Revista Brasileira fase ix

• JULHO-AGOSTO-SETEMBRO 2019 •

ano iI • n.° 100 Academia Brasileira Revista Brasileira de Letras 2019

D i r e t o r i a D i r e t o r Presidente: Marco Lucchesi Cícero Sandroni Secretário-Geral: C o n s e l h o E d i t o r i a l Primeira-Secretária: Segundo-Secretário: Edmar Bacha Merval Pereira Tesoureiro: José Murilo de Carvalho João Almino

C o m i s s ã o d e P u b l i c a ç õ e s M e m b r o s E f e t i v o s Affonso Arinos de Mello Franco, Antonio Carlos Secchin , Alberto Venancio Filho, Alfredo Bosi, P r o d u ç ã o E d i t o r i a l Ana Maria Machado, Antonio Carlos Secchin, Antonio Cicero, Antônio Torres, Monique Cordeiro Figueiredo Mendes Arnaldo Niskier, , Cacá R e v i s ã o Diegues, Candido Mendes de Almeida, Vania Maria da Cunha Martins Santos

Carlos Nejar, , Cicero Sandroni, P r o j e t o G r á f i c o Cleonice Serôa da Motta Berardinelli, Victor Burton Domício Proença Filho, Edmar Lisboa Bacha, E d i t o r a ç ã o E l e t r ô n i c a Evaldo Cabral de Mello, Evanildo Cavalcante Estúdio Castellani Bechara, Fernando Henrique Cardoso, Geraldo Carneiro, Geraldo Holanda Academia Brasileira de Letras Cavalcanti, Ignácio de Loyola Brandão, João Av. Presidente Wilson, 203 – 4.o andar Almino, Joaquim Falcão, José Murilo de – RJ – CEP 20030-021 Carvalho, José Sarney, , Telefones: Geral: (0xx21) 3974-2500 Marco Lucchesi, , Marcos Setor de Publicações: (0xx21) 3974-2525 Vinicios Vilaça, Merval Pereira, Murilo Melo Fax: (0xx21) 2220-6695 Filho, Nélida Piñon, , Rosiska E-mail: [email protected] Darcy de Oliveira, Sergio Paulo Rouanet, site: http://www.academia.org.br Tarcísio Padilha, . ISSN 0103707-2

As colaborações são solicitadas.

Os artigos refletem exclusivamente a opinião dos autores, sendo eles também responsáveis pelas exatidão das citações e referências bibliográficas de seus textos. Transcrições feitas pela Secretaria Geral da ABL.

Esta Revista está disponível, em formato digital, no site www.academia.org.br/revistabrasileira. Sumário

Cicero Sandroni Apresentação 7

ENSAIO Arno Wehling A Academia Brasileira de Letras e a cultura brasileira 9

Zuenir Ventura As duas partes de Gullar 15

Alberto Venancio Filho – o Historiador 19

Antônio Torres . Muito mais do que um escritorzinho do Bom Fim 31

Arnaldo Niskier : O Poeta dos Pampas 35

Domício Proença Filho e a Academia 41

Sergio Paulo Rouanet Machado de Assis e a estética da fragmentação 61

Josué Montello O presidente Machado de Assis 79

Alfredo Bosi O teatro político nas crônicas de Machado de Assis 87

Miguel Reale A filosofia na obra de Machado de Assis 113

Antônio Fernando de Bulhões Carvalho Breve história de tenacidade e imaginação 131

Marcos Vinicios Vilaça O cacique Athayde 135

Evaristo de Moraes Filho Palácio Austregésilo de Athayde – Discurso 139

Merval Pereira Um humanista 143

HOMENAGEM A Barbosa Lima Sobrinho O conto urbano no Brasil 145

CONTO Gilda Ovídio no exílio – Uma carta apócrifa em torno do ano 12 d.C. 163

Esta a glória que fica, eleva, honra e consola. Machado de Assis

Apresentação

Cicero Sandroni Ocupante da Cadeira 6 na Academia Brasileira de Letras

partir de suas primeiras edições, Responsável pela publicação da Revis- em meados do século XIX, a pri- ta Brasileira desde 1941 a ABL lembra que A meira publicação conhecida por esta é a centésima edição sob sua orien- usar o nome de Revista Brasileira apareceu tação editorial, cuja trajetória, por fases e aos 14 de julho de 1855, no Rio de Janei- diretores é registrada em outro local deste ro, a trajetória da Revista Brasileira deixou número. Trata-se de percurso inédito na sua marca no panorama cultural do país. área dos periódicos voltados para a seara No correr de décadas o leitor encontrou em literária, resultado da dedicação e trabalho suas páginas textos de nomes consagrados constante de gerações de acadêmicos que das nossas letras sobre a crítica e a história nos antecederam. literária, estudos da filologia e da lexicogra- Nesta edição texto de abertura de Arno Wehling estuda os 121 anos de exis- fia, resenhas sobre vários aspectos da cultu- tência da Academia e sua relação com a ra, ficções do conto à novela a trechos do cultura brasileira; na recordação de ilustres romance, da poesia em todas as suas for- confrades que nos deixaram, Alberto Ve- mas e estilos, e na tradução das chamadas nancio Filho escreve sobre Afonso Arinos, pedras de toque, da poética mundial nas o historiador, Zuenir Ventura lembra “as palavras dos saudoso Mario Faustino. duas partes” de , Antonio Este acervo de inteligência e imaginação Torres discorre sobre Moacyr Scliar e Mer- criadora contido na coleção de suas edições val Pereira evoca . Em ou- constitui fonte indispensável aos estudos li- tro capítulo Arnaldo Niskier celebra a vida terários não só da lusofonia, mas em todas na poesia do sempre presente e ativo poe- as relações desta cultura com o cânone lite- ta Carlos Nejar. rário internacional. Trata-se de patrimônio Machado de Assis, o primeiro presiden- literário à disposição do leitor em português te e consolidador da Casa é o tema, em de qualquer lugar do planeta, no site da suas variadas personas, de Domício Proença Academia Brasileira de Letras. Filho, Sergio Paulo Rouanet, Alfredo Bosi e 8 • Cicero Sandroni dos saudosos Josué Montello e Miguel Rea- Na área da ficção um ensaio de Barbo- le. Esta edição lembra também o beneméri- sa Lima Sobrinho sobre o conto urbano no to presidente da ABL Austregésilo de Athay- Brasil e a narrativa “Ovídio no exílio – Uma de, com textos de Marcos Vinicios Vilaça, carta apócrifa em torno do ano 12 d. C.” de Antonio Bulhões de Carvalho e Evaristo de Gilda Oswaldo Cruz. Moraes Filho. Boa leitura ENSAIO A Academia Brasileira de Letras e a cultura brasileira

Arno Wehling Ocupante da Cadeira 37 na Academia Brasileira de Letras e membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Professor e pesquisador nas áreas de Teoria da História e História do Direito e das Instituições.

o comemorarmos os 122 anos Prefiro conduzir o argumento em ou- da Academia Brasileira de Letras, tro sentido, o de que a Academia nasceu A parece-me oportuno desenvolver e se transformou em íntima conexão com algumas reflexões sobre tema aparente- a realidade brasileira e, por extensão, com mente consensual entre nós: a ABL sempre sua cultura. Nasceu, ou brotou, como um soube e saberá sintonizar-se com a cultura fruto sazonado dessa cultura. Dois axiomas brasileira. da Ciência Nova de Vico, onde talvez não Em boa lógica é uma proposição afir- falte alguma ironia, são eloquentes a esse mativa – não contingente nem hipotética – respeito: quando se refere aos anos que passaram. E “A ordem das ideias deve proceder segun- penso que deva ser categórica em se tratan- do a ordem das coisas. do do futuro, do tipo “todos os homens são A ordem das coisas humanas procedeu assim: primeiro foram as selvas, depois as ca- mortais”. À luz do que já se fez, creio que banas, a seguir os povoados, logo após as ci- o imperativo se justifica e, mais que isso, dades e, por último, as academias.” nos obriga a cumprir nosso papel de partes transitórias de um ente que se desdobra no A “íntima conexão” com o Brasil e a tempo, fiel a seu ethos e por isso mesmo cultura brasileira exercita-se de diferentes recorrentemente atualizado. Essa é a ideia maneiras e explicita-se por outras tantas. em relação a qual espero ser suficientemen- Haverá um guia seguro para identificar seus te convincente. traços substanciais? Em relação ao passado, é desnecessário Opto, sem hesitar, por Machado de As- fazer um retrospecto empírico evidencian- sis, que nos seus 180 anos recém-completa- do exemplos dessa sintonia ao longo de dos em 21 de junho, será nosso Virgílio para seus 122 anos de existência. A vitalidade este fim. Ele refletiu sobre a cultura brasilei- e o reconhecimento público da Instituição ra em diversos momentos ao longo de mais são autoexplicativos e surgem em qualquer de três décadas, e por fim sobre a própria ponto dessa linha do tempo. ABL. Buscou traços da nacionalidade no 10 • Arno Wehling que hoje denominaríamos elementos cons- denominaria a propósito da literatura e da titutivos da identidade cultural. arte em geral “emoção de superioridade” A partir dessas referências podemos en- em relação à antiga metrópole, referindo- contrar não apenas seu pensamento sobre -se justamente àquela independência de a cultura, mas alguns aspectos reveladores Portugal e à construção de uma identidade da “íntima conexão” entre a Academia e brasileira. essa realidade. Muitos intelectuais, nesse espírito, tal- A começar pela própria questão da vez entendessem que em determinado mo- identidade brasileira. Diz Machado que “há mento a criação de uma Academia poderia um modo de ver e sentir, que dá a nota ínti- corresponder a essa identidade. No futuro, ma da nacionalidade, independente da face não em sua época. Pelo menos todos nos externa das coisas”. Ver e sentir, mentes e lembramos da crônica na qual Machado, corações que percebem e agem em fun- três anos antes da fundação comentara, ção de alguns valores, com ideias, crenças com o ceticismo habitual, que possivel- e comportamentos deles decorrentes e que mente haveria “aí por 1950, uma Acade- são próprios de sua cultura. mia Brasileira”. Mas o fato é que em 1897 A expressão cultura é mais apropriada a fundou-se a instituição com o que havia de nossa atitude, derivada das ciências sociais, representativo na vida intelectual do país. E, embora o autor fale em “nacionalidade”, mais que isso, foi possível fixar um quadro ecoando o espírito oitocentista, até porque de patronos que de certa forma cumpriu o conceito foi mencionado a propósito da o papel de percorrer as “muitas gerações” obra de Alencar, na qual explicitamente se por ele preconizadas. visava tal objetivo. Questão decorrente da identidade cul- O despertar da consciência para uma tural, especialmente se associada à afirma- cultura brasileira foi “outra independência”, ção da nacionalidade, é a dicotomia entre afirma no Instinto de nacionalidade, “sem o local e o global. Tema que esteve presen- Sete de Setembro”, mas feita pausadamen- te ao longo da história da Academia e que te para ser duradoura, envolvendo não uma em tempos de globalismo e antiglobalismo geração ou duas, mas muitas. como o nosso, se acentua. A ideia de um Volksgeist elaborado Machado já refletira sobre o assunto. pela experiência histórica das sociedades, Manifestou-se contra aqueles que só re- secularmente gestado, estava disseminada conheciam “espírito nacional” nas obras no século XIX. Fundava-se na comunhão que tratavam de assuntos locais, já que elas da língua, dos usos e costumes (ou seja, pertenciam a toda a humanidade, “cujas do direito), da poesia e dos valores. Todos aspirações, entusiasmo, fraquezas e do- esses fatores seriam capazes de, numa si- res” exprimiam. E indagava: “Shakespeare nergia que hoje chamamos cultural, cons- não é um gênio universal, além de poeta truir aquela “nota íntima da nacionalidade” genuinamente inglês?” Lembrando-nos do da definição machadiana. No Brasil pelos universo que Machado criou, sua palavra anos 1860/1870 era uma tônica da sensibi- certamente não deve ser limitada ao plano lidade da opinião e Capistrano de Abreu a estético. A criação, conquanto localizada, A Academia Brasileira de Letras e a cultura brasileira • 11 era uma expressão do todo humano e a ele “reconhecendo a importância do regional revertia – pelo menos era este o significado para a interpretação do Brasil”, a ideia de dominante no Oitocentos sobre o conceito Villa-Lobos era que ambos realizassem uma de humanidade. Certamente a maioria dos “síntese litero-musical da cultura brasileira”, fundadores, senão todos, assim pensavam. no que “seria uma aliança da música inter- O local, o nacional e o global convivem e pretativa com a literatura interpretativa”. convergem, eventualmente conflitam. Sem entrar no mérito do que talvez seja Sabemos que a hegemonia do local um exercício demasiado voluntarista, po- gera um provincianismo limitador. Que a demos lembrar, no universo acadêmico, o hegemonia do nacional gera a xenofobia que há de profundamente local, nacional, e um reducionismo atrofiador sobre o lo- e simultaneamente universal, no próprio cal. Que a hegemonia global pode pro- Machado, em Graça Aranha, Gilberto Ama- vocar uma pasteurização e a diluição das do, Guimarães Rosa, João Cabral, Afonso diferenças. Portanto, o problema não está Arinos de Melo Franco e tantos outros aca- no local, no nacional ou no global, mas na dêmicos. De qualquer modo, quem melhor hegemonia de um sobre os demais. Não que o primeiro presidente da ABL, fiel à sua aprendemos com a lógica aristotélica que concepção, para descrever a cor local do existem fenômenos singulares, particula- Rio de Janeiro imperial e protorrepublicano, res e universais perfeitamente compatíveis o tônus “nacional” da sociedade brasilei- nos diferentes enunciados? Por que não ra que Faoro reconstituiu por meio de sua aproveitar a experiência histórica dos dois obra e a universalidade do humano? Mon- últimos séculos, dolorosa, sangrenta e tão teiro Lobato, em carta de 1915 a Godofre- desperdiçadora de vidas e esperanças, para do Rangel, sintetizou, a meu juízo, melhor extrair do local, do nacional e do global que ninguém este último ponto: aquilo que acresce e enriquece, em lugar “Ontem li Histórias sem data, de Macha- do que divide e conflita? do, e ainda estou sob a impressão. Não pode A lição machadiana não foi esquecida haver língua mais pura, água mais bem filtra- pela Academia. Ela prima pela convivência in- da, nem melhor cristalino a defluir em fio da teligente e perspectivista entre os três níveis. fonte. E ninguém maneja melhor tudo que é cambiante. A gama inteira dos semitons da Se a geração de Machado via um “ins- alma humana. É grande, é imenso, o Macha- tinto de nacionalidade” coexistindo com as do. É o pico solitário das nossas letras. Os de- criações regionais, as que se lhes seguiram mais nem lhe dão pela cintura.” não fizeram diferente, não contrapondo regional e nacional, antes buscando na- A língua mais pura... Outra magna quele a inspiração unificadora. A atitude se questão, sempre enfrentada pela Academia encontra disseminada desde fins do sécu- ao largo das gerações. lo XIX dentro e fora da Academia e repre- No aspecto da língua, a Academia des- senta uma constante em nossa cultura. No de sua origem é tributária, como boa par- extremo, vale lembrar o ambicioso projeto te do século XIX, da tradição herderiana. de Villa-Lobos e Gilberto Freyre, frustrado Isaiah Berlin dizia que “todo o efeito (do pela morte do compositor. Segundo Freyre, pensamento de Herder) foi sentido quando 12 • Arno Wehling o movimento romântico, no auge de sua da monarquia absoluta se fez sob o dístico violência, intentou derrubar a autoridade “um rei, uma lei, uma fé”, o jargão unitário da razão e do dogma no que se apoiava a correspondente no clima posterior à Re- velha ordem”. volução Francesa, nação, povo e território Sabemos como o “movimento românti- pressupunha o elemento identitário da lín- co” a que Berlin se refere valorizava a va- gua, facilitador da consciência histórica e da riedade e a singularidade das culturas, sua autoidentidade, mesmo quando esta fosse história, sua identidade nacional e o elo co- mais ou menos inventada. municacional que as línguas representavam. Esse foi o momento de Machado de Mas é preciso lembrar que entre a for- Assis. Com o espírito superior de sempre, mulação teórica do Ensaio sobre a origem aproximou-se da percepção original de Her- da linguagem de Herder, em 1772, e o apo- der e não se identificou com a instrumenta- geu do romantismo como se manifestou no lização ideológica da língua pela via estatal. Brasil ocorreu a ação nacionalista de tornar Sempre moderado, reconheceu as novas a língua fator de unidade nacional, pela realidades do português da América, mas universalização da educação, pelos meios lembrava que estas não deveriam provocar de comunicação e pela oficialização do tra- “alterações de linguagem... que destroem balho dos gramáticos, muitas vezes hosti- as leis de sintaxe e a essencial pureza do lizando, ou mesmo excluindo, expressões idioma”. Criticava no romance, na poesia e linguísticas concorrentes. no teatro a presença de solecismos e a ex- Em Herder “a linguagem expressa a ex- cessiva influência francesa, mas não defen- periência coletiva do grupo”. Enunciada a dia o engessamento do idioma no passado. sentença, indagou: Seria, diz ele, um “anacronismo insupor- “Terá alguma nação coisa mais preciosa? tável” escrever como os antigos. Contudo, Partindo do estudo das literaturas nativas, temos aprendido a conhecer épocas e povos “estudar-lhes as formas mais apuradas da mais profundamente que ao longo do triste linguagem, desentranhar deles mil rique- e decepcionante caminho da história política zas”, “não me parece se deva desprezar”. e militar.” Em síntese e afastando-se de qualquer recidiva da querela barroca, dizia que O que era a proposição de uma abor- “Nem tudo tinham os antigos, nem tudo dagem intelectual, reconhecendo a espon- têm os modernos; com os haveres de uns e taneidade do processo cultural, tornou-se outros é que se enriquece o pecúlio comum.” leitmotiv para uma ação política sistemática quando se construiu o Estado nacional, não Palavras de 1873, proferidas por um obstante exemplos europeus e extraeuro- intelectual sem nenhum compromisso insti- peus em sentido contrário, com experiên- tucional, cujas ideias reaparecem em 1897, cias nacionais plurilinguísticas. na fala da sessão de encerramento da re- Em meados do século XIX, entretanto, cém-fundada Academia Brasileira de Letras. parecia irresistível a tendência a afirmar a Atribuía-lhe então a missão de “guarda da unidade linguística como argamassa da nossa língua – defendê-la do que não vêm unidade política. Se a integração territorial das forças legítimas – povo e escritores (...) A Academia Brasileira de Letras e a cultura brasileira • 13 não confundindo a moda que perece, com glosando uma ideia dos anos 1950 sobre o o moderno que vivifica.” planejamento nacional – a questão da di- Talvez não confiando na força da alego- versidade, ou da pluralidade. ria paulina, tornou-se didático: Para tanto seria possível nos inspirarmos “Guardar não é impor nem decretar fór- numa curta sentença do discurso inaugural mulas; nenhum de vós dirigia-se aos acadê- proferido em 20 de julho de 1897: “o vosso micos tem para si que a Academia decrete desejo é conservar, no meio da federação fórmulas. E depois para guardar uma língua, é política, a unidade literária.” preciso que ela se guarde também a si mesma, Fazia sentido a lembrança política. Nes- e o melhor dos processos é ainda a composi- ção e a conservação das obras clássicas.” se final do governo de Prudente de Morais a engenharia federativa ainda não estava Essa lição, que tem a força das ideias inteiramente definida do ponto de vista claras e distintas, foi incorporada pela Aca- pragmático, embora o estivesse do ponto demia ao longo de sua história, conservan- de vista formal na Constituição promulga- do os clássicos, reconhecendo os novos da anos antes – problema que o novo pre- clássicos e aplicando-a a muitas de suas rea- sidente Campos Sales procuraria resolver lizações, inclusive o Vocabulário Ortográfi- com uma fórmula que acabou se estenden- co. Para o futuro certamente prosseguirá no do por décadas. Mas quaisquer que fossem bom caminho, inclusive elaborando o gran- as opções da federação política, envolviam de dicionário da língua. algum grau de diferenciação e por sobre ela Nesse movimento de conservação e Machado afirma a unidade literária. criação está a dinâmica da Academia, como Utilizemos o pressuposto – a unidade na de todas as instituições dessa natureza que diversidade, ou na pluralidade – e teremos não apenas sobrevivem, mas mantêm sua o espírito da Casa. contemporaneidade em relação aos dife- Diversidade e pluralidade regional, por rentes tempos. Realiza assim o que nosso suposto, num país das dimensões do Bra- guia virgiliano considerava a necessidade sil, com expressões ricas e diversificadas nas da constância e da tradição, passando de tantas “regiões culturais” estudadas por sucessores a sucessores “a vontade inicial” Manuel Diegues Junior a partir de suas “et- cujo espírito, entretanto, não era imobilis- nias e culturas” e que se refletiram ao longo ta, mas o de conciliar “estabilidade e pro- do tempo na geografia da representação gresso”. E isso, podemos afirmá-lo sem ne- acadêmica. nhuma jactância, ela tem feito seguindo tal Diversidade e pluralidade de áreas do orientação, de modo a cumprir o voto do conhecimento, de formas de expressão e discurso inaugural, o de que “a vossa obra de gêneros literários, que têm como cerne o seja contada entre as sólidas e brilhantes Brasil, mas cuja essência é o humano. Dessa páginas da nossa vida brasileira.” forma, houve e há acadêmicos de campos Uma última questão, entre tantas outras diversos da criatividade, e se lamentamos que ilustram a tese da perene atualidade que algumas expressões da cultura brasileira da Academia. Por sua relevância, talvez pu- aqui não tenham tido assento, estendendo a déssemos considerá-la a questão-síntese, larga Cadeira número 41, ainda assim temos 14 • Arno Wehling de admitir que o resultado honra a esperan- antecessores, se considerarmos a escolha ça e as expectativas dos fundadores. que os fundadores fizeram dos patronos, Diversidade e pluralidade de pensamen- buscando o fio condutor que traduzisse to, com perspectivas filosóficas, científicas e um modo brasileiro de produzir cultura. E estéticas extremamente diferenciadas, que essa comunhão de espíritos tem garantido acompanharam ao longo desses 122 anos e continuará garantindo a sintonia entre a o movimento das ideias e da sensibilidade, Academia Brasileira de Letras e cada mo- não sem polêmicas, mas sabendo observar mento da vida brasileira. a ética do relacionamento intelectual e ten- Ainda Machado, na sessão de encerra- do consciência de que contrastar concep- mento de 1897, não hesitou em citar Napo- ções não é contrapor pessoas. leão, que, no Instituto de França, cem anos A comunhão de espíritos vem não antes, dissera que “a ocupação mais hon- apenas das gerações presentes em 1897 rosa e útil dos homens” é “trabalhar pela – do veterano presidente ao jovem Maga- extensão das ideias humanas”. lhães de Azeredo – mas de seus sucesso- Mais de cem anos depois não parece ser res em cada uma das Cadeiras. E de seus diferente a tarefa. As duas partes de Gullar

Zuenir Ventura Ocupante da Cadeira 32 na Academia Brasileira de Letras. Jornalista, professor universitário e escritor. Colunista do jornal O Globo. Vencedor do grande Prêmio Esso com a reportagem “O Acre de Chico Mendes”. Publicou vários livros, entre eles 1968, o ano que não terminou, Cidade Partida, Inveja, Mal Secreto.

ouco antes de morrer em 4 de dezem- primeiros a chegar às sessões, desmentindo bro de 2016, aos 86 anos, Ferreira a fama de que comia pouco. Isso era verda- P Gullar me confessou com prazer: “O de em casa, onde não almoçava. Em com- meu programa cultura hoje é a Academia.” pensação, devorava o lanche da Casa. E, ao Era uma revelação surpreendente, porque ele lado disso, saciava outra fome: a de con- resistira muito a ser acadêmico, o que acon- versar, de contar histórias (ele era o maior tecera dois anos antes por insistência de seu contador de casos que conheci) e de discu- amigo Antonio Carlos Secchin. Foi no mesmo tir. Frasista famoso, uma de suas afirmações ano em que me candidatei e me lembro de mais conhecidas – além de “a crase não foi lhe dizer. “É a sua vez, Gullar, não há mais ra- feita para humilhar ninguém” – era a de zão para recusar”, tentei convencê-lo ao te- que “não quero ter razão, quero ser feliz”. lefone. Depois de um silêncio, ele concordou: Na verdade, os amigos são testemu- “O Secchin acaba de me dizer o mesmo.” Foi nhas, ele queria também ter razão; adorava preciso a insistência de quem, além de ami- quando o interlocutor cedia aos seus argu- go, era quem mais conhecia sua obra. mentos. Essa duplicidade de temperamento Gullar contava com muita graça que foi muito bem retratada no poema “Tradu- descobrira a importância da ABL na feira zir-se”, que é visto como autobiográfico: livre que durante anos, sem ser notado, fre- Uma parte de mim quentou semanalmente em Copacabana. Pesa, pondera: No dia seguinte à sua posse, com a cobertu- Outra parte ra da imprensa, ele foi assediado enquanto Delira. fazia suas compras: “Quer dizer que você é escritor?!” As pessoas agora passavam por Por um lado, era sensato; por outro, arro- ele e saudavam: “Viva o poeta!.” jado. Nas célebres assembleias dos intelectu- O poeta concluiu: “A crítica legitima o ais pós-golpe de 64 em que se defrontavam escritor, mas quem o consagra, quem lhe os “reformistas” e os “revolucionários”, isto dá popularidade é a Academia.” Ele era dos é, os que nas passeatas gritavam “só o povo Amigos de Gullar no lançamento no Rio do Poema Sujo, sem a sua presença, em março de 1976. As duas partes de Gullar • 17 organizado derruba a ditadura” ou, ao con- tampouco essa decisão pode ser atribuída pes- trário, “só o povo armado derruba a ditadu- soalmente ao Figueiredo, mas sem dúvida foi ra”, ele era a voz do bom senso. um veto do SNI. Foram três contatos entre os dois sobre o caso do Gullar num período de Mas a primeira coisa que fez quando mais ou menos seis meses. Elio de fato lembra os militares tomaram o poder foi ingressar de ter levado um exemplar do “Poema sujo”, no Partido Comunista, quando a prudência então recém-lançado. E de que Golbery teria recomendava aos que estavam dentro sair. dito achar o livro bom, mas meio pornográfico. Ele gostava de provocar. Quando soube que Mas segundo ainda o Elio, em vinte anos de o general Figueiredo, então chefe do SNI, convivência o Golbery nunca lhe relatou algo consultado, respondeu “não quero esse co- que uma outra pessoa teria dito sobre o que fosse. Daí que a tal frase sobre o comunista munista aqui”, Gullar, que estava no exílio não procede. Ele confirmou que a iniciativa da em Buenos Aires, decidiu voltar. negociação foi mesmo sua, que o procurou pe- Tempos depois, em uma entrevista a dindo que intercedesse junto ao Golbery.” vários jornalistas e escritores, foi lembrado Indiscutível, no entanto, é a contribuição que, apesar dos esforços do jornalista Elio de uma fotografia para que Gullar decidisse Gaspari, a volta do exílio de Buenos Aires voltar de um exílio que começou em 1971, não foi tranquila. Gullar procurou esclarecer em Moscou, e passou por Santiago, Lima e o episódio e cometeu um equívoco. finalmente Buenos Aires. Em 1976, Vinicius “O Zuenir, por modéstia, está dizendo que o esforço foi só do Elio Gaspari, mas foi dele de Moraes trouxe uma cópia do Poema Sujo também. Zuenir e Elio levaram o Poema Sujo que os amigos do poeta resolveram lançar para o Golbery e ele disse: “Isso é uma obsceni- numa original noite de autógrafos – sem o dade, esse poeta é um pornógrafo! Mas eu não autor, portanto, sem autógrafos. me oponho a ele voltar, não. Por mim, ele pode Ao receber a foto do evento, Gullar se voltar, mas tenho que falar com o Figueiredo, comoveu e definitivamente decidiu vol- chefe do SNI, que teria declarado não quero tar, ainda que fosse para ser preso, o que esse comunista aqui”. Gullar continua: “Eu me aconteceu no ano seguinte. Gullar foi então tomei de fúria. Como esse sujeito se atreve a submetido a contínuas sessões de interro- falar isso? Ele é o dono do Brasil? Eu vou voltar, vou voltar, não aceito isso, vou voltar”. gatório com ameaças de sequestro do filho O equívoco é que não participei dessa Paulo, internado numa clínica psiquiátrica. ida ao Golbery, que sequer o conhecia. Após 72 horas de protestos aqui e no exterior, ele foi solto, dedicando-se a uma Pausa para o registro de uma coincidên- intensa atividade cultural que procurava cia. Enquanto escrevia este artigo, recebi a compensar o tempo que ficou fora. visita do jornalista Miguel Conde, que está Durante cerca de 50 anos de amiza- escrevendo uma biografia sobre Gullar. De- de, pude acompanhar Ferreira Gullar em pois de conversar comigo, ele entrevistou o momentos importantes de sua trajetória e Elio por sugestão minha. O seu relato: assim testemunhar que ele foi o intelectual “Ele (Elio) diz que a frase “Não quero esse comunista aqui”, atribuída ao Figueiredo, nun- mais lúcido e o maior poeta de sua geração, ca foi relatada a ele pelo Golbery, que apenas que foi também a minha. Como poucos, ele teria dito que não tinha conseguido a libera- soube conciliar paixão e razão, ética, estéti- ção para o retorno do Gullar. Segundo o Elio, ca, poética e política.

Afonso Arinos – o Historiador

Alberto Venancio Filho Ocupante da Cadeira 25 na Academia Brasileira de Letras. Advogado e ensaísta. Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Autor dos livros A intervenção do Estado no domínio econômico: o direito público econômico no Brasil; Das Arcadas ao Bacharelismo; Notas Republicanas; Elogio de Afonso Arinos e artigos sobre história, direito e política. Ex-professor do Instituto Rio Branco e da Fundação Getúlio Vargas.

obra intelectual de Afonso Arinos é descreve o curso secundário no Colégio extensa. É como abordar um mun- Mello e Souza. “A matéria que mais me en- A do na expressão precisa de Pedro cantava era a História do Brasil, dada pelo Nava. Mesmo examinando um só de seus Professor João Batista Mello e Souza.” E em aspectos, o de historiador, só poderemos seguida uma frase reveladora: “Creio que abordar alguns aspectos. toda a minha inclinação posterior pelos es- Os estudos da humanidade no Colégio tudos históricos data desse fecundo apren- Pedro II com grandes mestres não desper- dizado inicial.” taram em Afonso Arinos o interesse pela Descreve a didática do professor: “Ao história. O professor de história do Brasil lado dos compêndios usuais, o meu professor era João Ribeiro, que tinha mais interesse fez-me preparar um caderno de minha pró- pelas obras literária, mas o fez aproximá-lo pria redação sobre os pontos capitais da his- da poesia de Ribeiro Couto, de quem se tor- tória pátria. Era um caderno grosso, de capa nou um dos maiores amigos. dura, e manuscrito, com caligrafia cuidada. Dos estudos na Faculdade de Direito há Nas páginas colocávamos gravuras que tirá- poucas referências, padrão que se verifica vamos de livros e revistas, aqueles sacrificados em quase todos os memorialistas e biógra- sem pena pelo professor, que cortava seus fos, confirmando a expressão de um aluno próprios volumes para ornar o meu caderno. de São Paulo no final do século, de que “se Nas minhas mudanças e viagens sucessivas ia à Academia como se ia a um clube”. Para extraviou-se aquele cuidadoso trabalho infan- Afonso Arinos, esse período foi entremeado til, que eu bem desejaria recuperar, não pelo por estada na Suíça, onde realizou estudos que nele houvesse escrito, que era nada, mas regulares individuais com o professor Albert pelo testemunho que ele conteria no pertinaz Séchaye, estudando sobretudo as obras de esforço de aluno e de um estilo superior de Montaigne e Rousseau. um notável ensino primário.” A chave do enigma do interesse pela Verifica-se, assim, que dessa formação história se encontra nas memórias, quando inicial surgiu o interesse do homem pelo 20 • Alberto Venancio Filho estudo da história, o que o levaria a dedicar- na cátedra de história e deixar o cargo de -se à especialidade com o maior empenho. advogado do Banco do Brasil. Atendeu ao Os primeiros livros de Afonso Arinos não sábio conselho do amigo Edmundo da Luz podem ser considerados da especialidade. Pinto: “Meu Afonso: há duas casas que a O primeiro, A Responsabilidade Criminal gente nunca deve deixar, uma vez lá dentro. das Pessoas Jurídicas, foi tese de concur- Uma é a Igreja Católica e outra o Banco do so que não se realizou, quando exercia no Brasil. E você sabe por quê? Porque quando início da carreira as funções de promotor falta o dinheiro nelas, Nossa Senhora vem público em Belo Horizonte. O tríptico Intro- e intera...” dução à Realidade Brasileira, Preparação do É desse período o livro O Índio Brasilei- Nacionalismo e Conceito de Civilização Bra- ro e a Revolução Francesa, com o subtítulo sileira, do período de 1933 a 1936, estão As origens brasileiras da teoria da bondade incluídos na epígrafe “política”, sendo bem natural. Nos estudos em Genebra com o nítida essa marca nos dois primeiros livros, professor Albert Séchaye, Afonso Arinos se mas se apresentando menos clara no tercei- dedicara à obra de Montaigne, e se detive- ro, onde já se observava a reflexão histórica. ra em particular na análise da presença na Esta influência pode ser explicada, pois, França de índios brasileiros após o descobri- exercendo as funções de advogado na Con- mento. Esses estudos eram também sobre sultoria Jurídica do Banco do Brasil, dirigi- Rousseau e os enciclopedistas, e foram a da por Afonso Pena Júnior, a afinidade que origem do interesse que o levou a escrever entre ambos havia em torno da figura de a obra e que constitui um relevante estudo Montaigne se estabeleceu também no cam- interdisciplinar, a história das ideias, relacio- po da história. Afonso Pena Júnior assume nada à sociologia e à filosofia. em 1936 a Reitoria da Universidade do Dis- Em 1938, o Instituto Histórico e Geográfi- trito Federal, criada por Anísio Teixeira, e co Brasileiro organizou, ao comemorar o cen- convoca Afonso Arinos para reger a cadeira tenário da fundação, o Terceiro Congresso de de História do Brasil. O último livro deriva História Nacional, e o Presidente, Conde de claramente das aulas que proferiu sobre a Afonso Celso, convidou Afonso Arinos para matéria naquele centro de estudos, infeliz- redigir a 17.a tese, a Inconfidência. Ampliou mente de efêmera duração. o âmbito do tema e tratou das Ideias da In- Afonso Arinos se empolga pelo estudo confidência, com o subtítulo Origens e Ten- da história, e para isso certamente muito dências Ideológicas, procurando enquadrar deve ter contribuído a presença na Univer- o movimento nas ideias políticas do século sidade do Distrito Federal dos professores XVIII. O trabalho se dividia em: As Ideias Po- franceses do alto nível como, entre outros, líticas e As Ideias Administrativas. E concluía: Eugène Albertini na história romana, Emile “Movimento de Ideias, como é conside- Brehier na história da filosofia, e Henri Hau- rado, em razão, só através delas pode a In- ser na história econômica. Esse interesse era confidência ser bem compreendida. E, quan- tão grande que ao proibir na Constituição do bem compreendida, não pode deixar de de 1937 a acumulação de cargos públi- readquirir o que merece, entre os mais altos cos, pretendeu Afonso Arinos permanecer fatos de nossa História. Importância de que a Afonso Arinos – o Historiador • 21 pretendem despir, injustamente, alguns histo- ser considerada em ciclos de certa forma riadores, talvez mal informados sobre os as- sucessivos, e que influem, um depois do pectos que tivemos a intenção de fixar.” outro, de maneira predominante, sobre o país. Cada um desses ciclos, por sua vez, Em capítulo “Os Estudos Brasileiros em possui um núcleo principal, uma determina- Minas”, conferência na Faculdade de Di- da produção que, indiscutivelmente, supera reito deste Estado, afirma que “em Minas as outras atividades e monopoliza maiores sempre existiu a preocupação da História. E atenções”. mesmo uma característica natural do nosso A primeira conferência é dedicada ao povo reflexivo, pouco afeito às novidades e pau-brasil e comércios ancilares. O ciclo amigo das tradições, este de procurar trans- do açúcar e do tabaco. A segunda confe- formar o fato da vida em conhecimento da rência é dedicada à criação do gado e ao vida, que tal e, se não estou enganado, a ciclo da mineração, o ouro e o diamante. transformação do Tempo em História”. Cumpre acentuar a análise erudita sobre os Síntese da História Econômica do Brasil reflexos da perturbação que o ouro trouxe é o curso de conferências dado em Monte- à vida financeira do Velho Mundo. Montes- vidéu em 1938, juntamente com San Tiago quieu no Espírito das Leis refere-se à enor- Dantas, que tratou da História Política. Tra- me quantidade de ouro retirado de Minas e tando de curso para estrangeiro, não pode- que, segundo ele, iria comprometer o valor ria se aprofundar nos temas, mas a síntese internacional do metal. Voltaire no Ensaio apresentada, publicada primeiramente pelo sobre os Costumes e o Espírito das Nações, Ministério de Educação e Saúde, e depois reproduz as reflexões de Montesquieu e incluído em “Terra do Brasil”, constitui con- Rousseau na Nova Heloisa lamenta a ser- tribuição útil para os estudiosos brasileiros. vidão dos povos das minas, cujos tesouros Na introdução, procurou mostrar o momen- são arrancados por eles do solo e entregues to significativo do curso, numa época por aos Governos de Lisboa e Londres. As ou- ele chamada de recuperação do país pelo tras conferências referem-se ao ciclo do seu próprio pensamento, e dizia: “É natural café e ao ciclo industrial. que a História Nacional tenha evoluído ao Desenvolvimento da civilização material sabor da nova mentalidade”. no Brasil (1944) resultou de uma série de con- Faz uma resumida digressão sobre a evo- ferências pronunciadas no Serviço do Patri- lução da historiografia nacional para concluir mônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) que “A História do Brasil do século XX está, a convite do diretor, Rodrigo M. F. Andrade. pois, por se escrever. Não será talvez, trabalho O trabalho analisa com rara propriedade e para um só homem, mas para uma equipe originalidade com farta documentação este de estudiosos. Será uma tarefa totalizadora, problema mal estudado da história do Brasil. capaz de abranger nos seus contornos urna As conferências tiveram circulação res- panorama imenso. Será toda a formação bra- trita em edição da repartição e foram publi- sileira no que ela tem de cultural e social”. cadas em 1943 pelo SPHAN em primorosa E ao definir o âmbito do curso, descre- edição prefaciada pelo Presidente, o histo- veria como a “economia brasileira pode riador Arthur César Ferreira Reis. 22 • Alberto Venancio Filho

Sobre este livro escreveu o grande histo- História do Banco do Brasil, que, a seu ver, riador Alberto Rangel: “é até certo ponto a história financeira do “Não sei como gabar o seu trabalho. É Brasil”. Escreve apenas o primeiro volume sólido e bem alinhavado, demonstrando a (1808-1835), pois é demitido do cargo ao erudição que já é a dos velhos quilotados no assinar o “Manifesto dos mineiros”. alfarrábio e todo palhetado do que é preciso Nesse momento se altera a produção em tal gênero de trabalho, para que, ilustran- do, não enfare. Enfim, é coisa onde logo se intelectual. Em 1.º de janeiro de 1943, in- vê a marca M.F., isto é, fecundidade, probida- terrompendo a seção de crítica literária de e saber variado. E seu ofício escrever bem, mantida no Diário de Notícias, explica: ser interessante, pesquisador e penetrativo... “Serei forçado a me dedicar a um trabalho Guarda-se em segredo o adjetivo da lisonja cujo compromisso assumi não apenas comigo, para os que merecem e saque-se do palavrão mas também com outros e, sobretudo, para amargo de desgosto para os ineptos. com alguém a quem não posso faltar...²

No prefácio José Murilo de Carvalho Explica que desde moço, em Genebra, aponta que: tivera a ideia de escrever a vida de seu pai e “fazendo uso da bibliografia existente na a lembrança ocorrera com a leitura de Um época, algumas fontes primárias já publicadas, estadista do Império, de . e recorrendo amplamente aos registros de via- A presença da história se revela em toda a jantes estrangeiros, Afonso Arinos nos oferece atividade intelectual de Afonso Arinos; ela se uma visão sintética e muito útil da formação de nossa civilização material. Passo a passo somos encontra nítida nos livros de memórias, como conduzidos em uma viagem que cobre todas as no singular e excepcional Amor a Roma e partes da colônia portuguesa e que nos mostra também na obra do cultor do direito cons- o lento povoamento do país, o surgimento da titucional, sempre preocupado com a análise feitorias, engenhos, vilas e cidades, o abrir dos histórica das instituições políticas. A tese de caminhos, o desenvolvimento das técnicas de concurso para a Faculdade Nacional de Di- produção, de transporte e de construção.” reito é também livro de história – História e Ao preparar a edição crítica das Cartas Teoria do partido político no direito Constitu- Chilenas, com introdução e notas publica- cional brasileiro (1948), e no Curso de Direito das em 1940 pelo Ministério da Educação, Constitucional, o segundo volume A Forma- os subsídios históricos foram valiosos para ção Constitucional do Brasil (1960), dedicado confirmar a autoria de Tomás Antônio Gon- a Afonso Pena Júnior, é uma súmula da histó- zaga. A situação da capitania, a atuação ria Constitucional do país. No livro Estudos de dos vários Governadores, o papel de Gon- Direito Constitucional (1957), o capítulo “O zaga como ouvidor, em muito contribuíram constitucionalismo brasileiro primeira metade para determinar a autoria e utilizar outros do século XIX”, ao discutir o constitucionalis- subsídios, entre os quais os documentos mo como a doutrina jurídica do liberalismo, que o grande amigo Luiz Camilo de Oliveira também é análise da história do Direito. Neto obtivera na Torre do Tombo. Nas obras de história de Afonso Ari- No exercício das funções de advogado nos não se encontra uma preocupação da consultoria do Banco do Brasil, redige a em caracterizar a filiação às correntes da Afonso Arinos – o Historiador • 23 historiografia. Patente no seu espírito é a as realidades da ordem coletiva, das quais preocupação com os fatos, com a busca de esses autores da História eram porta-vozes, documentos e sua análise. E nesse ponto, testemunhas ou, algumas vezes, joguetes; as grandes obras sobre o período republi- forças sociais e estruturas econômicas.” cano foram muito facilitadas pelo acesso Nessa obra, organizada pelo ex-presi- às fontes de que dispôs. No caso de Um dente Jânio Quadros, ficou responsável pe- Estadista da República, os arquivos do pai los períodos imperial e republicano; a tarefa sob sua guarda; no caso de Rodrigues Al- era extensa, e se socorreu da colaboração ves, o arquivo do grande presidente, que dos grandes amigos e discípulos Antonio em grande parte estava em suas mãos, uma Houaiss e Francisco de Assis Barbosa, com vez que sua mulher, D. Annah, era neta do a divisão dos capítulos entre os três cola- político paulista, Afonso Arinos poderia re- boradores. Tratava-se de uma obra didática petir a frase do grande historiador francês de divulgação, sem os rigores do aparato Henri Irenee Marrou: “L’histoire se fait avec historiográfico, e é nítido o desnível entre des documents.” a contribuição de sua coordenação e a refe- De fato, a grande preocupação do histo- rente ao período colonial. riador era chegar aos documentos, obter as É singular que o capítulo sobre a pre- fontes autênticas, e só a partir daí alçar-se sidência de Rodrigues Alves tenha ficado para as hipóteses, as análises e as linhas de a cargo de Francisco de Assis Barbosa e interpretação. Entretanto, há um documen- não de Afonso Arinos. A escolha, porém, to que talvez possa revelar melhor as ten- se explica, pois Francisco de Assis Barbosa, dências historiográficas de Afonso Arinos. nascido em Guaratinguetá, conterrâneo de Na obra História do povo brasileiro, em Rodrigues Alves, era estudioso do período seis volumes, feito em colaboração com Jâ- e pretendia mesmo escrever uma obra a nio Quadros, é difícil caracterizar a autoria. respeito do grande presidente, tendo mais Segundo o depoimento de Antonio Hou- tarde colaborado de forma significativa no aiss, o trabalho foi feito a várias mãos, mas livro de Afonso Arinos sobre Rodrigues Al- é certo que nele há nitidamente a marca de ves, como registrado no prefácio. Afonso Arinos. A referência ao trabalho de No volume V – “A República, as oligar- Von Martius encaminhado ao Instituto His- quias estaduais” – Afonso Arinos trata dos tórico e Geográfico Brasileiro em 1843, sob governos do marechal Deodoro e do ma- o título Como se deve escrever a História do rechal Floriano, das presidências de Afonso Brasil, deve ter sido incluída por sua iniciati- Pena, Venceslau Brás e Delfim Moreira, e do va, bem como a síntese feita sobre os gran- fim da República oligárquica, da presidência des autores dos vários ramos da história. A de Washington Luís. No volume seguinte, citação final, também de Henri lIenee Mar- cabem a Afonso Arinos os capítulos refe- rou, seria por certo de sua inspiração: “A rentes a vitória da Revolução de 30 até o pesquisa foi levada mais avante: esforça-se impedimento do presidente Café Filho, e por encontrar, além das motivações cons- da renúncia de Jânio Quadros até a visão cientes, os móveis secretos que impeliam do Brasil contemporâneo, bem como o pla- os heróis e, sobretudo, procurou identificar nejamento e ação futura. Coube a Antonio 24 • Alberto Venancio Filho

Houaiss escrever sobre a presidência de apreciação do tema da República de Platão Jânio Quadros, revelando o que até agora até Locke. pode ser considerado como a versão autên- Outro trabalho que não pode ser omi- tica da renúncia. tido é o opúsculo “As ideias políticas no Sem fazer teoria da história, há em suas Brasil”, série de conferências pronunciadas obras observações singelas e despretensio- em curso de extensão universitária Direito sas sobre a teoria da história. Após visitar a da Pontifícia Universidade Católica do Rio cidade de Caeté, expressando um conteú- Grande do Sul e cuja última aula, dedicada do estético no amor pelo passado brasileiro, às ideias políticas da República, constitui explicaria: “Tenho observado, depois, como síntese expressiva do pensamento político o conhecimento da História muitas vezes brasileiro. Esses estudos foram posterior- não coincide com o gosto, a compreensão mente incluídos no volume O som do outro e o amor pelos monumentos históricos. Em sino. grandes historiadores como (Rodolfo) Gar- É importante destacar que nesse traba- cia e (Afonso) Taunay, e bons sabedores da lho Afonso Arinos dá uma visão inteiramen- História como para só falar te nova da matéria, que tem sido pouco dos mortos, nunca senti esta sensibilidade estudada, preocupando-se com uma ideia aberta e terna para com os monumentos presente em muitos dos seus estudos, a arquitetônicos do passado. Donde concluo distinção entre o jurisdicismo e o legismo, que o apego aos textos, aos documentos, incluindo Rui Barbosa nessa última catego- a pesquisa nos monumentos escritor nada ria. Por outro lado, dá importância, ao lado tem a ver com o gosto visual e instintivo das do legismo desse último, ao sociologismo velhas formas materiais, sobreviventes das de Alberto Torres, ao realismo político de culturas passadas.” Campos Sales para, afinal, se deter na linha E mais adiante: “Na historiografia, como da ciência política representada por Assis nas Memórias, a imaginação é indispensá- Brasil, que considera “de fato o principal vel e não se confunde como a fantasia. A cientista político do princípio da República imaginação é que dá grandeza aos ambien- até 1930 e mesmo depois de 1930”. tes, sem tirar a sua verossimilhança. Sem Mostrando a influência das obras do imaginação, sem generosidade, Nabuco historiador no jurista, afirmou: “Meu gosto não poderia encher de realidade e vida o pelas leituras de história social me haviam grande palco de Um Estadista do Império. A levado mais uma vez a percorrer não só o imaginação e a generosidade são condições próprio texto das Ordenações Filipinas, na necessárias para a interpretação, força que edição de Candido Mendes, como os va- faz da História uma arte literária.” liosos civilistas que ainda hoje leio, diverti- A história das ideias políticas sempre o do com a sua linguagem saborosa e o seu apaixonou, e sobre o assunto escreveu tex- duro realismo lusitano, os Pereira e Souza, tos e sínteses primorosas. Assim, em curso os Correia Teles, os Lobão. Embora mais ou sobre o Renascimento, promovido pelo Mu- menos especializado no estudo do Direito seu Nacional de Belas Artes em 1977, tra- Público, agradava-me também muito a for- tou do pensamento político, fazendo uma ça do pensamento de Teixeira de Freitas na Afonso Arinos – o Historiador • 25

Consolidação das Leis Civis (cuja introdução enquanto o método de pesquisa o mantém meu pai considerava uma das maiores pági- dentro dela, acentuando, entretanto, se in- nas jurídicas do mundo), e a cultura serena terpenetram, o que interpreta, pesquisa, o do quase santo Clóvis Beviláqua, na Teoria que pesquisa, interpreta. Geral e nos Comentários do Código Civil.” No volume publicado pela Academia Afonso Arinos tem nas memórias uma Brasileira de Letras – O Espírito e a Ação reflexão extremamente importante sobre coletânea de artigos de jornal, organizado a obra, o que explica que muitos dos seus com devoção filial por Afonso Arinos Filho, livros que mereceriam reedição ficaram na a história está presente em vários instantes, primeira edição, o que demonstra também cabendo destacar sobretudo o artigo “Re- o completo desinteresse pela promoção pes- flexões sobre a Hist6ria do Brasil”, de 1941, soal: “Coisa curiosa: dentro de mim, o livro em que estuda a historiografia brasileira. que se completa, cuja gestação termina, é Aponta “a oportunidade de se fazer uma como se morresse. Ao surgir para os outros, História do Brasil cada vez mais brasileira”, é como se fosse desaparecendo, se acaban- e encerra com uma bela imagem: do para mim. Por isto mesmo, tenho enorme “A História do Brasil terá de ser como as dificuldade em colaborar para qualquer re- árvores da terra, que tanto espanto causaram edição de trabalho anterior. Não quero per- aos cronistas antigos. Tem de oferecer, con- juntamente, nas suas ramagens, a flor, o fru- der tempo com os trabalhos anteriores à sua to imperfeito, o fruto sazonado. Árvores que atualização. Prefiro ir desbravando caminhos mesmo transplantadas da Europa, passaram a novos, escrevendo outros livros.” frutificar e florescer à moda do Novo Mundo”. Colaborador assíduo da revista Digesto Econômico, publicada pela Associação Co- A análise completa das duas grandes mercial de São Paulo, um verdadeiro fórum obras de Afonso Arinos sobre o período de debates, e dirigida por seu amigo Gon- republicano, Um Estadista da República tijo de Carvalho, este reuniu textos de his- – Afrânio de Melo Franco e seu tempo e tória com o título Estudos e Discursos. São Rodrigues Alves – Apogeu e Declínio do principalmente artigos de história econômi- presidencialismo, exigiria estudos mais pro- ca “que durante algum tempo absorveram fundos. boa parte das minhas leituras”, que ele Anote-se, à guisa de introdução, que chamava artigos de circunstância, mas cuja ambas foram obras altamente meditadas leitura revela o historiador probo e cons- e sedimentadas através de conhecimento ciencioso. Aponte-se, entre tantos outros, prévio e fortalecidas no decorrer da própria “A Sociedade Bandeirante das Minas”, “A elaboração. A elaboração de Um Estadista Crise Financeira do Segundo Reinado”, que da República inicia-se de fato com a morte é quase uma continuação da História do de Afrânio de Melo Franco, em 1943, e ter- Banco do Brasil, “A zona mineira no Brasil mina no ano de sua edição, em 1955. Não Reino”, “A crise republicana do café”. No há indicações precisas sobre o início da se- artigo “História Econômica”, a distinguia gunda obra, além da declaração no prefácio como método de interpretação, que arras- de que “algum tempo depois da publicação ta o historiador fora do campo da história, da biografia de meu pai comecei a cogitar 26 • Alberto Venancio Filho no preparo de um longo estudo sobre a montanha, história mais interpretativa do que vida de Rodrigues Alves”. julgadora. Diferença parecida com a que os Afonso Arinos reconhece, com sinceri- historiadores literários fazem entre a época dade, que não é possível comparar em im- ciceroniana, idade do ouro e da prata.” portância a vida de Rodrigues Alves com a Afonso Arinos acrescenta ao comentá- de Afrânio de Melo Franco. Pretendia, com rio de Gilberto Freyre que “para ele Império esse segundo estudo, constituir uma espé- era clássico e a República barroca”, e ajun- cie de história da Primeira República, “es- ta: “Os dois livros não podiam ser diferentes tudada através de duas longas vidas de ho- do que são.” mens que fizeram da ação política a razão É importante assinalar que os livros con- principal de suas existências”. servam perfeita simetria, um paralelismo A comparação muitas vezes feita entre singular, e constituem certamente a com- Um Estadista da República e Um Estadista provação da existência da política do “café do Império, mencionada na introdução do com leite”. De fato, na medida em que primeiro livro, é comentário corriqueiro que predomina a política paulista no cenário impressiona à primeira vista, mas que não republicano, e em Rodrigues Alves que en- pode ser repetido sem melhor análise. No contramos a descrição desses feitos no mo- prefácio para a edição da Aguilar (1975) de mento em que ascende a política mineira, e Um Estadista do Império Afonso Arinos dá Um Estadista da Republica que nos fornece exemplos, ao comparar o livro de Joaquim o fio condutor. Quando pela primeira vez Nabuco e o livro sobre Balmaceda de Baña- Afrânio de Melo Franco chega à Câmara dos de Espinosa. dos Deputados – na fase nacional descrita Depois de várias considerações, Afonso no livro – terminava a primeira presidên- Arinos afirma: “É óbvio que a obra de Joa- cia de Rodrigues Alves, relatada de forma quim Nabuco é muito superior à de Baña- abundante no primeiro volume. As fases da dos de Espinosa; esta, diga-se de passagem, presidência de Afonso Pena são assim um muito lida no Brasil, quando apareceu.” dos pontos altos de Um Estadista da Re- Afonso Arinos transcreve os comentá- pública, cumprindo destacar em especial o rios de Gilberto Freyre, para quem Um Es- estudo detalhado e minucioso que o livro tadista da República era um livro barroco fornece sobre tema tão pouco estudado e Um Estadista do Império parecia predo- da história republicana como Jardim de In- minantemente clássico, estando a razão do fância. A fase da presidência de Hermes da contraste na diferença entre as técnicas da Fonseca, na qual Rodrigues Alves ocupa a historiografia nas duas épocas e acrescenta: presidência de São Paulo, também é tratada “Uma, a história grandiosa, dramática, fi- com detalhe em Um Estadista da República. xadora das culminâncias entre os fatos e os Num ponto somente convergem os in- homens, drapejada de reminiscências antigas, teresses: na Regência Republicana, quando com personagens solenes, e togados como heróis racinianos. Outra, a história mais copio- eleito Rodrigues Alves presidente da Repú- sa que grandiosa, cuja força está na solidarie- blica, mas não podendo exercer o cargo dade dos pequenos fatos e não na emoção por forca de doença, assume a presidên- isolada dos grandes; história que é rio e não cia o vice-presidente Delfim Moreira. Com Afonso Arinos – o Historiador • 27 a morte de Rodrigues Alves, ocorre o que pelas instigações, e que a emotividade acen- descreve Afonso Arinos de forma dramáti- tuada não lhe abriu os caminhos à ascensão ca: “Em 16 de janeiro de 1919 morria com natural da presidência da República. Muitos Rodrigues Alves a República de 15 de no- outros temas e muitos outros tópicos pode- vembro de 1889.” riam ser analisados e o serão, certamente, É em Um Estadista da República que com mais vagar e com mais proficiência. vemos a descrição minuciosa da presidên- As fontes históricas de Afonso Arinos cia de Artur Bernardes, da presidência de não são fáceis de precisar, tão vasta era a Washington Luís, do movimento da Alian- sua cultura literária, tão extensa a leitura ça Liberal e da vitória da Revolução de 30, dos historiadores e tão amplo o seu inte- quando então os acontecimentos nacionais resse intelectual. Mas pode-se adiantar que, passam para um segundo plano e se desta- dos autores clássicos, dois marcaram mais a ca na órbita internacional a figura de Afrâ- sua formação, pelas referências constantes nio de Melo Franco. encontradas no painel da vida intelectual Aliás, no livro Rodrigues Alves, em vários que é A alma do tempo: Tácito e Plutarco. momentos para evitar a duplicação, Afonso Do último as referências não são tão Arinos se reporta a outra obra em relação a frequentes, mas ao mencionar episódio determinados fatos. de simplicidade ao saudar o presidente Ei- Em Rodrigues Alves, há um capítulo que senhower, comenta Afonso Arinos: “Não merece destaque, o consagrado à Burs- há aí qualquer trivialidade populesca, ao chenschaft, a Bucha, a sociedade secreta contrário, o que marca é uma grandeza au- fundada por iniciativa da figura misteriosa têntica que sentimos em certas páginas de de Julio Frank, e que pelo próprio caráter Plutarco. É um misto de tradição religiosa, obscuro nunca fora estudada em profundi- de respeito ao indivíduo, de confiança na dade, a não ser em trabalhos que mais se lei, de instinto de solidariedade social.” aproximam de obras de ficção. Com ma- Referindo-se a artigo escrito em 1963, terial que lhe deve ter sido fornecido pelo grande amigo Gontijo de Carvalho, Afonso com o título de “O comício e o Senado”, Arinos colocou uma luz nova sobre a ma- escreve: “Aproveitando uma passagem de téria. A Burschenschaft na versão brasileira Plutarco eu desvendava claramente o bona- ganha assim uma dimensão nova, à espera partismo governamental, denunciava a téc- de que, com o tempo, a divulgação de seus nica subversiva do ‘apelo ao povo’ e termi- arquivos permita traçar a evolução dessa nava: aludindo à iminência da guerra civil.” sociedade de tanta repercussão na história Numa das passagens sobre Roma, numa republicana. descrição de um dos monumentos mais ex- Outro tema fascinante do livro é o es- pressivos do Fórum, a pequena fonte Ninfa tudo das relações entre Rodrigues Alves e Giuturna, comenta: “E foi à beira da fon- Rui Barbosa, revelando que o eminente bra- te que, segundo Plutarco, Castor e Polux sileiro, jurista inexcedível, cultor das letras, mostraram-se aos romanos, dessedentando grande parlamentar, foi no trato da política os cavalos, de cujos flancos escorria ainda o republicana pessoa levada pelos impulsos, suor do combate.” 28 • Alberto Venancio Filho

Na biblioteca de Afonso Arinos há os vo- Cabe afinal abordar, ainda que ligeira­ lumes em francês das obras de Tácito, ofere- mente, o tema que tratou com a maior cidos por Laudelino Freire em 1934. De Tácito profundidade: o da mineiridade. Muito tem as referências são também frequentes, nas sido escrito a respeito, e Afonso Arinos a ele impressões de viagem, quando Afonso Ari- dedicou algumas páginas esclarecedoras. nos se remete ao historiador romano, diz ele: Em discurso falava da “tradição minei- “Os encontros de Hitler com Mussolini, no ra que vem desde o século XVIII. Digo bem paço de Brenner, de Roosevelt com Churchill, tradição, porque esta palavra foi sempre nas águas do Atlântico, de Eisenhower com entendida em Minas, no seu verdadeiro Krushov na cidade de Washington, podem significado, que não é imobilismo, mas, ao ser lidos nas páginas de Homero ou de Tácito, contrário, movimento constante e entrega no que toca ao intercâmbio desses homens.” sucessiva entre as gerações. Nós, mineiros, Num momento de relaxamento, por ocasião somos conservadores e tradicionalistas, mas da inaugurarão de Brasília, comenta: “Tenho só conservamos o imperecível, enquanto dividido as minhas horas entre os Anais de Tá- que as inovações, em cuja primeira linha cito e o Rome, Naples, Florence, de Stendhal. sempre a história brasileira nos encontrou, Sinto-me inteiramente satisfeito assim.” ao transmitirmos, por tradição, ao futuro”. Em outro passo, referindo-se à cultu- Saudando Tancredo Neves na Academia ra humanística de Afonso Pena Júnior: “A Mineira de Letras em 24 de fevereiro de poesia de Carlos Drummond de Andrade 1983, falaria da “maneira de ser dos minei- lhe interessa tanto quanto os arrazoados do ros, que assume diversos matizes, desde o sáfaro Lobão, ou as páginas de Tácito, ou afetuosamente imperativo, até o caçoísta, os mistérios da Medicina, ou a técnica de o crítico e o cáustico demolidor. O feitio cultivo das rosas e da escolha dos vinhos de mineiro é discutível, pode ser apreciado ou França, assuntos esses últimos em que, de denegrido, pouco importa. Mas não é inde- certa forma, se especializaria.” ciso nem misterioso. Decorre da confluência Comentando a influência que recebeu entre o desejo do poder e o gosto das le- em certa fase da vida, afirma: “O gosto por tras, na formação das elites mineiras”. Maurice Barres me era incutido pelo irmão Parte de uma categoria geral, a que Virgílio, que amava a sua capacidade de tra- chama mineiridade, e da individualização tar o cenário da Terceira República, ao jeito dos elementos constantes dessa categoria, de Tácito retratando O Império Romano.” aos quais denomina mineirismo e mineiri- Visitando Londres em companhia de Abgar ce, para apontar que o conceito de minei- Renault, descreveria: “Não há mocidade ridade se divide em mineirismo cultural e mais desafiadora do que aquela que ontem mineirice política. Adianta também que o eu vi desfilar por Oxford Street. Rapazes mineirismo cultural e a mineirice política de cabelos longos sobre os ombros faziam confluem para a síntese histórica da mei- lembrar os germanos ao pé do fogo, de que ridade. Isto se aplica mesmo aos mineiros Tácito nos conta.” Como em outro passo se que não vivem no mundo da cultura nem referiria aos “bárbaros loiros de que Tácito no da política, mas cuja formação seja falava com tamanha beleza”. acentuadamente mineira. Afonso Arinos – o Historiador • 29

Mostra as origens longínquas da ideia Apoiando-se nos condicionamentos so- quando, mesmo antes da Inconfidência, ciológicos e econômicos, deve-se apontar Martinho de Melo e Castro, poderoso se- a originalidade do pensamento de Afonso cretário da Marinha de ultramar, dava ins- Arinos, quando contrapõe na política mi- truções ao governador, Visconde de Barba- neira na Primeira República o confronto en- cena, e no século seguinte, José Bonifácio tre as duas regiões econômicas, a zona da escreveria ao príncipe dom Pedro, de parti- mineração, já em processo de decadência, da para Minas: com homens delicados, sutis e conciliado- “Não se fie V.A.R. em tudo que lhe disse- res, e a zona da mata, com o florescer da rem os mineiros, pois passam no Brasil pelos economia cafeeira, representada por polí- mais finos e trapaceiros do Universo, fazem do ticos afirmativos, temperamentais e quase preto branco, mormente nas atuais circuns- mesmo autoritários. tâncias, em que pretendem mercês e cargos Na questão, a meu ver, a análise de Al- públicos e outros a deitar poeira aos olhos de ceu Amoroso Lima, no livro Voz de Minas, V.A.R. para se livrarem dos crimes e atentados com o subtítulo de Ensaio de sociologia re- que cometeram.” gional mineira é das mais expressivas. Neste A esses julgamentos tão severos se po- trabalho, que recebeu críticas, Alceu Amo- deriam contrapor outros, sobretudo de via- roso Lima acentua as características pecu- jantes estrangeiros, que melhor apreende- liares dessa gente, o valor dado ao homem, ram o caráter do povo das Alterosas, como a sua mentalidade, ao espírito humanista e Saint-Hilaire, que destacou a religiosidade, as características sui generis que o represen- e o reverendo Walsh, que falaria da fideli- tavam. dade ao regime constitucional e a tendência Prefaciando o livro de Silvio de Vascon- contrária à anarquia e ao despotismo. celos, de 1968, Mineiridade – Ensaio de E no século XIX há a página expressiva caracterização, Afonso Arinos atribui ao au- escrita por . Apontan- tor a escolha desse nome, que, em sendo do para o declínio da civilização mineira, “nome novo”, era formado, no entanto, de lamentando essa situação, e apela para o elementos antigos. reerguimento: Tratando do tema da decadência minei- “Estrela brilhante do Sul, formosa Provín- ra tem uma interpretação psicológica sobre cia de Minas, por que desmaias no azul da essa análise que representaria a compensa- nossa pátria quando ela precisa que cintiles ção a um sentimento de insegurança, para com toda a tua pureza antiga? Tu que tives- afirmar: tes por largo tempo a primazia no paço dos “O declínio de Minas leva o mineiro de ve- Césares e nos comícios do povo, por que te lho sangue, de apurada cultura, não a viver aniquilas na indiferença e no desânimo? For- Minas, mas explicá-la. De qualquer maneira mosa Província de Minas, surge, surge, não te este livro é uma prova não de que Minas exis- é licito tão longo repouso. Já dizem os corte- tiu, mas que ela existe, condutora apenas em sãos, com insultante sarcasmo, que a soberba territórios diferentes daqueles em que outrora mãe dos Gracos depois de resistir, corajosa, à dominou. E quem abre a marcha num caninho violência brutal, estendeu os pulsos às cordas (refiro-me ao povo de Minas) pode fazê-lo ain- de seda da hipocrisia.” da em outro.” 30 • Alberto Venancio Filho

Há que apontar, entretanto, como esses da legítima mineiridade, ou mineirice, se faz valores se conservam mesmo fora do torrão pela mistura, ou coexistência de alguns desses natal, pois Afonso Arinos, nascido em Belo defeitos e qualidades, com a permanência de Horizonte, ali viveu poucos anos de sua in- características essenciais.” fância, retornando em 1928 por um perío- Ao final da vida, Afonso Arinos iniciou a do de oito meses e mais tarde, de 1933 a feitura de um livro sobre Minas Gerais, com 1934, quando exerce o jornalismo. Os de- o título expressivo de Rosa de ouro, que mais anos foram vividos no Rio de Janeiro, deixou inacabado e foi publicado postuma- com rápidas estadas no exterior em viagens mente. Seria, na verdade, um contraponto, de trabalho e de lazer a Roma, Paris, Gene- guardadas as devidas proporções, a Amor bra e Nova Iorque. a Roma, um livro de amor e devoção à sua Por isso mesmo, é extremamente opor- terra natal e às várias gerações de antepas- tuna a caracterização de Alceu Amoroso sados que na política e nas letras ilustraram Lima quando se refere à presença dessa tra- a “formosa estrela de Minas”. dição onde quer que se esteja: Dessa rápida súmula sobre a obra histo- “E de ver como, em Paris, Arinos sabia a riográfica de Afonso Arinos de Melo Fran- Paracatu. E de ver como, falando em Montaig- ne, nos salões mais literários do Rio, um Afon- co, uma conclusão se extrai: a despeito dos so Pena Júnior tem gosto de Santa Bárbara. inúmeros trabalhos de alta qualidade que É de ver como um Carlos Drummond, ao fazer escreveu em vários temas, as suas obras a ‘Epopeia de Stalingrado’, não perde nunca máximas foram: Um Estadista da Republi- o saber do seu itabirismo (e poderíamos subs- ca (Afrânio de Melo Franco e seu tempo) e tituir, sem desvantagem, pelo mineirismo). Rodrigues Alves (apogeu e declínio do pre- O mineiro leva consigo o seu arraial, como sidencialismo). amuleto contra as conjurações do progresso.” Inspirando-se na sua frase sobre Um Esta- Mas a mineiridade não se apresenta dista do Império: “Monumento e estátua que como elemento uno e Dario de Almeida vão durar para o largo futuro do Brasil, como Magalhães assinalou esta diversidade: modelos inexcedíveis no gênero, monumento “Já se sabe que não há um protótipo, po- e estátua erguidos à memória de José Tomás rém, variegados tipos de mineiro. Há os pací- e Joaquim Aurélio Nabuco de Araújo, pode- ficos e os belicosos; os tímidos e os arrojados -se inspirar nesta frase ao dizer que Um Es- até à imprudência; há os rotineiros e os des- bravadores; os legalistas à outrance, os fron- tadista da República e Rodrigues Alves são deurs e os revolucionários; há os ingênuos e os monumentos e estátuas erguidos à memória externamente ladinos; os somíticos e também de Afrânio de Melo Franco, Rodrigues Alves e os perdulários. Mas creio que a identificação de Afonso Arinos de Melo Franco. Moacyr Scliar. Muito mais do que um escritorzinho do Bom Fim

Antônio Torres Ocupante da Cadeira 23 na Academia Brasileira de Letras. Nascido na Bahia em 1940 e estreou na literatura em 1972, com o romance Um cão uivando para a Lua. De lá para cá publicou mais 16 livros. Da sua obra destaca-se a trilogia formada por Essa Terra, O cachorro e o lobo e Pelo fundo da agulha, e os romances históricos Meu Querido Canibal e O nobre sequestrador.

“Sou apenas um dos numerosos nomes que Carlos Nejar, que o descreveu como um ju- integram a extensa lista daqueles que fazem deu aventureiro e universal, cujo reino era do estado do o cenário e a o Bom Fim de : os habitantes motivação para a sua literatura.” de sua infância, existentes, existidos ou in- oi assim que Moacyr Scliar se definiu ventados, aos quais, aliás, o próprio Scliar em seu discurso de posse à Academia havia se referido como os primeiros leito- F Brasileira de Letras, na noite de 22 de res de suas primeiras historinhas, passadas outubro de 2003, trazendo as suas marcas de mão em mão no bairro pelos seus pais. de origem tanto para o numeroso público E todos diziam que ele era o escritorzinho que o assistia, quanto para os anais da Casa do Bom Fim. “E a verdade é que nunca pre- de Machado de Assis. Oriundas de uma cul- tendi ser mais do que isto”. tura própria expressa num vigoroso legado Foi. literário, essas suas marcas são o reflexo Ele o sabia. E sabem todos que já tive- de uma história verdadeiramente épica, da ram o prazer de lê-lo - dos leitores comuns aos especializados, a exemplo de Regina Zil- qual ele fez o seguinte resumo: “Conquistado aos espanhóis, o território berman, Luís Augusto Fischer, entre tantos rio-grandense foi cenário de ferozes lutas que outros, como o já citado Nejar, para quem resultaram em sua incorporação à coroa por- o texto de Scliar encanta pelo domínio da tuguesa. As vastas extensões territoriais foram palavra simples, humana, ágil; pela sua ima- divididas entre os conquistadores. Resultou, ginação transfiguradora nos aspectos sutis, daí, o latifúndio, que deu à região a sua pri- atônitos ou astuciosos dos seres e do mun- meira riqueza: o gado, criado extensivamente do; e para além das fronteiras gaúchas e do no pampa. E aí surge também o gaúcho, que país, como o crítico do New York Times que logo inspiraria os primeiros escritores rio-gran- o chamou de “mestre brasileiro”, enquanto denses, notadamente Simões Lopes Neto.” na Suíça louvam o humor, o realismo e a Moacyr Scliar foi recebido na ABL por poesia que permeiam a sua obra e, na Fran- um seu conterrâneo, o poeta e romancista ça, a sua capacidade de dissecar a violência, 32 • Antônio Torres a crueldade e a miséria com ironia e imagi- distanciamento autoirônico, num estilo nação, enquanto na Alemanha destacam- maduro e bem articulado”, escreve Carlos -lhe o talento para descrever a trajetória Nelson, destacando ainda que o primeiro ro- daqueles que escapam à norma. mance de Scliar aborda uma temática de real Pronto. significado para o ser humano, e o faz com O autor destas linhas chegou aonde um profundo domínio da técnica literária. queria. Pois foi uma alemã quem o apresen- Eram cinco os jovens autores analisados, tou ao protagonista deste relato. Passou-se mas apenas dois deles passavam com lou- isto no aeroporto de Frankfurt, onde o locu- vores pelo crivo daquele crítico - o outro foi tor que vos escreve e o escritor Silviano San- o que sobreviveu para agora contar a histó- tiago desembarcaram, na manhã do dia 11 ria, que se resume a um recorte amareleci- de novembro de 1985, para um circuito de do pelo tempo, a estampar as fotos daquele palestras por várias cidades da Alemanha. E par de romancistas em começo de carreira, lá estava, a esperá-los, a dinâmica agente e que deviam ter sido puxadas dos arquivos literária e tradutora Ray-Güde Mertin, que da revista por Vladimir Herzog, o seu editor pediu para aguardarem o desembarque, de Cultura de 1968 a 1973, dois anos antes dali a pouco, de dois outros convidados bra- de ser assassinado em um porão militar. sileiros: Antonio Callado e... Moacyr Scliar. A partir dali Scliar iria demarcar o seu Até então eu só o conhecia das páginas lugar na história da literatura de forma tão literárias da imprensa. Esse conhecimento unânime quanto a votação que viria a ter ao à distância começara por uma página du- ser eleito para a Academia Brasileira de Le- pla de uma importante publicação semanal tras, num eloquente reconhecimento a um paulista que circulou nas bancas nacionais expoente da geração literária que começou de 1952 a 1993. Em sua edição de 14 de a publicar em fins dos anos 60 e começo maio de 1973, a revista Visão fez um balan- dos 70, no auge de uma ferrenha ditadu- ço da “jovem produção literária brasileira”, ra. “Naquela época escrever era uma for- com uma análise nada indulgente do crítico ma de resistência. Resistência a que Ignácio Carlos Nelson Coutinho – um baiano radi- de Loyola Brandão, João Antônio e tantos cado no Rio, onde era professor universitá- outros se engajaram de maneira admirável, rio -, na qual o recém-lançado romance A percorrendo o país e falando para jovens guerra no Bom Fim é saudado como uma nos mais remotos lugares”, escreveu ele em das mais importantes criações narrativas crônica publicada na Zero Hora de 9 de no- brasileiras dos últimos anos: vembro de 2002. “Tomando como ponto de partida a pro- Conquanto fizéssemos parte dessa ge- blemática humana dos judeus num bairro ração, não tivemos qualquer tipo de con- de Porto Alegre, Scliar generaliza essa pro- tato, fosse pelo correio ou por telefone, blemática a ponto de aproximar-se de uma antes de nos encontrarmos na Alemanha. ampla reflexão estética sobre as contradições Lá, palestramos juntos em universidades e e o judaísmo no mundo de hoje. As misé- bibliotecas públicas de Frankfurt, Colônia rias e grandezas do povo judeu, seus sonhos e Bielefeld, o que representava metade do e seus desencantos, são apresentados com roteiro organizado pela Ray-Güde. A outra Moacyr Scliar. Muito mais do que um escritorzinho do Bom Fim • 33 metade levou Scliar com Callado para Ham- nele, acima de tudo, seja na ficção, no burgo, enquanto Silviano e eu seguíamos ensaio ou na crônica, um estilo altamen- para Bonn, Munique e Berlim. te humanista, que o torna dono de valo- Voltaríamos a nos encontrar no Rio de res universais” – assim o descreveu o seu Janeiro, onde, a cada vez que ele me procu- conterrâneo gaúcho Luiz Antônio de Assis rava, eu o levava a bater perna de Copaca- Brasil, acrescentando que Scliar foi capaz bana ao final do Leblon. Não demoraríamos de introduzir na literatura brasileira o que a voltar às mesas literárias do Brasil e do outros escritores de origem judaica deram à mundo: Rio de Janeiro, Paris, Porto Alegre, literatura mundial. A sua condição de filho Guadalajara, Porto de Galinhas (Pernam- de imigrantes aparece em seus romances A buco). E voltamos à Alemanha, na primeira guerra no Bom Fim, O exército de um ho- vez em que o Brasil foi o país homenage- mem só, O centauro no jardim, A estranha ado da Feira do Livro de Frankfurt (1994). nação de Rafael Mendes, A majestade do Com este timaço: Lygia Fagundes Telles, Né- Xingu, e em livros não-ficcionais como A lida Piñon, Ana Maria Machado, Ignácio de paixão transformada: História da medicina Loyola Brandão, João Ubaldo Ribeiro, Chico na literatura. Buarque, Zuenir Ventura, , Fer- O seu estilo leve e irônico, marcado pelo reira Gullar, Roberto Drummond, Ziraldo, nonsense, o levou a conquistar um amplo Josué Montello, Cícero Sandroni, Paulo público de leitores, inúmeros prêmios (cinco Coelho. Primeiro a falar num painel intitu- Jabutis, por exemplo), traduções em mais de lado “Brasil, um mosaico de províncias”, 20 países e adaptações para o cinema e a TV. do qual Ubaldo e eu fazíamos parte, Scliar Sucessor de Geraldo França de Lima na soltou a verve que lhe era peculiar: “Isto é ABL, Moacyr Scliar foi o sétimo ocupante uma covardia” – começou ele. “Botaram da Cadeira 31, fundada por Luís Guimarães dois baianos contra um pobre de um gaú- Júnior, tendo como patrono Pedro Luís, e cho. Depois reclamam que o Rio Grande do hoje ocupada por Merval Pereira. Os de- Sul queira se separar do resto do Brasil.” mais a ocupá-la foram: João Ribeiro, Paulo Assim era o Moacyr Scliar que conheci: Setúbal, e José Cândido rápido no gatilho. Tanto falando quanto es- de Carvalho. crevendo, como comprovam os mais de 80 Nascido em Porto Alegre no dia 23 de livros que publicou em 40 anos de baten- março de 1937, Scliar casou-se com Judith te, passeando com a mesma desenvoltura Vivien Olivien em 1965, com ela tendo um pelo conto, o romance, a crônica e o en- filho, Roberto. Ele faleceu na sua cidade na- saio. “Cada leitor da obra de Scliar tem seu tal no dia 27 de fevereiro de 2011, aos 73 gênero preferido. Mas todos reconhecem anos, legando-nos uma obra memorável.

Carlos Nejar: O Poeta dos Pampas

Arnaldo Niskier Ocupante da Cadeira 18 na Academia Brasileira de Letras. Formado em Matemática e Pedagogia pela Universidade do Estado do Rio de janeiro. É Doutor em Educação. Foi membro do Conselho Nacional de Educação. Autor de mais de 100 livros. Membro da Academia Brasileira de Educação.

“Carlos Nejar, o poeta que transpôs me abandonou sobre as ruínas./(...)/A mi- o limite, desterritorializou nha voz nasceu, fez-se alimento/Dos homens o poema, atravessou as demarcações mastigando-se na sombra/Uma pomba pou- da fronteira.” () sou no sofrimento/E a beleza deitou-se à sua sombra”. uís Carlos Verzoni Nejar nasceu em Porto Alegre, no dia 11 de janeiro de Como se vê, o lançamento de Sélesis, o L 1939. Filho de Sady Nejar e Mafalda cartão de visitas de Carlos Nejar já delineava Verzoni Nejar, ele completou este ano 80 que ele seria um dos grandes nomes da poe- anos. Mais conhecido como Carlos Nejar, sia brasileira. Depois, vieram Livro de Silbion, iniciou sua brilhante trajetória na literatu- Livro do Tempo, O Campeador e o Vento, Da- ra brasileira, em 1960, na flor dos seus 21 nações, Ordenações, Canga (Jesualdo Mon- anos de idade, com o livro Sélesis. Trata-se te), Casa dos Arreios, O Poço do Calabouço, de uma coletânea de poemas que já de- Somos Poucos, Árvore do Mundo, O Chapéu monstrava a força da arte desse gaúcho que das Estações, Os Viventes, Um País, o Cora- veio dos Pampas para conquistar o Brasil e ção, Amar: A Mais Alta Constelação, Arca da o mundo, já que a sua obra circula por di- Aliança, Sonetos do Paiol, ao Sul da Aurora, versos países, incluindo traduções de alguns Todas as Fontes Estão em Ti, A Espuma do de seus livros e também participações em Fogo, Poesia Reunida, A Idade da Eternidade, antologias (Portugal, Áustria, Estados Uni- Tratado de Bom Governo, Pequena Enciclo- dos, Alemanha, França, Hungria, Uruguai, pédia da Noite, O derradeiro Jó, Odysseus, o Argentina, Venezuela, Itália, Cuba e Chile). Velho e outros. Para se ter uma ideia da qualidade da sua poesia, vale a pena relembrar uma pequena Muito além de um poeta pérola do seu livro de estreia: “A minha voz nasceu sobre as ruínas/ Saindo do mundo da poesia, Carlos Nejar De um sonho que as abelhas não teceram/ mostrou que também era um romancista As ilhas da poente enlouqueceram/E o Sol de mão cheia, lançando Um Certo Jaques 36 • Arnaldo Niskier

Netan, O Túnel Perfeito, Carta aos Loucos, que conquistou todas as honrarias possí- O Selo da Agonia, O Livro do Peregrino, O veis, dentre as quais podemos citar: Prêmio Evangelho Segundo o Vento, A Engenhosa Nacional de Poesia Jorge de Lima, do antigo Letícia do Pontal, O Poço dos Milagres e Jo- Instituto Nacional do Livro (1970), Prêmio nas Assombro. Como ensaísta colocou no Fernando Chinaglia, da União Brasileira mercado obras de grande valor: O Fogo é de Escritores (1974), Prêmio da Associação uma Chama Úmida (Reflexões Sobre a Poe- Paulista de Críticos de Arte (1977), Prêmio sia Contemporânea), Escritos com a Pedra e Luíza Cláudio de Souza, do PEN Clube do a Chuva, O Caderno do Fogo e História da Brasil (1978), Prêmio Érico Veríssimo, da Literatura Brasileira. Na área infanto juvenil, Câmara dos Vereadores de Porto Alegre publicou Jericó soletrava o Sol & As coisas (1981), Prêmio Monteiro Lobato, da Asso- pombas, O menino Rio, Era um vento muito ciação Nacional de Crítica Literária do Rio branco, A formiga metafísica, Zão e Gran- de Janeiro (1987), Troféu Francisco Igreja, de vento. Além disso, participou da elabo- da União Brasileira de Escritores (1991), Tro- ração de diversas antologias, algumas delas féu Cassiano Ricardo, do Clube de Poesia publicadas no exterior. Para completar, ainda de São Paulo (1995), Troféu Brava Gente, arrumou tempo para trabalhar na tradução do Governo do Rio Grande do Sul (1996), de livros de Jorge Luís Borges (Ficções Elogio Prêmio Jorge de Lima, da União Brasileira da Sombra) e de Pablo Neruda (Memorial de de Escritores (2000) e Prêmio Machado de Ilha Negra, Cem Sonetos de Amor e As Uvas Assis, da Biblioteca Nacional (2000). e o Vento). A sua formação em Direito, e poste- Poesia e humanismo riormente a sua atuação profissional como promotor de justiça, atuando principal- O estilo da produção poética nejariano, mente no interior do estado do Rio Grande além de valorizar a espontaneidade que do Sul, em nada atrapalharam a sua verve deve sempre existir no artista, parece que literária. Ao contrário: a constante lida com também foi moldado a partir da realização as questões dos Pampas pode até ter aju- de um estudo profundo, embasado nos dado na criação de alguns personagens. A gêneros literários que ele admirava, incor- sua biografia registra que também foi pro- porando com isso matizes relevantes em fessor de Português e Literatura em diver- sua obra. Considerado o maior “poeta da sas cidades gaúchas, o que valoriza ainda condição humana”, Carlos Nejar insere, em mais a sua trajetória. suas poesias, elementos épicos e também religiosos. Ou seja: rastros das presenças do grego Homero e dos poemas “Odisseia” e Colecionador de prêmios “Ilíada” podem ser perfeitamente perce- Com o tempo, a grandiosidade da obra do bidos nas suas criações. Isso foi mostrado escritor Carlos Nejar teve o merecido reco- inclusive por ocasião do livro O Campeador nhecimento. Hoje, a literatura brasileira se e o Vento, quando a crítica especializada orgulha do seu poeta, romancista, contista, brasileira fez referência a este fato, consi- tradutor, dramaturgo, filósofo e historiador, derando a obra uma nova épica na poesia Carlos Nejar: O Poeta dos Pampas • 37 contemporânea. Com temática agrária, o contando as peripécias do cancioneiro dos livro mostra as dificuldades do lavrador no pampas, poderia ser elevado à mesma ca- convívio e no trato com a terra. Observem o tegoria de Morte e Vida Severina, de João trecho de um dos poemas: Cabral de Melo Neto, e de Romanceiro “O campeador é o que não morre/No ho- da Independência, de Cecília Meirelles. mem, é a resina de sua fibra,/Fornalha ace- O primeiro conta a história do retirante sa e crescida/Na madureza do lenho (...)/O Severino, fugindo da seca e da fome do campeador é o que nasce/Do lavrador e sua Nordeste (na verdade, o poema é um Auto morte/ É o que vence, e reconhece/Seu irmão de Natal, construído de forma dramática, na obscura face/(...)/O Campeador é no ho- mem/Força maior do que ele./É o que lhe so- usando uma forte temática regionalista). O bra sem dono/E não o amarra ao potreiro;/O segundo é uma belíssima narrativa da his- campeador é no homem/O que fica além do tória da Conjuração Mineira, movimento termo”. que pretendeu tornar a região de Vila Rica independente do domínio de Portugal: os As comparações poemas reunidos formam um longo e úni- co poema lírico e épico. Alguns especialistas fazem referências à Com certeza, as três obras têm grande existência de possíveis coincidências em al- representatividade, e cada uma traz em si gumas obras de Carlos Nejar com o clássi- aspectos bem particulares relacionados às co Cem Anos de Solidão, de Gabriel Gar- três regiões brasileiras: Sul, Nordeste e Su- cía Márquez, com sua enigmática cidade deste, respectivamente. Macondo. Talvez isso ocorra por influência da presença de sinais da literatura épica na Academia Brasileira de obra do brasileiro. Realmente, o Poeta dos Letras Pampas apresenta, nos livros Contos inefá- veis, Jonas Assombro e Carta aos Loucos, a Após consolidar o seu nome no mercado cidade de Assombro, onde histórias fantás- editorial, Carlos Nejar passou a ser cogitado ticas acontecem. para fazer parte da Academia Brasileira de Da mesma forma, em Porto dos Mila- Letras. Era possível observar nos anos 1980 gres, a cidade Portal do Orvalho se destaca as opiniões de especialistas sugerindo a sua por ser o local onde acontecem histórias candidatura. Destaco duas manifestações mágicas, envolvendo personagens folclóri- ocorridas naquele período que reforçam a cos, inclusive um padre. Se alguém insistir minha afirmação. A do saudoso jornalista em comparações, recorreremos à lógica de e crítico literário Franklin de Oliveira, para um jogo de futebol, e teríamos então a vitó- quem a linguagem de Nejar tinha qualquer ria do brasileiro por dois (Assombro e Portal coisa de labareda: do Orvalho) a um (Macondo). “Consome, ao mesmo tempo que ilumina, as experiências humanas fixadas no seu canto.” Outra observação que tem sido feita por estudiosos está relacionada a outros E o veredito de , dois grandes poetas brasileiros. Fala-se o inesquecível Tristão de Athayde, que já que o livro Miguel Pampa, de Carlos Nejar, anunciava, antes do seu falecimento, em 38 • Arnaldo Niskier agosto de 1983, a importância da obra do & Senzala’, Sérgio Buarque de Holanda, em poeta no Século XX: ‘Raízes do Brasil’, e de ‘Os Sertões’, de Eucli- “São as palavras e sua lábia que consagra- des da Cunha.” ram Carlos Nejar como uma das figuras domi- nantes da nossa poética deste fim de século.” Reconhecimento O então presidente da ABL, Austregésilo internacional de Athayde, alegando que o estado do Rio Em 2017, o poeta teve o nome indicado ao Grande do Sul estava sem representação na Prêmio Nobel de Literatura pela Academia Casa de Machado de Assis, chegou a inti- Brasileira de Letras, que é credenciada pela mar o escritor gaúcho: “Se tu não te can- Academia Sueca para fazer as sugestões. didatares, eu te candidato à força”. Não foi Em 1993, a publicação americana Quar- preciso o gesto extremo, já que ele atendeu terly Review of Literature (Revista Trimes- ao chamado. “Por livre e espontânea pres- tral de Literatura), criada em 1943, pelo são”, como se diz graciosamente nas rodas poeta Theodore Weiss, comemorou o seu de amigos, ele se inscreveu para concorrer cinquentenário com um número especial. à Cadeira número 4, e a eleição se realizou em 24 de novembro de 1988, com a posse A edição trazia o poeta Carlos Nejar como ocorrendo em 9 de maio de 1989. Carlos o único representante brasileiro na gale- Nejar sucedeu ao também gaúcho Vianna ria dos grandes escritores da atualidade, Moog, que havia falecido em 15 de janeiro ombreando-se, entre os cinquenta autores de 1988, sendo então recebido pelo Acadê- selecionados, a personagens reconhecidos mico Eduardo , que assim se expres- mundialmente como o espanhol Rafael Al- sou sobre ele: bert e o francês Yves Bonnefoy. “A poesia de Carlos Nejar se compõe de Da mesma forma, em 2002, a revista camadas diversas, que se entrecruzam, se dis- americana Literature World Today o colo- persam, retornando sempre ao mesmo estu- cou entre os dez mais importantes poetas ário, ao mesmo núcleo energético, de onde brasileiros. Em 1997 foi lançado na Espanha irrompem, em sequência razoavelmente so- o livro Poesia y Poeticas del Siglo XX en La lidária, as imagens da revelação. Revelação America Hispana y El Brasil, do crítico suíço sobretudo de Deus, sob o olhar vigilante do tempo.” Gustav Siebenmann. O poeta Carlos Nejar apareceu como um dos 37 poetas-chave do Na noite da posse, Carlos Nejar, emo- Século XX, entre 300 autores considerados cionado, enalteceu de forma muito distinta, memoráveis, no período de 1890 a 1990. como é do seu feitio, a obra do seu conter- râneo e antecessor na ABL: “Vianna Moog, mais ensaísta que roman- Gentileza e elegância cista, embora reunindo-os em si, coerentes, Como historiador da literatura, Carlos Ne- busca na história primordial deste País, com a jar escreveu uma obra que é um verdadeiro amplitude do estadista, as origens e caracterís- ticas do ‘homo brasiliensis’, em ‘Bandeirantes documento sobre tudo o que se produziu e Pioneiros’, que o põe, pela importância, ao no Brasil: História da Literatura Brasileira – lado de um Gilberto Freyre, em ‘Casa-Grande Da Carta de Caminha aos Contemporâneos. Carlos Nejar: O Poeta dos Pampas • 39

Fruto de mais de uma década de pesquisa, Sobre João Ubaldo Ribeiro: o livro, com mais de mil páginas, apresen- “João Ubaldo Ribeiro não era apenas um ta um panorama das obras publicadas do grande criador, era também um personagem Descobrimento até os dias de hoje. A for- – não sei se maior do que alguma de suas criaturas – porque era desmedido, portento- ma elegante de escrever sobre os nossos so. Sim, um ser incomum, alegre, sem pose e grandes escritores, como Machado de Assis sem representação. Queria a vida sem engodo e , é uma das caracterís- e a teve. Tinha vocação rabelaisiana, com a ticas marcantes da obra. Aliás, esta é uma mágica que não o abandonava, como ao Ga- das principais virtudes de Carlos Nejar. No briel García Márquez de ‘Cem Anos de Soli- convívio sadio que tenho com ele, tanto dão’, só que preso à nossa história e ao nosso na Academia Brasileira de Letras como nos povo, tendo dentro de si a metaforização do eventos literários, observo atentamente o coletivo, transformando a alma do alferes José seu comportamento gentil e amigável para Francisco Brandão Galvão (personagem do li- vro ‘Viva o Povo Brasileiro’), da ponta das Ba- com os colegas, sempre aberto ao diálogo leias, na alma do povo brasileiro.” e com palavras elogiosas. Alguns exemplos me vêm logo à memória, como a sua opi- nião sobre três acadêmicos. Falando sobre os clássicos Sobre Orígenes Lessa: Por seu vitorioso histórico como pesqui- “Não era somente um inventivo escritor, ou sador cuidadoso da literatura brasileira, o um publicitário a quem nenhum anúncio era difícil diante de argumentos e fatos. Era um ho- poeta Carlos Nejar tem sido o autor pre- mem bom, generoso, sereno, com gosto de vi- ferencial das obras dos escritores da série ver. E permanente bom humor, sem esquecer al- “Clássicos Consultor”, da Editora Consul- guma pitada de ironia sem maldade. Ou apenas tor. Em : O Poeta Visionário o bafejar do espírito que acorda o coração. Eu e Mágico do Povo, por exemplo, abordando o conheci pessoalmente e sua escrita nos reco- a singularidade da obra do escritor parai- nheceu. Porque é a palavra que nos descobre.” bano, Nejar consegue esmiuçar com clareza Sobre Ariano Suassuna: a força do seu texto do autor de Auto da “As comédias de Ariano Suassuna buscam Compadecida: recuperar os mecanismos da antiga comédia, “Criado no levitar das palavras, sua visão como na Idade Média e no Renascimento. do sertão tem o arrebatamento do visionário, De onde se infere que o autor toma para si a sem jamais se deixar seduzir pelo encanto das cooperação coletiva, como obra de literatura cidades, lutando sempre por um Brasil real, oral. É como a ‘res nullius’ (terra de ninguém) contra o Brasil oficial, afirmando que o que que se incorpora à margem do rio de texto. sucedeu em Canudos continua a acontecer Assim, as histórias se repetem e se recontam nos campos. Seu nativismo é o de captar na de geração em geração. João Grilo, por exem- linguagem a essência dos costumes e do res- plo, é espécie de Pedro Malazartes, com afi- pirar de seu povo. Ou uma forma de memória nidade com o espanhol Lazarillo de Tormes. que ele próprio descobre.” Além de Chicó, que é um bufão inofensivo, como alguns de Shakespeare. Mas foi Ariano Mais adiante, Carlos Nejar complemen- Suassuna que teve o dom de lhes dar alma e ta a sua avaliação do processo de criação hospedagem definitiva.” de Ariano Suassuna, levando em conta as 40 • Arnaldo Niskier múltiplas facetas que eram encarnadas por reminiscências, transpõe a matéria ficcional ele – teatrólogo, romancista e ensaísta: para a matéria da humanidade. E esse mesmo “Existe no processo de Suassuna, não ape- processo de solidão é que o arreda das corren- nas a habilidade dos diálogos, a concatenação tes modernistas. Não procura inovações, inven- feliz das cenas, a vitalidade dos personagens, ções de linguagem, quer apenas fazer existir o delinear das tramas e a concepção universal suas criaturas com imediata comunicação. In- da arte do mundo. É um genuíno memoriador fluência talvez da propaganda sobre seu criar da alma coletiva.” ficcional.”

Outro autor focalizado por Carlos Nejar Outro aspecto levantado por Carlos Ne- na coleção da Editora Consultor foi João jar, no livro A Descoberta da Infância e a Ubaldo Ribeiro que, para ele, além de baia- Palavra em Orígenes Lessa, era que ele não no, era universal, um épico de um mundo olhava com as narinas como o russo Gogol, estilhaçado. Falando sobre o romance Sar- fazendo uma analogia com o ditado que gento Getúlio, ele confessa que ficou im- diz: “Quem tem o nariz comprido enxerga pressionado como a obra rasga as fronteiras mais longe.” Para o poeta, o autor brasileiro de tempo e espaço, chegando até à cha- era diferente: “Orígenes via com o tempo que sofreu mada “desmontagem total da lógica ficcio- privação, com a marginalidade que presencio, nal”. Observem a sua conclusão no livro O com os olhos de uma alma. Ainda que preser- Albatroz Azul, ou João Ubaldo Ribeiro: vasse o fundo místico da infância, não tinha “E junto, é apagada a existência do pro- contemplação com o mundo que o cercava, tagonista, perseguido por militares, ao se mundo da propaganda, que vivenciou, mun- homiziar na Barra dos coqueiros. É quando do da aparência e do poder, mundo da opres- Getúlio relata a própria morte, ou é a morte são sobre os mais fracos.” que o delata. É um dos mais convincentes e doridos personagens da nossa literatura. Vai Para finalizar, vale a pena lembrar o li- para o fim, sabendo-se inocente. Atado a for- vro Os cem melhores poetas brasileiros do ças exteriores que o esmagam e são maiores século, de autoria de José Nêumanne Pinto do que ele.” e Rinaldo de Fernandes, uma antologia que Quando abordou a obra de Orígenes faz uma seleção dos nossos melhores auto- res nesse estilo literário. Os autores desta- Lessa, o poeta Carlos Nejar lembrou que o cam a obra de Carlos Nejar, colocando-a em seu estilo era direto, sem arrebites ou ador- boa companhia, ao lado de poetas como nos, fixando tipos cinematograficamente, Carlos Drummond de Andrade, Vinícius de conduzindo diálogos com simpleza de con- Moraes, Cecília Meirelles, , versa, nascendo brejeira do povo: “Tem malícia ao narrar, esta malícia sem Mário Quintana, Augusto dos Anjos e ou- maldade do que sabe que a vida corre e permi- tros grandes nomes. O Poeta dos Pampas te que ela corra desembaraçadamente. Projeta merece esse devido reconhecimento, com a a sua solidão para a solidão do mundo. Nas bonita vida ao lado da sua querida Elza. Machado de Assis e a Academia

Domício Proença Filho Ocupante da Cadeira 28 na Academia Brasileira de Letras. Professor Emérito e Professor Titular de Literatura Brasileira da Universidade Federal Fluminense, aposentado; Doutor e Livre-Docente em Letras; Doutor Honoris Causa pela Universidade Clermont Auvergne, da França. Publicou, até o momento, 68 livros, entre eles, o romance Capitu-memórias póstumas.

tema é complexo. O traçado da o texto crítico. E porque é sempre oportuno biografia do autor, já levado a voltar a aspectos pouco claros na imagem O termo por muitos, é marcado por historicizada do escritor. discordâncias. Longa a história desta cente- Para tratar de Machado de Assis e da nária Instituição de que foi o primeiro pre- Academia, nos termos que me foram pro- sidente. Tratar de um e de outra, sobretudo postos, buscarei apenas, nos limites da pre- diante dela mesma e dos que hoje dão con- sente situação de fala, selecionar alguns tinuidade ao projeto dos fundadores, co- traços do seu perfil. Como ser humano, nhecedores em profundidade da história da como funcionário, como acadêmico. Desta- Casa e da vida do consolidador, é um desa- cada a sua vinculação com a Casa. Situados fio e uma temeridade. Corro o risco de sen- ambos no contexto sociocultural da época. sacionalizar o óbvio. Sobretudo diante dos Seleção implica necessariamente omissões. conferencistas que me antecederam no pre- Procurarei que não sejam significativas. As sente seminário, os Acadêmicos Alberto Ve- tintas e a linha do desenho me foram for- nancio, Cícero Sandroni e Affonso Arinos de necidas, entre muitos, por Josué Montello, Mello Franco. Mais ainda diante do precioso Luís Viana Filho, Raymundo Magalhães Jr., ensaio do Acadêmico Graça Aranha, no vo- Jean-Michel Massa e Lúcia Miguel-Pereira, lume da Coleção Afrânio Peixoto, dedicado biógrafos do escritor; pelos machadólogos à correspondência mantida entre Machado Valentim Facioli e Alfredo Bosi, além dos e Joaquim Nabuco, com sua terceira edição textos da sua correspondência ativa e pas- em boa hora publicada por esta Academia. siva e das atas das sessões da Academia Muito mais, se consideramos o percucien- realizadas entre 1897, data de sua instala- tíssimo livro de Mestre Josué Montello, ma- ção, e 1908, ano da morte do seu primeiro chadiano maior. Tais textos podem levar a presidente. minha fala ao território da reiteração ou da Seja-me permitido recordar, para efeito redundância. Arrisco-me por entender que de contextualização, alguns fatos de rele- todo texto é diálogo. Com muito mais razão vância sobre o Brasil desses tempos. Publicado na Revista Brasileira n.o 40, Fase VII, Julho-Agosto-Setembro de 2004, Ano X, pp. 99-130. 42 • Domício Proença Filho

A época em que Machado de Assis vive As mudanças na estrutura social, a é, no Brasil, sabemos todos, marcada pelo emergência dessa nova burguesia, alimen- signo da crise e da mudança. Trata-se de tada de saberes, a nova dinâmica oriunda um tempo brasileiro em que uma socieda- dos antagonismos com os grupos senho- de fundamentalmente agrária, latifundiária riais, não determinam, mas condicionam e escravocrata abre espaço para a presença concomitantes alterações na política e na de fortes dimensões burguesas e urbanas, arte, em especial no tratamento e na recep- abolido, gradativamente, o trabalho escravo. ção da literatura. E muda, em decorrência, Desenvolve-se e amplia-se a lavoura o público e o gosto do público. cafeeira. Ganha destaque a atividade mer- Vale destacar alguns acontecimentos cantil, o comércio interno e externo. As históricos vinculados ao novo perfil da so- grandes somas disponíveis, por força da ciedade que marcam a segunda metade do eliminação da escravatura, são em grande século XIX no país: parte objeto de reinvestimento em empre- 1. a abolição dos escravos mobiliza a emo- endimentos urbanos. Ferrovias, telégrafo e ção nacional e leva a mudanças nos ru- portos favorecem o progresso. Prepara-se mos da economia. o advento da industrialização. A imprensa 2. A Guerra do Paraguai reacende o sen- estabiliza-se. A sociedade descobre a rua, timento de nacionalidade. Traz coesão com seus entretenimentos, entre eles o tea- e estabilidade ao Exército, que não me- tro, as novidades da moda, as festas. receu a participação nem o entusiasmo Esse progresso traz a ascensão da classe dos senhores rurais, e cuja relevância média, ainda que com consciência de clas- como poder o civilismo da monarquia se bastante reduzida. E o seu modelo de agrária não soube perceber: é de repre- comportamento, na economia, na política, sentantes da classe média emergente nas atitudes, é dado pela classe dominan- que se faz o contingente de oficiais, te, que, ciosa e experiente, assegura sua quer os formados na Escola Militar, quer presença no comando do poder público. os forjados na carreira da caserna. Inicia-se, paralelamente, um proletariado 3. Instaura-se a Questão Religiosa, resul- urbano. tante do conflito entre as pretensões A burguesia emergente trava contato de autonomia do catolicismo oficial e as com as ideias dominantes no mundo eu- exigências do tradicional posicionamen- ropeu de então. Conscientiza-se da impor- to do Governo, defensor da ingerência tância do conhecimento, como estratégia dos chefes de Estado nos assuntos de de ascensão social. Ganha novos matizes. religião. Mobiliza-se o espírito liberal. Formam-se médicos, militares, engenhei- Emergem questionamentos. A tranqui- ros. Adaptam-se as novas tendências do lidade da fé se vê abalada. pensamento europeu à realidade brasileira. Esses e outros fatos configuram efeti- É tempo, inclusive, de reformas, sobretudo vamente um momento de crise, em que a no ensino. E essas reformas repercutem hostilidade dos senhores de engenho, agra- necessariamente no processo de formação vada pela não-indenização pela perda dos dos novos profissionais. escravos, alia-se à insatisfação dos oficiais Machado de Assis e a Academia • 43 do Exército, com seu prestígio diluído e já do conhecimento, a valorização do saber e mobilizados pelas ideias positivistas, e à das qualidades intelectuais. É a estratégia hostilidade das províncias ao centralismo usada para contrapor-se pelo intelecto à do poder imperial. A República não tarda. aristocracia do sangue e da riqueza. Nes- E vem, como se sabe, a ser proclamada em se espaço, a carreira literária ganha notá- 1889. vel destaque. E esse dimensionamento, no Os presidentes militares, Deodoro da Brasil, vem desde o Romantismo. É o alto Fonseca, que governa de 1889 a 1891, e prestígio do escritor que propicia a criação, Floriano Peixoto, seu vice, que o substitui e em 1896, da Academia Brasileira de Letras, permanece na Presidência até 1894, man- um acontecimento histórico altamente sig- têm a tendência conservadora e buscam nificativo quando reúne, no processo de apoio na classe média, cada dia mais ampla. fundação, Machado de Assis, classe média Com os primeiros presidentes civis, repre- ascendente, e Joaquim Nabuco, classe alta sentantes da classe dominante paulista, no- privilegiada. tadamente os fazendeiros do café, ganham A vida de Machado é um excelente destaque o federalismo e o conservadoris- exemplo da estratégia: o menino pobre da mo. São eles, só para lembrar, Prudente de chácara do Livramento converte-se, pelo Morais, cujo governo se estende de 1894 a estudo e pelo trabalho, no intelectual con- 1898, e Campos Sales, que governa de 1898 sagrado e socialmente reverenciado. Ultra- a 1902. Depois é tempo de Afonso Pena. Em passa pelo saber e, sobretudo, por sua con- contrapartida, agora a insatisfação emerge dição de escritor, as restrições veladas ou do embrião do proletariado e de represen- explícitas da sociedade de então à sua con- tantes da classe média urbana, formada por dição étnica e a sua condição social de ad- funcionários do Estado, por profissionais mi- vindo de estamento considerado mais bai- litares e por profissionais liberais. xo. Muitos escritores seus contemporâneos O que ainda não vem é o esperado de- viveram experiência semelhante. Entre eles, senvolvimento econômico. Diminuto, ele ainda que sem a sua dimensão excepcional, não absorve a pequeno-burguesia. Esta se Aluísio Azevedo, , Lima Barreto e vê obrigada a arcar com os prejuízos socia- Cruz e Sousa. Ressalte-se que, à medida em lizados pela agricultura de exportação, atra- que o criador de Dom Casmurro progride vés do reajuste cambial, nas baixas cíclicas do na sua produção literária, vão se abrindo as preço internacional do café. Ao fundo o do- portas à sua carreira de funcionário. mínio do poder das oligarquias a negar a rei- Machado representa, nesse sentido, vindicação dessa classe média emergente.1 a vitória da “aristocracia do espírito”. A É essa mesma classe média, entretanto, verdade é que era um funcionário e um que começa a construir o seu lugar social cidadão que atualmente seria considerado e político. A busca desse lugar se funda- “politicamente correto”. A crítica aguda e menta na tradição da cultura ocidental que denunciadora ele a instaurou no texto de vem desde o Renascimento: a valorização sua literatura. E mais: se no seu tempo os horizon- 1 Cf. Nelson Sodré, História da literatura brasileira. 4.a ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964, cap. 7. tes filosóficos e científicos do mundo se 44 • Domício Proença Filho ampliam em direção do universal; se os escritor, e de acompanhar, com interesse, as escritores buscam afirmar-se socialmente a crônicas que publicava na imprensa. partir do seu convívio com o conhecimen- Não se alimentem ilusões de fausto e ri- to; se esse conhecimento vem sobretudo queza: mesmo com esse êxito sempre cres- da matéria livreira da Europa; e se a lite- cente, que acompanha a sua produção de ratura se torna um veículo de afirmação e nove romances, seis volumes de contos, três reconhecimento social, ampliam-se tam- de poesia, cinco peças de teatro, Machado bém os padrões da nossa literatura. Esse não vivia de livros. Não havia como. Suas aspecto envolve, de imediato, o próprio obras ficcionais ocupavam, é certo, o primei- leitor, consumidor dessas novas dimensões ro lugar em vendas. Logo depois, vinha Alu- necessariamente presentes no texto. Ma- ísio Azevedo. A informação de Luís Edmun- téria nacional e matéria universal passam a do, no seu O Rio de Janeiro do meu tempo, integrar-se com maior efetividade no texto é ilustrativa em termos de mercado livreiro: da literatura brasileira, ainda que o público “Paga-se a um bom autor, por um bom leitor seja diminuto. Mas esse é um aspec- romance ou um bom livro de contos, de qui- to que permanecerá durante muito tempo nhentos mil-réis a um conto de réis; por uma na realidade do nosso país. novela popular, de cinquenta a quinhentos mil-réis; [...] Para os livros de versos, abundan- Para ficar com os pés na realidade: dos tíssimos, não há tarifa. Em geral são impressos milhões de habitantes que integram a po- por conta do próprio autor, ou entregues ao pulação brasileira da época, a maioria era editor, sem compromisso de paga. As exce- constituída de analfabetos. Mais absolutos ções à regra são raras.”3 do que funcionais. Nas palavras de Macha- do, em crônica de 15 de agosto de 1876: Nesse contexto, fato sintomático, o escri- “A nação não sabe ler. Há só 30% de indiví- tor Joaquim Maria, de quem a Garnier é res- duos residentes neste país que podem ler; des- ponsável pela edição do Dom Casmurro em ses, uns 9% não leem letra de mão, 70% jazem 1899, vendera ao editor a propriedade “in- em profunda ignorância [...] As instituições teira e perfeita da obra literária, constando existem, mas por e para 30% dos cidadãos.”2 de quinze livros, pela irrisória quantia de oito Poucos liam, portanto, e assim mesmo contos de réis. Anteriormente, em 1896, a no ambiente urbano de poucas cidades e terceira edição das Memórias póstumas de menos ainda liam livros, e um número ainda Brás Cubas e a segunda de Quincas Borba mais restrito, livros de literatura, as tiragens tinham sido negociadas, com o mesmo Gar- ficavam entre mil e no máximo, raro, três nier, a 250 mil-réis cada uma”, informa Brito mil exemplares. Broca em A vida literária no Brasil. Era pouco. Mas já havia leitores capazes de esgotar Basta lembrar que o mesmo Machado rece- os dois mil exemplares da primeira edição bia da Gazeta de Notícias a quantia de cin- de Dom Casmurro, lançada em Paris, em quenta mil-réis por conto publicado. 1899, e de ler, em jornais ou nos livros, os Encontrar editor não era fácil. O que seis romances anteriormente lançados pelo garantia a sobrevivência dos escritores era

2 Machado de Assis, Obra Completa (org. Afrânio Cou- 3 Luís Edmundo, O Rio de Janeiro do meu tempo, vol. II. tinho). Rio de Janeiro: Ed. José Aguilar, 1959, p. 345. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1938, p. 702. Machado de Assis e a Academia • 45 o jornalismo e o Serviço Público. A declara- “Hoje não há jornal que não esteja aberto à ção de Joaquim Nabuco em O Estado de S. atividade dos moços. O talento já não fica à por- Paulo de 25 de setembro de 1898 dá me- ta, de chapéu na mão, triste e encolhido, vexado e em farrapos, como o mendigo tímido que nem dida da dificuldade: “A minha missão em sabe como haverá de pedir esmola. A minha ge- política parece-me acabada com a vida de ração, se não teve outro mérito, teve este, que meu pai que pude terminar e para a qual não foi pequeno: desbravou o caminho, fez da tive a fortuna de achar editor.” O livro é Um imprensa literária uma profissão remunerada, estadista do Império. impôs o trabalho. Antes de nós, Alencar, Mace- Verdade é que nos começos do século do, e todos os que traziam a literatura para o jor- XX o ofício de escritor passa a ser reconhe- nalismo, eram apenas os tolerados: só o comér- 5 cido. Culmina uma conquista que vinha se cio e a política tinham consideração e virtude.” configurando desde as duas décadas ante- Consolida-se a figura do profissional das riores. Fatos sintomáticos: Olavo Bilac e Me- letras. Na direção dessa consolidação, ga- deiros e Albuquerque recebem ordenados nha papel importante a fundação da ABL. mensais pelas crônicas publicadas respecti- Um sintoma e um agente. No centro da se- vamente na Gazeta de Notícias e em O País. dimentação da Instituição fundada por Lú- , no Correio da Manhã. cio de Mendonça, o já consagrado autor de A esse tempo, sintetiza Valentim Facioli: Dom Casmurro. “O mercado literário havia ganho uma dimensão, tanto no livro, como nos jornais e revistas, que indicava profundas alterações O ser humano Machado na vida econômica, social e cultural do país. de Assis O trabalho livre, a diversificação econômi- Mas quem era Joaquim Maria Machado de ca, a divisão de atividades, a urbanização, a ampliação da rede escolar média e superior, Assis, o homem? o crescimento do aparelho democrático es- Colou-se ao autor de Dom Casmurro tatal, o crescimento de frações das classes uma imagem de misantropia e de ensimes- médias, a consolidação de alguns jornais e o mamento. Não é o que demonstram as aumento de sua tiragem e circulação, enfim, cartas. As que fazem a sua correspondên- um sem-número de fatores e indícios de- cia com o amigo querido Mário de Alencar, monstrava, entre outros aspectos, que a com Magalhães de Azeredo, mesmo com divisão de classes na sociedade brasileira Joaquim Nabuco, só no final acrescida de entrava em processo de atualização capi- talista e isso favorecia a circulação de bens adjetivos emocionalmente aproximadores. culturais, diversificando sua produção e E, sobretudo, as cartas a D. Carolina, espo- apropriação.”4 sa e presença forte, marcada, como revela o soneto famoso, por “aquele afeto verda- Bilac se dá conta desse momento histó- deiro / que, a despeito de toda a humana rico e testemunha, na introdução de Ironia lida, / fez-nos a existência apetecida / e num e piedade, datada de 1908: recanto pôs um mundo inteiro”. Só restam duas, do tempo de noivado, datadas de 4 Valentim Facioli, Várias histórias para um homem céle- bre. In: Alfredo Bosi et al. Machado de Assis. São Paulo: 5 Ironia e piedade, introdução. Rio de Janeiro: Francisco Ática, 1982, p. 12. Alves, 1916, p. 12. Machado de Assis. Fotografia original reproduzida de O Album. Ano I – N.o 1 – Janeiro de 1893, p. 9. Diretor: . Agente geral: Paula Ney. Machado de Assis e a Academia • 47

1869. As demais ele as fez destruir, cioso por ter notícias tuas que saí do Diário à 1 hora que era de sua privacidade. Duas cartas, para ir à casa, e com efeito encontrei as duas dele para ela, então residente em Petrópo- cartas, uma das quais devera ter vindo antes, mas que, sem dúvida, por causa do correio, lis, cujo acesso exigia um trecho de viagem foi demorada. Também ontem deves ter re- de barca do cais Pharoux ao fundo da baía, cebido duas cartas minhas; uma delas a que de onde se prosseguia de trem. foi escrita no sábado, levei-a no domingo às Vale recordar, por serem reveladores, al- 8 horas ao correio, sem lembrar-me (perdoa- guns aspectos desse mútuo envolvimento. -me!) que ao domingo a barca sai às 6 horas Carolina Augusta Xavier de Novais nasce da manhã. Às quatro horas levei a outra carta em Portugal, em 20 de fevereiro de 1835. e ambas devem ter seguido ontem na barca das duas da tarde. Deste modo, não fui eu só Quatro anos e quatro meses, portanto, mais quem sofreu com a demora das cartas. Calcu- velha do que Machado, cujo nascimento lo a tua aflição pela minha, e estou que será data de 21 de junho de 1839. Falecidos os a última.”6 pais, por volta de 1867, vem para o Brasil, a pedido de Faustino, um de seus cinco ir- Seguem-se preocupações materiais, re- mãos, poeta, amigo de Machado. Para cui- veladoras da relação com os futuros cunha- dar dele, que passara a sofrer de distúrbios dos Faustino (F.) e Miguel (M.). A referência mentais intermitentes. Desembarca em 18 tranquila a este último põe em xeque a opi- de junho de 1868. Movida também por ou- nião de que, por preconceito racial, acirrava tra razão, informa Jean-Michel Massa: per- a oposição ao casamento. O texto revela to dos trinta e quatro anos, solteira e sem também a posição de Machado em relação recursos e traumatizada por um misterioso à vida familiar: “Eu já tinha ouvido cá que o M. alugara a drama íntimo de família, sua vida tornara- casa de Laranjeiras, mas o que não sabia era -se difícil. que se projetava essa viagem a Juiz de Fora. Difícil também identificar o momento Creio, como tu, que os ares não fazem nada de seu encontro com o jovem Machadinho, ao F., mas compreendo também que não é então na plenitude dos seus trinta anos. possível dar simplesmente essa razão. No en- Sabe-se que o mútuo compromisso se tanto, lembras perfeitamente que a mudança deu no relampejar de um minuto. Macha- para outra casa no Rio seria excelente para todos nós. O F. falou-me nisso uma vez e é do visita Faustino. De repente, a sós com quanto basta para que se trate disto. A casa Carolina, senta-se a seu lado, toma-lhe das há de encontrar-se, porque empenha-se nisto mãos, e ousa perguntar se quer casar com o meu coração. Creio, porém, que é melhor ele. A resposta, afirmativa, é firme e decidi- conversar outra vez com o F. no sábado e ser da. As cartas dão a medida da natureza e autorizado positivamente por ele.” da intensidade dos sentimentos que os une. Voltam considerações sobre o relaciona- Um trecho da primeira é iluminador: “Minha querida C. mento do casal: “Ainda assim, temos tempo de sobra; 23 Recebi ontem duas cartas tuas, depois de dias; isto é quanto basta para que o amor dous dias de espera. Calcula o prazer que tive, como as li, reli e beijei! A mª tristeza conver- 6 Machado de Assis, Obra Completa, vol. III (org. Afrâ- teu-se em súbita alegria. Eu estava tão aflito nio Coutinho). Rio de Janeiro: J. Aguilar, 1959, p. 1044. 48 • Domício Proença Filho faça um milagre, quanto mais não é mila- dois o mais amado foi o segundo. Mas nem gre nenhum. Vais dizer naturalmente que eu o primeiro nem o segundo se parecem com condescendo sempre contigo. Por que não? o terceiro e último capítulo do meu coração. Sofreste tanto que até perdeste a consciência Diz a Staël que os primeiros amores não são os do teu império; estás pronta a obedecer; ad- mais fortes porque nascem simplesmente da miraste de seres obedecida. Não te admires, a necessidade de amar. Assim é comigo; mas, cousa é muito natural; és tão dócil como eu; além dessa, há uma razão capital, e é que tu a razão fala em nós ambos. Pedes-me cousas não te pareces nada com as mulheres vulga- tão justas, que eu nem teria pretexto de te re- res que tenho conhecido. Espírito e coração cusar se quisesse recusar-te alguma cousa, e como os teus são prendas raras; alma tão boa não quero. A mudança de Petrópolis para cá e tão elevada, sensibilidade tão melindrosa, é uma necessidade; os ares não fazem bem razão tão reta não são bens que a natureza ao F., a casa aí é um verdadeiro perigo para espalhasse às mãos cheias pelo teu sexo. Tu quem lá mora. Se estivesses cá não terias tan- pertences ao pequeno número de mulheres to medo dos trovões, tu que ainda não estás que ainda sabem amar, sentir e pensar. Como bem brasileira mas que o hás de ser espero te não amaria eu? Além disso tens para mim em Deus.”7 um dote que realça os demais: sofreste.” Esta mesma carta descreve, na sequên- O texto deixa perceber uma ponta de cia do texto, uma Carolina desconfiada e ciúme em torno dos “Versos à Corina”, curiosa. Talvez por sofrida. Por força do mis- publicados em Crisálidas. Musa desse amor tério não revelado em torno do problema não retribuído: Gabriela Augusta da Cunha, familiar em que esteve envolvida. E de que, famosa atriz portuguesa. A outra paixão, seguramente, Machado tem conhecimento. correspondida: mais uma figura da ribal- Ela deseja saber do passado do noivo. Mais ta: Augusta Candiani. Dezoito anos mais precisamente, de amores desses tempos. O velha do que ele, referência constante em esclarecimento abre-se à plena sinceridade, sua obra. Ambas sombras, memórias. O lu- num belo exemplo de discurso de sedução: “Acusas-me de pouco confiante em ti? gar, no coração e na poesia, agora é dela, Tens e não tens razão; confiante sou; mas se Carolina, a amada. Que inspirará poemas não te contei nada é porque não valia a pena publicados em Falenas. O texto deixa ver contar. A minha história passada do coração também o que, a esse tempo, o criador de resume-se em dous capítulos: uma amor, não Virgília, Sofia e Capitu pensa das mulheres. correspondido; outro, correspondido. Do pri- A segunda missiva segue reveladora da meiro nada tenho a dizer; do outro não me intensidade da paixão mútua, de carinhos queixo; fui eu o primeiro a rompê-lo. Não e cuidados. Paixão que se consolida com me acuses por isso; há situações que se não prolongam sem sofrimentos. Uma senhora o casamento a 12 de novembro de 1869. de minha amizade obrigou-me, com os seus O lar: Rua do Fogo, 119, depois Rua dos conselhos, a rasgar a página desse romance Andradas. Perto do morro do Livramento. sombrio. Fi-lo com dor, mas sem remorso. Modestamente mobiliado. Dificuldades fi- Eis tudo. A tua pergunta natural é esta: Qual nanceiras. Antigas. Como na relação de D. destes dous capítulos era o de Corina? Curio- Carmo e Aguiar, no Memorial de Aires: “A sa! Era o primeiro. O que te afirmo é que dos pobreza foi o dote dos primeiros dias de ca- 7 Idem, ibidem. sados.” Machado de Assis e a Academia • 49

Aos poucos, porém, a vida do casal esta- o pagamento do aluguel que pagava ao biliza-se. Em 1872, o marido de D. Carolina cunhado Miguel, proprietário do imóvel. já é poeta, teatrólogo e jornalista de suces- Ao que parece, em algum momento atra- so, funcionário público. Em 1877, chefe de sado. A cobrança incisiva se deve à inicia- seção no Ministério da Agricultura, escritor tiva do procurador por ele nomeado, seja reconhecido, rico de amigos. A relação soli- porque, afinal, cunhado não é parente, ou dificada pelo sentimento amadurecido, pos- porque cunhado, cunhado, negócios à par- to à prova diante das doenças de Machado: te. Quem dá notícia do episódio e da carta as crises de epilepsia, a “tísica mesentéri- “seca, taxativa e informal” é R. Magalhães ca”, curada em Friburgo, de dezembro de Júnior:9 1878 a março de 1879. Depois, a retinite Rio de Janeiro, 31 de maio de 1895 grave, quando Carolina é seus olhos e a Ilmo. e Exmo. Sr. mão que escreve o que dita. Machado tes- Comunico a V. Exa. que estou investido de procuração geral do Exmo. Sr. Miguel de temunha, mais tarde, em carta ao amigo de Novais, proprietário do imóvel que V. Exa. fé Magalhães de Azeredo, datada de 2 de ocupa, com todos os poderes para receber os abril de 1895: aluguéis e outros efeitos e, por isso, peço a V. “Eu não sei se teria agora tanta paciência; Exa. o obséquio de satisfazer, na minha resi- e, contudo, já fui doente exemplar, quando dência, à Rua do Cosme Velho, n.o 20, até o padeci de uma conjuntivite, e me proibiram dia 5 de cada mês, o aluguel vencido no últi- de ler. Estive assim longas semanas. Era minha mo dia do mês precedente. mulher que me lia tudo. Para o fim serviu-me Com toda consideração, de V. Exa. Mto. de secretária. [...] As Memórias póstumas de Ato. Visconde de Thayde. Brás Cubas foram começadas por esse tempo; ditei-lhe creio que meia-dúzia de capítulos.”8 Note-se que o procurador morava ao lado. Cobrança de atraso ou facilidade de A contrapartida, no convívio do lar. Na tramitação? nova casa da Rua do Catete, n.o 206. De- pois, a partir de meados de 1883, o Cosme Velho, chalé no 18, dois andares, jardim, Machado e a política árvores, um regato. Embaixo, sala de visi- Aquele Diário a que o noivo apaixonado se tas, sala de jantar, a pequena varanda de refere na primeira carta é o Diário do Rio tranquilidade. Em cima, os dormitórios, três de Janeiro, um dos periódicos dos vários em janelas abertas para a rua, o gabinete de que colaborou regularmente, desde 1858. trabalho. No interior, o cuidado de Carolina, Ali assinava a seção denominada “Comen- com os tapetes que ela mesma tece, com tários da Semana”, assinados ora com seu os bordados que adornam o mobiliário. Na próprio nome, ora com o pseudônimo de companhia, a cadelinha, a quem Machado Gil. Seus textos, notadamente os publicados regala com biscoitos, na volta do trabalho. entre 1860 e 1862, revelam sua militância Humanamente, o chefe de família tam- no jornalismo político. Pesquisas de Jean- bém era envolvido por preocupações com -Michel Massa e estudos de R. Magalhães

8 Luís Viana Filho, Vida de Machado de Assis. São Paulo: 9 Magalhães Júnior, R. Vida e obra de Machado de As- Liv. Martins Editora, 1965, pp. 117 e 121. sis, Maturidade, vol. 3, p. 258. 50 • Domício Proença Filho

Júnior e Brito Broca dão conta do colunista certamente consciência de que os liberais combativo, de crítica agudíssima, na linha de um dia seriam os conservadores de ou- do liberalismo que marca o jornal. Ele apon- tro. “Política é como nuvem”, como dizia ta “a incoerência , a inconsequência, a as- um experiente e influente político de pou- nice dos membros do governo”; um exem- cos anos atrás. Entendeu os mecanismos plo, assinala o primeiro, é o seu juízo sobre de poder da oligarquia. Substituiu, pouco a o ministério chefiado pelo Duque de Caxias, pouco, o entusiasmo pela ironia e pelo hu- em que denuncia “o imobilismo, a incapa- mor. Com o talento que lhe permitiu a ga- cidade, a venalidade, a mediocridade, o rantia do espaço social conquistado a duras fatalismo, a ambiguidade, a duplicidade, a penas. E mudou o lugar de sua trincheira: ilegalidade, a hipocrisia, o favoritismo”.10 uma das marcas fortes de sua literatura será A militância levará inclusive o seu nome, justamente desvendar o que se esconde sob em 1866, à lista de candidatos à futura a máscara dos fatos e das pessoas, como Câmara dos Deputados pelo 2.o Distrito demonstra a lucidez crítica de Alfredo Bosi. de Minas Gerais. Não foi eleito: acreditou Há que ler os seus textos no entre-espaço que teria sido derrotado, o que, na verdade, do narrador e da matéria narrada, no silên- não aconteceria. Retirou a candidatura an- cio do seu texto, como recomenda para a tes das eleições. Resolveu, a partir de então, boa leitura literária a percuciência maior de dedicar-se totalmente à literatura. Eduardo Portella. Não se entenda a sua posição liberal Desde 1877, quando falece José de como ideologia incorporada e permanente. Alencar, Machado de Assis já é reconhe- Cedo ele entendeu o jogo de poder das oli- cido e aclamado como “o mestre das le- garquias, o oportunismo dos jornais interes- tras pátrias”. Paralelamente, é o burocrata sados menos na autenticidade de posições também de carreira estável e em ascensão. ideológicas e muito mais na possibilidade Experiência e pedras do caminho incluem- de chegar com alguma facilidade às ins- -se, por certo, entre as forças alimentadoras tâncias do poder. Coerência não era o forte do relativismo e da ambiguidade de valores de tais grupos de interesse. Eram liberais, com que seu texto maduro vergasta a hipo- como poderiam ser conservadores. Com crisia humana e as formas de dominação. argumentação semelhante à de D. Cláudia Nesse sentido, o lugar privilegiado de leitu- em relação ao marido Batista, no capítulo ra é o entrelugar destacado. No espaço da 47 do romance Esaú e Jacó, Machado deu- crônica, é de ver-se o acompanhamento das -se conta da hipocrisia de tal jogo. Por ou- mudanças que ocorrem no país, coman- tro lado, paternalismo, clientelismo, poder dadas por uma dinâmica social acelerada. centrado em minorias assentadas na ordem A propósito, Astrogildo Pereira esclarece: escravocrata, na politicagem vinculada a “O Império, até 1871, fora uma coisa; de interesses pessoais de grupos, marcadas 1871 em diante, será outra bem diferente, por de provincianismo, tornavam difícil a atua- sua evolução, por suas finalidades, pelas novas exigências da nação, pela própria mentalidade ção da pena denunciadora de “um mesti- dos estadistas que a dirigem. Faltaria apenas ço de origem proletária”. Machado teria acrescentar a essa característica um elemento 10 Cf. Valentim Facioli. Ob. cit., p. 22. invisível, subterrâneo, mas a meu ver essencial Machado de Assis e a Academia • 51

– o de que o Império será desde então diferen- obrigar-me a pagar dous níqueis de passagem te porque em verdade começava a negar-se a por dia, ou ir a pé, era um despropósito. Fe- si mesmo, corroído, pouco a pouco, pelo ger- lizmente, vingou a ideia de tornar a pôr as câ- me da própria decomposição, num processo maras em contato com o povo, e descemos histórico que teria na Abolição de 88 e na Re- da Boa Vista. pública o seu desenlace imutável.”11 Não me falem dos outros três desgostos. Suprimir as interpelações aos ministros, com O texto machadiano, a partir das Me- dia fixado e anunciado; acabar com a discus- mórias póstumas de Brás Cubas e das crô- são da resposta à fala do trono; eliminar as nicas de 1887, testemunha literariamente, apresentações dos ministérios novos...”13 sob uma visão crítica, e marcadamente, esse processo. O narrador deixa percebê- Em relação à República, situo-me entre -lo, seja na sua atuação na trama, seja no os que entendem que a sua posição é de constante exercício crítico e de metalingua- marcada ambiguidade. Não a aplaude nem gem, narrador inserido na classe superior a nega. Não caracteriza preferência pelo que a vê criticamente de dentro e por den- Império, embora não esconda sua simpatia tro. Com ironia e humor. Parodicamente, pelo Imperador. Mas a questiona em suas no sentido bakhtiniano do termo. É a nova bases. Na condição de institucionalizadora maneira machadiana, que dá continuidade de novos mecanismos de dominação. Um à maneira anterior, na sua criação literária pouco além da mudança de tabuletas de em processo. nome de padaria. Plus ça change... Nesses espaços, por exemplo, Machado, Esse mesmo Machado assume, na letra em crônica de 22 de agosto de 1889, satiri- escrita de várias crônicas, tomadas de po- za a volubilidade das ideias políticas reinan- sição em relação ao episódio de Canudos. tes. Um candidato à deputação por Minas É tempo em que recrudesce a luta do gover- Gerais é apresentado, ao mesmo tempo, no federal com o grupo de Antônio Conse- por três partidos: o liberal, o conservador, lheiro. Machado trata do assunto em várias o republicano. E Machado conclui: “Oh! crônicas. Numa delas, protesta “contra a não mudeis de casa! Mudai de roupa, mu- perseguição que se está fazendo à gente do dai de fortuna, de amigos, de opinião, de Conselheiro”. Em duas outras, faz sugestão criados, mudai de tudo, mas não mudeis de premonitória. Numa delas: casa!”12 A ironia persiste em crônica de 27 “Ora bem, quando acabar esta seita de de novembro de 1892: Canudos, talvez haja nela um livro sobre o fa- “A República trouxe-me quatro desgostos natismo sertanejo e a figura do Messias. Ou- extraordinários: um foi logo remediado; os tro Coe­lho Neto, se tiver igual talento, pode outros três não. O que ela me remediou, foi a dar-nos, daqui a um século, um capítulo in- desastrada ideia de meter as câmaras no palá- teressante, estudando o fervor dos bárbaros cio da Boa Vista. Muito político e muito bonito e a preguiça dos civilizados, que os deixaram para quem anda com dinheiro no bolso; mas crescer tanto, quando era mais fácil tê-los dis- solvido com uma patrulha, desde que o sim- 11 Astrogildo Pereira. Machado de Assis e apontamen- ples frade não fez nada.”14 tos avulsos. Rio de Janeiro: São José, 1959. In: Valentim Facioli, op. cit., p. 39. 13 Idem, ibidem, p. 586. 12 Machado de Assis, Obra Completa, vol. III, 1959, p. 14 Machado de Assis, Obra Completa, vol. III, 1962, p. 557. 765. 52 • Domício Proença Filho

O texto veio no calor da hora, como Velho era de 130$000 (cento e trinta mil sabemos. E não foi obra de Coelho Neto. réis). Acrescente-se que, em 1892, será Escreve a saga de Canudos o vigor do texto promovido a diretor-geral do Ministério da de Euclides da Cunha. Viação. Nesse cargo é posto em disponibi- Em que pesem as mudanças de avalia- lidade em 1898, para voltar ao trabalho no ção, o cronista está longe de ser um aliena- mesmo ano. Disponibilidade conjuntural, do, indiferente à realidade. Muito menos se de repercussão altamente negativa no seu pode dizer que é anti­social: lá está, presi- temperamento. Em 1902, a 28 de novem- dente da Academia, no dia 24 de fevereiro bro, assume a Diretoria da Secretaria da In- de 1897, apesar da confusão na alma e de dústria, no mesmo Ministério da Viação, de uma desconfortante dor aguda no sobrolho onde será transferido, em 18 de dezembro, direito, marcando presença na pompa da para o cargo de diretor-geral de Contabi- festa oficial comemorativa do aniversário­ da lidade. O antigo aprendiz de tipógrafo da Constituição de 1891. Como estará também Tipografia Nacional chegava à culminância na inauguração solene do Palácio do Catete de seu progresso no Serviço Público. Verda- como sede da Presidência da República. de que o servidor público alternava traba- E encontra tempo e disposição para fa- lho e licenças para tratamento de saúde e zer parte de banca de concurso para profes- frustrações. soras primárias aberto a senhoras e moças, A propósito de sua relação com a fun- com habilitações para lecionar primeiras le- ção pública, vale registrar, por curioso, o tras, ainda que não fossem portadoras de trecho da crônica ao tempo da revolta de diplomas. O diretor do Ensino Municipal era 1893. Machado serve no então Ministério o Acadêmico . To- da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, das as candidatas foram aprovadas. sediado nas imediações do cais Pharoux, na Praça 15 de Novembro, área de risco: o pré- Machado funcionário dio não escapou das balas perdidas. Macha- do registra, em crônica de 5 de janeiro de público 1896, ao comentar a inauguração do Pano- A esse tempo, o criador de Brás Cubas está rama do Rio de Janeiro ocorrida em 1891: longe de ter a vida mansa dos seus perso- “O Panorama resistiu, notai bem, às balas nagens, que raramente trabalham para so- da revolta. Certa casa próxima, onde eu ia por obrigação, foi mais de uma vez marcada por breviver. No ano de 1880, ei-lo, a convite do elas. Na própria sala em que me achei caíram Ministro Conselheiro Buarque de Macedo, duas. Conservo ainda, ao pé de algumas relí- oficial de seu gabinete. Em 86, o Impera- quias romanas, uma que caiu lá, na segunda- dor o nomeia vogal do Conservatório Dra- -feira, 2 de novembro de 1893. O Panorama mático, de que era membro desde 1871. do Rio de Janeiro não recebeu nenhuma, ou Em 1889 é nomeado Diretor da Diretoria resistiu-lhes por um prodígio só explicável à de Comércio; salário: oito contos anuais, vista dos fins artísticos da construção. Que as excelente para um casal sem filhos, num paixões políticas lutem entre si, mas respeitem as artes, ainda nas suas aparências.”15 tempo em que a libra valia 8$300 (oito réis e trezentos) e o aluguel da casa do Cosme 15 Machado de Assis, Obra Completa, vol. III, 1962, p. 696. Machado de Assis e a Academia • 53

Esse é o cidadão e o escritor consagrado pela amizade. Colegas de jantares tranqui- que será chamado a participar da criação da los e austeros no Hotel dos Estrangeiros, Academia Brasileira de Letras. promovidos pela Revista Brasileira. Registra R. Magalhães Júnior: Tempos de Academia “A partir de maio de 1896, José Veríssimo, da Revista Brasileira, passou a promover men- Voltemos, pois, à Academia. salmente jantares de confraternização, para os Para situá-lo, nos inícios da Instituição, quais eram convidados colaboradores das mais reconhecido e louvado, temos como pro- diversas tendências políticas e literárias. Embora va o jantar de homenagem aos 22 anos pouco frequentasse as páginas daquela publica- de publicação das Crisálidas, realizado, ção, Machado de Assis quase sempre participa- va de tais jantares, aos quais se referiu em várias em 1886, no Hotel Globo. O registro é de de suas crônicas. Ao primeiro deles, combinara Lúcia Miguel-Pereira: “Presentes os velhos ir com Mário de Alencar, que era um dos mais amigos como Bocaiúva Cunha e Sizenando jovens colaboradores da revista, perdendo ape- Nabuco, os moços de então, Raul Pompéia, nas por alguns meses para Carlos Magalhães de Bilac, Paula Nei, , Alberto Azeredo. Casado porém em data recente, Má- de Oliveira, momento em que foi saudado rio acabou por se escusar, delicadamente [...]”17 como ‘o mestre das letras brasileiras’, ‘o pri- Machado comparece e registra, em crô- meiro de todos’, ‘o único’. Antes dos cin- nica de 17 de maio: quenta anos. Em plena produção.” “Chego ao Hotel do Globo. Subo ao se- E são os velhos e moços de 1896 que se gundo andar, onde acho alguns homens. São congregam em torno dele no momento de convivas do primeiro jantar mensal da Revista fundação da Instituição idealizada por Lúcio Brasileira. O principal de todos, José Veríssi- de Mendonça. mo, chefe da Revista e do Ginásio Nacional, Mas, esclarece a percuciência de Josué recebe-me e a todos, com aquela afabilidade natural que os seus amigos nunca viram des- Montello, “não se pode incluir Machado de mentida um só minuto. Os demais convivas Assis entre os idealizadores da Academia. chegam, um a um, a literatura, a política, a Este papel cabe, em épocas diferentes, a medicina, a jurisprudência, a armada, a admi- Medeiros e Albuquerque e a Lúcio de Men- nistração... Sabe-se já que alguns não podem donça. Entretanto, pode-se afirmar, com se- vir, mas virão depois, nos outros meses.”18 gurança, que, sem a figura de Machado de A crônica não deixa perceber a difícil fami- Assis, a ideia não se teria concretizado”.16 liaridade que caracterizava o Seu Machado, A Instituição nasce, na expressão feliz de a esse tempo longe do jovem Machadinho Graça Aranha, de “um pacto entre espíritos dos verdes anos, presença participante das amigos”. Entre eles, no momento da funda- reuniões da livraria de Paula Brito, do Grê- ção, os que mais se empenharam na reali- mio das Letras e Artes, ou o Machado que zação da ideia comum, além de Machado e o cunhado Miguel numa carta afetuosa cha- de Lúcio: Joaquim Nabuco, José Veríssimo, mou de boêmio. É verdade que participava Rodrigo Octavio e Inglês de Sousa. Unidos 17 Vida e obra de Machado de Assis, Maturidade, vol. 16 Josué, Montello, O presidente Machado de Assis. 2.a 3, p. 279. ed., rev. e ampl. Rio de Janeiro: José Olympio, 1986, 18 Machado de Assis, Obra Completa, vol. III, 1962, p. p. 10. 707. 54 • Domício Proença Filho dos encontros da Garnier e, notadamente, e com conotação política, comenta, após da Laemmert, onde se convertia em centro perguntar quem teria inventado o termo: natural da reunião, “com seu ligeiro gague- “Talvez algum cético, por horas mortas, jar que dava mais graça às suas observações, relembrando uma procissão qualquer, mas sempre deliciosamente maliciosas” e carre- também pode ser obra de algum religionário, aborrecido com ver aumentar o número de gadas de fina e velada ironia. fiéis [...] Mas fosse quem fosse o inventor do Outros jantares mensais também reu- vocábulo, certo é que este, apesar de anôni- niam, para “uma hora de agradável conví- mo e popular, ou por isso mesmo, espalhou-se vio”, escritores e artistas no Rabelais, clube e prosperou; não admirará que fique na lín- fundado por Araripe Júnior e . gua, e se houver, aí por 1950, uma Academia Era mais um grupo que cultivava com ga- Brasileira, pode bem ser que venha a incluí-lo 20 lhardia a arte de conviver. Estes, com festa no seu dicionário.” e alarido. Mas eis que abraça a causa e converte-se O Rabelais se dilui, por força de dissen- em entusiasmada e afetuosa liderança agre- sões de ideias políticas em torno da revolta gadora, reativada. Medeiros e Albuquerque, de 1893, em que a Armada, sob o coman- “instado a falar sobre Machado de Assis do de Custódio de Melo, rebela-se contra numa sessão da Academia”, assim registra o Floriano Peixoto. Como se depreende, culti- cotidiano do escritor, sistemático e rotineiro: vava-se o encontro e a conversa. “A sua vida, ao tempo em que o conhe- É na esteira desse hábito de reunião e ci, pautava-se de um modo monotonamente convívio que floresce a ideia da Academia, uniforme. Vinha todas as tardes – nesse tem- lançada no escritório da Revista. Leio ainda po o expediente das repartições terminava às três horas – do Ministério da Viação para a em Josué Montello, O presidente Machado Garnier. Aí se instalava numa pequena roda de Assis, o relato da repercussão nos cir- e conversava sobre literatura. Se alguém se cunstantes: aventurava em questões incandescentes da “Antônio Sales, testemunha do nascimen- política, em grandes questões sociais, ele se to da Academia, contou, numa página de encolhia. Não dava opiniões francas. Quando reminiscência, que a ideia do instituto, entu- muito, para a conversa não morrer, atirava siasticamente lançada pelo poeta de Vergastas nela algumas frases neutras, que não dessem no escritório da Revista Brasileira, não foi rece- a compreender nitidamente o seu pensamen- bida com alvoroço pela roda ilustre que ali se to. Não se comprometia. – Havia um meio se- reunia. ‘Lembro-me bem’, – diz o memorialis- guro de fazê-lo afastar: era dar um tom livre à ta – ‘que José Veríssimo, pelo menos, não lhe conversa. Ele calava-se, sorria, não dava mos- fez bom acolhimento. Machado, creio, fez a tra nenhuma de enfado, mas achava logo um 19 princípio algumas objeções’.” pretexto para sair.”21

O ceticismo machadiano a propósito Uma academia, como todas as insti- da ideia pode ser medido pela referência tuições congêneres, nasce da afinidade ocasional que faz em crônica, centrada em de sentimentos, de aspirações identifica- neologismos, onde, após discorrer sobre o doras. Mas exige a energia e entrega de termo engrossador, recentemente cunhado personalidades aglutinadoras, dispostas ao

20 Idem, ibidem, p. 13. 19 O presidente Machado de Assis, op. cit., p. 13. 21 Idem, ibidem, p. 16. Machado de Assis e a Academia • 55 desprendido sacrifício da liderança e do vespertinas. Nova mudança, agora para salas trabalho. E essa força e essa animação, no do Ginásio Nacional, o antigo Pedro II. Daí, sentido etimológico do termo, a agremia- rapidamente, para outro retorno à Revista. ção idealizada por Lúcio de Mendonça en- Depois, na lúgubre e tumular Biblioteca Flu- controu na consagradora e respeitada pre- minense. A frequência cada vez menor. Je- sença e na ação dedicadíssima do autor das ton não era sequer palavra incorporada ao Memórias póstumas de Brás Cubas. vocabulário corrente. Antes, cogitava-se de A primeira sessão preparatória da cria- cobrar mensalidade aos sócios. Grave a crise, ção se dá em 15 de novembro de 1896. Na tanto que provoca um interregno de quase acanhada redação da Revista Brasileira, na um ano entre as reuniões: de 10 de agosto Travessa do Ouvidor 81, Machado é acla- de 1899 a 23 de junho de 1900. E pode ser mado presidente. Aceita. E convida Rodrigo avaliada diante da carta de Nabuco, datada Octavio e Pedro Rabelo para secretários. É de 12 de junho de 1900: a primeira diretoria. Em caráter provisório. “Não deixe morrer a Academia. V. hoje tem Machado a esse tempo está com a vida obrigação de reuni-la e tem meios para isso, nin- estabilizada. Funcional, pessoal e literária. guém resiste a um pedido seu. Será preciso que morra mais algum acadêmico para haver outra Acrescentará agora à sua rotina a presidên- sessão? Que papel representamos nós, então? cia da Instituição. Abraça a causa. Conver- Foi para isso, para morrermos, que o Lúcio e te-se em entusiasta e afetuosa liderança você nos convidaram? Não, meu caro, reuna- agregadora. Reacende-se o espírito do jo- mo-nos (não conte por ora comigo, esperemos vem frequentador dos encontros da Paula pelo telefone sem fios) para conjurar o agoiro, é Brito, das reuniões do Grêmio de Letras e muito melhor. Trabalhemos todos vivos.”22 Artes, criado em 1887, de cuja presidência, A propósito, o que liga Machado a Na- mesmo eleito, declinou. Atente-se: o grê- buco é, mais que tudo, a mútua admiração mio cedo dissolveu-se. e o tema comum: a Academia, assunto de Sessão de instalação solene: 20 de julho quase todas as cartas que enviou ao amigo. de 1897: 17 membros presentes. Ausentes E este tem a medida da dedicação do presi- do Rio: 12. Deixaram de comparecer: 10, e dente, como revela trecho de carta de 13 de sem explicação. Sala do Pedagogium, ins- fevereiro de 1908: tituição de fins educativos. Rua do Passeio “Vejo que a Academia foi inventada a tem- n.o 82. Condizente com a circunstância do po e na hora justa. Ela tem a grande missão de acontecimento. Não como as duas pequenas o consolar e de fazer-lhe companhia. Os ausen- e escuras salas da redação da Revista, mal tes, como eu, estão lá ao seu lado, em pensa- 23 iluminadas pelo gás dos lampiões. Ali seria mento. E os mortos são somente ausentes.” a sede das próximas cinco reuniões. À noite, Imagine-se o empenho e o esforço do único horário disponível. Poucos podiam es- presidente, mesmo com o afastamento do tar naquele lugar, àquela hora. O presidente, Serviço Público, a que a disponibilidade o com acuidade, impede que a Instituição te- nha o mesmo destino do Grêmio de Letras 22 Correspondência de Machado de Assis, col. e anot. e Artes. As reuniões retornam às dependên- por Fernando Nery. Rio de Janeiro: Americo Bedeschi, editor, 1932, p. 24. cias da Revista, na tranquilidade das horas 23 Idem, ibidem, p. 79. 56 • Domício Proença Filho obrigara. E mais, diante da regularidade batalha do mobiliário ainda uma vez co- com que segue escrevendo e publicando. É mandada pelo presidente e vencida com tempo de Dom Casmurro (1899), Páginas a atuação dos deputados Medeiros e recolhidas (1899), Poesias completas (1901) Albuquerque e Eduardo Ramos, que nesse e de colaboração na imprensa. sentido propuseram e conseguiram aprovar O timoneiro encontra forças para garan- emenda no orçamento do Ministério do In- tir a permanência da Instituição, agasalha- terior. Era a estabilidade da moradia. A Casa da, desde 1897, no escritório de advocacia estava enfim “aposentada e alfaiada”. No de Rodrigo Octavio, na Rua da Quitanda prédio que abrigava ainda o Instituto Histó- 47, ainda perto da utilíssima Rua do Ou- rico e o Instituto dos Advogados. Mais tar- vidor. Primeira sessão ali realizada: 11 de de, por proposta do Barão de Ramiz Galvão, abril de 1901. A luta continua. O prestígio denominado Silogeu Brasileiro, em lugar do do presidente e de alguns acadêmicos leva pouco solene nome antigo. O termo silo- à Lei 726, iniciativa do deputado Eduar- geu, com o sentido de “local onde se reú- do Ramos, sancionada por Campos Sales nem associações literárias e/ou científicas”, em 8 de dezembro de 1908, que garantia foi criado especialmente pelo barão, um he- permanente instalação em prédio público lenista, a partir de logoi, estudos, acrescido à Academia Brasileira de Letras, “funda- do prefixo sin, que indica reunião, conjun- da na capital da República, para cultura e to, e do sufixo eu, correspondente ao grego desenvolvimento da literatura nacional”. -eion, formador de substantivo. Três anos na sala do escritório de Rodrigo Para Machado era ainda pouco. Em Octavio esperaram os acadêmicos pelo carta anterior ao mesmo Nabuco, onde cumprimento das determinações do texto dá notícia da sede conjunta, ressalva: “Se- legal. Incessante o trabalho do presidente, guramente era melhor dispor a Academia que pode ser acompanhado na sua corres- Brasileira de um só prédio, mas não é pos- pondência com Joaquim Nabuco. Finalmen- sível agora, e mais vale aceitar com prazer te a sede! Revelada em carta de 28 de ju- o que se nos oferece e parece bom.” E va- nho de 1904 ao autor de Minha formação: ticina, premonitório: “Outra geração fará “A nossa Academia Brasileira já tem o seu melhor.”25 E foi feito. Quinze anos depois aposento, como deve saber. Não é separado, de sua morte. Com a transferência para o como quiséramos: faz parte de um grande Petit Trianon, oferta do governo francês. edifício, dado a diversos institutos. Um destes, Depois foi a solidificação. Em terreno firme a Academia de Medicina, já tomou posse da parte que lhe cabe, e fez a sua inauguração e ampliado. Ação em que desponta a ener- em sala que deve ser comum às sessões so- gia, o entusiasmo e a determinação do míti- lenes. Não recebi ainda oficialmente a nossa co presidente Austregésilo de Athayde. Mas parte, espero-a por dias.”24 é outra história e muito melhor contada por Laura e Cícero Sandroni. O local era o então chamado Edifício do Nos tempos heróicos, Machado foi efe- Cais da Lapa. Só um ano depois foi efetiva- tivamente o grande consolidador. Pela força mente ocupado pelos acadêmicos. Com a de seu prestígio. E, sobretudo, pela firmeza

24 Idem, ibidem, pp. 45-46. 25 Idem, ibidem, p. 44. Machado de Assis e a Academia • 57 de sua atuação e por sua capacidade de co- figura do candidato, a cara rubra, os bigo- mando, que evidencia uma vocação política des retorcidos, à mão um amplo copo de agregadora a que se furtou na vida pública. cerveja. Sem uma palavra, retorna à rua e Com habilidade serena, com talento raro, ao caminho do bonde. Era o fim das preten- mesmo diante da única dissensão represen- sões do poeta. tada por Sílvio Romero, mais tarde diluída. A sutileza não elimina a obstinação com Como resume Josué Montello, outra dedi- que cuidou da candidatura e da eleição do cação totalizante à Casa, com a acuidade seu querido amigo Mário de Alencar. Mar- que é uma de suas marcas: cadas as gestões, entretanto, pela discrição, “A Academia, ao ser constituída, soube ser traço forte de seu comportamento. Faz po- uma curiosíssima coordenação de partidos, lítica, como não podia deixar de ser. Mas tendências e situações que se harmonizaram defende que “na Academia não há nem por uma espécie de milagre pessoal do seu presidente. Havia ali monarquistas e republi- deve haver grupos fechados”. canos, românticos e naturalistas, historiadores As eleições da Casa já mobilizavam a e poetas, jornalistas e professores, numa di- imprensa, sinal de sua relevância. A do filho versidade surpreendente de princípios, ideias de José de Alencar provocou reações, assim e convicções, sobre a qual devia pairar, com o relatadas por R. Magalhães Júnior: seu fino gênio político, a ação coordenadora “O Correio da Manhã de 2 de novembro 26 do narrador de Histórias sem data.” atacou a eleição de Mário, apresentando-a como o resultado da intensa cabala desen- “O presidente Machado”, escreve ainda volvida pelo Barão do Rio Branco, através Mestre Josué, “nada impõe nem pede aos de seus lugares-tenentes, Graça Aranha e companheiros. Sugere. Concorda. Insinua. Domício da Gama. Emílio de Meneses publi- Querendo ser adivinhado. E falando o me- cou n’A Tribuna um soneto satírico, dizendo nos possível.” que o novo acadêmico, enfant-prodige da É o acadêmico assíduo: só deixou de com- burocracia, saíra da ‘panelinha’ da literatura parecer a duas sessões das 96 que a Acade- e, embora Mário de Alencar tivesse, ao ser eleito, 33 anos, pintava-o como um garoto, mia realizou durante a sua presidência. tendo por pecúlio ‘calças curtas, a lousa, o É o cultor da sutileza, como evidencia abecedário / e o primeiro exemplar do Tico- o episódio ligado à candidatura de Emílio -Tico!’. Alcindo Guanabara, escrevendo em de Meneses, poeta de marcada irreverência O País, também deplorou o resultado da elei- e comportamento boêmio. Matéria discu- ção, censurando principalmente seu colega tida em sessão. Na saída, alguns acadêmi- João Ribeiro, que dissera pouco antes: ‘Pre- cos acompanham o presidente no caminho sume-se que a Academia é uma consagração para o bonde das Águas Férreas, que o le- pelos trabalhos feitos. Aqui não é lugar dos varia à sua casa do Cosme Velho. Machado que principiam.’ Para Alcindo, Mário era um muda o rumo rotineiro do percurso e desvia principiante, não podendo haver hesitação na escolha entre ele e Domingos Olímpio, para a Rua da Assembleia. Entra numa cer- com ‘uma longa vida de publicista e de ro- vejaria. Braço erguido, simplesmente apon- mancista’. Contudo, João Ribeiro votou em ta para um quadro que, na parede, exibia a Mário...”27

26 O presidente Machado de Assis, op. cit., pp. 35 e 38. 27 Vida e obra de Machado de Assis, Apogeu, pp. 242-43. 58 • Domício Proença Filho

O presidente mantém a gravidade e a Pontuadas pela fragilidade da saúde, ame- solenidade do ritual acadêmico, mesmo nizada pela presença discreta de D. Caroli- diante do número reduzido de participan- na. Sofridíssima, após a morte da esposa. tes da sessão. Caso da última que presidiu, Ao longo dos anos que sucedem à morte diante de apenas seis companheiros. da esposa, mobilizam-no três obsessões: a Identifica-se de tal maneira com a Casa marcha inexorável do tempo, marcada pela e tem consciência de sua importância no solidão, a lembrança de Carolina, carregada panorama da cultura brasileira que lega à de saudade e agudo sentimento de perda; Instituição os seus livros, papéis e recorda- a Academia, compensatória. A primeira é ções literárias, material a que se acrescen- marcada pelo desconforto da saúde abala- tariam peças do mobiliário da residência e da, notadamente pelas crises de epilepsia, a objetos de uso pessoal. segunda, a cada passo lamentada nas cartas Não esconde a vaidade, legítima, diante aos amigos, e jamais atenuada. A Casa, re- das justas homenagens e deferências. Man- fúgio emocional a que dedicava todo o seu tém-se, entretanto, fiel à singeleza, à simpli- esforço e todo o seu tempo, na construção cidade e ao recato com que preserva a sua árdua da Instituição, de sua imagem, de sua privacidade. De tal modo, que fecha a intimi- presença, da dignidade de uma sede à altura dade do seu lar mesmo aos amigos mais che- da grandeza do projeto. gados, como Nabuco, Graça Aranha e Mário A Casa, cuja missão maior define no de Alencar. Magalhães de Azeredo teve o discurso da sessão de encerramento do privilégio de conhecer-lhe a sala de jantar. ano de 1897, realizada em 7 de dezembro. Veríssimo uma única vez pôde entrar no seu E com suas palavras encerro minhas consi- quarto de doente. Nem à morte permitiu derações, breves, diante da figura maior da esse privilégio. Assinala Lúcia Miguel-Pereira: literatura brasileira: “[...] Quando afinal as forças o abandona- “A Academia [...] buscará ser, com o tem- ram de vez, não foi ao seu quarto de dormir, po, a guarda da nossa língua. Caber-lhe-á ao quarto onde guardava as relíquias de Caro- defendê-la daquilo que não venha das fontes lina, que se recolheu. Ou por comodidade, ou legítimas – o povo e os escritores – não con- por último gesto de pudor, uma última ten- fundindo a moda, que perece, com o moder- tativa para resguardar a sua intimidade, ficou no, que vivifica.”29 num aposento no andar inferior, próximo à sala de visitas. E não se acamou, senão nos Ao fundo, certamente, a solidão dos últimos momentos.”28 grandes homens, no encontro consigo mesmo, no silêncio do recolhimento do lar do Cosme Velho, para além dos afagos da Ao tempo da fundação da Academia, a glória, que fica, honra e consola, mas não vida do autor do Memorial de Aires dividia- pacifica. Sic transit gloria mundi. Mas algu- -se em três instâncias: a atividade funcio- ma coisa resta do naufrágio das humanas nal, a atividade literária, a ação acadêmica. ilusões: a sua presença ao longo do processo

29 Discurso de Machado de Assis pronunciado em 28 Machado de Assis. Estudo crítico e biográfico. São 7/12/1897, na sessão de encerramento dos trabalhos Paulo: Cia. Editora Nacional, 1936, p. 322. acadêmicos. Machado de Assis e a Academia • 59 da literatura e da cultura brasileiras, preconi- alguma tradição crítica preconiza, por zada pela acuidade de Joaquim Nabuco, em uma acentuada vocação pública, por uma carta de 8 de junho de 1908: personalidade agregadora, de marcada “V., graças à nova geração dos Veríssimos liderança; por uma participação intensa, e Graças, que explicaram a admiração incons- ainda que discreta, em grupos de escri- ciente que V. inspirou à geração anterior, ou à tores; pelas experiências hauridas no con- nossa, goza hoje de uma reputação que for- tato com outras pessoas, pela circulação çará a posteridade a lê-lo e a estudá-lo para ampla e vária de seus textos, num tempo compreender a fascinação exercida por você de público leitor precário; pela incorpo- sobre o seu tempo.”30 ração e reescrita de múltiplos discursos A que cabe, com justiça, acrescentar: e sociais criticamente trabalhados em tex- pelos tempos futuros que vierem. tos fundamentalmente contestatórios. Na O mais está nas várias biografias, inte- ficção e na não-ficção. Tudo isso a partir grantes talvez da mais ampla bibliografia de uma linguagem fundadora, que sinte- dedicada à vida e à obra de um escritor tiza e atualiza as possibilidades da língua brasileiro, marcado, ao contrário do que portuguesa do seu tempo.

30 Correspondência de Machado de Assis, col. e anot. por Fernando Nery, 1932, p. 84.

Machado de Assis e a estética da fragmentação

Sergio Paulo Rouanet Ocupante da Cadeira 13 na Academia Brasileira de Letras. Diplomata, filósofo, professor universitário, tradutor e ensaísta brasileiro.

rata-se, na verdade, de uma Ele circunscreve uma família, enumeran- obra difusa, na qual eu, Brás do os seus integrantes: Sterne, Xavier de “T Cubas, se adotei a forma livre Maistre e Almeida Garrett. de um Sterne ou de um Xavier de Mais- Usando o verbo “adotar”, que tem a tre, não sei se lhe meti algumas rabugens ver com o universo das relações familiares, de pessimismo. Pode ser obra de finado. ele se diz membro dessa família, embora Escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta tomando alguma liberdade com o instituto da melancolia, e não é difícil antever o que da adoção, em que normalmente é a famí- poderá sair desse conúbio.” No seu pró- lia que adota o indivíduo, e não o indivíduo logo à terceira edição de Memórias pós- que adota a família. tumas, Machado de Assis complementa os Enfim, Machado diz o que existe de seme- esclarecimentos de Brás Cubas, acrescen- lhante nas diferentes taças, não obstante a va- tando a esses dois nomes um terceiro, o riedade dos vinhos: o que todos os membros de Almeida Garrett, e explica: “Toda essa da família têm em comum é uma “forma”. gente viajou: Xavier de Maistre à roda do É essa forma que me interessa aqui,2 e quarto, Garrett na terra dele, Sterne na não o exame das afinidades de conteúdo terra dos outros. De Brás Cubas se pode entre Machado e os demais autores.3 dizer que viajou à roda da vida.” O que Machado teve a intuição dessa forma, distingue Brás Cubas, conclui Machado, é mas não a nomeou. Podemos chamá-la de um “sentimento amargo e áspero... É taça “shandiana”, termo tosco, mas que tem o que pode ter lavores de igual escola, mas mérito de deixar claro que Sterne é o pa- leva outro vinho”.1 triarca da família e que todos os livros da Nessas linhas que todos conhecem de escola “descendem” de Tristan Shandy. cor, Machado faz três coisas ao mesmo Em que consiste essa forma? A resposta, tempo: delimita uma família intelectual, mais uma vez, está na passagem citada. filia-se a essa família e define a forma que O que chama atenção nessa passagem, unifica os seus membros. em primeiro lugar, é a ostentação enfática Publicado na Revista Brasileira n.o 3, Fase VII, Abril-Maio-Junho de 1995, Ano I, pp. 59-82. 62 • Sergio Paulo Rouanet da subjetividade do autor, acentuada pelo Finalmente, o terceiro elemento é a pre- uso do pronome de primeira pessoa: eu, sença conjunta do riso e da melancolia. O Brás Cubas. Em segundo lugar, Brás define narrador é melancólico e dirige-se a leitores as características essenciais da forma: ela é melancólicos. Por isso o riso é necessário, difusa e livre. Em terceiro lugar, ele indica como um remédio contra a melancolia. O o tom de sua narrativa, ao mesmo tempo cômico é provocado pelo corte das cone- galhofeiro e melancólico. xões e pela excentricidade do narrador. As Com esses três elementos, Machado de expectativas habituais são postas fora de Assis não somente se autodefine como de- ação, e exprimimos nossa surpresa pelo fine a “família” de que ele se diz membro. riso. Rimos com o eleito de absurdo engen- Ele descreve a forma shandiana, que unifica drado pela ruptura dos vínculos lógicos e os escritores pertencentes a essa família. É temporais. Mas esse absurdo textual é o es- uma forma caracterizada (I) pela presença pelho de um mundo absurdo, e isto é triste. constante e caprichosa do narrador, (2) por Dá-se uma nova inversão, e o riso remete à uma técnica de composição descontínua, melancolia. livre das ligações lógicas e semânticas ha- Esses três elementos descrevem exaus- bituais e (3) pela interpretação do riso e da tivamente a forma do romance shandiano. melancolia. Mas descrever uma forma não é a mesma O primeiro elemento é a individualidade coisa que compreendê-la. Precisamos, para exacerbada do narrador, que se caracteri- isso, dar um conteúdo conceitual no shan- za pelo arbítrio e pelo capricho. Em parte, dismo. é o que Roberto Schwarz chamou de vo- Esse objetivo poderia ser alcançado se lubilidade. O narrador muda de posição a fosse possível subsumir os elementos for- todo momento, passa de uma opinião para mais do romance shandiano numa catego- outra, de um para outro sistema filosófico ria estética de maior poder explicativo. ou político, despreza as convenções narra- A meu ver, essa categoria é o barroco. tivas, dispõe discrecionariamente sobre as A forma shandiana é uma variedade do bar- sequências temporais, manejando a cro- roco literário, na conceituação que lhe deu nologia segundo seu bel-prazer, e se carac- Walter Benjamin,4 hipótese que permite dar teriza por sua intervenção ininterrupta na conta do romance shandiano em cada um narrativa, por sua onipotência, por seu po- dos seus elementos formais. der sobre as pessoas e sobre as coisas, por Isso se aplica aos autores shandianos em sua soberania com relação ao leitor, muitas geral, incluindo não só os mencionados por vezes também trazido à cena, num diálogo Machado de Assis como pelo menos dois simulado que no fundo mascara o caráter outros, Diderot e Jean-Paul Richter.5 Estou monológico e unilateral da relação. preparando um estudo de conjunto sobre O segundo elemento resultante da extre- todos esses autores. Neste artigo, entre- ma liberdade formal, que desfaz nexos lógicos tanto, só focalizarei o romance que serviu e sequenciais, é a segmentação da narrativa. de fio condutor para a descoberta daquela Ela é seccionada em fragmentos, principal- forma, Memórias póstumas de Brás Cubas. mente através da técnica da digressão. Através desse livro, tentarei examinar os Machado de Assis e a estética da fragmentação • 63 elementos formais do shandismo em sua sultão no harém das coisas”,6 reina sobre correlação com três características estrutu- a natureza, obrigando-a a significar. Seus rais do barroco, que especificarei a seguir. poderes podem violar a ordem natural do A primeira característica é a hipertrofia mundo, pois seu olhar é o da Medusa, que da subjetividade. É um dos traços mais for- mineraliza a vida, convertendo-a em objeto tes do barroco. Ela impregna as novas re- de saber, sua mão é a de Midas, que ale- lações sociais que emergiram da Reforma goriza o que toca, transformando tudo em luterana e coincidem com a ascensão da tudo. burguesia, gerando o individualismo mo- Reconhecemos essa subjetividade mons­ derno. Ela se manifesta na Contrarreforma, truosa: é a do narrador shandiano, exempli- sob a forma de uma reafirmação do centra- ficado em Brás Cubas. Ele tem o individu- lismo papal e de uma revalorização do mi- alismo caprichoso da burguesia periférica, lagre, ato de arbítrio voluntarista, pelo qual comportando-se segundo a regra exclusiva Deus sobrepõe-se às leis naturais. Revela-se, do arbítrio. Tem a onipotência de Deus, po- sobretudo, na teoria do Estado e na prática dendo até fazer milagres, como escrever de governo do Barroco. É o absolutismo, livros depois de morto. E é, sobretudo, um tanto nos estados nacionais já unificados soberano absoluto – entre suas ambições como nos despotismos locais da Alemanha. estava a de ser califa (639) – sentindo-se li- O príncipe pode se permitir todos os capri- vre, a esse título, de organizar sua narrativa chos, porque não está sujeito a nenhuma como bem entende, de desrespeitar todos lei. Daí a frequência da figura do tirano na os cânones estéticos e todas as normas da literatura barroca. lógica e da compostura, de fazer compa- Tudo isso tem um reflexo no plano inte- rações estapafúrdias, de citar corretamen- lectual, na figura do alegorista. Seu indivi- te, de citar incorretamente, de plagiar, de dualismo não conhece obstáculos, porque parodiar, de pilhar províncias intelectuais lê o mundo segundo uma chave que ele inteiras, como um tirano barroco saquea- procura diretamente nas bibliotecas, e não na autoridade de uma instituição mediado- va principados vizinhos, de classificar per- ra. É um autocrata, cujo poder vem de uma sonagens, de desclassificá-los, de julgá-los investidura mais alta, a do saber obtido pela com sentenças irrecorríveis, e de investi-las ruminação, pelo Grübeln. O alegorista do- com significações imutáveis, construindo mina o mundo através das significações, uma Virgília como alegoria do “eterno fe- como o príncipe através do aparelho de minino”, um Lobo Neves como alegoria do Estado. O alegorista tem o poder de fazer oportunismo, e a si próprio, Brás Cubas, qualquer coisa criada significar qualquer como alegoria da veleidade. outra. Cada criatura, cada objeto, podem Brás Cubas é o mais inconstante e ca- ser privados de sua vida própria pelo alego- prichoso de todos os defuntos autores. Ele rista, tornam-se coisas mortas, vazias, que dispõe sobre o tempo – o nosso e o da ação. o alegorista preenche com significações ar- Assim, depois de ter hesitado se “devia bitrárias. O príncipe reina sobre os súditos abrir estas memórias pelo princípio ou pelo obrigando-os a agir, e o alegorista, “negro fim”, isto é, se poria em primeiro lugar seu 64 • Sergio Paulo Rouanet nascimento ou sua morte, decide – caprichos a de que os epitáfios exprimem o secreto de defunto – começar por seu óbito (513). egoísmo que induz o homem a arrancar à Como bom narrador shandiano, Brás morte um farrapo ao menos da sombra que tem opiniões sobre tudo. Ideias fixas? Deus passou (635). Em suma, como diz Roberto te livre, leitor, de ideias fixas. Foi uma ideia Schwarz. Brás não fica igual a si mesmo por fixa que matou Cavour (516). A seu ver, mais de um parágrafo, mudando de assun- os joalheiros são indispensáveis ao amor, e to, opinião ou estilo a cada frase. Ele vai a mais bela testa do mundo não fica me- do estilo comercial ao bíblico, do épico ao nos bela se cingir um diadema (536). Brás intimista, recorre ao aforismo e à charada. acha que os homens são escravizados pela O saber é para ele objeto de consumo sun­ opinião (546). Esta, aliás, é uma boa solda tuário. A cultura universal é uma caverna de das instituições sociais, como o casamen- Ali Babá da qual ele vai retirando joias, ao to (612). E não pensem que ele não leu acaso, e que ele põe de lado, com enfado. Pascal. Não só o leu como discorda dele, Nos primeiros oito capítulos ele cita mais de pois acha que o homem não é um caniço trinta homens ilustres. Foi para sua fruição, pensante e sim uma errata pensante, vis- deleite e ostentação que a humanidade to que cada estação da vida é uma edição agiu e pensou, desde a origem dos tempos. que corrige as anteriores (549). De Pascal O efeito que ele busca é um só, a satisfação ele passa a um par de botas: haveria prazer do capricho. que se compare ao de descalçar uma bota Brás é senhor absoluto do jogo narrati- apertada? (556) Das botas, só há um pas- vo. Ele tem o seu método – “sem gravata e so até Aristóteles, que não percebeu uma suspensórios” (525) – e não dá satisfações coisa que Brás descobriu, a solidariedade a ninguém sobre as razões que o levaram do aborrecimento humano (560). E a ponta a escolher esse método. Às vezes hesita se do nariz? Contemplando seu nariz; o ho- deve escrever ou suprimir um capítulo, mas mem toma consciência de sua grandeza e são diálogos consigo mesmo, que confir- dignidade (565). A consciência mora? Um mam a regra do arbítrio, Começa um ca- sistema de janelas que se abrem enquanto pítulo dizendo que seria melhor suprimir o outras fecham (567). Mas vamos ao tema capítulo anterior, e não suprime nada (584). mais palpitante da indiscrição das mulheres. Acha que a geologia moral de Lobos Neves Brás discorda da tese de que elas são mais mereceria um capítulo, mas decide não o indiscretas que os homens (623-624). Tema escrever, e não o escreve mesmo. Excita-se palpitante, sim, mas rasteiro. Subamos de imaginando a nudez de Nhã-Loló, e logo se novo ao céu da filosofia – por exemplo, a arrepende: “Estou com vontade de suprimir filosofia de Helvétius. Ele tinha razão em este capítulo.” Suprime, não suprime? Sim, dizer que o interesse é a mola fundamen- eis a palavra final: “Decididamente supri- tal da psicologia humana. Sim, mas há que mo este capítulo.” E decididamente, não distinguir entre o interesse cerebral e o vis- o suprime (604). Caprichos de um déspota ceral (624). E saibam que ele, Brás, é capaz das Mil e Uma Noites, que negaceia, brinca de ideias profundas, que poderiam ter saí- com alternativas e virtualidades, poderia fa- do de Salomão ou de Schopenhauer, como zer o que não faz e abster-se do que acaba Machado de Assis e a estética da fragmentação • 65 fazendo, e que ao fim e ao cabo só faz ou é a adulação com que o pai brindava o filho deixa de fazer o que entende. insuportável: “ah! brejeiro! ah! brejeiro!” A soberania do narrador se manifesta (531). Mais frequentemente, o leitor rece- com especial clareza em sua relação com be ordens do narrador, como se faz a uma o leitor, percorrendo toda a gama de varia- criança indisciplinada. “Veja o leitor a com- ções do sadismo, desde a deferência apa- paração que melhor lhe quadrar e não este- rente, que alimenta a ilusão da reciprocida- ja aí a torcer-me o nariz, só porque não che- de, até a agressão aberta, em que o vínculo gamos à parte narrativa destas memórias” senhor-escravo aparece sem disfarce. (516). É a mesma atitude do narrador com A deferência irônica aparece em expres- a “alma sensível”, tão malcriada que chama sões como “fino leitor” (513), “amado lei- de cínica uma pessoa mais velha. “Retira, tor” (565), “leitor pacato” (603). O narra- pois, a expressão, alma sensível, castiga os dor dá impressão de respeitar o julgamento nervos, limpa os óculos” (555). Não torças do leitor, de tratá-lo como adulto, capaz de o nariz, não digas nomes feios, não faças ter opiniões próprias e descobrir sozinho cenas, limpa os óculos – o narrador não nos coisas apenas insinuadas. “Vou expor-lhe deixa outro recurso senão ficarmos amua- sumariamente o caso. Julgue-o por si mes- dos a um canto, chupando o dedo. mo” (514). Um tio cônego de Brás contes- Como os outros narradores shandianos, tava a legitimidade do amor da glória, um Brás finge tratar o leitor de igual para igual. tio oficial a exalta, e Brás oferece ao leitor o O leitor é convidado a espantar-se com as direito de escolher entre as duas opiniões: mesmas coisas que espantaram Brás – “eu “Decida o leitor entre o militar e o cône- fiquei como há de estar o leitor, um pou- go” (515). Chega ao extremo de atribuir ao co assombrado” (593) – a confessar sua leitor reflexões inteligentes que ele não fez perplexidade diante das mesmas situações (603). O leitor parece ter tanta autonomia – “uma coisa que não podereis entender, que é convidado a cooperar com o autor, como eu não entendi” (609) – e a manifes- preenchendo as lacunas. O capítulo LIII não tar as mesmas curiosidades – “a curiosida- tem título (569), o capítulo LV não tem tex- de estava aguçada, como deve estar a do to (570): tem a bondade, arguto leitor, de leitor” (568). inventar o texto e o título. Mas essa conivência é falsa. Não há É uma deferência ilusória. Brás não tra- igualdade nenhuma. Quando muito, é a ta o leitor como verdadeiro adulto, apesar igualdade retórica do pregador sacro, cujas das fórmulas com que ele parece seguir o orações fúnebres amortalham príncipes preceito kantiano de reconhecer no outro a e súditos numa mortalidade comum. Não capacidade de pensar e decidir por si mes- somente essa igualdade dos cemitérios não mo. Na verdade, a atitude é inversa. O lei- elimina as desigualdades reais, como nem tor é infantilizado, e se às vezes parece ser sequer ela é verdadeira, para Brás Cubas, livre de fazer o que quiser é o mesmo tipo porque para ele a morte, em vez de humi- de liberdade que o velho Cubas concedia lhá-lo com a consciência de uma corruptibi- ao menino mimado: o de comer um doce lidade corporal partilhada por todos, eleva- (530-531). O leitor é às vezes adulado, mas -o à soberania, criando uma diferença de 66 • Sergio Paulo Rouanet natureza entre ele e os outros. Era o Brás Memórias. “Creio que o leitor prefere a vivo que podia repartir com o leitor interes- anedota à reflexão, como os outros leitores, ses e perplexidades. Agora, na morte, em seus confrades” (516). Por isso Brás lava as que ele acede à vida verdadeira, a do narra- mãos, transferindo ao leitor a responsabili- dor shandiano, a barreira se torna intrans- dade pelas deficiências da obra. É a síntese ponível. Esse Brás imortal porque morto do seu desprezo de soberano. “O maior de- pode ser tão afável com os inferiores como feito deste livro és tu, leitor” (583). um rei-cidadão, mas atrás da bonomia exis- A segunda característica estrutural do te a arrogância: “Senhores vivos, não há Barroco é a fragmentação. Ela se manifesta nada tão incomensurável como o desdém em sua visão da história, vista como uma dos finados” (546). Os leitores são postos acumulação de ruínas. A ruína é o fragmen- em seus lugares. É para eles, os vivos, que to morto que sobrou do palácio, como a ca- se dirige o incomensurável desdém do nar- veira, objeto privilegiado da contemplação rador. alegórica, é o fragmento morto que sobrou Quando afasta seus disfarces, Brás tem do vivo. Nisso, a história alegórica, a serviço uma truculência que não recua diante da do fragmentário, se distingue da simbólica, agressão física. Ele pode castigar os leito- que vê o mundo como totalidade luminosa, res com um simples piparote – “se a obra transfigurada pela luz da redenção. não te agradar, pago-te com um piparote” O culto do fragmento morto tinha um (513) – ou ameaçá-los de morte, com um fundamento histórico. Durante a guerra humorismo de carroceiro, que não escon- dos trinta anos, as cidades se transforma- de a intenção homicida – “Eu, cínico, alma vam realmente em ruínas, e os suplícios fí- sensível?... Esta injúria mereceria ser lavada sicos despedaçavam os corpos. Sobre esse com sangue” (555). Brás se permite todos fundamento, o Barroco erigiu uma cultura os insultos. “Leitor obtuso, isto prova que do fragmento. nunca entraste no cérebro de um chape- Foi, em geral, o caso do seu ideal cog- leiro” (565). Mas o leitor não é somente nitivo. Ele era aditivo: acumulação de frag- burro, é também distraído: “Se esse mundo mentos. Cada livro pode ser visto como um não fosse uma legião de espíritos desaten- fragmento, e por isso a biblioteca é o edi- tos, era escusado lembrar ao leitor que eu fício barroco por excelência, abrigando um só afirmo certas leis, quando as possuo de- conjunto infinitamente extensível de frag- veras” (604). E ele não é só desatento, é mentos de saber, o que leva Benjamin a di- também ignorante. “Leitor ignaro, se não zer que “a Renascença explorava o mundo guardas as carta de juventude, não conhe- e o Barroco, as bibliotecas”.7 cerás um dia a filosofia das folhas velhas” A teoria barroca da linguagem faz das (614). Com leitores tão incompetentes, palavras fragmentos autônomos. Por sua como se pode querer que o livro seja bom? vez as palavras são desmembradas em síla- Eles não percebem que a grandeza da obra bas, que se convertem em novos fragmen- está no método escolhido pelo autor, e fi- tos. Como anagramas, como sons onoma- cam exigindo uma narrativa fluente, preju- topaicos, as palavras passam a significar dicando com isso a qualidade estética das por si mesmas, fora de qualquer contexto Machado de Assis e a estética da fragmentação • 67 lógico. Cortados os nexos, as palavras se desses materiais, uma ars inveniendi que evadem da frase, autonomizando-se. Foi o consiste na paciente e engenhosa combi- Barroco que introduziu as maiúsculas nos nação de fragmentos. Os escritores não substantivos alemães, o que correspondia à querem esconder essa atividade, pois se or- necessidade de ostentação da época, mas gulham dela e querem deixar plenamente dramatizava, sobretudo, o caráter autárqui- visível o princípio de composição da obra e co de cada palavra, separada das outras por o fato de que foram eles que juntaram os letras altas como muralhas. fragmentos. É o que explica, diz Benjamin, A estética barroca é a do fragmento. “a ostentação construtivista, que principal- Como diz Benjamin, “o que jaz em ruínas, mente em Calderón aparece como uma pa- o fragmento significativo: essa é a matéria rede de alvenaria, num prédio que perdeu mais nobre da criação literária: Pois é co- o reboco”.9 mum a todas as obras literárias desse perío- De novo, estamos em terreno familiar. do acumular incessantemente fragmentos, Essa estética do fragmento é a da forma sem objetivo rigoroso.”8 shandiana, que podemos observar em sua As cenas de crueldade da literatura bar- plenitude em Memórias póstumas. roca, cujo ponto culminante é sempre a O livro é construído pela infinita cola- fragmentação do cadáver, estão ligadas a gem de fragmentos. Brás Cubas usa e re- essa estética. É preciso lembrar que o Bar- cicla, como um consciencioso bricoleur bar- roco foi a época da dissecação, em que se roco, fragmentos alheios, obras clássicas da supunha que o segredo do corpo vivo po- literatura universal, “biblioteca imaginária” deria ser revelado pelo esquartejamento do que como todo autor shandiano ele saqueia cadáver. A prática da dissecação entrou nos sem pudor. Mas além disso, ele produz seus livros de heráldica e de emblemática. O leão próprios fragmentos, cortando em pedaços é literalmente despedaçado pelos heraldis- as frases e os relatos, como o anatomista tas: a cabeça, o peito e a parte dianteira faz com o corpo no quadro de Rembrandt. significam generosidade e valentia, a parte Em alguns casos, os fragmentos são traseira significa a força e a cólera. O corpo produzidos pela ruptura da sintaxe. As pala- humano só pode ser aproveitado na emble- vras se acumulam como fragmentos soltos, mática depois de dividido em fragmentos. sem formarem frases, blocos autossuficien- Mas a fragmentação entrou, sobretudo, na tes, superpostos e justapostos como fardos lírica e no drama. Lohenstein celebrou os num armazém, aguardando o momento sofrimentos de Cristo em estrofes ordena- de serem usados. Machado usa para isso o das de acordo com os membros do corpo termo exato: inventário. Ele corresponde ao humano. O mesmo acontece com Gryphius ideal de armazenamento do Barroco. Pen- e vários outros dramaturgos barrocos. se-se no capítulo XLV, intitulado “Notas”, Por isso a literatura barroca é uma lite- rol de itens em torno de um objeto muito ratura da montagem. Os escritores produ- barroco, um cadáver: “Soluços, lágrimas, zem fragmentos ou os extraem de outras casa armada, veludo preto nos portais, um obras, reciclando-os e ordenando-os num homem que veio vestir o cadáver, caixão, novo todo. A criação é o aproveitamento essa, tocheiros, convites...” (562) 68 • Sergio Paulo Rouanet

Mas em geral é o fluxo narrativo que mais curto, o zigue-zague. O narrador mul- é fragmentado. É o papel das digressões. tiplica as alusões a esse método. Desde o Cada digressão cinde a narrativa principal início, afirma que “o livro é escrito com pa- em dois fragmentos e constitui por sua vez chorra” (516), atributo central da família de um fragmento. Como as digressões são in- autores a que se filia Machado, que nunca finitas, o processo de fracionamento é pro- têm pressa de chegar, e preferindo bifurcar priamente interminável. nas duas vias que se abrem em cada cruza- Como os demais livros shandianos, Me- mento. “Jumento de uma figa, cortaste-me mórias póstumas usa três tipos de digres- o fio às reflexões” (543). É o episódio do são: o que chamarei digressões construti- almocreve, que como todas as digressões vas, comentários autorreferentes que têm tem efeito de “cortar o fio”. como objeto a construção do próprio livro; Mas que discurso é esse, que vai aos digressões narrativas, relatos paralelos in- trancos, que anda em círculos, que volta ao tercalados na história principal; e digressões ponto de partida, que se interrompe a cada opinativas, em que o narrador expõe suas instante? Machado usa uma metáfora que ideias e teorias. teria agradado a Barthes: a do discurso amo- Nas digressões construtivas, Machado roso. “Que melhor não fora dizer as coisas de Assis dá corpo a uma das grandes obses- lisamente, sem todos esses solavancos! Já sões barrocas, a exibição dos andaimes da comparei meu estilo ao andar dos ébrios. obra, da sua forma de composição. Se a ideia vos parece indecorosa, direi que Entre as digressões construtivas, o tipo ele é o que eram as minhas refeições com mais curioso é a digressão sobre a digres- Virgília, na casinha da Gamboa, onde às ve- são, em que o autor shandiano reflete sobre zes fazíamos a nossa patuscada, nosso lun- o método digressivo em si, como princípio cheon. Vinho, fruta, compota. Comíamos, geral de construção do livro. O modelo, é verdade, mas era um comer virgulado da como sempre, está em Sterne, que dedica palavrinhas doces, de criancices, de olhares digressões e digressões a justificar a técnica termos, uma infinidade desses apartes do digressiva.10 coração, aliás o verdadeiro, o ininterrupto Consequentemente, a digressão sobre discurso do amor” (584). a digressão não podia faltar em Memórias Admirável metáfora, que ilustra perfeita- póstumas. As numerosas reflexões de Brás mente o cruzamento da narrativa principal, Cubas sobre o “método” do livro são em mero substrato material do livro, com as di- geral alusões ao essencial desse método, gressões, onde se esconde sua essência. A a digressão. “Que isto de método, sendo, primeira tem seu fluxo normal, codificado como é, uma coisa indispensável, todavia pelo uso – vinho, fruta, compota. Mas o flu- é melhor tê-lo sem gravata nem suspensó- xo é “virgulado” por apartes, que o cortam, rios, mas um pouco à fresca e à solta, como e que em seu caráter intermitente constitui a quem não se lhe dá da vizinha fronteira verdadeira linha reta do coração, discurso in- nem do inspetor do quarteirão” (525). Es- terruptor e ele próprio feito de interrupções, tilo de ébrio, roupa em desalinho e indife- fala transgressiva e digressiva de Eros cortan- rença às más, línguas, seguindo o caminho do as conexões costuradas por Logos. Machado de Assis e a estética da fragmentação • 69

Mas além dessas digressões sobre a pró- enfático. Sejamos simples” (546). Não gosta pria digressão, Brás Cubas não poupa as de dizer coisas escabrosas, porque, afinal, digressões sobre o livro em si, seu valor, o seu livro é casto, ao menos na intenção – na modo de sua estruturação. Como seus mo- intenção é castíssimo (533). Insinua as várias delos shandianos, diverte-se fazendo auto­ ligações amorosas que teve antes de amar elogios irônicos. O livro, composto segundo Virgília, mas só autoriza a pena a entrar em “um processo extraordinário” (513), era sua alcova depois que ela se purifique moral- “supinamente filosófico” (516). E que talen- mente. “Pena de maus costumes, ata uma to artístico! “Vejam agora com que destreza, gravata ao estilo, veste-lhe um colete menos com que arte faço eu a maior transição des- sórdido, e depois sim, depois vem comigo” te livro... Nenhuma juntura aparente, nada (564). Excita-se com a nudez adivinhada de que divirta a atenção pausada do leitor.” Nhã-Loló, mas acha o “declive perigoso” e (525) Mas também faz autocríticas. O livro decide suprimir o capítulo (604). era “enfadonho, cheirava a sepulcro, trazia Essencial ao processo de composição é certa contração cadavérica” (583). Auto-­ o conteúdo e ordenamento dos capítulos, elogios e autocríticas se multiplicam nos jul- e também aqui o narrador explica suas es- gamentos que o autor vai fazendo sobre os colhas e deixa manifesto o trabalho cons- vários capítulos. Um capítulo era profundo, trutivo. Para evitar ao leitor um forte abalo, e tinha escapado a Aristóteles (560). Outro prejudicial ao efeito do livro, insere um ca- tem um belo final: “Vive Deus! eis um bom pítulo, cujo caráter digressivo já é revelado fecho de capítulo” (604). De um capítulo ele pelo próprio título – “Vá de intermédio” – diz que é triste (545), de outro que não era com o fim expresso de fazer uma transição sério (624), de outro que era inútil (626), de entre o retrato psicológico de Lobo Neves outro que era repetitivo (631). Em todos os e a morte de Nhã-Loló (620-621). Em ou- momentos, Brás Cubas faz questão de lem- tro capítulo, cuja função digressiva também brar que o livro é um artefato, cujo processo é revelada pelo título – “Para intercalar no de produção ele convida o leitor a acompa- capítulo CXXIX” – ele faz reflexões que se- nhar, etapa por etapa. O tom é dado desde o gundo ele caberiam melhor no capítulo an- prefácio, em que o narrador explica a forma terior (623). livre e difusa do livro, e em que faz conside- O livro é uma oficina de vidro, em cujo rações sobre os prólogos em geral, afirman- interior o artífice vai martelando, limando, do que o melhor formato era o que ele tinha forjando junturas, escolhendo e refugando escolhido, o prólogo que diz poucas coisas materiais, corrigindo a obra, começando e as diz de um modo confuso e truncado de novo. Se o vidro não for suficientemen- (513). A todo instante, explica suas preferên- te transparente, o narrador não duvida em cias como escritor. Ele gosta de ser sucinto e esclarecer pormenores de composição, es- policia-se para evitar prolixidades. “Às vezes, crevendo cartas aos críticos, por exemplo. esqueço-me a escrever e a pena vai comen- “Valha-me Deus! é preciso explicar tudo” do o papel, com grave prejuízo meu, que sou (627). autor” (544). Detesta a ênfase, cultiva a sim- Quanto às digressões narrativas, a histó- plicidade. “Ui! lá me ia a escorregar para o ria de Quincas Borba talvez seja o equivalente 70 • Sergio Paulo Rouanet mais próximo das grandes narrativas pa- dois “vícios”, no melhor estilo de Molière: ralelas que atravessam Tristam Shaldy (os o da hipocrisia, em que o tartufismo fica amores do tio Toby) e Viagens na minha por conta de Virgília, que adula o velho na terra (os amores de Joaninha e Carlos). esperança de herdar, e o da avareza, ilustra- Cada episódio dessa narrativa paralela é um do pelo Harpagão moribundo, que discute fragmento encravado na narrativa princi- o preço de um terreno até o momento da pal e uma cunha que por sua vez secciona morte (596-597). essa narrativa em outros fragmentos. Mas O terceiro grupo de digressões, as opi- além da história de Quincas Borba, há pe- nativas, já foi examinado antes: são aquelas quenas narrativas, historietas de moralista, em que o narrador multiplica suas opiniões contendo ensinamentos ou ilustrando tra- sobre absolutamente tudo, desde a impor- ços de caráter, vinhetas breves sob a forma tância da ponta do nariz até a felicidade de apólogos, de contes moraux, no estilo vista como um par de botas. Observe-se de Marmontel, e que constituem fragmen- apenas que várias dessas digressões con- tos completos. É o caso, entre muitos ou- têm temas tipicamente barrocos. Entre eles, tros, do capítulo sobre o capitão-poeta, que aparece o topos do livro do mundo, leitura compõe poemas enquanto a mulher ago- favorita do alegorista, mas através de uma niza (539-541), do episódio do almocreve, inversão ela mesma barroca, em que os pró- conto pedagógico, de moralidade equívoca prios leitores são comparados a livros: so- (542-543), ou do negro Prudêncio, que se mos livros de letra grande, de fácil leitura, vingava das pancadas recebidas na infância diz Machado (544). Aliás nossa vida é em chicoteando outros negros (581-582). Essa si um livro, que vai sendo atualizado em su- digressão narrativa tem como fecho outra cessivas edições, até a última, que o diretor digressão narrativa, sobre o doido Romu- dá de presente aos vermes (549). aldo que de tanto tomar tártaro tinha se É evidente que toda essa riqueza de di- transformado em Tamerlão, rei dos tártaros gressões vai produzir uma fragmentação ex- (582). Entre esses contos há verdadeiras fá- trema. Se nos dermos ao trabalho de exami- bulas, a que não faltam sequer animais para nar apenas o final do livro – digamos, as 14 termos a ilusão de estarmos lendo Fedro ou últimas páginas, na edição Aguillar – conta- La Fontaine – a fábula da borboleta preta, remos nada menos de 15 fragmentos, cons- na Tijuca (552-553), a da luta entre a mos- tituídos pelos pedaços da narrativa principal ca e a formiga (607), a da briga de galos desmembrada por digressões construtivas, (618), a dos dois cães disputando um osso narrativas e opinativas, e por essas mesmas (629-629). Entre as digressões narrativas, digressões, vistas como fragmentos. há muitas que traem a origem barroca da A terceira característica estrutural é a forma shandiana, pois são puramente ale- dialética da melancolia e do riso. góricas. São os “contos” do velho diabo, A melancolia é a doença do barroco. É sentado entre dois sacos, o da vida e o da a doença da época como um todo, porque morte, a tirar as moedas da vida para dá-las mais que nenhum outro esse período histó- à morte: outra de menos... outra de me- rico foi o cenário da violência, do sofrimen- nos... (569), e o do velho Viegas, ilustrando to físico, do luto. A melancolia é a doença Machado de Assis e a estética da fragmentação • 71 do príncipe, porque mais que os homens pelos habitantes de Abdera a examinar o comuns ele está sujeito à morte súbita, na filósofo Demócrito, que parecia ter enlou- guerra ou no atentado, e portanto mais quecido, pois ria-se de tudo. Hipócrates en- que os outros, simboliza a miséria da con- contra Demócrito sentado debaixo de uma dição humana, a mortalidade da criatura. E árvore, com vários animais esquartejados também a doença do alegorista, porque a ao redor, e rindo muito. O filósofo explicava meditação alegórica é própria do enlutado. que estava dissecando os animais na espe- É a doença, em geral, do homem da Re- rança de encontrar a localização anatômica forma, entregue exclusivamente à fé, sem da bílis, a fim de curar a melancolia. En- qualquer possibilidade de justificação pelas quanto isso não acontecia, o riso lhe parecia obras, sem qualquer garantia de salvação. o melhor remédio para curar a melancolia Mas não é somente a história que pro- e a loucura dela resultante, e por isso ele voca a melancolia. Ela é explicada fisiologi- próprio, para premunir-se, ria sem cessar.11 camente. O melancólico, segundo a teoria Mas nessa anedota o papel do riso é dos humores, tem uma predominância ex- ambíguo. Hipócrates acaba concordando cessiva da bílis negra, a bilis innaturalis, ou em que o riso é um remédio contra a me- atra, em contraste com a bilis naturalis, ou lancolia e a loucura. Mas para os habitantes candida. O melancólico é invejoso, triste, da Abdera, a relação era inversa. O riso não avaro, ganancioso, desleal, medroso e de era um medicamento e sim um sintoma de cor terrosa. E é explicada pela astrologia. O loucura. melancólico é regido pelo planeta Saturno. Essa dupla visão do riso, em que ele Saturno é um planeta seco e pesado, e por aparece como um princípio sadio, capaz de isso predispõe para o utilitarismo, para o combater a disposição melancólica, e como ganho, para o cultivo do solo, para a vida algo de ameaçador, se manteve no Barroco. sedentária. Mas Saturno é também o pla- Por um lado a alegria e o riso são vistos neta mais elevado, mais longínquo, e por como positivos, necessários para temperar a isso pode produzir homens contemplativos, tristeza e as lágrimas. A alegria e a tristeza alheios a qualquer atividade terrena, e com nasceram de Adão e Eva. Nunca houve nin- inclinação para as longas viagens. Saturno guém tão triste como Adão, nem tão alegre é portanto o planeta das antíteses, como é quanto Eva. O riso de Eva se impõe para con- de resto o caso do personagem mitológico trabalançar, no homem normal, a tristeza de que deu nome ao planeta, por um lado o Adão, produzindo o equilíbrio da alma. Há senhor da Idade do Ouro, e por outro um um diálogo de Filidor em que esse lado po- deus triste, destronado e humilhado. sitivo da alegria se manifesta de modo mais De todas essa concepções da melanco- violento, como uma verdadeira guerra entre lia, só a baseada na fisiologia dos humores dois humores inimigos. A Alegria não busca a oferece alguma esperança para o enfermo. conciliação, mas a destruição do adversário. Desde a Antiguidade, o riso foi visto como “Quem é essa marmota”, pergunta a Ale- antídoto contra o excesso de bílis negra. Há gria, “deitada ao lado desse galho ressequi- uma carta apócrifa de Hipócrates, na qual do? Seus olhos vermelhos lampejam como o célebre médico conta ter sido chamado um cometa ensanguentado, irradiando 72 • Sergio Paulo Rouanet destruição e terror... Reconheço-te agora, vimos, o amor pelas viagens. Ora, como Melancolia, inimiga dos meus prazeres, ge- diz Machado, “toda essa gente viajou”, ou rada nas mandíbulas do Tártaro, pelo cão em sua terra, ou na terra dos outros, ou em tricéfalo”.12 torno do seu quarto, ou em torno da vida Mas por outro lado, o riso tem um lado (512). E em todos, a intenção principal é a inquietante. É o que se verifica no teatro, produção do efeito cômico. quando o Trauerspiel, evocando o luto, é Brás Cubas é um tirano, e por isso é infiltrado pelo Lustspiel, que se destina a melancólico, porque a melancolia é a en- evocar o riso. O riso passa agora a funcio- fermidade do príncipe, mas é também um nar principalmente em sua dimensão amea­ palhaço, e por isso é jovial, porque a alegria çadora. O cômico deixa de ser o antídoto é o ofício do bufão. do luto. Pelo contrário, ele se torna o lado Sua tirania é ilustrada não somente pela interno do luto. O príncipe representa o prepotência com que o menino quebra a luto. Seu conselheiro desleal, o intigrante, é cabeça de escravas (526) e na maneira des- cômico, mas também terrível. Ele funde os denhosa com que o adulto trata os perso- dois afetos. Ele inspira horror e riso, como nagens subalternos, como Eugênia, a “flor acontece com um personagem que cai, da moita” (551-556), como na própria es- horrorizando o adulto e fazendo a criança trutura formal da narrativa, em que ele se rir. Ele inspira o luto porque é agente da comporta, como vimos, como um soberano fatalidade, na medida em que conspira e absoluto. É exatamente por isso que Brás é atenta contra a vida do príncipe. E é um melancólico, porque percebe que sua digni- personagem cômico, pois descende do an- dade hierárquica não o salva das vicissitudes tigo palhaço do Lustpiel. Mas até isso refor- do destino, dos decretos da nossa condição ça, de outro ângulo, o lado demoníaco do mortal. intrigante, já que o palhaço não é apenas Mas o narrador é também um palha- cômico, pois guarda traços do diabo no ço, que escreve um livro humorístico espe- espetáculo popular. “Se o luto do príncipe cialmente para nos fazer rir. Sua verdadeira e a alegria do conselheiro se aproximam vocação é circense. Eis como ele descreve tanto, é porque, em última análise, as duas o aparecimento de sua ideia fixa. “Um dia emoções representam as duas províncias de manhã, estando a passear na chácara, do império de Satã. E o luto... aparece de pendurou-se-me uma ideia no trapézio que repente, em todo o seu desamparo, como eu tinha no cérebro. Uma vez pendurada, algo de não totalmente sem esperança, em entrou a bracejar, a pernear, a fazer as mais comparação com a alegria cruel atrás da arrojadas cabriolas de volatim que é possível qual transparece, sem qualquer distorção, a crer. Eu deixei-me estar a contemplá-la. Sú- alegria do demônio.”13 bito, deu um grande salto, estendeu os bra- Reconhecemos nessa alternância barro- ços e as pernas, até tomar a forma de um X: ca da alegria e do luto a conjunção shandia- decifra-me ou devoro-te. Essa ideia era nada na da melancolia e do riso. Todos os narra- menos que a invenção de um medicamento dores shandianos são melancólicos, doença sublime, destinado a aliviar a nossa melan- que aliás tem entre seus sintomas, como cólica humanidade” (514-515). A descrição Machado de Assis e a estética da fragmentação • 73 não deixa dúvida. A invenção não era subli- A melancolia se revela na morbidez que me, mas burlesca, simples veleidade de sal- atravessa todo o livro e até em seu ritmo, timbanco, uma ideia tão cômica que acabou que o método digressivo condena à lenti- matando o inventor com uma morte ridícula, dão. O passo vagaroso e compassado, imi- indigna de um príncipe – cujo destino é o ve- tando o andar das procissões barrocas, é neno e o punhal – mas apropriada para um característico da melancolia. mero palhaço: um golpe de ar. Quanto à dimensão cômica, Memórias Se quiséssemos ficar fiéis à descrição póstumas tem as duas faces do riso barro- benjaminiana do Barroco, poderíamos dizer co, a medicinal, que purga o organismo da que Brás Cubas sintetiza esses dois papéis melancolia, e a diabólica, sinal de loucura antagônicos assumindo a figura do inti- e ameaça que ronda o homem. O humor grante, que está a meio caminho entre o é um remédio contra a melancolia, e nesse príncipe e o palhaço e participa tanto da sentido é um substituto do emplasto que natureza do luto como do cômico. Brás não chegou a inventar. Mas não falta, Mas talvez Brás Cubas fosse, simples- também, o riso como sintoma de loucura, mente, um saturnino, regido pelo planeta que é a gargalhada de Brás agonizante, no das antíteses, o que bastaria para explicar a episódio do delírio, quando Pandora lhe dualidade do seu caráter. Saturno aparece mostra as calamidades do mundo: “Não duas vezes no livro. Numa, Brás começa a sei por que lei de transtorno cerebral... eu cansar-se de Virgília, e observa uma mosca me pus a rir, de um riso descompassado e e uma formiga engalfinhadas: que impor- idiota” (523). A gargalhada satânica fica tância podia ter tudo isso para Saturno, o por conta da mesma figura, a Natureza, ela mais remoto dos planetas? (607). Em ou- própria uma clara alegoria barroca: “A figu- tra, ele comenta o espetáculo dos amores ra soltou uma gargalhada, que produziu em que se sucedem, efêmeros todos, todos torno de nós o efeito de um tufão; as plan- condenados ao esquecimento, ao Oblivion, tas torceram-se e um longo gemido que- e observa que tudo isso deve ter como úni- brou a mudez das coisas externas” (521). co fim divertir o planeta Saturno, que anda Mas é característico da forma shandia- muito aborrecido (625). Nos dois casos, Sa- na, levada à perfeição por Machado de As- turno é convocado para ilustrar o grande sis, que todas essas distinções se dissolvem tema da meditação melancólica, a transi- no interior da obra. A melancolia e o riso se toriedade das coisas e das emoções huma- fundem, e o riso é as duas coisas, libertação nas. Mas em ambos, esse tema é tratado e catástrofe. O riso é uma panaceia contra com humor negro: o fim próximo dos amo- os humores melancólicos. Mas se a melan- res de Brás e Virgília é ilustrado pela briga colia é combatida pelo riso, este é por sua de dois insetos, e a fugacidade da vida é vez melancólico, porque sabe que a vitória um espetáculo montado para divertir um final cabe à melancolia. A melancolia triun- astro – para fazê-lo rir. fa, no final, não porque a morte de Brás Em todo caso, se Memórias póstumas tenha impedido a produção do emplasto são uma mistura de melancolia e riso, é por- antimelancólico, mas porque a ideia de fa- que são escritas por esse narrador bifronte. bricar esse medicamento é em si mesma 74 • Sergio Paulo Rouanet uma simples pirueta de trapezista, que nun- Brás descobre que a melancolia pode ser ca ameaçará realmente o reinado da me- prazerosa. “Apertava ao peito a minha dor lancolia. O que não impede Brás Cubas de taciturna, com uma sensação única, uma revesti-la com os guisos de Yorick, porque coisa a que poderia chamar a volúpia do se o destino do homem é a melancolia, sua aborrecimento” (546). Volúpia, de resto, é dignidade está em rir, mesmo em face da o que Pandora promete a Brás ao lhe anun- morte, até a cambalhota final. ciar a morte, objeto último da ruminação É assim que precisamos tratar o terceiro do melancólico: “grande lascivo, espera-te elemento formal do shandismo, como uma a voluptuosidade do nada” (522). mistura indissociável de melancolia e riso,14 É por isso que o riso em Memórias pós- seguindo a pista dada pelo próprio autor: tumas nunca anda longe da morte. Ela é “escrevi-o (o livro) com a pena da galhofa tratada histrionicamente. A morte está no e a tinta da melancolia” (513). No prólogo, próprio título, mas de um modo galhofeiro. Machado de Assis diz que o livro parece “ri- Com efeito, o livro não é póstumo por ter sonho”, mas tem “um sentimento amargo sido publicado depois da morte do autor, e áspero” (512). O contraste reaparece ao como as Mémoires d’autre-tombe, de Cha- longo do livro, escrito com uma filosofia de- teaubriand, cujo título Machado parodia. sigual, “agora austera, logo brincalhona” Não haveria nenhum humor nisso. O livro é (516). póstumo por ter sido escrito por um morto, Essa indissociabilidade dos dois humores uma inversão da ordem natural das coisas é a principal razão de ser do livro. Ele existe que poderia excitar pavor, se fosse um livro por causa da melancolia, porque foi o dese- de assombração, mas se toma cômica pela jo de curá-la que matou Brás, e sem a morte objetividade quase científica com que Brás a não haveria livro. E existe por causa do riso, anuncia: “Evito contar o processo extraordi- porque foi para nos fazer rir que o autor nário que empreguei na composição dessas compôs sua obra, pois sem riso ficaríamos memórias, trabalhadas cá no outro mundo” “eternamente hipocondríacos” (639). (513). O efeito cômico surge da despropor- O par melancolia-alegria reaparece em ção entre a enormidade do fenômeno e a vários trechos do livro. Brás olha a mãe sobriedade da descrição. O que Brás consi- agonizante como um melancólico clássico dera extraordinário é o processo usado para se relaciona com a morte: vendo-a, alego- compor a obra, como se se tratasse apenas ricamente, sob a forma de uma caveira. de uma nova técnica de tipografia, e não o “Era menos um rosto que uma caveira; a fato de que um morto possa escrever livros. beleza passara, como um dia brilhante; O disparate é acentuado pelo uso do adje- restavam os ossos, que não emagrecem tivo – não sobrenatural, mas extraordinário, nunca” (545). Vai curtir seu luto na Tijuca, adjetivo que afinal pode convir a qualquer e aí trava contato pela primeira vez com processo que se afaste da rotina, como uma a melancolia. “Creio que por então é que nova maneira de fazer cocadas ou de casti- começou a desabotoar em mim a hipocon- gar escravos fujões. dria, essa flor amarela, solitária e mórbida, A morte assume um aspecto apalha- de um cheiro inebriante e sutil” (546). Mas çado desde a dedicatória: “Ao verme que Machado de Assis e a estética da fragmentação • 75 primeiro roeu as frias carnes do meu cadá- para que ele possa morrer de rir depois de ver dedico, com saudosa lembrança, essas decifrar a charada. memórias póstumas” (511). É o tom necró- Creio ter mostrado, com alguma plau- filo de um Baudelaire, mas nem Baudelaire sibilidade, que os elementos formais do ousou dessacralizar a morte a esse ponto, shandismo, tal como ilustrado em Memó- dedicando seu livro a um verme. Ele sabe rias póstumas de Brás Cubas, correspon- que as flores do mal são “flores doentias”, dem, ponto por ponto, a determinadas ca- mas ajuizadamente é a uma pessoa viva que racterísticas estruturais do Barroco. ele as dedica, a Théophile Gautier, “poète Mas o que talvez tenha escapado ao impeccable, parfait magicien ès lettres fran- leitor foi o caráter mimético desta tentati- çaises”. A dedicatória pode provocar um va. Meu artigo foi construído segundo a lei arrepio, mas não provoca o riso, porque do seu objeto, a lei barroca da fragmenta- efetivamente existem flores doentias. Ao ção. Juntando três fragmentos, construí a contrário, em Machado a dedicatória não forma shandiana, e correlacionei-a com o é só macabra, é também absurda, e susci- barroco literário, desmembrado em outros ta, desde o pórtico, as duas reações que o três fragmentos. São os elementos de uma livro como um todo visa provocar, o riso e a combinatória muito barroca, jogo para o melancolia. qual convido o leitor, que pode se divertir As referências à morte são frequentes – juntando entre si esses seis fragmentos, se- afinal, trata-se do livro de um defunto autor gundo outras lógicas, como bem entender, – mas a morte é sempre associada ao riso, ou produzindo outros fragmentos. como Hamlet segurando a caveira de um Podemos perguntar-nos, no final, se te- bobo. O livro cheira a sepulcro, diz Brás, traz ria sido consciente a opção de Machado de uma certa contração cadavérica (583). Sim, Assis pelo Barroco. Certamente não. Não ti- mas logo em seguida ele diz um disparate, nha soado, ainda, a hora da reabilitação do que faz rir – o maior defeito deste livro és Barroco. O que Machado fez, isto sim, foi tu, leitor (583) – e compara seu estilo a algo filiar-se à forma shandiana, cujo fundador, de cômico, o andar de um bêbado (583). Sterne, tinha sofrido a influência de auto- No mesmo capítulo, ele faz uma conside- res como Cervantes e Robert Burton. Com ração elegíaca sobre a brevidade da vida – a exceção de Sterne, portanto, não parece “folhas misérrimas do meu cipreste, heis de ter havido contato direto entre os membros cair” (583) – mas anuncia em seguida que da “família” e o Barroco: esse contato foi há nessa frase um “despropósito”, que um sempre mediatizado pela forma shandiana. bibliófilo do futuro tentará encontrar (584). Mas o contato direto poderia ter se Brás não diz onde está o despropósito – de- dado, sem absurdo manifesto, por maior pois de alguma reflexão, descobrimos que que fosse a distância cronológica que se- está na árvore escolhida para o símile, pois parava do período barroco Machado de o cipreste não perde suas folhas no inverno Assis e os outros autores shandianos. Pelo –, nem precisa fazê-lo, porque sua intenção menos é a conclusão a que seríamos leva- é apenas distrair o leitor, fazendo-o abando- dos se déssemos crédito a ensaístas como nar o cemitério, onde crescem os ciprestes, Eugenio d’Ors, para quem o barroco não é 76 • Sergio Paulo Rouanet uma configuração epocal, e sim um estilo 1949) e Helen Caldwell (Machado de Assis, Berkeley: University of California Press, 1970). Vários autores, en- de cultura, uma constante transistórica que tre os quais R. Magalhães Jr. (Machado de Assis desco- existiu na Grécia alexandrina, na Contrarre- nhecido, Rio: Civilização, 1955) comentaram a origem em Xavier de Maistre (Voyage autour de ma chambre, forma, no Romantismo e no vanguardismo Paris: Flamarion, s.d.) da alusão feita por Machado, em fin de siècle15 O próprio Benjamin admite mais de uma ocasião, ao louco ateniense que julgava que todos os navios do Pireu lhe pertenciam. Um dos que a forma de expressão alegórica permite contos de Machado, Viagem em torno de mim mes- atribuir traços barrocos a autores que vive- mo, não somente parodia o título de Xavier de Maistre como parafraseia um dos seus temas favoritos, de ori- ram muito depois do período convencional- gem pascaliana, a dualidade entre a “alma” e a “bête”. mente considerado barroco, como Goethe Pergunto-me se a ideia da indiferença da natureza ao 16 destino dos indivíduos, desenvolvida tanto no delírio de e Hölderlin. E nossa época pós-moderna, Brás Cubas como no humanitismo de Quincas Borba, que está assistindo a um verdadeiro boom não teria algo a ver com a passagem em que Xavier 17 de Maistre diz que “la destruction insensible des êtres do Barroco e do Neobarroco, seria com et tous les malheurs de l’humanité sont comptés pour certeza a última a pôr em dúvida a classifi- rien dans le grand tout. La mort d’un homme sensible cação de Sterne, Xavier de Maistre, Almeida qui expire au milieu de ses amis désolés, et celle d’un papillon que l’air froid du matin fait périr dans le cali- Garrett e Machado de Assis como autores ce d’une fleur, sont deux époques semblables dans le barrocos, com ou sem o elo intermediário cours de la nature.” (X. de M., op. cit., p. 40). Quanto a Garrett, sua frase sobre “aquelas aldeias que se criaram da forma shandiana. à sombra dos castelos feudais e que libertas, depois, da opressora proteção, crescerarn e engrossaram em subs- tância e força” (Viagens na minha terra, Lisboa: Livraria Notas Sá Costa, 1974, pp. 256-257) é sem sombra de dúvida 1 Machado de Assis, Memórias póstumas de Brás uma das fontes principais da comparação de Machado Cubas, Obra completa (Rio de Janeiro: Aguilar, 1979) sobre “a arraia-miúda, que se acolhia à sombra do cas- Vol. 1, pp. 512-513. As citações seguintes de MP serão telo feudal; caiu este e a arraia ficou. Verdade é que se assinaladas no próprio texto, por números entre parên- fez graúda e castelã” (517-518). teses que designam as páginas. 4 Walter Benjamin, Origem do drama barroco alemão, 2 Roberto Schwarz (Um mestre na periferia do capitalis- trad. de Sergio Paulo Rouanet (São Paulo: Brasiliense, mo, São Paulo: Duas Cidades, 1990) foi um dos pou- 1984). cos críticos que deram atenção especial à “forma” de 5 Machado de Assis conhecia evidentemente Diderot, Memórias póstumas, definindo-a segundo a categoria que ele cita em algumas crônicas e de quem extraiu a da volubilidade. Mas é uma definição parcial, porque a epígrafe para Várias histórias. Mas não posso afirmar volubilidade se refere a apenas uma das características que ele tivesse lido Jacques le fataliste, livro em parte dessa forma, o subjetivismo do narrador. Além disso, imitado de Tristam Shandy e absolutamente shandiano como sua preocupação era correlacionar a volubilidade na forma. Na biblioteca pessoal de Machado, na Aca- com certas características específicas da sociedade bra- demia, há uma coletânea de obras do enciclopedista sileira, Schwarz exagera, em minha opinião, a diferença (números 521 e 522 do catálogo de Massa), na qual fi- entre o funcionamento dessa forma em Machado e seu gura um trecho de Jacques, mas esse trecho, o episódio funcionamento nos autores europeus, enquanto a mi- de Madame de la Pommeraye, é no fundo um conto, nha intenção é justamente identificar o que ela tem de relativamente autossuficiente, que não dá ideia do rit- genérico. Vide, a propósito, meu ensaio “Contribuição, mo shandiano do livro como um todo. Não encontrei salvo engano, para uma dialética da volubilidade”, em nenhum vestígio de Jean-Paul na obra machadiana. No Mal-estar na modernidade (São Paulo, Companhia das entanto, o autor alemão está devidamente presente na Letras, 1993), pp. 304-338. biblioteca de Machado (número 437 de Massa). 3 O que não significa que essas afinidades não sejam 6 Walter Benjamin, op. cit., p. 206. importantes. Sterne influenciou todos os demais auto- res. Garrett foi influenciado por Xavier de Maistre, e 7 Walter Benjamin, ib., p. 164. Machado por Xavier de Maistre e por Garrett. Foi uma 8 influência em cascata, em que cada geração imitou Walter Benjamin, ib., p. 200. algo da precedente. No caso de Machado, as influên- 9 Walter Benjamin, ib., p. 20]. cias de conteúdo exercidas por Sterne foram bem do- cumentadas, entre outros, por Eugênio Gomes (Espelho 10 (Veja-se, entre inúmeros outros exemplos, o tex- contra espelho, São Paulo: Instituto Progresso Editorial, to seguinte: “In a word, my work is digressive, and Machado de Assis e a estética da fragmentação • 77 progressive too – and at the same time... Digressions, gall and other bitter juices from the gall-bladder, liver incontestably, are the sunshine; they are the life, the and sweet-bread of his majesty’s subjects, with all the soul of reading; take them out of this book, for instance inimicitious passions which belong to them, down into – you might as well take the book along with them.” their duodenums.’ Laurence Sterne, op. cit., p. 311. Laurence Sterne, The Life and Opinions of Tristam Shan- 15 Eugenio d’Ors, Du baroque (Paris: Gallimard, 1983). dy (New York: The Modern Library, s.d.), pp. 73-74. 16 Walter Benjamin, op. cit., pp. 252-253. 11 Apud Enviton José de Sá Rego, O calunchu e a pana- céia – Machado de Assis, a sátira menipéia e a tradição 17 Veja-se, por exemplo, de Christine Buci-Glucksmann, luciânica (Rio de Janeiro; Forense, 1989), pp. 79-80. La raison haroque (Paris: Galilée, 1984), La folie de voir (Paris: Galilée, 1986) e Tragique de l’ombre (Paris: Gali- 12 Walter Benjamin, op.cit., p. 177. lée, 1990); Gilles Deleuze, Le pli, Leibniz et le Baroque 13 Walter Benjamin. ib., p 150. (Paris: Minuit, 1988); Omar Calabrese, L’etàneobarroca (Bari: Laterza, 1987); José Antonio Maravall, La cultu- 14 O texto canônico para documentar esse traço da for- ra del barroco (Barcelona: Ariel, 1975); Guy Scarpetta, ma shandiana está naturalmente em Sterne: “If (this L’artifice (Paris: Grasset, 1988); , O book) is wrote against any thing, – ‘tis wrote, an’ please sequestro do barroco na formação da literatura brasi- your worships, against the spleen! in order, by a more leira: o caso de Gregório de Matos (Salvador: Fundação frequent and more convulsive elevation and depression Casa de , 1988); Severo Sarduy, O barro- of the diaphragm, and the succussations of the inter- co neobarroco, em “América Latina em sua literatura” costal and abdominal muscles in laughter, to drive the (São Paulo: Perspectiva, 1979).

O presidente Machado de Assis

Josué Montello Quarto ocupante da Cadeira 29 na academia Brasileira de Letras. Jornalista, professor, escritor e teatrólogo. Apaixonado pelas terras maranhenses. Suas obras foram traduzidas para diversos idiomas. Com prosa elegante ressalta-se de sua bibliografia Os Tambores de São Luís.

ideia da criação de uma Academia a inspiração da afinidade de sentimentos. de Letras no Brasil, nos moldes da Não constituirá exagero afirmar que, sob A Academia Francesa, não teve a ins- certos aspectos, no que concerne às suas pirá-la o espírito de iniciativa daquele que raízes, ela decorre mais da geração boêmia seria, como seu primeiro presidente, o prin- que fez a Abolição do que do grupo de al- cipal responsável pela sobrevivência e pelo tos espíritos que moldou a consolidação le- prestígio do novo instituto. gislativa de seus estatutos. Com efeito, não se pode incluir Ma- Graça Aranha, testemunha do nasci- chado de Assis entre os idealizadores da mento da Academia, disse que ela, “oriunda Academia. Este papel cabe, em épocas de um pacto entre espíritos amigos, hauriu diferentes, a Medeiros e Albuquerque e a nesta inspiração original a força intrínseca Lúcio de Mendonça. Entretanto, pode-se de que se mantém, e a vai transmitindo às afirmar, com segurança, que, sem a figura gerações que se sucedem”. de Machado de Assis, a ideia não se teria Ao contrário do que ocorre na Aca- concretizado. demia Francesa, sempre pendente de al- As origens da Academia Francesa, no gumas vontades firmes que orientam as dizer de Voltaire, não foram de ordem inte- deliberações do instituto, nossa Academia lectual e sim de ordem cordial, como um habituou-se a prescindir dessas vontades in- círculo de bons amigos. Os requisitos de or- dividuais, que não se compaginam com as dem intelectual vieram depois, no aprimo- tradições da Casa. ramento gradativo da corporação, sem que Há ali quarenta companheiros, comu- esta perdesse, no entanto, na escolha de mente identificados no gosto das boas le- seus novos membros, o sentido da cordiali- tras, sem chefes de grupos nem líderes evi- dade que inspirou a formação do pequeno dentes. cenáculo em casa de Valentin Conrart. Ninguém comandou jamais, de modo os- Nossa Academia, bem exarninada nas tensivo e pessoal, os destinos da Academia suas origens, constituiu-se também sob Brasileira. Não houve um tempo em que, na Publicado na Revista Brasileira n.o 11, Fase VII, Abril-Maio-Junho de 2004, Ano III, pp. 35-43. 80 • Josué Montello

Academia Francesa, o gênio de d’Alembert, Otávio e Inglês de Sousa – para lembrar assistido por Madame de Lespinasse, exer- apenas os que mais se destacaram em rea- ceu influência tirânica sobre os companhei- lizar o pensamento comum – trouxeram à ros? E Voltaire, com toda a universalidade de ideia da corporação literária a porção de seu gênio, não se viu compelido a abrigar-se austeridade e a constância de propósitos sob a proteção de Madame de Pompadour, com que se consolidam as instituições de para eleger-se acadêmico? E não é verdade, suas espécie. ainda, que, desde os tempos de Richelieu, só Mesmo no caso deste grupo, foi a se pode ser acadêmico, na França, andando amizade que uniu e identificou seus com- em boas graças oficiais? Não foi assim com ponentes, no período que imediatamente La Fontaine? Não foi assim com Chateau- precede a criação da Academia. Basta lem- briand? E não foi assim, ainda recentemente, brar a importância, para essa criação, dos com Paul Morand, cuja condição de antigo jantares promovidos pela Revista Brasileira, colaboracionista lhe cerrou por largo tempo ao tempo em que José Veríssimo a dirigiu. a porta da Academia? “Realizaram-se esses jantares” – conta A Academia Brasileira, nesse, e ainda Rodrigo Otávio, em Minhas memórias dos em outros pontos, divergiu de seu figurino, outros – “no Hotel dos Estrangeiros, em a começar pela autonomia das deliberações uma das pequenas salas de então, dando do instituto. para o Largo. Eram modestos e calmos: Só uma influência decisiva se observa José Verissimo, circunspecto e morigerado, no curso de sua evolução: a de Machado dava a nota da gravidade, que, aliás, o in- de Assis. Influência habilíssima, mais suges- submisso gênio folgazão de Artur Azevedo tão que ordem, menos determinação que quebrava a cada momento. Machado, Na- alvitre. Depois dele, ninguém mais desem- buco e Taunay, que não haviam aderido ao penhou esse papel de líder, a não ser, de barulhento Rabelais, não faltavam nunca a relance, um de seus herdeiros diretos no esses jantares.” plano da vida acadêmica: Mário de Alencar. O barulhento Rabelais, a que Nabuco, Na fase inicial da Academia, a geração Taunay e Machado não quiseram aderir, era boêmia plasmou a amizade que uniu a maior o clube fundado em 1892 por Araripe Jú- parte dos companheiros. Coelho Neto, nior e Raul Pompeia, com o programa de Bilac, Araripe Júnior, Patrocínio, Murat, Va- um jantar mensal em que se reuniam escri- lentim Magalhães, Aluísio e Artur Azevedo, tores e artistas, “para uma hora de agradá- Guimarães Passos, Raimundo Correia, Al- vel convívio”. Tinha ruído e juventude. E já berto de Oliveira, Medeiros e Albuquerque, era, de certa forma, um começo de distor- Pedro Rabelo e Filinto de Almeida perten- ção evolutiva no roteiro boêmio da geração. ceram à plêiade de espíritos desprendidos O próprio Araripe fez-se o memorialista do e joviais que a afeição aproximou, antes da clube na página de saudade recolhida a um identificação definitiva na cordialidade da dos primeiros volumes da Revista da Acade- Academia. mia Brasileira. Machado de Assis, José Veríssimo, Joa- A revolta de 1893, dividindo os homens quim Nabuco, Lúcio de Mendonça, Rodrigo de letras em duas facções, sob os influxos O presidente Machado de Assis • 81 da paixão política, dissolveu o clube, que os José Veríssimo era diretor, não cabendo, as- encontros da Revista Brasileira, daí a dois sim, qualquer sombra de dúvida quanto ao anos, iriam de algum modo recompor, pre- rigor histórico do que afirmava. parando afinal o advento da Academia. O próprio Machado de Assis deixou Machado guardou memória do primei- numa página de 1894 o testemunho de ro jantar da Revista Brasileira em sua crô- que tão cedo não acreditava na viabilidade nica de 17 de maio de 1896, na Gazeta de de uma Academia Brasileira. E disse isto, Notícias: “Chego ao Hotel do Globo. Subo de modo bastante objetivo, na crônica em ao segundo andar, onde acho já alguns que, depois de comentar os neologismos homens. São convivas do primeiro jantar do Dr. Castro Lopes, discorreu sobre o ter- mensal da Revista Brasileira. O principal de mo engrossador, de cunho popular recen- todos, José Verissimo, chefe da Revista e do te, muito expressivo e de aplicação política. Ginásio Nacional, recebe-me, como a to- “Quem o inventou?” – interrogava Macha- dos, com aquela afabilidade natural que os do. E conjeturava: “Talvez algum cético, por seus amigos nunca viram desmentida um só horas mortas, relembrando uma procissão minuto. Os demais convivas chegam um a qualquer; mas também pode ser obra de um, a literatura, a política, a medicina, a ju- algum religionário, aborrecido com ver au- risprudência, a armada, a administração...” mentar o número dos fiéis.” Linhas adiante, Segundo Rodrigo Otávio, o Machado de concluía: “Mas fosse quem fosse o inven- Assis desse tempo “não era um homem so- tor do vocábulo, certo é que este, apesar ciável, era mesmo de difícil familiaridade”. de anônimo e popular, ou por isso mesmo, Em face desse depoimento, como conci- espalhou-se e prosperou; não admirará que liar o ser esquivo e recatado, de que Macha- fique na língua, e se houver, aí por 1950, do deu tantas provas, com o formidável co- uma Academia Brasileira, pode bem ser que ordenador de vontades, que levou adiante venha a incluí-lo no seu dicionário.” o sonho da corporação literária idealizada O vocábulo teria de esperar mais tem- por Lúcio de Mendonça? po ainda pelo dicionário acadêmico. Mas a Antônio Sales, testemunha do nasci- Academia, não: esta seria criada dois anos mento da Academia, contou, numa página depois de publicada a crônica, revelendo- de reminiscência, que a ideia do instituto, -nos outro Machado de Assis, que se escon- entusiasticamente lançada pelo poeta de dia por baixo de sua capa de ceticismo: o Vergastas no escritório da Revista Brasilei- homem de vontade firme, capaz de dar a ra, não foi recebida com alvoroço pela roda uma assembleia de bons amigos, como seu ilustre que ali se reunia. “Lembro-me bem” chefe, o sopro da vida perene. – diz o memorialista – “que José Verissimo, Não seria difícil contrapor ao depoimen- pelo menos, não lhe fez bom acolhimento. to de Rodrigo Otávio, que via em Machado Machado, creio, fez a princípio algumas ob- de Assis a criatura de familiaridade esquiva, jeções”. na madrugada da Academia, o Machado de É preciso não esquecer – lembremos Assis afetuoso, eminentemente associativo, aqui de relance – que o depoimento de An- que congregou a corporação acadêmica. As tônio Sales saiu publicado na revista de que rodas de livraria, de que o mestre participou 82 • Josué Montello nas várias fases de sua vida literária, notada- a sua malícia genial. Em lugar de feri-los in- mente na loja de Paula Brito, na Laemmert dividualmente, feria-os na zombaria ampla e na Gamier, evidenciavam-lhe o pendor de seus tipos literários ou de suas conclu- gregário, confirmativo da incontestável ín- sões de moralista. E esta modalidade de riso dole política que iria dar de si em plenitude não cria inimigos pessoais, porquanto, no na consolidação da Academia. dizer de Swift, é sempre a cara alheia que Já na Laemmert, que precede a roda o leitor vê refletida, ao mirar-se no espelho da Garnier, era ele o centro do grupo de da sátira. escritores, conforme se verifica deste lance De modo que a ironia machadiana, nun- das Memórias de Oliveira Lima: “À tarde ca alvejando ninguém individualmente, não nos encontrávamos na Livraria Laemmert, o contraindicou para a obra de coordena- onde também vinham ter Rodrigo Otávio, ção afetiva do núcleo inicial da Academia secretário da Presidência, Graça Aranha, Brasileira. Na frequência de seu convívio, o autor ainda virgem mas conhecido como homem cordial tomava a dianteira ao ironis- discípulo talentoso de , Pedro ta, de cujos lábios jamais saiu a maledicên- Tavares e outros. Machado constituía natu- cia. E ele pôde aprimorar, na coordenação ralmente o centro da reunião, com seu li- dos companheiros, o lado associativo de geiro gaguejar que dava mais graças às suas sua personalidade, que dele faria, enquanto observações sempre delicadamente malicio- viveu, o presidente da Academia. sas, expressas como as suas páginas escritas Desde cedo, Machado de Assis há de ter com um humorismo de quilate em que ha- sido inclinado à concórdia e ao bom conví- via, num boleio de frase que lhe era pecu- vio. Por que umedecer a língua com o fel da liar e em que refletia o seu espírito avesso vesícula? Melhor era cultivar a cordialidade ao dogmatismo, traços de ironia de Swift entre companheiros, elevando-se acima na fluidez de prosa de Garrett. Nas coisas de todos eles, com a concordância geral maiores como nas menores essa ironia era quanto ao seu valor. Nada de ofender ou velada porque o seu pessimismo era, como melindrar. toda a sua pessoa, discreto.” Desse modo, a certa altura do tempo, Essa discrição do mestre, reveladora do as diversas correntes literárias do Rio de Ja- domínio que exercia sobre si mesmo, só neiro, ou pelo menos as mais representati- dando expansão à palavra que lhe convi- vas, se conciliaram à sua volta, quase sem nha, é que possivelmente inspirou a impres- discrepância digna de registro. Dessas cor- são de retraimento em que ele se fechava. rentes, convém destacar a que se constituiu A verdade, porém, é que, transposta a por inspiração de Valentim Magalhães, no cerca defensiva em que Machado de Assis período de 1893 a 1895, na redação de A se resguardava, a doçura humana sobrele- Semana. vava em sua pessoa a ponta de ironia e sá- Segundo Max Fleiuss, que retraçou o tira, que certamente aguçava na intimidade itinerário da revista num livro de saudades, de seu espírito. O certo é que ele afiava o dali teria surgido, nas conversas de Lúcio de seu riso contra a humanidade, nunca contra Mendonça, Raul Pompeia e Araripe Júnior, os homens. Daí não ter feito desafetos com a ideia da criação da Academia. “Nessas O presidente Machado de Assis • 83 palestras” – adianta o mesmo informante a repartição, é certo, mas esta, embora lhe – “quanta coisa se combinou de útil para tomasse parte do tempo, não constituía a as letras e para as artes! E, especialmente, sua paixão: era a sua ocupação na vida pú- quanto contribuíram para a reciprocidade de blica, que ele desempenhava com o rigor estima entre homens dignos, de maior e me- e a probidade de seu feitio, e não uma es- nor valor, é certo, todos, porém, animados sencialidade de sua natureza, invarialmente do mesmo nobre sentimento – o culto das voltada para a literatura. nossas letras, forma eficaz de patriotismo!” Machado de Assis prezava o convívio A redação de A Semana, o Clube Rabe- humano, como uma modalidade de família lais e a redação da Revista Brasileira atua- avulsa, a que se veio afeiçoando com um ram como núcleos de convergência afetiva gosto crescente, até sentir, na companhia das gerações literárias que fundaram a Aca- dos amigos da Academia, que eram eles a demia. família que lhe restava. Por seu lado, esses Paralelamente a esses núcleos, cumpre companheiros também aprimoraram, nos considerar, ainda, as grandes campanhas pequenos grupos habituais, a identificação populares que identificaram jornalistas e tri- afetiva, que impõe ao conjunto a harmonia bunos, no último quartel do século: a Abo- da unidade. lição e a República. Sem esquecer, como já Medeiros e Albuquerque, instado a fa- assinalamos, a roda de amigos da Laemmert lar sobre Machado de Assis numa sessão da e da Garnier, nas quais Machado de Assis se Academia, resumiu-lhe a singeleza da vida preparou, numa espécie de tirocínio diário, neste testemunho pessoal: “A sua vida, ao para o pontificado de nossa literatura, vago tempo em que o conheci, pautava-se de um desde a morte de José de Alencar. modo monotonamente uniforme. Vinha to- Tão sistemática era a presença do ro- das as tarefas – nesse tempo o expediente mancista de Quincas Borba na Garnier, que das repartições terminava às três horas – do ali o encontrou, num dia de carnaval, o cari- Ministério da Viação para a Garnier. Aí se caturista português Rafael Bordalo Pinheiro, instalava numa pequena roda e conversava brasileiramente fantasiado nos fofos e gui- sobre literatura. Se alguém se aventurava zos de um dominó. em questões incandescentes de política, em – Você conhece-me? – interrogou o ca- grandes questões sociais, ele se encolhia. ricaturista ao escritor, adoçando a voz em Não dava opiniões francas. Quando muito, sotaque brasileiro. para a conversa não morrer, atirava nela – Conheço pela colocação do pronome algumas frases neutras, que não dessem – teria retrucado Machado de Assis. a compreender nitidamente o seu pensa- E dando a prova: mento. Não se comprometia. – Havia um – É Rafael Bordalo Pinheiro. meio seguro de fazê-lo afastar: era dar um Assim, mesmo de passagem, na tarde tom livre à conversa. Ele calava-se, sorria, carnavalesca, Machado de Assis não faltara não dava mostra nenhuma de enfado, mas à livraria, ponto de encontro de amigos e achava logo um pretexto para sair”. companheiro. Ali conversava e ali se deixava No correr de anos e anos da mesma con- ver, sentindo-se querido e admirado. Tinha duta cautelosa, a figura do mestre, modelo 84 • Josué Montello de dignidade pessoal e de méritos literários, Os trinta homens de letras que inicial- impôs-se aos contemporâneos como seu lí- mente constituíram a Academia, vindos de der natural, ao mesmo tempo que outras diversos grupos, compunham uma lista de gerações de escritores se vieram formando valores em que a amizade escolheu seus e constituindo, harmonizadas no reconheci- companheiros. Eram eles: Afonso Celso, mento do primado intelectual do criador de , Alcindo Guanabara, Quincas Borba. Araripe Júnior, Artur Azevedo, Carlos de “A essa circustância se aliou o espírito Laet, Coelho Neto, Filinto de Almeida, de coesão dos diversos núcleos de escritores Garcia Redondo, Graça Aranha, Guima- – espírito de coesão que os aglutinava em rães Passos, Inglês de Sousa, Joaquim Na- tomo de uma ideia, de uma causa, de uma buco, José do Patrocínio, José Verissimo, escola literária, ou mesmo de uma simples Lúcio de Mendonça, Luís Murat, Machado mesa de almoço, ou ainda numa roda habi- de Assis, Medeiros e Albuquerque, Olavo tual de livraria. Bilac, Pedro Rabelo, Pereira da Silva, Rodri- E assim, ao surgir a ideia da Academia, go Otávio, Rui Barbosa, Silva Ramos, Sílvio já estava criada a afinidade de sentimen- Romero, , Urbano Duarte, tos de que se fazem as instituições de sua Valentim Magalhães e o Visconde de Tau- espécie. nay. Estes, por sua vez, elegeram os dez A prova de que a ideia correspondia, companheiros que deveriam completar realmente, a uma aspiração natural, é a os quarenta fundadores do instituto: Ma- frequência de idêntico pensamento, no galhães de Azeredo, Raimundo Correia, mesmo quartel de século, entre as figuras Aluísio Azevedo, Salvador de Mendonça, literárias de maior evidência. Domício da Gama, Luís Guimarães Júnior, Antes que Medeiros e Albuquerque, em Eduardo Prado, Franklin Dória, Clóvis Bevi- 1890, e Lúcio de Mendonça, em 1896, se láqua e Oliveira Lima. batessem pela fundação de uma Academia, Entre os quarenta componentes desse criara-se no Rio de Janeiro, em 1887, um quadro de sócios efetivos, o mais velho con- Grêmio de Letras e Artes, de vida efême- tava oitenta anos: o historiador J.M. Pereira ra, e em cujo quadro figuraram alguns dos da Silva; o mais moço, vinte e cinco: Carlos futuros membros da Academia Brasileira. Magalhães de Azeredo. Eleito presidente desse cenáculo, Machado No discurso da instalação da Academia, de Assis declinou da distinção, e a tentati- Joaquim Nabuco explicou a conciliação de va não conseguiu ir adiante, a despeito dos velhos e novos, na elegância destas pala- grandes nomes que congregou. vras: “A Academia, como o nobre romano, Das várias tentativas para a constitui- tem a sua villa dividida em casa de verão e ção de um grêmio literário, somente a de casa de inverno.” Lúcio de Mendonça conseguiria vingar – e Sobre esse constraste de gerações, Ma- isto porque teve a ampará-la a energia de chado de Assis estendia a sua autoridade Machado de Assis, e ainda o seu tato pes- unanimemente aceita e reconhecida. Ia a ca- soal, e a sua autoridade de grande escritor, minho dos sessenta anos, com o seu cabelo já aceito como um mestre. ondulado e a sua barba crescida – barba à O presidente Machado de Assis • 85

José de Alencar. “Se não sou o mais velho a obra de Machado de Assis confirmar-lhe- dos nossos colegas” – disse ele, a 20 de ju- -ia a preeminência indiscutível. lho de 1897, ao empossar-se na Presidência Em 1897, ao instalar-se a Academia Bra- da Academia – “estou entre os mais velhos. sileira, é Machado de Assis, de há muito, É simbólico da parte de uma instituição que como dirá José Verissimo, o chefe da litera- conta viver, confiar da idade funções que tura nacional. De si consigo, não pensaria o mais de um espírito eminente exerceria romancista das Memórias póstumas que já melhor. Agora que vos agradeço a escolha, teria direito ao seu grêmio, como José de digo-vos que buscarei na medida do possível Alencar, a quem escolhera como patrono? corresponder à vossa confiança.” Se assim logicamente pensava, ser-nos-á Em 1878, ao falecer José de Alencar, lícito supor que, à hora da criação da Aca- Machado de Assis tinha cogitado da funda- demia, haja aflorado ao espírito do mestre ção de um grêmio com o nome do mestre de Dom Casmurro, que tão bem soubera de O guarani, inegavelmente em seu tem- compor a sua vida literária, o pensamento po a primeira figura das letras brasileiras. A secreto de que, naquele ato, estava pruden- esse posto ascenderia, por sucessão natu- temente assentando, para resguardo futuro ral, logo a seguir, o poeta das Crisálidas e de sua glória, os fundamentos da Casa de romancista de Helena. Daí em diante, toda Machado de Assis.

O teatro político nas crônicas de Machado de Assis

Alfredo Bosi Ocupante da Cadeira 12 na Academia Brasileira de Letras. Professor emérito da Universidade de São Paulo, crítico e historiador da literatura brasileira. É autor de, entre outros livros, História concisa da literatura brasileira (1970), O ser e o tempo da poesia (1977), Céu, inferno (1988), Dialética da colonização (1992), Ideologia e contraideologia (2010) e Arte e Conhecimento em Leonardo da Vinci (2017).

“Que é a política senão com iniciais maiúsculas para diferenciá-las obra de homens?” do verdadeiro objeto do cronista: políticos A Semana, 30/10/1892* e suas histórias. Um dos acontecimentos dramáticos e avia em Machado de Assis um gos- cruciais da vida pública do Segundo Impé- to acentuado de contar histórias de rio foi a demissão que D. Pedro II deu, em H políticos. Não são poucas as crôni- 1868, ao gabinete liberal de Zacarias de cas em que falou de parlamentares do pas- Góis substituindo-o pelo gabinete ultracon- sado ou seus contemporâneos. Histórias de servador de Itaboraí. Embora Sua Majesta- políticos. Essa preferência leva ainda alguns de pudesse formalmente valer-se do Poder de seus leitores a pensar que o cronista Moderador, a mudança abrupta de ministé- prestasse tributo à História e à Política. O rio, sendo liberal a maioria da Câmara, soou equívoco é compreensível e deve-se à in- como um golpe, um abuso de autoridade, tenção louvável de mostrar que um grande manifestação extemporânea do chamado escritor é sempre de algum modo partici- “poder pessoal”. pante e, no limite, engajado. Na esteira de A comoção foi grande nos meios parti- nossa admiração vem o risco de submeter a dários, e grêmios e jornais liberais acusaram leitura a pensamentos desejosos. Tudo in- de bonapartista a atitude do imperador. dica, porém, que Machado não acreditava Para historiadores do calibre de Joaquim nem esperava nada (ou quase nada) nem Nabuco e Sérgio Buarque de Holanda, a da Política nem da História, escritas aqui crise ministerial de 1868 marcou o declínio do regime monárquico. Os liberais radica- * Observação geral: As passagens das crônicas citadas foram transcritas das seguintes fontes: Machado de As- lizaram-se e o republicanismo conheceu o sis, Obra completa. Org. por Afrânio Coutinho. Rio de seu primeiro grande surto. As águas enfim Janeiro: Aguilar, 1971. Machado de Assis, Bons dias! Introdução e notas de John Gledson. São Paulo: Huci- moviam-se e a crise não seria passageira. tec, 1990. Machado de Assis, Balas de estalo. Org. por Machado de Assis assistiu a tudo como Heloísa Helena Paiva de Luca. São Paulo: Annablume, 1998. observador simpático aos liberais, pois foi Publicado na Revista Brasileira n.o 41, Fase VII, Outubro-Novembro-Dezembro de 2004, Ano XI, pp. 37-75. 88 • Alfredo Bosi a sua cor ideológica ao longo dos anos 60. os ritos, os gritos, as palmas, os silêncios, a Mas o que ficou na sua lembrança e na sua vida, paixão e morte dos indivíduos, o ciclo palavra ao retornar àquela sessão momen- mesmo da existência pelo qual uns vão, ou- tosa que fechava uma época e abria outra? tros voltam e todos partem definitivamente. Vinte e sete anos depois, ao noticiar a Interessava-lhe, artista que era, o estilo dos morte de Saldanha Marinho, membro da- atores políticos; atraíam-no as suas apari- quela câmara dissolvida, amigo seu, liberal ções efêmeras, ora risíveis, ora patéticas, ardente, maçom e enfim republicano, Ma- mas não algum possível sentido da Política chado de Assis escreveria uma crônica na e da História, que não cabe nas suas crôni- Semana, datada de 16 de junho de 1895. cas como dificilmente se depreende de seus A memória da sessão é nítida, a narração romances e contos. movimentada, os detalhes precisos. Mas Esse fluir e refluir dos sucessos para o nem o foco da elocução nem o tom geral Lethes do esquecimento é trabalhado de conferem ao acontecimento a relevância e modo estratégico pelo discurso machadia- a densidade ideológica que o consenso dos no das gerações. Afinal, les morts vont vite historiadores lhe atribui. Para o cronista de (frase recorrente nas crônicas e no diário do 95 o evento parlamentar de 68 é feito de Conselheiro Aires), e os jovens não guar- gestos entrecortados de aplausos e vaias; dam memória deles: “Jovem leitor, não sei depois viria o nada que o tempo tece sobre se acabavas de nascer ou se andavas ain- si mesmo: “Os liberais voltaram mais tarde, da na escola. Dado que sim, ouvirás falar tornaram a sair e a voltar, até que se foram daquele dia de julho, como os rapazes de de vez, como os conservadores, e com uns então ouviam falar da Maioridade ou do e outros o Império.” fim da república de Piratinim, que foi a pa- O estudioso da política imperial sabe cificação do Sul, há meio século.” Admitida que, entre 68 e 71, com a luta em torno a eventual hipótese de que o jovem leitor da Lei do Ventre Livre, e nas duas décadas tivesse notícia daquele dia de julho de 68, o seguintes, haveria duros embates dentro e cronista põe-se a avivar a sua memória con- fora do Parlamento; e que a reforma elei- tando como eram naquele tempo as recep- toral, a Abolição e a República não teriam ções de ministérios ou de partidos. sido possíveis sem que novos e velhos libe- A recordação vai direto ao teatro da po- rais (“liberais contra liberais”, na expressão lítica. As galerias e tribunas estavam cheias feliz de Sérgio Buarque) e velhos e novos de gente, pois o público desejava experi- conservadores se defrontassem, mesmo mentar emoções que iam da curiosidade à porque a sociedade mudava, a economia se indignação passando pela indefectível vai- modernizava, o capitalismo, tardio embora, dade de mostrar-se em um recinto onde o pressionava, a imigração seria um fato, as prestígio e as “influências” eram tudo. desigualdades regionais se aprofundavam; Deslocado o ponto de vista do ato polí- em suma, a história do povo brasileiro e a tico para as impressões do espectador, ge- história do Estado brasileiro prosseguiam neraliza-se a ideia de que, no fundo, todos com seus traumas e exigências. Mas a lei- amamos a retórica, “nós amamos a esgri- tura de Machado tem a ver com os gestos, ma da palavra, e aplaudimos com prazer os O teatro político nas crônicas de Machado de Assis • 89 golpes certos e bonitos”. A observação cha- ingênuo que ignorava a ciência da força e ma a um campo comum o cronista e seus do fato consumado, isto é, a política. Ati- leitores e institui a figura-chave do público tude oposta, pelo desassombro, pela altiva ansioso por ver o desempenho dos depu- independência, teve Saldanha Marinho, tados, o que será habilmente aplicado ao cuja morte deu ocasião à crônica. Machado espetáculo daquela tarde de julho de 1868. o conhecera de perto no seu tempo de mi- Para esbater e subtrair qualquer coloração litância jornalística no liberal Diário do Rio de especial dramaticidade histórica à ses- de Janeiro. Naquela tarde Saldanha pode- são evocada, o cronista dirá que “também ria ter-se calado, ou simplesmente votado houve aplausos em 1868, como em 1889, contra a moção protocolar de despedida como nas demais sessões interessantes, ain- que a Câmara sempre dirigiu ao ministério da que fossem de simples interpelação aos imposto. Mas Saldanha preferiu externar as ministros”. Também... também. Como an- suas duras verdades e cair de pé. O cronis- tes e depois, em ocasiões “interessantes”, ta pondera que não lhe teria custado ser as galerias foram solenemente advertidas apenas firme, sem lançar suas invectivas à de que não deveriam dar sinais de apro- monarquia. Saldanha, junto com Otaviano vação nem de reprovação, e não obede- e Otoni, já havia, em 60, derrotado “ilus- ceram. Volta a lembrança: “Ouço ainda os tres chefes conservadores” e inaugurado o aplausos de 1868, estrepitosos, sinceros e interregno liberal; no entanto, arriscou-se unânimes”. Teatro, de novo: Itaboraí entra, a perder tudo e caiu em desgraça. Zacarias Zacarias sai. Para driblar a surpresa da der- e Saldanha, atores diversos na semelhança rota, o perdedor teria dito que desde a qua- das situações: “que é a política senão obra resma sentia que a queda era inevitável. O de homens?” cronista comenta: “Grande atleta, quis cair Moral da crônica: “Ó tempos idos! Ven- com graça.” Zacarias é ator consumado, e cidos e vencedores vão todos entrando na o espetáculo tem o seu quê de circense: é história. Alguns restam ainda, encalvecidos preciso que os equilibristas mostrem destre- ou encanecidos pelo tempo, e dois ou três za ao cair. E Zacarias caiu com graça. cingidos de honras merecidas.” Este entrar O jogo, porém, já estava decidido. Ma- na história, caminho forçoso de todos, li- chado mostra-se convicto de que contra a berais, conservadores e republicanos, ven- força (no caso, a vontade do imperador) se- cidos e vencedores, tende a zerar o drama riam baldados os argumentos, tanto os de político real, esvaziando-o sob a ação do esperança como os de indignação. Apesar tempo, que todos sabem veículo da morte, disso, ouviram-se no meio do coro e em “cúmplice de atentados”. Dessa indiferen- cena aberta uns e outros, escrúpulos de ça a que ninguém escaparia, salva-se, como quixotes. Eram vozes saídas da câmara der- indivíduo, Saldanha Marinho, cuja passa- rotada. Alguém aparteou, confiante de que gem para o campo maçom-republicano é seria ainda possível desfazer o que tinha assim interpretada: “Mudara de campo, se sido feito; esse alguém “talvez não soubes- é que se não restituiu ao que era por na- se ler em política”: o cronista esqueceu-lhe tureza.” Os atores reagem como podem à o nome, mas insinua que era voz de um força cega do poder (essência da política), 90 • Alfredo Bosi tentando desempenhar os seus papéis; e, que puniu os bispos de Olinda e do Pará. A assim como se dá em cena, os caracteres “questão religiosa” dividiu forças políticas heroicos são raros e apartam-se, às vezes e culturais do Império. De modo geral, tan- pateticamente, das personagens movidas to os novos liberais quanto os republicanos pela rotina dos interesses particulares. históricos secundaram a campanha maçô- A atitude intrépida de Saldanha Mari- nica: os jovens Nabuco e Rui Barbosa sus- nho em 1868 é inicialmente atribuída à sua tentaram o Estado regalista contra a Igreja mudança de bandeira partidária, pois “mu- ultramontana, e só em seus anos de ma- dara de campo”, mas, logo em seguida, o turidade se reaproximariam do catolicismo. cronista adverte, como hipótese melhor, um Quanto a Saldanha, escreveu, sob o pseu- dado pessoal, a “natureza” peculiar àquele dônimo de Ganganelli, um libelo maçônico digno combatente: “se é que se não resti- e anticlerical, A Igreja e o Estado. Chamado tuiu ao que era por natureza”. O leitor que por Deodoro da Fonseca para integrar uma se proponha ir além da notação individual e comissão preparatória da Constituinte re- verificar o que significaram na história polí- publicana, mostrou-se aguerrido defensor tica do Brasil as lutas de Saldanha Ma­rinho, do Estado leigo, pugnando pela separação encontrará tensões ideológicas de longa da Igreja do Estado, no que foi escudado duração que ultrapassam de muito a expli- pelos positivistas e pelos liberais agnósticos. cação psicológica de Machado, que aponta O que essa luta envolveu de marchas e para a singularidade de caráter daquele ho- contramarchas em um país de maioria ca- mem público. tólica (religião oficial do Império) eviden- Saldanha Marinho, por intermédio de temente não caberia na apreciação que o Quintino Bocaiúva, convidara o jovem Ma- cronista Machado faz, em 1895, de Salda- chadinho para escrever a crônica parlamen- nha Marinho, que acabava de morrer. 1868 tar do Diário do Rio de Janeiro quando os fora, de todo modo, o ano em que forças liberais ensaiavam a sua volta à maioria opostas, mal coladas na Conciliação dos na Câmara. Mas a oposição entre liberais anos 50, voltariam a enfrentar-se. Fazer a e conservadores conheceria, a partir dos história dessas lutas seria entrever a história anos 1860, desdobramentos divergentes. do ocaso do Império. Machado, escrevendo De um lado, o Partido Liberal, com Nabu- em 95, post festum, não se mostra interes- co de Araújo, Zacarias e Saraiva à frente, sado no que pulsaria no fundo ou por trás manteve-se fiel ao regime, embora sempre da cena parlamentar que a Câmara propi- denunciasse os excessos do poder pesso- ciava em uma de suas cerimônias “interes- al – posição acentuada na crise de 68. De santes”. O que o seduzia era a retórica de outro, viria a radicalização republicana, que lances individuais em contraste. É próprio se combinou com a Maçonaria. Esta última dos espetáculos brilharem só por algumas foi a opção de Saldanha Marinho, primeiro horas e depois passarem; a crônica evoca-os signatário do manifesto republicano, defen- sabendo que são de ontem, e que o ama- sor coerente do sufrágio universal, jacobi- nhã costuma esquecê-los. O que impres- no que polemizou acremente com a Igreja siona no texto machadiano é o movimento Católica apoiando a decisão do tribunal passageiro das aparências, que é vivo e tem O teatro político nas crônicas de Machado de Assis • 91 a sua verdade na medida em que os meca- “Calisto só adora uma coisa mais do que nismos políticos não dispensam o teatro; o as crises ministeriais, é a apresentação dos público inquieto que ora vaia, ora aplaude; ministérios novos às câmaras. [...] Não atri- os presidentes formalistas que exigem silên- buam a Calisto nenhuma preocupação po- cio, mas em vão; o atleta que cai com graça lítica, pequena ou grande, nem amor ao (chamava-se Zacarias), e o homem fiel à sua Dantas ou ao Saraiva, ao projeto de um ou natureza indomável (chamava-se Saldanha de outro, nem à grande questão que se de- Marinho). “Os liberais voltaram mais tarde, bate agora mesmo em todos os espíritos. tornaram a cair e a voltar, até que se foram Importa-­lhe pouco saber de um problema de vez, como os conservadores, e com uns ou da sua solução; contanto que haja baru- e outros o Império.” lho, dá o resto de graça.”

“Uma vida inteira de galeria “Finanças, finanças, são em galeria” tudo finanças” A Semana, 27/11/1892 “... afinal, um fastio que nunca mais acaba” O cronista continuou a passar horas nas A Semana, 9/10/1892 galerias das câmaras mesmo depois de ter- -se apartado fisicamente do seu posto juve- A República triunfou, mas não trouxe nil de observador parlamentar. Serão horas apenas vereadores ruidosos que deram o imaginárias essas, que a página da Semana tom aos debates das novas intendências. recorda em 27 de novembro de 1892, mas Os tempos novos veriam também a ciran- nem por isso menos reveladoras de um Ma- da financeira, o encilhamento, com a sua chado olheiro e ouvinte das sessões legisla- pletora de emissões, crédito luxuriante, tivas encaradas como representação. Temos jogatina, falências em cadeia. A cena polí- a impressão do espetáculo e a respectiva tica desloca-se da arena parlamentar para reação do espectador. Nenhum conteúdo, as companhias, os bancos, a Bolsa. Tudo é só a forma da pura encenação. Nenhuma questão de mais ou menos papel-moeda. ideia, nenhum projeto sólido, só a qualida- Raymundo Faoro, em Machado de Assis: de sonora das falas: macias e polidas no Ve- a pirâmide e o trapézio, reconstruiu miuda- lho Senado; bulhentas na Câmara, “bonita mente esse período breve mas intenso do agitação”; berradoras, enfim, na intendên- capitalismo brasileiro que, mediado pelo cia republicana. O ouvinte adverte e pontua Estado, ensaiava temerariamente os primei- o crescendo que se deu com a passagem do ros passos no regime nascente. E junto ao tempo e dos regimes. desenho do quadro (o seu reflexo) vinha A construção cabal da figura do pú- a marcação da perspectiva machadiana, a blico, que só quer ver o espetáculo por si reflexão do intelectual que, diante do vale- mesmo, está impressa na personagem de -tudo do dinheiro pelo dinheiro, se sentia nome Calisto à qual o autor dedica a “bala ainda mais refratário e distante do que as- de estalo” de 10 de maio de 1885, véspe- sentado nas galerias do teatro parlamentar. ra da apresentação do ministério Saraiva: Estas, ao menos, o divertiam, o seu palco 92 • Alfredo Bosi eram as câmaras onde cada lance poderia A realidade da inflação solta não é ig- ser aplaudido ou vaiado. O animal político norada, nem poderia fazê-lo o cronista da fascinava o analista das paixões. Mas o puro Semana, por mais tediosa que lhe pareces- homo oeconomicus, que a orgia financeira se. Mas, ao transpô-la para a sua escrita, o multiplicava, só causava tédio ao cronista autor elabora uma linguagem de distancia- de 1892, e voltará, anos depois, na pena do mento pela qual o sujeito se põe e se de- narrador de Esaú e Jacó ao descrever a figu- clara existencialmente alheio à conjuntura ra do Nóbrega, o irmão das almas enrique- que tinha virado manchete em todos os jor- cido nos jogos escusos do Encilhamento. nais do país. O objeto próximo da história Na composição da crônica de 9 de outu- contemporânea é recortado, mencionado, bro a estilística do distanciamento é exem- mas posto fora do círculo do eu, ao mesmo plar. A página abre-se com a menção ao tempo que a lírica de Tennyson e a prosa mundo pesado dos banqueiros e aos pro- translúcida de Renan preenchem o desejo cessos movidos pelas vítimas dos golpes de beleza e de sentido do cronista: da Bolsa. A nota que o império da finança Raymundo Faoro viu com agudeza o inspira ao cronista passa de “grave, soturna deslisamento do observador da nova so- e trágica” a simplesmente “enfadonha”. ciedade para o cético formado pela escola Analisando os parágrafos finais, reconhe- do moralismo clássico.1 Mais do que mero cemos a mesma matéria opressiva de que reflexo do quadro empírico, que os jornais os jornais andavam saturados; e reitera-se a presumem espelhar, a prosa machadiana expressão do autor: “afinal, um fastio que é consciência reflexiva, trabalho da mente nunca mais acaba.” alerta que converte impressões do cotidia- Entre o enfado da abertura e o enfado no em juízos de valor. O que está perto dos do epílogo, o que o cronista intercala para olhos é mediado pelo intervalo moral e esti- distraí-lo do prosaísmo do Encilhamento? lístico, de tal maneira que o historiador que Comentários a duas mortes sentidas, a do recolha da escrita machadiana só o puro poeta laureado Tennyson e a do ídolo da documento de época arrisca-se a perder a geração de Machado jovem, Ernest Renan. dimensão mesma do seu sentido, encurtan- O que pode parecer jogo gratuito, cabriola do o alcance da interpretação. Sem o tra- ociosa, é, na verdade, salto estratégico. balho hermenêutico, o empirismo revela-se Não poderia ser mais agudo o contraste simplista. entre o assunto aborrecido dos jornais (ban- Na crônica, aparentemente vagamunda cos, Bolsa, câmbio...) e a evocação do poeta e caprichosa, que fala primeiro do encilha- idílico inglês ou do mago da linguagem cé- mento, depois de Tennyson e de Renan, vol- tica, o criador daquele estilo “puro e sólido, tando enfim ao encilhamento, tudo quanto feito de cristal e melodia”. Tennyson e Re- se suporia atual, matéria de imprensa, é afi- nan, mortos e distantes, surgem próximos e nal mortalmente enfadonho e, a rigor, não vivos como feixes de luz, e a sua presença interessa ao foco narrativo: “Prisões, que torna ainda mais plúmbea a atmosfera das 1 políticas monetárias desencadeadas pelo Raymundo Faoro, Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1974, pp. 495- ministro da Fazenda. 505. O teatro político nas crônicas de Machado de Assis • 93 tenho eu com elas? Processos, que tenho naquela nação nem seriam apanágio deste eu com eles?” Mas o que acaba de mor- ou daquele povo. A insanidade, as incoe- rer, o homem do pensamento e da palavra, rências, a vaidade e a hipocrisia estavam ocupa inteiramente o espírito e o coração largamente distribuídas pelo nosso planeta, do cronista. Machado não era um jornalista embora, vivendo e escrevendo no Rio de Ja- provinciano e míope, nem a cultura letrada neiro, era de esperar que Machado se deti- brasileira do seu tempo era marginal e inca- vesse de preferência nas mazelas que caíam paz de dialogar com as pontas de lança da sob os seus olhos curiosos. Mas o leitor dos inteligência do Ocidente. jornais europeus e dos telegramas, que já chegavam numerosos e céleres no último Machado sem fronteiras quartel do século, não deixaria de comentar com o mesmo ceticismo os fatos de além- “Il mondo casca!” -mar. Sem xenofobia nem eurocentrismo, Cardeal Antonelli o que mostra sua largueza de vistas e seu discernimento. “Os alfaiates levarão muito tempo Brito Broca, depois de resenhar algu- a medir e cortar a bela fazenda mas crônicas locais, levanta o véu de uma turca para compor o terno que a escrita sem fronteiras no fecho do capítulo civilização ocidental tem de vestir.” “A semana política de Machado”. Cá e lá A Semana, 20/9/1896 o mundo parecia cair dando razão a certo cardeal romano que, ouvindo notícias alar- Brito Broca, que conhecia as crônicas mantes ou estranhas, exclamava: “Il mondo de Machado de cor e salteado, deu-nos al- casca!” guns ensaios breves e lúcidos que enfeixou “No Exterior, a sequência dos quadros em Machado de Assis e a política.2 É um apresentava aspecto mais intranquilo ain- livro cheio de observações agudas, ditas da. Prosseguia a luta pela independência de sem pretensão nem parti pris ideológico, Cuba, esta última auxiliada pelos Estados Unidos contra a Espanha. Menelik fazia proe- pois não deseja provar nem que Machado zas na Abissínia. Jameson invadia o Transvaal, foi alienado nem que foi o mais radical dos levando Machado a recordar a famosa frase críticos da sociedade brasileira de todos os de Pascal: ‘La force est la reine du monde’; tempos. Brito Broca vai lendo e anotando anunciava-se o desmembramento da Tur- aspectos vários da crônica machadiana sem quia; e até na Coreia, neste fim de século, puxá-la para esta ou aquela direção. O re- havia uma guerra. ‘Não é mister dizer o que sultado é feliz: além da prosa limpa, isenta está fazendo a Coreia’ – considerava o folhe- de extrapolações, o leitor ganha uma visão tinista –. ‘Agora há pouco matou tanto e de matizada da leitura que o cronista fazia dos tal maneira que foi preciso matá-la também.’ Enquanto isso, o Presidente da França fazia desconcertos do mundo que, por serem propósitos de paz. Francamente, o mundo próprios do “barro humano” (expressão de varia muito pouco e isso é motivo para não Machado), não se localizavam só nesta ou nos desanimarmos ante as perspectivas ne- 2 Brito Broca, Machado de Assis e a política. São Paulo/ fastas. É o próprio Machado de Assis, aliás, Rio de Janeiro: Polis/ INL, 1983. que nos sugere essa lição de esperança. 94 • Alfredo Bosi

À página 184, diz ele: ‘Supunha o mundo humanas;4 quase sempre degenera em perdido em meio a tantas guerras e calami- competição entre nações pelo poder e pela dades, quando respirei aliviado: encerravam- riqueza e, como tal, aguça o pessimismo do -se em Londres, com grande brilho, as festas cronista. de Shakespeare’.”3 As guerras mencionadas por Brito Bro- Esse mundo, que parece sempre à bei- ca e lembradas nas crônicas dão sinais da ra da ruína (é o sentido da frase do cardeal loucura dos homens que não cessa com italiano: il mondo casca!), na verdade está o tempo. Quanto ao século do progresso, sempre mudando de fisionomia, pois é pró- com suas revoluções e reações, “anexações prio do tempo passar: “Os dias passam, e e desanexações”, seus impérios e novas co- os meses, e os anos, e as situações políti- lônias, conheceria todo tipo de surpresas cas, e as gerações, e os sentimentos, e as cruéis. A modernização imposta à África, ideias.” (16 de junho de 1878) ao Japão, às Filipinas, à Índia, à Rússia, à Uma das formas historicamente visíveis Turquia, à Grécia... não poupou o sangue dessa passagem incessante – cujo limite é a das populações civis, que correu tão barba- morte das instituições – é o que se chama, ramente como nos séculos das trevas. em sentido lato, modernização. Machado A tudo o nosso olheiro, posto que bem pôde assistir, ao longo do século XIX e no informado, dá de ombros, como fizera ao começo do século XX, a alterações vastas contemplar os desatinos nacionais do enci- e profundas no cenário internacional, nos lhamento: “Guerras africanas, rebeliões asi- costumes, nas ciências da natureza e da áticas, queda do gabinete francês, agitação sociedade, nas técnicas e em tudo o que política, a proposta de supressão do senado, entende com o progresso material. As mu- a caixa do Egito, o socialismo, a anarquia, a danças foram extraordinárias, e o seu olhar 4 A exceção notória, variamente interpretada pela his- as apreendeu tanto no ritmo célere do te- tória econômica, é a legislação abolicionista; lenta, em- bora, no Brasil e em todo o Ocidente, sempre abriu ca- légrafo quanto, mais lentamente, na tran- minho para a passagem do velho ao novo liberalismo. sição do velho para o novo Brasil, do velho Leia-se, a propósito, o estudo de Sidney Chalhoub, Ma- chado de Assis historiador (Cia. das Letras, 2003), que para o novo Rio de Janeiro. Em uma de suas revela as reações de Machado funcionário e Machado últimas crônicas ele deplora a morte preco- cronista às manobras que tendiam a amortecer os efei- tos liberadores da Lei de 28 de setembro de 1871. A ce de Heine, que, nascido em 1800, poderia resistência dos senhores e o seu poder de emperrar as ter vivido até o fim do século para presen- iniciativas do Estado liberal foram moeda corrente em todas as formações sociais assentadas no sistema de ciar a passagem do legitimismo da Santa plantagem: no Brasil, nas colônias afro-portuguesas, Aliança ao anarquismo e ao niilismo... “Os nas Antilhas francesas e espanholas e, belicamente, nos Estados Unidos. A legislação emancipadora tardou dias passam... e as ideias.” a concretizar-se entre nós, mas tampouco foi veloz o A história, feita de paixões e interesses, seu ritmo nas câmaras legislativas francesa, espanhola e portuguesa, onde a abolição foi acompanhada de in- não persegue valores éticos. A moderni- denização aos proprietários. Cá e lá... O velho liberalis- zação raras vezes humaniza as relações mo (europeu e brasileiro) valeu-se do trabalho escravo quando pôde; e nas colônias europeias a legislação, emanada das câmaras metropolitanas, favoreceu os 3 Machado de Assis e a política, op. cit., p. 187. A nu- proprietários até mesmo quando estes foram obrigados meração indicada por Brito Broca remete à edição das a desfazer-se dos cativos. A partir da Restauração, o crônicas feitas pela Ed. W.M. Jackson, Rio de Janeiro, liberalismo excludente encontrou e ocupou o seu lugar 1937. na Europa Ocidental e nas Américas. O teatro político nas crônicas de Machado de Assis • 95 crise europeia, que faz estremecer o solo, e que dizem várias crônicas tendo por base os só não explode porque a natureza, minha telegramas e os jornais europeus que chega- amiga, aborrece este verbo, mas há de es- vam regularmente ao Rio de Janeiro. Mas que tourar, com certeza, antes do fim do século, a prática do canibalismo pudesse encontrar-se que me importa tudo isso? Que me importa não só entre bugres como também entre civi- que, na ilha de Creta, cristãos e muçulmanos lizados no fim do século XIX, eis uma verdade se matem uns aos outros, segundo dizem te- dura de engolir! Mas é exatamente o que re- legramas de 25? E o acordo, que anteontem gistra a crônica de 1.o de setembro de 1895. estava feito entre chilenos e argentinos, e já Convém analisar a sua composição. ontem deixou de estar feito, que tenho eu As frases de abertura narram candida- com esse sangue e com o que há de correr?” mente atos de antropofagia perpetrados (A Semana, 26 de abril de 1896). Lucidez ex- por um professor inglês que devorou várias trema e extremo distanciamento parecem crianças em uma escola de nativos da Gui- dar-se as mãos nessas interrogações e desde- né. A conduta do mestre-escola britânico nhosas: “Que tenho eu com esse sangue?” é encenada e racionalizada nos seguintes “Que me importa?” termos: “Pode ser que o professor quisesse O auge da expansão imperialista euro- explicar aos ouvintes o que era o canibalis- peia coincidiu com o clímax da ideologia do mo, cientificamente falando. Pegou de um progresso, de que as exposições industriais e pequeno e comeu-o. Os ouvintes, sem saber universais e a Belle Epoque seriam testemu- onde ficava a diferença entre o canibalismo nhos ostensivos. Não por acaso, as políticas científico e o vulgar, pediram explicações; o colonizadoras dos Estados valiam-se de dis- professor comeu outro pequeno. Não sendo cursos lastreados pela crença na civilização, provável que os espíritos da Guiné tenham a palavra-­chave da época. Não se tratava ab- compreensão fácil de um Aristóteles, conti- solutamente de discursos de periferia, aos nuaram a não entender, e o professor conti- quais é sempre fácil atribuir o monopólio do nuou a devorar meninos. É o que em peda- despautério. Eram sortidas bélicas do cen- gogia se chama ‘lição de cousas’.” tro mundial do poder, de onde irradiaram as Dado que a razão fosse essa, o professor novas investidas conquistadoras. O cronista, afinal “sacrificou-se”, “com o fim de civili- atento ao telégrafo, não perde nem os fatos zar gentes incultas”, “por amor ao ensino, nem o seu teor violento: dedicação à ciência, à nobre missão do pro- “Agora a Itália é um grande reino que já gresso e da cultura”. não fala a poetas, apesar do seu Carducci, O sarcasmo rege cada palavra do perío- mas a políticos e economistas, e entra a fer- do, e tudo vem a dar na sátira de uma civi- ro e fogo pela África, como as demais po- lização tida por superior à dos povos coloni- tências europeias” (8 de março de 1896). A zados. O intertexto é a célebre proposta que ferro e fogo. A percepção do novo colonia- Swift (mais um moralista do século XVIII) fez lismo vestido com as razões do progresso aos ingleses do seu tempo: já que as crianças não poderia ser mais nítida. irlandesas são em número infinito, e a sua Que o feio espetáculo das empresas hu- criação é onerosa para o reino, que sejam as- manas não conheça fronteiras nacionais, é o sadas e comidas, tornando-se assim úteis ao 96 • Alfredo Bosi bem público além de nutritivas e saborosas. admissão pública da compra e venda do voto Na boca escarninha do deão irlandês a an- em todo o Brasil. Representação parlamentar tropofagia aparece com uma ação justificável viciada em estilo tipicamente brasileiro? Sim e até mesmo benemérita. Mas, voltando os e não. Sim, pelo conteúdo: as distinções de olhos para o Brasil de 1890, o nosso cronis- major e coronel da Guarda Nacional eram ta dá notícia de alguns casos de canibalismo fatos locais. Não, quanto ao espírito e à for- ocorridos em Salinas, vilarejo perdido nas ma: Lélio nos conta que Luís Filipe, rei no Minas Gerais. Bárbaros embora, esses atos regime liberal parlamentar da França entre comparam-se aos golpes do encilhamento de 1830 e 48, teria induzido os eleitores a ven- 1890-91: “Comiam-se aqui também uns aos der as suas adesões “por meio de concessões outros, sem ofensa do código – ao menos no de casas de tabaco”. Nesta altura, como de capítulo do assassinato.” Cá e lá... outras vezes, o cronista passa de perplexo a A típica oposição – civilização versus simplesmente jocoso: as tabacarias trocadas barbárie – formulada no século XIX pelos pelo voto do eleitor francês eram bem reais, arautos do novo colonialismo, desfaz-se sob mas as patentes de coronel desacompanha- os golpes da escrita machadiana. Ergue-se das dos seus respectivos batalhões seriam a cortina de veludo que ocultava hipocrita- puramente abstratas e nominais. Por que, mente a cena de horror. A barbárie aparece então, não sorteá-las pela loteria da Corte? A como o fundo comum da história dos povos: proposta, embora engenhosa, provavelmen- “Quando voltar o costume da antropofagia, te não satisfaria aos candidatos do governo, não há mais que trocar o ‘amai-vos uns aos que desejavam traficar votos seguros, bem outros’ do Evangelho, por essa doutrina: contados, personalizados. ‘Comei-vos uns aos outros’. Bem pensado, A farsa eleitoral das monarquias parla- são os dois estribilhos da civilização.” mentares nos reconduz à visão do teatro po- O que distingue a barbárie manifesta no lítico, que é nacional e internacional. Aquém sertão de Minas da praticada pelo profes- e além do Atlântico os seus estilos podem sor inglês é, exclusivamente, a possibilida- ser altos ou baixos. Baixo é, de vez em quan- de de dar a esta última uma “explicação” do, o modo inglês, sempre que as discussões que, apesar de absurda e desumana, vem na Câmara dos Comuns acabam em sólidos articulada em termos de discurso arrazoa- murros; o que também acontece na Câmara do. O cerne da sátira de Machado, como da Municipal do Rio de Janeiro, onde há confli- proposta de Swift, incide no próprio teor da tos que se resolvem à unha. “O murro é in- argumentação que justifica a bestialidade glês”, pondera Machado, “mas se imitamos promovida por amor da civilização. Il mon- dos ingleses as duas câmaras, o chefe de ga- do casca, mas o espetáculo continua. binete, o voto de graças, as três discussões e No capítulo bem menos sinistro da venali- outros usos políticos de caráter puramente dade eleitoral, Lélio, em bala de 5 de outubro nervoso, por que não imitaremos o murro, o de 84, registra consternado a recomendação, sadio murro, o murro teso, reto, que tira me- feita pelo ministro da Justiça, de não mais se lado dos queixos e leva convicção às almas?” distribuírem patentes da Guarda Nacional até (2 de julho de 1883). Haverá, porém, nati- a eleição seguinte. A instrução oficial era uma vistas que, repelindo os costumes exóticos, O teatro político nas crônicas de Machado de Assis • 97 preferem a “vara de marmelo da infância”, menos poético do que os tempos de outro- também chamada “camarão”... Assim fa- ra? Tudo leva a supor a insinuação de cer- zendo, conservam os salutares hábitos dos ta dose de ambivalência nas passagens em seus antepassados. que o cronista lastima, meio irônico, meio Quanto ao estilo alto, não por acaso nostálgico, a troca dos velhos costumes vem também de Londres. A rainha é louva- otomanos pela casaca parlamentar adotada da pelo lord chief of justice em um banque- na moderna Turquia. Comentando o fim da te oferecido ao ator Irving: o nobre ministro Sublime Porta e dos requintes do sultão e não encontra melhor elogio do que com- seu harém, Machado exclama como se fos- parar o papel majestático de Victoria ao de se um renitente saudosista: “Dou começo à atriz “no tablado dos negócios humanos, crônica no momento em que o Oriente se representando com graça, com dignidade, esboroa e a poesia parece expirar às mãos com honra e com uma nobre simpleza” (15 grossas do vulgacho. Pobre Oriente! Mísera de agosto de 1883). poesia!” (1.° de julho de 1876) Considerando que representar é pare- Não sendo plausível crer que Machado cer, ainda melhor do que ser (conclusão já preferisse o despotismo milenar ao libera- tirada no conto “O segredo do bonzo”), o lismo dos reformadores turcos, fica o sen- cronista acabará um belo dia elencando os timento de que o autor, não conseguindo tópicos e os tropos que os atores parlamen- ver a poesia na “nova mutação de cena tares deverão recitar nas ocasiões adequa- em Constantinopla”, compraz-se em re- das. A retórica vem da Europa, velha de sé- gistrar o caráter perecível das crenças e dos culos, mas há sempre oportunidades novas regimes: “Vão-se os deuses e com eles as de usá-la, e o público que se agita nas gale- instituições.” A morte destas não traz for- rias não pede mais que esses brilhos e essas çosamente bem nem mal: apenas sugere-se casacas de empréstimo úteis como as frases que a poesia de outrora se está desfazendo de Spencer, de Comte, de Leroy-Beaulieu com o triunfo da modernização política. A etc. (10 de julho de 1883). A aliança de te- beleza da tradição sucumbe à força das mu- atro e retórica vem de longe, e os debates danças ideológicas. “Mas o que eu apuro parlamentares apenas a atualizam. Cá e lá. de tudo o que nos vem pelo cabo submari- no e vapores transatlânticos é que o Oriente As formas do passado e a acabou e com ele a poesia.” força da Natureza Que haja poesia e beleza nas formas plasmadas no passado, abstração feita da “La force est la reine du monde” violência daqueles tempos (persistente, ali- Pascal ás, no século XIX) – é a opinião reiterada “mas que é a natureza senão nas páginas da Semana. É o caso de seguir uma arte anterior?” o rastro das reflexões aparentemente nos- A Semana, 18/10/94 tálgicas do cronista para captar o seu sig- nificado. O que dizer do juízo machadiano segun- A ideia de que o passado, enquanto do o qual o mundo contemporâneo seria estágio arcano da humanidade, guardaria 98 • Alfredo Bosi em seus mitos e sagas o segredo do belo Se, por um lado, os estímulos que agi- ingênuo e vivo é um topos que data, pelo ram sobre o cronista, os fatos nus e crus do menos, do século XVIII. Vico e Rousseau jogo econômico, invadiam o seu cotidiano, conceberam-no de diversos modos: dele ocupando as páginas da Semana, a reação nutriu-se o Romantismo emprestando-lhe, moral e estética do escritor Machado de pela reflexão estética de Schiller e de Leo- Assis alimentava-se da tradicional antipatia pardi, vigorosas formulações.5 Para descon- ao burguês filisteu, ao homem do lucro e forto dos reducionistas é conhecida a pas- do negócio, que se chamaria Procópio Dias, sagem da Introdução à crítica da Economia Cotrim ou Palha no universo da sua ficção. política, em que Marx se mostra perplexo Das culturas europeias, plasmadas an- em face do encanto que a arte grega ainda tes da modernização avassaladora do fim desperta em plena era das ferrovias e dos do século, vinham imagens de formas transatlânticos. E é a mesma hipótese vi- pregnantes, inteiras e fortes, que pude- quiana da permanência milenar da fantasia ram tomar corpo e resistir por longo tempo mítica, própria da infância do gênero hu- porque o “desencantamento do mundo” mano, que comparece no discurso do ma- ainda não tolhera o vigor da criação. Home- terialista dialético.6 Veio depois a sociologia ro e Platão, Dante e Shakespeare, Leonardo da cultura, fértil em hipóteses historicistas, e Rafael, Mozart, Beethoven e o olímpico e viu na saudade dos belos tempos de an- Goethe já não seriam possíveis sob a rotina tanho a defesa de grupos sociais tradicio- pedestre das sociedades contemporâneas. nais em face da maré capitalista, utilitária e Restava a ópera, exceção que confirmava prosaica. Entre nós, afunilando o contexto, a regra geral. O Machado cético cede às o weberiano Raymundo Faoro entreviu um vezes ao Machado artista que, na esteira certo Machado de Assis avesso à hegemo- de seus mestres de desengano, Leopardi e nia do dinheiro e dos endinheirados que os Schopenhauer, não deixará de encantar-se anos do Encilhamento trouxeram alijando com a beleza sem-par daquelas obras capa- os antigos e decorosos costumes da ordem zes de sobreviver na memória dos homens estamental.7 ainda sensíveis ao seu fascínio. Como a Natureza, a arte é poderosa, fe- 5 Machado traduziu o poema “Os deuses da Grécia”, cunda e criadora das suas próprias formas de Schiller, de que transcrevo a penúltima estrofe: e leis. E como a Vida, os seus fins situam- Foram-se os numes, foram-se, levaram Consigo o belo, e o grande, e as vivas cores, -se aquém do bem e do mal dos homens, Tudo o que outrora a vida alimentava, ignorando as veleidades concebidas pelos Tudo o que é hoje extinto. 6 “Por que então a infância histórica da humanidade, mortais: daí viria o segredo da sua perpe- naquilo precisamente em que atingiu o seu mais belo tuidade em um universo em que a regra é a florescimento, por que esse estágio de desenvolvimen- to para sempre perdido não há de exercer um eterno usura do tempo. encanto?” (Marx, Contribuição para a crítica da Econo- A morte de Tennyson e de Renan afetam mia política. Lisboa: Estampa, 1974, p. 240.) 7 A crônica de 7 de julho de 1878 traz estas palavras o cronista de tal modo que vêm a reduzir- de aversão ao enriquecimento rápido: “Isto de notas -se a nadas fastientos os vaivéns da Bolsa, falsas, libras falsas e letras falsas, creio que tudo vai en- troncar-se numa palavra de Guizot: Enriquecei! palavra as emissões dos bancos, as jogatinas do sinistra, se não é acompanhada de alguma coisa que a tempere. Enriquecer é bom; mas há de ser a passo de boi, quando muito a passo de carroça d’água.” O teatro político nas crônicas de Machado de Assis • 99

Encilhamento. No plano internacional a rea- verdade, a sobrevida da arte não se acha, ção de Machado será exatamente a mes- em nosso autor, dependurada no puro arbí- ma. Comentando, em telegrama datado de trio do leitor apaixonado. O que sustenta o Londres, de 24 de abril de 1896, que trazia valor da obra de ficção é o seu firme nexo a notícia do término das festas de Shakes- com a força, a verdadeira rainha do mundo, peare, o cronista resenha com desdém as na palavra grave de Pascal; a força, que tem turbulências políticas que àquela altura co- por sinônimos natureza e vida. A relação moviam o planeta, para depois compará-las fundante entre arte e realidade é concebida com a perenidade do dramaturgo inglês, por Machado em termos que ultrapassam em termos que não poderiam ser mais as- de longe o espelhamento miúdo e restrito sertivos: dos fatos da crônica de jornal pelo criador “Terminaram as festas de Shakespea- de ficção. Os fatos apenas comprovam à re...” O telegrama acrescenta que “delega- sociedade os recursos de que se vale a for- do norte-americano teve grande manifesta- ça, “rainha do mundo”. O que o romance ção de simpatia. A doutrina Monroe, que é transpõe e estiliza é o jogo mesmo do desti- boa, como lei americana, é cousa nenhuma no de homens e mulheres que estão presos contra esse abraço das almas inglesas sobre ao instinto de conservação, querem viver e a memória do seu extraordinário e universal querem poder, mas trazem no corpo e na representante. Um dia, quando já não hou- alma o estigma da precariedade. Veleidades ver império britânico nem república norte-­ de amor, veleidades de fama, tudo veleida- americana, haverá Shakespeare; quando de, para melhor rimar com a sentença do se não falar inglês, falar-se-á Shakespeare. Eclesiastes. Só a força, causa primeira da Que valem então todas as atuais discórdias? existência, não passa. Contraponto único O mesmo que as dos gregos que deixaram da inconsistência dos projetos humanos, foi Homero e os trágicos. [...] Que valem todas a ela que Napoleão concedeu a exceção à as expedições de Dongola e do Transvaal palavra bíblica. contra os combates de Ricardo III? Que vale E o que restaria da História feita por ho- a caixa egípcia ao pé dos três mil ducados mens e mulheres que a Natureza produz, de Shylock? O próprio Egito, ainda que os reproduz e desfaz em seu eterno retorno? ingleses cheguem a possuí-lo, que pode va- Resta a memória do belo que, por atalhos ler ao pé do Egito da adorável Cleópatra? obscuros, talvez inconscientes, atingiu o se- Terminaram as festas da alma humana” (26 gredo da força e o revelou sob as espécies de abril de 1896). da forma artística. Arte: força criadora de Seria gratuita e inexplicável a resistência formas. Mas à medida que a consciência da milenar das grandes obras da poesia e da própria finitude vem minando por dentro arte contra (a preposição é usada por Ma- o ofício do poeta, também as suas ficções chado) as instituições e a cena política de acabam perdendo o viço das antigas sagas ontem e de hoje? A História esvazia-se de e epopeias, cobrindo-se agora com o véu da sentido, ao passo que Homero, os trágicos melancolia. Esta é a condição prosaica do e Shakespeare preenchem os valores autên- narrador moderno, e outra coisa não diriam ticos a que pode aspirar a alma humana. Na os que mais no fundo penetraram, de Croce 100 • Alfredo Bosi a Lukács, de Benjamin a Adorno. A ideia já um moço de vinte e oito anos; Machado, estava (mas sem negrume de pessimismo), ao proferir aquelas palavras de devoção no mestre de todos, o sempre jovem velho exclusiva à literatura, estava chegando aos Hegel: “Se, agora, voltarmos o olhar para o sessenta. mundo atual, com as condições evoluídas A questão é delicada, inimiga de patru- de sua vida jurídica, moral e política, somos lhas e igualmente avessa a fetichismos. Ma- obrigados a constatar que as possibilidades chado de Assis manifestou coerentemente, de criações ideais são muito limitadas.”8 em toda a sua longa vida de escritor, pro- Voltando à cena: as figuras do decoro e pensão para o decoro. Traço de caráter que o seu decor. todos os biógrafos constataram, e a intuição Poucas expressões haverá na lingua- psicológica de uma fina estudiosa de sua gem crítica que tenham sido objeto de pessoa e obra, Lúcia Miguel-Pereira, procu- tanto menosprezo como a mal afamada rou compreender em termos de autodefesa “torre de marfim”, com que se procura existencial do mulato pobre e enfermiço a acusar a conduta alienada de pessoas e que só o mérito e uma conduta sóbria e dis- instituições fechadas em si mesmas. No creta ofereceriam alguma chance de ascen- entanto, para perplexidade de todos os são social. O amor ao decoro evitaria que a que admiramos o maior dos nossos es- intimidade frágil e vulnerável recebesse os critores, Machado de Assis empregou-a golpes da esfera pública e de suas formas como elogio e norma da Academia Brasi- diretas ou oblíquas de dominação. leira de Letras na sessão de 7 de dezem- Raymundo Faoro, no estudo menciona- bro de 1897, quando se encerravam os do, tenta ir mais longe: Machado nasceu trabalhos de seu primeiro ano de vida. O e cresceu em um contexto social e político contexto era a proposta dos planos que a cujo valor conquistado fora a estabilidade. Academia deveria cumprir no ano seguin- Garantiam-na a instituição monárquica e te, e que cabia ao presidente formular: um sistema parlamentar imitado da França “Nascida entre graves cuidados de ordem e da Inglaterra, respeitoso das praxes e das pública, a Academia Brasileira de Letras tem fórmulas. Sociedade ciosa de seus estamen- de ser o que são as associações análogas: uma tos e hierarquias, embora ainda não enrije- torre de marfim, onde se acolham espíritos cida pelos séculos; sociedade de bacharéis literários, com a única preocupação literária, e de onde, estendendo os olhos para todos que, por sua vez, secundavam os interesses os lados, vejam claro e quieto. Homens daqui e as aspirações de classes, como as oligar- podem escrever páginas de história, mas a his- quias agrárias e os donos do comércio ex- tória faz-se lá fora.” portador, ou de grupos de status, como a magistratura, o exército, o clero, a burocra- Lembrava, em seguida, a exemplar defe- cia da corte. rência com que o Napoleão, agradecendo a Mesmo fazendo oposição, o liberalismo eleição de membro do Instituto de França, possível nos primeiros decênios do Segun- dissera aos confrades que seria por muito do Reinado não poderia deixar de ser ex- tempo “seu discípulo”. Napoleão era então cludente, apoiado como estava na eleição 8 Hegel, Esthétique. Paris: Aubier, 1944, I, 231. censitária, na esteira do sistema eleitoral da O teatro político nas crônicas de Machado de Assis • 101

Restauração.9 As tiradas retóricas que, vez Não me parecem ainda suficientemente por outra, se ouviram na Câmara, investin- esclarecidas as causas da mudança de pers- do contra o “poder pessoal” do Imperador, pectiva e de tom do Machado jovem (de não abalariam, a rigor, o cerne do sistema 1860 a 1866) para o Machado maduro, tal político nem o seu funcionamento. Quanto como já se revela nas crônicas dos fins dos ao roteiro ideológico de Machado de Assis, anos 70 em diante. No seu excelente A ju- exceção feita a seus primeiros escritos de ventude de Machado de Assis, Jean-Michel jornalista parlamentar (as crônicas liberais Massa elenca alguns temas liberais ardente- dos anos 60), não se caracterizou pela vee- mente defendidos nas crônicas do Diário do mência direta de opositor indignado. O tom Rio: a eleição direta não censitária, pois o de suas observações foi baixando e a ironia censo pecuniário aí aparece como “injusto substituiu a franca acusação à medida que e odioso” (a sua abolição na França se dera o cronista descria de toda política, nacional em 1848, sessenta anos depois da revolu- ou estrangeira, embora sempre o atraísse ção); repúdio à intervenção militar francesa o cenário onde deputados e senadores de- no México; denúncia da ditadura de Solano sempenhavam os seus papéis. López e apoio à guerra do Paraguai, tida por uma cruzada pela liberdade do povo 9 Em Cidadania no Brasil. O longo caminho (Civilização irmão. Eram enérgicos os seus ataques aos Brasileira, 2001), José Murilo de Carvalho relativiza o teor elitista da eleição censitária, argumentando que “a conservadores e à imprensa clerical, então maioria da população trabalhadora ganhava mais de entranhadamente reacionária. 100 mil-réis por ano”. Comparado com o que ocorria com sistemas de outras nações, o nosso processo eleito- Onde e quando identificar o momento ral não lhe parece menos liberal: “As exigências de ren- da cesura, o divisor de águas? da na Inglaterra, na época, eram muito mais altas, mes- mo depois da reforma de 1832. A lei brasileira permitia A conhecida confissão da “perda de to- ainda que os analfabetos votassem.” Adiante, confron- das as ilusões sobre os homens”, menciona- ta os nossos percentuais com os de estados europeus já avançados na prática do liberalismo formal. No Brasil da pela biógrafa Lúcia Miguel-Pereira, data de 1872 votavam 13% da população livre; na Inglaterra a crise de 1879; mais precisamente, dos 7%; Itália 2%; Portugal 9%; Holanda 2,5% (pp. 30- 31). Mas o mesmo historiador mostra que o caráter an- meses de doença que precederam a reda- tidemocrático do sistema não estava tanto no número ção das Memórias póstumas de Brás Cubas. dos votantes quanto nas práticas de cooptação, fraude e violência que marcavam a maioria das eleições. Em Machado entrava na casa dos 40 anos.10 seu denso estudo sobre a história do sufrágio universal No estudo citado, Massa recorta um pri- na França, Pierre Rosanvallon chama “draconianas” as condições de elegibilidade da Carta da restauração de meiro período de ruptura no final dos anos 1814, fruto do liberalismo pós- e antirrevolucionário (Le 60. A leitura sociológica tende a encarecer sacre du citoyen, Gallimard, 1992, p. 271). Os liberais eram rigorosamente excludentes sempre que se tratava certos fatores da ascensão de Machado na de escolher os detentores do poder de legislar. Guizot, escala social que teriam amortecido a sua teórico do liberalismo conservador francês e modelo arquicitado de nossas elites imperiais, dissera sem re- paixão política juvenil: o ingresso no funcio- buços: “Em matéria de liberdade, há direitos universais, nalismo (foi nomeado Adjunto de Diretor do direitos iguais; em matéria de governo, não há senão direitos especiais, limitados, desiguais” (Discurso à Câ- Diário Oficial em 1867); o desligamento da mara de 5 de outubro de 1831, apud Rosanvallon, cit., militância do Diário do Rio (67); a recepção p. 325). Na França e no Brasil aplicou-se coerentemente essa doutrina limitando o número dos votantes e dos eleitores. Temos dados seguros para a França de 1831: 10 Lúcia Miguel-Pereira, Machado de Assis: Estudo críti- 90% dos 200.000 eleitores deviam o direito de voto à co e biográfico. 6.a ed., rev. Belo Horizonte/São Paulo: sua propriedade rural (ibidem, p. 318). Itatiaia/Edusp, 1988, p. 192. 102 • Alfredo Bosi do título imperial de Cavaleiro da Ordem da da crítica: a ideia de mutação comparece no Rosa (67); enfim, o seu casamento com Ca- prefácio à 2.ª edição de Helena (1905), re- rolina Augusta Xavier de Novais, filha de um velando a consciência de clivagem que o es- casal da classe média portuense. critor reconhecia na sua biografia literária. Um leitor atento de toda a obra de Ma- Acontecimentos cruciais como a crise chado, Eugênio Gomes, adverte que a su- de 1868-71, que culminou na batalha em premacia do moralista “observa-se melhor torno do projeto de Lei do Ventre Livre, a a partir da década de 70”, em que a prática eleição direta, a Lei Áurea, a propaganda do “despropósito” humorístico passara a e a proclamação da República, a revolta dar outro timbre às reações morais do es- da esquadra e a campanha sangrenta de critor.11 Canudos assumiriam, na sua prosa lúdica As várias hipóteses sobre a gênese do e desencantada, a forma de espetáculos. Machado maduro, cético e “clássico”, O cronista tudo observava, mas perdera o embora plausíveis, não dão conta da pro- entusiasmo que o empolgara nos anos de fundidade da mudança, que foi estrutural: juventude. ideológica, estilística e, em senso lato, exis- Ficou antológica a sua evocação do Se- tencial. Assim, impõe-se ainda o fenômeno nado dos anos 60, que ele conhecera de da descontinuidade. Como sucedeu com perto como redator do Diário do Rio de uma personagem absolutamente macha- Janeiro. “O Velho Senado” é uma crônica diana, o Joaquim Fidélis do conto “Galeria longa, elaborada frase a frase pela estilís- póstuma”, “há razões para crer que, de cer- tica do distanciamento. São lembranças de ta data em diante, foi um profundo cético, juventude enfeixadas trinta e tantos anos e nada mais”. E Otto Maria Carpeaux viu depois que Machado fora testemunha ocu- em Machado de Assis um dos raros twice lar das sessões públicas daquele colegiado born de nossa história literária. poderoso, mas discreto. Será possível (hipótese a ser testada) O pesquisador de nossa história política dizer que o agnosticismo religioso e sobre- terá que cavar e escavar duramente para tudo a desilusão político-partidária tenham extrair dessas páginas de engenho e arte prenunciado o ceticismo ideológico e exis- o objeto mesmo do seu estudo, ou seja, tencial de longo alcance que viria a carac- o drama vasto e concreto da História e da terizar o autor das Memórias póstumas e política. Em compensação, o leitor da nos- dos Papéis avulsos. Nesse caso, a ruptura sa melhor prosa memorialista se deleitará se teria dado em dois tempos: no final dos com figuras de políticos e suas histórias. anos 60, com a cessação do engajamento Mal entreverá os projetos, as lutas e as ostensivo do jornalista; e, dez anos mais tar- contradições daqueles homens públicos, de, quando a crise se interioriza e penetra o liberais ou conservadores; em compensa- cerne da sua linguagem narrativa. ção, não esquecerá alguns traços de suas De todo modo, a admissão de duas fases fisionomias, alguns gestos e cacoetes que na trajetória de Machado não é invenção os marcaram, o tom e o timbre da voz com que discursaram. Materiam superabat 11 Eugênio Gomes, Machado de Assis. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1958, p. 65. opus. O teatro político nas crônicas de Machado de Assis • 103

O observador aqui é, antes de tudo, o sabiam “governar com mão de ferro este artista consumado que a boa escola do rea- país”. Eram meio homens, meio institui- lismo francês ajudou a formar. É o narrador ções. Tinham atravessado, em cena aberta, solerte que conhece o valor do detalhe e momentos penosos, “apodos e chufas que sabe que um altear de cabeça, um acenar a paixão política desferira contra alguns de- de mão, a cara rapada, os sons guturais de les”, mas acabaram compondo um aspecto uma voz irritada, os ouvidos moucos, os de- sobranceiro, que ia do olhar desafiador à dos que puxavam os punhos da camisa, as soberba indiferença. suíças e os bigodes brancos, um olhar de O cronista lembra, a propósito, os no- soslaio, um riso franco ou contido podem mes de três ministros, Paranaguá, Sinimbu valer como a metonímia da figura inteira. e o Visconde de Ouro Preto. Vêm-lhe à Ao artista interessa o que o cientista tem memória os nomes, mas sobretudo a ca- por inefável: o indivíduo. pacidade, que sempre demonstraram, de Revisitando na memória o Senado de “não perder a linha”. Foram nisso mestres, 1860, o cronista quis demarcar escrupulo- e pouco mais saberá deles o leitor da crôni- samente o seu campo de visão. Não se pro- ca. Caso deseje entender o que acontecia punha apresentar os antigos parlamentares por trás do aprumo dos gestos, deverá abrir como o faria o político ou o historiador de um livro de história política, de preferência profissão, mas apenas como “um simples Um estadista do Império, inédito àquela al- curioso que não descobre mais que o pin- tura, mas que Machado cita e louva, pois turesco do tempo e a expressão das linhas conhecia o teor do que estava sendo escri- com aquele tom geral que dão as cousas to por seu amigo dileto, Joaquim Nabuco. mortas e enterradas”. Oxalá aprendêsse- Reconstruindo a vida do pai, o Senador To- mos com o próprio Machado a reconhecer más Nabuco de Araújo, o líder abolicionista os limites precisos que ele se impusera e de pontuava a relação entre os discursos e a que se mostra tão consciente! O cronista realidade viva e contraditória do Segundo sabe e afirma com todas as letras que não é Império. Nas Câmaras e no mesmo velho historiador e tampouco faz obra de político: Senado ecoava também o Brasil real, desde “Um político, tornando a ver aquele corpo, a comoção da Praieira, as divisões intraoli­ acharia nele a mesma alma dos seus correli- gárquicas, até os episódios sangrentos da gionários extintos, e um historiador colheria Guerra do Paraguai, tomando como pano elementos para a história.” Mas o interesse de fundo uma sociedade presa ao regime do artista está voltado para os atores com escravista e a uma representação viciada seus meneios e palavras, e para a cena com que os “novos liberais” tentavam corrigir. o seu décor e decoro. Tudo isto cabe ao historiador descobrir atrás A primeira impressão forte que rece- da expressão machadiana “paixão política”. beu no Senado o “adolescente espantado Nesta ordem de observações é exem- e curioso” (o Machadinho do Diário mal plar o tratamento dado pelo narrador a um chegara à casa dos vinte anos) foi precisa- episódio que exibe, num relance, o pro- mente a da compostura daqueles homens cesso eleitoral do Império em um de seus que, entre um café e uma pitada de rapé, aspectos mais vulneráveis. Relembrando a 104 • Alfredo Bosi campanha vitoriosa dos liberais nas eleições candentes. Assim, o Poder Moderador, fiel de 1860, o cronista retém a impressão que do Império, foi objeto de um ensaio polê- lhe fez um “obscuro votante” do primeiro mico de Zacarias de Góis e Vasconcelos; turno que se aproximou de Teófilo Otoni talvez nenhuma outra apologia do precei- mostrando-­lhe um maço de cédulas furta- to monárquico-parlamentar – “o rei reina, das a um cabo eleitoral adversário... O ato mas não governa” – tenha agitado tanto as em si era reprovável e poderia dar margem águas do longo período imperial.12 a críticas acerbas do vale-tudo partidário do Quanto à chamada, por eufemismo, tempo. Machado, porém, contenta-se em “questão servil”, conhece-se a luta precoce fixar para o leitor tão só o riso do transgres- e coerente de Montezuma, ou seja, Fran- sor, “a boca sem nome, acaso verídica em cisco Gê Acaiaba de Montezuma, Visconde tudo o mais da vida”. E, se alguma palavra de Jequitinhonha, mulato ilustrado, que o mais severa lhe acontece cair no curso da nosso cronista timbra em descrever com suí­ narração – “as mais claras águas podem le- ças e bigodes brancos. Foi deste filho de var de enxurro alguma palha podre” – logo traficante negreiro a voz abolicionista que sobrevém a errata que tudo relativiza apa- primeiro se ergueu no Instituto dos Advo- gando o rastro da eventual censura: “se é gados, precedendo de muito a feitura do que é podre, se é que é mesmo palha”. Du- projeto de libertação dos nascituros que vidaria o cronista do próprio rigor ético que faria a glória de Paranhos, futuro Visconde o levara a chamar de palha podre o furto do Rio Branco. Que farto material para uma das cédulas? Assim faria o Conselheiro Ai- história política, no caso, Política com P res no Memorial: avançando e retroceden- maiúsculo! do, descobrindo e encobrindo (“os dois ver- Machado, falando de cada um deles, bos da diplomacia”), para afinal neutralizar cinge-se a esta ou aquela anedota, a este seja o reproche seja o louvor talvez exces- ou àquele dito espirituoso, tendendo ao sivos. A estilística do distanciamento e da ferino. A linguagem é peculiar antes ao de- atenuação aproxima a crônica e a narrativa senhista de perfis que ao historiador que literária. avalia a complexidade dos processos sociais Há também retratos ou, melhor dizen- no fundo das ações individuais. O décor, do, perfis traçados com mão de hábil dese- o cenário ideal para aquele teatro de ima- nhista. Os vultos de Zacarias, Montezuma gens, quase sombras, era o velho Senado. e Paranhos são revividos em pleno debate Daí, o caráter espectral com que finda a sua parlamentar. Mas trata-se de rasgos psico- evocação. A última visão é a de um corredor lógicos peculiares ao desempenho orató- escuro por onde vão desaparecendo, um a rio. O cronista omite sistematicamente os um, os seus antigos ocupantes. Quem fe- conteúdos que se valeram dessa retórica, cha a porta da casa é um homem de capa deixando ao historiador a compreensão do preta, meias de seda preta, calções pretos e drama político que os discursos traziam à 12 Refiro-me à obra de Zacarias de Góis e Vasconcelos, tona. No caso de cada um deles, o drama Da natureza e limites do Poder Moderador, cuja primei- não seria de somenos, pois cada um, em ra edição saiu em 1860. Ver o ensaio de Cecília Helena de Salles Oliveira, Zacarias de Góis e Vasconcelos. São tempos diversos, entrou fundo em temas Paulo: Editora 34, 2002. O teatro político nas crônicas de Machado de Assis • 105 sapatos de fivela. Mensageiro alegórico da ao cabo da narrativa. Nesta crônica, porém, morte, o porteiro do Senado abria e cerrava o autor antecipa a chave da alegoria: “O o prédio nas ocasiões solenes. Partido republicano, não obstante as con- vicções dos seus correligionários, nasceu O equívoco e as ilusões principalmente de um equívoco e de uma dos republicanos metáfora: a metáfora do poder pessoal; e a este respeito contarei um apólogo... persa.” “Eu, se fosse imperador, a primeira O equívoco e a metáfora serão ilustra- coisa que faria era ser o primeiro dos pela história de um rapaz de Teerã, cético do meu tempo.” “grande gamenho e maior vadio”, adje- (Balas de estalo, 16 de maio de 1885) tivos que, postos na cabeça do apólogo, traem o olhar depreciativo que o narrador Os espectros do velho Senado sumiram lança ao grêmio alegorizado. É jovem, pois por aquele corredor escuro onde não há ca- nascera havia bem pouco; é gamenho, ter- minho de volta, a não ser quando o percor- mo que se dava aos rapazelhos janotas, e a ram os passos da memória. alusão terá sabor de classe alta, como era a Mas, ao lado dos saquaremas e dos lu- dos fazendeiros e profissionais liberais que zias, começaram a aparecer os republicanos. ostentavam ideias republicanas; enfim, o Machado conheceu de perto vários deles, e rapaz é vadio, atributo que situa em uma a alguns dedicou respeito e amizade: Quin- esfera semântica negativa o partido que vi- tino Bocaiúva, Lafayette Rodrigues Pereira nha contestar o regime. (que o defendeu das diatribes de Sílvio Ro- A cláusula intercalada – “não obstante as mero), Saldanha Marinho, Lúcio e Salvador convicções dos seus correligionários” – signi- de Mendonça, Veríssimo, Bilac, Raimundo fica, ao mesmo tempo, uma concessão aos Correia, Rui... No entanto, a propaganda partidários sinceros da causa (Machado os republicana, que começa formalmente com frequentava e não desejava melindrá-los) e o Manifesto de 1870, só inspirou-lhe um um reforço da tese principal: o nascimento da malicioso apólogo... persa como as Lettres agremiação republicana fora um equívoco. de Montesquieu. Isto posto, o apólogo acompanha a O apólogo vem narrado na crônica de história do rapaz de Teerã. Não tem profis- 11 de agosto de 1878. No fim da sua pri- são, é rico e indolente, tanto que o pai lhe meira década o republicanismo ainda mos- manda que escolha ofício. Metaforicamen- trava um alcance modesto, apesar do avan- te: temos um partido sem rumo definido, ço eleitoral registrado pelo cronista: “Desta composto de homens alheios a qualquer vez parece que o Partido Republicano fez empresa consistente. uma entrada mais solene no pleito eleitoral: De todo modo, o moço sai a campo lutou sozinho em alguns pontos; em outros, curioso de “correr toda a Pátria”, a ver se lutou com alianças; resultando-lhe dessa consegue escolher a profissão “que lhe pa- política algumas vitórias parciais.” recesse mais própria e lucrativa”. Em geral, espera-se dos apólogos que Assim se teria espalhado o republicanis- encerrem uma mensagem a ser decifrada mo, carente de raízes próprias e, por isso 106 • Alfredo Bosi mesmo, ansioso por encontrá-las e deitá-las De todo modo, o nosso malsucedido no solo da nação. E é a figura do plantio cultivador precisava indigitar o culpado: que vai dar armação à parábola. O jovem acabou acusando o sol, porque “era ar- resolve plantar limas, as famosas limas da dente, e requeimava as plantas”. Este era Pérsia. Mas são malogrados os esforços do o culpado visível. A alegoria toca, enfim, o incipiente lavrador. As limeiras, por mais seu alvo: o poder pessoal do Imperador era, que ele as fizesse regar e até enfeitiçar “com para os bisonhos republicanos, o pecado palavras dos livros santos”, não cresciam e, original da política brasileira. menos ainda, frutificavam. Deixo à argúcia O cronista não se contentou em esclarecer dos historiadores do Segundo Império iden- o sentido do apólogo. Foi além, desqualificou tificar a pessoa do mago a quem recorre o explicitamente a razão alegada pelos republi- nosso lavrador em desespero de causa. canos chamando-a de equívoco. A causa das Como explicar o insucesso do plantio, se nossas mazelas políticas não seria, na ótica saborosas limas davam fartamente em outras de Machado, a vigência do Poder Moderador terras? Era preciso descobrir a causa de um que a Constituição de 1824, na esteira da lei resultado tão mofino. As causas podiam ser maior francesa, confiara ao monarca. várias: “falta de alguns sais no adubo, ares Ora, a leitura do Manifesto de 70 não pouco lavados, certa disposição do terreno, deixa dúvidas sobre o alvo principal do novo pouca prática do plantador”. São carências partido. Para fulminar as prerrogativas im- que podem ser lidas em registro alegórico periais, os signatários, dentre os quais so- como razões do malogro das ideias novas. bressaem Saldanha e Quintino Bocaiúva, Estas, de fato, não conseguiam, àquela altu- amigos pessoais de Machado, citam políti- ra, atrair os descontentes com a monarquia, cos de todo o espectro ideológico do Im- que já haviam encontrado o seu nicho na ala pério. Não esquecem sequer as palavras radical do Partido Liberal. Ao grupo da Re- duras de um conservador ressentido, José forma coubera o papel de defender coeren- de Alencar, que pintava o poder pessoal de temente a eleição direta e protestar contra o D. Pedro II como um “pólipo monstruoso”. adiamento das leis abolicionistas. Liberais clássicos como Francisco Otaviano e O que faltaria, então, às limeiras e à Nabuco de Araújo eram igualmente chama- campanha republicana? Terra mais fértil, dos para abonar a mesma posição. mais umidade nos ares, lavrador mais hábil Para Machado de Assis o partido nas- – tudo são figuras do que, em crônica es- cera de um erro de interpretação: é o que crita dias depois, Machado apontará como a crônica afirma sem ter de provar, mesmo “o estado mental” da nação, os seus costu- porque o cronista não se sente na obriga- mes, a sua “infância constitucional” (1.° de ção de ser historiador: basta-lhe o delicioso setembro). privilégio de opinar. Proclamada a Repú- Teríamos, na verdade, causas históricas blica, o escritor (e o romancista de Esaú e que tornariam ineficazes certas propostas Jacó) não mostra entusiasmo pelo regime. de cunho progressista? (Vale a pena revisi- No contexto de uma crônica de 1.° de se- tar a espinhosa questão dos limites ideoló- tembro de 1895, lamentando o suicídio de gicos do ceticismo machadiano.) Raul Pompeia, qualifica de “ilusão” a sua O teatro político nas crônicas de Machado de Assis • 107 paixão política, que sabemos republicana Lendo o prefácio que escreveu para as até os extremos do jacobinismo. Festas nacionais, de Rodrigo Octavio (1893), Incluindo-se certamente entre aqueles vemos o retrato de corpo inteiro da sua in- que estimavam o autor do Ateneu, mas terpretação da história brasileira a partir da “não comungavam com as suas ideias po- maioridade de D. Pedro II: líticas”, Machado diz também que não o Cinquenta anos teve esse monarca para conhecera na época das suas lutas abolicio- construir e fortalecer a vitalidade do civismo brasileiro. Foram cinquenta anos de inércia e nistas em São Paulo. Caso tivesse acompa- de abandono. E este será o grande libelo pe- nhado a trajetória de Pompeia, teria prova- rante a História honesta e exata da inépcia be- velmente relativizado o seu juízo sobre as nigna do Segundo Reinado.”13 “ilusões” do militante. O republicanismo deste começou nos seus anos acadêmicos, Adiante acusa “a negaça perene do seu entre 1882 e 85, e veio sempre misturado abolicionismo platônico” e “a obra negati- com um ardoroso engajamento abolicionis- va da anulação do caráter nacional”. ta. Conhecem-se as suas invectivas dirigidas O contraste entre as atitudes políticas aos assaz moderados republicanos paulistas de Machado de Assis e Raul Pompeia é fla- que, pela palavra de Alberto Sales e Ran- grante e merece leitura detida. Machado gel Pestana, revidavam acusando os seus nada espera da política enquanto interven- “exageros” e o “sentimentalismo” dos se- ção efetiva na esfera pública. A política que guidores de Luís Gama e de Antônio Bento, transforma ou inova não encontra lugar nas ambos venerados pelo jovem Raul Pompeia. suas crônicas, que preferem ver a precarie- De resto, há marcas profundas da aversão dade nas ações e a vacuidade nas palavras de Pompeia ao regime monárquico na sátira dos homens... políticos. Ao passo que o jo- que um personagem do Ateneu, o Dr. Claú- vem Pompeia condena os políticos corrup- dio, faz do “tirano de sebo”, D. Pedro II. tos em nome de seus ideais abolicionistas e A partir do 15 de Novembro acalora-se nacionalistas, Machado tende a duvidar até a sua paixão republicana e, no mesmo grau, mesmo da eficácia de planos bem intencio- o seu nacionalismo intransigente e a ade- nados, como é o caso da proposta de Salda- são incondicional a Floriano Peixoto, que a nha Marinho visando a restituir o prestígio e revolta da Armada suscitaria nos jacobinos a dignidade da Câmara Municipal. do novo regime. Alguma fugaz concessão Convém examinar essa crônica de 1.° à pessoa de Pedro II pode-se detectar em de setembro de 1878, escrita dias depois do artigos que Pompeia escreveu nos meados apólogo que ironizava a propaganda repu- de 1886, quando julgou seu dever defender blicana. Aprovando a iniciativa de Saldanha, o governo de ataques de O País, que lhe cujo espírito democrático levava a encarecer pareceram injuriosos. A figura do velho rei a representação dos munícipes, o cronis- exilado despertou-lhe, mais tarde, um sen- ta julga, porém, que a proposta, mesmo se timento de piedoso respeito. Mas, sempre 13 Ver Raul Pompeia, Escritos políticos, vol. V das Obras que se propunha avaliar em bloco o Segun- (org. por Afrânio Coutinho). Rio de Janeiro: Civ. Brasilei- do Reinado, o seu julgamento era coerente- ra, 1982, pp. 80-85, 91, 95 e 102-104. A carta-prefácio às Festas nacionais de Rodrigo Octavio vem transcrita mente severo, quando não ferino. no mesmo volume, pp. 287-299. 108 • Alfredo Bosi aceita pelos poderes legislativo e executivo, matou a vida local, quando a falta de vida “não terá o desejado efeito”. O seu arrazo- local foi um dos produtores da centralização. ado pessimista lembra o tom dos conserva- Os homens não passaram de simples instru- dores ingleses e franceses que influíram no mentos das coisas. É o que acontece com o pensamento político europeu a partir da Res- poder municipal: esvaiu-se-lhe a vida, não tauração: Burke, Benjamin Constant, Cha- por ato de um poder cioso, mas por força teaubriand, Guizot. O ponto comum é este: de uma lei inelutável, em virtude da qual a de nada adianta a lei sem os costumes que a vida é frouxa, mórbida ou intensa, segundo precedem e devem sustê-la. O projeto inova- as condições do organismo e o meio em que dor precisa contar com “as condições morais ele se desenvolve. É o que acontece com o e mentais da sociedade. Pode a instituição direito a voto; a reforma que reduzir a elei- subsistir com as suas formas externas; mas a ção a um grau será um melhoramento no alma, essa não há criador que lha infunda”.14 processo e por isso desejável; mas dará todas Considerando o intervalo que existiria as vantagens políticas e morais que dela es- entre os bons propósitos do legislador e o peramos? Há uma série de fatores, que a lei peso do “estado mental da nação”, o cro- não substitui, e esses são o estado mental nista se mostra cético quanto à viabilidade da nação, os seus costumes, a sua infância das iniciativas democráticas veiculadas pelo constitucional...” (grifos nossos) parlamento e pelos jornais. Parece não ha- Convenhamos em que não temos nestas ver saída para este desafortunado país onde palavras uma profissão de fé na capacidade os políticos tradicionais fazem jogo de cena transformadora da ação política. Como fa- para manter o status quo, ao passo que os tor de mudança, esta entraria na proporção progressistas, animados de “sentimentos li- de uma quantité négligeable. berais”, propõem medidas certamente ine- Mas o que é, afinal, a política? ficazes. O teatro político apenas encena o Eis o que revela uma pesquisa – verda- impasse que não lhe é dado superar. deiro survey de opinião pública... – que o Machado descrê, por exemplo, da luta cronista simulou na sua bala de 8 de ju- liberal contra o excesso de centralização ad- lho de 85. Tendo enviado a pergunta pelo ministrativa. Luta que está na boca de todos, correio, o cronista seleciona as respostas, virou mesmo “flor de retórica, uma perpétua comentando-as entre jovial e sardonica- chapa”. A sua reflexão contém uma forte mente: dose de determinismo, a que induz o seu “Não publico todas as definições recebi- ceticismo: “Raros veem que a centralização das, porque a vida é curta, vita brevis. Faço não se operou ao sabor de alguns inicia- porém, uma escolha rigorosa, e dou algumas dores, mas porque era um efeito inevitável das principais, antes de contar o que me acon- de causas preexistentes. Supõe-se que ela teceu neste inquérito, e foi o que há de se ver adiante, se Deus não mandar o contrário.

14 A fonte do texto é uma passagem de Spencer, cita- Uma das cartas dizia simplesmente que da na crônica de 6 de novembro de 1892. Sintomati- política é tirar o chapéu às pessoas mais ve- camente, o cronista omite o contexto progressista do lhas. Outra afirmava que a política é a obri- filósofo da evolução e se atém à ideia de que as leis nada podem se não se adaptam às “condições morais e gação de não meter o dedo no nariz. Outra, mentais da sociedade”. que é, estando à mesa, não enxugar os beiços O teatro político nas crônicas de Machado de Assis • 109 no guardanapo da vizinha, nem na ponta da com o seu olhar e o tom de sua voz procu- toalha. Um secretário de club dançante jura rando ir mais longe e mais fundo do que o que a política é dar excelência às moças, e não mero registro empírico. O reflexo é mediado lhes pôr alcunhas quando elas já têm par para pela atividade da reflexão. E a reflexão não esta. Segundo um morador da Tijuca, a polí- se detém em fronteiras nacionais. tica é agradecer com um sorriso animador ao amigo que nos paga a passagem. A consciência do caráter ambíguo ou cambiante do cenário político, armado só A política aparece, na maioria das res- em função de interesses e desejos indivi- postas, como etiqueta, ou seja, teatro de duais, levou o cronista a contemplar com os costumes, em que os signos de cortesia de- mesmos olhos desenganados tanto o jogo vem ser recíprocos. Tudo, em última instân- partidário brasileiro como a prática parla- cia, vem a dar no cuidado individual com o mentar inglesa. interesse próprio: o boticário deve abster-se Em crônica de 4 de agosto de 1884, de comprar na botica da esquina, pois seria Lélio finge transcrever dois discursos de de- favorecer o concorrente; o deputado não putados à assembleia provincial do Rio de votará contra o governo na questão servil, Janeiro, um conservador, outro liberal, fa- contentando-se com meias-medidas, ainda lando a mesma linguagem em uma sessão que declare ser pela abolição imediata; en- de dezembro de 1868. E conclui: “o nome fim, nenhum parlamentar fará obséquios a é que divide”. Mas, sendo a política o que quem não seja seu amigo ou eleitor... é, “obra de homens”, acontecia algo seme- São situações locais, variações brasileiras lhante no pequeno speech de um candida- de tendências recorrentes do “barro huma- to inglês no ano de 1869: “Quero a liberda- no”, assim compreendido nas palavras de de política, e por isso sou liberal; mas para um philosophe do século XVIII: ter liberdade política é preciso conservar a “A classe mais numerosa, a que pertence Constituição, e por isso sou conservador.” quase todo o gênero humano, é aquela em Da mesma prestigiosa fonte britânica vi- que os homens, atentos unicamente a seus in- ria esta outra notícia, que teve o dom raro teresses, nunca lançaram os seus olhares para o interesse geral. Concentrados em seu bem- de deixar pasmo o cronista, em geral fleu- -estar, esses homens dão o nome de honradas mático: “Não há uma semana o correspon- apenas às ações que lhes são pessoalmente dente de Londres, no Jornal do Commercio, úteis”. Adiante: “Se o universo físico se sub- dizia que os conservadores pedem ali a dis- mete às leis do movimento, o universo moral solução da Câmara, mas que os liberais a não deixa de submeter-se às leis do interes- temem, porque estão no governo. Se isto se. O interesse é na terra o mago poderoso não é o mundo da lua, não sei o que seja.” que modifica aos olhos de todas as criaturas (Balas de estalo, 13/3/84). Cá e lá... as formas de todos os objetos.” (Helvetius, Do Perplexidade, ironia, sarcasmo, tudo espírito, ed. de 1758, II, 2.) são modalidades de uma reação subjetiva A crônica de Machado traz reflexos de e cultural à chuva de faits divers que a co- palavras e de atitudes de políticos do Brasil municação nacional e já então internacional imperial. Junto ao reflexo trabalhava a refle- fazia cair sobre o redator curioso e bem in- xão peculiar ao escritor Machado de Assis, formado oculto sob o pseudônimo de Lélio. 110 • Alfredo Bosi

O trabalho do intérprete de Machado confiável, do ponto de vista do cronista, em hoje é também da ordem da reflexão. Basta oposição à vana verba dos parlamentares saber se o leitor dialético, que acaso tenha nacionais? Em nome de qual princípio su- sobrevivido ao século XX, fará passiva e perior deve ser desmistificada a retórica do incondicionalmente sua a imagem do Bra- teatro político? sil tal como aparece espelhada, pensada e Não se vislumbra no leque das ideologias interpretada pelo cronista. Imagem de um contemporâneas de Machado nenhuma que país condicionado por um “estado mental” dê suporte ao seu desdém universalizado mal saído dos tempos coloniais. Imagem pelo ofício dos políticos. Cavando mais fun- de uma sociedade presa a hábitos “inelu- do, a descrença em toda e qualquer doutrina táveis”, o que exprime um estilo de pensar que promova o progresso moral do gênero diferente do protesto encrespado, feito de humano na rota da civilização (positivismo, amor e ódio, revolta e esperança, que sai evolucionismo, socialismo...) resulta na hi- das páginas abolicionistas de Luís Gama, pótese antiquíssima de que tudo, afinal, se André Rebouças, José do Patrocínio ou Cruz repete. Assim acontece com a Natureza, as- e Sousa, mulatos e negros que se indignam, sim gira a roda do destino. A figura do círcu- porque motivados por um ideal de futuro li- lo vale tanto para as eternas e inoperantes bertador. O filtro cognitivo de Machado em reformas eleitorais do Império como para nada se assemelha ao das crônicas jacobi- certos costumes bárbaros do bicho humano, nas de Raul Pompeia, nem coincide com os que se supunha para sempre extintos. O epi- ensaios históricos dramáticos de Euclides da sódio do canibalismo inglês e brasileiro, con- Cunha, inteligência sensível às grandes fra- tado na crônica de 1.o de setembro de 1895, turas de raça, classe e cultura que dividiam ilustrava essa desolada filosofia do eterno a nação brasileira. Comparem-se, enfim, as retorno, que a expressão “andar à roda” palavras desenganadas de Lélio, nas suas descreve com precisão. A antropofagia está balas de estalo (“maciamente sarcásticas”, voltando e poderá sempre voltar: no dizer de Valentim Magalhães), com o pa- “Horrível, concordo, mas nós não fazemos thos liberal-pro­gressista que sopra nas pági- mais que andar à roda, como diria o outro... nas animosas de Joaquim Nabuco escritas Que me não posso lembrar se foi realmente na mesma década de 80. O que são textos Montaigne, pois iria daqui pesquisar o texto que falam de política se não decifrarmos a na própria e deliciosa língua dele. Os franceses têm um estribilho que se poderia aplicar à vida sua perspectiva e não ouvirmos o tom da humana, dado que o seu filósofo tenha razão: voz que os ditou? Em termos de história das ideologias, as Si cette histoire vous embête, perguntas que cabe formular me parecem Nous allons la recommencer. estas: – Qual o contraponto ideológico que Os portugueses têm esta outra, para fa- sustenta coerentemente a sátira machadia- cilitar a marcha, quando são dois ou mais na à política brasileira e à política em ge- que vão andando: ral? Se a sátira é discurso contraideológico, Um, dois, três. qual seria a razão interna e qual o alcance Acerta o passo, Inês. da sua força negativa? Que discurso seria Outra vez.” O teatro político nas crônicas de Machado de Assis • 111

A roda da História é figura que não se pela astúcia. Maquiavel, ainda e sempre: a ajusta a concepções progressistas do tem- política, teatro de leões e raposas. po; apenas convida à cética resignação. O resultado da aplicação do ceticismo Mas, na medida em que alcançamos des- machadiano à política brasileira é rico e pa- cobrir no fundo do ceticismo um veio de in- radoxal. A flecha satírica fere e atravessa as conformismo, assim como percebemos no mazelas locais alcançando alvos similares fundo da crítica um renitente pessimismo, além de nossas fronteiras: il mondo casca! estaremos chegando perto da contempla- O mal é nosso, mas, se bem pensado, está ção do enigma que é o olhar machadiano. não só aqui, mas ali e alhures, pois a política Por que a hipótese de é sempre obra de homens dos quais pouco (e em parte, de Raymundo Faoro), que faço ou nada convém esperar. minha, da vigência do moralismo cético, Mas... ultrapassando o alvo nacional, a ajuda a decifrar o enigma do olhar macha- crítica se faz contraditoriamente mais forte diano? e mais fraca. Mais forte, porque o poder da Porque o moralista cético vê o universo sátira não se esgota no recorte do fato iso- da política como um agregado de homens lado, no episódio; procura compreendê-lo que somam aos seus objetivos particulares à luz da consciência que o escritor tem da um suplemento de poder. Daí, o espetá- fragilidade do ser humano. É a reflexão uni- culo nada edificante que armam a vaida- versalizante preenchendo o empírico, estili- de, a covardia, a estupidez, a venalidade, zando o reflexo imediato do acontecimen- a hipocrisia, a ganância, a indiferença e o to. Mais fraca, no entanto, porque desvia oportunismo quando os potencia a facul- a atribuição da causa próxima do mal para dade de legislar, de corromper, aliciar ou uma condição existencial ampla que relativi- punir aliados ou adversários. “Que é a polí- za os mecanismos específicos da conjuntu- tica senão obra de homens?” A política re- ra local; assim fazendo, descrê de quaisquer força, como instrumento grupal que é, as doutrinas ou medidas políticas enérgicas tendências defensivas e agressivas de cada e eficazes para sanar o mal denunciado. indivíduo que entra no seu palco. Como Empiria (eis os fatos...) e pessimismo (eis construir uma república equitativa a partir o homem...) podem somar-se para zerar a de indivíduos centrados em seus interesses esperança de que é possível, politicamente, próprios? transformar o que acontece sob os nossos Para o moralista clássico, os costumes olhos aqui e agora. do barro humano não se reformarão me- Compreender o nexo íntimo de sátira po- diante leis, decretos e constituições juradas lítica e moralismo cético nos faz respeitar o ou outorgadas. Os hábitos estão enraiza- espírito e a letra das crônicas; e talvez resista- dos na natureza egoísta inerente a cada mos à tentação de ver somente um Macha- homem; natureza que reponta sempre, ora do que nos interessa, para entrever o Ma- descarada, ora mascarada pela civilização. chado real, isto é, concreto e complexo, local O mal denunciado, o vício escarnecido e e universal. Ou será demasiada ambição? a iniquidade exposta têm origens profundas na vida social, que é regida pela força ou 112 • Alfredo Bosi

Documentos exigem crítica textual e seu pathos, o seu estilo de narrar, os seus histórica. Com maior força de razão, crô- procedimentos retóricos. É uma tarefa ain- nicas literárias de um grande escritor re- da por fazer e constitui o limiar da inter- querem sondagens que identifiquem o pretação, abaixo do qual tudo se dissipa seu ponto de vista, o húmus do seu pen- no anedótico ou se presta ao desnorte de samento, os seus valores e antivalores, o arbitrárias alegorias. A filosofia na obra de Machado de Assis

Miguel Reale Quarto ocupante da Cadeira 14 na academia Brasileira de Letras. Jurista, advogado, político, filósofo, professor universitário e poeta.

I mostra Quincas Borba a trincar uma asa de frango “com filosófica serenidade”.1 Considerações preliminares Não se pense que Machado de Assis tenha desapreço pela Filosofia, pois bem Quem se dispõe a apreciar os aspectos filo- poucos de nossos escritores revelam tão sóficos da obra de Machado de Assis vê-se constante preocupação filosófica, que, no logo perante uma alternativa: Filosofia de prefácio do romance cujo primeiro cente- Machado de Assis, ou na obra de Machado nário estamos comemorando, é deliciosa- da Assis? Não há nada de surpreendente mente apresentada como “rabugens de que se comece por uma aporia, pois as per- pessimismo”. plexidades, os contrastes e as contradições Poder-se-ia afirmar que é com essa obra enxameiam os romances, os contos, as crô- que se afirma, em toda a sua plenitude, a nicas, as poesias e as páginas de crítica do que poderíamos qualificar, sob certo prisma, patrono da Academia Brasileira de Letras, de “fase filosófica” da criação machadiana, comprazendo-se ele em jogar com termos quando o enredo ou a trama dos romances opostos ou distintos, sem que seu espírito 1 Cf. Memórias Póstumas de Brás Cubas, caps. XV e opte por um deles, preferindo antes mantê- CXVII, e Dom Casmurro, cap. CLLIV. Dada a multipli- -los correlatos numa viva concretude. cidade de edições da obra machadiana, para facilidade de consulta, parece-me preferível referir-me aos capí- Pelo que me foi dado observar, relendo tulos dos romances, ou aos títulos das criticas ou das as obras de Machado de Assis, ele emprega crônicas, com compreensíveis exceções. No presen- te estudo, sirvo-me, em geral, para as citações, bem a palavra “filosofia’’ pelo menos com três como na Antologia, do texto das Obras Completas, acepções distintas, às vezes complementa- Editora José Aguilar, Rio, 1959, em cotejo com as pri- meiras edições da Livraria Garnier, Rio de Janeiro, Paris. res. Em primeiro lugar, usa o termo em tom Os romances principais serão indicados apenas pelas jocoso, como, por exemplo, ao referir-se ao iniciais M.P. (Memórias Póstumas de Brás Cubas), Q.B. (Quincas Borba), D.C. (Dom Casmurro), M.A. (Memorial ‘grunhir dos porcos, espécie de troça con- de Ayres) e E.J. (Esaú e Jacó) com o número dos capítulos centrada e filosófica”, ou, a “um asno de em algarismos romanos usados por Machado de Assis. Às vezes, para continuidade da leitura, faço remissão Sancho deveras filósofo”, ou quando nos às obras no próprio texto. Publicado na Revista Brasileira n.o 44, Fase VII, Julho-Agosto-Setembro 2005, Ano XI, pp. 7-33. 114 • Miguel Reale adquirem transparência através dos valores examinar essa colocação machadiana, mas introspectivos do autor, cuja presença riso- não será demais salientar, desde logo, que nha e crítica ora ilumina os episódios, ora toda a sua compreensão da Natureza se su- lhes oculta o sentido, quando não os abre bordina sempre a uma teoria do Homem, a num desconcertante leque de perspectivas. um antropocentrismo fundamental. Da crítica negativa e infeliz de Sílvio Ro- Ocorre, todavia, que, na obra macha- mero – repelida com elegância pelo fino es- diana, a palavra “metafísica” também ser- pírito do jurisconsulto Lafayette Rodrigues ve para indicar algo que se afirma com ar Pereira, nas irônicas páginas de Vindiciæ – o de profundidade, sem maior esforço e sem que resta de válido é apenas o reparo sobre obrigação de se demonstrar a verdade das “a mania de filosofar” que se insinuara, de asserções feitas. “Um discurso de metafísica maneira inquietante, na obra do “Bruxo do política”, escreve Machado, desenvolvendo Cosme Velho”. É a razão pela qual a pala- a teoria do medalhão, “apaixona natural- vra filosofia adquire, em sua pena, também mente os partidos e o público, chama os uma acepção lata, a que recorre toda vez apartes e as respostas. E depois não obriga que deseja nos oferecer o sentido essencial a pensar e descobrir. Nesse ramo dos co- ou dominante de algo. É a filosofia como nhecimentos humanos tudo está achado, “forma de compreensão” ou até mesmo formulado, rotulado, encaixotado; é só pro- como “súmula de significado”, tal como ver os alforges da memória. Em todo caso, ocorre quando evoca a “filosofia das folhas não transcendas nunca os limites de uma velhas”, ou a “filosofia dos epitáfios” (M.P., invejável vulgaridade”.2 CXVI e CLI). Não se poderia ser mais cáustico quan- Ora, esse entendimento lato, sempre to à vacuidade dos “sistemas filosóficos”, envolto por um véu de humorismo, adqui- onde tudo se encontra de antemão rotu- re uma terceira conotação, mais profunda, lado e encaixotado. Anti­dog­mático por concernente à franja inexplicável do real, natureza, embora não se considerasse um ao “princípio único, universal, eterno” das cético, Machado de Assis amava a filosofia, coisas, ou, segundo os invocados versos de mas desde que fosse, consoante ele mes- Camões, a indagação sobre mo adverte, “leve e ridente”, como a do gato que lhe parece ser um animal metafí- “Uma verdade que nas coisas anda, sico sem nunca ter lido Kant... (Cf. A Sema- Que mora no visível e invisível.” na, ed. coligida por Mário de Alencar, em Nesse sentido, Machado de Assis recorre 1910, crônica de 18 de novembro de 1894, com frequência à palavra “metafísica”, en- tendida como desesperada ou tresloucada 2 Papéis Avulsos, Ed. Garnier, Rio/Paris, p. 99. Releva procura de uma “substância” que é sempre notar que, nessa mesma passagem, MACHADO DE ASSIS aconselha ao aprendiz de medalhão o emprego a mesma, levando de roldão os indivíduos da filosofia, mas em termos: “no papel e na língua al- que, paradoxalmente, são suas “bolhas guma, na realidade nada”. De ou lado, como sinal de atenção com que o romancista seguia o desenrolar dos transitórias”, mas, isto não obstante, cons- temas filosóficos, ele já se refere à Filosofia da História, tituem o resumo do universo, visto que “o locução que, para os fins propostos, deve ser emprega- da com frequência, mas sem implicar conclusões que já universo é o homem” (Q.B., VI). Voltarei a não tenham sido achadas por outros... A filosofia na obra de Machado de Assis • 115 p. 175, e Q.B., LXXX.) Pode-se dizer que ele Todos os autores citados, e outros mais mesmo cuidou de situar sua atitude perante aqui não lembrados, mesmo quando não as perquirições metafísicas nas palavras de concluem pela aceitação de uma “filosofia Brás Cubas sobre “uma filosofia desigual, machadiana”, convergem num ponto es- agora austera, logo brincalhona, cousa que sencial, que o reconhecimento da densida- não edifica nem destrói, não inflama nem de filosófica de sua obra, essencial à com- regela, e é todavia mais do que passatempo preensão do escritor. e menos do que apostolado” (M.P., IV). Põe-se, de início, um delicado proble- Pois bem, todos os sentidos atribuídos ma, que é o de saber se há efetivamente por Machado de Assis às palavras “filoso- identidade ou correspondência entre o que fia” e “metafísica” não se conflitam, mas Machado de Assis pensa e aquilo que ele antes se combinam num plexo de imagens, põe na boca de suas personagens. Ao con- graças às quais ao mesmo tempo se revela trário de termos seis personagens à procura e se mascara uma cosmovisão transfigurada de um autor, à maneira de Pirandello, mas em representação artística. com o mesmo intrincado perspectivismo da Foi, talvez, em virtude dessa constante arte pirandelliana, tenta-nos a aventura de preocupação pelo sentido da vida huma- procurar o autor através de suas persona- na, e, de maneira geral, pelo significado do gens, que ora manifestam, ora dissimulam mundo em que o homem desenvolve o seu as suas reais convicções. É claro que uma re- drama vital, que já se pretendeu falar em construção desse tipo corre sempre o risco “filosofia de Machado de Assis”, cotejan- da mediação hermenêutica, podendo haver do-se o seu pensamento sobretudo com tantos Machados de Assis quantos são os os de Montaigne, Pascal ou Schopenhauer, seus intérpretes, o que, no fundo, é o desti- sem se esquecer, claro, seu amor pelos en- no de todo grande criador. sinamentos amargos do Eclesiastes. São co- nhecidos os estudos sobre a matéria, desde II a obra pioneira de Afrânio Coutinho aos ensaios valiosos de Barreto Filho, Augusto A “teoria” na obra machadiana Meyer, Sérgio Buarque de Holanda, Eugênio Antes de analisar a presença deste ou da- Gomes, Alcides Maya, Alceu Amoroso Lima quele filósofo na obra machadiana, o que e Raymundo Faoro, para limitar-me aos que tem levado a exagerar-se a vinculação de seu trataram, mais diretamente, do pensamen- pensamento a Pascal ou a Schopenhauer, to filosófico de Machado de Assis.3

3 Cf. COUTINHO, Afrânio, A Filosofia de Machado de Sílvio, Machado de Assis. 2.a ed., Rio, 1936; LABIENO Assis e Outros Ensaios. 2.a ed., Rio, 1959 (a 1.a é de (Lafayette Rodrigues Pereira), Vindiciae. Rio, 1899; 1940); LIMA, Alceu Amoroso, Três Ensaios sobre Ma- MIGUEL-PEREIRA, Lúcia, Machado de Assis (Estudo crí- chado de Assis. Belo Horizonte, 1941; HOLANDA, Sér- tico e biográfico). S. Paulo, 1936; VELHINHO, Moysés, gio Buarque de, “A filosofia de Machado de Assis”, em Machado de Assis. Rio, 1969; MONTELLO, Josué, Uma Cobra de Vidro. São Paulo, 1944; MEYER, Augusto, Palavra Depois da Outra. Rio, 1969, pp. 15-45; PEREI- Machado de Assis. Rio, 1958; MAYA, Alcides, Machado RA, Astrogildo, Machado de Assis. Rio, 1959; MOTTA de Assis. 2.a ed., Rio, 1942; GOMES, Eugênio, Macha- FILHO, Cândido, O Caminho de Três Agonias. RJ, 1942, do de Assis. Rio, 1958; GRIECO, Agripino, Machado de pp. 64-207; PEREGRINO JÚNIOR, Doença e Constitui- Assis. Rio, 1959; MAGALHÃES JÚNIOR, R. Machado ção de Machado de Assis. Rio, 1938; e FAORO, Ray- de Assis Desconhecido. 2.a ed., Rio, 1955; ROMERO, mundo, A Pirâmide e o Trapézio. São Paulo, 1974. 116 • Miguel Reale parece-me indispensável salientar um pon- importante à compreensão do escritor do to em que podemos estar todos de acor- que a fria análise da “estrutura” de seus ro- do: é quanto à “constante teorética” de mances, pois os elementos configuradores seus escritos, apontada por Sílvio Romero ou extrínsecos têm valia como elementos como simples “mania de filosofar”, ou vis- hermenêuticos, mas não até o ponto de ta por Lúcia Miguel-Pereira como “mania privar-nos do conteúdo essencial das cria- raciocinante”.4 ções artísticas.5 Emprego o termo “teorético” para de- Destarte, o permanente recurso a ex- signar a “teoria da teoria” ou a “metateo- pressões simbolizantes no plano das ideias ria”, ou seja, para indicar a inclinação para já nos oferece significativa dimensão do ir além da “explicação do real”, a fim de alto papel da “subjetividade” na obra de se elaborar, sobre essa base teórica, uma Machado de Assis. Assiste, pois, razão a teoria de valor mais amplo e simbólico. É Afrânio Coutinho quando nos diz que ele o que se dá com Machado de Assis, que, “transfigura a realidade”, afastando-se, reiteradas vezes, a propósito de assuntos ou assim, da assepsia egológica que Flaubert episódios aparentemente banais, eleva-se estabelecera como regra de seus roman- a uma “instância simbolizante” que atua, ces, onde o “ego” é posto entre parênteses por assim dizer, como um complemento ne- para que o real possa surgir em toda a sua cessário dos tipos e modelos de sua ficção pureza original. Não é o caso de aqui inda- artística. Sob esse prisma, haveria, na obra garmos se essa já não era uma forma sin- de Machado de Assis, mais “teoreticidade” gular de “vivência” da realidade, por parte (perdoem-me o neologismo, aliás justificá- de um espírito tão subtil como o esteta de vel ante a crescente correlação entre “teoria Madame Bovary, porquanto o que me in- filosófica” e “teoria das ideias”) do que de- teressa, a esta altura, por via de contraste, liberada colocação de problemas em termos é acentuar que Machado de Assis, por sua propriamente filosóficos. natural atitude teorética, não poderia ja- Em apoio dessa minha primeira asserti- mais ser um “realista” autêntico, e muito va, lembro a sucessão de seus “pontos de menos poderia aceitar o “naturalismo”, o vista teóricos”, como, por exemplo, o do que, aliás, ele timbrou em deixar claro nas emplasto para cura da hipocondria, a “lei páginas penetrantes dedicadas a O Primo da equivalência das janelas”, a “teoria das Basílio de Eça de Queirós.6 edições”, a “teoria das erratas”, a “teoria 5 dos benefícios”, a “teoria dos medalhões”, Veja-se, por exemplo, como Wilson Martins, em geral avesso a apreciações monocórdicas, se contenta com a “teoria das virtudes”, uma nova compre- aspectos morfológicos ou estruturais, ao apreciar o sig- ensão da “teoria dos interesses” de Helve- nificado das Memórias Póstumas de Brás Cubas (História da Inteligência Brasileira, São Paulo, 1978, pp. 115 e s.). tius, e, de maneira mais abrangente, o “hu- 6 Consoante lembrado por Lúcia Miguel-Pereira, o pri- manitismo”, ou a “teoria da Humanitas”, à meiro a salientar o “subjetivismo” na obra machadiana foi Tristão de Athayde em antigo estudo, de 1922, onde qual se pretendeu reduzir, sem razão, todo escreve: “Abandonou, pouco a pouco, toda a exteriori- o pensamento machadiano. A análise des- dade para mergulhar no mundo interior, marcando pela primeira vez nas nossas letras o primado do espírito sas experiências teoréticas parece-me mais sobre o ambiente. [...] Essa primazia psicológica levou Machado de Assis do humanismo ao humorismo.” (Cf. 4 Op. cit., p. 261. MIGUEL-PEREIRA, Lúcia, op. cit., p. 336.) A filosofia na obra de Machado de Assis • 117

É claro que não estou empregando o qualquer forma de inquietação religiosa, sen- termo “teoria” no sentido aristotélico de do essa “a diferença profunda, vital, que na especulação, contemplação, ou mesmo realidade os separa”. Lembrando que todo beatitude. Desde Kant o conceito de teo- pensamento pascaliano se vincula à “sua fé ria implica o de hipótese, podendo ser vista convulsiva no Cristo, na crença profunda em como uma hipótese verificada ainda que Deus, no Deus sensível ao coração”, Sérgio provisoriamente. Na teoria estética, porém, pondera: “Comparado ao de Pascal, o mun- as hipóteses científicas sublimam-se na arte. do de Machado de Assis é um mundo sem Após enfatizarmos a fundamental “in- Paraíso. De onde uma insensibilidade incu- clinação teorética” de Machado de Assis, rável a todas as explicações que baseiam no passemos a verificar de que maneira atuam pecado e na queda a ordem em que foram em seu espírito as doutrinas dos pensadores postas as coisas no mundo. Seu amoralismo de sua predileção, sem deixar jamais de ser tem raízes nessa insensibilidade fundamen- fiel a si mesmo, à sua própria hermenêutica tal.” Acrescenta, como fato de suma im- existencial. portância, que o mundo de Machado “não conhece a tragédia”, ou melhor, que “nele, III o trágico dissolve-se no absurdo e o ridículo tem gosto amargo”.8 A influência de Pascal Consoante ainda justa ponderação do Comecemos por Blaise Pascal, cuja leitura escritor paulista, não assiste razão a Afrânio era para ele uma necessidade, conforme Coutinho quando descobre tanto em Pascal comovente confissão feita em carta diri- como em Machado “ódio à vida”, “ódio in- gida a Joaquim Nabuco.7 É inegável, pois, tenso à humanidade”, ou “ódio radical da que havia entre o admirável cinzelador de vida e dos homens”. Ambos teriam ama- Pensées e o autor de Quincas Borba forte do o homem e a vida a seu modo; Pascal, afinidade espiritual, sendo certo, no en- tragicamente, na incessante indagação do tanto, que nossa sensibilidade atraída, às “Deus absconditus”; Machado, ironica- vezes, não por motivos de identidade, mas mente, num halo de absurdo, devendo ser por inexplicáveis razões de contraste. Pode captado o ponto nuclear do pensamento acontecer, outrossim – e parece ser esse o machadiano sobre a existência humana não caso de Machado de Assis perante Pascal –, que comunguemos simpaticamente com o 8 HOLANDA, Sérgio Buarque de, Cobra de Vidro, cit., onde se encontra o ensaio “A Filosofia de Machado “sentido de procura” que domina um filó- de Assis”, pp. 44 e ss. Note-se que AFRÂNIO COUTI- sofo, embora nos divorciemos dele quanto NHO observa que “Pascal, pessimista amargo, como Machado, era, no entanto, corrigido pelo seu ardente ao “sentido final” de suas meditações. desejo de absoluto e sua esperança torturante de cura Afrânio Coutinho exagera, até certo pon- das misérias humanas pelo socorro divino. Ao contrário, Machado, sem Deus e só enxergando o homem sem to, a correlação “Pascal-Machado”,­ como Deus, via-o somente nas suas misérias” (op. cit, ed. de o advertiu Sérgio Buarque de Holanda, so- 1959, cit., p. 91). Mas, se o jansenismo se funda essen- cialmente sobre a ideia de pecado, nenhuma ligação bretudo por faltar ao nosso maior prosador pode ter ele com Machado, assim como me parece excessivo afirmar “uma identidade absoluta” dos con- 7 Cf. MACHADO DE ASSIS, Crítica (Coleção organizada ceitos humanos de Pascal e Montaigne com o homem por Mário de Alencar). Rio de Janeiro, p. 205. machadiano. 118 • Miguel Reale nas queixas de Ahasverus, mas sim no diá- e perplexidade, numa atitude bem distinta logo das águias: do vaidoso anúncio nietzschiano da “morte “– Ai, ai, ai deste último homem, está de Deus”. Se Machado não chegou à fé, morrendo e ainda sonha com a vida. não é dito que não a tivesse procurado, – Nem ele a odiou tanto, senão porque nem que o desacerto do mundo não lhe a amava muito.” gerasse no espírito desconsolada renún- Lembra Sérgio, com acerto, que esse cia ao refúgio da crença. Se, na verdade, mesmo sentimento de apego à vida domi- como o próprio Sérgio Buarque de Holanda na e orienta a narração do delírio de Brás o assinala, “Machado de Assis não parece Cubas, na imploração dirigida à natureza, deliciar-se profundamente em sua própria que é “mãe e inimiga”: descrença”, reside nesse inconformismo o “– Viver somente, não peço mais nada. elo que o prende a Pascal, por mais diversos Quem me pôs no coração este amor da vida que hajam sido os respectivos caminhos. senão tu? e, se eu amo a vida, por que te Cabe, outrossim, observar outro ponto hás de golpear a ti mesmo matando-me?”9 de contato entre Machado de Assis e Pas- Conclui Sérgio Buarque de Holanda sua cal: é a fascinação pela figura de Jesus. O crítica, um tanto acerba, afirmando que, se romancista brasileiro despe-o de sua di- Afrânio Coutinho tem razão ao dizer que a vindade, mas em bem poucas páginas de atitude cética não explica toda a obra de Ma- nossas letras ressoa, com tanta comoção, a chado, o que prevalece nesta é a ideia de um tragédia do Gólgota. mundo, não trágico, mas absurdo, somada a um sentimento de penúria encoberta pela ironia, na qual “deveriam ser procuradas as IV origens do homem de Machado de Assis e O “ceticismo” de Machado de Assis também as fontes de sua filosofia’’. Ainda a propósito de Pascal, parece-me Quanto ao “ceticismo” de Machado de As- necessário excluir da obra de Machado de sis, outro ponto em que têm tanto insistido Assis também qualquer sentido de “dana- os seus críticos, julgo conveniente fazer al- ção”, outro motivo de natureza escatológi- guns reparos. Não há dúvida que ele amou ca que o separa radicalmente do pensador Montaigne e compartilhou do sorriso com- francês. Todavia, não me parece possa ser preensivo e profundamente humano com contestada com tamanho rigor a verdade que o analista dos Essais envolveu os homens contida na aproximação feita entre o cria- e as coisas, mas vai-se muito longe quando dor de Brás Cubas e Blaise Pascal, pois a ele é apresentado apenas como um cético, insistência com que Machado nos revela a e mais ainda quando se afirma ter sido sua sua descrença em Deus e na imortalidade obra “obrigada pelo relativismo a se manter da alma, repelindo com veemência a qualifi- sempre na superfície das coisas”, afirmação cação de “materialista”, demonstra como o destoante no livro de admirável compreensão problema do “significado da morte” o ator- que nos deu Lúcia Miguel-Pereira.10 menta, com fundo sentimento de amargura 10 Op. cit., p. 91. É nessa página que se lembra a repulsa 9 Loc. cit, p. 47 e ss. de Machado de Assis à increpação de materialismo. A filosofia na obra de Machado de Assis • 119

Se nos falta expressa tomada de posição incomparável”, cuja glória lhe parecia des- de Machado de Assis no tocante às suas tinada a crescer com o decorrer dos anos. convicções filosóficas, não nos esqueçamos Sabemos, porém, que, ao contrário dessa que foi exatamente a propósito de seu ce- arriscada profecia, a fama de Renan veio ticismo que ele julgou oportuno fazer uma declinando com o passar do tempo e, hoje advertência, à qual não se tem dado a devida em dia, embora lhe reconhecendo altos atenção. Refiro-me ao tópico da penúltima méritos, ninguém ousaria colocá-lo sobre crônica de A Semana, onde faz esta ressal- o pedestal de escritor máximo e incompa- va: “Não tireis da última frase a conclusão rável, como ele se apresentava às gerações de ceticismo. Não achareis linha cética nestas da Belle Époque, reconfortada, em última minhas conversações dominicais. Se destes análise, por poder justificar a sua fé perdida com alguma que se possa dizer pessimista, ou amortecida, com a invocação de “bases adverte que nada há mais oposto ao ceticis- científicas” consideradas inamovíveis... mo. Achar que uma coisa é ruim, não é duvi- Releiam-se as carinhosas páginas que dar dela, mas afirmá-la.” (p. 431) Machado de Assis escreveu quando da mor- Na realidade, o problema é bem mais te de Renan e sobre a fascinante figura de complexo e subtil e, como vimos, não es- sua irmã Henriqueta12 (e sabemos que Ma- tava na índole de Machado afrontá-lo. Em chado se excedeu na análise da alma femi- primeiro lugar, mister é distinguir entre nina) para se ter uma ideia do sentido quase o ceticismo no plano da teoria e o que se que autobiográfico do que nos relata ele situa apenas no plano religioso ou ético, e sobre a atormentada trajetória renaniana, Pascal aí está como exemplo admirável de desde o seminário até a crítica racionalista quem, sendo cético quanto às pretensões dos dogmas cristãos. As frases invocadas por metafísicas ou à realização da justiça na nosso escritor são de molde a traduzir pelo sociedade dos homens, depositava fé ina- menos o seu estado de espírito perante a balável no Deus oculto, tudo isso se subli- crença que recebera do berço. Se ele insiste mando em seu pessimismo radical. Aliás, o em analisar o drama espiritual de Renan é próprio Machado se referira, anos antes, ao por tê-lo vivido intensamente, compartilhan- “ceticismo otimista” de Renan, um de seus do de sua angústia de descrer, que é mais autores preferidos.11 pungente do que a de não crer. Especial menção merece a passagem em V que Machado de Assis lembra que Renan, “para quem a vida nem tinha o defeito da A presença de Renan morte” (supremo elogio na pena machadia- Por sinal que não se tem dado o devido na!) “tendo procedido ao que chama verifi- relevo à presença de Renan na obra de Ma- cação racional do cristianismo, descobriu a chado de Assis, o qual não vacila em consi- verdade. Descobriu também um meio-termo, derar o autor da Vida de Jesus um “escritor que exprime a natureza moral do futuro único e inimitável”, um “sábio” de “estilo 12 Cf. A Semana, crônica de 9 de outubro de 1892, ed. 11 Cf. Páginas Recolhidas, p. 156. (Obras Completas, cit., p. 26 e ss. E Páginas Recolhidas, p. 133 e ss. (Obras cit., vol. II, p. 626 e ss.) Completas, vol. II, loc. cit., vol. III, p. 549 e ss.) 120 • Miguel Reale exegeta: o cristianismo não é falso mas não é pessimismo: a lei machadiana da “equiva- a verdade absoluta”. Entre a antiga crença do lência das janelas” não significa a suspen- seminarista e a descrença do exegeta, conclui são dubitativa do juízo entre alternativas Machado, a contradição é apenas sincerida- todas inverificáveis, mas implica antes a de. (Páginas Recolhidas, p. 149.) compensação relativa que a vida humana pode nos oferecer graças à contingência de VI termos de renunciar a um bem almejado, contentando-nos, em troca, com algo que A ironia machadiana se lhe assemelhe. De certo modo, supera-se Não é de se estranhar, pois, que Machado o ceticismo quando se aceita, embora com de Assis, apesar de seus entusiasmos por amargura ou contido protesto, o “resto” Montaigne ou Anatole France, não se con- que nos lega a vida. Talvez resida aí, bem siderasse propriamente um cético, mas an- distinto do humour inglês, a ironia macha- tes um pessimista sem angústia e sem de- diana, na qual talvez se oculte a capacidade sespero, inclinado a ver as coisas do mundo brasileira de dar-se um jeito, quand-même, com todas as gamas da ironia. A tão estu- aos tropeços da existência. dada “ironia leopardiana” é exemplo clás- É a mesma “lógica das compensações” sico de sua compatibilidade com o pessi- que leva Prudêncio, escravo liberto de Brás mismo, com o pessimismo sem tragédia ou Cubas, a moer de pancada um seu escravo, revolta, que leva antes o escritor patrício, para nele se vingar das varadas recebidas de quase como remate de suas inquietações, seu antigo amo, quando servia de montaria a reconhecer, com melancolia, que, ape- ao travesso “nhonhô” (M.P., LXVIII) ou ve- sar dos pesares, “vale a pena viver”. Vale a mos um gerente de banco tratar com frieza pena viver o drama da existência quando se e desdém o solícito Palhas, como forma de sabe ser, ao mesmo tempo, coche, cavalo e aliviar a consciência do vexame pouco an- cocheiro, protagonista e espectador da fria tes sofrido em audiência com um Ministro indiferença do destino; quando, em suma, de Estado... (Q.B., XCVI). Num mundo, no a despeito de saber que a vida não conduz qual as personagens são impelidas pela in- a nada de certo ou positivo, ela vale como contida e obscura força de viver, sem que a drama ou espetáculo. A ironia machadiana, consoante espero esclarecer logo mais, nas- vida em si mesma obedeça a qualquer dire- ce dessa “valoração da vida” (note-se que triz ética de perfectibilidade, só subsiste o não digo: valorização da vida) segundo o equilíbrio instável das impressões e dos sen- ponto de vista de um observador imparcial, timentos, um processo de dar e receber que que se põe “além da vida”, falando como se desenvolve e se contrabalança à margem “póstumo”, embora não creia seja a alma das distinções sempre penosas entre o bem “imortal”. e o mal, entre a luz ilusória da virtude ou a Montaigne e Renan, a bem ver, não meia sombra do pecado, mesmo porque “o transfundem ceticismo a Machado de As- maior pecado, depois do pecado, é a publi- sis, mas o ensinam a dourar de ironia o seu cação do pecado” (Q.B., XXXII). A filosofia na obra de Machado de Assis • 121

VII Daí, porém, não devemos inferir que Ma- chado de Assis tenha sido adepto da “meta- Afinidades essenciais com física da vontade” de Schopenhauer, da von- Schopenhauer tade entendida como nova formulação da “coisa em si” que Kant, na teoria transcen- Nada de extraordinário, por conseguinte, dental, declarara incognoscível, expressão do que a visão pessimista de Machado de As- Absoluto, apenas pressuposta no inatingível sis tenha encontrado abrigo e consolo na mundo noumenal. É nesse exagero que in- doutrina de Schopenhauer, também um cide, por exemplo, Raymundo Faoro, apesar de seus autores prediletos. São vários os de reconhecer que Machado de Assis “não motivos schopenhauerianos que podemos se submeteu inteiramente a Schopenhauer”. identificar na obra machadiana, motivos Faoro soube fixar com acuidade alguns pon- que valem como confirmação de crenças tos em que a presença do filósofo alemão obscuramente brotadas de sua própria ex- se torna deveras significativa nos escritos de periência. A carência de sentido da vida no Machado, mas não creio que este tenha se cosmo; a visão da espécie humana como deixado seduzir pela cosmovisão schope- imprevisto emergir de bolhas à tona do nhaueriana, a tal ponto que a sua ideia de fluxo incessante e contraditório da na- natureza possa ser considerada “a tradução tureza; a compreensão de que “todas as machadiana da vontade de Schopenhauer”. coisas são magníficas de ver, mas temíveis Nem creio se possa dizer que ele tenha che- de ser”, ou “a dor e o tédio como sendo gado ao seu primeiro grande romance “de- os dois inimigos da felicidade humana” tal pois de haver descoberto o fundamento me- como o pensador germânico desconsola- tafísico do mundo, o demonismo da vontade 13 damente nos sentencia; a atração pelo que guia, sem meta nem destino, todas as problema do nada; ou a “lei geral das coisas e os fantoches de carne e sangue”.15 compensações” são, entre outros, alguns Se Faoro nos traz um elemento novo e tópicos em que o romancista coincide com essencial à compreensão do problema que 14 o filósofo. estamos focalizando (o “demoníaco” em Como subtilmente foi observado por Machado de Assis), reduz, sem razão, o seu Eugênio Gomes, as obras principais de Ma- conceito (melhor seria dizer: a sua “ima- chado de Assis são governadas por uma gem”, de “natureza” à “vontade” enten­ ideia central de inspiração schopenhaueria- dida como princípio metafísico, à maneira na, que se desdobra em mitos e metáforas: de Schopenhauer. Nada justifica essa iden- a da inexorabilidade do Destino. tificação entre “natureza” e “vontade” na obra machadiana, pois aquela palavra su- 13 Cf. SCHOPENHAUER. Aforismos para a Sabedoria da Vida, trad. de Genésio de Almeida Moura. São Paulo, gere antes a ideia de “impulsos naturais 1953, p. 211 e ss. e 37. ou vitais” – o que, como veremos, liga o 14 Sobre a influência de SCHOPENHAUER, além da obra já citada de R. FAORO, vide especialmente as ob- seu pensamento ao naturalismo vigente na servações de Eugênio Gomes, em Machado de Assis, época, sob o influxo da teoria evolucionista Rio, 1958. Quanto à “lei geral das compensações”, v. SCHOPENHAUER, Aforismos, cit., p. 53. Para uma sín- de Darwin e de Spencer. tese da posição de Eugênio Gomes, v. Obras Completas de Machado de Assis, vol III, p. 1097 e ss. 15 FAORO, R., op. cit., p. 389 e 404 e passim. 122 • Miguel Reale

Cabe, a esta altura, lembrar que Macha- Será verdade o que dizes, Artur; mas é do de Assis leva em troça a metafísica scho- também verdade que, antes de cá vir, não me penhaueriana, numa de suas mais saboro- doía nada, e se eu soubesse que teria de aca- bar assim, às mãos dos meus próprios autores, sas crônicas de A Semana, onde nos conta a não teria vindo cá. Ui! ai!”16 trágica história de uma criança abandonada por seus pais em uma estrebaria, morrendo Basta essa galhofa para perceber-se sob as bicadas de galinhas famintas. Não quanto Machado de Assis estava longe de lhe parecia esse “caso diminuto” merece- aceitar a concepção noumenal da vontade dor de maior atenção, pondera ele, se não schopenhaueriana. Dos quatro conceitos- fora Schopenhauer, com a sua vaidosa insis- -chave da Metafísica de Schopenhauer (coi- tência em realçar a descoberta das causas sa em si, vontade, natureza e vida) talvez transcendentes do amor, tal como é expos- se possa afirmar que Machado de Assis se ta em um dos capítulos de O Mundo como contenta com as duas últimas, fundando Vontade e Representação. sobre elas a sua cosmovisão artística, fican- Fazendo troça da teoria schopenhaue- do entre parênteses qualquer indagação de riana, segundo a qual o amor obedece a tipo transcendental: é a vida, tal como se ocultos impulsos vitais, já misteriosamente desenrola sem nexo e sem esperança sob os presentes no futuro embrião, Machado de imprevistos acicates de impulsos naturais, Assis imagina um diálogo entre o filósofo e só a vida interessa ao nosso romancista. O a criança, que vale a pena transcrever ape- que o atormenta é o mistério de viver e de sar de sua extensão: morrer, mais do que a busca de sua razão – “Cala a boca, Abílio”, brada o pensador, última. No jogo de xadrez da vida, tal como com a sua velha irritação. “Tu não só ignoras ele desconsoladamente acentua, não há lu- a verdade, mas até esqueces o passado. Que gar para diagramas, pois, tudo somado, o a culpa podem ter essas duas criaturas huma- que se assiste é uma “partida entre pessoa nas, se tu mesmo é que os ligaste? Não te e pessoa, ou, mais claramente, entre Deus lembras que, quando Guimarães passava e e o Diabo” (E.J., cap. XIII, O.C., I, p. 966). olhava para Cristina, e Cristina para ele, cada um cuidando de si, tu é que os fizeste atraí- Trata-se, pois, de um jogo paradoxal sem dos e namorados? Foi a tua ânsia de vir a este tabuleiro, assim como o drama humano mundo que os ligou sob a forma de paixão não tem enredo. e de escolha pessoal. Eles cuidaram fazer o É claro que essa diferença fundamen- seu negócio, e fizeram o teu. Se te saiu mal o tal perante o problema metafísico schope- negócio, a culpa não é deles, mas tua, e não nhaueriano não exclui tenha Machado de sei se tua somente... Sobre isto, é melhor que Assis sofrido grande influência do filósofo aproveites o tempo que ainda te sobrar das de Dantzig, até mesmo no plano literário. galinhas, para ler o trecho da minha grande Quereis um exemplo? Ei-lo: obra, em que explico as cousas pelo miúdo. É “O destino nos agarra e nos mostra que uma pérola. Está no tomo II, livro IV, capítulo nada nos pertence e tudo lhe cabe, ten- XLIV... Anda Abílio, a verdade é verdade ainda do ele direito incontestável sobre tudo que à hora da morte. Não creias nos professores de filosofia, nem na peste de Hegel... 16 A Semana, cit., crônica de 16 de junho de 1895, p. E Abílio, entre duas bicadas: 223. A filosofia na obra de Machado de Assis • 123 possuímos e adquirimos, mulher e filhos, e componentes da existência humana. Sem mesmo sobre nossos braços, pernas, olhos e essa correlação não captamos o que ele orelhas e até sobre esse nariz que carregamos deixa transparecer de sua mundividência no meio do rosto.” ao apresentar-nos, em tom de galhofa, as Parece um trecho de Machado de Assis linhas gerais do Humanitismo. mas é de Schopenhauer, na formosa tradu- De certa forma, Machado de Assis foi ção que Genésio de Almeida Moura nos deu um “heideggeriano” avant la lettre, sobre- dos Aforismos para a Sabedoria da Vida.17 tudo pelo desconsolado sentimento de que a cada ser humano toca viver uma vida que VIII ele não escolheu, e cujo começo e fim lhe escapam. Mulato, epiléptico, gago e des- A vida como valor central da provido de recursos, ele era, em si e por si, Filosofia a encarnação amarga de um ser projetado à sua revelia nos quadrantes do mundo, in- O conceito schopenhaueriano de vontade serido numa “circunstância” não querida, não o vejo, pois, na obra de Machado. A e que era mister superar, como superou, vontade que pulsa em toda a obra do cria- afrontando preconceitos e ressentimentos, dor de Virgínia, Sofia e Capitu (três expres- sentindo a todo instante o acicate da adver- sões estupendas da “vontade de viver”) sidade e a angústia de sua terrível moléstia. não tem nada de metafísico, nem governa Devemos, sem dúvida, procurar captar as o mundo das coisas e dos homens como tendências filosóficas de Machado de Assis força oculta e demiurga. Se há algo de real em suas personagens ou nos autores de sua e constante em Machado de Assis é a exis- simpatia, mas pondero que é em sua pró- tência como realidade palpável e experien- pria personalidade singular que se encontra cial, contraditória em si e por si, com as suas a fonte primeira de sua visão do homem desconcertantes encruzilhadas; com as sur- e da vida. Pode-se dizer que o seu modo presas das coincidências causais e dos an- de ser teorético emana antes das raízes de tagonismos inadvertidamente procurados; sua própria “circunstância”, enriquecendo- com o fogo cruzado do que tem e do que -se graças ao diálogo com os espíritos que não tem sentido, ou seja, a vida destinada lhe eram mais afins, tudo no quadro en- ao desfecho inexorável da morte, a vida que volvente da cultura oitocentista, densa de já é, em si mesma, uma forma de morrer, convenções e ideias preconcebidas, como, um “ir morrendo”, consoante ensinamen- por exemplo, o valor da “distinção”, tão to de Agostinho, “o santo de devoção” do magistralmente posto em evidência por romancista. Dostoievski, como nota distintiva da cultura É dessa visão da vida que devemos par- burguesa. tir para a sua imagem da natureza, sen- Assim sendo, não tinha ele necessidade do a “vontade de viver” apenas um dos de orientar-se segundo determinado mo- delo filosófico, quando possuía o espelho 17 Op. cit., p. 127. Note-se essa referência ao “nariz” de sua própria subjetividade. Antecipou- que inspira ao romancista uma de suas páginas mais agudas e em outros tópicos de sua obra. -se, por isso, sem o querer, aos modelos da 124 • Miguel Reale

Filosofia existencial, em geral, e não do exis- vida, como uma tarefa que, apesar de suas tencialismo estrito senso, elaborando, em incertezas, deve ser afrontada, como um seu irrenunciável projeto pessoal, o seu sen- ator afronta a plateia, só que sem saber de tido trágico da vida, dando-nos, entre ou- antemão qual o enredo da peça. O essen- tros, o modelo de Dona Plácida, uma pobre cial é viver buscando “sair da obscuridade”, criatura que chega ao mundo “como uma que é o mal maior da sociedade burguesa, lancha de náufragos, que vai dar à costa”, cuja moralidade convencional Machado tão filha de um sacristão da Sé e de uma bea- acerbamente ironiza.18 ta que fazia doces para fora. Nasceu sem ser consultada e, comenta Machado, se lhe IX fosse dado falar, teria perguntado, ao nas- cer: “Aqui estou. Para que me chamaste?” Remeditação de “O humanitismo” (M.P., LXX e LXXV.) à luz de Darwin Toda a perplexidade existencial, e todo Tentemos, sob esse prisma, reler as páginas o drama inesperado da vida, que a Filoso- que Machado dedicou ao Humanitismo, fia contemporânea, de Heidegger a Gabriel cujo anúncio é feito por Quincas Borba a Marcel, soube tão bem pintar, já está debu- Brás Cubas, de início, como “filosofia da xado pelo artista na figura singela de Dona miséria”. Plácida, chamada pelos pais, “num momen- Em se tratando do “Bruxo do Cosme Ve- to de simpatia”, para quê? Para “queimar lho” toda suposição é viável, a começar pela os olhos nos tachos, os olhos na costura, pergunta sobre se essa denominação era ca- comer mal, ou não comer [...] até acabar sual, ou, ao contrário, visava ao livro A Filo- um dia na lama ou no hospital” (LXXV). sofia da Miséria, do socialista Proudhon, ao Precursor dos existencialistas, Machado qual Machado de Assis se refere em suas crô- de Assis já foi apontado, com razão, como nicas. Nessa obra, que levou Marx a publicar precursor de Freud, não só pelo papel que o sua cáustica Miséria da Filosofia, Proudhon sonho, “essa fresta do espírito”, desempe- declara que a propriedade é um furto, e o nha em suas obras, mas por recorrer, a todo acerto é que, quando Quincas Borba abraça instante, ao jogo subtil das desvelações ou o amigo de infância, rouba-lhe o relógio... antecipações do inconsciente, assim como Mera coincidência ou sarcástica aplicação da pela habilidade em decompor até à minú- teoria? (Cf. M.P., LIX.) cia os fenômenos subjetivos, consoante ele Mais tarde, quando Quincas Borba reapa- mesmo o confessou: “Eu gosto de catar o rece, novamente rico, as suas ideias já haviam mínimo e o escondido. Onde ninguém mete sido ordenadas num “sistema filosófico”, o o nariz, aí entra o meu, com a curiosidade Humanitismo, nome derivado de “Humani- astuta e aguda que descobre o encoberto.” tas, o princípio das coisas” (M.P., XCI). (A Semana, última crônica, p. 438.) Começa Quincas Borba por afirmar que Parece-me, pois, que me assiste razão a sua filosofia não era ascética, mas facil- quando afirmo que é no âmago da vivên- mente acomodada aos prazeres da vida, cia do escritor que brota a verdade imediata 18 Sobre esse ponto, v. MERCADANTE, Paulo. Militares condicionadora de sua colocação perante a e Civis (a Ética e o Compromisso). Rio, 1978, p. 93 e ss. A filosofia na obra de Machado de Assis • 125 onde o pior dos males pode ser suportado Custa crer se tenha dado tão pouca ên- através de “capitulações vagarosas”, numa fase aos ensinamentos de Spencer e Darwin evolução gradual (M.P., XCI). na concepção machadiana, na qual a vitória Surge, assim, desde a formulação inicial dos mais aptos ou mais fortes é vista com de Humanitismo, o problema do homem, serena e até fria naturalidade. “A guer- como tese central da concepção macha- ra que parece uma calamidade, adverte o diana, não encoberta, mas antes explícita. criador do Humanitismo, é uma operação Como esclarece Quincas Borba, se o Huma- conveniente, como se disséssemos o esta- nitismo, por um lado, se liga ao Bramanis- lar dos dedos de Humanitas”, tanto assim mo, visto serem todos os homens partes do que os atos de violência, inseparáveis do ser corpo de Humanitas, tal como o são no seio humano, continuarão mesmo após reorga- de Brama, de outro, sua preocupação es- nizada a sociedade segundo os novos ensi- sencial não é teológica e política, mas pro- namentos, mas como “simples quebra da clamar “a grande lei do valor pessoal”, a monotonia universal” (M.P., XCII). tal ponto que “verdadeiramente há só uma Os benefícios da guerra são, depois, enal- desgraça: é não nascer” (M.P., CXVII). tecidos nas páginas de Quincas Borba, como Não há maior equívoco do que relacio- princípios de conservação da espécie. Daí o nar o Humanitismo com a Religião da Hu- relato da disputa entre duas tribos que não manidade que assinalou a última fase do podem dividir as batatas de um campo, sufi- pensamento comtiano, convertendo-se no cientes apenas para a nutrição de uma delas. Apostolado Positivista, que encontrou no Para a sobrevivência da espécie, é indispen- Brasil representantes de prol. É claro que sável o triunfo do mais forte: “Ao vencido, Machado de Assis não podia deixar de ar- ódio ou compaixão, ao vencedor as bata- remessar um dardo sarcástico contra a seita tas”, mesmo porque os indivíduos são “bo- intolerante que tentou empolgar os desti- lhas transitórias” formadas na superfície do nos da República, inclusive com a alusão impulso vital da espécie humana (Q.B., VI). de Quincas Borba ao último volume de sua Dificilmente se poderá encontrar fór- obra, por sinal que “a parte mais enfado- mula tão irônica e sugestiva para resumir nha”, toda dedicada ao problema político. a teoria darwínica do struggle for life: “ao Salvo, porém, tais referências irônicas, vencedor as batatas!”19 pode-se dizer que o Humanitismo cor- responde à antirreligião da Humanidade, X fundada que está na luta pela vida, e não nos ideais comtianos de fraternidade uni- As vias da libertação versal. Segundo Quincas Borba, “a luta é a É a essa altura que, na obra de Machado de grande função do gênero humano”, razão Assis, Darwin se cruza com Schopenhauer, pela qual os sentimentos belicosos “são os mais adequados à felicidade do gênero hu- 19 Tão grande era o entusiasmo de MACHADO por DA- RWIN e SPENCER que recomenda aos jovens a leitura mano”, devendo a inveja ser considerada desses “luminares da ciência” (cf. Crítica, cit., p. 105). como virtude, como estímulo do combate Sobre o papel do darwinismo em MACHADO DE ASSIS, v. MAGALHÃES JR, op. cit. e Vida e obra de Machado que todos devemos travar na existência. de Assis, Rio de Janeiro, 1981, vol. 3, p. 7 e ss. 126 • Miguel Reale como aconteceu com um seu genial con- ensimesmar-se, de deixar de existir perante temporâneo, Frederico Nietzsche, que fun- a plateia da opinião pública, para somen- de aquelas duas vertentes na fascinante te existir em si e por si, fitando a ponta do teoria do super-homem. O nosso romancis- próprio nariz. Nenhuma página de Macha- ta, para quem, de todas as coisas humanas, do é tão ilustrativa como aquela em que ele “a única que tem o seu fim em si mesma é mostra que o nosso “conformismo social” é a arte” (A Semana, cit., 29.9.1895, p. 261), tão forte que “estar em si” equivale a “estar a solução que encontra é de natureza pura- com os outros”, enquanto que quem se con- mente estética. centra efetivamente em si mesmo é conside- Se o homem é simples bolha no “enxur- rado “no mundo da lua”. Não me furto ao ro da vida”, e se esta é destituída de senso prazer de transcrever este tópico admirável: e de sentido, segundo o jogo do acaso e “Vulgar coisa é ir considerar no ermo. O do imprevisto, duas vias se abrem à pobre voluptuoso, o esquisito, é insular-se o homem criatura humana: a da sociedade e a de seu no meio de um mar de gestos e palavras, de próprio nariz. nervos e paixões, decretar-se alheado, inaces- sível, ausente. O mais que podem dizer, quan- A sociedade, na visão machadiana, lon- do ele torna a si – isto é, quando torna aos ge de qualquer tipo weberiano que se lhe outros –, é que baixa do mundo da lua, esse queira aplicar, é o mundo das convenções e desvão luminoso e recatado do cérebro, que das formalidades, subsistindo graças à opi- outra cousa é senão a afirmação desdenhosa nião pública, a “boa solda” das instituições da nossa liberdade espiritual?” (M.P., XCIX.) domésticas e políticas, “obra superfina da flor dos homens, o saber do maior núme- Essa mesma distinção entre o que é nos- ro”. É por isso que, dentre os modos que so e o que é dos outros aparece também o homem dispõe para valer algo, “o mais como expressão de duas forças capitais: “o seguro é valer pela opinião dos outros ho- amor, que multiplica a espécie; e o nariz, mens”, fugindo à obscuridade, o maior dos que a subordina ao indivíduo. Procriação, males sociais (M.P., XXVIII e CXIII). Pelas equilíbrio”. O nariz é o centro axiológico da mesmas razões, a “amável Formalidade” pessoa, sendo “essa sublimação do ser pela (a maiúscula é do autor) é considerada “o ponta do nariz o fenômeno mais excelso do bordão da vida, o bálsamo dos corações, a espírito.” (M.P., XLIX). medianeira entre os homens, o vínculo da Essa poderosa afirmação do “ser por si”, terra e do céu”, pois, “se a dor adormece, e em contraposição ao “ser para outrem”, que a consciência se acomoda”, devemos a ela antecipa, em intuição genial, tantos motivos esse benefício. Donde a conclusão de que da filosofia de Sartre, não é um brinco esté- não é a letra que mata: “a letra dá vida; tico no desenrolar do romance, mas corres- o espírito é que é objeto de controvérsia, ponde antes a uma profunda crença de um de dúvida, de interpretação, e conseguinte- escritor, tão cheio de dúvidas e reticências, mente de luta e de morte” (M.P., CXXVII). no valor originário do homem, no qual via, à Todavia, além dessa carapaça social maneira de Schopenhauer, toda a natureza protetora contra a dor universal, há a ca- resumida. Repercute, desse modo, na cultu- pacidade ou dom que só o homem tem de ra brasileira, e por obra de um literato, e não A filosofia na obra de Machado de Assis • 127 de um filósofo, uma tese fundamental de escreveu o libreto de uma ópera sobre a his- raízes kantianas sobre a compreensão axio- tória da criação, mas os versos acabam nas lógica da pessoa, em substituição ao concei- mãos do anjo rebelde que leva o manuscrito to substancialista de Boécio. Notem que não consigo para o inferno. Com o fim de mos- se trata de interpretação, sujeita a possíveis trar a sua valia – “e acaso para reconciliar-se inclinações individuais, mas, como vimos, com o céu –, Satanás compõe a partitura e de asserção explícita de Machado de Assis, leva-a ao Padre Eterno. Cansado e cheio de podendo ser apontadas outras análogas em misericórdia, Deus acaba criando um teatro sua multifacetada produção literária.20 especial, o nosso planeta, e os personagens Mas se o homem, em certos momentos todos da ópera, tendo o cuidado de cobrar culminantes de sua experiência subjetiva, os seus direitos autorais em ouro, receben- volve ao seu “eu profundo”, numa “afirma- do Lúcifer em papel. É em virtude dessa es- ção desdenhosa de sua liberdade espiritual”, tranha combinação que “há lugares em que não é menos certo que, via de regra, ele se o verso vai para a direita e a música para a conforma com as exigências amorfas da mul- esquerda”, havendo quem diga que nisso tidão, adaptando-se aos seus esquemas e reside o encanto da existência humana... formalidades. Destarte, a “natureza” se con- (D.C., IX). verte em “representação”; a “alma interior” Donde a conclusão implícita de que, des- é absorvida pela “alma exterior”, tal como de o nascimento do primeiro homem, viver é se dá no conto que tem o significativo título representar, só que a nossa tragédia consiste de Espelho, com este subtítulo que diz tudo: em ignorarmos o enredo da peça bem como “Esboço de uma teoria da alma humana”.21 o papel que nos caberá desempenhar, tudo entregue ao Destino, “o grande procurador XI dos interesses humanos” (M.P., L. VII). Pro- curação, porém, que nós não outorgamos A sublimação da Arte de nossa livre e espontânea vontade, porque precede a nossa entrada em cena, promove- A bem ver, dando um sentido todo seu à -a e governa-a até o desfecho sempre igual palavra “representação”, que Schopenhauer da imersão dos atores no nada. empregara para designar o mundo dos fenô- Visão panteísta, pois, irrecusável, che- menos ou das aparências, Machado de Assis gando o romancista a se deliciar com a re- converte-a em uma categoria artística com- dução do fluxo da vida a um processo físi- preensiva da história do homem desde as co de filtragem; do nada, donde surgimos, origens. Essencial, nesse sentido, é o capítulo para o nada que nos espera: como “um vi- de Dom Casmurro em que um tenor malo- nho filtrado, que se transfere de uma garra- grado conta como teve início a experiência fa para outra purificando em outra; a borra humana. Segundo seu relato, foi Deus quem [...] para o cemitério”.22

20 Cf. Papéis Avulsos, Livraria Garnier, 1882, p. 221 e ss. Isto não obstante, não flui a vida sempre 21 Sobre o Destino adverte MACHADO DE ASSIS: igual, porque, apesar dos pesares, o homem “Chamo-lhe assim para dar um nome a que a leitura antiga me acostumou, e francamente tem o seu ar fixo e definitivo. Ao cabo rima com divino e poupa-me a 22 MACHADO DE ASSIS, Relíquias da Casa Velha, cit., cogitações filosóficas” (M. Ayres). p. 58. 128 • Miguel Reale

é dotado do dom de corrigir-se: “cada es- nagens, refletidas no espelho volúvel da tação da vida”, pondera Machado, “é uma opinião pública, tão temida quanto ama- edição que corrige a anterior, e que será cor- da. E só, de longe em longe, obedecendo rigida também, até a edição definitiva que a uma força irresistível, libertamo-nos dos o editor dá de graça aos vermes”. É mister, outros, da plateia pronta a aplaudir ou a pois, corrigir Pascal: o homem não é um ca- vaiar, do próximo que nos espia e nos cri- niço mas uma errata pensante (M.P., XXVII). tica, para, de repente, ensimesmar-nos, Essas variações e contradições não atin- surpreendendo-nos com os olhos fixos na gem a raiz originária do ser humano, com- ponta do nariz, símbolo machadiano de preendido em sua ambivalência axiológica nosso último refúgio espiritual. e artística. Divergindo do Livro Sagrado, se- Talvez surpreenda que, já a esta altura gundo o qual “no princípio era o Verbo”, e de minha análise, após tão reiteradas pro- de Goethe, para quem “no princípio era a clamações imanentistas de Machado de Ação”, o nosso Machado de Assis nos desa- Assis, eu me arrisque a formular esta per- fia com uma frase terrível, de duplo sentido: gunta: não terá ele jamais curtido o acicate “A princípio era o dó”. Dó, nota musical que da transcendência, admitindo ou esperan- se faz ré etc., mas dó também da criatura hu- do que algo haja após a morte do homem? mana, bolha boiando no enxurro da vida... Seria vão tentar transformar Macha- Toca-nos a tarefa comum de representar do num crente, mas há uma frase sua, em o drama existencial, onde a dor inevitável, carta a Joaquim Nabuco, datada de 6 de de envolta com a esperança e o desespero, dezembro de 1904, que nos surpreende. vai compondo “a solidariedade do aborre- Escreve ele: “Tudo me lembra a minha mei- cimento humano”. É por esse motivo que ga Carolina. Como estou à beira do eter- a Natureza é ao mesmo tempo “mãe e ini- no aposento, não gastarei muito tempo miga”, “Natureza e Pandora”, como Brás em recordá-la. Irei vê-la, ela me esperará.” Cubas ouve em seu delírio, por ser ela fonte (O.C., III, p. 1071.) da vida, que é dor e morte, e fonte também Donde se conclui que, se o amor não foi da irrenunciável vontade de viver, confun- via de redenção, como no Fausto de Goe- dindo-se, assim, a esperança com o deses- the, entreabriu a nosso Machado uma fres- pero, “a necessidade da vida e a melancolia ta de transcendência. do desamparo”. Ao relembrar essas perspectivas de Ma- chado de Assis, no clima espiritual legado X pela Filosofia existencial de Heidegger e Posição de Machado de Assis Sartre, como não perceber que elas adqui- na história das ideias rem um sentido antes oculto? Na realidade, os grandes espíritos dialogam com o futuro, É no quadro de tantos valores metafísicos, ocultando-se no porvir uma parte essencial transfigurados em valores estéticos ou artís- de sua imagem. ticos, que devemos, em suma, situar o pen- Antecipa-se, outrossim, o nosso escri- samento de Machado de Assis, inclusive no tor a Pirandello, com o jogo de suas perso- que se refere à sua prodigiosa capacidade A filosofia na obra de Machado de Assis • 129 de fazer vir à tona os mais encobertos re- criadoramente de Descartes a Kant; numa folhos de nossa vida psíquica. Se ele ana- sociedade alheia ao sorriso cético de Mon- lisou a alma humana e nos ofereceu os taigne e Voltaire ou ao grito angustiante contornos de uma cosmovisão sempre com de Pascal; numa Nação onde as atitudes irônica bonomia, não me parece, contudo, dogmáticas se sucedem, revezando-se, no que tenha passado do humanismo para o domínio de nossa Inteligentsia, os escolásti- humorismo, pois, se há uma constante em cos, os espiritualistas ecléticos, os monistas sua obra, é o “problema do homem”, ou a ou os positivistas, Machado de Assis trouxe- visão antropológica do mundo. -nos algo que transcende a sua posição de Filósofo não o foi, se analisado segundo homem de letras: é o fermento crítico inje- a linha prevalecente de seu espírito, mas, se, tado no cerne de nossa cultura, ao focali- como é pacífico, a sua longa experiência in- zar as perplexidades todas do ser humano, trospectiva o preservou da falaz assepsia do paradoxalmente visto como valor fundante realismo oitocentista, mantendo-o fiel ao e, ao mesmo tempo, destituído de sentido que havia de perdurável no “leite românti- próprio na imanência de sua dolorosa e im- co”, é necessário responder também a esta previsível trajetória. outra pergunta: que representa Machado O que me parece essencial é deixar de de Assis na história das ideias no Brasil? procurar a Filosofia de Machado de Assis Afigura-se-me essa uma questão bem neste ou naquele outro autor, quando é na mais relevante do que o debate para atri- sua existência messwma que se deve en- buir-lhe ou não o título de filósofo. Num contrá-la, no seu drama pessoal de mulato país como o nosso, que não viveu os em- genial que sabe ser superior à sociedade e bates da Reforma protestante, nem pas- à cultura brasileiras de seu tempo, que ele sou pela crise espiritual que se desenrola ama e engrandece.

Breve história de tenacidade e imaginação

Antônio Fernando de Bulhões Carvalho Advogado, escritor, bibliófilo. Responsável pela organização do projeto financeiro na construção do edifício Palácio Austregésilo de Athayde, para que o mesmo se erguesse e trouxesse as condições de tranquilidade financeira para a Academia. Ganhador da Medalha João Ribeiro e do Prêmio Senador José Ermírio de Moraes, por seu livro Diário da Cidade Amada.

oi Austregésilo de Athayde, instiga- desgastados por largo período de demagogia do por , quem me social – em que foram editadas as famosas F chamou a colaborar com a ABL, na leis do inquilino –, inflação ascendente – sem tentativa de elaborar estudo de viabilidade mecanismos de correção monetária, tardia- econômico-financeira, atento aos aspectos mente instituída –, e obsolescência natural. jurídicos envolvidos, para o erguimento do Era urgente, ao ver dele, e com razão, Centro Cultural do Brasil, hoje denominado encontrar, ou criar, geração de recursos Palácio Austregésilo de Athayde, em ter- novos, não derivados do testamento do reno que a União doara à ABL. A ideia do abençoado editor, que assegurassem à ABL edifício era acalentada por Austregésilo de suprimentos de caixa constantes e ponderá- Athayde a partir da constatação de que o veis, que a livrassem do espectro da carên- prédio então existente no terreno em causa cia financeira provável. – pavilhão inglês na Feira Internacional da Por que Marques Rebelo, e depois Aus- Exposição do Centenário de 1922 e depois tregésilo de Athayde, me elegeram para co- sede do Tribunal Federal de Recursos – exi- operar com a ABL, é que – ambos falecidos giria, para ocupação própria ou qualquer – permanecerá provavelmente na esfera das outro tipo de aproveitamento imediato, cogitações. Talvez confiassem na experiência dispêndios de recuperação que a ABL não que eu possuía, em matéria de planejamen- tinha condições de realizar. to de empreendimentos, que não era muita; Por outro lado, Austregésilo de Athayde, mas estava à disposição. Talvez apostassem há muitos anos dirigindo a ABL, não se iludia na circunstância de que, amador em econo- quanto às perspectivas de diminuição con- mia, profissional em direito, eu lograria visua- siderável com que o patrimônio da ABL se lizar as duas faces da moeda, e conciliar pos- defrontava. Os bens componentes do gene- sível contradições entre ambas, já que desse roso legado imobiliário de Francisco Alves vi- enfoque compósito é que nasceria a possível nham, há bastante tempo, e conquanto len- solução procurada. Talvez acreditassem na mi- tamente, perdendo substância econômica, nha capacidade de agregar ao trabalho outras Publicado na Revista Brasileira n.o 14, Fase VII, Janeiro-Fevereiro-Março de 1998, Ano IV, pp. 20-24. 132 • Antônio Fernando de Bulhões Carvalho pessoas, versadas nos temas envolvidos, e que líquido a ser obtido cobrisse, nesses prazos, suprissem as deficiências que de minha capa- todos os encargos de repagamento do finan- cidade, exercida individualmente, pudessem ciamento ou exigisse, no máximo, a fim de resultar. Talvez se sentissem tranquilos quanto os atender, venda parcial desimportante do à dedicação que eu dispensaria ao assunto, edifício; f) uma vez liquidado integralmente sem ônus para a ABL, seja em homenagem a o financiamento, o aluguel mensal rema- esta, seja pela funda amizade que a eles, Mar- nescente, ainda que houvesse sido preciso ques Rebelo especialmente, me unia. Talvez vendê-lo parcialmente conforme indicado por tudo isso, um pouco de cada fator. em e, corresponderia a rendimento de capital Convocado, mordido pelo desafio e em investido de valor sensivelmente superior ao dobro motivado ante as razões de afeição que geraria o terreno em si; g) a ABL estaria pessoal e de apreço pela ABL, que se faziam oferecendo ao financiador relação de endivi- sentir, pedi ao meu companheiro de escritório damento para ativo próprio (debt/equity) de e também grande amigo, Acyr Pinto da Luz, 50/50, satisfatória pelos padrões de aferição de risco geralmente adotados; h) depois de que me ajudasse a organizar aquele projeto liquidado o financiamento, a ABL passaria a de viabilidade. Engenheiro e advogado, em dispor, integralmente, da renda total de alu- ambos os campos extremamente competen- guéis produzida pelo edifício remanescente, te, ele pôs mãos à obra, comigo, e nós dois, previsivelmente muito considerável. juntos, como se tocássemos uma fantasia pia- Havia dificuldades jurídicas a vencer por- nística a quatro mãos, chegamos às conclu- quanto o imóvel fora doado pela União à ABL sões preliminares que, uma vez confirmadas, com cláusulas de inalienabilidade e impenho- e superados os obstáculos que apontavam, rabilidade, e não seria factível, em tese, obter permitiram as conclusões de boa resposta às qualquer financiamento senão hipotecando premissas a que, atendendo ao que Austregé- em garantia o terreno. O obstáculo foi venci- silo de Athayde pedia, nos atínhamos. do através de novas leis, retificadoras da origi- A equação econômico-financeira que nária, a duras penas obtidas por Austregésilo comandava o estudo de viabilidade era sim- de Athayde, liberando a ABL desses gravames, ples. À época: a) na composição do valor de que a engessavam, dado o estado precário mercado de edifício comercial pronto, no lo- em que o prédio se encontrava, até mesmo cal, o terreno e a construção entravam, como para conseguir recursos que permitissem ape- partes iguais, 50% cada; b) os aluguéis do nas sua restauração e subsequente aproveita- edifício pronto seriam de 1% ao mês sobre mento, por uso próprio ou arrendamento, se esse valor; c) se o terreno não tinha custo para o projeto do edifício não prosperasse. a ABL, como era o caso, auferiria ela 2% ao Superados tais óbices, iniciei contatos mês do rendimento locatício do edifício pron- com várias fontes possivelmente sensíveis to; d) os juros dos financiamentos, mesmo a à concessão do financiamento necessário à longo prazo, eram então baixos, em termos construção do edifício. Esses contatos, ha- absolutos (principalmente quando compra- vendo eu esbarrado em negativas pratica- dos aos atuais); e) se o financiamento fosse, mente em série, levaram-me (sempre sem por exemplo, a 15 ou 20 anos, o que era fac- ônus para a ABL) a Londres, onde cheguei a tível, cumpria tão somente que o aluguel total me sentir próximo de solução positiva todavia Breve história de tenacidade e imaginação • 133 não alcançada. Desisti desse caminho ao que o terreno não lhe pertencia e o edifício compreender que, por mais garantido e bem não existia ainda. estruturado, econômica e financeiramente, Depois de inúmeros exercícios de posi- que fosse o negócio que eu apresentava, ne- cionamentos jurídicos possíveis, à procura do nhum banqueiro aceitava a responsabilidade mais adequado, nessa tentativa de organi- de vir um dia a defrontar-se com a hipótese zar quase a quadratura do círculo, chegou- de precisar executar a ABL. Para os possíveis -se a sistema complexo segundo o qual: a) a credores futuros do financiamento que eu ECISA seria a devedora, condicionada a apli- pleiteava, não era levada em conta apenas a car os recursos exclusivamente na construção avaliação do risco de recebimento do princi- do edifício; b) a ABL seria garantia do débi- pal a ser emprestado, e juros respectivos, que to, hipotecando em consequência o terreno, a todos os parecia normal, mas seu aspecto, acrescendo gradativamente no gravame as digamos, político. Se, por algum acidente de benfeitorias que acederiam ao mesmo, na percurso, especialmente tratando-se de pra- medida em que fossem erguidas; c) a ECISA, zo longo, a ABL viesse a se tornar tecnica- pronto o edifício, (I) entregaria, desde logo, mente inadimplente era impossível para eles as áreas então especificadas para uso dire- imaginar sequer situação em que fosse pre- to e não oneroso da ABL, e (II) alugaria as ciso fazer valer contra ela direitos creditícios, demais áreas a terceiros. O produto de loca- por melhores que fossem. ção dessas áreas caberia à ABL e à ECISA, ao Voltando ao Brasil, relatei a Austregésilo longo do tempo em percentuais pré-fixados de Athayde minhas observações, enfatizan- crescentes para a ABL e decrescentes para a do que, no contexto indicado, a única via ECISA, até os primeiros chegarem a absorver possível de ser trilhada seria a de financia- cem por cento do total. mento pela Caixa Econômica Federal, que O sistema funcionou, o edifício, com por sua vez evidentemente não o conce- boas razões levando o nome de Austregé- deria se não autorizada pelo Presidente da silo de Athayde, está pronto, não foi pre- República. Austregésilo de Athayde, com a ciso vender nada, a ABL tem a sua plena pertinácia que o caracterizava, pôs-se em propriedade (terreno e benfeitorias) e está campo e mais uma vez logrou êxito. ná iminência de dispor a integridade do seu Nova dificuldade jurídica, porém, nos uso e da percepção dos rendimentos que aguardava. A quem seria concedido o em- produz, com o que a hipoteca automati- préstimo? A ABL, proprietário do terreno, camente se extinguirá. Assim criado, para cuja hipoteca responderia pelo mesmo, não a ABL, patrimônio de alto valor – notada- tinha condições, estatutárias inclusive, de mente como gerador de fluxo constante de se tornar empreendedora, incorporando o rendimento – o que remanesce, negativo, edifício, contratando-lhe a construção com dessa aventura fundada em tenacidade em a ECISA e o alugando em seguida à própria imaginação, é a saudade que a todos nós ECISA, que assumiria a dívida e seu serviço ficou, tanto de Marque Rebelo quanto de e o subalugaria. Por outro lado, a ECISA, se Austregésilo de Athayde, amigos queridos, devedora originária, não dispunha de ativo amigos insubstituíveis, amigos da vida e na capaz de garantir o financiamento, uma vez lembrança após a morte. In memoriam.

O cacique Athayde

Marcos Vinicios Vilaça Ocupante da Cadeira 26 na Academia Brasileira de Letras. Advogado, jornalista, professor, ensaísta e poeta brasileiro. Membro Pernambucana de Letras, da Academia das Ciências de Lisboa e da Academia Brasiliense de Letras, ex-ministro e presidente do Tribunal de Contas da União.

que me domina nestes momentos E nem assim sua mãe achou que isto de saudade de Athayde é a sensa- fosse glória maior que discursar na tribuna, O ção de que deveria tomar ao pé da por ela considerada insuperável, a do Teatro letra a lição de Saramago: de Santa Isabel, no . “E já que nas palavras me não salvo diz Ortodoxa nos seus amores, por isso o tu por mim, silêncio, o que não posso.” menino que estudou para ser padre, no Se- Mas o silêncio tornou-se impossível. minário da Prainha, em Fortaleza, foi criado Não supliquei o infinito, mas me deu a vida no cultivo de padrões de integral fidelidade bons pedaços do mundo, como o de chegar à região, às ideias, aos amigos. ao Pen Clube, além do mais, para me sen- A aventura do exílio europeu e na Ar- tar na cadeira de Austregésilo de Athayde, gentina, por exemplo, provou nele o com- pois, subindo de posto, de sócio efetivo a promisso com a liberdade e o horror indis- benemérito, passou a ocupar um trono, si- farçado à pirataria política. Na ONU, anos tuação que lhe ficou muito mais própria. mais tarde, isto se sublima, ao legar à hu- “A Assembleia Geral proclama a pre- manidade o trabalho por aquela carta de sente Declaração Universal dos Direitos do princípios, com jeitos de eternidade. Homem como o ideal comum a ser atingido Um pouco depois, em 1951, ao tomar por todos os povos e nações...” posse na Academia Brasileira de Letras, a É assim que começa a parte disposi- coerência do liberal se mantém e ele diz, tiva de um compromisso das nações con- ao suceder “... nenhum bem temporâneas, cujo texto é muito da alma supera a liberdade, nenhum sentimento é de Austregésilo de Athayde, desde as suas mais nobre que a Justiça, nenhuma aspira- concepção e entranhas, até quando, de cer- ção mais digna do que servir à pátria, dila- to modo, fê-lo de domínio público, com o tando os seus horizontes espirituais”. memóravel discurso do Palais Chaillot, em O jornalismo – que roubou nele uma Paris, ao final de 1948, perante gente qua- trajetória de romancista, impedindo que lificada – aos milhares – de todo o mundo. as hortênsias florescessem – foi exercitado

Publicado na Revista Brasileira n.o 12, Fase VII, Julho-Agosto-Setembro de 1997, Ano III, pp. 273-277. 136 • Marcos Vinicios Vilaça com seriedade e atualidade. Seus artigos Manteve a tradição da família: o bisavô, elasteceram o efêmero. Reverentes ao ver- Nascimento Feitosa, tornou-se conhecido náculo, circularam sem palavras fora de cir- em Pernambuco, seja pela liderança revolu- culação e revelaram o repórter da história, cionária no episódio da Praieira – em 1848, que Edmundo Bittencourt logo cedo per- seja como o “Língua de Prata” – tribuno cebera, acolhendo-o no jornal que dirigia, muito admirado. dando destaque a sua colaboração em pá- Nunca perdeu os essenciais das caracte- gina nobre de artigos. rísticas de zeloso, pessoal ou institucional, A fidelidade, de que ainda são exemplos no enfardelar tesouros. o cuidado quase clínico com a memória do Afastou de si as tentações de gasto, por tio/amigo Antônio Austregésilo e os cari- mais sedutoras e aparentemente irresistíveis. nhos tutelares com os Diários Associados Fez disto uma regra imutável. Creio, entre- e a Academia Brasileira, dão o tom desse tanto, que estimulou e se comprazia em re- pernambucano das barrancas do rio Ipoju- forçar caricaturas desse seu jeito de ser. ca, lá do país de Caruaru, terra também dos Já sabemos que homem algum é uma Condé, de Vitalino, de Álvaro Lins, de Celso ilha. É verdade. Uma ilha, não pode. Mas Rodrigues, dos Lyra, dos Taboza, de Lourival duas ilhas, pode. Austregésilo significa Vilanova. duas ilhas: aquelas de ltacuruçá, que tan- Na Academia Brasileira de Letras esteve to encantaram Bernanos, nas quais criou todos os dias, ao contrário de certo pre- papagaio, colheu bananas, sonhou alto e sidente que, em nove anos, lá foi apenas amealhou a fatura infindável do que lhe nove vezes. A nossa Academia tem com ele proporcionou a sorte lotérica, com o bilhete uma relação quase orgânica. Tanto é que 58138, dezena de milhar de coelho. sua presidência se aproximou dos 35 anos. Não vivendo nessas ilhas, habitou uma Tempo no poder, só igual ao da rainha Vi- outra, a da saudade. Nada pôde ser maior tória. No posto, exerceu as artes aprendidas que a sua sensação de estar cercado por na mocidade ora de esgrimista, ora de bo- todos os lados pelo mar de lembrança de xeur, de forma a que nada acontecesse ali dona Maria José – a Jujuca, do nosso respei- sem um processo de empatia em relação a to e do nosso bem-querer. ele. E tudo findou num mês de setembro, No casarão do Cosme Velho, foi espécie tal e qual, como Machado de Assis. de Rebeca, toda feita de pureza e ternura. Quando chegou à Academia, a esposa, Companheira, até mesmo para o con- que entrava na faixa dos 40 anos, disse-lhe traste que completa: o marido, aquela cara bem-humorada: “Entramos nos 40 juntos; agreste de índio dos inhamuns cearenses, ou eu, na idade, você, nos da Academia.” de profeta bíblico, como quer Josué Montello; Ele, em defesa nossa, foi a própria en- a suave esposa, de olhos claros, as feições de carnação dos 40 e não apenas um dos 40. uma porcelana de Sévres, translúcida. Orador solicitado, pelo que tinha de Que me desculpem o lugar-comum: um consistente na mensagem e de fluência fora feito para o outro. sem estacionamento nas esquinas da fra- Fui lá, tempos atrás, com Maria do Car- se, significa a própria coragem em voz alta. mo. Percorremos a casa toda. E no Cosme O cacique Athayde • 137

Velho! Entre os livros raros, as porcelanas, a Monteiro, Nilo Pereira, Gilberto Amado, Fa- prataria, os cristais, os quadros, os móveis ria Neves Sobrinho, Antônio Camelo, Mar- – tudo valioso e belo – apequenava as coi- tins Júnior, Virginius da Gama e Melo, Car- sas para destacar que a sua alegria de vida los Penna Filho, Aníbal Fernandes, Alfredo partira com ela. de Carvalho, Waldemar de Oliveira, Pereira Cuidava em viver, é certo, disse a mim da Costa, Altamiro Cunha, Tobias Barreto, e a minha mulher, mas pelo gosto de sentir Clóvis Bevilácqua, Renato Carneiro Campos, saudade dela. Câmara Cascudo, Araripe Júnior, Assis Cha- Esse o Athayde que a gente conheceu. teaubriand, Oscar Mendes, Gilberto Freyre. Nele os sentimentos não se sujeitam a me- Nesse jornalismo, que é pioneiro no Bra- didas de tempo. sil, fizeram companhia do Mestre Austregési- Esse, o velho – sempre dominado por lo: o seu Diário de Pernambuco, o prelo que um estado matinal de espírito – a quem me lá se instalou em 1703, o Typhes Pernambu- coube suceder no Pen Clube. Um mestre de co, de ; o Aurora Pernambuca- dignidade humana, que já, ao deixar o Semi- na, impresso com o resto de máquinas que nário, fez visíveis seus compromissos com a Luís do Rego conseguiu recuperar daquela indeclinabilidade do comportamento. Sentiu tipografia que serviu aos revolucionários de que não dava. Os padres, ao lhe franquea- 1817. E também os novos, como o recupe- rem a biblioteca reservada aos já ordenados, rado Jornal do Commercio. foram veículos da mudança. Mais tarde, no Os arquivos desses jornais são a própria discurso com que o recebeu na Academia, história social de Pernambuco. Nenhuma Múcio Leão definia: “Pascal adolescente me- outra fonte histórica os supera, seja pela am- tamorfoseava-se em Renan.” plitude, seja pelo que há de sequencial, seja Como saudade, recordo a alma jorna- pelo que existe de dialético ou de dialógico. lística de Pernambuco, feita nos momentos Não sei o que poderia, tomo a liberdade opinativo, retórico, agressivo, acadêmico de supor, ser mais do agrado athaydeano – do passado; e nos momentos do hoje – como presença pernambucana, que essa construídos de atualidade ou da atualização saudade com cheiro de tinta de jornal, mis- do assunto; de objetividade; de palavras – turando os olhos cansados da noite das re- como os tempos exigem – que partem di- dações e as alegrias do dia começando nas retamente para o seu destino, sem perder bancas iluminadas de sol tropical. Saudade tempo no meio do caminho. da terra dos seus pais. Dos seus antepas- O jornalismo de Pernambuco também sados. E os cearenses que me perdoem: é um meio e uma expressão de cultura, na- Athayde não é pernambucano por acaso. queles termos nos quais foi colocado, em en- O mínimo que se pode dizer de quem nasce saios definitivos, por um Sílvio Romero, um ali é que teve a sorte de nascer em Pernam- Antônio Cândido, um Alceu Amoroso Lima. buco. Dele o que se pode dizer é ter sido Para avalizar esses mestres, se fosse ne- nordestino pleonástico: nascido em Per- cessário, bastaria dizer que nele transitaram: nambuco, criado no Ceará. Nabuco, Mauro Mota, Antônio Pedro de Fi- (Correio Braziliense, quarta-feira, gueiredo, Luiz Delgado, Álvaro Lins, Maciel 29 de setembro de 1993.)

Palácio Austregésilo de Athayde – Discurso

Evaristo de Moraes Filho Quinto ocupante da Cadeira 40 na Academia Brasileira de Letras. Advogado trabalhista, escritor, professor universitário.

ste breve discurso é um testemunho Como se trata de um testemunho, fa- e um reconhecimento. Hoje é um dia rei minhas algumas palavras de confrades E de justiça e de gratidão, devidas pelas nossos proferidas ou escritas quando do gerações atuais de Acadêmicos, por si mes- seu falecimento: a nota constante é a sua mas e, principalmente, pelas que hão de identificação com a Academia, o seu amor, passar por esta Casa. O homem que fez por a sua dedicação, a sua paixão pela Casa que merecê-las chamou-se em vida, por exten- presidia. Disse Barbosa Lima Sobrinho, o de- so, Berlarmino Maria Austregésilo Augusto cano de todos nós: “É difícil falar de Austre- de Athayde. Por sua ação, como que houve gésilo na Academia Brasileira, porque ele se um divisor de águas entre os séculos XX e dedicou de tal maneira a todos os interesses XXI. Foi ele quem o construiu, criando con- da Academia, que ele, por assim dizer, tinha dições de completa independência econô- mais empenho em desenvolver o patrimô- mica e financeira da Instituição que presidiu nio da Academia do que desenvolver o seu por 34 anos consecutivos. próprio patrimônio”... “Ele podia dizer que Era de ver a emoção que o possuía a tinha uma alegria maior em fazer crescer cada eleição de fim de ano. Parecia que cor- esse patrimônio do que teria tido se estivesse ria riscos, quando era ele próprio o candida- registrando a expansão do seu próprio pa- to único. O ambiente ficava solene, como trimônio. O seu amor à Academia era tão se nele se realizasse uma grave cerimônia. A atuante, que ele, já não mais em condições sua emoção, porém, era sincera, percebida de se levantar do que seria o seu leito mor- por todos, seus amigos e eleitores. Apura- tuário, fazia questão de vir à Academia, e foi do o resultado, alguém gritava do fundo da preciso que os médicos do hospital o dopas- sala: “Que surpresa!”, todos iam, então, sem para evitar que ele fizesse um esforço fi- abraçá-lo, já agora recebidos por um largo nal para cumprir o seu dever, comparecendo sorriso. a uma das sessões de quinta-feira.”

Publicado na Revista Brasileira n.o 12, Fase VII, Julho-Agosto-Setembro de 1997, Ano III, pp. 301-305. 140 • Evaristo de Moraes Filho

Discurso do Acadêmico vida de Austregésilo e com tempo bastante Evaristo de Moraes de ser contestado por quem não concor- dasse com as suas afirmativas. E nunca o No O Estado de S. Paulo do mesmo dia re- foi. Ei-lo: gistrava Miguel Reale: “Quem negará que “Em 1960, deixando o Rio de Janeiro de ele se identificou de tal modo com a Acade- ser Capital do País, o presidente Juscelino mia que, enquanto vivo, nos foi impossível Kubitschek, através do Decreto n.o 728, de recusar-lhe a presidência? Não o reelege- 28 de março de 1960, cedeu a título precá- mos 34 anos a fio por mero sentido de gra- rio o edifício do antigo Tribunal de Recur- tidão, por ter sabido construir, graças à sua sos, para nele se instalar a Academia. Esse fina argúcia de sertanejo de Caruaru, nosso decreto foi revogado posteriormente pelo grandioso patrimônio, mas sim, em virtude governo de Jânio Quadros. da força aliciante de sua dedicação. A Aca- O presidente Castelo Branco, através do demia tornou-se o centro vital de sua vida, Decreto-lei n.o 232, de 28 de fevereiro de num raro fenômeno da transubstancializa- 1967, doou à Academia Brasileira o imóvel ção. Institucionalizou-se: confundiu-se com situado na Av. Presidente Wilson, 231. O a entidade, nos problemas do dia a dia.” imóvel destinava-se à ampliação das ativi- E já vinte anos antes, em 1973, numa dades da Academia, tornando-se nula a simples passagem, dizia o mestre de nós doação se ao mesmo fosse dada utilização todos, Alceu Amoroso Lima: “Sendo eu, diversa da prevista por esse decreto. por cerca de vinte anos e por mero acaso, Em 30 de setembro, foi apresentado ao o abridor dos cursos anuais da Academia, Congresso Nacional o Projeto n.o 2.309-70, criados e mantidos pela inexcedível dedica- complementando o Decreto-lei n.o 232 e ção de Austregésilo de Athayde...” pleiteando direitos amplos à Academia so- Durante sua gestão toda a Academia bre esse imóvel. Daí resultou a Lei n.o 5.642, cresceu. Sem se descurar dos aspectos mo- de 3 de dezembro de 1970, sancionada ral e cultural, percebeu que o seu patrimô- pelo presidente Emílio Garrastazu Médici, nio não lhe assegurava definitivamente o que assim se expressa: futuro sem aflições nem dúvidas. Obteve de A Academia Brasileira fica autorizada a: João Cleofas, em Campos, a doação do So- – alienar ou hipotecar frações do imó- lar da Baronesa. Lá pretendia instalar o Ins- vel doado para a construção das edificações tituto Internacional de Cultura, com a maior que lhe pertencerão no todo ou em parte, Brasiliana do mundo. Utopia ou não, lutou com a finalidade de obter recursos para a sempre pela sua realização. Mais do que execução dos objetivos da doação; isso, obteve do Governo Federal o terreno – locar parte das áreas a serem construí- contíguo à Academia e nele fez construir das com a mesma finalidade. o majestoso prédio no qual foi instalado o De posse definitiva e com amplos direitos Centro Cultural do Brasil. sobre o terreno, a Academia Brasileira decidiu Volto a transcrever todo o histórico des- construir um prédio que viesse a ser o grande ta última aquisição, por se encontrar cons- patrimônio da Cultura Brasileira. Desaloja- tante do próprio Anuário da Academia, em das as seis organizações governamentais do Palácio Austregésilo de Athayde – Discurso • 141 antigo Pavilhão Britânico – o DOPS, o Poder construção do prédio. Seu colega de escri- Judiciário, a 3.a Zona Eleitoral, a Subprocu- tório, Alberto Venâncio Filho, pôde acom- radoria da República, a Faculdade de Letras panhar de perto a atividade de Athayde e sua Biblioteca –, procedeu-se à demolição naquele momento, e diz: “Era realmente do prédio. A seguir tratou a Academia da admirável o interesse, o empenho e a de- obtenção de recursos financeiros para uma dicação com que Austregésilo de Athayde nova construção. Esses foram postos à sua voltava, a cada momento, para este traba- disposição pelo então presidente Ernesto lho. Eram constantes os telefonemas, os Geisel, que interveio junto à Caixa Econômi- pequenos memorandos, as notas pedindo ca Federal e tornou possível a totalidade da explicações sobre cláusulas contratuais, concessão de um empréstimo que permitiria porque acima de tudo ele via o interesse da a realização da obra. Academia, daí o seu empenho em dotar a A Academia Brasileira iniciou, então, a Academia deste valioso patrimônio.” edificação do grandioso prédio, concebido No relatório e fim de sua gestão como pelo arquiteto Maurício Roberto e execu- Tesoureiro, no ano de 1995, o mesmo Aca- tado pela ECISA, após centenas de entre- dêmico Venancio Filho refere-se à “clarivi- vistas, conversas e debates do presidente dência” de Athayde em providenciar outros Austregésilo de Athayde e após a obtenção recursos para o patrimônio da Academia, de empréstimo de 200 milhões de cruzei- de vez que se fazia precária sua situação ros junto à Caixa Econômica Federal para econômico-financeira a cada dia. a construção do prédio que veio a denomi- Requeri, então, no ano passado, que se nar-se Centro Cultural do Brasil.” desse o nome de Austregésilo de Athayde Aqui cesso a citação literal do Anuário, ao Centro Cultural do Brasil, pelo muito pela qual se vê o papel singular desempe- que ele havia feito pela instituição. Embo- nhado por Austregésilo. A 20 de julho de ra aceitando a moção da homenagem, por 1979, em sessão solene, presidida pelo mim proposta, houve por bem o plenário, presidente da República, foi inaugurado por unanimidade (incluído o meu voto), o Centro Cultural do Brasil. A 19 de julho em dar o nome de Palácio Austregésilo de de 1984, inaugurou-se o Auditório José de Athayde ao imponente prédio que ele con- Alencar, projetado também por Mauricio seguiu erguer ao lado do Centro Cultural, a Roberto, com apenas 80 lugares, destinado fim de que se guarde para sempre o quanto a iniciativas de ordem cultural mais restritas. a Academia ficou devendo ao seu grande Pelo contrato com a ECISA todo o con- benfeitor. junto do grande prédio de 30 andares pas- A ampliação do patrimônio da Acade- sará à propriedade plena da Academia, o mia na década de 70 constituiu um dos que se dará a 20 de novembro de 1999. numerosos momentos gloriosos na vida O empréstimo feito à Caixa Econômica já de Athayde, somente superado, talvez, se encontra totalmente pago, nada mais pelo papel que desempenhou na elabora- sendo devido. Coube ao advogado Anto- ção e na aprovação da Declaração Univer- nio Fernando de Bulhões de Carvalho ser o sal dos Direitos Humanos na II Assembleia autor do projeto econômico-jurídico para a Geral da ONU, em Paris, no ano de 1948. 142 • Evaristo de Moraes Filho

Na comissão, sob a chefia de René Cassin, Sempre liberal e pela liberdade de expressão mais tarde Prêmio Nobel da Paz, trabalhou – não fosse, sobretudo, jornalista – tomou na elaboração do Documento, cabendo-lhe partido a favor de São Paulo, em 1932, e apresentá-lo ao plenário em memorável dis- foi exilado. curso. Cassin, ao receber o Prêmio Nobel, Sempre fiel a si mesmo Athayde não lamentou não poder dividi-lo com o seu mudou, dono de uma energia inexcedí- colega brasileiro. Muitas outras mensagens vel. Presidiu à sessão da Academia a 26 de de elogios recebeu Austregésilo, vindas, por agosto de 1993, ardendo em febre, já com exemplo, de Eleanor Roosevelt e do Presi- a pneumonia que o levaria à morte, a 13 dente Truman. de setembro. Dele se pode dizer que não Homem culto e erudito, com formação teve decadência, apesar dos seus 95 anos clássica, homem de pensamento e de ação, incompletos. “O difícil na vida não é che- Athayde se multiplicava, estando em toda gar a ser alguém, mas sim em continuar parte ao mesmo tempo sem nunca faltar a sê-lo”, disse em entrevista Roger Martin aos seus deveres. Viveu uma vida intensa, du Gard, autor de Les Thibault, já velho, participou de inúmeros acontecimentos retirado no sul da França. Austregésilo de sociais e literários brasileiros. Quando em Athayde venceu essa dificuldade: foi sem- 1921 Mário de Andrade leu Pauliceia des- pre o mesmo. vairada, aqui no Rio, na casa de Ronald de Carvalho, lá se encontrava Athayde entre Discurso proferido na sessão pública de 3 “os jovens escritores”, a que se refere Amo- de julho de 1997, em homenagem ao presi- roso Lima nas suas Memórias improvisadas. dente Austregésilo de Athayde. Um humanista

Merval Pereira Ocupante da Cadeira 31 na Academia Brasileira de Letras. Participa do Conselho Editorial do Grupo Globo. É membro das Academias Brasileira de Filosofia e de Ciências de Lisboa. Recebeu os prêmios Esso de Jornalismo e Maria Moors Cabot, da Columbia University.

uiz Paulo Horta tinha a elegância e a Na música, que abraçou desde a infân- sofisticação dos realmente cultos. Ele- cia, ia do clássico ao popular com a mesma L gância nos gestos, na delicadeza com desenvoltura, e nada melhor para definir que tratava a todos, do contínuo da reda- como se sentia à vontade nesse ambiente ção ao poderoso do momento. Sofisticação do que a charge de Chico Caruso publicada na inteligência. Ficava bem em qualquer na primeira página de O Globo, no dia de ambiente. sua morte. ao acordeom, que Um exemplo: perto de O Globo, no aliás Luiz Paulo tocava, e ele ao piano, sorri- Centro da cidade, no botequim da Dona dente. No Céu. Ana, herdeira legítima da receita original A notícia de sua morte me surpreendeu do angu do Gomes, há uma foto na pare- particularmente, não apenas porque entrei de do Luiz Paulo de fardão. Não é preciso em contato com ele por e-mail dias antes, dizer que ele era freguês da rabada e tam- confirmando que iria à sua missa de 70 anos bém do angu. na PUC. Com seu humor refinado, mandara Lamentamos a morte do Luiz Paulo qua- dizer que fora “impossível resistir, cheguei se como um exercício de egoísmo, chora- aos 70 anos”. Não conseguiu chegar. mos a falta que nos faz, as conversas que Luiz Paulo Horta teve a alegria de termi- não mais teremos, os textos que não mais nar seus dias escrevendo uma coluna diária leremos,as piadas que não mais ouviremos, ne O Globo sobre a participação do Papa os comentários sarcásticos que não mais na Jornada Mundial da Juventude no Rio. compartilharemos. Estava feliz com a atuação do Papa Francis- Leitor voraz, tinha em Machado de As- co, a quem elogiava por sua “avassaladora sis, cuja Cadeira ocupava na nossa Acade- humanidade”. mia Brasileira de Letras, Lima Barreto e Car- Nos últimos dias, enquanto organizava los Heitor Cony os preferidos, não por acaso com entusiasmo os preparativos para sua escritores ligados ao Rio de Janeiro, cidade festa de 70 anos, Horta trabalhava em um que amava. livro sobre a transição promovida na Igreja 144 • Merval Pereira por Francisco, em quem via uma rara figura a música como um “idioma universal”, que pública a inspirar “esperança, numa época “nos abre as portas da transcendência”. E em que as lideranças decepcionam”. sintetizou em uma frase a visão que tinha Além de especialista em música, sobre- de seu ofício: “Escrever é um ato de amor.” tudo a clássica, Luiz Paulo era um católico Sabia a importância histórica do Vatica- estudioso da religião. Em 1986, fundou no, e em um de seus últimos artigos defi- e dirigiu a seção de música do Museu de niu: “Há mistérios no Vaticano, muito além Arte Moderna do Rio de Janeiro, a mesma do alcance de um Dan Brown.” atividade que exercia na Academia Brasilei- Na visão histórica sobre a Igreja de ra de Letras (ABL). Em 2000 e 2001, dirigiu Roma, ele sabia que “houve de tudo”. “Há um grupo de estudos bíblicos no Centro uma tradição forte dizendo que naquela co- Loyola, pelo que recebeu o Prêmio Padre lina foi martirizado o primeiro Papa, e que Ávila de Ética no Jornalismo, concedido uma primeira igreja teria sido construída, pela PUC-RJ. ali, sobre a própria sepultura de São Pedro.” Em 1984, coordenou a edição do Dicio- Ao lado do que chamou de “os grandes nário de Música Zahar e a versão brasileira Papas da Roma antiga”, como São Leão, do The Grove Dictionary of Music and Mu- São Gregório, citou “os Papas posteriores sicians. Em 1986, fundou e dirigiu, por qua- a Carlos Magno, cujas histórias nos cobrem tro anos, a Seção de música do Museu de de vergonha (aquilo ainda era a Igreja de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Em 1994, Cristo?)”. Para concluir: “É como se, pelas tornou-se membro titular da Academia Bra- mãos do Papa, corressem os fios inumerá- sileira de Música. veis dessas histórias.” Sua obra A Bíblia: um diário de leitura Tinha a capacidade de utilizar seu co- (Zahar) foi lançada em 2011, como resul- nhecimento religioso, musical, literário no tado de mais de dez anos de pesquisas e cotidiano, como se entendesse que estava debates em um grupo de estudos que man- nesse mundo para compartilhar, num sen- tinha na própria casa. tido muito mais amplo do que o que hoje Horta uniu suas três paixões – música, está na moda, banalizado pelo Facebook. religião e jornalismo – no discurso de pos- Usava o conhecimento de História para se na Academia Brasileira de Letras (ABL), analisar a atividade política, mesmo a mais em novembro de 2008, onde foi recebido rasteira. Utilizava-se da filosofia para inter- pelo filósofo católico Tarcisio Padilha. Eleito pretar os sinais que o Novo Mundo, multi- para a Cadeira 23, fundada por Machado polar e dominado pelas novas tecnologias, de Assis, traçou paralelos entre a obra do enviava em mensagens cifradas, muitas ve- autor de Dom Casmurro e o que chamou de zes dolorosas, como o culto ao individualis- “sabedoria antiga” do Eclesiastes. mo exacerbado, ao consumismo vazio. Afirmou a necessidade de uma imprensa Era assim o Luiz Paulo Horta que conheci. crítica, que incomode os poderosos. Definiu Um humanista. HOMENAGEM A BARBOSA LIMA SOBRINHO

O conto urbano no Brasil*

Barbosa Lima Sobrinho Quarto ocupante da Cadeira 6 na Academia Brasileira de Letras. Advogado, escritor, historiador, ensaísta, jornalista e político brasileiro.

programa do “Curso do Conto A divisão dos contos em urbanos e regio- Brasileiro” obedeceu a uma espé- nais obedece, evidentemente, a um critério O cie de dicotomia: o conto urbano geográfico, quando o Curso atual adotou, e o conto regional, o conto da cidade e na maior parte de suas aulas, uma orienta- o conto do interior. Mas cidade e interior ção cronológica, para descrever a sucessão, tomados em função do tema e não da au- no tempo, das nossas mais notáveis figu- toria ou do local em que se escreveu a nar- ras de contistas. Parafraseando Thibaudet, rativa. Pode-se fazer na cidade um conto poderíamos dizer que se atribui ao conto regional e vice-versa. Acredito que a maior urbano um lugar análogo ao da geografia parte das histórias do interior se elaborou urbana. O que vale dizer que poderíamos nos centros urbanos, com as reminiscên- ter diversos tipos de contos, subordinados cias, que iam acudindo ao escritor, numa a fatores geográficos, como o conto litorâ- como recherche du temps perdu. Pode-se neo, em que se destacaram Virgílio Várzea, considerar o conto urbano, consequente- Vicente de Carvalho e , o mente, como o conto que toma por tema conto sertanejo, os contos das montanhas, a cidade, com os seus variados aspectos, como os do português Miguel Torga, e tan- seus interesses e problemas e também com tos outros quantos sejam os elementos de as suas figuras. Se considerarmos que o diferenciação geográfica, dentro de nosso conto regional mantém ligação mais forte território. O essencial é que se não esque- com o conto popular, de que é, muitas ve- ça (e o reparo ainda é de Thibaudet) que zes, uma estilização ou uma continuação, não é a geografia que serve de quadro para teremos que ver no conto urbano o conto as personagens, mas as personagens é que moderno por excelência, aquele que, na servem de quadro para a geografia. Dentro verdade, veio a constituir um gênero lite- da classificação do conto urbano podería- rário independente. mos encontrar uma grande variedade de tipos de contos, desde os que tivessem a * Em 12 de Julho de 1956. cidade como uma espécie de palco para a Publicado no livro Curso de conto, Academia Brasileira de Letras, 1958. 146 • Barbosa Lima Sobrinho narrativa, até o que se fizesse com os temas pais e as revistas de cunho literário estam- e as figuras da própria cidade. pavam histórias curtas, com todas as carac- Curioso é assinalar que, sendo antigas terísticas do conto moderno. Não disponho as cidades, o romance e o conto urbano se- de elementos para dizer quando começou a jam relativamente recentes. Thibaudet data- publicação de contos na imprensa periódi- va o romance urbano, na França, do Notre ca, mas sei que são frequentes os contos já Dame de Paris, de Victor Hugo. No Brasil, no decênio de 1830-1840, antes, pois, da o conto urbano se generaliza ou se torna primeira divulgação, em volume, da novela frequente no período romântico. Não digo As duas orfãs. Antes de Joaquim Norberto que venha da obra de Joaquim Norberto – podemos apontar João Manuel Pereira da As duas orfãs, como afirmam os historiado- Silva, autor de pelo menos cinco contos, en- res de nossa literatura. O próprio Joaquim tre 1837 e 1838. Outros autores de contos, Norberto não entendeu que a sua narrativa nessa mesma época, são Firmino Rodrigues fosse realmente um conto. Denominou-a da Silva, que depois se deixou absorver pelo antes “novela”, republicando-a numa co- jornalismo político, e , Justinia- leção de quatro composições, sob o titulo no da Rocha, Josino do Nascimento Silva e geral de Romances e Novelas. Duas dessas muitos outros, que se conservavam anôni- composições mereceriam a classificação de mos ou se disfarçavam atrás de iniciais, que romance, como O Testamento falso e Ja- hoje se tornaram de difícil identificação. nuário Garcia; as duas outras caberiam na Mas o que mais nos surpreende, nessa fase, denominação de “novelas”. As duas orfãs é a proliferação de traduções de contos in- relatam episódio da guerra holandesa no gleses, franceses e até mesmo americanos. Nordeste. A segunda novela poderia ser le- Soulié, Scribe, Deschamps, Nodier, Ségur, vada à conta de novela urbana, pois que a Alphonse Karr são nomes que já apare- ação se desenrola na Gávea, embora uma ceram nessas traduções, entre as quais se Gávea diferente, cheia ainda de florestas e nos depara também um dos iniciadores carvoeiras. Anunciava Joaquim Norberto, das shorts stories, americanas, Washington nesse volume, que os contos viriam depois, Irving. Tudo isso antes de 1841, ano que em outro volume, que não chegou a publi- historiadores literários apresentam como a car, o que nos leva à conclusão que ele pró- data do nascimento do conto brasileiro. prio não achou que fossem “contos” as his- De qualquer forma, há uma tese até tórias menos longas desse primeiro volume. agora pacífica nesse domínio, qual seja a de Confesso que tenho dúvidas em atri- que a origem do conto moderno se pren- buir a Joaquim Norberto a criação do conto de à fase romântica. Convém, entretanto, brasileiro. O livro Romances e novelas é de apurar de que modo concorreu o Roman- 1852; a novela As duas orfãs foi publicada tismo para a criação do conto. É certo que inicialmente em 1841, num folheto de que ele estipulou o trabalho da ficção. Se não se Inocêncio e Sacramento Blake nos dão notí- nota diferença profunda entre La nouvelle cia. Sob a forma de volume independente, Héloise e Lelia ou entre Werther e René ou talvez seja a primeira novela publicada no La confession d’un enfant du siècle, isto é, Brasil. Mas antes dessa data os jornais do entre os romances pré-românticos e os que O conto urbano no Brasil • 147 caracterizam o advento o da nova escola, o periódicos estrangeiros, estimulando a pu- certo é que o Romantismo trouxe o gosto ou blicação de numerosos Mistérios, de Berlim, a exaltação da imaginação, contraposta ao de Londres, de Munich, sempre com imen- severo racionalismo dos clássicos. Bastaria sas tiragens para os jornais, que soubessem essa tendência para explicar o florescimen- aproveitar esse novo elemento de popula- to das obras de ficção, sobretudo em países ridade. como Portugal ou o Brasil, em que o pré-ro- Passou, todavia, a fase dos romances-fo- mantismo conservou, dentro das Arcádias, lhetins, pois que para isso havia necessidade uma certa aproximação com os temas dos de histórias de um tipo especial, cheias de períodos anteriores. Contam-se pelos dedos aventuras e de suspense, como se diz agora. os romances que surgiram antes de 1830. O O conto ajustava-se melhor às necessidades conto, quando não traduzia uma inspiração dos periódicos. Não tenho dúvida em dizer, folclórica, ainda não dava impressão, pela por isso, que o conto moderno nasceu nos sua raridade, de um gênero literário, novo e periódicos, viveu deles e ainda continua, em autônomo. Não há dúvida, por isso, que, no grande parte, em função e a serviço deles. Brasil, o conto como gênero literário, data Não se poderá escrever a história do conto, do Romantismo. Em outros países é um em qualquer país, sem o estudo dessas ori- pouco mais antigo, mas em todos, com al- gens fragmentárias. O conto continua a ser gumas exceções, como as histórias do tipo a obra de ficção ajustada às conveniências das de Boccacio e La Fontaine, ou como os das revistas e dos jornais. contos filosóficos de Voltaire, o conto surge A comprovação dessa tese apresenta- de um novo fator ou de uma nova técnica ria aspectos elucidativos, de Maupassant a da vida dos povos, qual seja a expansão do Tchecov. Os livros de contos, tão numerosos jornalismo literário. Tornou-se interessan- por todos os países, representam uma fra- te – e o fenômeno se registrou por toda a ção reduzida da produção do gênero, que parte, na Inglaterra, na França, nos Estados continua a pagar pesado tributo à morta- Unidos – que o periódico oferecesse aos lei- lidade infantil, com as centenas e milhares tores uma história completa, sem prejuízo de contos, que não vivem senão o espaço do noticiário e dos comentários exigidos de uma edição dos periódicos em que nas- pelos leitores. Isso trouxe, com a necessida- ceram. Não temos elementos para avaliar de da história, sua limitação natural a um a percentagem dos que atingem à maturi- espaço disponível nos periódicos. dade, nos livros, mercê de diversos fatores, Não foi somente o conto que se apro- entre os quais pode ocorrer que esteja pre- priou dessa forma de divulgação. Houve, sente o valor literário dos contos. Para se também, o romance-folhetim, iniciado, avaliar a importância dessas relações entre na França, em 1837, com Fréderic Soulié o conto e o periodismo basta assinalar que e que iria constituir êxito sem precedentes Tomás Alves Filho, criador do conto natura- com Alexandre Dumas e, sobretudo, com lista no Brasil, segundo Alfredo Pujol, não Eugéne Sue. Os mistérios de Paris, desse passou das colunas da Gazeta de Noticias. último escritor, foram traduzidos para di- Essa relações entre o conto e o periódico versos idiomas e convertidos a folhetins de poderão ser observadas, no Brasil, através 148 • Barbosa Lima Sobrinho da existência do maior de nossos contistas e Machado de Assis denominou Contos flu- que foi, antes de tudo, um mestre do conto minenses, para assinalar sua ligação com a urbano. É óbvio que estamos diante de Ma- cidade que os inspirara. Temos aí a primeira chado de Assis. indicação de que se trata de contos urba- nos. E, na verdade, dentro da dicotomia a Machado de Assis e o que de início nos referimos, com a divisão dos contos em duas categorias – os contos conto urbano urbanos e os contos do interior – Macha- Na sua excelente Bibliografia de Ma- do de Assis pode-se dizer que nunca saiu chado de Assis, o sr. J. Galante de Sousa da primeira manifestação. Quando fez ten- recenseou 178 contos publicados pelo au- tativas para descrever algum episódio do tor de Várias histórias. Nos três volumes interior do país, como em A parasita azul, recentemente divulgados pelo infatigável das Histórias da meia-noite, sente-se a nota Sr. R. Magalhães Júnior, encontramos, se falsa ou, mais precisamente, sente-se que me não engano no cálculo, uma dúzia de ele leva para o interior de Goiás sentimen- contos, que não figuram na Bibliografia do tos e personagens da Corte. Quando muito Sr. Galante de Souza. Teríamos, assim, 190 se encontra uma ou outra impressão local, contos, dos quais 68 publicados em livros verdadeira ou fantasiada. A tendência, po- pelo próprio autor, cerca de 42 pelo Sr. rém, é para evitar o registro preciso com R. Magalhães Júnior e alguns outros pelo uma palavra anódina, que se alcandora ao Sr. Galante. Ao todo, cerca de 110 contos subjectivismo. Diz, por exemplo, que o ban- reunidos em livros e isso mesmo em con- do de pastores, na festa do Espírito Santo, sequência do prestígio literário cada vez na cidade imaginária, a cidade de Santa maior do escritor de Brás Cubas. Ainda Luzia, vinha com “o seu vestuário pitores- assim, mais de 40% de seus contos con- co”. A luta entre os dois rapazes, para a tinuam nos periódicos que os divulgaram, conquista da moça, a reação desta, são, em sendo que em vida do autor não saíram em tudo e por tudo, iguais ou semelhantes aos livro senão 68 contos, num total de 190 his- episódios que vêm nas histórias da Corte. tórias divulgadas pela imprensa periódica. Pode-se dizer, por isso, que Santa Luzia não Somente em três órgãos de publicidade, O estava realmente em Goiás. Quando mui- Jornal das Famílias, a Gazeta de Notícias e to ficaria aí pelos arredores das matas da A Estação, foram revelados não menos de Tijuca. 148 contos de Machado de Assis, mais de Machado de Assim deve ter sentido essa três quartas partes de sua produção total preferência pelos motivos e costumes da de contos. Seu primeiro conto data de 5 de Corte brasileira, pois que, de um modo ge- janeiro de 1858 e saiu na Marmota Flumi- ral, não saiu dela em seus contos e roman- nense, de Paula Brito, quando o autor não ces. A cidade vive nas suas obras, com os completara ainda 19 anos de idade. bairros, com a sua vida simples, com as suas Alguns dos contos dessa fase inicial no personagens ainda não muito diferencia- Jornal das Famílias foram reunidos no seu das, na mediana da sociedade burguesa em primeiro livro de contos, que o próprio que ele se integrava. Desse modo o Rio de O conto urbano no Brasil • 149

Janeiro dessa fase romântica se transportou de Assis dizia que era o Jóquei Clube dos para a obra de seus maiores ficcionistas, Jo- pobres. Começavam a circular as loterias. aquim Manoel de Macedo, José de Alencar Os poetas gostavam das moças pálidas, e o e Machado de Assis. José de Alencar teve amor era mais tímido e respeitoso, sensíveis as suas escapadas para o interior do país, os namorados. Uma negativa mais ríspida com O sertanejo e o gaúcho, por exemplo, arrancava lágrimas e soluços aos apaixona- e os seus livros mais brilhantes – que Sílvio dos, mesmo quando fossem marmanjos. O Romero não nos ouça – são os que tradu- sistema de correspondência entre os namo- zem a sua paixão indianista. Dos três, o que rados, com a segregação em que viviam as mais se prende à cidade e o que a descreve moças e com a relativa falta de segurança melhor é, sem dúvida, Joaquim Manuel de das ruas, depois de certas horas, ficava na Macedo, que soube revelar a intensidade dependência dos bons ofícios do moleque desse interesse urbano em Um passeio pela da casa ou da mucama oficiosa ou era for- cidade do Rio de Janeiro. Machado de Assis çada a recorrer ao processo de colocar as também se deixou envolver pela sua cida- cartas dentro de livros oferecidos à jovem de, e se os seus personagens se libertaram pretendida. As mocinhas medrosas, enver- da Corte é que o autor vai caminhando no gonhadas, crescidas dentro de complexos e sentido do universal quando mergulha nas de ideias, que exaltavam o amor mas faziam almas humanas para lhes sentir, não diria temer o homem, não podiam concorrer, na o mistério, mas o pormenor e a sutileza. A sedução e na conquista, com as viúvas ex- resistência desses seres humanos em bair- perientes e vividas. O interesse pelas viúvas, ros cariocas passa a ser um elemento quase tantas vezes observado na obra de Macha- episódico, como um registro de hotel. do de Assis, não era apenas manifestação Nos Contos fluminenses, por exemplo, de preferências pessoais, mas antes uma as histórias narradas se desenrolam em al- contingência dos costumes da época, em- guns bairros cariocas, de Matacavalos, que bora se possa admitir que o temperamento é a atual rua do Riachuelo, ao Catumbi, introspectivo de Machado de Assis o levasse com referência a algumas ruas, todas elas a sentir mais profundamente essa atração, próximas do centro ou propriamente cen- diante de mulheres que podiam olhar os trais, como a rua da Misericórdia, do La- homens de frente, não tendo mais razões vradio e do Conde. Era assim num tempo para receiá-los tanto quanto as solteiras. Ou em que a sociedade carioca se apaixonava não seria opinião de escritor que procura pelas artistas do Lírico, dividindo-se em “la- traduzir o sentimento geral, se considerar- gruistas” e “chartonistas”. A loja de Paula mos que Machado de Assis, quando teve Brito, a que ele se refere; desempenhava de casar, preferiu uma solteira? Anita Loos função semelhante à da Livraria Garnier, poderia dizer aos homens daquela fase que em começos do século XX, isto é, servia eles amavam as viúvas... mas casavam com para que nela se reunissem os escritores as solteiras. da época. Os moços se divertiam no Al- No conto As bodas de Luíz Duarte, Ma- cazar. A briga de galos interessava quase chado de Assis registra uma festa de casa- tanto como o futebol de hoje. Machado mento, com os oradores de sobremesa, os 150 • Barbosa Lima Sobrinho sapatos inglêses, o clássico sofá dos noivos. denominavam romances históricos, como No conto Qual dos dois? aparece a rua do os de Walter Scott, por exemplo. Forest, Ouvidor, considerada a “gazeta viva do Rio professor da Universidade da Pensilvânia, de Janeiro”, lugar de reuniões de deputa- mostrara o interesse crescente que havia dos e dos que ele denominava “políticos em torno de Balzac, historiador de sua por ofício e devoção”. época, tema que acaba de ser objeto de Pena é que o tempo não nos permita notável e minucioso estudo de Georges uma análise mais detida dessas relações en- Pradalié, que termina sua obra perguntan- tre Machado de Assis e a cidade em que ele do se Balzac não terá sido o mais lúcido nasceu e morreu. Do Morro do Livramento historiador da Restauração. à rua do Cosme Velho se traçou todo o seu Machado de Assis – e a tese já mere- itinerário. Seus personagens caminharam cera a atenção do sr. Astrogildo Pereira – um pouco mais, talvez do Andaraí a Botafo- assim como Manuel Antônio de Almeida, go. O certo é que Machado de Assis viveu e o próprio de olhos abertos para a sociedade que o José de Alencar não inventaram a socieda- cercava e soube retratá-la com fidelidade, de que descrevem nem tiveram os olhos não obstante o desencanto e o pessimismo perturbados por uma obsessão literária. de sua alma. Mas estava na sua natureza Narram uma realidade, necessariamente de introspectivo apanhar da cidade o sufi- romântica, pois que todos eram românti- ciente para que suas personalidades pudes- cos, na realidade. Nesse sentido é que de- sem viver. Embora suas melhores virtudes vemos considerar Machado de Assis como de escritor estejam nessa análise íntima da a primeira afirmação vigorosa do conto ur- criatura humana, a vida que essa criatura bano no Brasil. vive é a vida da cidade que está presente na sua obra, muito na produção excelen- Artur Azevedo e Aluísio te do cronista e menos intensamente, mas não menos real, na obra do romancista e Azevedo do conteur. Os dois irmãos maranhenses – Artur e José Honório Rodrigues me dizia, há Aluísio – escreveram contos, sobretudo no alguns dias, reportando-se a congressos último decênio do século XIX. Em Aluísio internacionais a que acaba de assistir, que prepondera, entretanto, o romancista. Não há uma tendência atual, na historiogra- consegue deter-se no resumo, que há de fia, para valorizar o testemunho literário, ser o conto. O entrelaçamento e o desdo- na reconstrução da vida das sociedades bramento da ação como que o arrastam humanas. Brunetière, no livro a respeito para as narrativas longas, não por falta de de Honoré de Balzac, em 1906, já havia espírito de síntese, mas por imposição de estudado a significação dos romances do uma visão panorâmica da vida social. Ama autor da Comédie humaine, salientando, os grandes temas coletivos, os cortiços, as aliás, que de todos os romances, os úni- casas de pensão, os preconceitos de raça, a cos que não tinham valor documentário vida doméstica e receia, com razão, o con- ou histórico eram, precisamente, os que se to, que tornaria provavelmente dogmáticas O conto urbano no Brasil • 151 suas conclusões ou muito sumária e imper- naquela época, o teatro lhe deu muito mais feita a exposição dos cenários que o fasci- recursos que o conto. Não nos deve surpre- nam. Demônios, seu primeiro livro de con- ender que toda a sua produção literária ve- tos, publicado em 1893, ou Pegadas, de nha marcada por essa influência do teatro, 1897, constituem seus únicos livros de como já acentuara o Sr. Josué Montelo. Dei- contos e isso mesmo repetindo, no segun- xou-nos, todavia, alguns livros de contos: do, sete contos do primeiro volume. Aluísio Contos possíveis, em 1889, Contos efême- Azevedo foi um romanticista urbano. Nos ros, em 1897, Contos em versos, em 1898, contos, a cidade não deixa de estar presen- Contos fora da moda, em 1900, e dois livros te. Algumas anotações revelam a acuida- póstumos – Contos cariocas e Vida alheia. de de sua observação, quando descreve o O título dessa publicação póstuma – Contos drama do vício da morfina, ou as pândegas cariocas – poderia servir para toda a obra de dos rapazes, com passeios à Tijuca. Como Artur Azevedo, acentuando-lhe a preocu- documento da cidade, entretanto, seus ro- pação urbana. Já nos Contos em verso, Ar- mances deixam em segundo plano os con- tur Azevedo dividira suas produções nesse tos que escreveu. gênero em três séries: Contos maranhenses. Já com seu irmão Artur Azevedo verifi- Contos cariocas e Contos brasileiros. Mas o ca-se o contrário, isto é, escassas tendên- que acaba preponderando nele é o conto cias para o romance, facilidade extrema carioca, numa cidade que já nos aparece para o conto, que lhe sai da pena espon- um pouco mais estendida que a cidade de tâneo como o teatro. Na verdade, teatro, Machado de Assis. S. Cristóvão e o bonde romance, conto são gêneros afins, vivendo da Alegria aparecem algumas vezes na sua todos eles da imaginação, no mundo ili- história sem esquecer os bairros do sul, que mitado da ficção. Há conteurs que se sen- continuam a concentrar a vida elegante do tem bem nos três gêneros, como Daudet. Rio, sobretudo depois que a Família Imperial A tendência, porém, é para a preponderân- abandonou, com o advento da República, o cia de um ou de outro, ou pelo maior exer- palácio de S. Cristóvão. cício num deles, ou pela correspondência Artur Azevedo é inigualável no fixar cer- mais perfeita, com os pendores naturais do tos pormenores humorísticos dos costumes escritor. Às vezes são fatores externos que da época. Impressionado com os bigodes determinam a escolha, quando se abre pos- imensos que estavam na moda, observava, sibilidade maior para o cultivo de um dos por exemplo: gêneros. Outras vezes o escritor é admirável “Bigode que pode esconder um níquel em qualquer um deles, mas a excelência de de tostão.” um desses gêneros, ou interesse mais vivo da crítica ou do público, pode levar a que Registrando o desconceito do funcioná- fique na sombra uma realização literária de rio público, escreve: mérito. “O namorado (aí está o que o perdia!) Artur Azevedo começou pelo teatro, aos À classe comercial não pertencia: nove anos de idade e creio que, apesar da Era empregado público; não tinha precariedade da receita dos direitos autorais Simpatia nem crédito na praça.” 152 • Barbosa Lima Sobrinho

De cima para baixo é o título de um de chamar-se “Custodinho”, para receber o seus contos, em que nos descreve a vida nas nome de Floriano, vitorioso na luta contra a repartições públicas, quando a repreensão esquadra, os holofotes de Santa Teresa, na passada pelo Ministro no Diretor-Geral vai fase da revolta da Marinha, os estudantes sendo transferida, de degrau em degrau, da rua do Rezende e as moças aristocráti- na hierarquia, ao cachorro do servente, cas de Botafogo. Mil e uma notações do já transformada em pontapé. A Côngrua homem que vive o dia a dia da cidade, vi- aproveita anedota relativa a Deodoro da brando e sofrendo com ela, partilhando de Fonseca, no início do período republica- suas paixões, interessando-se apenas pelos no. A doutrina de Artur Azevedo, aliás, é temas e figuras da cidade. O êxito de sua a de que tudo se conta: “o caso é saber burleta A Capital Federal retratava um fenô- contar.” Muitas vezes, porém, resvala para meno de integração no ambiente carioca. a licenciosidade, com protestos de leitores No conto, como no teatro, Artur Azevedo dos jornais em que escrevia. Gostava de constitui o modelo de literatura urbana. falar mal das mulheres, dizendo que “não há mulher que não tenha alguma cousa Coelho Neto e o Conto de que a acuse a consciência”, doutrina que deve ter sido para uso alheio, se ob- Urbano servarmos que ele casou duas vezes. Um Já de Coelho Neto não se pode dizer dos temas frequentes nas suas histórias é o o mesmo, pois que tentou evadir-se à in- adultério. Mas esse tom brejeiro, malicioso, fluência carioca. Mas a cidade acabou do- não raro licencioso, não impede, e talvez minando sua obra literária, que foi a mais até mesmo explique, o êxito de seus livros. numerosa de nossos escritores. Seu filho, Os contos efêmeros, publicados em 1897, Paulo Coelho Neto, coligiu 124 títulos na três anos depois já estavam na terceira edi- sua bibliografia, dos quais 27 livros de con- ção – edições duplas, informava o editor. E tos e novelas, publicados desde Rapsódias, muito mais significativas que essas tiragens em 1891, até A árvore da vida, em 1929, eram as transcrições frequentes e repetidas sem falar nos 13 livros de crônicas, que de seus contos nos jornais brasileiros. Creio tanto se aproximavam dos contos, na arte não me enganar dizendo que Artur Azeve- de Coelho Neto. Ele usava algumas classi- do foi o mais popular de nossos contistas. E ficações difíceis de estabelecer, como “no- foi um contista urbano. O Rio de Janeiro lá velas”, “fantasias”, “idílios” e crônicas. está, com os seus bairros, os seus bondes, Falava, também, em “novelas venustas”, o as vitrinas do Palais Royal, os chalets da rua que eu não sei bem o que seja, ou como do Matoso, as moças janeleiras da praia de identificá-las na sua obra. O certo é que, de Santa Luzia, o caixeiro português casando contos, propriamente, são 27 volumes. Pau- com a filha do patrão, as Viscondessas e lo Coelho Neto calculou em cerca de 700 Baronesas da vida mundana, as noites de os contos que Coelho Neto publicou. Hen- folga em Petrópolis, o Hotel Ravot, as be- rique Perdigão fica em 659. Dez vezes mais bedeiras de Carnaval, a surpresa da procla- do que o que Machado de Assis chegou a mação da República, a criança que deixa de reunir em livros. O conto urbano no Brasil • 153

Coelho Neto, no conto, como no ro- corresponder às tendências de sua época, mance, não se limitou à literatura urbana. lá pelas alturas de 1891. “Por ela o meu Fez diversas excursões ao regionalismo, sangue – dizia ele – toda a minh’alma para como em Sertão ou em Banzo, para não resguardá-Ia; é o meu amor, é o meu ídolo, sair do domínio dos contos. Mas suas via- é o meu ideal – a Forma. Para mim ela é a gens mais comuns não são ao interior do síntese, a concretização de tudo que é belo, país, mas ao mundo oriental, que parece de tudo que é puro, de tudo que é grande.” possuir o segredo dos temas mais ajustados Esse foi, realmente, o culto de Coelho ao seu talento verbal. Não obstante, ainda Neto, a paixão de toda sua vida. É certo é um autor a considerar como escritor de que nem tudo que ele escreveu atinge as romances e contos urbanos, pela influência culminâncias da arte literária. Mas não de- recebida da cidade, da vida e dos habitantes vemos esquecer que Coelho Neto escre- que nela se foram aglomerando. veu para viver, sendo homem pobre, com Desde a juventude, Coelho Neto rece- família numerosa. É natural que sua obra beu aplausos entusiásticos, exercendo indis- literária se ressinta, muitas vezes, da pre- cutido principado nas letras brasileiras. Mas sença dessa necessidade torturante, que quando novas correntes se manifestaram, não sabe consultar a inspiração. Mas no parece que se concentraram nele as hos- meio de sua obra ciclópica há realizações tilidades e antipatias dos jovens. De ídolo magistrais, a que não chegaram muitos dos passou de repente a réprobo, em parte pelo que o discutiam e o negavam. Seu instru- destaque conquistado entre os antigos, em mento verbal tinha qualquer coisa daque- parte pelo desassombro com que correu às le violino de Cremona, que se desfez, no armas para enfrentar as hostes que chega- conto de Hoffmann, com a morte do artista vam, em tumulto, para a conquista da ci- que o fazia vibrar. Pena é que não pudesse dade das letras. Como eu não penso que procurar sempre as melodias que melhor a combatividade seja um defeito, acredito se ajustassem à natureza do instrumento. que ainda se há de fazer justiça a essa atitu- Mas qualquer coisa em que se detém, logo de guerreira de Coelho Neto. se enfeita e rutila. Ele próprio o disse, me- Quanto à sua vida de homem de letras, lhor do que ninguém: “O hábito de tratar não há dúvida que foi um homem de seu literariamente os assuntos, de os embutir tempo, tanto quanto os que depois o ata- em forma artística, recamada de imagens, caram. É que havia entre uns e outros mais levava-o a aproveitar o próprio sofrimento, de trinta anos de distância. Coelho Neto analisando-o e descrevendo-o em abun- corporificou, na prosa, as mesmas correntes dância pinturesca de alegorias e compara- estéticas que haviam inspirado o Parnasia- ções, numa espécie de solipsismo literário.” nismo de um Olavo Bilac ou de um Alber- A frase está no livro Contos da vida e da to de Oliveira. Tinha, como esses poetas, morte e constitui, no meu parecer, uma de o culto apaixonado da Forma, escrita com suas melhores páginas autobiográficas, até maiúscula. Seu primeiro livro de contos, pelo titulo do conto – O Animador de so- Rapsódias, abria com a exaltação da forma nhos. Não será esse o título que correspon- literária, espécie de manifesto que parecia de ao próprio escritor? 154 • Barbosa Lima Sobrinho

A cidade que Coelho Neto descreve não uma fantasia, macaqueavam-no”. O crítico poderia deixar de vir também recamada de brasileiro achava que, como toda imitação, imagens. Não é uma “urbe” qualquer: é a isso constituía “uma desgraça”, mas have- Cidade de Coelho Neto. É aquela Cidade mos de convir que não teria sido possível Maravilhosa, de que falou num de seus úl- essa influência, se a arte de Coelho Neto timos livros, publicado em 1928, “toda de não correspondesse ao espírito e às tendên- ouro centro da noite”, mesmo depois de cias de sua época. haver verificado, de perto, que ela se redu- zia a cinzas pardacentas e a alguns pedaços A multiplicação dos contos de troncos enegrecidos pela queimada. O que não impede que a cidade nos Já por essa altura, o conto se firmara apareça com os seus sofrimentos e proble- definitivamente como um gênero literário. mas, como em Água de juventa, marca um Os concursos se faziam frequentes nos jor- dos pontos altos de sua arte de conteur, nais que não dispensavam os contos para a a cidade a que ele serve nos seus escritos, composição de suas páginas literárias. Por como um escravo da pena e a respeito da isso José Veríssimo observava que os contos qual, numa produção sem dúvida desigual, eram “com os versos, o gênero mais abun- deixou páginas que figuram entre as melho- dante em nossa praça literária”. E Araripe res de nosso idioma. Os casos de obsessão Júnior, registrando que havia sido relativa- e de assombração, os entusiasmo pelo Car- mente abundante, em 1893, a produção de naval, os centros de reunião como a Confei- contos, observava: “Todo mundo hoje es- taria Alvear, as avenidas de casas, os casos creve contos. É a forma preferida na França, de cleptomania, as preocupações esporti- na Inglaterra, na Rússia, em toda parte.” Os vas, os cocainômanos, o temor das máqui- fatores que assinalamos, na origem do con- nas que fazem concorrência ao artista são to moderno, isto é, a influência dos perió- alguns dos muitos aspectos da presença da dicos, responderia por essa proliferação do cidade na obra de Coelho Neto. Isso lhe dá gênero de ficção, que correspondia, de ma- direito a figurar entre os nossos contistas neira mais perfeita, às necessidades dessas urbanos, embora não se deva esquecer que publicações e às exigências de seus leitores. o conto de Coelho Neto, antes de ser regio- Garcia Redondo publicava contos des- nal ou urbano, é um conto literário. de 1874, na fase que corresponde também Para que se possa, todavia, julgar da in- à atividade de conteur de Luís Guimarães fluência desses autores, sobretudo de Coe­ Júnior. Garcia Redondo começara pelo jor- lho Neto e de Machado de Assis, lembra nal, que era o Diário de Santos. Seu primei- José Veríssimo que havia feito parte de um ro livro de contos, Arminhos, foi impresso concurso literário da Gazeta de Noticias, ao na tipografia desse mesmo jornal alguns qual concorreram sessenta e tantos contos, anos depois, em 1882. Não é propriamente dois terços dos quais procurando imitar Romântico ou tem, pelo menos, pretensões Coe­lho Neto. “Um momento houve, con- ao Realismo. Dizia ele que em 1874 come- cluía José Verissimo, em que quase todos çara a ler Flaubert, mas quando publicou o os que mandavam aos jornais um conto ou seu primeiro volume, em 1882, já conhecia O conto urbano no Brasil • 155

Zola, Daudet e Goncourt e traçara alguns de esporte, com uma preocupação de minúcia seus contos sob a influência desses autores. que chega à enumeração de todas as mar- Sua fórmula literária ele a definiu, dizendo cas de bicicleta existentes na época, com as que estendera uma das mãos a Lamartine e devidas diferenças e características. outra a Zola, num ecletismo que não devia Outro autor de contos urbanos é Va- deixar tranquilo o grupo de Medan. “Colo- lentim Magalhães, com Quadros e contos, cado, assim” – continuava ele – “entre as Vinte contos, Horas alegres e Bric-à-Brac. duas escolas, buscou imitar o que havia de Alguns de seus contos são sátiras políticas, bom em uma e evitar o que havia de mau como O senador pitada, republicano... in- na outra”. Essa a sua intenção, pelo menos transigente e outros. Suas personagens vêm a que procurou acompanhar em outro livro da alta burguesia e moram em Botafogo ou de contos, A choupana das rosas, em 1897. nas Laranjeiras. Não falta a rua do Ouvidor, Está longe de ser “simplório”, como diz um com o Café Americano. Descreve a festa comentador apressado, se considerarmos a da Igreja da Glória. Reporta-se aos “Visíveis nota naturalista de alguns de seus contos, do Rio de Janeiro” – os sujeitos que gas- como Um santo, O caso do Abade e O mo- tam sem que se conheça a proveniência de delo. Desconfio que o que mais prejudicou seus recursos. Relata episódios de viagens a Garcia Redondo foi o título de seus livros: de bonde. As grandes liquidações de fim de Arminhos, A choupana das rosas, Carícias. ano já aparecem no comércio de sua épo- Este último, que é uma espécie de romance, ca, embora ainda limitadas às grandes lojas tem como substituto Viagens pelo país da francesas, que de Paris mantinham nume- ternura. Ele escreveu, também, uma Botâ- rosa freguesia no Brasil. Enumera Valentim nica amorosa, que é um esforço para nar- Magalhães alguns tipos característicos da rar, em linguagem acessível aos seus filhos, cidade, o esquisito, o escova (adulador), o os fenômenos da reprodução das flores. pau para toda a obra, o jeitoso, o patriota, O fundo sentimental, talvez mesmo piegas o boateiro. Descreve a tragédia do espar- de suas histórias, corresponde aos cenários tilho nas modas femininas. A revolta da e ao meio que ele descreve. esquadra se reflete em diversos contos. De Podemos arrolar Garcia Redondo en- um discurso longo diz que até parecia dis- tre os contistas urbanos, não obstante o curso do Rui: “não tinha fim”. As modas fe- gosto e a cultura botânica, que poderiam mininas, o advento da eletricidade na ilumi- explicar uma direção diferente na sua arte. nação, a admiração pelos colos fartos e uso Seu urbanismo é urbanismo de gente rica, dos vinhos franceses, a madeira do mobiliá- com viagens à Europa, ambientes franceses, rio doméstico, a influência de Paul Bourget quartos de mundanas das rodas bancárias. são registros preciosos, entre muitos outros A rua do Ouvidor não poderia faltar nos que revelam a presença da cidade na obra seus contos, como a casa Raunier. No con- de Valentim Magalhães. to Berta aparecem operários de uma olaria. Pedro Rabelo reflete, em A alma alheia, Mas a nota urbana mais curiosa que encon- duas influências, a de Machado de Assis e a tramos em seus livros é a das Confissões de de Coelho Neto; sobretudo a de Machado um ciclista, descrevendo as emoções desse de Assis, temperada com o naturalismo de 156 • Barbosa Lima Sobrinho

Zola. Embora, como assinalava José Veris- – publica alguns livros de contos, Alma pri- simo, o escritor se preocupasse mais com mitiva, baladas e fantasias, Novos contos. os “estados d’alma” do que com as cenas Várias histórias de seu primeiro livro se re- vividas, não lhe faltam anotações urbanas, portam a uma cidade do interior de Minas com a presença de algumas ruas da cida- Gerais, São João d’EI Rei, que ele descreve de, a do Hospício e a rua do Conde, entre com inegáveis virtudes de realista. Dele dizia outras. José Veríssimo que era um moderno e que Domício da Gama também deve figurar nele se sentia “um admirador de Bourget, nessa mesma categoria de autores de con- um filho do movimento naturalista, mas tos urbanos. “Nunca um autor se caracte- temperado pelo seu próprio gênio, todo de rizou melhor pelo título de suas obras: His- simpatia, de sinceridade”. Era então o que tórias curtas e Contos a meia-tinta – disse ainda hoje continua a ser: um escritor de Medeiros e Albuquerque. Dos 22 contos estilo precioso e harmonioso, mais interes- de Histórias curtas, oito são escritos em sado, nos contos, com a psicologia dos per- Paris e oito se passam na capital francesa. O sonagens do que com o ambiente em que Rio que ele nos mostra é o Rio da alta bur- eles se encontravam. guesia, o Rio de Botafogo, das Laranjeiras, Medeiros e Albuquerque se dividiu um das chácaras do Andaraí, dos espetáculos pouco entre conto regional e o conto urba- do Lírico, do cosmopolitismo, das coleções no. Prepondera na sua obra, todavia, o con- de objetos de arte, da gente que viaja para to urbano. Um homem prático é de 1898, o estrangeiro e frequenta as estações de Mãe Tapuia, de 1900, Contos escolhidos, O águas europeias e sabe mover-se nas mesas assassinato do general, O umbigo de Adão, de voltarete. As mulheres de Alcazar se mis- Se eu fosse Sherlock Holmes e Surpresas turam com os episódios da taverna Sylvain vieram até 1934. Sete livros de contos ao e do Café de Ia Paix. todo. Em Minha vida relata Medeiros e Al- Olavo Bilac escreveu contos em Crôni- buquerque que havia publicado na Revista cas e novelas. São observações de um es- Brasileira o conto intitulado As calças do pírito inquieto, que se não conforma com Raposo e Machado de Assis lhe narrara que o afastamento do Rio imposto pela policia havia encontrado, no Largo da Carioca, um de Floriano. Procura distrações fixando a sujeito que estava certo de conhecer, sem atenção nos monumentos de arte religiosa se lembrar de onde. De súbito lhe acudiu de Minas Gerais. Já de Lúcio de Mendonça o nome: podemos dizer que há, em Horas de bom – Ah! É o Raposo, do Medeiros! tempo, publicado em 1901, mais memórias O interesse de seus contos, todavia, está do que contos. Todavia, encontramos nos mais nos casos que relata do que nas figu- contos que aí se contém uma figura típica ras que descreve. Há um pouco do fait divers da cidade, o lnculcador, vendendo palpites dos jornais nas suas histórias, com uma ten- nas corridas de cavalos. dência marcada para os assuntos psiquiátri- Nosso eminente companheiro Maga- cos, para os desvios mentais, que o levam lhães de Azevedo – glorioso representan- até o aproveitamento do “freudismo” num te da época dos fundadores da Academia de seus contos da última fase. Encontramos O conto urbano no Brasil • 157 observações curiosas nos seus livros e que desta tribuna, o sr. Alceu Amoroso Lima, valem, também, como documentos da so- por uma realização original do conto. Mas ciedade a que pertenceu. Encontra-se, por se há livros realmente sem maior expressão exemplo, em diversos contos a impressão do literária, como o de Rocha Pombo, Contos oficial de Marinha como um conquistador e pontos, em que os pontos são mais nu- de corações, em consequência do prestígio merosos que os contos, se não se chega a de sua farda garbosa, da experiência de vida encontrar alguma coisa propriamente dife- social e da polidez apurada nas viagens ao rente num Gonzaga Duque ou num Nestor exterior. Hoje, nenhuma farda consegue en- Victor, há um João Alphonsus, a que se re- trar no páreo com as marcas de automóvel feriu o sr. Alceu Amoroso Lima, e há, tam- na conquista de corações femininos. Outra bém, o sr. Adelino Magalhães. Deste havia observação a fazer, nos contos de Medeiros, dito Nestor Victor que “quando se possa é a persistência de uma nota grivoise, não ver melhor o que ainda agora perturba qua- muito distante dos modelos franceses e da- se todas as vistas, reconhecer-se-á no seu quelas joyeusetés gauloises, a que uma vez gênero, o do conto, que ele quase exclu- se referira Araripe Júnior. sivamente cultivou até aqui, que o autor Para uma descrição minuciosa dessa de Casos e impressões, de Visões, Cenas e influência da cidade nos contos urbanos perfis, de Tumulto da vida, de Inquietude e haveria que falar de muitos outros escrito- de A hora veloz, é um mestre dos que assim res. De Adelina Lopes Vieira, por exemplo, merecem ser chamados aqui como em ou- que descreveu episódios da fase do Enci- tro país qualquer”. lhamento. De Júlia Lopes de Almeida, que, Não parece ter chegado ainda esse mo- com alguns livros de contos (sem falar nos mento de reparação e de justiça. Mas os romances e obras de outras natureza), retra- contos do Sr. Adelino Magalhães continuam tou, com fidelidade, a vida das famílias cario- dentro de nossa literatura como criações vi- cas, os sonhos e os sofrimentos das moças, vas e originais, valorizando cenas e episódios as rugas e os arroubos dos casais. De Tomás da vida urbana, pois que também ele se enu- Lopes que, em diversos livros de contos, des- mera entre os contistas da cidade. O conto creveu os bairros ricos do Rio e a vida da alta Um prego! Mais outro prego!, fixando fatos sociedade, a que ele próprio pertencia. De e sensações da epidemia de gripe denomi- Oscar Lopes, com Seres e sombras e de tan- nada “espanhola”, é de extraordinária inten- tos outros escritores, que não passaram do sidade dramática. Ninguém soube descrever rodapé e das colunas dos jornais, ou ficaram melhor que esse contista os dias trágicos que em livros esquecidos nas províncias, sem fa- transformaram a capital brasileira numa ci- lar nos contistas regionais, que foram desti- dade de luto, de trevas e de morte. nados a outra aula do “Curso de Conto”. João do Rio, Monteiro A fase simbolista Lobato e Lima Barreto A fase simbolista não chegou a assina- Estamos, agora, diante de três escritores lar-se no domínio dos contos, já o lembrou, vinculados aos temas e figuras da cidade: 158 • Barbosa Lima Sobrinho

João do Rio, Monteiro Lobato e Lima Bar- ainda como cidade. Tanto no livro Cidades reto. João do Rio é o modelo do escritor Mortas como em Urupês, os temas e figuras urbano. Toda a sua obra reflete o Rio de são antes urbanos do que rurais. O engra- Janeiro da primeira quadra do século XX. çado arrenpedido, A colcha de retalhos, O Já o próprio pseudônimo indica que ele se comprador de fazendas, revelam tipos de considerava produto ou servo da cidade, cidade, como O espião alemão. Quando que lhe vai absorver toda uma existência Monteiro Lobato deixa esses burgos silen- intensa e trabalhosa. Basta olhar os títu- ciosos para espiar o campo, como no conto los de suas obras: As religiões do Rio, que Urupês, o que encontramos é a violência da obteve êxito surpreendente, esgotando as sátira e não a compaixão da simpatia. Foi primeiras edições, A alma encantadora das exatamente a sátira a sua força e continua ruas, O momento literário, Cinematógrafo, a ser o interesse de sua obra de conteur, Frívola City, Psicologia urbana, Pall-Mall Rio, que talvez seja, com Mister Slang no Brasil, No tempo de Venceslau. Não se pode dizer a que melhor nos conserva sua feição vee- desses livros que sejam contos. Afiguram- mente de revoltado e de reformador. -se-nos mais reportagens, pois que João do De Lima Barreto não podemos dizer o Rio foi, antes de tudo, jornalista, no tipo mesmo. Há nele, também, um sarcasmo dos profissionais modernos, subordinados purgente, como nos Contos argelinos e em a duas preocupações, uma literária, outra numerosas páginas de Bruzundagas. Mas de informação. Era a presença do homem nesse satírico a piedade vai criando senti- de letras que fazia de seu trabalho jornalís- mentos que o arrastam para as figuras que tico uma produção de sentido e valor lite- descreve e o integram nesses ambientes no- rário. Os capítulos de A alma encantadora vos, que incorpora à nossa literatura. Lima das ruas são, inclusive, no tratamento lite- Barreto não está muito certo de haver escrito rário dos temas, contos, em que os nomes sempre contos. Prefere denominar essas pá- de pessoas conhecidas aparecessem como ginas de “contos e coisas parecidas”. Suas pseudônimos de figuras de ficção. Em Crô- ideias de estilo são modernas e antecipam nicas e Frases de Godofredo de Alencar en- de alguns anos o famoso discurso de Graça contramos contos tão seguramente dese- Aranha, quando escreve, em 1916: “Impli- nhados como os que reuniu nos seus livros co solenemente com a Grécia, ou melhor, declaradamente de contos, como Dentro implico solenemente com os nossos cloró- da noite, A mulher e os espelhos, Juca de S. ticos gregos da Barra da Corda e pançudos Jorge e outros tipos. Como se vê, o assun- helenos da praia do Flamengo.” Não quer to do conto urbano exigiria, por si só, uma uma literatura contemplativa ou apática, série de conferências, uma das quais teria mas uma “literatura militante”, que deixe que ser a respeito de João do Rio, tão viva e de lado a falecida Grécia e procure difundir palpitante é a cidade que ele nos mostra e “nossas grandes e altas emoções em face a que se dedicou com o entusiasmo de uma do mundo e do sofrimento dos homens”. paixão absorvente. Por isso mesmo não vamos encontrar nos Já no caso de Monteiro Lobato, a cidade seus contos aquela cidade dos bairros ricos que o preocupa é a cidade do interior, mas ou remediados, mas a cidade humilde dos O conto urbano no Brasil • 159 subúrbios, .de Inhaúma, de Cascadura, das corporificava e defendia, tivemos a copiosa ruas enlameadas, com transeuntes malvesti- produção de Humberto de Campos, desde dos a correr para os embarcadouros, atentos Vale de Josafá, em 1919, a que se segui- ao silvo agudo da locomotiva e olhos fitos ram numerosos volumes, dentro do que o na estação para a viagem de todos os dias. autor classificava como “humorismo galan- O subúrbio roceiro, com restos de mata e te”, como O tonel de Diógenes, Gansos do montanhas que enfeitam, ao fundo, o pano- capitólio, A bacia de Pilatos, e tantos ou- rama que os consola das ruas pantanosas e tros, dentro da tradição dos contos brejeiros das casitas de dois quartos ou dos barracões ou fesceninos de Armand Silvestre, Catulle cobertos com zinco. A outra Cidade vive à Mendés, Georges Courteline e tantos ou- distância, com os seus teatros, os bailes do tros, que mantinham seções dessa natureza tom e a “rua da moda, onde triunfavam as nas gazetas parisienses. Verdade que Hum- belezas”, na frase de Lima Barreto. Esse o berto de Campos escreveu contos de outro mundo que ele incorporou à literatura brasi- gênero, em O monstro e outros contos ou leira e no qual, pela primeira vez, sentimos, em À sombra das tamareiras, mas muito entre as duas cidades, uma oposição defini- preso a temas literários, que ele soube en- da e um conflito sem remédio. feitar com a sua prosa harmoniosa. Dele se pode dizer que foi contista urbano pelo que O conto urbano no segundo veio a revelar do gosto das plateias a que se dirigia. lustro do século Não poderíamos classificar entre os mo- Antônio de Alcântara Machado notara dernistas – o que não quer dizer que não que, no Brasil, a passagem para o Moder- possam enquadrar-se entre os modernos, nismo havia sido brutal. “Não houve, dizia dadas as diferenças entre os dois vocábulos ele, esse período meio vago de formação e – os contistas da Academia, como Viriato preparo que antecede todas as avançadas. Correia, com os seus contos históricos e re- A bomba explodiu sem mecha. Nada de gionais e, sobretudo, com as Novelas doidas pontos de ligação”. Reportava-se, porém, à e as Histórias ásperas, nos quais não nos poesia, embora seja possível sustentar que, faltam contos urbanos como O drama de mesmo na poesia, não faltaram esses ele- D. Alice Olhos Verdes, A Ficha n.o 20.003, mentos de transição. Na literatura, o entre- Circo de cavalinhos. Rodrigo Octávio, em laçamento das tendências e escolas é tão Contos de ontem e de hoje, deu-nos alguns extenso que não há como fixar datas, pois contos urbanos, como A sessão do Instituto que todas elas continuam a produzir simul- e Hermantina, este a respeito de uma epi- taneamente. demia que afligiu a cidade de Campinas. É o que observamos no domínio do Múcio Leão escreveu alguns belos livros conto, mesmo do conto urbano. Depois com a sua prosa harmoniosa e sua ironia, da Semana da Arte Moderna, em fevereiro que também sabe ser piedade. A promes- de 1922, Coelho Netto ainda publicou cer- so inútil e outros contos, Prêmio de pureza ca de trinta volumes, dos quais nove livros constituem as suas coleções de contos pu- de contos. Dentro das tendências que ele blicados e têm, como personagens, figuras 160 • Barbosa Lima Sobrinho da cidade, como em A surpresa ridícula, ou Roquette Pinto em Samambaia. Pussanga, A cínica proposta. Celso Vieira escreveu al- todavia, é um conto urbano. Na Antologia guns contos, reunidos na coleção Para as de Contos da Academia Brasileira de Letras lindas mãos, páginas literárias, que talvez são de contista regionais os contos do Sr. não sejam precisamente contos, mas fulgu- Levi Carneiro, do Sr. Antônio Austregésilo e ram na mestria da frase e no requinte dos de Vicente de Carvalho, para não falar em conceitos lapidares. , em Alcides Maia, mestre no gênero e com larga A linda mentira, fixou impressões das três influência entre os escritores dos Pampas. cidades de sua vida, de Goiana, em Tanaju- De João Ribeiro poderíamos dizer que tam- ras, do Recife, em O aleijadinho da Ocarina, bém são contos os capítulos luminosos de do Rio em A história de todos os dias e es- Floresta de exemplos, no modelo clássico sas três cidades surgem, nos seus contos, de um Manuel Bernardes. Autores de con- tocadas pelo raio de sol de sua ternura e de tos regionais haviam sido Afonso Arinos, sua poesia. Osvaldo Orico, em Vinha do Se- Inglês de Souza, Araripe Júnior, Xavier Mar- nhor, Joa­na Maluca e outros contos e Mun- ques. João Luso deixou-nos alguns livros de do ajoe­lhado já nos deu contos urbanos e contos, desde os Contos da minha terra até contos regionais, dividindo-se entre os dois Histórias da vida, Reflexos do Rio, Os Me- tipos de contos, ao sabor de suas reminis- nezes de Haddock Lobo, Contos do Natal, cências. Em Maternidade, Noite de carnaval largamente influenciados pela cidade a que e Promessa encontramos a presença da ci- se afeiçoou. dade, na sua visão de escritor. Josué Mon- Como se vê, essa enumeração acentua telo é um escritor urbano, quando relembra a difusão desse gênero literário. Cada vez impressões de São Luis ou quando fixa epi- mais estamos dentro daquela verdade que sódios de sua vida nos grandes centros. Araripe Júnior acentuara: “Todo mundo destinou dois volu- escreve contos”. Como há algum tempo mes de suas Obras completas à coleção de passado todos escreviam versos. Num Di- contos e novelas, que foi publicando em di- cionário de Autores Paulistas, publicado versos livros, como O crime daquela noite, recentemente, pude encontrar nada menos Toda nua, A perna do Saci, A mulher que de 200 autores de contos, somente naque- pecou, O dente de ouro. Só o que obscure- le Estado. O que torna cada vez mais difícil ce o conteur é o fulgor da obra do poeta de a tarefa do recenseador, à medida que se Juca Mulato. No conto, Menotti Del Picchia difunde, com a expansão da imprensa pe- é também profundamente moderno, em- riódica, a prática do gênero, não somente polgado sempre pela ânsia da renovação, aqui no Brasil, como em todo o Universo. como já observara Guilherme de Figueire- Não podemos deixar, todavia, de apon- do. Por mais que o seduzam motivos fol- tar alguns conteurs mais integrados no gê- clóricos, são os temas da cidade que o con- nero. Um deles é Ribeiro Couto. A casa do quistam e envolvem. gato cinzento e o Crime do estudante Batis- E os que não fazem contos urbanos, ta, ambos de 1922, atribuíram-Ihe posição escrevem contos regionais, como Gusta- preeminente na história da ficção no Brasil. vo Barroso e Peregrino Júnior, ou como Baianinha e outras mulheres e o Clube das O conto urbano no Brasil • 161 esposas enganadas revelaram um mestre Schmidt, Álvaro Moreira, que tem tantos no conto e no conto urbano, por sinal. Dois pontos de contacto com João do Rio no livros de crônicas poderiam ser acrescenta- seu culto à cidade, que denominou, num dos à sua bibliografia de contista, pois que livro de crônicas, A cidade mulher. Velhos a sua maneira graciosa de comentar trans- e novos cuitores de gêneros diversos, com forma num conto essas páginas de cronista, uma mensagem sempre pessoal. E Gracilia- como acontece com a escritora Rachel de no Ramos? E Mário de Andrade? E Marques Queirós, ou com o Sr. . O blo- Rebelo? co das mimosas borboletas é um modelo de Mário de Andrade quis aplicar, em Os conto urbano, na espontaneidade da nar- contos de Belazarte, a receita do Modernis- rativa, com que faz viver uma cena caracte- mo, a que viria a renunciar nas histórias dos rística da vida daquela Cidade do Vício e da Contos novos. Seus contos retratam, como Graça, a que ele se reportava num de seus os de Antônio de Alcântara Machado, os livros de crônicas. bairros pobres de São Paulo, a presença das Fora da Academia, a lista seria infindável duas cidades que vivem lado a lado e que e não poderia, a essas alturas, atrever-me a se ignoram ou se combatem. Caixeiros de tanto. Detenhamo-nos, porém, num autor padaria, empregados domésticos, artistas paulista, que trouxe preciosa contribuição de circo, crianças abandonadas, carteiros, para o conto urbano – Antônio de AIcân- meninas de cursos de música formam a hu- tara Machado. Ele soube incorporar à urbes manidade de seus contos, que são amargos os bairros pobres dos imigrantes, com as e desencantados. peculiaridades de seus costumes e de sua Marques Rabelo ama os mesmos subúr­ linguagem, em Brás, Bexiga e Barra Funda. bios de Lima Barreto, os subúrbios da Cen­tral Os Gaetaninho e Carmela representam uma do Brasil, onde se encontram os comerciá- face nova do conto urbano nos episódios rios de vida modesta, os funcionários cheios que Antônio de Alcântara Machado sabe de família e de compromissos, a gente que descrever com sua “prosa ágil, de nervos à tardinha vai para a frente da casa gozar a tensos. cortante como uma lâmina de gile- fresca de palito na boca e palitó de pijama te”, na frase de Sérgio Milliet. listrado. Gente que ama e que sofre. Sobre- E outros muitos se revelam, fora ain- tudo que sofre. Ele conhece os ambientes da dos quadros acadêmicos. Poderíamos de miséria, que a cidade procura ignorar notar, para não agravar o dissabor de não e vai buscá-los nos quartos dos barracões. estudá-los com a ausência de seus nomes, No fundo desse realismo há, como em Lima Aníbal Machado, Theo Filho, Joel Silveira, Barreto, um revoltado, mas um revoltado Luís Jardim, Diná Silveira de Queirós, Car- que às vezes passeia as suas Oscarinas pelas los Drumond de Andrade, Orígenes Lessa, ruas dos subúrbios para lhes proporcionar José Condé, Carlos Castelo Branco, Raul um pouco de felicidade, com aquele amor de Azevedo, Martins Capistrano, Oliveira e que sabe ser amor, mesmo quando só vê Silva, Malha Tahan, Miroel Silveira, Almei- em Cupido um boneco pançudo. da Fisher, Saldanha Coelho, Dante Costa, Carlos Dias Fernandes, Felício Terra, Afonso 162 • Barbosa Lima Sobrinho

Dessa exposição, necessariamente in- apresenta cambiantes infinitas e mutações completa e obrigada a sacrificar capítulos rápidas. Para isso se impõem os filmes mais que reclamariam maior desenvolvimento, sensíveis, para falar em termos de fotogra- há que depreender algumas conclusões. fia, a fim de fixar instantâneos que o tempo A primeira é a da expansão rápida do arrebata em frações de segundos. conto urbano, superando, de muito, a pro- Mais uma conclusão: a de que o conto dução do conto regional e dando a medida urbano acompanha o crescimento da cida- da ascendência cada vez maior das cidades de, a complexidade das forças que dentro no Plano social. Vários fatores concorrem dela se digladiam. Circunscrito, de início, para isso, pois que os jornais, as revistas, a alguns bairros da média burguesia e aos os prelos estão nas cidades e ficam mais ao ambientes familiares, estende-se, aos pou- alcance dos escritores da cidade. Mesmo cos, às zonas que vão sendo incorporadas, os que fazem contos regionais podem tra- aos bairros que surgem, aos subúrbios em zer do interior suas impressões, os temas, que se fixam os habitantes de recursos mais os casos, as figuras que desejam descrever. escassos e vida mais difícil. As diferenças Dependem, porém, da cidade e muitas ve- econômicas e os conflitos sociais, entre es- zes acabam envolvidos por elas, no tumulto ses diversos bairros e essas classes urbanas, da vida urbana, na variedade de situações passam e ser matéria-prima do conto, des- que ela oferece, em contraposição à vida locando os temas mundanos ou reduzin- tranquila e relativamente estacionária do in- do esses assuntos a uma função limitada. terior. O certo é que a produção de contos O conto urbano não é apenas um reflexo urbanos cresce tão rapidamente quanto as dessas lutas; passa a ser, também, uma for- próprias cidades e supera o que se pode re- ça de reação e de reforma, pois que nele se ceber da vida rural, uma vez que são raros resume e se expressa a vida de toda a cida- os escritores que se deixam ficar no campo. de. Para sentir o que significa a transforma- Outra conclusão a fixar é a da evolução ção das cidades, nos últimos 90 anos, basta lenta do conto regional, senão quanto à pôr em confronto os contos de Machado de sua linguagem, que pode ser revolucioná- Assis e os de Lima Barreto ou Marques Re- ria como em Sagarana, ao menos quanto belo. Não são apenas tendências literárias aos temas e personagens que sofrem a que se modificam. Mudou, decerto, o con- influência do modo rural, agarrado à tra- to; mas mudou ainda mais a própria cidade, dição. Mudam apenas nele os ambientes, com a agravação de seus sofrimentos e, so- quando o conto se transporta das praias de bretudo, de seus conflitos, quando as duas pescadores para as zonas de garimpagem, cidades, a do luxo e a da miséria, começa- ou do meio amazônico para as fronteiras ram a ter consciência das imensas distâncias da pecuária. O conto reflete um meio que que as separavam. CONTO Ovídio no exílio – Uma carta apócrifa em torno do ano 12 d.C.

Gilda Oswaldo Cruz Gilda Oswaldo Cruz é pianista e escritora. Publicou um romance, Na sombra do herói (Topbooks 2010), uma fábula ecológica, O caso do amendoim roubado (Jaguatirica 2018), traduções, resenhas e artigos.

do meu retiro entre pinheiros que te se anunciar. Na metrópole tivera em mãos saúdo, Lício caro, nesta hora crepus- uma cópia da última epístola de Ovídio, É cular em que resta algo de luz violeta acabada de chegar das paragens bárbaras no céu, suficiente ainda para escrever-te. do Ponto, e inquieto pelos boatos que ou- Ouço zunidos agudos de morcegos e con- vira de uma possível mudança no destino sigo discernir na penumbra os pequenos do exilado, a quem odeia, vinha desabafar vultos negros a ziguezaguear em trajetó- e deitar nos meus ouvidos o fel peçonhento rias nervosas. Rompem agora as rãs no de seus pensamentos. charco a coaxar. Ao longe, gritos roucos de corvos completam o coro de sons ao Tão logo chegam a Roma as cartas de meu redor. Além dos servos, são essas as Ovídio, bem o sabes, um pequeno grupo de criaturas animadas a fazerem-me compa- fiéis providencia cópias dessas lamentações nhia na solidão em que me julgava a salvo em versos pungentes, que logo circulam das intrigas da cidade. Bem conheço tua em segredo entre amigos e simpatizantes preferência pela turbulenta vida urbana, e do poeta que amamos. Uma delas, por trai- suponho que tais descrições bucólicas te ção ou descuido, caíra nas mãos ávidas de aborreçam. Sirvam, pois, de contraste às Licurgo. Não parecia ele ébrio de vinho, e palavras delirantes de Licurgo, o eterno e sim de algum estado de indignação colérica frustrado candidato à glória poética, e cuja que o fazia andar em passadas agitadas de visita na tarde de hoje veio interromper a um lado a outro, pronunciando frases pom- placidez do meu isolamento. posas que por vezes me pareciam dirigidas a algum cenáculo invisível. Tentarei repro- Provinha ele de Roma rumo a Péssaro, a duzi-las a partir dos fragmentos que retive cidade moribunda onde nasceu – Catullus1 na memória, para que me ajudes a refletir dixit – e aqui irrompeu à hora da sesta, sem sobre o que ouvi.

1 Catulo, LXXXI 3: moribunda ab sede Pisauri. 164 • Gilda Oswaldo Cruz

Eis que acabo de receber outra visita dos naufrágios.” Decidi, porém, deixá-lo inesperada: um minúsculo e gracioso ca- falar. Alguma informação poderia revelar-se maleão, de cabeça e tórax cravejados de útil a quem, como eu, está pronto a tudo pontos multicoloridos, acaba de cruzar fazer para salvar o vate. Trazia ele consigo em diagonal a parede clara e veio postar- algumas anotações, chegou-se a mim com -se diante de minha mesa, hirto como uma um semblante ameaçador e pôs-se a ler: sentinela em posição de sentido. Trouxe-me à memória o menino malcriado que ousou L.: “Não defendas a minha causa: não escarnecer da grande deusa Ceres, imedia- se menciona uma causa débil. Que tuas tamente transformado num semelhante palavras soem apenas como preces cheias animálculo2, como canta o nosso pobre exi- de angústia. A seguir, remove a barreira das lado em seu livro grandioso sobre as formas lágrimas, atira-te ao chão, estende os bra- mudadas. É agora ele o metamorfoseado, ços na direção daqueles pés imortais. Então rico e glorioso outrora, o mais aplaudido e nada peças, senão que eu possa escapar ao invejado na urbe, mudado hoje num frágil cruel inimigo que habita estas paragens. suplicante, expulso da pátria para um lugar Meu destino já é inimigo suficiente. Tua miserável, privado da mulher e dos amigos, voz deverá tremer, deixar entrever que estás aterrorizada diante da sua majestade. Não habitando entre bárbaros hostis, e – castigo fará mal que teu discurso seja interrompido supremo – divorciado da própria língua lati- por soluços. As lágrimas por vezes carregam na que engrandeceu. o peso de palavras”.3

A um brusco movimento meu, o peque- É extraordinário. Como se pode ser tão nino réptil fugiu amedrontado e escondeu- ingênuo? O homem usa os seus conheci- -se numa fresta escura. Nosso poeta, por mentos jurídicos para ensinar à mulher sua vez, não se resigna a esconder-se mudo como comover Lívia, a consorte do príncipe no sombrio lugar de seu castigo, e continua e a sua maior inimiga! a compor os versos lancinantes e sublimes que envia aos amigos no intuito de fazê- Eu: É natural que a esposa do poeta -los interceder junto ao Príncipe. Esperança tente influenciar a mulher do Augusto, se a cruel e sempre frustrada de um perdão que ela tiver acesso, como é o caso. Lívia a maior não chega. inimiga do poeta? Divagas? De que licor te embebedaste? Meu servo trouxe-me uma lamparina e posso começar a partilhar contigo o diálo- L.: Por certo podias mostrar-te mais go desta tarde, durante a qual muitas vezes hospitaleiro e dar-me de beber. (Mandei hesitei se devia ou não expulsar o hóspede que lhe trouxessem vinho). Sim, é dela que repulsivo. Licurgo encarna o verso do nos- falo, a matrona de vida recatada, a esposa so amado poeta: “Vi um homem que se ria casta que se veste com modéstia exemplar

2 Metamorfoses: 5, pp. 451-458. 3 Pônticas: 3, 146-158. Ovídio no exílio – Uma carta apócrifa em torno do ano 12 d.C. • 165 e cose ela própria as roupas do seu mari- Eu: Não me custa aceitar que Lívia seja do. A sublime matrona não suporta que se de fato a grande força escura que move mencione em sua presença sequer os títu- por ambição a vontade do Príncipe. Mas los dos livros do teu amigo exilado, esses não vês que o casal ostenta a sobrieda- que fazem as delícias de pessoas como tu, de, como outros ostentam joias? Dono amantes de poesia obscena. Foi ela a tra- de fortuna gigantesca, cai bem ao supre- balhar na mente do consorte a necessidade mo chefe aparentar gostos simples, vida de proteger a moral das matronas romanas doméstica modesta como a de qualquer mediante a lei da proibição do adultério. A cidadão. Quando se sabe que visita com mesma que se provou tão oportuna quan- a própria carruagem imperial as mulheres do Augusto expulsou de Roma a única fi- de senadores ilustres… Sempre me pare- lha e despachou-a ao mortífero exílio onde ceste um crédulo incurável, e agora perce- vegeta. Com a proibição explícita de que bo que és também um pobre de espírito. na ilha diminuta de Panataria houvesse Aceitas sem a menor crítica os embustes presença de homens ou de vinho! Sabia do monarca, destinados a manipular a ele bem o porquê! Ao Senado, aonde só opinião pública. Tratava-se, no caso da comparece com uma armadura de bronze primeira Júlia, tão somente de fazer voltar a proteger-lhe secretamente o tórax sob a Tibério a Roma, para satisfazer a vontade toga – aprendeu a lição de seu divino pai! – de Lívia, que exigia fosse ele, seu filho do foi em pessoa denunciar em longo discur- primeiro casamento, o herdeiro único do so, e com riqueza de pormenores, a vida Império. Amargado pelo casamento infeliz dissoluta de Júlia, seus ingentes apetites com Júlia Maior, a que Augusto o forçou, lúbricos, a numerosa lista de seus amantes, e desprezado e enganado por ela, Tibério cujos nomes pronunciou um a um. E tam- preferiu exilar-se em Rodes e abandonar a bém o constante abuso de vinho daquela vida política, depois de seus importantes outrora celebrada em Roma como nova triunfos em campanhas militares. Foi ele, Afrodite. Descreveu suas orgias noturnas Tibério, o filho de Lívia, a exigir o afasta- celebradas nos lugares mais sagrados de mento da mulher como condição da sua Roma, quando convocava seus parceiros volta a Roma. Embora, para enganar a libidinosos para encontros junto à estátua opinião pública, tenha escrito ao Príncipe do sátiro Mársias, no Foro, ao que dizem epístolas hipócritas pedindo o seu perdão. para aludir às antigas liberdades republi- canas esmagadas pelo pai! É evidente que Mas por que pareces tão cheio de furor tais costumes necessitam ser perseguidos e contra essas desgraçadas mãe e filha? Foram castigados severamente, sob pena de ruína perseguidas não por seus inofensivos dese- insanável do arcabouço moral do Império! jos carnais, tão desculpáveis, e sim por baixas E dez anos depois, é Júlia Menor, a filha ambições dinásticas. O que têm elas a ver, impura, que segue as pegadas da mãe e volto a interrogar, com o castigo fulminante recebe o mesmo castigo! Mas há algo mais ao poeta, cujos reais motivos para o exílio fo- que não sei se te devo revelar. ram tão meticulosamente escondidos? 166 • Gilda Oswaldo Cruz

L.: Pretendes defender o pundonor des- tempo, queixa-se agora de ter desaprendi- sa dupla de adúlteras notórias? Tal mãe, tal do o latim, já que se viu obrigado a falar as filha! Não conheces a réplica de Júlia Maior, línguas de Getas e Sármatas. O longo tem- tida por espirituosa pelo próprio Augusto? po cobrirá de opróbrio a cabeça de quem Alguém lhe perguntara como fazia para tudo faz para parecer o príncipe exemplar, que seus filhos com Agripa se parecessem mas que se aferra vilmente ao poder, as- todos ao pai, apesar dos amantes sucessi- sassina os inimigos, trai os mais devotados vos que mantinha? Ora – respondeu – só defensores, como Cícero (lembras do seu aceito novo passageiro quando o barco já cadáver profanado e arrastado pelas ruas está lotado! de Roma, as mãos e a cabeça amputadas exibidas no rostra4 sagrado do Forum?), e Quando num império se desfazem os articula a sangue frio as mais odiosas per- vínculos dos cidadãos com um sistema re- seguições. ligioso coerente, os déspotas devem esfor- çar-se por fundar uma nova moral. Quem, L: Ingênuo és tu, ou então finges igno- entre nós, leva os deuses a sério? Augusto rar a consabida cumplicidade do teu amigo quer tomar-lhes o lugar antes que novos com as imoralidades tanto de uma como da deuses bárbaros corrompam os fundamen- outra Júlia. De quem foi fiel amigo, alguns tos do Império. E faz bem. dizem amante de ambas, e certamente fa- cilitador de aventuras ilícitas. Na sua longa Eu: Mas por que as leviandades privadas autodefesa em verso, diz-se testemunha das matronas aristocráticas passaram a ser involuntária de algo que não deveria ter castigadas como crimes de lesa-pátria? O visto. Apenas esse o seu erro, segundo afir- próprio Augusto não levava a sério as aven- ma uma e outra vez, e não um crime. Um turas da filha única, a bela Júlia a quem tan- novo Ácteon, que surpreendeu sem culpa a to amou, tão culta como voluptuosa, inca- nudez de Diana, logo mudado em cervo – paz de sentimentos de vingança, apreciada para não poder contar o que vira – e despe- pelo povo, dona de língua aguda e irônica daçado por seus próprios mastins!5 Consta como a do próprio pai. Antes da mal ex- do livro que todos louvam em público e plicada e severíssima punição, orgulhava-se muitos desprezam em particular. Pois bem: o próprio Augusto de uma de suas tiradas testemunha involuntária de quê? Em que cômicas: “Tenho duas filhas dissolutas a circunstâncias? E por que ele não o revela, aturar: Roma e Júlia.” Surpreende-me a tua já que se julga injustiçado? insistência nesses falsos argumentos mora- lizantes. E quanto ao nosso poeta, acreditas Eu: Se tudo o que dizes tiver senti- mesmo que seu livro subtil sobre a arte bé- do, para não desmascarar os verdadeiros lica do amor, joia poética que viverá muitos séculos, publicado na sua primeira juventu- 4 Rostra: tribuna do Forum, ornamentada com proas de de, mereça tal severidade? Ovídio, dono da navios apresados em Antium, 338 a.C. 5 Metamorfoses: 3, pp. 141-42: Fortunae crimen in illo/ linguagem mais potente e versátil do nosso Non scelus invenies; quod enim scelus error habebat? Ovídio no exílio – Uma carta apócrifa em torno do ano 12 d.C. • 167 motivos do Príncipe, caso revelasse a verda- Sabe, pois, que Júlia Maior foi uma de de. Poria sua vida em risco. suas libidinosas companheiras de jogos, de quem a seguir se fez cúmplice e facilitador L.: Assim é. Augusto exigiu um sigilo in- de encontros. Onde se davam os seus en- violável às razões do castigo. E o acusou de contros com a legião de amantes? Ó ino- imoralidade pelo livro publicado uma déca- cência, na villa que o imperecível cantor das da antes para desviar a atenção do público formas mudadas mantinha perto de Roma da verdadeira causa do exílio. Por isso mes- para os seus retiros poéticos! Tu que segues mo o poeta, nas suas perorações lamen- a regra horaciana de que nada te espante, tosas, só faz ao seu erro alusões indiretas, não faças tal cara de surpresa: para melhor que acicatam a curiosidade de todos até ao hospedar a amiga insaciável, o poeta fez extremo, mas não deixa escapar uma pala- instalar na villa, cercada por um bosque de vra a mais. Como é hábil em fazer perdurar pinheiros, um aposento forrado de espe- o segredo! Enquanto isso, aguarda em vão lhos, guarnecido de posto secreto de obser- que a mulher e os amigos em Roma se mo- vação para algum seleto apreciador. Depois vam para demover o Príncipe. que a mãe foi castigada e mandada passar fome no exílio, a gentileza do bom amigo Eu: Dirás finalmente em que consistem estendeu-se à filha, como era natural. Nes- então as verdadeiras razões do castigo? sa armadilha caiu o próprio armadilhador. Advirto, porém, que o que lá viu e o perdeu L.: Por onde andaste, que ignoras o que não se passava na cama. todos murmuram? De que forma viveu Na- sone durante os dez anos de celibato, an- Eu: O que dizes?! Alucinas, ou já te su- tes de casar-se pela terceira vez, festejado e biu o vinho à mente? cortejado em Roma como filho preferido, a ler publicamente seus versos obscenos em L: A hospitalidade oferecida pelo poeta que se jactava de inumeráveis conquistas, à jovem matrona mudara de caráter. Revol- para a parva e beata admiração pública? tados com a tirania do Príncipe, uns quan- Chegou a pedir aos deuses morrer durante tos romanos de alta estirpe, senadores e o coito, enfraquecido por Vênus, em vez de cavaleiros, mais tarde acusados de adultério destruído por um raio de Júpiter. Para que com Júlia Menor e passados pela espada, em suas exéquias alguém dissesse, em lágri- começaram a conspirar no abrigo bucólico mas: tal morte convém a semelhante vida.6 do poeta do amor lascivo, que de nada sus- peitava, inocente criatura! Até que, movido (Encheu ele mesmo sua taça de vinho e por um desejo perverso de indiscrição eró- continuou a discursar.) tica, e avisado por um servo dos encontros de Júlia Menor com um número extraordi- nário de namorados, o poeta anfitrião deci- diu gozar a sua parte de luxúria. Quis ver o 6 Elegia X do segundo livro de Amores: Conveniens vi- tae mors fui ista tuae. que julgava ser um espetáculo de múltiplas, 168 • Gilda Oswaldo Cruz variadas ou sucessivas fornicações. Despre- de fato provocou a ira de Augusto foram as ocupado ou ingênuo, não previu que as Metamorfoses. supostas bacanais estavam sob a estreita observação dos guardas do Príncipe. O que Eu: O Pontifex maximus que anuncia se passava naquelas noites, denunciaram os não ter tempo para coisa alguma além da esbirros, era algo distinto. Em vez das artes administração do Império – convoca todas de Vênus, operava-se no domínio de Mar- as manhãs dois ou três barbeiros para aten- te. Aqueles homens preparavam um golpe dê-lo em simultâneo, a fim de não perder contra o poder cada vez mais asfixiante de tempo em cuidados cosméticos – terá lido Augusto. a obra-prima do meu dileto Ovídio?

Eu: És tu que o dizes. E como o provas? L.: Alguém, de quem não te direi o (Servi-lhe mais vinho; queria ver quão nome, mas que passa por amigo do poeta, longe iriam as suas alucinadas divagações.) advertiu Augusto para o retrato sarcástico dos deuses traçado por Ovídio ao longo dos L: Os guardas prenderam os rebeldes quinze livros das Metamorfoses. Surgem no ato mesmo da conjura, ao lado de Júlia tão lascivos, soberbos, vingativos e vaido- Menor, que lhes servia de álibi. O poeta foi sos como os próprios mortais. As rasteiras apanhado em flagrante, escondido no seu lisonjas a Augusto no fecho do livro não dis- infrutífero posto de observação. O resto é farçam o desprezo de Nasone à autoridade já história. que sabiamente nos governa e não iludiram o Príncipe. Irritado terá ficado – também ele Eu: Recuso-me a aceitar tão ignóbil ambicionou ser poeta – sobretudo com o versão. Tu não me mereces crédito. És autolouvor no qual o vate se despede da movido pela inveja, poeta obscuro e res- obra. Aí tens… Digere agora o que ouviste sentido. E por que teria sido condenado e vê se te convém divulgar tua amizade ao Ovídio em perfeito sigilo, sem processo, exilado de Tomis. Agora vou partir. Pede ao encaminhado e julgado à vista de todos teu servo que encilhe meu cavalo. no Senado? E por que seu banimento in- cluiu a menção à Ars amatoria, publicada Pensei em adverti-lo para os perigos da dez anos antes? estrada àquela hora. Mas deixei-o partir. Não merecia meu cuidado. Permaneci ab- L: Um príncipe covarde abomina a pró- sorto um longo tempo, refletindo no que pria fraqueza. Uma conspiração, mesmo dissera aquele ser abjeto. Ao meu redor, as abortada, evidencia a sua vulnerabilidade. cores do mundo pareceram-me tristemen- Pode incitar novos conspiradores. A causa te alteradas. À guisa de antídoto, busquei contra Ovídio era rasteira e vergonhosa. o último volume das Metamorfoses e li os Não convinha ao decoro imperial divulgá- seus versos finais. E com eles me despeço -la. Quanto ao resto: sabe que o livro que também eu de ti: Ovídio no exílio – Uma carta apócrifa em torno do ano 12 d.C. • 169

Concluí o trabalho. Nem a cólera de Júpiter, por onde quer que se estenda, sobre as nem o fogo, terras nem o ferro ou o tempo voraz saberão submetidas à potência romana, destrui-lo. a boca do povo me lerá; pelos séculos Assim queira, o dia apenas dominará fora seguirei conhecido meu corpo! Que termine o meu tempo e, se há verdade nos oráculos poéticos, incerto de viver: viverei.7 imortal na minha melhor parte, por sobre os astros altos Adeus, me elevarão, indelével será o meu nome; Calvo

7 Tradução de António Vieira, a partir da versão france- sa de Marie Cosnay. Petit Trianon – Doado pelo governo francês em 1923. Sede da Academia Brasileira de Letras, Av. Presidente Wilson, 203 Castelo – Rio de Janeiro – RJ PATRONOS, FUNDADORES E MEMBROS EFETIVOS DA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS

(Fundada em 20 de julho de 1897) As sessões preparatórias para a criação da Academia Brasileira de Letras realizaram-se na sala de redação da Revista Brasileira, fase III (1895-1899), sob a direção de José Veríssimo. Na primeira sessão, em 15 de dezembro de 1896, foi aclamado presidente Machado de Assis. Outras sessões realizaram-se na redação da Revista, na Travessa do Ouvidor, n.o 31, Rio de Janeiro. A primeira sessão plenária da Instituição realizou-se numa sala do Pedagogium, na Rua do Passeio, em 20 de julho de 1897.

C a d e i r a P at r o n o s F u n d a d o r e s M e m b r o s E f e t i v o s 01 Luís Murat Ana Maria Machado 02 Álvares de Azevedo Coelho Neto Tarcísio Padilha 03 Filinto de Almeida Joaquim Falcão 04 Basílio da Gama Aluísio Azevedo Carlos Nejar 05 Bernardo Guimarães Raimundo Correia José Murilo de Carvalho 06 Teixeira de Melo Cicero Sandroni 07 Valentim Magalhães Cacá Diegues 08 Cláudio Manuel da Costa Alberto de Oliveira Cleonice Serôa da Motta Berardinelli 09 Domingos Gonçalves de Magalhães Magalhães de Azeredo alberto da Costa e Silva 10 Rui Barbosa Rosiska Darcy de Oliveira 11 Lúcio de Mendonça ignácio de Loyola Brandão 12 frança Júnior Urbano Duarte Alfredo Bosi 13 francisco Otaviano Visconde de Taunay sergio Paulo Rouanet 14 franklin Távora Clóvis Beviláqua Celso Lafer 15 Gonçalves Dias Olavo Bilac Marco Lucchesi 16 Gregório de Matos Araripe Júnior Lygia Fagundes Telles 17 Hipólito da Costa Sílvio Romero Affonso Arinos de Mello Franco 18 João Francisco Lisboa José Veríssimo Arnaldo Niskier 19 Joaquim Caetano Alcindo Guanabara antonio Carlos Secchin 20 Joaquim Manuel de Macedo salvador de Mendonça Murilo Melo Filho 21 José do Patrocínio Paulo Coelho 22 José Bonifácio, o Moço Medeiros e Albuquerque João Almino 23 José de Alencar Machado de Assis antônio Torres 24 Júlio Ribeiro Garcia Redondo Geraldo Carneiro 25 Barão de Loreto alberto Venancio Filho 26 Guimarães Passos Marcos Vinicios Vilaça 27 Maciel Monteiro Joaquim Nabuco antonio Cicero 28 Manuel Antônio de Almeida inglês de Sousa Domício Proença Filho 29 Martins Pena Artur Azevedo Geraldo Holanda Cavalcanti 30 Pedro Rabelo Nélida Piñon 31 Pedro Luís Luís Guimarães Júnior Merval Pereira 32 araújo Porto-Alegre Zuenir Ventura 33 Raul Pompeia Domício da Gama evanildo Bechara 34 J.M. Pereira da Silva evaldo Cabral de Mello 35 Tavares Bastos Rodrigo Octavio Candido Mendes de Almeida 36 Teófilo Dias Afonso Celso Fernando Henrique Cardoso 37 Tomás Antônio Gonzaga Silva Ramos Arno Wehling 38 Tobias Barreto Graça Aranha José Sarney 39 f.A. de Varnhagen Oliveira Lima Marco Maciel 40 Visconde do Rio Branco Eduardo Prado Edmar Lisboa Bacha C o mp o s t o e m F r u t i g e r L i g h t 9,5/13,5 p t ; C i ta ç õ e s , 9/12 p t