiro, como um futuro que nos parecia uma possibilidade imediata. A canoa do neoliberalismo era uma canoa furada. O Brasil levou uma década para descobrir o que qualquer teoria heterodoxa logo assinalava, baseado na fé do pacto mefistofélico. Ou seja, a aliança de banqueiros, empresários industriais e agrícolas que patrocinaram o governo de FHC, buscando fortemente o neoliberalismo dos anos 90, acabou por se dar conta de que os métodos para manter o Brasil inserido na economia mundializada, como a estabilidade de preços, o controle fiscal, o real valorizado e depois tombado, as dívidas interna e externa, a necessidade de viver controlando o balanço de pagamentos, etc., levaram o País a uma prisão terrível. Prisão marcada pela ausência de crescimento sustentado, pela crise financeira constante, por estagnação e retrocesso na questão do emprego, pelo desenvolvimento da miséria em escala elevada, pela progressiva desordem social, onde se destacaram, negativamente, o narcotráfico e a violência urbana intensa. Todo o movimento econômico e social tocou fundo nos nossos capitais, pois inúmeros cederam os seus controles para corporações internacionais. O resultado, ao longo do tempo, foi, sem dúvida, um estado quase recorrente de espera e de crise, como foi o segundo período do governo de Fernando Henrique. A política da estabilidade de preços, que, teoricamente, objetivava a criação de condições para o que se chamava de crescimento sustentado, deu igualmente, como conseqüência, um empobrecimento político e econômico do Estado, que passou a ser, como já dissemos, um ente predominante financeiro. No dorso das transformações na esfera produtiva, emergiram uma desnacionalização crescente, uma ameaça iminente de desindustrialização, um desamparo contundente na questão tecnológica e uma privatização, cheia de altos e baixos, que elevou os custos-Brasil, etc. Enfim, o tempo foi cruel: estabeleceu-se a necessidade de revisar o pacto instaurado. Um pacto que de- sabou sobre o Brasil, com um vendaval menos feroz do que o da Argentina. E o núcleo central da crise da estratégia do empresariado brasileiro e do Governo Fernando Henrique, não resta a menor dúvida, concentrou-se na abdicação do

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p.155-172, nov. 2003 162 Enéas de Souza investimento, de tal modo que a economia ficou inteiramente dependente do capital internacional. E não há segredos, este, quando opta por fazer as suas inversões e os seus reinvestimentos, decide em função das múltiplas possibili- dades dinâmicas que tem no mundo inteiro. A trajetória brasileira não chegava a ser um estímulo, basta ver a taxa de investimento como percentual do PIB.

2.2 - Enfim, a luminosa idéia da autonomia

Diante da crise reiterativa permanente, a eleição de 2002 trouxe, como motivação básica para grande parte das frações do capital e da totalidade da população, a necessidade de retomada da autonomia nacional. Essa questão suprema se poderia conceber, rigorosamente, deste modo: de um lado, há que manter a posição de aliado estratégico e geopolítico dos Estados Unidos, mas, de outro, tratar tanto de recusar o quase inconcebível alinhamento automático que eles propõem quanto de romper com as impróprias idéias norte-americanas sobre a economia brasileira (desde a subordinação ao FMI e o gerenciamento e a amplitude da política econômica até as soluções já prontas para a instalação da ALCA e seus problemas: serviços, compras governamentais, produção agrícola, etc.). Naturalmente, os objetivos da autonomia almejada seriam a criação de condições para o estabelecimento de uma nova posição do Brasil no mundo e para o surgimento do esperado e desejado desenvolvimento (porém com um substancial acréscimo: que não fosse somente econômico, mas também social). O quadro vigente no final do Governo FHC, semelhante a uma árvore desgre- nhada, aparecia como um espectro para a sociedade brasileira. Seu rosto tinha diversas formas, todas soturnas e algumas imaginárias. Estas chegavam a ser vislumbradas no horizonte histórico como situações limites, seja sob a figura da desintegração nacional, seja sob o emblema de uma intolerável anexação à economia dos Estados Unidos. Tendo consciência desses fantasmas e procurando eliminá-los, as diversas camadas da sociedade brasileira trabalharam para consolidar, social e politicamente, uma proposta de autonomia, expressando-a, efetivamente, na vitória eleitoral da oposição. Cabe ter bem presentes as dimensões dessa proposta e seus dois aspectos: a autonomia política do Brasil diante da potência líder e a autonomia para construir o seu desenvolvimento econômico e social. A primeira tocando, prioritariamente, o lado exterior brasileiro, e a segunda, o lado mais embaraçado, o das forças atuantes no setor interno. Na boa análise, a separação é só do método de expor, pois a autonomia englo- ba, numa interação circular, os dois pólos em exame.

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Essa idéia de autonomia, vinda das urnas, representou uma nova orienta- ção para o País. De saída, exigia uma tomada de posição imediata, logo depois das eleições, com a notória tarefa de transformar a imagem da política externa de Fernando Henrique, cuja estratégia se baseava numa integração passiva na mundialização. Bastou, efetivamente, ao novo Governo enunciar e agir, pragma- ticamente, segundo a ordem dos eventos, para alimentar, com astúcia, uma política mais arejada, mais ativa e mais nacional. Afirmava um objetivo de auto- nomia relativa, onde ficasse marcada, e se possível firmemente, a posição de aliado dos Estados Unidos, mas não necessariamente atuando em prol da globalização norte-americana, inclusive do jeito que eles gostariam que fizéssemos. Acima de tudo, era de bom tom salientar a oposição ao seu libera- lismo da força, essa ameaça visível do início do século XXI. Como dissemos, os primeiros movimentos após a posse do Governo seguiram, enfaticamente, es- ses propósitos e desdobraram-se, como uma continuidade do axioma da auto- nomia no campo externo, em múltiplos acontecimentos: a proposta pela paz no Iraque, a postura favorável ao multilateralismo na defesa do papel da ONU, o apoio indiscutível ao Tribunal Penal Internacional, a busca de um clube de ami- gos para tentar solucionar a crise da Venezuela, etc. Além desses episódios, outros começaram a ser desenvolvidos, como o inventivo “G-3 do Sul”, articulan- do Brasil, África do Sul e Índia; como a idéia de provocar uma dinâmica Sul-Sul, incluindo a Ásia; e como encontrar soluções para uma aproximação maior com a Europa. Não podemos deixar de levar em conta uma relação diplomática de maior amplitude com a União Soviética, como uma jogada de mais longa expec- tativa, que pode até permitir a geração de frutos preciosos. Enfim, não resta dúvida, a luminosa idéia de autonomia está sendo posta em prática na política externa, o que equivale a dizer que o País busca encontrar o seu perfil de global player, mesmo que seja de estatura pequena ou mediana. E todas essas atitu- des e essas idéias, um novo conjunto de atos, se gestaram sem que o País deixasse de apoiar seu principal aliado geopolítico, podendo-se concluir que, até o momento, a citada política externa brasileira vem sendo trabalhada dentro do que foi a decisão nacional das eleições.

2.2.1 - O pecado mora na questão interna O êxito da posição do Brasil no campo externo, que tem dado resultados e recebido elogios internacionais, não oculta as dificuldades da organização da política e da economia no plano interno. É preciso examiná-las amplamente, uma vez que a idéia de autonomia relativa tem como alvo e como rota principal a realização de um projeto de desenvolvimento econômico independente, posto, novamente, para a nação desejante, como uma figura essencial. Isso significa

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p.155-172, nov. 2003 164 Enéas de Souza dizer que a economia deveria atacar de modo explícito, de frente, olho no olho, suas questões candentes: os investimentos nacional e estrangeiro, o papel do Estado, as duas dívidas — interna e externa —, o financiamento público, o controle do balanço de pagamentos em todos os seus itens, o superávit primá- rio, a reforma tributária, o desemprego, a legislação do trabalho, a previdência pública e a privada, a distribuição da renda, o desenvolvimento tecnológico, o atendimento das amplas reivindicações sociais, etc. Uma agenda próxima do absolutamente excessivo. Do ponto de vista do Governo, a inteligência recomen- daria a proposição e a seleção de uma estratégia clara, nítida, definida e hierarquizada desde logo e que tivesse um efeito de comunicação imediato, de tal modo que a nação, iluminada, apreendesse, quase instantaneamente, a direção e o sentido do percurso da economia e da sociedade.

2.2.1.1 - Da aliança não nasce o pacto O jogo político é uma dança de passos complexos e surpreendentes, sobretudo quando o Governo está decidindo, na aurora de sua instalação, as duras questões do campo econômico. Não nos esqueçamos: uma coisa é ganhar a eleição, e outra, governar. O fantasma de uma administração decadente, como parecia ser a de FHC no seu final, foi o móvel e o chamariz da mudança. Para o consolo dos conservadores, nem mesmo os banqueiros, armados de flexibilidade, estavam apegados ao Governo que saía. Assim, quando temos um novo poder constituído, a arena da política altera-se. Uma coisa são os apoios eleitorais, outra é a gestão de uma nova realidade. Para aqueles apoios, bastava uma aliança; para esta gestão, a exigência de um pacto. Todo o trabalho do Governo que estava entrando, salpicado de esperanças e dúvidas, residia na construção da passagem da aliança para pacto. Completamente fácil de propor, extremamente difícil de realizar. Fazia-se evidente e escaldante a fratura exposta do problema. A aliança serviu para dar um passo à frente, clarificou o rumo das eleições, mas teve e tem um caráter mais tático do que estratégico, na razoável percepção de que ela é instável por natureza. A sua validade pode ser indeterminada e fugaz, e a adesão aos seus propósitos talvez não seja a mesma para todos. Já um pacto postula um contínuo e uníssono trabalhar para o mesmo objetivo. No nosso caso, a opção deveria ser por um determinado tipo de enlace num visionado projeto econômico e social. Que todos queriam alterar o rumo da carruagem nenhum passageiro duvidava. Ficou claro que havia e há um ponto comum, a política externa, mas esse acordo não se estendeu para o revoltoso mar da política e da economia nacional. Aqui não resta dúvida, não há possibilidade nenhuma de pacto político. Os interesses são múltiplos e agressivamente

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 155-172, nov. 2003 Autonomia em tempos de guerra 165 independentes, com amplas zonas de divergências. O que dizer disso? A estra- tégia geral está cuidadosamente definida: um reluzente projeto de autonomia. Na primeira soberania pretendida, soberania da política externa, já dissemos, tudo bem. No sonho do fortalecimento e do desenvolvimento da economia bra- sileira — distanciando-a, autonomizando-a, pelo menos em parte, da globalização —, o jogo se complica, e há caminhos diferentes e discordâncias sérias. As propostas não encontrariam acolhida unânime. E o acordo enfrentaria muitos embaraços, já que as escolhas poderiam chocar-se com interesses de uma ou outra fração participante da aliança. E cada força que diverge — o setor bancário por exemplo —, para preservar a sua tendência, as suas con- quistas, os seus futuros, culmina por não pactuar, promovendo, com grande repercussão, uma diferença perturbante, um furo no coração do pacto...

2.2.1.2 - De como as finanças se valeram da aliança Os interesses dos grupos sociais materializam-se em torno, no campo do Estado, de políticas, ministérios, órgãos decisórios, etc., de tal modo que o discurso mais geral, o projeto de desenvolvimento, no caso, pode ser desviado, contornado, bloqueado por ações concretas de decisões estatais. Ou seja, quando a aliança triunfa, cargos são distribuídos, e a plasticidade do capital financeiro recolhe um ponto-chave: as políticas monetária, fiscal, financeira e cambial do País. Como foi possível essa colheita? Como foi possível essa astúcia? Em primeiro lugar, a política de FHC esteve, todo o tempo, conjugada com as orientações do FMI. Este tinha sitiado, desde o princípio do Plano Real, a nossa política econômica global, transformando-a em política de curto prazo. Esse é um fato histórico e estrutural. Em segundo lugar, como o encerramento do Governo que terminou em 2002 foi uma desagregação incontornável, visto a forte especulação com o dólar, a interrupção das linhas de créditos dos bancos internacionais, a subida intensa e ameaçante da inflação, a desconsideração do Brasil como área do investimento estrangeiro, o prolongado clima de crise mesmo com a vitória de Lula, fazia-se necessário, no princípio do novo Governo, que a política econômica de curto prazo de Fernando Henrique fosse retomada, controlada e reposta para dar equilíbrio à economia brasileira. Retornou-se, dessa forma, à política pura e simples da estabilidade, sem qualquer encaminhamento das questões do desenvolvimento econômico e social (salvo o lançamento solitário do programa Fome Zero). E foi nessa ausência, um tanto melancólica, de qualquer sinalização do desenvolvimento, que o Governo Lula, na sua necessidade de estancar a crise, caiu na armadilha. Com essa postura, consolidou dois pontos fundamentais para o capital financeiro: a articu- lação do Banco Central com o FMI e a gerência da Fazenda em torno da política

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p.155-172, nov. 2003 166 Enéas de Souza do imediato. Essa dupla consolidação significa que o enlace das finanças priva- das internacionais e nacionais não foi nem diminuído, nem desfeito, ao contrá- rio, aumentou. E mais, deu margem à consecução de uma manobra extraordiná- ria sobre a aliança, pois, ao se encastelarem no Bacen e no Ministério da Fa- zenda, impuseram a todo o resto do Governo a continuação das diretrizes funda- mentais da antiga administração de Fernando Henrique. Foi por seguir a mesma trilha econômica que a aliança começou a não ser pacto e que o projeto de autonomia isolou a política externa da política e da economia interna, na própria montagem do Governo. Aconteceu, então, o retorno de uma política que podemos chamar, um pouco à maneira de Keynes, de “armadilha da estabilidade”. Essa armadilha se caracteriza pelo fato de a economia encontrar um antídoto antiinflacionário, mas, ao mesmo tempo, não conseguir libertar-se dele, para seguir o rumo mais que desejável, depois de tantos anos, do desenvolvimento. A armadilha da estabilidade é o resultado de uma concepção vitoriosa de política econômica, cuja origem está no próprio setor das finanças. O longo prazo para essa concepção neoliberal não surge de uma visão e de uma ação macroeconômica; a política industrial e suas derivações tecnológicas, comerciais e de emprego são conseqüência, como efeito acumulado, de decisões microeconômicas. Um nível distinto do primeiro, portanto e por tal razão, o Estado abdica de fazer política global. Logo, ao con- servar o núcleo econômico do Governo, as finanças mantiveram a mesma postu- ra — e até com mais sal — dessa política econômica e do governo de FHC, buscando, mangas arregaçadas, o combate ao dragão inflacionário e relançar a caça às rendas no mercado financeiro. Assim, é preciso dizer, sem mais demora, que essa política se instala como estrutural, já que em si o capital financeiro não é contra o capital produtivo, só não faz nenhuma batalha para acoplar, junto da gestão de curto prazo, medidas que incentivem o investimento industrial. A razão é que as finanças gravitam em volta das rendas especulativas, e os lucros oriundos da produção não são o seu objetivo prioritário. Se estes existirem, ótimo, e que bom se entrarem no circuito financeiro, mas não é preciso perder o sono com os problemas das indústrias — e muito menos com o tema do emprego. Os títulos do Governo são o seu negócio mais apetitoso. Daí o desespero do setor industrial diante da administração de curto prazo no Brasil, uma vez que, para travar a inflação, deixando o dólar livre, é necessário controlar, pela subida a um patamar fortemente elevado e por tempo bastante longo, a taxa básica de juros. O capital flui para os mercados financei- ros, daqui ou de fora, e o investimento na produção fica paralisado como um avião à espera da autorização da torre de controle. Ou seja, o Estado intervém para manter a estabilidade. E a estabilidade serve a todos os grupos sociais, mas tem uma cor mais acentuada de

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 155-172, nov. 2003 Autonomia em tempos de guerra 167 favorecimento aos grupos financeiros. Dito de outra forma, a inflação é o elemen- to desorganizador e desestruturante numa economia globalizada, e torna-se in- dispensável controlá-la, mas o controle irracional (!) pela taxa de juros provoca um rumo forte à recessão. Irracional sim, pois, para uma economia que quer desenvolver-se, usar um controle que detém, por longos anos, a ascensão do desenvolvimento não pode ser classificado de outra forma. A armadilha da estabilidade interdita o retorno do investimento, mas não desarma os avanços das finanças privadas. É, aliás, um dos seus pontos de alavancagem, principalmente pela tranqüilidade do ambiente de negócios (não confundir com ambiente social).

2.2.1.3 - A saudade imensa do investimento autônomo Estamos tratando da fratura do pacto. É uma fratura que reproduz a estrutura da atual política econômica. De um lado, o curto prazo; de outro, o longo. De um lado, a política macroeconômica reduzida; de outro, a política microeconômica das empresas. O que isso marca é, sem dúvida, a excelsa importância que tinha o investimento autônomo do Estado, a tal ponto que o aprisionamento deste pelas dívidas internas e externas, a necessidade do superávit fiscal e a liquidação das estatais pela privatização tornaram o investimento uma variável quase externa, uma variável que fica na dependência das multinacionais. E as multinacionais, obviamente, são pressionadas, pela dinâmica interna brasileira, a fazer investimentos. Porém esses investimentos (e mesmo o funcionamento dessas empresas) dependem de outras dinâmicas, onde essas corporações estão imersas. É a dinâmica internacional que acelera, estaciona ou atrasa a dinâmica nos países. Aqui está o fulcro da questão, cuja origem se ancora na abdicação do investimento autônomo brasileiro, aquele feito pelo Estado, que liderava a expansão de nossa economia, supresso, com as privatizações, pelo Governo Fernando Henrique. Com isso, sem objetivo de recuperar esse tipo de investimento, a aliança fica dependente, estruturalmente, do doce embalo da política de curto prazo, uma vez que as emoções do longo continuam como um projeto microeconômico das empresas estrangeiras. Assim, os industriais brasileiros e os trabalhadores nacionais, com as suas buscas de lucro e de emprego, passam a ser totalmente dominados, política e economicamente. O importante, nesse processo, é verificar que o acordo político, sendo uma aliança e não um pacto, passa a ser gerido pela estrutura, o que favorece, de forma aguda, os interesses das finanças privadas, em consonância com o fenô- meno da “armadilha da estabilidade”. Dessa forma, o resultado é uma fragmen- tação da unidade política, dado que, na aliança — uma aliança de ocasiões —, os interesses continuam particulares, e não há, necessariamen-

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p.155-172, nov. 2003 168 Enéas de Souza te, um objetivo permanente acima destes que os limite. Nela, e sobretudo naquela concretizada no Brasil, sobressai, com galhardia, o caráter temporal, eventual e, muitas vezes, pontual das concordâncias. Parece que o projeto de autonomia está se desdobrando satisfatoriamente no front externo. Todavia, no interno, na condução econômica, as finanças capturaram, para si, os primeiros movimentos da política econômica, desconcertando as demais forças sociais do País. Dessa forma, a aliança não se tornando pacto, o projeto de desenvolvimento econômico e social brota como sendo imaginário e sem construção efetiva. Restam grupos soltos, avulsos e errantes, as finanças, os industriais, os comer- ciantes, os empresários agrícolas, os trabalhadores urbanos, os trabalhadores rurais, os desempregados, os sem-teto, os sem-terra, etc., mas dominados estruturalmente pelas finanças. Com isso, a realidade torna-se fragmentada, a unidade perde-se e as tensões do todo não são bloqueadas, ao contrário, exacerbam-se.

3 - O jogo do capital financeiro e do Governo

A face oculta da realidade brasileira, presente nos primeiros meses da nova administração do País, compunha-se de duas cabeças, como um cão que as tivesse, ambas poderosas, latindo e mordendo a população e o governo. A cabeça que ladra mais alto, a cabeça número um, poderíamos chamá-la de financeira, se instalou como uma estrutura, impondo uma solução a que demos o nome de “armadilha da estabilidade”. Demos esse nome por causa da sua obstrução ao desenvolvimento econômico e social. A segunda cabeça, um tanto autofágica, talvez seja uma cabeça sem realidade, seria a teoria do desenvolvimento em tempos de globalização. Pois é essa teoria que está perigosamente ausente na hora do Governo Lula (Sader, 2003). A combinação das duas cabeças levou-nos a um vazio, a um buraco, cuja verdade foi o bloqueio do desenvolvimento. Não se deu a passagem do curto ao longo prazo, porque essa passagem, como a correnteza de um rio voluptuoso, teria que avançar pela zona do investimento. Mas, no que toca à inversão, ela continua a ser, desde os tempos de FHC, uma variável que não decola, nem se fortalece Como já explicamos, a conexão em pauta é praticamente impossível de ser feita pelo capital estrangeiro, cujas opções são, basicamente, em torno de aplicações financeiras. Como, nessa realidade, o Governo não teve a possibi- lidade de uma ação para incentivar o aumento da capacidade de investir da economia, a sua preocupação voltou-se para os problemas da governabilidade nacional. O assunto veio como uma chuva impertinente, tratando dos contratem-

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 155-172, nov. 2003 Autonomia em tempos de guerra 169 pos de caixa dos estados, embora as reformas aparentemente fossem outras, a da previdência e a tributária. Não examinaremos em detalhe essas duas reformas, mas o que se apreende do ponto de vista político, da grande política, é que o Governo, não podendo investir e se dedicando a batalhas parlamentares pelas causas assinaladas, acabou por se enganar e desviar-se do alvo principal, a profundidade dos estragos do capital financeiro. Os danos não eram apenas uma questão de postura de política econômica, mas um câncer que estava (e está) ramificado em toda a estrutura do Estado. Portanto, não é somente um problema de formulação de política econômica, passa também pelas instituições, pela burocracia, pela própria federação política brasileira, desde o Governo Central até os governos dos esta- dos. Uma estrutura que avançou para apropriar-se dos pilares estatais e que, ao mesmo tempo, subjugou, econômica e politicamente, outros atores sociais, como o capital produtivo, o capital comercial, os trabalhadores, etc. Nesse momento, a questão do futuro da dominância do capital financeiro põe-se com toda força e esclarece-se da seguinte maneira: de um lado, as finanças têm na mão o aprisionamento do Estado, com o problema de que o Governo eleito veio pela esquerda; e, de outro, a sua participação na renda cresce espetacularmente, sem que ocorra o mesmo com as outras frações do capital. Há, todavia, um terceiro lado: o desemprego, a miséria e a exclusão social também evoluíram de forma intensa, contribuindo para fazer crescer a instabilidade e as tensões da sociedade brasileira. Esse quadro revela, sem dúvida, um momento grave, pois o jogo capital financeiro e Governo, de agora em diante, abarcará o centro dos conflitos, embora tudo pareça o contrário. No entanto, o que corre solto na esplanada da economia e da política é que as finanças estão jogando de mão. Quais são as razões dessa vantagem? Em primeiro lugar, o seu domínio estrutural, já comentado. Em segundo, porque o Governo e a sociedade não têm uma teoria e, conseqüentemente, um projeto de desenvolvimento para a hora atual. Em terceiro lugar, os demais capitais, embora estejam submetidos às finanças, não se aliarão aos trabalhadores e aos movimentos sociais, nem ao Governo de esquerda, para enfrentá-las. Em quarto lugar, porque todas as esferas de governo (federal, estadual e municipal) estão trabalhando, numa aliança parlamentar, para efetuar reformas que sustentem a viabilidade de um governo e de um Estado cercado pelas ditas finanças, mas que, no fundo, também serão beneficiadas de uma forma ou de outra. Agora, focalizando o Governo, em face desses argumentos, devemos in- quirir quais são as armas que ele possui, quais as lanças que pretende empre- gar? Quando se consideram as suas possibilidades, sem que fiquemos envoltos na questão parlamentar e na política partidária (importantes, mas que não são o

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p.155-172, nov. 2003 170 Enéas de Souza nosso nível de exame), localizamos alguns pontos básicos, que passamos a expor. O primeiro e maior destaque já apontamos: a decisiva manobra da política externa, que permitirá, inclusive, evitar ataques fortíssimos do capital estrangei- ro através, por exemplo, da ALCA, da OMC, etc. Isso significa parar o grau de infiltração e hemorragia que o Estado e a sociedade sofreram todos esses anos, o que só aumentaria com concessões do tipo compras governamentais, garan- tia de investimentos, etc. Em segundo lugar, a desvinculação brasileira das po- líticas do FMI. O que não significa cortar o diálogo e as relações, mas, sobretu- do, evitar que as nossas definições de política econômica venham de fora. Cabe ainda frisar, como tópico principal deste ponto, a necessidade de buscar anular os constrangimentos externos, expressos no balanço de pagamentos, através das transações correntes, e na questão fiscal, por intermédio do superávit primário. Em terceiro lugar, o funcionamento político e econômico do Mercosul, com ampliações para outras nações do continente sul-americano. Um das marcas fundamentais talvez seja um projeto de investimentos em infra-estrutura, articulando países, capitais, trabalhadores e mesmo organismos internacionais. Em quarto lugar, o conhecimento e o estudo das infiltrações institucionais e burocráticas, as formas de privatização do Estado, empregadas pelas finanças, para que se possa reconverter o setor público ao serviço da sociedade, de fato, de toda a sociedade. Em quinto lugar, o comprometimento do Governo com o desenvolvimento. Ao mesmo tempo, para que a realidade se modifique e se transforme, é indispensável constituir uma teoria e um projeto de desenvolvimento econômico e social em toda a sua amplitude, seja no caso da manutenção da globalização liberal, seja na hipótese de uma outra globalização. As instituições do Governo e o setor privado podem contribuir para a construção dessa teoria no caminho de uma verdadeira autonomia. Em sexto lugar, a percepção de que a ideologia não é um fator a ser desprezado. Ao contrário, ele é substancial e em todos os níveis: econômicos, políticos, sociais, culturais, etc. Um dos aspectos mais candentes atravessa a luta contra a legitimação da financeirização do Estado. O tema do bem comum torna-se cada vez mais imperioso, retomando uma causa decisiva em prol do relançamento da civilização em tempos de violência e barbárie. Finalmente, é preciso fazer um parágrafo para tentar descortinar um novo passo na estratégia brasileira. O projeto de autonomia teria que encampar um giro de estratégia. De um modo geral, o que se poderia conceber como um gesto normal do interesse nacional seria a articulação de um projeto de desenvolvi- mento que caminhasse em paralelo ao projeto de autonomia na política externa. Porém, com a implantação de profundas raízes do capital financeiro no interior do Estado, o projeto talvez tenha que fazer uma curva e tomar corpo a partir exatamente dessa política externa, onde os caminhos podem ser mais flexíveis,

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 155-172, nov. 2003 Autonomia em tempos de guerra 171 dadas as resistências inúmeras à soberania absoluta dos norte-americanos, bem como as dificuldades notórias da economia dos Estados Unidos Uma ação pragmática e vigorosa nesse espaço, com objetivos estratégicos bem definidos, poderia fornecer o tempo indispensável para recuperar, canalizar e concentrar forças no interior do País. Em todo caso, a estratégia exige que as manobras do Governo no campo parlamentar sejam eficazes e não desperdicem aliados, par- tidários e não partidários. Porém, se o Governo não tiver clareza do seu destino, da sua trajetória, das suas tarefas, esse lance será inútil, já que se arrisca a ceder a almejada política de autonomia para ficar reduzido à darwiniana política do poder pelo poder. O que será, sem dúvida, um triunfo das finanças.

Conclusão

Uma análise no sopro dos acontecimentos está sempre envolta em nuvens e véus e cortinas, porque não há distância, muitas vezes, para se ver o contorno dos objetos. Em política e economia, os encobrimentos são amplos e, de certo modo, tenazes. Assim, interpretar os fatos, dar sentido a eles, descortinar as tendências que estão ali embutidas é uma arte que depende de intuições corretas e de teorias, que vão se fazendo junto com a realidade, saberem encontrar a corrente dos acontecimentos. A política e a economia envolvem, inclusive, confrontos e contradições de alto porte, onde certos combates, certas lutas, certos lances, certas manobras não ficam explícitas, e só se percebe, muito tempo depois, que foram armadas e realizadas. O disfarce e a máscara fazem parte do jogo. A nossa conclusão é simples: o movimento que surgiu com a eleição de 2002 trouxe um processo novo, onde o Brasil tenta retomar a sua busca de autonomia, só que essa trajetória é feita em dois grandes planos, a autonomia da política externa e o desenvolvimento econômico, social e cultural (embora estejam, no real, intimamente ligados). E podemos constatar que existe uma enorme clareza no primeiro ponto, mas que, no segundo, os mecanismos de controle e de enraizamento das finanças internacionais, com cumplicidade das nacionais, preponderam, e continuam mantidos, ao par, com a ausência de um projeto de desenvolvimento atual, no qual se leve em consideração o fenômeno presente da globalização. Se nos detivermos um pouco nas dimensões contemporâneas da atual fase histórica, podemos sentir que esse projeto de autonomia pode ter o comando invertido. O Brasil pode, com habilidade e o acaso igualmente o favorecendo, encontrar o projeto de desenvolvimento originário de uma bela perspectiva vinda da política externa. Ou seja, o itinerário seria do exterior para o interior. Claro, nesse panorama, avulta a ambição de hiperpotência

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p.155-172, nov. 2003 172 Enéas de Souza dos Estados Unidos, onde vige também uma crise econômica respeitável. A mensagem subterrânea deste texto assevera que não é possível entender os contornos do Brasil sem os modos políticos e econômicos do capital financeiro e da soberania norte-americana. E é na forma de lidar com esses pontos que se joga o futuro do Brasil. A realidade, no entanto, é sempre ambígua, e projetamos nela os nossos desejos e os nossos projetos. Mas ela é enganadora e cruel como se fosse uma raposa, e é nela que o novo Governo baseia a sua interpretação, aliás como todos os atores sociais, incluindo o capital financeiro. O mundo político e econômico e social decide-se sempre numa relação de forças, onde a astúcia, o conhecimento e as apostas se fazem na racionalidade e nas obscuridades do jogo.

Referências

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Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 155-172, nov. 2003 Fracasso em Cancun? 173 Fracasso em Cancun?

Teresinha da Silva Bello* Economista da FEE.

Resumo No texto, discute-se se a reunião da Organização Mundial do Comércio (OMC) realizada em setembro de 2003 foi um fracasso para os países em desenvolvimento, ou se representou o início de uma nova fase da OMC. Nele, são discutidas a causa oficial do fracasso da reunião, os subsídios à agricultura, as três propostas apresentadas e as conseqüências para os países em desenvolvimento.

Palavras-chave OMC; protecionismo; subsídios agrícolas.

Abstract The text discusses whether the World Trade Organization meeting of September 2003 was a failure for developing countries, or if it represented the beginning of a new phase for WTO. The official cause of the meeting’s failure is discussed, along with the agricultural subsidies, the three proposals presented and the consequences for developing countries.

Os originais deste artigo foram recebidos por esta Editoria em 06.10.03.

* A autora agradece imensamente à amiga e colega Sônia U. Teruchkin pela disponibilidade com que se propôs a ler a primeira versão do texto e pelas sugestões apresentadas. Os erros por ventura remanescentes são de responsabilidade da autora.

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 173-188, nov. 2003 174 Teresinha da Silva Bello

Introdução

Na 5ª Conferência Mundial da Organização Mundial do Comércio (OMC), ocorrida em Cancun, entre 10 e 14 de setembro de 2003, esperavam-se decisões sobre dois assuntos previamente incluídos na agenda da OMC, em reuniões anteriores: o comércio de produtos agrícolas, agendado em 2001, na reunião ministerial de Doha; e a sujeição dos chamados novos temas — investimentos, acesso a mercados, compras governamentais, normas para concorrências públicas, comércio de serviços — às normas do comércio internacional. Os no- vos temas já faziam parte da agenda da Organização desde 1996, quando ocorreu a reunião de Cingapura. Enquanto o tema sobre comércio de produtos agrícolas interessava particularmente aos países em desenvolvimento, o segundo assunto, relacionado com o comércio de serviços e investimentos, convinha aos países ricos. Se, para alguns, a reunião acabou em fracasso, para outros representou o início de uma nova fase da OMC. O Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT), antecessor da OMC e criado na segunda metade da década de 40, foi, por muito tempo, dirigido pelos Estados Unidos e pela Europa, enquanto os países em desenvolvimento desempenhavam um papel secundário nas discussões sobre comércio internacional. Mas sua sujeição integral ao acordo de Blair House (o que ditou as regras da Rodada Uruguai de 1994) tornou-os bem mais cons- cientes de seus direitos e bem mais ressentidos sobre suas muitas obrigações como membros da OMC.1 Desde a reunião de Seattle em 1999, os países mais pobres têm insistido em assumir seu pleno papel nas decisões da OMC, que precisam ser tomadas através de consenso. E agora, em Cancun, eles experimentaram essa liberdade (Jonquiers, 2003). No presente texto, pretende-se analisar até que ponto o desenlace da reunião de Cancun pode ser considerado um fracasso, quando analisado sob o ponto de vista dos países menos desenvolvidos. Assim, em primeiro lugar, é apresentado o motivo oficial pelo qual a conferência de ministros não avançou. A seguir, são feitas algumas considerações sobre as distorções causadas pelos subsídios agrícolas e seus efeitos nocivos sobre os países mais pobres. Na terceira parte

1 “Na Rodada Uruguai, concluída em 1994, formularam-se as regras de comércio internacional atualmente em vigor na Organização Mundial do Comércio (OMC) sem se estabelecerem diferenciações quanto ao grau de desenvolvimento dos países. Os princípios gerais, que deveriam refletir-se em melhoria nos padrões de relacionamento comercial entre os países, até o momento, atêm-se a normas que beneficiam, em sua maior parte, as nações mais desenvolvidas. Setores sensíveis, como, por exemplo, a agricultura, não tiveram sua regu-

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 173-188, nov. 2003 Fracasso em Cancun? 175 do texto, são apresentados, resumidamente, os principais conteúdos das três propostas colocadas na mesa de negociações, no aspecto referente à questão agrícola, quando podem ser observadas as posições diferenciadas dos países ricos — em especial Estados Unidos e União Européia (UE) — e do outro gru- po — este formado por economias emergentes —, o qual ficou conhecido como o G-22. A terceira proposta foi aquela apresentada pelo Presidente do Conselho Geral da OMC, responsável pela supervisão do conjunto da negociação. Na parte final do texto, são levantadas algumas considerações sobre as possíveis conseqüências dessa 5ª Conferência para os países em desenvolvimento.

A causa oficial do “fracasso”

Embora, nas previsões, a questão agrícola fosse considerada como o ponto onde mais haveria discórdia entre os 148 países-membros da Organização, o colapso da reunião ocorreu depois que uma coalizão de países africanos e asiáticos recusou as exigências da União Européia e do Japão para que se iniciasse a discussão sobre os novos temas. Conhecidos como Temas de Cingapura, referem-se a um pacote discutido em Cingapura, em 1996, e seus objetivos são a abertura do mercado para empre- sas de serviços e para investidores internacionais. De interesse específico dos países ricos (exportadores de capital e de serviços), os Temas de Cingapura foram apresentados pela UE como a contrapartida do bloco para a redução dos subsídios agrícolas proposta pelos países em desenvolvimento. Ou seja, em troca da diminuição das subvenções concedidas à agricultura pela UE, criar-se- -iam leis supranacionais para o tratamento do investimento externo e do comércio de serviços, as quais reduziriam a margem de manobra das políticas nacionais de desenvolvimento nos países mais pobres. Em novembro de 2001, em Doha, no Catar, países da Ásia, da África e do Caribe já haviam resistido à inclusão desses assuntos na agenda de negociação, ficando estabelecido que os mesmos só seriam negociados em 2003, em Cancun, se houvesse consenso, o que não ocorreu, refletindo os diferentes interesses dos países que compõem a OMC. Aos ricos interessa, especialmente, ampliar as negociações sobre os novos temas. Para dezenas de países pobres, entre- tanto, haveria dificuldade em levar adiante a abertura do comércio de serviços e

lamentação implementada em sua totalidade, o que tem afetado diretamente a capacidade competitiva dos países menos desenvolvidos, cujos produtos continuam a sofrer barreiras que já deveriam ter sido excluídas.” (Bello, 2002, p. 73).

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 173-188, nov. 2003 176 Teresinha da Silva Bello a maior liberalização em relação aos investimentos externos. Isto porque, além de ser difícil avaliar seus impactos sobre as economias dos países em desenvolvimento, muitos destes temem a repetição do que aconteceu na Rodada Uruguai: acatando as propostas dos países ricos, concordaram com a redução das tarifas sobre bens manufaturados e com a adoção de regras sobre patentes, sem que nada substancial fosse decidido em relação à abertura do comércio de bens agrícolas, de interesse vital para os países mais pobres. E, durante a reunião em Cancun, ficou claro que a agenda de negociação novamente estaria voltada apenas aos interesses dos mais ricos. Daí, a negativa por parte de quase 70 países da África e da Ásia, a maior parte deles situados entre os mais pobres do mundo, de discutir os Temas de Cingapura. Na Índia, por exemplo, um dos países que mais contribuiu para o impasse em Cancun, o Governo quer decidir livremente sobre a adoção de políticas industriais, o que implicaria ter o direito de exigir dos investidores estrangeiros certos compromissos. Ou seja, o Governo indiano quer ter a liberdade de condicio- nar os investimentos externos aos interesses de seu país. No molde proposto pelos países desenvolvidos, essa liberdade seria concedida aos capitais, não às políticas públicas. A grande reticência dos países em desenvolvimento em relação ao acordo sobre investimentos é que as propaladas benesses advindas do livre- -comércio e tão defendidas pelos países ricos e por muitos especialistas em comércio, na prática, raramente se cumprem. Diferentemente do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial, onde os votos são proporcionais às cotas de cada país, na OMC os votos têm peso igual, e, dos seus 148 associados, mais de 100 são considerados “países em desenvolvimento” e só uns 40 são classificáveis como “desenvolvidos”. Desse fato resulta a necessidade de haver um consenso nas tomadas de decisão, sob pena de não se chegar a lugar algum, já que os interesses dessas 148 economias são muito diversos. Mesmo entre os países em desenvolvimento, existem fortes diferenças quanto aos seus objetivos. Enquanto Brasil, Argentina, México, Índia e os Tigres Asiáticos, por exemplo, possuem uma respeitável base industrial, outros países mais pobres da África e da Ásia estão em níveis mais atrasados de desenvolvimento, com suas economias praticamente baseadas numa agricultura com condições de produção muito precárias e alicerçada em poucos produtos. Devido a isso, esses países tornam-se bastante vulneráveis aos efeitos dos subsídios à agricultura concedidos nos países mais ricos, conforme será visto a seguir.

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 173-188, nov. 2003 Fracasso em Cancun? 177

As distorções causadas pelos subsídios agrícolas

De acordo com a Organização para Alimentação e Agricultura das Nações Unidas (FAO), as distorções no comércio de produtos agrícolas afetam principalmente os países mais pobres, por diversas razões. Em relação aos subsídios e às políticas protecionistas, no entender da FAO, as mesmas distorcem o comércio agrícola de várias formas: deprimindo as importações dos países que concedem as subvenções; reduzindo as exportações dos países que não concedem tais subvenções; provocando a depressão dos preços mundiais e um aumento de sua volatilidade; diminuindo os incentivos à produção de alimentos nos países importadores que não concedem subsídios (FAO, 2003). Ainda que, em curto prazo, os subsídios internos e a exportação de alimentos dos países ricos tendam a reduzir os gastos com as aquisições externas por parte dos países importadores desses bens, no longo prazo as importações subvencionadas acabam por minar os incentivos para investir na produção de alimentos nos países importadores que não concedem tais subsídios. Tal fato também pode levar os governos desses países (sobretudo os dos países em desenvolvimento) a deixarem de atender ao seu setor agrícola nacional (FAO, 2003). Até mesmo a ajuda humanitária, sob determinadas circunstâncias, poderia trazer problemas aos países que a recebessem. Exemplificando: os Estados Unidos costumam enviar seus excedentes de commodities — produzidas com subsídios — a populações mais pobres de países africanos. O Governo norte- -americano compra dos produtores o excesso de produção de cereais e o envia como ajuda alimentar a países carentes. Devido aos subsídios que os protegem contra preços baixos, os agricultores dos EUA produzem esses cereais em excesso. Por outro lado, na África, muitos dos países que recebem essa ajuda alimentar vêm encontrando dificuldade para vender sua produção de cereais — milho, sorgo, trigo, feijão. Só que o excedente ali gerado não decorre da concessão de subsídios, mas das condições de clima e de fertilidade do solo. Fica então a pergunta: por que os EUA não compram os excedentes estocados da África em vez de lhe dar ajuda humanitária sob a forma de alimentos? Tal medida estimularia bem mais o funcionamento da economia desses países, aumentando sua renda e o nível de emprego e, ao mesmo tempo, diminuindo seus excedentes agrícolas. Pelo lado dos países desenvolvidos e, em especial, da União Européia, divulga-se a idéia da necessidade de subsídios agrícolas em decorrência da multifuncionalidade da agricultura. Entretanto essa função “social” das subvenções

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 173-188, nov. 2003 178 Teresinha da Silva Bello aos agricultores da Europa, cada vez mais, tem sido rechaçada, sob a alegação de que, na verdade, os maiores beneficiados são os grandes produtores. “(...) quem mais ganha com a PAC [Política Agrícola Comum] são os grandes cerealistas do entorno da região parisiense e não os pequenos produtores, imagem que sempre vem à mente quando as autoridades européias dizem que o apoio doméstico (ajuda interna) é importante para proteger a população rural da Europa. Se a UE retirar dos cerealistas, dos produtores de carne e leite a ajuda interna, eles não terão mais como produzir de forma a concorrer com o preço interna- cional. Os setores de frutas, vinhos, flores e queijos são, na verdade, pouco ajudados.” (Tachinardi, 2003, p. A-10). A seguir, serão apresentadas, resumidamente, as três propostas colocadas em discussão na reunião de Cancun, todas enfatizando a questão do comércio de produtos agrícolas.

As três propostas

Basicamente, as três propostas tratavam, de maneira diferenciada, de três aspectos relacionados ao comércio internacional e a sua liberalização: produção agrícola interna, acesso a mercados e subsídios à exportação. Em relação à produção agrícola interna, o enfoque dado ligava-se à conces- são de subsídios aos produtores agrícolas. O acesso a mercados tinha como tema central a diminuição das barreiras impostas aos produtos importados. E os subsídios à exportação tratavam da eliminação (ou redução) dos mesmos. A primeira proposta apresentada para discussão no encontro de Cancun partiu de dois gigantes comerciais, os Estados Unidos e a União Européia. Era uma proposta vaga, alinhada com a manutenção dos subsídios à exportação de produtos agrícolas e com poucos esclarecimentos sobre o acesso a mercados. A segunda, formada por um grupo de países em desenvolvimento e claramente em oposição à primeira, queria maiores esclarecimentos sobre o acesso a mercados e mais lentidão na liberalização de mercados dos países em desenvolvimento. A terceira, que teoricamente deveria ser uma síntese das anteriores, foi apresentada pelo Presidente do Conselho Geral da OMC e pedia melhorias na proposta de acesso a mercados colocada pelos países desenvolvidos, mas também não especificava as regras para a redução das tarifas, estando mais alinhada aos interesses dos dois gigantes do comércio do que aos dos países mais pobres. A seguir, serão apresentadas, mais detalhadamente, cada uma delas.

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A proposta dos Estados Unidos e da União Européia

Ainda em agosto, um mês antes da 5ª Conferência, a expectativa dos países em desenvolvimento era de que a reunião de Cancun se encaminharia para algum entendimento em direção à abertura do comércio de produtos agrícolas. Surpreendentemente, porém, Estados Unidos e União Européia fecharam uma proposta agrícola que entrava em conflito com as aspirações dos países menos desenvolvidos, visto tratar-se de um texto tímido e sem avanços expressivos tanto na direção da redução dos subsídios quanto na do acesso a mercados. Pelo acordo entre Washington e Bruxelas, a liberalização do comércio de produtos agrícolas e a redução de subsídios à agricultura deveriam ocorrer ao longo de cinco anos e de forma gradual. Embora os dois parceiros admitissem desvincular os pagamentos diretos aos agricultores do volume de produção, aceitassem diminuir os subsídios às exportações e prometessem facilitar o acesso a produtos estrangeiros, a proposta carecia de detalhes, apresetntando poucas especificações, decepcionando os países que compõem o Grupo de Cairns2. Dentre o apoio concedido à produção agrícola interna (subsídios aos produtores), o tratado entre os EUA e a UE previa a concessão dos subsídios calculados com base na área das propriedades rurais, desvinculando os pagamentos do volume de produção. Em relação ao crédito, foi proposta a desvinculação do crédito à produção, passando para crédito direto. Entretanto essa mudança foi considerada discutível, já que não garantia que não haveria aumento da produção. Também não previa qualquer redução nos subsídios destinados a aumentar a renda dos produtores agrícolas, sendo que os EUA são particularmente abusivos nesse tipo de concessão. O que se pode inferir das medidas adotadas em relação ao apoio à produção interna é que tanto os EUA quanto a UE tinham em vista tornar legais os pagamentos diretos da chamada

2 O Grupo de Cairns, criado em 1986, é uma coalizão de países produtores agrícolas, liderados pela Austrália. Representa mais de 25% do comércio agrícola mundial e lidera as demandas pela mais ampla liberalização, afrontando o protecionismo dos países desenvolvidos. Os 18 membros do Grupo de Cairns são: África do Sul, Argentina, Austrália, Bolívia, Brasil, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, Fiji, Filipinas, Guatemala, Indonésia, Malásia, Nova Zelândia, Paraguai, Tailândia e Uruguai. Três são os pontos relevantes para o Grupo de Cairns: (1) eliminação total dos subsídios agrícolas; (2) acesso a mercados; (3) redução do apoio interno, medido em dinheiro.

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“caixa amarela”3, que abrange as políticas de subsídios internos que distorcem o comércio agrícola internacional e estão sujeitas a limitações (Scaramuzzo, 2003). No que diz respeito ao acesso a mercados, o acordo proposto pelos dois gigantes do comércio internacional também não apresentou um número sequer. Embora chegassem a um consenso sobre como calcular reduções de tarifas de importação, os detalhes e os prazos eram vagos. Produtos considerados “sensíveis”, com tarifas de importação altas, teriam redução nestas, e — ainda de acordo com a proposta — os cortes nas tarifas de importação seriam maiores nos outros produtos. Mas não foram especificados os percentuais de redução em nenhum dos casos. Ou seja, também na questão de acesso a mercados, a fórmula não estava clara (ACORDO..., 2003). Além disso, o acordo criou uma nova categoria entre os países: a dos “exportadores agrícolas líquidos”. Uma das preocupações para o Brasil, enquadrado nessa categoria, é que o texto da proposta EUA-UE afirmava que os países em desenvolvimento, competitivos no setor agrícola, não teriam as preferências que seriam dadas aos demais países em desenvolvimento. Na questão dos subsídios à exportação, a proposta dos Estados Unidos e da União Européia colocava claramente que os mesmos não seriam totalmente eliminados, já que mantinha as subvenções às vendas externas para alguns produtos e não estabelecia uma data para o fim dos subsídios agrícolas às exportações.

A resposta do G-22

Como alternativa ao acordo entre os Estado Unidos e a União Européia, um grupo de 22 países, liderados pelo Brasil e que ficou conhecido como G-22, prontamente elaborou outra proposta, a qual também foi apresentada à OMC para discussão. Países importantes faziam parte do Grupo, como a China e a Índia, os dois mais populosos do mundo, além do Brasil, o maior da América

3 “Blair House produziu a repartição dos subsídios em três ‘caixas’. Os países colocam na chamada ‘caixa verde’ todos os subsídios permitidos, que não distorcem o comércio, como pesquisa, infra-estrutura, reforma agrária, cestas básicas, etc. Na ‘caixa azul’ estão os subsídios que distorcem o comércio, mas que ficaram isentos de disciplinas porque estão atrelados a medidas de controle de oferta. Na ‘caixa amarela’ estão os subsídios que distorcem o comércio, sujeitos a disciplinas e tetos máximos por país. São esses, portanto, os únicos subsídios monitorados, dos quais os países signatários do acordo podem reclamar se os limites forem ultrapassados.” (Jank, 2002).

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Latina, da Nigéria, o maior da África, e da Indonésia, o maior país muçulmano do Planeta.4 Até então marginalizados e sempre atuando defensivamente na OMC, os países menos desenvolvidos, desta vez, tomaram posição e passaram a atuar mais ofensivamente como agentes de mudança no encaminhamento das negociações sobre as questões agrícolas. Seu objetivo era desmontar as arma- dilhas contidas na proposta dos países ricos. Esta, em última instância, pretendia a manutenção do status quo em relação às políticas agrícolas dos países desenvolvidos (Jank, 2003). Para o G-22, a proposta de Washington e Bruxelas ameaçava com a manutenção dos subsídios à produção, o que provocaria excedentes artificiais e deprimiria os preços internacionais; era vaga nos compromissos para diminuir as tarifas de importação para os produtos agropecuários, além de não prever a eliminação dos subsídios agrícolas à exportação. Pela proposta do G-22, os subsídios para a exportação de produtos agrícolas seriam eliminados dentro de um prazo definido, e a fórmula para diminuir as tarifas de importação para esses produtos afetaria mais fortemente os chamados “picos tarifários”.5 Além disso, o texto procurava impedir que subsídios, hoje na “caixa amarela”, pudessem sobreviver sob novas classificações, definindo critérios precisos para as “caixas”, de forma a evitar que os países ricos mantivessem o atual volume de subsídios concedidos aos agricultores locais (Leo, 2003b). Embora constituído por países muito heterogêneos, todos em desenvolvi- mento, o G-22 manteve-se unido em suas decisões, para o que muito contribuiu o papel de coordenador desempenhado pelo Brasil. Apesar das dúvidas criadas sobre a coesão do grupo, composto por países de interesses tão diversificados, foi surpreendente sua capacidade de manter-se unido e articulado em torno da exigência de transformações efetivas na política agrícola dos EUA e da UE. Mesmo com suas enormes diferenças, os países do G-22 conseguiram unir-se em defesa de seus objetivos em relação ao comércio agrícola.

4 Os membros do G-22 são: África do Sul, Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, China, Colômbia, Cuba, Egito, Equador, Filipinas, Guatemala, Índia, Indonésia, Malásia, México, Nigéria, Paquistão, Paraguai, Peru, Tailândia e Venezuela. Por alegadas razões estratégicas, o Uruguai, embora membro do Mercosul, optou por não fazer parte do Grupo. “Com a adesão final da Indonésia e da Nigéria, o G-22 representa hoje 57% da população mundial, 70% da população agrícola e 28% das exportações agrícolas.” (Jank, 2003, p. A-2). 5 Alíquotas do Imposto de Importação acima de 15%, cobradas sobre produtos em que países como Brasil, Austrália e Argentina, por exemplo, são mais competitivos (Leo, 2003b).

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O desafio, daqui para a frente, será manter o grupo coeso, tentar ampliá-lo, incluindo outros países do Grupo de Cairns, como, por exemplo, Austrália, Nova Zelândia, Uruguai e Malásia.

A proposta da OMC

A terceira proposta veio da própria OMC e foi apresentada pelo Presidente do Conselho Geral da Organização. Com ela, o impasse consumou-se, visto que foi considerada muito próxima da proposta feita pelos EUA e pela UE e que, praticamente, ignorava a moção do G-22. De modo geral, endossava o acordo costurado por Washington e Bruxelas, ao tomar o entendimento entre EUA e UE como a base da negociação e ao não respeitar os principais compromissos de Doha. Com relação ao apoio à produção interna, o documento elaborado pela OMC propôs modificações na “caixa azul” para deixar intacta a Farm Bill 2002 (Lei Agrícola dos EUA). Na concepção original do acordo agrícola da OMC de 1994, a “caixa azul” inclui pagamentos diretos à produção, mas com controle de oferta. Ou seja, o Governo paga se o agricultor não produzir, evitando superoferta. Pela proposta apresentada em 2003 pela Organização, a expressão “controle de produção” seria suprimida, e os pagamentos diretos, baseados em área e produtividade fixas, significando menos de 85% da produção, passariam para a “caixa azul” (Landim, 2003). Assim, os subsídios, que claramente seriam de “caixa amarela”, passariam para “caixa azul”. Além disso, mantinha uma cláusula que garante a manutenção de um percentual pequeno de subsídios distorcivos ao comércio, já que a “caixa azul” poderia representar até 5% da produção agrícola dos países, que, no caso dos EUA, corresponde a US$ 10 bilhões (Landim, 2003). Os europeus também ficariam protegidos pelo texto-base da OMC. Sua grande preocupação era em relação ao acesso a mercados, já que a UE sempre se caracterizou pelo seu elevado protecionismo agrícola. Segundo Leo, a proposta da OMC trazia “(...) propostas vagas de eliminação das chamadas escaladas tarifárias, pelas quais os países ricos desestimulam a importação de mercadorias industrializadas, cobrando tarifas mais baixas para matérias-primas e mais altas para produtos agrícolas processados industrialmente. O texto é mais ambicioso em matéria de redução das barreiras aos produtos industriais, usadas pelos países em desenvolvimento para estimular suas indústrias, que em matéria de agricultura” (Leo, 2003a, p. A-11).

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Sugeria a redução de tarifas de produtos que atendessem aos interesses de países em desenvolvimento, mas, à semelhança do acordo dos dois grandes, não apresentava objetivos claros e mantinha as sugestões em aberto (Scaramuzzo; Lopes, 2003). A proposta da Organização previa também três categorias no tema acesso a mercados, distinguindo produtos e tarifas. Embora tivesse sugerido uma melhora no acordo de acesso a mercados, não chegava a especificar as regras para as reduções tarifárias e deixava os possíveis cortes para serem definidos a posteriori. E o temor do Brasil era ficar na categoria de países contemplados com as reduções mais tímidas. O documento apresentado pela OMC não previa a fixação de um prazo para o fim dos subsídios à exportação, apenas para uma lista, que não estava definida, de produtos de particular interesse para os países em desenvolvimento. Finalmente, a proposta da OMC — à semelhança daquela dos EUA e da UE — tentava, ainda, abrir caminho para uma prorrogação da chamada Cláusula de Paz, pela qual os países-membros da OMC, em 1994, na Rodada Uruguai, se comprometeram a não questionar subsídios à agricultura de outros países até dezembro de 2003. A extinção da Cláusula de Paz no fim de 2003 permitiria que, a partir de 2004, chegasse à OMC uma avalanche de processos contra os países desenvolvidos, pleiteando a interrupção de subsídios agrícolas de quase US$ 300 bilhões por ano (Leo, 2003), daí o interesse dos mesmos na sua prorrogação. Como pôde ser observado, além de manter os subsídios à exportação para alguns produtos, o documento da OMC mantinha as proteções norte-americanas e européias nas áreas mais sensíveis, respectivamente, subsídios internos e acesso a mercados.

Conseqüências para os países em desenvolvimento

A partir do momento em que os Estados Unidos e a União Européia deixaram de lado suas diferenças internas e se uniram para apresentar uma proposta agrícola conjunta, a perspectiva de os países menos desenvolvidos serem bem- -sucedidos em Cancun tornou-se mais sombria. Até então, esperavam um avanço nas negociações sobre a agricultura, talvez em troca de concessões nos chamados “novos temas” de interesse dos países mais ricos. Isto porque as negociações de Cancun tiveram início em 2001, em Doha, com a perspectiva de se atenderem às demandas dos países em desenvolvimento. Entre essas

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 173-188, nov. 2003 184 Teresinha da Silva Bello demandas, predominava a eliminação dos subsídios à exportação agrícola concedidos pelos países ricos. Diante da frustração de suas expectativas, restou aos países em desenvolvi- mento organizar uma reação à tentativa dos EUA e da UE de, à semelhança da Rodada Uruguai, imporem seus interesses sobre os demais países da OMC. Assim, pode-se entender o papel do G-22 como uma reação para evitar uma nova derrota tática no âmbito do sistema multilateral de comércio. E, embora beneficiando os paises desenvolvidos, a manutenção do status quo evitou o pior, que seria a aprovação de qualquer uma das duas outras propostas. Até porque a aceitação quer do texto-base proposto pela OMC, quer do acordo EUA-UE, ambos com resultados bastante modestos para os países mais pobres, poderia fazer com que estes tivessem de esperar talvez uns 15 ou 20 anos para relançarem as discussões sobre temas agrícolas. As reações por parte das duas potências comerciais, ao verem frustradas suas tentativas de aprovar sua proposta, não se fizeram esperar. Tanto os EUA quanto a UE ameaçaram abandonar as negociações multilaterais, no âmbito da OMC, em troca de acordos bilaterais. Tal estratégia, que já vinha sendo adotada anteriormente por Washington, até então era rejeitada por Bruxelas. Mas, diante da impossibilidade de acordos vantajosos sob o guarda-chuva da Organização Mundial do Comércio, o bloco europeu passou a considerar a idéia do bilateralis- mo, embora reconhecendo que negociações bilaterais podem se arrastar por vários anos e enfatizando sua preferência por acordos multilaterais. O prazo de 2004, fixado para o encerramento das negociações da rodada iniciada em 2001, parece, assim, cada vez mais longe de ser obedecido. Está praticamente afastada a possibilidade de um novo acordo mundial de comércio a partir de 2005, como programava o calendário aprovado em Doha. Mesmo que muitos países tenham afirmado seu interesse na manutenção desse prazo, a esperança de alcançá-lo desvanece-se , principalmente porque, no final de 2004, devem acontecer as eleições presidenciais nos EUA, e poucos esforços sérios deverão ser feitos naquele país para se reavivarem negociações tão polêmicas. Até porque, com a economia vacilante e a perda de milhões de empregos nesse país, o Governo norte-americano, em ano eleitoral, dificilmente abrirá mão de sua política protecionista. Na UE, por seu turno, a ascensão de 10 novos Estados-membros, a ser levada a termo em futuro próximo, também deverá ocupar as atenções dos europeus bem mais do que os interesses dos demais países em desenvolvimento na multilateralidade das questões agrícolas. Aqui, porém, cabe ressaltar que essa entrada de novos membros na UE joga a favor das ambições dos países em desenvolvimento, no que se refere à eliminação dos subsídios à agricultura, pois, se for mantida a atual Política Agrícola Comum do bloco, sua ampliação

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 173-188, nov. 2003 Fracasso em Cancun? 185 implicará um aumento de custo na PAC. Isto porque muitos dos novos países que deverão ingressar na União Européia em 2004 têm uma forte base agrícola. Tal é o caso, por exemplo, da Polônia, onde o número de agricultores supera os da França, da Itália e do Reino Unido juntos (Leo, 2003). Diante dos fatos, o clima mundial para acordos bilaterais torna-se cada vez mais propício. Mas nunca é demais lembrar que, ao se resolverem bilateralmente as questões comerciais, o mais provável é que prevaleça a lei do mais forte. Assim, a tendência para o bilateralismo pode ser citada como um dos possíveis resultados indesejáveis do malogro das negociações em Cancun. O Brasil, como líder do G-22, deve esforçar-se para evitá-lo, incentivando a manutenção das conversações rumo à resolução das questões agrícolas através da OMC, esforçando-se para manter a coesão do Grupo e também procurando agregar novos parceiros a este. As negociações para a concretização da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) e para a formalização de um acordo de livre-comércio entre a União Européia e o Mercosul também deverão sofrer mudanças a partir do desenlace de Cancun. Até porque tanto a ALCA, quanto o acordo UE-Mercosul estão programados para entrarem em funcionamento também a partir do início de 2005, à semelhança do acordo mundial de comércio da OMC. No caso da ALCA, as negociações poderão ficar prejudicadas porque os norte-americanos haviam tirado da discussão a questão dos apoios internos aos agricultores e dos demais subsídios à agricultura, alegando que esse era um assunto que deveria ser resolvido multilateralmente, ou seja, na OMC. Alegavam que os subsídios europeus à agricultura os impediam de retirar as subvenções concedidas aos seus agricultores e que, por isso, só debateriam a questão na ALCA quando o assunto já tivesse sido resolvido na OMC. Situação semelhante ocorreu com as negociações Mercosul-UE, com os europeus usando o mesmo argumento dos EUA em relação à eliminação dos subsídios agrícolas. Diante dos acontecimentos, tanto os países em desenvolvimento que fazem parte da ALCA quanto os do Mercosul, em suas tratativas com a UE, tenderão a diminuir o ritmo das negociações regionais com os Estados Unidos e com a União Européia até que esse tema estratégico (subsídios agrícolas) seja resolvido no âmbito do sistema multilateral da OMC. No caso do Brasil, diante desses acontecimentos, seria recomendável o aprofundamento do Mercosul e a expansão de acordos na América do Sul, rumo a uma ampliação da área de livre-comércio no continente sul-americano, além de buscar pactos bilaterais ou regionais de livre-comércio com países não hegemônicos. Tudo isso, contudo, sem abandonar sua posição francamente a favor do multilateralismo, que sempre fez parte da política externa do País.

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As negociações da OMC deverão ser retomadas em Genebra, sob a orientação do Conselho Geral da Organização, o qual deverá, até o dia 15 de dezembro de 2003, decidir a seqüência dos entendimentos. Nessa data, ocorrerá o primeiro novo lance na área da agricultura, quando se espera que não haja uma nova procrastinação da efetiva discussão do assunto, embora por parte dos países ricos, certamente, haverá uma tentativa de forçar a prorrogação da Cláusula de Paz, tão nefasta para os países menos desenvolvidos e mais pobres. Apesar das dificuldades a serem enfrentadas, o impasse criado em Cancun poderá ter algumas conseqüências positivas para os países em desenvolvimento. Dentre elas, uma mudança na dinâmica dos próximos encontros da OMC, que poderá não ser mais a mesma depois dessa 5ª Conferência Ministerial. Tudo depende, agora, do rumo a ser tomado pelas relações entre os países do G-22. Afinal, eles mostraram, talvez pela primeira vez, que podem ter peso na construção de uma nova ordem no comércio internacional, e só a História dirá se o ocorrido nessa reunião da OMC foi um fracasso para os países em desenvolvimento, ou se foi o florescer de uma nova correlação de forças na Organização Mundial do Comércio.

Referências

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Ônibus: um segmento industrial em expansão

Maria Lucrécia Calandro* Economista da FEE e Professora da PUCRS.

Silvia Horst Campos* Economista da FEE e Professora da PUCRS.

Resumo Neste artigo, busca-se analisar o comportamento do segmento produtor de ônibus (chassi e carroceria), no qual o Brasil vem mostrando competitividade, garantindo- -lhe participação crescente no mercado internacional, a partir da segunda metade dos anos 90. O esforço de modernização em busca de qualidade, conforto e segurança empreendido pelos fabricantes de chassis e carrocerias, juntamente à adoção de uma política agressiva de conquista de novos mercados, tem alavancado as exportações nacionais de ônibus. As melhorias nos processos produtivos, os novos materiais utilizados, o “design” inovador, a variedade de modelos e tamanhos de veículos, o processo de internacionalização, dentre outros, contribuem para o aumento da competitividade do segmento.

Palavras-chave Indústria automobilística; ônibus; estratégias industriais.

Abstract This article analyzes the behavior of the bus productive sector (chassis and body building) in Brazil whose competitiveness is guaranteeing an increasing participation in the international market, especially since the second half of the 90’s. The modernization effort in the seek of quality, comfort and security undertaken by the bus chassis and body manufacturers, in addition to an aggressive new markets conquest policy have risen the national exports of buses.

* As autoras agradecem o apoio técnico fornecido pelo estagiário Cristiano Ponzoni Ghinis.

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The improvements in the productive processes, the new materials used, the innovative design, the variety of models and sizes of buses, the internalization process, among others, contribute to the increase of the sector’s competitiveness.

Os originais deste artigo foram recebidos por esta Editoria em 09.10.03.

1 - Introdução

A partir da segunda metade dos anos 80 e durante a década de 90, a indústria automobilística passou por uma grande transformação. A crescente participação dos veículos japoneses no mercado internacional, em detrimento da participação dos veículos norte-americanos, em um contexto de afirmação de um novo paradigma industrial, forçou a reestruturação das plantas existentes e a implantação de fábricas incorporando equipamentos automatizados e novas formas de gestão e organização da produção. Essas mudanças, somadas à estagnação nos seus principais mercados, na década de 90, levaram as montadoras a ampliarem a produção em países em desenvolvimento com vistas ao aumento de participação nesses mercados, à redução de custos, sobretudo de mão-de- -obra, e ao aproveitamento de “vantagens cambiais para exportação”. Esse movimento se deu através de fusões e aquisições e, também, mediante a realização de investimento diretos nos países hospedeiros. O excesso de capacidade instalada e a retração da demanda, que se prolonga pelo novo milênio, não estimulam os investimentos em novas plantas. Estes estão sendo direcionados à modernização das plantas existentes: automação e introdução de conceitos de produção enxuta e desenvolvimento de plataformas de produtos. No Brasil, o processo de reestruturação “ganhou força” após a abertura comercial e a implantação de programas governamentais, principalmente na primeira metade da década de 90. A implantação de novas fábricas, tanto de empresas já instaladas no País quanto de novos entrantes, ocorreu paralelamente à modernização de plantas tradicionais. Esse processo trouxe grandes mudanças no chão-de-fábrica, introduzidas pela nova lógica de racionalização da produção. As novas plantas são altamente flexíveis, permitindo respostas rápidas às variações de mercado. À semelhança do que ocorreu em outros países, os investimentos realizados nesse período possibilitaram um aumento significativo da produtividade dessa indústria, porém a produção e o índice de utilização da capacidade mantiveram-

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-se em níveis bastante baixos devido à desaceleração do crescimento da economia mundial e à contração do mercado interno. Entendida a indústria automobilística como um conjunto de empresas empenhadas na fabricação e na montagem de automóveis, comerciais leves, ônibus e caminhões, é necessário serem feitas algumas considerações. Embora a produção e na montagem desses veículos seja realizada seguindo basicamente as mesmas técnicas, existem diferenças nas tecnologias, tanto de produto quanto de produção, envolvidas em um e outro tipo de veículo e nas escalas de produção, o que tem impactos distintos sobre as estratégias competitivas adotadas pelos fabricantes desses veículos. As principais inovações, tanto de produto quanto de processo, ocorreram nas linhas de produção e montagem de automóveis e de comerciais leves. Nos demais segmentos, embora tenha sido incorporada a mesma “filosofia” de produção, as mudanças tiveram menor intensidade, tendo em vista as características dos veículos e de seu processo de fabricação, como, por exemplo, menor número de fornecedores e de freqüência de fornecimento, produção sob encomenda, etc. Embora o alcance das modificações seja menor no segmento de veículos pesados, deve-se lembrar que o novo conceito de gestão e organização da produção e da montagem de veículos, denominado consórcio modular, foi introduzido no País pela Volkswagem, na planta de caminhões e ônibus em Resende (RJ). Nesse modelo de gestão, os principais fornecedores foram colocados dentro da fábrica e passaram a ser responsáveis diretos pela montagem dos veículos. A planta foi dividida em sete módulos, e, em cada um deles, um fornecedor de peças, partes, subconjuntos e sistemas responsabiliza-se pela montagem do veículo. Neste texto, pretende-se analisar o comportamento do segmento produtor de ônibus, destacando a atividade de encarroçamento, na qual o Brasil vem ganhando competitividade, e enfatizando a participação crescente no mercado internacional, a partir da segunda metade dos anos 90. Na primeira seção, será feita uma breve caracterização da indústria, examinando-se aspectos relacionados à cadeia de fornecimento das montadoras, à distribuição mundial da produção, à identificação das empresas no Brasil e às principais transformações experimentadas pelo segmento nos anos 90. Na segunda seção, serão discutidos aspectos relevantes da inovação tecnológica nos chassis e nas carrocerias, tendências internacionais e panorama nacional, relacionando-os com o aumento da competitividade do segmento. Na última seção, serão examinados os principais indicadores de desempenho, com ênfase na produção e na atuação externa. As considerações finais encerram o artigo.

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 189-206, nov. 2003 192 Maria Lucrécia Calandro; Silvia Horst Campos

2 - Caracterização da indústria

A fabricação e a montagem dos ônibus é, em geral, dividida entre dois tipos de empresas. A parte mecânica, que compreende a plataforma de sustentação e o sistema motriz — chassi —, é fabricada por grandes montadoras mundiais que fabricam veículos leves (automóveis) e pesados (caminhões), e a carroceria, produzida pelas chamadas encarroçadoras, que se encarregam também da montagem final do veículo.1 A cadeia produtiva compreende quatro níveis de fornecimento: sistemistas, produtores de peças e componentes para os sistemistas, e, nos terceiro e quarto níveis, estão os fabricantes de peças isoladas, de baixo valor agregado, e os produtores de matéria-prima. A maioria das empresas fornecedoras são de pequeno e médio porte e, muitas vezes, fornecem direto na linha de montagem. Em geral, a montadora consegue conduzir as negociações de preço e qualidade, porém, quando o fornecedor é uma empresa de grande porte e/ou são comprados pequenos volumes, as negociações são mais difíceis. O principal destino dos ônibus são as empresas de transporte de passagei- ros, que compram em grande quantidade e, portanto, estão em condições de fazer pressão nas negociações de preços, prazos e características do produto. Os principais fabricantes de ônibus localizam-se na Europa, nos EUA, na Ásia e na América Latina, com destaque para o Brasil (Tabela 1). Os modelos mais elaborados em termos de concepção e design são fabricados na Europa, região que concentra um número expressivo de montadoras, que se encarregam da concepção do projeto e da montagem final do veículo, e um parque completo e diversificado de fornecedores. As principais melhorias e inovações e a maior variedade de modelos estão concentradas nessa região. O oposto ocorre com a indústria norte-americana, que produz veículos padronizados e em pequenos volumes. O mercado “(...) no entanto, é bastante rígido e regulamentado, sendo necessário que todos os componentes utilizados no ônibus estejam homologados pelo Departamento de Trânsito norte-americano” (BERNARDES, 2002, p. 24). Até 1995, a Mercedes-Benz, com plantas no Brasil, na Argentina, no México e na Alemanha, dominou o mercado internacional de ônibus. Essa empresa,

1 Essa divisão entre fabricantes de chassis e montadores de carrocerias foi introduzida em 1996. Nesse ano, a Mercedes-Benz do Brasil desativou a montagem do monobloco na sua planta brasileira, “(...) passando a concentrar seu foco no desenvolvimento de chassis e plataformas. Ela tinha em sua fábrica de Campinas o seu centro mundial de excelência em ônibus e a maior planta da marca no mundo e, em São Bernardo, um centro de pesquisa e desenvolvimento único no País” (BERNARDES, 2002, p. 78).

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 189-206, nov. 2003 Ônibus: um segmento industrial em expansão 193 porém, está deixando de fabricar esse veículo, cedendo lugar para as encarroça- doras brasileiras, que, a partir de 1997, passaram a ocupar as primeiras posições. As principais concorrentes são: Val Hool (Bélgica), Kaessbobohrer (Alemanha), Caetano (Portugal), Setra (Espanha) e Ikarus (Hungria). Todas fabricam ônibus rodoviários e urbanos, e apenas a empresa alemã fabrica também microônibus (CADÓ, 2001).

Tabela 1

Produção de ônibus segundo regiões do mundo — 1997-02 (1 000 unidades)

DISCRIMINAÇÃO 1997 1998 1999 2000 2001 2002 (1)

América do Norte ...... 27 38 51 41 39 38 América do Sul ...... 19 21 13 23 24 23 União Européia ...... 38 35 34 36 34 33 Restante da Europa ...... 16 29 22 24 26 24 Japão ...... 34 57 15 8 11 11 Coréia do Sul ...... 18 17 17 18 18 18 Demais países da Ásia e da Oceania (2) ...... 55 33 8 38 36 45 TOTAL ...... 207 230 160 188 188 192

FONTE: OICA. World motor vehicle production by type and economic area. (S. l., s. n.). Disponível em: www.oit.net Acesso em: 05 maio 2003. (1) Os dados de 2002 serão revisados apenas em mar./2004. (2) Os dados refe- rentes à China, incluídos neste grupo, estão subestimados. Estimativas recentes apontam uma produção substancialmente maior e crescente no período 2000-02.

No Brasil, seis montadoras fabricam chassis de ônibus: Agrale S/A, Ford Brasil Ltda., Mercedes-Benz do Brasil S/A, Scania Latin América Ltda.,

Volkswagen do Brasil Ltda. e Volvo do Brasil Veículos Ltda. Além destas, duas outras empresas devem ser mencionadas, a Indabra e a Tutto. As carrocerias são fabricadas por sete empresas principais: Marcopolo/ /Ciferal, Busscar, Caio/Induscar, Comil, San Marino/Neobus, Metalbus e Irizar (a

única empresa estrangeira). Além destas, duas grandes empresas de transporte de passageiros e de cargas — Cometa e Itapemirim — possuem ou possuíam encarroçadoras próprias: CMA e Technobus (esta última está se preparando para oferecer chassis e carrocerias a terceiros). Existe ainda um número

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194 Maria Lucrécia Calandro; Silvia Horst Campos expressivo de unidades industriais de menor porte, tais como a Metalbus, a Jotave, a recém-criada Mascarello e outras que atuam especificamente no segmento urbano, tais como a Mafersa, a Colon, a Condor, a Engerauto e a Pertutti. No segmento microônibus, tem-se a Modificar e a Mov. A Eletra, por sua vez, destaca-se pela montagem de um ônibus híbrido de piso baixo em parceria com a Tutto e com a Marcopolo. Essas empresas desenvolvem o projeto básico da carroceria, fazem os acabamentos e a montagem final. Além disso, as empresas maiores fabricam, também, diversas peças e componentes: poltronas, janelas, perfis e partes plásticas, dentre outros itens, atendendo ao gosto e às necessidades dos clientes. Os chassis, de um modo geral, são comprados pelos clientes e enviados à planta da encarroçadora. Apesar das barreiras à entrada de novos concorrentes: economias de escala, tradição da marca e know-how na produção, a concorrência é intensa no segmento, visto que os produtos estão cada vez mais parecidos, o que faz com que o preço seja o fator determinante na vendas, contribuindo para o estreitamento das margens de lucro das empresas montadoras de ônibus nacionais (BERNARDES, 2002, p. 24). O desenvolvimento das encarroçadoras brasileiras foi beneficiado pelo fato de as multinacionais estrangeiras fabricantes de veículos pesados, com exceção da Mercedes-Benz — e esta com uma escala bastante reduzida —, não terem demonstrado interesse pela fabricação de carrocerias para ônibus e pelo potencial de demanda por carrocerias que um país de dimensões continentais apresenta para poder ofertar um amplo sistema de transporte coletivo. A Marcopolo/Ciferal, a Busscar e a Comil são, atualmente, as principais encarroçadoras brasileiras, possuem uma linha diversificada de produtos, que vai desde o urbano mais simples até os biarticulados e double-deckers, e operam, tanto no mercado interno como no externo, com unidades montadas e/ou desmontadas em regime parcial (PKD) ou total (CKD). Na década de 90, o segmento passou por grandes transformações, explicadas, em grande parte, pela externalização de atividades produtivas e pelo estreitamento de relações com fornecedores, buscando o desenvolvimento e a melhoria dos processos e da tecnologia de produção. A crescente participação de sistemistas na cadeia de suprimentos contribuiu para o êxito do sistema de entregas Just-in-Time (JIT) e permitiu que as plantas já não tenham o tamanho que tinham no passado. As encarroçadoras de maior porte lideram o processo de reestruturação e modernização tecnológica e organizacional, que vem resultando em melhorias contínuas nos processos produtivos, no design, na variedade de modelos e nos itens relativos à segurança e ao conforto dos veículos.

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 189-206, nov. 2003 Ônibus: um segmento industrial em expansão 195

“A produção customizada tem implicações profundas no projeto de gestão da produção e na tecnologia de processo a ser empregada. A flexibilidade na composição das carrocerias implica um tipo de organização produtiva diferente da mecanização e produção seriada que se adota nos demais segmentos da indústria automotiva” (BERNARDES, 2001, p. 26-27). Os níveis de eficiência alcançados pelo setor brasileiro de fabricação e montagem de carrocerias de ônibus têm sido suficientes para “(...) assegurar um padrão de competitividade que constitui hoje referência internacional no segmento. As empresas desenvolveram capacidade produtiva que garante elevadas escalas de produção e grande flexibilidade para diferenciação de produto” (ESTUDO..., 2002, p. 11). Além de várias fábricas no Brasil com uma capacidade de produção superior a 20.000 unidades/ano, o setor possui plataformas de produção na África do Sul, na Argentina, na China, na Colômbia, no México, em Portugal, em Cuba e na Dinamarca.

3 - Tecnologia e competitividade

É praticamente impossível separar a história do surgimento do ônibus da história das carrocerias. O primeiro ônibus do mundo parece ter sido criado em 1895, por Carl Benz, acionado por um motor de combustão interna, montado sobre um chassi de caminhão, prática que perdurou durante muitos anos. As primeiras décadas do século XX trouxeram uma seqüência de inovações e melhoramentos tecnológicos para os ônibus, tais como a transmissão por eixo cardã, o fechamento das carrocerias, a utilização de câmbio hidráulico, a adoção de formas retas e lineares conferindo maior aerodinâmica na concepção do projeto, o aumento da potência dos motores, dentre outros. Porém a principal inovação da primeira metade do século XX, mais precisamente em 1935, consistiu na fabricação do ônibus monobloco, ou construção integral, estrutura em que o chassi e a carroceria formam uma única peça, obedecendo a princípios aerodinâ- micos. Algumas décadas mais tarde, as montadoras de veículos pesados passaram também a fabricar plataformas ou chassis para ônibus, portanto, sem necessidade de adequação do caminhão para a implantação das carrocerias de ônibus. A fabricação independente do chassi e da carroceria, paralelamente ao novo padrão de exigências do mercado, propiciou o surgimento de várias encarroçadoras, bem como um grande desenvolvimento tecnológico veicular pelas principais montadoras. Destaca-se, aqui, o uso de transmissão hidráulica e o desenvolvi- mento de um sistema de suspensão que compensasse os solavancos tradicionais

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 189-206, nov. 2003 196 Maria Lucrécia Calandro; Silvia Horst Campos dos caminhões. Ao mesmo tempo em que se introduziam inovações visando ao conforto e à segurança dos passageiros, também se projetavam unidades diferenciadas com progressiva incorporação de tecnologia. Foram, então, desenvolvidos veículos double-decker (dois pisos), articulados e biarticulados, dentre outros tipos, e projetadas carrocerias de diferentes tamanhos, destinadas a atender, primordialmente, aos diferentes segmentos do transporte coletivo urbano (TRANSPORTE..., 2003). A década de 90 trouxe uma intensificação na introdução de novas tecnologias na fabricação de ônibus em nível mundial, visando ao aumento da competitividade das empresas do setor. As inovações, na sua grande maioria ligadas à carroceria do veículo, foram orientadas tanto para o segmento urbano como para o rodoviário, embora tenham, inicialmente, priorizado este último. Ao lado das inovações no design das carrocerias seguindo as linhas adotadas pela empresa líder no mercado mundial, introduziram-se melhorias significativas nos itens relativos à segurança e ao conforto dos passageiros: ar-condicionado automático, videocassete, interfone de comunicação, vários monitores de TV, caixas para medicamentos e dispositivos para transportar usuários de cadeira de rodas. As inovações introduzidas nos chassis buscaram, basicamente, melhorar os quesitos qualidade, conforto e segurança mediante a incorporação de tecnologia microele- trônica (câmbio easy-shift, suspensão pneumática, dentre outros). Destaca-se, dentre as inovações, a possibilidade de rebaixamento (low entry), total ou parcial, em relação ao nível do solo nos embarques e desembarques de passageiros. Atualmente, a importância do desenvolvimento do transporte coletivo de ônibus pode ser detectada em praticamente todos os países, tendo, inclusive, crescido em mercados antes primordialmente atendidos por outros meios de transporte. Mesmo com um sistema urbano de transporte eficiente e organizado integrando todos os modais (trens, metrôs, modernos bondes e ônibus) em uma rede que privilegia a mobilidade, e com o estabelecimento de normas veiculares que beneficiam a segurança e o meio ambiente, o setor europeu de transporte urbano — indústria, autoridades públicas e operadores — vem incentivando a participação de ônibus modernos, ágeis e que atendem às mais variadas demandas da população usuária do transporte coletivo. Em vários casos, o ônibus pode oferecer uma resposta mais ágil para a ampliação das cidades,2 e a cooperação entre fabricantes e operadores de ônibus

2 O custo de implantação de corredores segregados à utilização pelos ônibus nos centros urbanos europeus pode ser até 10 vezes inferior ao do metrô ou trem, o que viabiliza a implantação de redes de ônibus em qualquer tipo de cidade (TRANSPORTE..., 2003).

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 189-206, nov. 2003 Ônibus: um segmento industrial em expansão 197 tem proporcionado a utilização de novas tecnologias em veículos e seus sistemas complementares. Cresce, assim, a oferta de veículos de variadas capacidades no transporte de passageiros, inclusive os articulados, equipados com terceiro eixo direcional, dotados de motores com baixa emissão de poluentes, dentre outros itens de segurança e conforto, tais como piso baixo, lugar para acomodar cadeira de rodas, rampas, portas largas, ampla área envidraçada garantindo a luminosidade do seu interior, design inovador, bilhetagem eletrônica, vários tipos de padronagem de revestimentos e poltronas, sistema de aquecimento e ar- -condicionado com controle automático. De modo geral, o destaque das inovações nos anos 90 e no início da década atual é para as tecnologias veiculares que reduzem a emissão de poluentes na atmosfera. Nesse sentido, os lançamentos dos grandes fabricantes europeus de chassis e carrocerias para ônibus já vêm buscando se adequar às novas normas Euro IV de emissões poluentes, que entrarão em vigor apenas no ano 2005 e que estabelecem índices de g/km monóxido de carbono (CO) e de material particulado (fumaça preta) bastante inferiores aos admitidos pelas normas Euro III atualmente em vigor (TRANSPORTE..., 2003). Os veículos são dotados de motores alimentados com combustíveis alternativos, gás natural e hidrogênio. Destacam-se, nessa linha, a célula de combustível, ainda em teste na Europa, e o sistema híbrido de propulsão (diesel/elétrico)3, responsáveis por baixa emissão de poluentes, pois quem realmente move o veículo é o seu motor elétrico. As montadoras Daimler Chrysler (Mercedes-Benz) e a Scania têm assumido a liderança no processo de inovação no mercado urbano europeu com a produção de ônibus completos, além de sua linha de chassis. O desenvolvimento das novas tecnologias estabelece barreiras à entrada temporárias, garantindo uma maior competitividade às empresas inovadoras. Em termos de tamanho da carroceria, a última tendência na Europa são os ônibus dentro do conceito midbus, que consiste na construção de veículos entre nove e 11 metros, levando 36 a 44 passageiros, com utilização preferencial no perímetro urbano e em aeroportos, mas que também encontra aplicação no segmento rodoviário de pequena distância e/ou de outras finalidades que não a de transporte público. Nos Estados Unidos, os segmentos que concentram o maior volume de investimentos e para onde se direcionam a maior parte das inovações são os segmentos especiais, dentre eles o de transporte escolar e o rodoviário.O fortaleci-

3 O desenvolvimento de veículos pesados totalmente elétricos mostra-se excessivamente dispendioso e operacionalmente inviável em razão de sua baixa potência, da grande quan- tidade de baterias utilizadas e da sua pequena autonomia.

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 189-206, nov. 2003 198 Maria Lucrécia Calandro; Silvia Horst Campos mento do segmento urbano fica mais restrito às cidades de maior porte que não abrigam um sistema de trens e metrô. O Brasil, conforme já foi mencionado anteriormente, é um importante fabricante mundial de ônibus, sendo o segmento de encarroçamento uma das poucas áreas da indústria automobilística em que as empresas brasileiras lograram efetivamente se sobressair. A sua já reconhecida capacidade inovadora em termos de tecnologia veicular tem lhe garantido um papel de liderança na América Latina, no setor de transportes, e uma participação nos mercados europeu e asiático. Em termos de desenvolvimento tecnológico, as carrocerias seguem os padrões europeus, atendendo, inclusive, às normas Euro III de emissão de poluentes, que deverão entrar em vigor no Brasil apenas em 2004. Outro aspecto relevante é a busca da adequação tecnológica das carrocerias às condições das estradas e das vias urbanas por onde trafegam os ônibus, assim como às condições climáticas e culturais. As principais empresas encontram-se também engajadas em um processo de internacionalização da produção. Parcerias efetuadas com empresas localizadas em outros países garantem a transferência de tecnologia ou mesmo a própria fabricação das carrocerias. Tal movimento vem aumentando a competitividade dessas empresas no Exterior. A participação do Brasil no desenvolvimento de tecnologias veiculares que reduzem a emissão de poluentes na atmosfera, que se constituem no principal esforço inovador dos últimos anos, é relevante. Existem projetos de desenvolvi- mento de ônibus movidos a células de combustível e produtos já desenvolvidos no âmbito do conceito de veículo híbrido. Os primeiros ônibus movidos a células de combustível no Brasil deverão ser colocados em circulação apenas em 2005. Só depois, a tecnologia deverá ser implementada em escala comercial. O projeto está sendo desenvolvido pela Empresa Metropolitana de Transportes Urbanos de São Paulo (EMTU) em parceria com órgãos de desenvolvimento ligados à ONU. Quanto ao desenvolvimento de um modelo híbrido, destaca-se a apresen- tação, na Fetransrio 2002, do ônibus modelo híbrido (diesel/elétrico) fruto da parceria Eletra e Marcopolo, com redução de 30% no consumo de combustível e de até 70% na emissão de poluentes (NOVIDADES..., 2002). O modelo é movido por motor elétrico de tração e utiliza um motor International para a alimentação das baterias. Essa motorização dispensa o uso de rede aérea de fios (utilizadas para os trólebus) e a recarga de baterias, reduzindo o valor dos investimentos. O motor diesel funciona em rotação constante, emitindo menores volumes de agentes poluidores.

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 189-206, nov. 2003 Ônibus: um segmento industrial em expansão 199

O novo ônibus elétrico híbrido de piso baixo (piso interno praticamente no nível da calçada) lançado pela Eletra consome menos combustível, possui baixo nível de emissão de poluentes, associado a um menor custo operacional e à reduzida poluição sonora. Em termos internacionais, a tecnologia desenvolvida pela Eletra possui reconhecimento mundial pela confiabilidade técnica e pelos ganhos ambientais. A tecnologia VEH — veículo elétrico híbrido — substitui, pois, as conhecidas tecnologias de tração e geração elétrica. Sua utilização tornou-se comercialmente viável pelo avanço da eletrônica e da informática, pois “(...) sua operação exige computadores para um perfeito controle do motor, da potência e dos tempos para usar ou acumular eletricidade” (OSAVA, 2003). Ela suplanta a célula de combustível, em torno da qual reinava uma expectativa muito positiva, pois se esperava que o hidrogênio fosse o melhor substituto do petróleo, em termos econômicos e ambientais, mas agora já se reconhece que o desenvolvimento dessa alternativa demandará ainda vários anos.

4 - Desempenho recente

O segmento produtor de ônibus ocupa uma posição destacada na estrutura industrial brasileira. Em um país como o Brasil, de dimensões continentais, esse segmento adquire grande importância, uma vez que o transporte coletivo é responsável por cerca de 90% da movimentação e do transporte de pessoas (ESTUDO..., 2002). Após um período de profunda retração, provocada pelas crises do petróleo e pela maxidesvalorização da moeda nacional em relação ao dólar nos anos 80, a produção voltou a crescer na segunda metade dos anos 90 (Tabela 2). Com o objetivo de estimular as vendas do segmento, o Governo “(...) promoveu uma correção das tarifas e criou uma série de inventivos voltados para a renovação da frota urbana de ônibus” (ESTUDO..., 2002, p. 3). Paralelamente, as montadoras procuraram reestruturar suas plantas mediante a externalização de algumas atividades produtivas. Em alguns casos, os próprios funcionários dessas empresas foram incentivados a constituírem firmas e, assim, entrarem na cadeia de suprimentos. Como conseqüência dessas medidas, a produção cresceu significativamente ao longo dos anos 90, embora passando por anos de queda nas quantidades produzidas, permitindo uma recuperação das montadoras já instaladas e, ainda, atraindo novos concorrentes. Essas oscilações estão diretamente associadas ao desempenho da economia brasileira, ou seja, a produção retrai-se nos períodos de contração da atividade produtiva, e o inverso ocorre nas fases de expansão, impulsionada por incentivos governamentais, tais

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 189-206, nov. 2003 200 Maria Lucrécia Calandro; Silvia Horst Campos como “(...) correção das tarifas, implantação do vale-transporte, redução do IPI ou aumento nos financiamentos com recursos do BNDES” (ESTUDO..., 2002, p. 4).

Tabela 2

Produção e exportação do setor fabricante de carrocerias de ônibus no Brasil –— 1980-2002 (unidades) PERÍODOS PRODUÇÃO EXPORTAÇÃO 1980 11 301 1 288 1985 5 506 212 1990 9 246 766 1991 15 344 1 141 1992 17 830 3 046 1993 13 274 2 919 1994 12 625 3 224 1995 17 625 3 224 1996 18 498 2 119 1997 18 304 3 614 1998 19 291 3 407 1999 12 098 2 488 2000 17 001 4 832 2001 19 872 6 119 2002 (1) 21 298 6 165 FONTE: ALCA. Estudo setorial para subsidiar as negociações de acesso a mercados. Setores: metro-ferroviários, ônibus, implementos rodoviários, bicicletas, suas partes e peças, motocicletas, suas partes e peças. (S. l, s. n.), 2002. Disponível em: . Acesso em 20 ago. 2003. NOTA: Os dados compreendem os cinco maiores fabricantes: Marcopolo, Busscar, Caio/Induscar, Comil e Ciferal. (1) Os dados incluem a San Marino/Neobus e a Metalbus, além dos Minis — Light Commercial Vehicles (LCV) — e das unidades exportadas na forma KD (desmon- tadas).

O crescimento da produção nos anos 2001 e 2002 estabelece um novo patamar de produção e pode ser explicado, em larga medida, pela expansão das exportações. As vendas para o mercado externo cresceram bastante nos últimos anos da década de 90. Em 2001, foram comercializados no Exterior 6.119 unidades, e, em 2002, uma quantidade ligeiramente superior, 6.165 unidades, o

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 189-206, nov. 2003 Ônibus: um segmento industrial em expansão 201 que corresponde a 31,5% e 28,9% da produção nacional de carrocerias respectivamente. Duas empresas destacam-se no cenário nacional: Marcopolo e Busscar, sendo que a primeira detém cerca de 60% do mercado nacional. As vendas para o mercado interno passaram por sucessivas fases de expansão e contração decorrentes da instabilidade que atingiu a economia brasileira sobretudo na segunda metade dos anos 90. Porém o setor foi beneficiado com estímulos do Governo Federal, o que permitiu manter a produção em níveis elevados. A privatização dos serviços de transporte urbano e a criação de corredores exclusivos também estimularam o mercado, principalmente o de modelos de grande capacidade, como os articulados e os biarticulados. O expressivo crescimento das exportações está diretamente associado à implementação de uma estratégia de globalização das montadoras, que estão procurando implementar estratégias globais de atuação. A principal responsável por essas mudanças foi a Marcopolo, que, mediante a implementação de uma estratégia bem-sucedida de internacionalização, conquistou novos mercados, ampliando, assim, sua participação no cenário mundial. A história da encarroça- dora gaúcha “(...) se confunde com a da própria indústria por suas ações administrativo-tecnológicas pioneiras e sua liderança de mercado, constituindo- -se em um dos principais atores responsáveis pela tendência de globalização que vem apresentando essa indústria” (BERNARDES, 2002, p. 37). As encarroçadoras estão comercializando veículos completos — chassis mais carroçerias. “Isto porque algumas vezes as exportações de segmento são feitas em conjunto com uma montadora, que estabelece uma parceria com um ou mais fabricantes de carrocerias, em função do modelo ou tipo de veículo que se quer comercializar. Outras vezes, os fabricantes fazem negócios diretamente com montadoras de chassis localizadas no Exterior” (ESTUDO..., 2002, p. 4). Os primeiros resultados divulgados para o ano 2003 apontam a continuação do crescimento da produção, mais uma vez estimulado pela expansão das exportações tanto para mercados tradicionais quanto para novos compradores. O Gráfico 1 mostra como se distribui a produção nacional, por tipo de carroceria, ao longo do período 1990-01. Constata-se, no Gráfico 1, que se produzem modelos de carrocerias para veículos urbanos em número muito superior ao dos demais segmentos — rodoviária e de microônibus —, embora se constate uma queda no patamar de produção entre 1999 e 2001. Tal movimento retrata a queda nas novas licitações, no âmbito do setor público, com vistas à renovação e/ou ampliação da frota existente. A tendência ascendente de produção de ônibus urbanos, entretanto, pode estar indicando uma lenta retomada do processo de renovação da frota, em

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 189-206, nov. 2003 202 Maria Lucrécia Calandro; Silvia Horst Campos especial pelas empresas privadas. No Brasil, o transporte coletivo é responsável pelo deslocamento diário de cerca de 55 milhões de passageiros e responde por, aproximadamente, 70% dos deslocamentos mecanizados. A frota aproximada é de 95 mil veículos, e o segmento de ônibus atende a 90% da demanda de transporte coletivo urbano de passageiros, representada, na sua grande maioria, por usuários de baixa renda (ANÁLISE..., 2003).

Gráfico 1

Evolução da produção de carrocerias de ôniibus, por tipo, no Brasil — 1990-01 (unidades) 16 000 14 000 12 000 10 000 8 000 6 000 4 000 2 000 0 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001

Legenda: Urbanas Rodoviárias Microônibus

FONTE: ALCA. Estudo setorial para subsidia as negociações de aces- so a mercados. Setores: metro-ferroviários, ônibus, implementos rodoviários, bicicletas, suas partes e peças, motocicletas, suas partes e peças. (S. I., s. n.), 2002. Disponível em: . Acesso em 20 ago. 2003.

A categoria composta de microônibus, miniônibus e midiônibus, por sua vez, apresenta taxas de crescimento elevadas a partir da segunda metade da década de 90, e os veículos têm como principal destino o mercado externo, embora se constituam também em um nicho de mercado especialmente nas grandes cidades. O seu crescimento poderia ser ainda maior, não fosse a proliferação do transporte clandestino e irregular, estabelecendo uma concorrência desleal.

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 189-206, nov. 2003 Ônibus: um segmento industrial em expansão 203

Esses fatores, associados à escassez de investimentos em infra-estrutura e à falta de políticas adequadas ao setor, inclusive a regulamentação do transporte clandestino, vêm causando perda de rentatibilidade do setor, que acaba sendo compensada pelo crescimento das exportações. O desempenho do segmento de ônibus rodoviários foi mais estável ao longo do período analisado, com tendência a crescimento no volume produzido nos últimos anos. O mercado de transporte rodoviário de passageiros é composto, atualmen- te, por cerca de 230 empresas regulamentadas, que transportam, em média, 125 milhões de passageiros por ano. Esse volume vem se mantendo relativamente constante nos últimos anos, de modo que o pequeno crescimento ocorrido pode estar refletindo um aumento de demanda, seja em razão da migração de clientes do transporte aéreo, seja em razão do conforto e da segurança que os novos modelos de ônibus oferecem para os seus usuários.

5 - Considerações finais

O setor fabricante de carrocerias detém uma participação expressiva na estrutura industrial brasileira. Em um país com larga extensão territorial interligada por rodovias, o transporte de pessoas e a movimentação de cargas adquirem um caráter estratégico e criam um grande potencial de crescimento para as empre- sas fabricantes desses tipos de veículos. No caso do transporte de passageiros, as necessidades de atender às demandas correntes por novos veículos e de renovação da frota nacional, cuja idade vem comprometendo a segurança e o conforto dos passageiros, estão viabilizando uma contínua expansão da produção de ônibus. Tal crescimento, contudo, depende da política nacional de transporte coletivo a ser implementada pelo Governo Federal. O veículo ônibus é constituído de uma parte mecânica, que corresponde à plataforma de sustentação e ao sistema motriz, e de uma carroceria, ambas fabricadas, de um modo geral, por empresas distintas. Os fabricantes de chassis são grandes produtores mundiais que também fabricam outros veículos. Nas publicações especializadas, essas empresas são chamadas de montadoras, enquanto as que se envolvem com a fabricação de carrocerias recebem a denominação de encarroçadoras. Os principais fabricantes encontram-se na Europa, na Ásia e nos Estados Unidos, cabendo aos europeus a liderança em termos de design e variedade de modelos. O Brasil vem ganhando posição no mercado internacional a partir da implementação de uma estratégia de modernização baseada, principalmente,

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 189-206, nov. 2003 204 Maria Lucrécia Calandro; Silvia Horst Campos em uma busca contínua por inovações gerenciais e organizacionais que resultam em melhorias nos processos produtivos e na competitividade dos veículos nacionais. As inovações introduzidas nos chassis buscaram, basicamente, melhorar os quesitos qualidade, conforto e segurança mediante a incorporação de tecnologia microeletrônica. As encarroçadoras, por sua vez, inovaram em design, introduziram novos materiais, redistribuíram espaços e desenvolveram novos tamanhos de veículos. Na década de 90, o segmento passou por fases de contração e de expan- são da produção, decorrentes das oscilações observadas na economia brasileira. A retração do mercado interno serviu de incentivo para a busca e a ampliação da participação das empresas brasileiras no mercado externo. Com efeito, como resultado do esforço de modernização e de uma política agressiva de conquista de novos mercados, houve uma elevação significativa das exportações nacionais de ônibus.

Referências

ARBIX, Glauco; ZILBOVICIUS, Mauro. De JK a FHC: a reinvenção dos carros. São Paulo: Scritta, 1997. ANÁLISE de mercado: rodoviário, urbano e de fretamento. Disponível em: Acesso em: 24 set. 2003. BERNARDES, Ednilson Santos. Configuração internacional da atividade produtiva: estudo de caso em uma montadora de carrocerias para ônibus. Porto Alegre: PPGA-UFRGS, 2002. CADÓ, Luiz Carlos Daniel. Marcopolo S/A: uma empresa frente à conjuntura econômica pós-real. Porto Alegre: UFRGS, 2001. Dissertação de Pós-Graduação em Economia/UFGRS. ALCA. Estudo setorial para subsidiar as negociações de acesso a mercados. Setores: metro-ferroviários, ônibus, implementos rodoviários, bibicletas, suas partes e peças, motocicletas, suas partes e peças. (S. l., s. n.), 2002. Disponível em: Acesso em 20 ago. 2003. NOVIDADES na Fetransrio 2002. Notícias: out. 2002. Disponível em:

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Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 189-206, nov. 2003 206 Maria Lucrécia Calandro; Silvia Horst Campos

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SECRETARIA DA COORDENAÇÃO E PLANEJAMENTO FUNDAÇÃO DE ECONOMIA E ESTATÍSTICA Siegfried Emanuel Heuser

CONSELHO DE PLANEJAMENTO: Aod Cunha de Moraes Júnior (Presidente), André Meyer da Silva, Ernesto Dornelles Saraiva, Ery Bernardes, Eudes Antidis Missio, Nelson Machado Fagundes e Ricardo Dathein.

CONSELHO CURADOR: Fernando Luiz M. dos Santos, Maria Lúcia Leitão de Carvalho e Suzana de Medeiros Albano.

DIRETORIA PRESIDENTE: AOD CUNHA DE MORAES JÚNIOR DIRETOR TÉCNICO: ÁLVARO ANTÔNIO LOUZADA GARCIA DIRETOR ADMINISTRATIVO: ANTONIO CESAR GARGIONI NERY

CENTROS ESTUDOS ECONÔMICOS E SOCIAIS: Maria Isabel H. da Jornada PESQUISA DE EMPREGO E DESEMPREGO: Roberto da Silva Wiltgen INFORMAÇÕES ESTATÍSTICAS: Jorge da Silva Accurso INFORMÁTICA: Antônio Ricardo Belo EDITORAÇÃO: Valesca Casa Nova Nonnig RECURSOS: Alfredo Crestani

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ORIENTAÇÃO PARA APRESENTAÇÃO DE ARTIGOS

1 - A revista Indicadores Econômicos FEE é uma publicação trimestral da Fundação de Economia e Estatística Siegfried Emanuel Heuser e tem por objetivo a divulgação de artigos de caráter conjuntural no âmbito das economias gaúcha, nacional e internacional.

2 - Os artigos remetidos à revista Indicadores Econômicos FEE para publicação devem ser inéditos, em língua portuguesa (Brasil), apresentados na sua versão definitiva e acompanhados de um abstract em inglês e de um resumo em português, com 10 linhas no máximo.

3 - Devem ser apresentadas as palavras-chave do texto, no número máximo de três.

4 - Os artigos devem vir acompanhados do nome completo do autor, de sua titulação acadêmica e do nome das instituições a que está vinculado, além do endereço para contato, e-mail, telefone ou fax.

5 - Devem ser encaminhadas três cópias impressas dos artigos, com as páginas numeradas na margem superior direita e não excedendo 25 laudas de 24 linhas, em espaço duplo, fonte Times New Roman, tamanho 12, incluindo notas, bibliografia e outras referências. As cópias impressas devem vir acompanhadas do arquivo correspondente em MS-Word.

6 - As notas de rodapé devem conter apenas informações explicativas ou complementares e apresentadas em ordem seqüencial.

7 - As citações devem ser feitas no próprio texto, com a respectiva fonte: sobrenome do autor, ano da publicação e número da página entre parênteses (Vanin, 1980, p. 8). As citações em língua estrangeira devem vir traduzidas, ficando a critério do autor a publicação do original em nota de rodapé.

8 - As referências bibliográficas devem conter o nome completo do autor, o título da obra, o local e a data de publicação, o nome do editor e o número de páginas, enquadrando-se em uma das situações a seguir referidas:

a) livros - POCHMANN, Márcio (2001). O emprego na globalização. A nova in- ternacionalização do trabalho e os caminhos que o Brasil escolheu. São Paulo: Boitempo Editorial, 151p. CASTRO, Antônio B. de, SOUZA, Francisco E. P. de (1985). A econo- mia brasileira em marcha forçada, 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 217p. b) capítulo ou artigo de livro - MIRANDA, José Carlos da Rocha (1997). Dinâ- ca financeira e política macroeconômica. In: TA- VARES, M. C.; FIORI, J. L., orgs. Poder e dinhei- ro: uma economia política da globalização. Pe- trópolis: Vozes, p. 243-275.

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 189-206, nov. 2003 210 Maria Lucrécia Calandro; Silvia Horst Campos

c) periódicos - CONJUNTURA ECONÔMICA (2000). Rio de Janeiro: FGV, n. 12, dez. d) artigos de periódicos - BELLUZZO, Luiz Gonzaga de Mello (1997). O declínio nio de Bretton Woods e a emergência dos mercados "globalizados”. Economia e Sociedade, Campinas: UNICAMP/IE, n. 4, p. 11-20. PARTICIPAÇÃO do Brasil nos investimentos diretos mundiais (1997). Carta da SOBEET. São Paulo, v. 1, n. 4, set./out. e) artigos de jornais - SALGUEIRO, Sônia (2000). Autopeças brasileiras con- quistam mercado externo. Gazeta Mercantil, São Pau- lo, p. A-4, 6-8 mar. PARTICIPAÇÃO de salários no PIB cai para 38% (1997). Folha de São Paulo, São Paulo, 12 dez., p. 2-5.

f) informação ou texto obtidos pela internet - BNDES (2000). O IED no Bra- sil e no mundo: principais ten- dências. Sinopse Econômica. Disponível em: http://bndes.gov.br/sinopse/poleco.htm Acesso em 21 mar.

9 - As tabelas e os gráficos devem ser numerados e apresentar título e fonte com- pletos; os gráficos devem ser gerados no MS-Excel e vir acompanhados das respectivas tabelas.

10 - Os artigos encaminhados à revista Indicadores Econômicos FEE serão subme- tidos à apreciação do Conselho de Redação, sendo os autores informados da aceitação, ou da recusa de seus trabalhos.

11- Em se tratando de artigos aprovados, o Conselho de Redação reserva-se o direito de introduzir as modificações editoriais que julgar convenientes.

12 - O envio espontâneo de qualquer colaboração implica, automaticamente, a ces- são integral dos direitos autorais à FEE.

13 - Toda correspondência deverá ser enviada à: Fundação de Economia e Estatística Siegfried Emanuel Heuser Revista Indicadores Econômicos FEE Rua Duque de Caxias, 1691 CEP 90010-283 — Porto Alegre — RS E-mail: [email protected] Fone: (0XX51) 3216-9050 Fax: (0XX51) 3225-0006

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As revistas Indicadores Econômicos FEE e Ensaios FEE podem ser adquiridas na Livraria da FEE, Rua Duque de Caxias, 1691, térreo, CEP 90010- -283, Porto Alegre-RS, de segunda a sexta-feira, das 8h30min às 12h e das 13h30min às 18h, ou por fone (0xx51) 3216-9118, fax (0xx51) 3225-0006, e- -mail [email protected], ou, ainda, pela homepage www.fee.tche.br

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EDITORAÇÃO

Supervisão: Valesca Casa Nova Nonnig. Secretária: Luz Da Alva Moura da Silveira. Revisão Coordenação: Roselane Vial. Revisores: Breno Camargo Serafini, Rosa Maria Gomes da Fonseca, Sidonia Therezinha Hahn Calvete e Susana Kerschner. Editoria Coordenação: Ezequiel Dias de Oliveira. Composição, diagramação e arte final: Cirei Pereira da Silveira, Denize Maria Maciel, Ieda Koch Leal e Rejane Maria Lopes dos Santos. Conferência: Elisabeth Alende Lopes, Lenoir Buss e Rejane Schimitt Hübner. Impressão: Cassiano Osvaldo Machado Vargas e Luiz Carlos da Silva.

Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 31, n. 3, p. 189-206, nov. 2003 214 Maria Lucrécia Calandro; Silvia Horst Campos

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