UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM

GABRIELA STRAFACCI OROSCO

METAMORFOSES DE VENUS NA POESIA DE OVÍDIO

DISSERTAÇÃO APRESENTADA AO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO DO INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS (UNICAMP) COMO PARTE DOS REQUISITOS PARA OBTENÇÃO DO TÍTULO DE MESTRE EM LINGUÍSTICA.

ORIENTADORA: PROFA. DRA. ISABELLA TARDIN CARDOSO

CAMPINAS 2011

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FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA POR TERESINHA DE JESUS JACINTHO – CRB8/6879 - BIBLIOTECA DO INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM - UNICAMP

Orosco, Gabriela Strafacci, 1984- Or6m Metamorfoses de Venus na poesia de Ovídio / Gabriela Strafacci Orosco. -- Campinas, SP : [s.n.], 2011.

Orientador : Isabella Tardin Cardoso. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem.

1. Ovídio. Metamorfoses. 2. Ovídio. Remedia amoris. 3. Vênus (Mitologia romana). 4. Intertextualidade. I. Cardoso, Isabella Tardin, 1971-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Estudos da Linguagem. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em inglês: Metamorphosis of Venus in Ovid’s poetry. Palavras-chave em inglês: Ovid. Metamorphosis Ovid. Remedia amoris Vênus (Mitology roman) Intertextuality Área de concentração: Linguística. Titulação: Mestre em Linguística. Banca examinadora: Isabella Tardin Cardoso [Orientador] Patricia Prata Robson Tadeu Cesila Data da defesa: 07-11-2011. Programa de Pós-Graduação: Linguística.

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Aos meus pais.

5 6 AGRADECIMENTOS

Não há modo de agradecer apenas com palavras aos que me acompanharam nesta e em outras trajetórias de vida; a todos que me fizeram seguir em frente, o meu sincero “muito obrigada!”. Há, entretanto, algumas pessoas a quem sou grata, acima de todas as outras, porque me acompanharam neste trabalho. A elas, em especial, esta folha é dedicada. Minha família, claro, em primeiro lugar, deu-me todo apoio (e de todo tipo) que precisei. Agradeço à minha mãe, Adalzira, por me inspirar tanta coragem e força e por ser a todo tempo fiel, leal e participativa. Ao meu pai, José Roberto, que me deu os livros, me mostrou os discos e me ensinou que falhar e ter sucesso são fatores igualmente importantes. À minha avó, Alzira, por compreender o mundo da maneira mais bela que já vi e por tentar sempre (e sempre conseguir) compreender-nos independente de nossos desvios. Ao meu irmão, Guilherme, por estar ao meu lado em todos os anos da minha vida, por ser meu amigo e companheiro e por não me deixar só, nunca. À Py querida, por tantos momentos, pela amizade e por me dar o melhor de todos os presentes: minha irmã, Manuela, tão linda sob todos os pontos de vistas e tão capaz de me fazer amá-la cada dia mais. Ao Rodrigo, por tanto amor, por ser verdadeiramente presente e dividir comigo tudo o que nos pesa e nos faz leves. Todos esses anos me fizeram perceber que estar ao seu lado era imprescindível. Dos amigos, muitos se foram. Alguns nunca se afastaram. E a eles eu agradeço de todo coração. Ao Carlos Augusto, claro, por ser meu irmão de alma, minha amizade inabalável, meu melhor amigo, meu poeta favorito. À Marina, por tantas identificações e conversas, por ser amiga, vizinha, cunhada. À Isabela, pela amizade desde o início. À Mariana, inspiradora e linda amiga, muito amiga. À Luciana (ah! Luciana), pelas nossas idas e vindas e pelo carinho e apoio de sempre. Aos meus caríssimos professores e aos dedicados e atenciosos funcionários do IEL/UNICAMP, muito obrigada por tornar minha vida acadêmica um espaço de crescimento. Especialmente, agradeço aos funcionários da Secretaria de Pós Graduação do IEL/UNICAMP, Cláudio Pereira Platero, Miguel Leonel dos Santos e Rosemeire de Almeida Marcelino, sempre prontos a, efetiva e cordialmente, ajudar. Aos professores doutores Paulo Sérgio de Vasconcellos, Marcos Aurélio Pereira e Flávio Ribeiro de

7 Oliveira, por serem parte importante do caminho percorrido até aqui; ao Prof. Dr. Matheus Trevizam, por tantos esclarecimentos e direções, além de boas sugestões, na banca de Qualificação, e da boa vontade em me enviar, via correio, textos úteis ao meu estudo. Agradeço, também de maneira especial, à Profa. Dra. Patricia Prata pelas sempre bem-vindas e produtivas sugestões e pelos momentos agradáveis e enriquecedores durante os meses de Estágio Docente, e a ela e ao Prof. Dr. Robson Tadeu Cesila por aceitarem, gentilmente, fazer parte da banca de defesa desta dissertação; a ambos, ainda, pela compreensão quanto ao prazo de entrega deste texto. À Profa. Dra. Isabella Tardin Cardoso, pela exímia orientação, pelo rigor inspirador que exige e cumpre, porque sem ela essa empreitada não seria possível: faltam palavras para explicar o quão fundamental e atenciosa foi sua participação neste trabalho! E, finalmente, a CNPq, pelo apoio financeiro que viabilizou esta pesquisa desde seu princípio, na Iniciação Científica.

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Mouit Amor gemmatas aureus alas Et mihi: „propositum perfice, dicit, opus‟

“O amor dourado agitou suas brilhantes asas E me disse : „Leva a bom termo a obra que tens em mente.‟” Ovídio, Remedia Amoris 39-40, trad. A. S. Mendonça.

9 10 RESUMO

O interesse deste estudo é observar a presença da deusa romana Vênus, cujo principal atributo é o amor, em obras do poeta romano Públio Ovídio Nasão (43 a. C – 17 / 18 d. C.), mais especificamente nos poemas Os Remédios do amor (Remedia Amoris) e em passagens selecionadas das Metamorfoses (Metamorphoseon Libri). Ao cotejar esses excertos, verifica-se que a deusa, seja metonimicamente (por exemplo, como sinônimo do substantivo "amor"), seja como personagem de aventuras e desventuras amorosas, abrange muito da poesia ovidiana e configura-se de diversas maneiras: no poema didático Remedia Amoris, por exemplo, Vênus é relacionada, com frequência, a narrativas de infelicidade amorosa. Nessa obra, o eu poético, propondo a cura do amor, cita a deusa como referência a histórias amorosas malfadadas. Observar a participação da deusa do amor em Metamorfoses, em que ela não é apenas referida como metonímia de seu atributo, como também é personagem de narrativas míticas, permite perceber com mais clareza em que medida os respectivos episódios mitológicos são mencionados ou aludidos também em Os Remédios do amor. Os excertos de Metamorfoses respectivos aos mitos referidos em Remedia compõem o corpus traduzido, a saber, Met. IV 169-189, X 298-739 e XIV 441- 608 (bem como a comparação com sua menção em Remedia Amoris) é ponto de partida para uma análise da figura de Vênus. O estudo visa, ainda, contribuir modestamente para a discussão sobre a concepção do sentimento amoroso em Ovídio, em particular a ideia de amor como doença.

Palavras-chave: Ovídio, Vênus, Metamorfoses (Metamorphoseon Libri), Remédios do amor (Remedia Amoris), intertextualidade.

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12 ABSTRACT

This study has as a central interest observing the presence of the Roman goddess Venus, whose main attribute is love, in Publius Ovidius Naso‟s work (43 B. C – 17 / 18 A. D.), more specifically in the poems Remedia Amoris (Remedies for Love) and in selected passages of Metamorphoseon Libri (Metamorphoses). Throught the comparison among the passages pertaincing to both ovidian works, it is noticed that the goddess presence - either metonymically (for instance, as a synonymous for the noun “love”) or as a character of amorous adventures or misadventures - comprises much of the ovidian poetry. In the didactic poem Remedia Amoris, for example, Venus is frequently related to unhappy love narratives. In Remedia the lyric self, purposing the cure for love, mentions the goddess as a reference to unlucky love stories. Observing in the Metamorphoses how the goddess of love participates as a mythical character, helps to perceive the allusion to mythological episodes that also takes part in Remedia Amoris. The respective excerpts of Metamorphoses (namely Met. IV 169-189, X 298-739 e XIV 441-608) that are mentioned in Remedia Amoris compose the corpus of our study. The translation of the selected passages of Metamorphoses, as well as a comparison with their mention in Remedia amoris, is the starting point for the analysis. The study aims also to modestly contribute for the reflection on the conception of the love feeling constituted in Ovid, mainly the idea of love as a disease.

Key-words: Ovid, Venus, Metamorphoseon Libri, Remedia Amoris, intertextuality.

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14 SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO 17

1 INTRODUÇÃO 23

2 VÊNUS NOS REMEDIA AMORIS 33 2.1 Os Remedia Amoris e o amor como doença 33 2.2 Venus e a patologia amorosa em Remedia e Metamorfoses 61

3 APRECIAÇÃO DAS PASSAGENS TRADUZIDAS 69 3.1 Vênus e Marte 69 3.2 O mito de Mirra em Ovídio 79 3.2.1 Mirra como amante elegíaca nas Metamorfoses de Ovídio 84 3.2.2 O pranto de Vênus 101 3.2.3 Vênus na épica ovidiana 110

4 CONCLUSÃO: DE MITO A PATHOS 117

5 TRADUÇÃO DAS PASSAGENS SELECIONADAS 121 5.1 Vênus e Marte (Met. IV 167-189) 122 5.2 Mirra (Met. X 289-518) 126 5.3 Vênus e Adônis (Met. X 519-739) 150 5.4 A morte de Eneias (Met. XIV 441-608) 168

6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 189

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16 Apresentação

Este estudo iniciou-se com as primeiras leituras de alguns trechos das Metamorfoses de Públio Ovídio Nasão (43 a. C – 17 / 18 d. C.),1 poeta romano que compôs suas obras durante a era de Augusto em gênero elegíaco, elegíaco-didático e épico.2 Foi a partir desse contato que surgiu a ideia de analisar a presença recorrente do sentimento amoroso como temática das poesias ovidianas. Seguiu-se à ideia, a elaboração de um projeto de Iniciação Científica (“Vênus em Ovídio: Remedia Amoris e Metamorfoses”)3 que nos levou à observação do uso metonímico do termo Venus/uenus4 e da presença, como personagem das histórias míticas, da própria deusa romana Vênus, bem como de seu

1 Muito dos dados biográficos que hoje se atribuem ao poeta é parte da obra ovidiana, o que se vê principalmente em Tristia II e IV 10. Para fontes antigas sobre a vida de Ovídio, cf. verbete „Ovid‟, in: E. Kenney, The Cambridge history of classical literature (a que nos referimos, posteriormente, como CHCL), 1983, p. 240 - 457; para outros detalhes biográficos do poeta, cf., especialmente, Sêneca, Controv. 2.10; Sidonius, Carm. 23.18, cf. W. Smith, A Classical Dictionary of Greek and Roman biography, mythology and geography, 1932 (acessível também via Internet: http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus:text:1999.04.0104) verbete: “P. Ovidius Naso”, e ainda L. A. de Bem, O Amor e a Guerra no livro I d‟ Os Amores de Ovídio, Dissertação de Mestrado inédita, Unicamp, 2007, p. 15, em que há uma discussão (que não será retomada neste estudo) sobre a verdade histórica contida nas mencionadas elegias ovidianas. 2 Sobre o caráter épico das Metamorfoses, indicamos aqui apenas algumas apreciações gerais recentes. Por exemplo, Gian Biagio Conte (Latin Literature – a History, 1994, p. 352) afirma que o gênero desse poema ora é épico, ora elegíaco; ver ainda A. Barchiesi (“Narrative technique and narratology in the Metamorphoses”, in: P. Hardie (ed.), The Cambridge Companion to Ovid, Cambridge, 2002, p. 180-199), que aponta que a definição de epos – epopeia – como entrelace das obras humanas e divinas passa a ser, nessa obra ovidiana, o entrelace das narrativas humanas e divinas (p. 185-9). Ver também o comentário de Barchiesi aos primeiros quatro versos da obra em Ovidio, Metamorfosi, p. 140-45; a discussão (direcionada ao livro V), em Hinds, “Landscape with figures: aesthetics of place in the Metamorphoses and its tradition”, in P. Hardie, Cambridge Companion to Ovid, 2002, p. 122-49 e M. M. P. Silva, Arsque locumque: espaço da narrativa no livro V das Metamorfoses de Ovídio, Dissertação de Mestrado inédita, Unicamp, 2008. Ovídio teria composto também ao menos uma obra do gênero dramático, uma tragédia, Medeia, que não sobreviveu até a atualidade. 3 O projeto, desenvolvido no período de Agosto de 2006 a Julho de 2007, foi orientado pela Profa. Dra. Isabella Tardin Cardoso (IEL – Unicamp), e contou com o auxílio do PIBIC – Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científicas, por meio do CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. 4 Já naquela fase da pesquisa constatamos que a metonímia presente na utilização de Venus/uenus para substituir a palavra “amor” denota uma associação entre essa divindade e tal sentimento, revelando, segundo o que observamos, a atuação de Vênus, mesmo que de maneira indireta (por exemplo, pela simples ocorrência de tal personagem na mente do leitor quando se trata do tema) nas histórias míticas de amor.

17 atributo, o amor, em duas das obras ovidianas: Os Remédios do amor5 (Remedia Amoris) e Metamorfoses (Metamorphoseon Libri). A leitura de textos de estudiosos como A. Barchiesi (1999) e P. Hardie (2002)6 e a apreciação, partindo da tradução, dos textos latinos conduziram nossa análise. Para tal, ainda que, neste trabalho de Mestrado, não tenhamos empregado sistematicamente, ou com a profundidade teórica que a abordagem exige, a metodologia empregada em estudos intertextuais aplicados à área (na esteira de, entre outros autores, A. Barchiesi, Gian Biagio Conte, Stephen Hinds, Don Fowler e Paulo Sérgio de Vasconcellos),7 serve-nos de inspiração para tentar verificar, de um lado, de que modo os textos poéticos ovidianos entrelaçam a presença de tal personagem mítica e as referências metonímicas aos seus atributos. De outro lado, estimula-nos ainda a observar possibilidades de diálogo entre tais textos ovidianos e outros textos da Antiguidade, como as obras dos poetas elegíacos Propércio, Tibulo e Catulo. A fim de melhor compreender e contemplar as passagens em apreço das obras de Ovídio, incluímos, ainda em nossas considerações sobre a relação entre Remedia e Metamorfoses, o texto da Ars amatoria. Dessa forma, mesmo que não se constitua de maneira central em nosso corpus, a Ars será considerada um contraponto para a leitura de Remédios do amor. No Brasil, além da fluente tradução em prosa de A. S. Mendonça, é notável que esse poema não tenha se constituído como objeto central de estudo.8 Isso é verdade mesmo

5 Seguimos a tradução do título feita por A. S. Mendonça, in: Ovídio, Os Remédios do amor/ Os cosméticos para o rosto da mulher, 1994. 6 Outros estudiosos constam das Referências Bibliográficas deste estudo. 7 Podemos citar, como exemplos, os estudos: G. B. Conte, The rhetoric of imitation. Genre and poetic memory in Virgil and other Latin poets, 1996; sobre intertextualidade em estudos clássicos, D. Fowler, “On the shoulders of giants: intertextuality and classical studies”, in: Roman constructions. Readings in postmodern Latin, 2000; A. Barchiesi, “Otto punti su una mappa dei naufragi”, in: Materiali e discussioni per l‟analisi dei testi classici (39), 1997, p. 209-226; S. Hinds, Allusion and intertext: dynamics of appropiation in Roman poetry, 1998. Cf. ainda, sobre a posição dos referidos estudiosos e os estudos intertextuais em Letras Clássicas, P. S. Vasconcellos, Efeitos Intertextuais na Eneida de Virgílio, 2001 e “Reflexões sobre a noção de arte alusiva e de intertextualidade no estudo da poesia latina”, in: Classica (Brasil) (20) n. 2, 2007, p. 239-260. Sobre intertextualidade especificamente em Ovidio, com ênfase em Tristia, cf. P. Prata, O caráter alusivo dos Tristes de Ovídio: uma leitura intertextual do livro I, Dissertação de Mestrado, Campinas, 2002 e O caráter intertextual dos Tristes de Ovídio: uma leitura dos elementos épicos virgilianos, Tese de Doutorado, Campinas. Para estudo da épica (no livro V) das Metamorfoses, cf. M. M. P. Silva (2008). 8 Em consulta ao catálogo eletrônico das bibliotecas de universidades públicas de São Paulo (Usp, Unesp, Unicamp), encontramos os seguintes estudos, que contemplam, ainda que de maneira

18 em âmbito internacional: uma pesquisa no anuário L´année Philologique9 revela que de fato, ainda que muitos pesquisadores se remetam à obra em suas análises,10 ela ainda não recebeu a atenção devida em termos de comentários filológicos, por exemplo. Nesta pesquisa, como dissemos, nos propusemos a perceber de que modo a Vênus mencionada em Remedia será evocada nas Metamorfoses. Quanto a esta obra,11 sabe-se que já adquiriu marcante presença nas temáticas das pesquisas sobre Ovídio, dentre as quais nos

indireta Remedia Amoris em suas análises: C. G. Lopes, Confluência genérica na Elegia Erótica de Ovídio ou a Elegia Erótica em elevação, Dissertação de Mestrado, São Paulo, 2010; I. C. Boschiero, Para uma leitura em outras direções: arranjos teóricos sobre a Ars amatoria de Ovidio, Dissertação de Mestrado, Araraquara, 2006; M. Trevizam. A elegia erótica romana e a tradição didascálica como matrizes compositivas da Ars amatoria de Ovidio, Dissertação de Mestrado, Campinas, 2003. 9 Entre os estudos que abordam os Remedia de Ovídio, citamos: G. B. Conte, “Love without Elegy: the Remedia amoris and the logic of a genre”, in: Genres and readers, 1989, p. 35-65; P. Toohey “Love, lovesickness and melancholy”, in: Illinois Classical Studies (XVII), 1991, p. 265 – 286; A. Sharrock, “Ovid and the discourses of love: the amatory works” in: P. Hardie (ed.), The Cambridge Companion to Ovid, 2002, p. 150-62; S. Harrison, “Ovid and genre: evolutions of an elegist”, in: ibidem, 2002, p. 79-94; P. Toohey, Epic lessons: an introduction to ancient didatic poetry, 1996. 10 O levantamento bibliográfico embasado em L´année Philologique, realizado em 28/07/2010, revelou-nos os seguintes textos, em que se abordam questões relativas a Remedia (o termo “Ouidius Naso” foi usado na busca em que se obteve o resultado elencado a seguir): L. Fulkerson, “Omnia vincit amor: why the Remedia fail”, in: The Classical Quarterly (54), 2004, p. 211-223; (os termos “Remedia amoris” foram usados na busca em que se obteve os resultados elencados a seguir): C. M. Brunelle, Gender and genre in Ovid's Remedia amoris. Thesis (Ph. D.), Chapel Hill, 1997; D. Jones, “Enjoinder and argument in Ovid's Remedia amoris”, in: Revue des études anciennes (99), 1997, p. 581-2; C. E. Murgia, “Influence of Ovid's Remedia Amoris on Ars Amatoria 3 and Amores 3”, in: Classical Philologie (81), 1986, p. 203-220; G. Sommariva, “La parodia di Lucrezio nell'Ars et nei Remedia ovidiani”, in: Atene e Rome (25), 1980, p. 123-148; A. N. Michalopoulos, “Ovid's mythological exempla in his advice on amatory correspondence in the Ars amatoria and the Remedia amoris “, in: Sandalion, 2000, p. 23-25; C. M. Brunelle, “Pleasure, failure, and danger: reading Circe in the Remedia”, in: Helios (29), 2002, p. 55-68; J. Fish, “Physician, heal thyself : the intertextuality of Ovid's exile poetry and the Remedia amoris”, in: Latomus, 2004, p. 864-872; R. J. Starr, “Swimming in the current: Ovid, Ars amatoria 2. 181-182, and Remedia amoris 121-122, in: Hermes, 2001, p. 564-565. Tais textos ainda não foram consultados, pois, diante da dificuldade de acessar o material no Brasil, optamos por organizar a leitura bibliográfica de maneira a privilegiar outros textos, do nosso ponto de vista, também fundamentais para o desenvolvimento do trabalho. 11 Entre as principais edições de Metamorfoses, citamos aqui as consultadas: F. Bömer, P. Ovidius Naso, Metamorphosen, I – VI, 1969; F. J. Miller, G. Goold (ed.), Ovid, Metamorphoses, 1984; A.S. Hollis (ed.), Ovid, Metamorphoses, 1970; R. J. Tarrant (ed.), P. Ovidi Nasonis Metamorphoses, 2004; A. Barchiesi, Ovidio, Metamorfosi (1)-(2), 2005-2007; G. Lafaye, Ovide, Les Métamorphoses, tomes I – III, 1999; D.E. Hill, Ovid. Metamorphoses IX-XII, 1999; idem, Ovid, Metamorphoses XIII-XV, 2000.

19 têm sido especialmente úteis aquelas que, conforme apontaremos no decorrer da pesquisa, tratam da atuação de Vênus nos episódios mitológicos ovidianos.12 É precisamente sobre uma peculiar concepção do sentimento amoroso em Remedia Amoris que versará a primeira parte do capítulo inicial deste estudo.

Sobre a tradução

Uma motivação para traduzir os excertos a serem estudados neste trabalho é a ainda relativa pouca atenção que têm recebido as Metamorfoses no Brasil, se compararmos com a abundância dos estudos e versões em outros países.13 Por exemplo, não temos ainda tradução completa em português brasileiro dos quinze livros das Metamorfoses.14 Além disso, são raras aquelas, mesmo parciais, que se baseiem em edição crítica mais recente, e que em suas notas apontem tanto para outros autores da Antiguidade clássica que

12 Para uma apreciação da bibliografia acerca de Metamorfoses no século XX, cf. S. K. Myers, “The Metamorphosis of a Poet: Recent work on Ovid”, The Journal of Roman Studies, (89), 1999, p. 190-204. Além das pesquisas já mencionadas (ver notas 2 e 3 acima), quanto ao amor ou desejo nas Metamorfoses foram também úteis a esta pesquisa: A. Barchiesi et al., “The Metamorphoses”, 2009; P. Hardie et al., Ovidian transformations: Essays on the Metamorphoses and its reception”, 1999; I. T. Cardoso, “Metamorfoses do desejo em Acteón de Ovídio (Met. III 138-252), in: N. V. de Araújo (org.), Corpolinguagem: a estética do desejo. Campinas, 2005, p. 45-62; A. Feldher, “Metamorphosis in the Metamorphoses”, in: P. Hardie (ed.), The Cambridge Companion to Ovid, 2002, p. 163-79; J. Fabre-Serris, Mythe and poésie dans les Métamorphoses d‟Ovide, 1995. Ainda outros estudos serão referidos neste texto. 13 Um levantamento das dissertações e teses publicadas pela Universidade Estadual de Campinas e pela Universidade de São Paulo nos permitiu a constatação de que o interesse acadêmico pelas Metamorfoses é retomado em época relativamente recente. Seguem as obras que, tratando dessa obra ovidiana, revelaram-se em nossa pesquisa: A. A. Predebon, Edição do manuscrito e estudo das Metamorfoses de Ovídio traduzidas por Francisco José Freire, Dissertação de Mestrado, São Paulo, 2006; M. M. de Paula e Silva (2008). 14 Alguns excertos das Metamorfoses foram traduzidos por Bocage (I 1-437, 583-747; II 161- 183, 761-782, 836-875; III 1-2; IV 55-166, 564-603, 611-662; VI 423-712; X 1-82, 298-502; XI 85- 145; XI 592-615, 633-645, 758-795; XIII 429-575; XIV 320-434, 581-608; 805-851; XV 783-802, 843-851); Antonio Feliciano de Castilho (1841) também tem uma versão poética dos quinze livros da obra. Recentemente, o estudioso A. A. Predebon incluiu em sua dissertação de Mestrado (2006) o manuscrito de Cândido Lusitano, sob o pseudônimo de Francisco José Freire, que traduziu as Metamorfoses de Ovídio, omitindo as passagens consideradas obscenas (tal omissão, porém, é suprida pela tradução de Predebon). O quinto livro da obra foi traduzido por M. M de Paula e Silva (2008), em seu estudo de Mestrado. Há ainda uma tradução do livro I ao V da épica ovidiana feita pelo Prof. Dr. Raimundo N. B. de Carvalho que pode ser acessada em: http://www.usp.br/verve/coordenadores/raimundocarvalho/rascunhos/metamorfosesovidio- raimundocarvalho.pdf.

20 dialoguem com o texto ovidiano, quanto para comentários dos efeitos estilísticos, aspectos que podem proporcionar um conhecimento mais próximo do modus operandi do autor. Além de ter como intuito ampliar o repertório de excertos das Metamorfoses disponíveis em português, a tradução, em seu processo, nos serviu como um caminho para o estudo dos recursos poéticos do texto. Diversas vezes o texto latino ovidiano abriga, simultaneamente, mais de um sentido importante para a compreensão de sua poesia, e a tendência, segundo o que se observa, é simplificar tal polissemia nas traduções. Nossa tradução não se pretende poética, mas tentamos, sobretudo, atentar, sempre que possível, para a importância daquilo que H. de Campos denomina “informação estética” do texto poético.15 Em tempo: a tradução tem como base, salvo outra indicação, o texto latino editado por Georges Lafaye, publicado pela Belles Lettres (pela primeira vez em 1925; consultado e transcrito a partir da décima edição, 1999). Ele será confrontado com outras edições. Muito úteis são os comentários, acompanhados de tradução, de D. E. Hill, publicados pela Aris&Phillips (1999), bem como, quanto aos livros I e II, a edição aos cuidados de A. Barchiesi (2005), publicada pela Fundazione Lorenzo Valla/Arnoldo Mondadori Editore (texto latino embasado no oxfordiano de R. Tarrant, com tradução de Ludovica Koch). Quanto aos livros III e IV, utilizamo-nos também da edição traduzida por L. Koch e editada e comentada por G. Rosati e A. Barchiesi, em 2007.16 Consultamos em alguns casos, também, sobretudo para a pesquisa de fontes, o erudito comentário de F. Bömer.17 Para as notas, também, procuramos apontar informações (colhidas sobretudo a partir de obras de referência)18 a respeito dos mitos e nomes míticos mencionados. As notas procuram assinalar ainda, em alguns casos, outros textos antigos que contemplam os mitos tratados nas passagens e, quando possível, a relação que a versão ovidiana com eles

15 A informação estética, presente no texto literário, transcenderia, para o autor, a informação referencial. Por exemplo, há de se levar em conta a imprevisibilidade, a surpresa, a improbabilidade da ordenação de signos: seria a informação transmitida pelo que é literário no texto, e que não se pode decodificar. Configura, portanto, a tradução como uma crítica ao texto, e não como uma versão, ipsis litteris, do texto original em outra língua. Cf. H. de Campos (1970, p. 32). 16 A. Barchiesi e G. Rosati (trad. e com.), L. Koch (trad.), Ovidio, Metamorfosi, vol. II: libri III–IV, 2007. 17 F.Bömer (trad. e com.), P. Ovidius Naso, Metamorphosen, 1976. 18 Muito útil é, por exemplo, a indicação de textos antigos disponibilizada em P. Grimal, Dicionário da mitologia Grega e Romana, 2000. Para referência completa e outras obras consultadas, ver Referências Bibliográficas deste estudo.

21 apresenta. Para a versão em português dos antropônimos, teônimos e topônimos latinos, consultamos, principalmente, o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Academia de Lisboa (1940) e outras obras que constam das Referências Bibliográficas.

22 1 Introdução

Quis enim bene celat amorem? (Heroides, Ep. XII 37)19

Ao percorrer a obra do poeta romano Públio Ovídio Naso (43 a. C – 17 / 18 d. C.), é impossível deixar de notar a presença de Vênus (Venus em latim), quer da deusa propriamente dita – originalmente uma divindade itálica protetora dos campos, assimilada à deusa grega do amor, Afrodite, apenas no século II a. C.20 – quer do sentimento amoroso, seu atributo. Não é, em verdade, de se estranhar o fato de haver muitas referências à deusa do amor na elegia ovidiana: além do erotismo nos poemas dos Amores (Amores),21 o leitor ovidiano conta com a Arte de Amar (Ars amatoria ou Ars amandi),22 Os Remédios do amor (Remedia Amoris)23 e ainda os Cosméticos para o rosto da mulher (Medicamina Faciei Feminae),24 que formam o amplo ciclo de obras de caráter erótico-didático25 de nosso autor. No entanto, ainda quando observadas as obras ovidianas que compartilham um mesmo gênero (como por exemplo, a produção didática do poeta), a representação quer do amor, quer do modo como a persona do vate o considera não é uniforme. Por exemplo, já

19 “Quem bem esconde o amor?”, tradução nossa ao verso da epístola poética de Medeia a Jasão, o qual se tornou proverbial. 20 Conforme P. Grimal (2000), no verbete “Afrodite”, a deusa era considerada como filha de Zeus (Júpiter) e Dione, ou, ainda, como filha de Urano (Saturno), cujos órgãos sexuais teriam sido cortados por Cronos e jogados no mar, engendrando a deusa. Em torno do nume, vários mitos se formaram, dentre eles um episódio, que tratamos no capítulo 3 desta dissertação, no qual Vênus trai seu cônjuge Vulcano, unindo-se a Marte e concebendo Eros (Amor, em latim). 21 1 d. C., cf. G. B. Conte, Latin Literature – A history, 1994, p. 340; cf. ainda L. A. de Bem, O Amor e a Guerra no livro I d‟ Os Amores de Ovídio, Dissertação de Mestrado, Campinas, 2007, p. 17. 22 1 a. C/ 1 d. C (?), cf. G. B. Conte, (1994, p. 341); cf. ainda M. C. Howatson (ed.), The Oxford companion to Classical Literature (a que, daqui por diante, nos referimos como OCCL) 1989, p. 401, verbete “Ovid”; CHCL, p. 421. 23 Por volta de 1 a. C. - 1 d. C, cf. G. B. Conte (1994, p. 341). 24 Também por volta 1 a. C. - 1d. C., cf. G. B. Conte, (1994, p. 341). 25 Cf. M. Trevizam, (1994, p. 161 ss.), para uma discussão sobre o gênero didático dentro da poesia elegíaca. Cf ainda A. Schiesaro, “Ovid and the professional discourses of scolarship, religion, rhetoric”, in: P. Hardie (ed.), The Cambridge companion to Ovid, 2002, p. 62 – 75; A. Sharrock, “Gender and sexuality”, in: The Cambridge companion to Ovid, 2002, p. 95 – 107.

23 se apontou26 em Ars amatoria um tratamento intelectualmente mais “objetivo” conferido ao amor, a saber, uma visão irônica e alegadamente imparcial de tal sentimento, a qual diferiria da posição do poeta como protagonista nas aventuras amorosas das elegias de Amores. Ora, o contraste é ainda maior entre a Ars amatoria e os Remedia Amoris, visto que, em cada um dos referidos poemas, a relação dos seres humanos com o amor é, ao menos alegadamente, apresentada de modos opostos: na primeira, como objeto de uma “arte”;27 na outra – na esteira da tradição elegíaca – como um mal, uma doença que deve ser curada.28 Evidenciam o contraste entre os dois referidos aspectos do sentimento amoroso apresentados nas duas obras (de um lado, objeto da arte da sedução; de outro, doença, objeto da ars da medicina) já os primeiros versos do poema Remedia Amoris. No segundo verso, expressa-se uma suposta reação do deus do Amor (Amor, em latim; cf. Rem. 1) ao título do livro:

Bella mihi, uideo, bella parantur (Rem. 2)

“São guerras – estou vendo – são guerras que se preparam contra mim.”29

O fato de que a obra Remedia Amoris dialoga com a Ars Amatoria fica expresso, por exemplo, nos versos que expressam uma contrapartida àquela arte ensinada em poema anterior, escrito pela mesma e única mão (una manus, Rem. 44):

26 Cf. M. Trevizam (2003, p. 201). 27 Sua forma didática, segundo M. Trevizam (2003, p. 74), possui uma “intenção parodística”, haja vista, por exemplo, que Ovídio intitula sua obra da mesma maneira que o faziam outros autores da Antiguidade em seus poemas didáticos sobre temas mais concretos, ou mais sérios. Como fontes do modelo didático, suas formas e esquemas de composição, Trevizam lembra a obra de Lucrécio (De rerum natura) e as Geórgicas de Virgílio. 28 É um lugar-comum na poesia elegíaca a posição do amante como um condenado pela incurável doença do amor, como se vê, por exemplo, em Catulo, especialmente no poema 76, em que renunciar ao amor (deponere amorem, v. 13) equivale a “renunciar a uma doença” (deponere morbum, v. 25). Cf. J. A. Oliva Neto (trad.), O livro de Catulo, 1996, p. 241. O tema será tratado com mais vagar no capítulo 3 deste estudo. 29 Como apontamos, salvo outra indicação, a tradução de Os Remédios do Amor aqui transcrita é de Antônio da Silveira Mendonça (1994).

24 Ad mea, decepti iuuenes, praecepta uenite, Quos suus ex omni parte fefellit amor. Discite sanari, per quem didicistis amare; Vna manus uobis uulnus opemque feret. (Rem. 41-4, grifo nosso).

“Vinde às minhas aulas, jovens iludidos, a quem o vosso amor trouxe toda sorte de engano. Aprendei a vos curar com quem aprendestes a amar; uma única mão vos trará a ferida e o socorro.”30

No texto de Remedia, o vate procurará negar sua hostilidade: ele não lutaria contra o amor propriamente dito.31 De fato, em uma observação mais cuidadosa, podemos notar que Ovídio constrói em seu texto um discurso que se propõe a remediar, não qualquer amor, mas aquele que ensinara em seu poema didático anterior, como anunciado nos primeiros versos de Ars Amatoria:

Siquis in hoc artem populo non nouit amandi, Hoc legat et lecto carmine doctus amet. (Ars I 1-2, grifo nosso).

30 Interessante será notar que aqui há uma lógica argumentativa semelhante a que encontramos em poema escrito mais tarde, quando nele Ovídio se refere ao mito de Télefo: Namque ea uel nemo uel qui mihi uulnera fecit,/ Solus Achilleo tollere more potest – “Pois esses, ou ninguém ou somente aquele que me feriu/ Como Aquiles pode me curar”. (Tristes I I 99-100, grifo nosso). A referência é apontada por A. S. Mendonça em nota ad. loc. (1994, p. 27). As traduções dos Tristia aqui mencionadas são da estudiosa Patricia Prata (“O caráter intertextual dos Tristes de Ovídio: uma leitura dos elementos épicos virgilianos, Tese de Doutorado, Campinas, 2007). Cf. ainda Forsitan, ut quondam Teuthrantia regna tenenti,/ Sic mihi res eadem uulnus opemque feret – “Talvez como outrora o que regia o reino de Teutrante, / Assim a mesma coisa me trará a ferida e a cura” (Tristes II 19-20). A alusão épica (Tristia I 99-100) com que Ovídio compara Augusto a Aquiles em suas Tristes é discutida por P. Prata (2007, p. 80), que ainda indica outros poemas da mesma obra ovidiana em que há a analogia: II 1 19-20, V 2 15-8 e, indiretamente, em III 5 21-2. 31 Nec te, blande puer, nec nostras prodimus artes/ Nec noua praeteritum Musa retexit opus. – “E não traímos a ti, meiga criança, nem à nossa arte, e uma nova Musa não anulou a obra precedente.” (Rem. 11-2).

25 “Se alguém deste povo não conhece a arte de amar, leia este poema e, lendo-o, ame instruído.”32

Além da analogia entre as personae do leitor (discípulo, aspirante a douto) e do vate (preceptor quanto aos assuntos amorosos), as duas obras compartilham de referências à periculosidade das relações amorosas. Vemos, por exemplo, na Ars:

Quo me fixit Amor, quo me uiolentius ussit, Hoc melior facti uulneris ultor ero (Ars I 23-4, grifo nosso).

“Quanto mais me trespassou o Amor, quão mais violentamente abrasou-me, tanto melhor vingador da chaga sofrida serei”.

As passagens acima ainda revelam mais um indício de que a relação entre as duas obras é marcada no texto: com o exemplo de uulnus, temos, além da correspondência lexical entre as obras ovidianas, a qual nos remete ao amor como milícia ou, em outras palavras, serve à alusão épica em gênero elegíaco,33 (cf., por exemplo, em Rem. 44 e Ars I 24), também a imagem do amor como uma ferida ou chaga (uulnus) em uma e outra obra. Ou seja, embora tal concepção assuma papel mais central no tema de Remedia, vemos que ela já era presente na Ars amatoria. Uma comparação entre Ars e Remedia não será objeto central do atual estudo (mais focado em comparar Vênus em Remedia e em obra posterior, as Metamorfoses), mas nos chama a atenção, ainda, que no começo de Ars haja referência a Vênus como a divindade que atribuiria ao eu poético a faculdade de ser um artifex (“artífice” ou, na tradução de Trevizam, “preceptor” do amor): eis um primeiro indício da presença da deusa nessa obra ovidiana, já no momento em que caracteriza o poema como uma obra do gênero didático:

Me Venus artificem tenero praefecit Amori (Ars I 7).

32 Salvo outra indicação, a tradução de A arte de amar aqui transcrita é de Matheus Trevizam (2003). A tradução acima citada consta da p. 207. 33 A estudiosa Lucy Ana de Bem (2007, p. 65 ss.) analisa em sua dissertação de mestrado a relação entre o amor e a guerra, entre o gênero elegíaco e a épica em Ovídio e traz à discussão os poemas de Amores que abordam tal relação, por exemplo, I 9, I 5 e I 7.

26

“A mim, Vênus designou preceptor do tenro amor”.

Quanto a Remedia Amoris, veremos com mais detalhes as referências a Vênus no capítulo seguinte deste estudo. Por ora, cabe reiterar que o sujeito enunciador dos primeiros versos é o Amor personificado (Eros na mitologia grega, e também chamado Cupido na romana), o filho de Vênus. Na versão do mito adotada por Ovídio, ele é representado como um menino alado34 que atiraria flechas a fim de fazer as criaturas se apaixonarem. Sendo assim, também já no primeiro verso de Remedia, é possível notar a presença da deusa do amor por meio de seu descendente. A pergunta “retórica” que nos serve de epígrafe (“Quem bem esconde o amor?”), atribuída por Ovídio a Medeia em suas Heroides, pode ser direcionada, portanto, à própria poesia ovidiana: nem sequer a variação de tratamento que o poeta confere ao amor nas distintas obras consegue ocultar o fato de que esse continua sendo um tema central de sua produção poética.35 Observando a tradição didascálica em que se insere Ovídio para produzir Remedia, não deixou de surpreender a associação entre a postura adequada a persona do vate didático (magister) e seu objeto, o amor. Vale lembrar que já se apontou, por exemplo, além de um efeito jocoso do tom do magister em contraste com o ensinamento da arte do amor (como destacado por estudiosos como M. Trevizam,36 M. Gale37 e A. Schiesaro38), também o estranhamento causado pela escolha de tal tema para uma obra didática, se o confrontarmos com outros poetas romanos de produção poética associada a tal gênero, como por exemplo, a filosofia epicurista ministrada no poema de Lucrécio ou as técnicas agropecuárias nas Geórgicas de Virgílio.39

34 Sobre a caracterização do Cupido, cf. A. S. Mendonça (1994, p. 23, nota 1) e P. Grimal (2000, verbete “Eros”). 35 A. Schiesaro (2002, p. 62 – 75). 36 M. Trevizam (2003, p. 69 e 90 – 91). 37 M. Gale, Lucretius and the Didactic Epic, 2001, p. 110. 38 A. Schiesaro (2002, p. 62 – 63). 39 Sobre a composição do poema das Geórgicas, em contraste com outras obras que preceituam sobre a técnica agropecuária, cf. por exemplo, Trevizam (2006).

27 Surpreende, ainda, que também as Metamorfoses, obra que trata em ritmo épico40 da transformação de tantos deuses e heróis da mitologia greco-romana, venham marcadas por uma, muitas vezes inusitada, singular atuação da deusa do amor. Como mais recentemente se tem ressaltado, a presença ativa de Vênus nas narrativas das Metamorfoses se evidencia quando se coteja a versão de episódios mitológicos dessa obra com as encontráveis quer em outros autores antigos, quer em outras obras do próprio Ovídio.41 Evidentemente, tal cotejo se beneficia dos resultados da pesquisa de fontes (“Quellenforschung”)42 realizada em séculos precedentes, sobretudo quando abordadas à luz de estudos intertextuais, os quais, como é notório, são em muito responsáveis pela revalorização da poesia de Ovídio no século XX.43 Talvez uma das razões pelas quais uma abordagem intertextual44 pode se revelar profícua para as obras de nosso poeta seja mesmo o fato de que, como assevera P. Hardie,45 ele é o poeta romano que mais cita a si mesmo, que mais “se reescreve”, consecutivamente. Nesse sentido, para citar apenas alguns estudos recentes em relação à reescritura dos mitos, já se apontou, por exemplo, além da já mencionada semelhança temática entre os episódios de Prosérpina desenvolvidos mais extensamente em Fastos (2 d. C – 8 d. C.) e

40 Para uma discussão, com bibliografia complementar, sobre o caráter épico nas Metamorfoses, ver nota 2 supra. 41 Sobre a atuação de Vênus em Metamorfoses, cf. A. Barchiesi “Venus‟ Masterplot: Ovid and the Homeric Hymns”, in: Ovidian Transformations – Essays on the Metamorphoses and its reception, 1999, p. 112-26, que evidencia esse aspecto no contraste entre duas versões ovidianas do episódio do mito de Prosérpina em Metamorfoses V e Fastos IV. Sobre o assunto, cf. P. Hinds (2002, p. 122-49) e M. M. P. Silva (2008, p. 67). 42 Nesse aspecto, quanto às Metamorfoses, foi-nos útil a edição comentada de Bömer (P. Ovidius Naso. Metamorphosen. Kommentar von Franz Bömer, Heidelberg, 1976) que reúne em grande parte resultados das pesquisas de fontes sobre a obra ovidiana. 43 Quanto à tendência metodológica da intertextualidade nas pesquisas ovidianas do final do século XX, cf. S. Myers (1999, p. 190-204). 44 Inclui-se aqui a categoria denominada por Genette de “intratextual”, que seria, conforme resume P. de Vasconcellos (2001) a evocação de passagens da própria obra, do próprio texto em que se insere tal alusão: “Nesta parte de nossa pesquisa, preferimos adotar o termo mais abrangente de intratextualidade, concebida como a evocação, no curso de uma obra, de passagens da mesma obra: alusão interna, portanto (...)”, P. S. de Vasconcellos (2001, p. 130). Há ainda a “autotextualidade”, definida pelo mesmo autor como uma outra categorização da “autocitação”, ou seja, da evocação de uma passagem de outra obra do mesmo autor: “Outro tipo de intertextualidade consiste na autocitação, isto é, na evocação, em dada obra, de uma passagem de outra obra do mesmo autor; ainda que tal denominação não seja ideal, poderíamos chamá-la autotextualidade”, P. S. de Vasconcellos (2001, p. 148, grifos do autor); cf. ainda G. Genette, Narrative Discourse: an essay in method, 1983. 45 P. Hardie, “Introduction”, in: P. Hardie (ed.) (2002, p. 1-10).

28 Metamorfoses, algumas referências em Tristia II (como, por exemplo, no verso 105)46 ao mito de Actéon (que são efetivamente alusões à versão do mito) apresentado no livro III das Metamorfoses.47 Durante nossa pesquisa, observamos, tanto na Ars amatoria quanto nos Remedia Amoris, um uso do mito predominantemente como exemplum,48 uma “ferramenta discursiva”.49 No caso de Remedia, como o conjunto de mitos aqui tratados deixará mais claro, Ovídio privilegia personagens de desastrosas histórias de amor, as quais não teriam ocorrido se, por absurdo, tivesse havido a interferência do poeta. Veja-se, por exemplo, o modo como o vate “professor” se expressa sobre o mito que gerou nada menos do que as epopeias homéricas:

Redde50 Parin nobis; Helenen Menelaus habebit Nec manibus Danais Pergama uicta cadent (Rem. 65 – 66).

“Entrega-me Páris; Menelau manterá Helena, e Pérgamo não cairá vencida nas mãos dos dânaos.”51

46 Inscius Actaeon uidit sine ueste Dianam: / Praeda fuit canibus non minus ille suis – “Actéon viu sem querer Diana despida: / Nem por isso deixou de ser presa para seus próprios cães”. (Tristia II 150-1; trad. de P. Prata, 2007, p. 195). 47 Quanto ao episódio de Actéon em Tristia II, cf., por exemplo, Hill (1992, p. 175); e, tratando da leitura lacaniana do episódio, I. T. Cardoso (2005). 48 F. Graf, “Myth in Ovid” (2002, p. 108-21). 49 Emprestamos a expressão de Graf (“discursive tool”, 2002, p. 112). Segundo Graf, as narrativas míticas utilizavam-se de uma conhecida linguagem com a qual se falava sobre relacionamentos e experiências humanas. O mito como exemplum, lembra ele, era usado em gêneros de discurso e de poesia que tinham a persuasão como um de seus maiores “objetivos retóricos” (“rethorical aims”, 2002, p. 112), e se organizava dentro de um universo linguístico (lexical e temático) à parte. Ainda sobre o mito usado como exemplum na obra de Ovídio, cf. A. N. Michalopoulos, “Ovid's mythological “exempla” in his advice on amatory correspondence in the Ars amatoria and the Remedia amoris”, in: Sandalion, 2000, p. 23-25. 50 Atente-se para a divergência quanto na edição do texto da passagem: temos redde na empregada por A. S. Mendonça (1994). Porém no texto latino da edição publicada pela Loeb (J. H. Mozley (trad.), J. Henderson (ed.), G. P. Goold (intr. e rev.), Ovid: The art of love and other poems, 2004), encontramos o verbo crede (e a tradução ficaria “confia-nos Páris...”). 51 Como veremos em seção posterior, essa redução da epopeia ao episódio amoroso de Helena volta a aparecer (não necessariamente desprovida de caráter irônico) em Tristia II 371. O contexto dos versos é argumentar, junto a Augusto, em defesa das alegadas acusações quanto à falta de decoro da poesia amorosa ovidiana. Para uma leitura que questiona a ironia da passagem, cf. R. Tarrant, “Ovid and ancient literary history”, in: P. Hardie (ed.) (2002, p. 10).

29 Contudo, a presença de Vênus nos Remedia não se reduz aos exempla. Há ainda, além da menção dos mitos (exemplum), o uso metonímico da palavra Venus/uenus – o qual, inclusive, às vezes salta aos olhos quando notamos certa variação na grafia do termo (como minúscula ou maiúscula)52 nas edições modernas.53 O mito de Vênus como exemplum e como metonímia também ocorre em Metamorfoses. Ali, no entanto, sabemos que o emprego do mito consiste antes de tudo no cerne de um poema que tematiza episódios mitológicos específicos: os que envolvem transformações de corpos,54 Dessa forma, Vênus se apresenta aqui, a princípio, como uma das personagens mitológicas da longa narrativa (perpetuum... carmen, Met. I 4),55 ou, conforme já se sugeriu, como uma personagem especial da épica de Ovídio. Por ora vale constatar que, tal como mencionado, apesar de ser marcante (e mais recentemente reconhecida) a presença de Vênus na obra ovidiana em geral, não há, ao que saibamos, estudo sistemático mais específico sobre a consistência da representação da deusa nas diversas obras do poeta. Portanto, a falta de uma pesquisa que relacione de forma mais abrangente o modo como Ovídio retoma ou “reescreve” o papel da deusa do amor em sua poesia motivou a observação de sua presença quando da referência a determinados

52 Na transcrição das passagens selecionadas como corpus da pesquisa, seguiremos o texto latino da edição de Georges Lafaye, Les Metamorphoses, 2000, da editora Belles Lettres. Indicaremos, no entanto, as eventuais divergências em algumas passagens das edições consultadas, como por exemplo, em X 434 (perque nouem noctes venerem tactusque uiriles...), apenas D.E. Hill (1999, p. 60), grafa o verbete com maiúscula; nas edições da Loeb e da Belles Lettres, porém, encontramos o verbete grafado com minúscula. Cf. Texts and Transmissions: A survey of the Latin Classics, L. D. Reynolds (ed.). Claredon Press: Oxford, 1983. 53 Como nos adverte M. L. West em seu livro sobre crítica textual e edições de textos da Antiguidade grego-romana: "Nos livros antigos, os nomes próprios não eram diferenciados, e mal havia divisão de palavras". Por isso, assim como elementos esporádicos, tais quais a pontuação e sinais diacríticos: "todos esses aspectos da tradição representarão a interpretação que alguém fez posteriormente de um texto que não consiste virtualmente em nenhuma outra coisa senão numa sequência contínua de letras" (West, 2002, p. 66). 54 In noua fert animus mutatas dicere formas/ Corpora; di, coeptis, nam uos mutastis et illas,/ Adspirate meis primaque ab origine mundi/ ad mea perpetuum deducite tempora carmen (Met. I 1- 4). Desses polêmicos versos, uma das traduções (e interpretações) possíveis da passagem é a de Francisco José Freire (in: A. A. Predebon, Edição do manuscrito e estudo das Metamorfoses de Ovídio traduzidas por Francisco José Freire, Dissertação de Mestrado, São Paulo, 2006, p. 74): “Em novos corpos as mudadas formas/ Cantar desejo: Vós, ó divindades/ que a mudança fizestes, meus intentos, começai a ajudar, guiai meus versos.” 55 Para as diversas interpretações que a expressão perpetuum... carmen (Met. I 4) tem recebido nos estudos clássicos, cf. A. Barchiesi (2005, p. 135).

30 mitos nas obras Remedia e de Metamorfoses.56 Até que ponto tal reescrita se reflete em imagens de Vênus nas distintas obras da carreira poética de Ovídio é uma questão que move esta investigação. Nosso presente estudo está longe de pretender suprir tal lacuna nas pesquisas ovidianas; mas visa contribuir para uma reflexão nesse sentido, tomando como ponto de partida o amor como doença em alguns episódios desenvolvidos nas Metamorfoses e referidos em Remedia. Apesar de ser hoje notória, nos estudos ovidianos, a presença da deusa do amor na obra de Ovídio, desconhecemos algum que trate mais diretamente da questão que nos interessa quanto à imagem da deusa do amor nos Remedia e nas Metamorfoses: ali se retrataria predominantemente a Vênus de Ars Amatoria ou a de Remedia Amoris? O amor como arte, ou como enfermidade? A fim de contribuir para uma resposta a tal questão, nosso recorte privilegia a segunda opção envolvida em nossa pergunta: até que ponto se pode ver em Metamorfoses a Vênus de Remedia Amoris? Dessa forma, episódios relacionados à Vênus em Ars Amatoria serão por nós abordados apenas à medida que contribuir para compreender melhor a relação entre Metamorfoses e Remedia que enfocamos. Para avaliar se e como a Vênus de Remedia Amoris se mostra em Metamorfoses, um primeiro passo foi estabelecer um levantamento das menções ao termo Venus/uenus naquela obra didática, observando a cada ocorrência se haveria referência (ainda que alusiva) a um episódio mitológico. Nossa leitura de Vênus em Os Remédios do amor apresentada no Capítulo 1 do presente estudo, detalha o processo de pesquisa e interpretação da presença de termos referentes a Vênus no referido texto e discute a relação entre amor e doença, claramente expressa no título do poema. Dessa forma, no capítulo primeiro do presente estudo, descreve-se a obra Remedia Amoris com destaque aos verbetes presentes no texto latino que aludam à relação entre o amor ora como doença, ora como uma técnica a ser ensinada. Em seguida, passamos à leitura das referências a Venus/uenus nas Metamorfoses, atentando, sobretudo, aos mitos relativos àqueles episódios referidos ou aludidos em

56 Nosso levantamento se baseia em L´année philologique disponível como base de dados (acessado em 28 de julho de 2010), bem como em acesso ao banco de dados disponível no Muse Project (acessado em 06 de agosto de 2010) e Jstor (acessado em 28 de julho de 2010).

31 Remedia. Nossa apreciação da presença de Vênus em Metamorfoses se apresenta no Capítulo 2. As narrativas de tais mitos associáveis a Vênus presentes em Remedia foram observadas, por sua vez, nas Metamorfoses, em passagens que constituem o corpus central de nosso estudo, a saber: IV 167-181, X 298-739, XIV 441-608. Tais passagens (um total de 622 versos, número que corresponde praticamente a um dos menores livros das Metamorfoses)57 foram traduzidas e anotadas a fim de que se possa apreciar melhor a análise que se dá no Capítulo 3 do estudo. Nele, procura-se sobretudo apreciar as características do amor ali associadas a Vênus, e verificar em que medida corresponderiam ao amor tematizado em Remedia Amoris. As considerações finais deste estudo introdutório tratarão de destacar os mitos selecionados e a forma como são relevantes para a contemplação das várias faces de Vênus nas obras ovidianas.

57 Os livros das Metamorfoses têm, respectivamente: livro I, 779 versos; livro II, 875 versos; livro III,733 versos; livro IV, 803 versos; livro V, 678 versos; livro VI, 721 versos; livro VII, 865 versos; livro VIII, 884 versos; livro IX, 797 versos; livro X, 739 versos; livro XI, 795 versos; livro XII, 628 versos; livro XIII, 968 versos; livro XIV, 851 versos; livro XV, 879 versos.

32 2 Vênus nos Remedia Amoris

2.1 Os Remedia Amoris e o amor como doença

Denique composui teneros non solus amores: Composito poenas solus amore dedi. Quid nisi cum multo Venerem confundere uino Praecepit lyrici Teia Musa senis? Lesbia quid docuit Sappho nisi amare puellas? Tuta tamen Sappho, tutus et ille fuit. Nec tibi, Battiade, nocuit quod saepe legenti Delicias uersu fassus es ipse tuas. (Tristia II 361-9).58

No excerto citado na epígrafe deste capítulo, o poeta Ovídio alude a autores de sua era que trataram da temática amorosa, tal qual ele próprio o fizera; mas, ao contrário dele, conforme alega, nenhum deles teria sido punido por esse motivo (Tristes II 362).59 Dentre os ditos autores, estão os poetas gregos Anacreonte (Trist. II 364), Safo (Trist. II 365) e Calímaco (Trist. II 367); para além do trecho que aqui citamos, ainda no mesmo poema também são referidos outros que escreveram sobre o amor, fossem suas obras comédias como as de Menandro (Trist. II 369) ou as épicas de Homero: a Ilíada (Trist. II 371) ou a Odisseia (Trist. II 375). Ao prosseguir em sua epístola poética, Ovídio destacará, nesse âmbito (Trist. II 377-8), a narrativa que é feita na Odisseia sobre a vergonha de Marte e Vênus flagrados em pleno ato adúltero: mas – e aí se nota a ironia – seu leitor sabe que o próprio Ovídio também realiza tal narrativa nas Metamorfoses (IV 167-89), episódio mitológico sobre o qual voltaremos a discutir adiante neste estudo.

58 “Então, não fui o único a escrever ternos amores:/ Mas só eu fui punido por escrever sobre o amor. / Que, senão juntar os prazeres de Vênus a muito vinho, / Ensina a Musa do lírico ancião de Teos?/ Que ensinou a lésbia Safo, senão a amar as moças?/ A salvo, contudo, ficou Safo, a salvo também aquele./ Nem a ti, filho de Bato, prejudicou o que amiúde ao leitor / Tu mesmo confessaste em verso: teus amores”. Trad. de Patricia Prata (2007, p. 215). Para uma discussão da ironia na passagem em que Ovídio alegadamente condenaria os que teriam ensinado assuntos triviais (como se não fosse ele mesmo autor de, por exemplo, Medicamina Faciei!), cf. R. Tarrant, “Ovid and ancient literary history” (2002, p. 19) e P. Hardie. “Ovid and early imperial literature” (2002, p. 36- 7). 59 Ovídio afirma, nesse mesmo poema, que seus versos foram a causa de seu castigo (cf., por exemplo, Tristia II 1-10).

33 As passagens de Tristia II aqui evocadas apontam ironicamente para um suposto estranhamento da escolha do amor como tema para a poesia didática em geral – haja vista os assuntos mais sérios das mais famosas obras nesse gênero, como, por exemplo – para nos restringirmos à poesia latina – a filosofia epicurista de Lucrécio (c. 99-c. 55 a. C) e as técnicas de agricultura e pecuária das Geórgicas de Virgílio (30 a. C).60 Mas, no mesmo poema dos Tristes, tal estranhamento é logo em seguida relativizado pela afirmação da presença (conforme a visão poética que ali propõe Ovídio) do tema amoroso nos gêneros mais diversos (Trist. II 371-82). De toda forma, estranhe-se ou não, Ovídio se apresentara – conforme ele mesmo, em outra obra, alega que Safo fora (docuit Sapho... amare, Trist. II 365) – um preceptor em assuntos do amor, tanto em Ars Amatoria61 quanto em Remedia Amoris; e é sobre o seguinte tipo de amor que se vai tratar mais especificamente em Remedia: aquele que caracteriza tal pathos como doença. Ora, em suas diferentes conotações,62 o amor é arrolado entre as emoções, e é categorizado como uma pathos, palavra grega que designa, entre outros sentidos, „paixão‟,63 no sentido de „emoção‟64 (de certo modo equivalente a palavras como affectus65

60 Sobre poesia didática em latim, cf. Gale (2001); sobre poesia didática em Ovídio, cf. Schiesaro (2002). 61 Sobre a matriz didática da poesia erótica ovidiana, cf. Trevizam (2003). 62 Veja-se, por exemplo, na quarta seção do segundo livro da Retórica de Aristóteles, livro este em que se abordam as paixões: mas ali se trata não de eros, amor erótico, e sim de philia, termo mais amplo para designar o sentimento de estima, cf. Konstan (2007, p. 169), que, apontando o pressuposto de reciprocidade nesse tipo de amor considerado na retórica (philia), reitera a diferença: “Retornando a definição de amar ou to philein, está claro que ela representa um sentimento aultrísta ou generoso em relação ao outro (desejando o melhor para o bem da pessoa), o que inclui o desejo ou a intenção de prover ao outro aquilo que ele ou ela valoriza” – “Returning to the definition of loving or to philein it is clear that it represents an altruistic or generous sentiment in regard to another (wishing the good for that person´s sake) that includes the desire or intention to provide the other with what she or he values” (Konstan, 2007, p. 175-176). 63 “A própria pathos está relacionada ao verbo paskhô, „sofrer‟ ou „experienciar‟, e mais distante do Latim patior, da qual são derivadas as palavras em Inglês „passion‟ [paixão] e „passsive‟ [passive] – “Pathos itself is related to the verb paskhô, „suffer‟ or „experience‟, and more distantly to the Latin patior, from which are derived both the English „passion‟ and „passive‟”, explica Konstan (2007, p. 3), lembrando que em grego antigo o pathos designa mais propriamente “o que acontece a uma pessoa, frequentemente no sentido negativo de um acidente ou infortúnio, ainda que possa carregar o significado neutro de uma condição ou conjuntura.” –“what befalls a person, often in the negative sense of an accident or misfortune, although it may also bear the neutral significance of a condition or state of affairs.” 64 Cf. verbete „pathos‟ no dicionário de grego de Liddell&Scott, sentido 2, II. Sobre a compreensão de pathos como “emoção”, Konstan (2007, p. 4) pondera: “O sentido específico de

34 e motus,66 em latim).67 A palavra também grega pathologia tem como significado, portanto, „o estudo das emoções‟,68 em que é possível constatar uma relação semântica com pathos, tendo assumido em línguas modernas o sentido: „qualquer desvio anatômico e/ou fisiológico, em relação à normalidade, que constitua uma doença ou caracterize determinada doença‟.69 Levando-se em conta o nexo semântico e etimológico da palavra „paixão‟ é notável, portanto, uma relação potencial entre qualquer sentimento e uma alteração do estado psíquico, que pode ser vista, em última análise, como uma perturbação da saúde, isto é, uma doença. Assim, o interesse neste capítulo é observar a ocorrência da representação do amor como uma doença (i.e., no sentido moderno do termo „patologia‟) na poesia greco- romana,70 particularmente em Ovídio.

„emoção‟ é em parte condicionado por esta penumbra de conotações: uma vez que pathos é uma reação a um evento ou circunstância impactante, ela se volta para o estímulo externo a que responde” – “The specific sense of „emotion‟ is in part conditioned by this penumbra of connotations: insofar as pathos is a reaction to an impinging event or circumstance, it looks to the outside stimulous to which it responds.” 65 O substantivo affectus designa tanto aquilo que afeta a mente (“um estado ou reação mental ou emocional (esp. temporária), estado de espírito, humor, sentimento, emoção” – “a mental or emotional state or reaction (esp. temporary), frame of mind, mood, feeling, emotion”, Oxford Latin Dictionary (a que referiremos, daqui em diante neste texto, apenas pela abreviatura OLD), sentido 1), ou mesmo algo que afete o corpo (“estado ou condição física, esp. patológica” – “physical state or condition, esp. pathological”, OLD sentido 2). 66 Cf. verbete motus, OLD, sentido 10: “um estado mental desequilibrado, paixão, emoção” – “a disturbed state of mind, passion, emotion”. 67 Sobre pathê e o que modernamente se entende por “emoções”, cf. Konstan (2007, p. 4): “Entre as pathê, os Gregos incluíram um conjunto de termos que são normalmente traduzidos para o Inglês por equivalentes padrões como „anger‟ [raiva], „fear‟ [medo], „love‟ [amor], „pity‟ [pena], „indignation‟ [indignação], „envy‟ [inveja] e assim por diante.” – “Among the pathê, the Greeks included a set of terms that are normally rendered into English by standart equivalents such as „anger‟, „fear‟, „love‟, „pity‟, „indignation‟, „envy‟ and so forth.” 68 Cf. verbete pathologia no dicionário de grego de Liddell&Scott (sentido único). 69 Cf. A. Houaiss, Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2008, verbete „patologia‟, sentido 2; Konstan (2007, p. 3). 70 Em sua tese de doutorado sobre o motivo da doença na elegia romana (Das Krankheitmotiv in der römischen Elegie, Diss. Universität Koln, 1967), E. Holzenthal analisa os seguintes poemas (enumerados em seu sumário, p. 5 do referido estudo): Tibulo I, 3 e I,5; Corp. Tib. III 5; Corp. Tib. IV 11, Propércio I, 15; II, 9 e 28; Ovídio, Amores II, 13; Ars amatoria II 315-36; Heroides XX e XXI; Tristia III 3 e 8, IV 6; V 2 e 13; Epistulae ex Ponto I 3 e I 10; Pseudo Tibulo IV 4. Interessante é notar que o autor não trata do poema Remedia Amoris. Tais poemas foram analisados com intuito de incluí-los neste estudo, mas se constatou que não são tão centralmente relacionados ao nosso interesse: embora tratem da temática da enfermidade, eles, todavia, não chegam a relacionar a ela o amor de maneira mais direta.

35 A descrição do amor como uma emoção conflituosa, causadora dos mais diversos "sintomas", já nitidamente se apresenta no seguinte poema de Safo (nascida c. 630 a. C):71

Parece-me ser igual dos deuses Aquele homem que, à tua frente Sentado, tua voz deliciosa, de perto, Escuta, inclinando o rosto,

E teu riso luminoso que acorda desejos – ah! eu juro, O coração no peito estremece de pavor, No instante em que te vejo: dizer não posso mais Uma só palavra;

A língua se dilacera; Escorre-me sob a pele uma chama furtiva; Os olhos não veem, os ouvidos Zumbem;

Um frio suor me recobre, um frêmito do corpo Se apodera, mais verde do que as ervas eu fico; Que estou a um passo da morte, Parece.72

Nesses versos, temos um dos primeiros registros de uma expressão da manifestação física do sentimento amoroso na poesia greco-romana: na segunda estrofe, o peito e coração

71 Para discussão quanto a dados biográficos sobre Safo de Lesbos e aspectos históricos da Grécia de sua época, cf. Ragusa (2005, esp. 31, 55-78). 72 Frag. 31 LP. A tradução é de J. F. Brasil (Safo de Lesbos: poemas e fragmentos, 2003, p. 21). Para cem outras traduções deste mesmo poema, cf. P. Brunet (ed.), L‟égal des dieux cent versions d‟un poème de Sappho, 2001. Uma tradução mais recente do poema em língua portuguesa é oferecida ainda por G. Ragusa (2005, p. 440), em estudo sobre a representação de Afrodite na poesia lírica de Safo.

36 são evocados não apenas como sede de pensamentos ou sentimentos,73 mas também fisicamente: como um órgão que “estremece” no peito diante da visão do ser amado. Em seguida, outros órgãos do sentido (língua, pele, olhos e ouvidos) são evocados como deturpados também pela presença daquela que é objeto de amor: constituindo-se, assim, a imagem de um corpo mais amplamente afetado. Suor, tremor, palidez (“mais verde do que as ervas eu fico”), são sintomas cada vez mais concretos que culminam na configuração da iminência da morte, i.e., caracterizando o amor como uma doença grave, pois fatal.74 Em Roma, Catulo (82 a. C – 52 a. C), ao reinventar este poema de Safo, não apaga as manifestações físicas do sentimento amoroso, tão bem descritas, como vimos, pela poetisa de Lesbos. Observemos como sua imitação latina se dá, em estrofe sáfica menor:

Ille mi par esse deo uidetur, Ille, si fas est, superare diuos, Qui sedens aduersus identidem te Spectat et audit. Dulce ridentem, misero quod omnis 5 Eripit sensus mihi; nam simul te, Lesbia, aspexi, nihil est super mi Vocis in ore, Lingua sed torpet, tenuis sub artus Flamma demanat, sonitu suopte Tintinant aures, gemina teguntur 10 Lumina nocte. Otium, Catulle, tibi molestum est;

73 Sobre o coração e o peito como sede dos pensamentos na literatura greco-romana antiga, cf. Cardoso (2005). 74 Sobre a singularidade do poema, cf. F. Ribeiro de Oliveira (2011, p. 52): “Muitos desses sintomas já apareciam em Homero: são, na Ilíada e na Odisseia, reações do organismo provocadas pelo pesar, pela preocupação, pelo pavor, pela dor física. Em Homero, os sintomas aparecem isolados (raramente formando um par – por exemplo, tremor e palidez juntos). Ora, na ode de Safo há duas diferenças importantes: aqui, todos esses sintomas aparecem juntos, ao mesmo tempo, na mesma pessoa e – novidade fundamental – como sintomas não de dor, pesar, susto etc., mas de paixão amorosa (o que nunca ocorria em Homero)”.

37 Otio exultas nimiumque gestis. Otium et reges prius et beatas Perdidit urbes. (Catulo 51)75 15

Ele me parece semelhante a um deus, Ele, se não é sacrílego dizer, supera os deuses, O homem que, sentado diante de ti, muitas vezes Contempla-te e ouve-te.

Sorrindo docemente, o que arrebata a mim, infeliz, 5 Todos os sentidos, pois assim que te vejo, Lésbia, nem um fio de voz Resta em minha boca,

A língua, porém, se paralisa; uma chama sutil se espalha pelos meus membros; com ruído interno 10 Tintinam os ouvidos, os olhos se cobrem Com dupla noite.

O ócio, Catulo, te faz mal; No ócio te exaltas e te excitas demasiadamente. O ócio, outrora, a reis e prósperas 15 Cidades levou à ruína.76

Também em Catulo, temos na primeira estrofe a descrição da imagem de um homem invulnerável à presença da amada, comparando-o com um imortal (Ille mi par esse deo uidetur/ Ille, si fas est, superare diuos, Catulo 51 1-2), o que contribui para caracterizar a mortalidade e vulnerabilidade da persona poética que será acometida pelos sintomas77

75 Transcrevemos o texto latino da edição da Belle Lettres, de G. Lafaye. 76 Tradução de Paulo Sérgio de Vasconcellos (1991, p. 49). 77 João Angelo Oliva Neto (1996, p.152), em tradução ao poema 92 3, faz uso da palavra “sintoma” para a sua versão do termo signum no contexto do amor elegíaco como enfermidade:

38 amorosos. A primeira palavra que se refere a tal persona é “infeliz” (misero, Catulo 51 5). E o motivo, parafraseando Safo, é o fato de que a presença da amada arrebata-lhe todos os sentidos (omnis/ Eripit sensus mihi, Catulo 51 5-6). Dentre todos os órgãos sensoriais que no poema grego foram enumerados (língua, pele, olhos e ouvidos) Catulo vai lembrar o primeiro deles (lingua sed torpet, Catulo 51 7), passando mais diretamente para os efeitos da visão: destaca-se em primeiro lugar a chama (flamma, Catulo 51) sob os membros enfraquecidos (tenuis sub artus, Catulo 51 9), a seguir em aliteração sonitu suopte (v. 10) e onomatopeia (no verbo tintinant, Catulo 51 11) imita-se o zumbido dos ouvidos. A cegueira, também presente no poema de Safo, é enfatizada em bela imagem poética dos olhos duplamente cobertos pela noite (gemina teguntur/ Lumina nocte, Catulo 51 12-13). A última estrofe, acrescentada por Catulo, e na qual ele se dirige a si próprio, mas em segunda pessoa (Catulle, tibi, Catulo 51 13) certamente enfatiza um distanciamento do poeta em relação ao sentimento e sintomas que descrevera em primeira pessoa nas estrofes anteriores (mi, Catulo 51 1; mihi, v. 6; aspexi, v. 7). No entanto, o poema continua a destacar o perigo que levaria à perturbação e ao envolvimento sentimental, ao apontar sua causa: o ócio. Tal ócio pode ser interpretado de modo mais geral (como veremos nos Remedia de Ovídio), mas ainda, parece-nos, pode remeter ao otium que proporciona momentos de lazer, em que se incluiria a leitura de poemas como os da tradição lírica, evocada na imitação catuliana.78 Por sua vez, o amante que Catulo retrata nesse poema (no caso uma imagem de sua própria persona poética), acometido por sintomas decorrentes da paixão que sente pela amada (cujo nome “Lésbia”, por sinal, evoca a poetisa grega), será retomado, como veremos, na representação que outros poetas elegíacos fazem daquele que padece de amor. O tema do amor como doença foi tematizado também em outros poemas de Catulo, além de no já citado poema 51, como, por exemplo, os poemas 76 e o 83.

Quo signo? Quia sunt totidem mea – “Como sei? Também tenho tal sintoma”, e em nota ao verso 3 (1991, p. 246) refere-se a outros poemas, o 83 e o 76, nos quais também é possível encontrar a associação entre amor e doença. 78 Curiosamente, esse tipo de comportamento ocioso como gerador de sentimentos e conflitos amorosos é tematizado em tempos modernos na literatura do Romantismo, na qual frequentemente as heroínas apaixonadas sofrem fisica e por vezes fatalmente as consequências do amor que „aprendem‟ nos romances por elas lidos – à la Madame Bovary, de Gustave Flaubert.

39 No poema 76, Catulo, já nas primeiras estrofes, manifesta os conflitos que permeiam a vida de um homem pio, como o é o próprio eu poético frente a um amor ingrato:

Siqua recordanti benefacta priora uoluptas Est homini, cum se cogitat esse pium, Nec sanctam uiolasse fidem, nec foedore nullo Diuum ad fallendos numine abusum homines, Multa parata manent tum in longa aetate, Catulle, Ex hoc ingrato gaudia amore tibi. (Catulo 76 1-6)

“Se, porventura, o homem sente prazer em recordar suas boas ações passadas, Quando se dá conta de que sempre cumpriu seu dever E que não violou a santidade da palavra empenhada, nem, em compromisso algum, Profanou o nome dos deuses para enganar os homens, Então muitas alegrias te estão reservadas, no curso de uma longa vida, Catulo Por este amor não retribuído.”79

Melhor dizendo, trata-se dos conflitos de um amante pio frente a uma puella, enfim, ingrata – e é a ela a quem a persona de Catulo dedica tudo que é possível:

Nam quaecumque homines bene cuiquam aut dicere possunt Aut facere, haec a te dictaque factaque sunt (Catulo 76 7-8)

“Pois tudo o que os homens podem dizer de bom a alguém Ou fazer, foi dito e feito por ti”.80

79 Tradução de P. S. de Vasconcellos (1991, p. 63).

40

Tal puella é representada por uma ingratae... menti, metonímia do verso latino bem caracterizada pela expressão “peito ingrato”, na tradução de J. A. Oliva Neto:

omniaque ingratae perierunt credita menti. (Catulo 76 9)

“E tudo terminou confiado a um peito ingrato”.

Considerando-se toda essa ingratidão, Catulo se pergunta o porquê, então, de tanta tortura (Quare cur te iam amplius excrucies? – “Por que então te torturas tanto assim?”, Catulo 76 10), fazendo de si mesmo, uma vez mais, o alvo de sua própria interpelação, através do vocativo (Catulle, Catulo 76 5) e do uso da segunda pessoa do singular (tibi, v. 6; te, v. 10; tu, v. 11). O poeta obtém, além do mais, um efeito de conflito emocional através das perguntas que ele se faz e das exortações que propõe a si próprio, incentivando a desfazer-se do sentimento amoroso – esta renúncia seria a única salvação (salus, Catulo 76 15):

Difficile est longum subito deponere amorem. Difficile est, uerum hoc qua lubet efficias. Vna salus haec est, hoc est tibi peruincendum; 15 Hoc facias, siue id non pote siue pote. O dei, si uestrum est misereri, aut si quibus unquam Extremam iam ipsa in morte tulistis opem, Me miserum aspicite et, si uitam puriter egi, Eripite hanc pestem perniciemque mihi, 20 Quae mihi subrepens imos ut torpor in artus Expulit ex omni pectore laetitias. Non iam illud quaero, contra ut me diligat illa, Aut, quod non potis est, esse pudica uelit; Ipse ualere opto et taetrum hunc deponere morbum. 25

80 Id., ibid.

41 O dei, reddite mi hoc pro pietate mea. (Catulo 76 13-26, grifos nossos)

É difícil renunciar de repente a um amor que durou tanto. É difícil, mas deves fazê-lo de qualquer maneira. Esta é a única salvação, deves conseguir esta vitória. 15 Faze-o, seja ou não possível. Ó deuses, se é próprio de vós a compaixão ou se a alguém, alguma vez, À beira da morte levastes o derradeiro auxílio, Dirigi vosso olhar para este infeliz e, se tenho vivido com integridade, Arrancai de mim esta peste e esta desgraça, 20 Que, como um torpor, se infiltrando no fundo de meus membros, Expulsou de todo o meu coração as alegrias. Já não peço que aquela mulher corresponda à minha estima, Ou, o que não é possível, queira ser honesta; Só desejo curar-me e deixar esta terrível doença. 25 Ó deuses, concedei-me isto em troca da minha devoção!81

O excerto do poema de Catulo aqui transcrito, traz elementos também presentes na referência ao amor em Remedia de Ovídio. Em Catulo, a dificuldade de se afastar do amor é agravada pela demora em se tomar tal decisão (Catulo 76 13), e, para Ovídio, quando não são usados prontamente os primeiros socorros (auxilii... primi, Rem. 107), a cura do mal repentino (mais propriamente, “de uma repentina...doença”: subiti... morbi, Rem. 81) também se dificulta (Si tamen auxilii perierunt tempora primi/ Et uetus in capto pectore sedit amor/ Maius opus superest – “Se, contudo, se perdeu a oportunidade dos primeiros socorros e o amor, já velho, se plantou no teu coração prisioneiro, a tarefa é mais árdua”, Rem. 107-9). Ainda assim, Catulo insiste consigo mesmo que tente (Difficile est, uerum hoc qua lubet efficias, 76 14), pois esta seria a única “salvação” (una salus haec est, 76 15) para

81 Tradução de P. S. de Vasconcellos (1991, p. 63).

42 arrancá-lo da doença pestilenta que o acomete (pestem perniciemque, 76 20).82 A imagem do amor como doença está sem dúvida presente: note-se, por exemplo, outra possível tradução para o termo salus, a de “saúde” (OLD, sentido 2); tal tradução se justifica, sobretudo porque até mesmo um sintoma dessa dor se manifesta fisicamente, e com sintomas semelhantes aos que se descreve no poema 51, que imita o de Safo, comparem-se os versos: quae mihi subrepens imos ut torpor in artus (76 21), e: lingua sed torpet tenuis sub artus (51 8). Tudo que o amante deseja e roga aos deuses (O dei, 76 17 e 26) é ualere, ficar bem de saúde,83 i.e., ser curado dessa dor ruim (ipsa ualere opto et taetrum hunc deponere morbum, 76 25).84 Notamos, com esse breve cotejo de poemas catulianos, a existência da ideia do amor como doença, ideia marcada por uma série de lugares-comuns temáticos e formais: referências à perturbação do corpo como contraparte do sentimento amoroso perturbador da mente; referências a perturbações psíquicas expressas na forma de conflito (e mesmo de fragmentação do eu poético, em forma de questionamentos, auto referências em terceira pessoa, formulações antitéticas); uso ambíguo ou polissêmico de vocabulário comum à designação de saúde/doença física e mental, em relação a situações amorosas. Já no poema 83, Catulo descreve um momento de sua puella ao lado do marido:

Lesbia mi praesente uiro mala plurima dicit; Haec illi fatuo maxima laetitia est. Mule, nihil sentis. Si nostri oblita taceret, Sana esset; nunc quod gannit et obloquitur, Non solum meminit, sed, quae multo acrior est res, Irata est; hoc est, uritur est coquitur. (Catulo 83, grifo nosso)

82 Para pestis como doença, cf. verbete no OLD: “Uma praga, pestilência. b (aparentemente aplicado a doenças que afetam indivíduos” – “A plague, pestilence. b (app. applied to diseases affecting individuals” (sentido 2). 83 Para o sentido físico de ualere, cf. OLD, verbete ualeo: “Estar com uma saúde sólida, estar bem” – “To be in sound health, be well.” (sentido 2). 84 Em nota a esse poema, J. A. Oliva Neto comenta sobre o verso 25 (1996, p. 241), a posição em que se encontra a palavra morbus (cf. morbum, 76 25): trata-se da mesma ocupada por amorem no verso 13. O estudioso afirma, portanto, que tal verbete, significando literalmente “doença”, designa neste poema a “doença do amor”.

43

Lésbia, na presença do marido, diz horrores de mim; Isto, para aquele tolo é o maior dos prazeres. Asno, não compreendes nada! Se, esquecida de nós, ficasse quieta, Estaria curada; mas já que rosna e injuria, Não só lembra, mas, o que é muito mais sintomático, Está com raiva, isto é, consome-se de ardente desejo.85

Note-se, mais uma vez, a oposição entre saúde e o estado amoroso: Si nostri oblita taceret/ Sana esset (83 3-4); em outras palavras, estando apaixonada, a moça não está sã, saudável.86 O marido de Lésbia regozija-se quando ela fala mal de Catulo; mas a puella assim procede, não porque se esquecera de Catulo, mas sim, pelo contrário, porque ainda o ama. Inevitável é que o leitor de Remedia lembre-se do poema catuliano, ao se deparar com a seguinte afirmação ovidiana: quem muito diz que não ama, na verdade, ama – que reaparece no poema didático de Ovídio da seguinte maneira:

Et malim taceas quam te desisse loquaris; Qui nimium multis „non amo‟ dicit, amat. (Rem. 647-8)

“Eu preferiria que te calasses a que dissesses que já deixaste de amar. Quem muito vai dizendo a muitos: „Já não amo‟, ama.”

Nota-se aqui o emprego enfático dos mesmos verbos dicit (“dizer”), loquaris (“falar”) e tacere (“calar”), tanto em Catulo 83 quanto em Remedia 648: uma diferença é que no primeiro, a apaixonada fala a seu marido; no segundo, ela fala a muitos (multis, Rem. 648). Vimos que a sanidade só poderia ser atribuída à Lésbia, naquele poema de

85 Tradução de P. S. de Vasconcellos (1991, p. 65). 86 Sobre o verso 4 do poema 83, comenta J. A. Oliva Neto (1996, p. 243) que a palavra sana indica que a amada de Catulo encontra-se livre da doença do amor. Ainda sobre esse mesmo adjetivo, P. S. de Vasconcellos (1991, p. 114) comenta, em nota ao verso 4: “O uso desse adjetivo é significativo: o apaixonado não está em seu juízo perfeito, tema recorrente no ciclo de Lésbia”.

44 Catulo, caso ela não estivesse amando, e assim, estaria calada (Si nostri oblita taceret/ Sana esset, Catulo 83 4); mas seus brados e xingamentos (gannit et obloquitur, Catulo 83 4) indicariam que nela, o sentimento ainda arde (uritur, Catulo 83 6). Fica a impressão de que, ao retomar tão de perto o preceito do amor eloquente, do sentimento que faz falar (ainda que para negá-lo) o poema de Ovídio faz, se não uma alusão intertextual específica ao referido poema catuliano, ao menos ao contexto elegíaco que ele representa, ou, mais precisamente, ao pressuposto elegíaco de um amor associável à insanidade, no sentido mais concreto de enfermidade. Ou seja, é esse amor (ou essa imagem de amor) enfermo que o aluno do vate de Remedia deve evitar deixar transparecer que está sentindo. Poetas elegíacos mais próximos da época de Ovídio, como Tibulo (55 a. C – 19 a. C) e Propércio (50 a. C – 16 a. C) também exploraram a imagem do amor como doentio. Vejamos outros lugares comuns a ela associados. Por exemplo, em Propércio II 4 7-14, o poeta diz que ervas não adiantam, nem qualquer outra droga: muitos adivinhos o teriam examinado (II 4 15-6) e disseram que ele não precisava de médico (II 4 11), pois o seu mal era o amor (II 4 14):

Non hic herba ualet, non hic nocturna Cytaeis, non Perimedaeae gramina cocta manus; 8 nam cui non ego sum fallaci praemia uati? 15 quae mea non decies somnia uersat anus? 16 quippe ubi nec causas nec apertos cernimus ictus, 9 unde tamen ueniant tot mala caeca uia est; 10 non eget hic medicis, non lectis mollibus aeger, huic nullum caeli tempus et aura nocet; ambulat – et subito mirantur funus amici! sic est incautum, quidquid habetur amor. 14 (Propércio II 4 7-1487).

“Aqui as ervas não curam, aqui nem a noturna mulher de Cita,88

87 Sexti Properti, Carmina, Oxford, 1960.

45 Nem a relva cozida pelas mãos de Perimede89 curam; Pois de que adivinho falaz não sou eu um prêmio? Que sonhos meus a velha feiticeira dez mil vezes não revira? Porque, quando não discernimos nem os motivos nem os golpes evidentes, É obscuro caminho d‟onde, entretanto, vêm tantos males; Aqui o doente não precisa de médico, nem de leitos macios, A ele nenhum tempo ou brisa do céu é nocivo Ele perambula – e subitamente os amigos se admiram de seu funeral Assim tudo o que o amor tem é temerário”.90

O leitor de Remedia não ignora a afirmação ovidiana de que ervas e artes mágicas (mala pabula91... magica artes, Rem. 249-50) não bastam para curar o amor:

Viderit, Haemoniae siquis mala pabula terrae Et magicas artes posse iuuare putat.

“Se alguém pensa que as ervas maléficas da Hermônia e as artes mágicas podem servir de alguma utilidade, o problema é dele” (Rem. 249-50).

Nem ignora o discípulo de Remedia que uma feiticeira (anus, Rem. 254) também não será útil para dizimar a doença amorosa. Em Propércio, a feiticeira (anus, II 4 10) também não serviu para curar o eu poético adoentado (aeger, II 4 13). Além da feiticeira, as ervas também não o curam (non hic herba ualet, non hic nocturna Cytaeis, II 4 7), nem tampouco um médico (non eget hic medicis, II 4 11), pois o que ele tem é amor (quidquid

88 Cytaeis: de Cita, cidade da Cólquida, por sinédoque: de Cólquida, terra de Medeia, referida aqui e em outras elegias de Propércio (como I 1 e II 1, cf. notas de A. Tovar e M. T. Belfiore Mártire ao poema in: Propércio, Elegias (1984, p. 57). 89 Perimede, filha de Eolo, rei da Tessália (OLD, verbete “Perimedaeus”, em que se cita somente a passagem em apreço). 90 As traduções dos versos de Propércio são de nossa autoria. 91 O OLD indica que o sentido de mala pabula é o de “ervas mágicas” (sentido 1d, verbete pabulum).

46 habetur amor, II 4 14). As mesmas ervas não trataram do eu poético de Remedia quando ele mesmo padecia pela doença do amor:

Curabar propriis aeger Podalirius herbis, Et, fatetor, medicus turpiter aeger eram. (Rem. 313-4, grifo nosso)

“Eu, qual Podalírio92 enfermo, Me cuidava com as próprias ervas e, confesso, Doente, eu era um médico horrível.”

Em outro poema, diz Propércio: aut uos, qui sero lapsum reuocatis, amici/ quaerite non sani pectoris auxilia – “E vós, amigos, que tarde retomai o erro,/ buscai os remédios para um peito enfermo” (Propércio I 1 25-6); o eu poético recomenda que se evite esse mal (hoc, moneo, uitate malum – “evitai, eu vos advirto, esse mal”, I 1 35), pois quem não o fizer, lembrará dessas palavras com muita dor (quanto... dolore, I 1 37-8).93 Essa dor é motivada pelo sentimento amoroso, o que, como a elegia properciana recorda, também moveu Medeia em direção ao seu crime (cf. Cytaeines, Propércio I 1 24). O mesmo episódio mitológico é lembrado também para ilustrar até que ponto iria a dor do amor no poema de Ovídio: Nec dolor armasset contra sua uiscera matrem/ Quae socci damno sanguinis ulta uirum est – “e a mágoa não teria armado contra suas próprias entranhas a mãe que se vingou do marido sacrificando o sangue comum” (Rem. 59-60). Ainda no primeiro poema elegíaco properciano, o coração enfermo (non sani pectoris, I 1 26) do poeta lembra o que Ovídio tenta combater, utilizando-se, inclusive, do mesmo termo (sanari, Rem. 43; sanus eris, Rem. 794; sanati, Rem.813-4), para indicar a que veio seu poema, a saber, trazer a cura aos corações que padecem com “paixões ruinosas”:

92 Podalírio: conforme o OLD (verbete “Podalirius”) a referência ao mito do médico extraordinário, filho de Esculápio (“um médico legendário, filho de Esculápio; (como um tipo de proficiência médica)” – “a legendar physician, son of Aesculapius; (as a type of medical proficiency).”) aparece também na Arte de amar (Podalirius arte medendi, II 735) e em Tristia (Quem semel excepit, numquam Podalirius aegro, V 6 11). 93 Para outros exemplos, ver: Tibulo III, 11; Propércio I 5 15 – 18, II 4, III 8.

47 Me duce damnosas, homines, compescite curas (Rem. 69).

“Sob meu comando, dominai, senhores Vossas paixões ruinosas.”

Poucos versos adiante, Ovídio, assim como ocorre no poema acima transcrito de Propércio (I 1 26), atribui certas condições ao coração (pectora, Rem. 74), tomando-o como “oprimido” (supressa, 73) e escravizado (seruum... pectus, 54) pelo amor que já “se plantou” no “coração prisioneiro” (in capto pectore, 108) do doente (aegro, 109):

Si tamen auxilii perierunt tempora primi Et uetus in capto pectore sedit amor, Maius opus superest; sed non, quia serior aegro Aduocor, ille mihi destituendus erit. (Rem. 107-10)

“Se, contudo, se perdeu a oportunidade dos primeiros socorros e o amor, já velho, se plantou no teu coração prisioneiro, a tarefa é mais árdua; mas não é porque sou chamado bem tarde junto ao doente que deverei abandoná-lo.”

Adiar a cura fortalece o amor: “... chega tarde o remédio, quando o mal se fortaleceu pela longa demora” (sero medicina paratur/ Cum mala per longas conualuere moras, Rem. 91-2), diz o magister ovidiano. O mesmo sentimento no poema de Propércio é um mal que deve ser evitado (uitate malum, Propércio I 1 35) e o amante não deve tardar em ouvir seus conselhos (si quis monitis tardas, Propércio I 1 37), ou eles o trarão dor (quanto... dolore, Propércio I 1 37). Na obra ovidiana Remedia Amoris, vemos um vate que assume a posição do médico: aconselha aquele que sofre em virtude de uma doença, i.e., do mal que ataca os amantes. O título da obra, tal qual nos foi transmitido, e que foi traduzido por Antônio da Silveira Mendonça como Os Remédios do amor, possibilita a qualquer um relacionar amor

48 com remédios, medicina, e, portanto, com doença. Apenas com a leitura da obra é que vamos perceber que “do amor” (tradução literal do genitivo amoris) se refere não aos remédios que o amor proporciona (portanto, amoris ali não corresponde ao chamado genitivo subjetivo), mas aos que o amor requer94 (o amor é objeto da cura; amoris é, pois, genitivo objetivo): o intuito do poeta é, como veremos, auxiliar os que amam a encontrar a cura para tal sentimento. Por necessitar de uma cura, é fácil constatar que o amor, nesse poema, será, pois, tratado como uma doença. Contemplando uma vez mais os versos iniciais de Remedia, observam-se aspectos da obra que vão além de sua relação com Ars Amatoria. O deus Cupido, ou Amor, como Ovídio o nomeia nos versos iniciais de Remedia, vê pelo título da obra (Legerat huius Amor titulum nomenque libelli – “O Amor tinha lido título e nome deste livrinho”, Rem. 1, grifo nosso) o que com ela se anuncia como intento do poeta e afirma, como vimos em Rem. 2, que o poeta declara uma guerra contra ele. Ora, a concepção do amor como doença pode ser encontrada em diversos contextos e gêneros da literatura romana antiga, conforme mostra um exemplo da prosa filosófica produzida na época republicana, indicado por P. S. de Vasconcellos (2011, p. 113, n. 30):

Omnibus enim ex animi perturbationibus est profecto nulla uehementior, ut, si ipsa illa accusare nolis, stuprum dico et corruptelas et adulteria, incesta denique, quorum omnium accusabilis est turpitudo...sed ut haec omittas, perturbatio ipsa mentis in amore foeda per se est. (Cícero, Tusculanas IV 32-69)

“Pois de todas as perturbações da alma nenhuma é realmente mais forte, de tal forma que, se não quiseres acusá-las, mencionarei as ligações ilícitas, as seduções e adultérios, os incestos, enfim, de que se deve acusar a torpeza... mas para deixar de lado tudo isso, a perturbação da mente, no amor, já é em si mesma vergonhosa”.95

94 Agradecemos ao Prof. Dr. Robson Cesila pela seguinte observação, feita durante a defesa desta dissertação: uma tradução menos ambígua do título, no que diz respeito à função sintática da palavra amor, seria Os Remédios para o Amor. Mantivemos neste texto, no entanto, a referência ao título de Remedia Amoris conforme traduzido por A. S. Mendonça. 95 A tradução do texto ciceroniano é também de P. S. de Vasconcellos (2011, p. 113, n. 30). Citamos uma passagem do estudo introdutório de sua tradução, que versa sobre essa relação do

49

A despeito de visões como tais, caracterizando de modo absoluto o amor em si, não é essa a compartilhada pelo eu poético de Remedia Amoris. Já mencionamos que, conforme os versos ovidianos, não há a intenção do vate em se opor ao amor – pelo menos, não a qualquer amor:

Nec te, blande puer, nec nostras prodimus artes, Nec noua praeteritum Musa retexit opus. Siquis amans, quod amare iuuat, feliciter ardet, Gaudeat at uento nauiget ille suo; At siquis male fert indignae regna puella, Ne pereat, nostrae sentiat artis opem (Rem. 11-6)

“E não traímos a ti, meiga criança, nem à nossa arte, e uma nova Musa não anulou a obra precedente. Se alguém ama e esse amor lhe dá prazer, goze feliz dessa paixão e navegue a favor do vento. Mas se padece as imposições de uma garota ingrata, prove, para que não pereça, a assistência de nossa arte.”

Ovídio afirma, portanto, nos citados versos, que apenas o amor capaz de fazer padecer e, com isso, perecer aquele que o sinta será objeto de seu cuidado – melhor dizendo, das admoestações que o poeta direciona aos seus discipuli, os leitores-amantes. Gian Biagio Conte96 aborda justamente o fato de tal obra ovidiana não combater o amor em si, mas sim de erradicar o amor que arrebata, que exclui o amante do mundo, que

amor com a doença, não só em Catulo, como na Roma Antiga de uma maneira geral: “Falamos em „paixão doentia‟; expliquemos agora, por que este último adjetivo era desnecessário: para os antigos romanos, a paixão amorosa é uma doença.”, P. S. de Vasconcellos (1991, p. 23, grifo nosso). 96 G. B. Conte, “Love without elegy: The Remedia amoris and the logic of a genre”, 1989, p. 35-65.

50 faz sofrer, que pode levar a loucura e até à morte, i.e., como resume o estudioso: “... é a forma elegíaca do amor que deve ser desfeita e destruída”.97 Em poemas anteriores do próprio Ovídio, tais como os versos elegíacos de Amores (15 a. C) e o poema didático Arte de amar (Ars Amatoria), o topos do amor como doença é um elemento que assegura o diálogo entre a obra de Ovídio e a de outros poetas elegíacos, bem como entre as obras amorosas ovidianas umas com as outras. Conte aponta como pressuposto para a postura do vate ovidiano concepções de filosofia como medicina já disseminadas no ambiente da sociedade romana:

“Confrontada com a doença do espírito, a sapientia ofereceu-se alegremente como uma técnica médica genuína; e a diatribe já identificou o amor como uma das mais sérias e difundidas doenças que se deve combater. Isto é, obviamente, o amor que cega e desapossa, que faz as pessoas perderem o senso de medida e das propriedades sociais, que – como eu sugerira – os leva à loucura, à autodestruição, e até ao suicídio em alguns casos.”98

No entanto, o estudioso faz questão de sublinhar o caráter literário da referência ovidiana ao tema da doença amorosa: “Esse furor é bem similar ao do amante elegíaco. Contra isso, a diatribe pensou em um remédio efetivo: identificar exatamente a parte do amor que é natural e necessária”.99 O furor, que em latim tem tanto o sentido de “distúrbio da mente”, ou “loucura” (OLD, verbete “furor”, sentido 2), quanto o sentido de “desejo amoroso” (OLD, verbete “furor”, sentido 3), acompanha os amantes elegíacos dos poemas de Catulo, Propércio e

97 “It is the elegiac form of love which must be undone and destroyed.” G. B. Conte (1989, p. 62). A tradução de textos de língua moderna é de nossa autoria e visa possibilitar ao leitor a avaliação de nossa interpretação. 98 “Faced with the sicknesses of the spirit, sapientia had gladly offered itself as a genuine medical technique; and diatribe had already identified love as one of the most serious and widespread sicknesses it had to combat. This was, of course, the love that blinds and dispossesses, which make people lose their sense of measure and of social properties, which – as I have suggested – leads them to madness, self-destruction, and even suicide in certain cases.” G. B. Conte (1989, p. 63). 99 “This furor is very much like the elegiac’s lover. Against it, diatribe had thought up an effective remedy: to identify exactly that part of love which was natural and necessary.” G. B. Conte (1989, p. 63, grifos nossos).

51 Tibulo.100 Tal perturbação do espírito, que é tematizada explicitamente em Remedia (em que furor aparece quatro vezes)101 é, ademais, vital para o que se pode chamar, emprestando a expressão de Conte, de “ideologia elegíaca”.102 Para que o leitor esteja certo do perigo da doença que o acomete, diversos exempla, em forma de referências narrativas (que funcionam como ferramentas discursivas usadas para expressar uma experiência e provar um ponto),103 são empregados no início de Remedia, após o poeta declarar a que veio (a saber, curar os amores funestos). Para tanto, alguns personagens míticos104 (e suas funestas condições) são evocados: os suicídios de Fílis (Rem. 55) e de Dido (Rem. 57), os crimes de Medeia (Rem. 59-60) e de Fedra (Rem. 64-5), as tristes consequências dos impulsos de Páris (Rem. 65-6): destruições motivadas todas pelo amor. Quanto ao último exemplum, transcrevemos o texto ovidiano:

Redde Parin nobis: Helenen Menelaus habebit Nec manibus Danais Pergama uicta cadent (Rem. 65-6).

“Entrega-me Páris; Menelau manterá Helena, e Pérgamo não cairá vencida nas mãos dos dânaos.”105

100 “Seria legítimo esperar que a Ars amatoria tenha sido extraída do comportamento prático de amantes reais, mas ao invés disso, os ensinamentos de Ovídio são apresentados como uma arte aplicada aos materiais cuja realidade é aquela do fenômeno literário – não para amantes reais, portanto, e suas estratégias diárias, mas para aqueles que são representados nas elegias de Propércio, Tibulo e do próprio Ovídio.” – “It would be legitimate to expect the Ars amatoria to have been extracted from the practical behavior of real lovers, but instead Ovid‟s teachings are presented as an art applied to materials whose “reality” is that of literary phenomena – not to real lovers, therefore, and their daily strategies, but to those represented in the elegies of Propertius, Tibullus, Ovid himself.” (G. B. Conte, 1989, p. 53). Vale mencionar, como exemplos de textos elegíacos em que o termo furor consta, as seguintes passagens elegíacas: Catulo 15. 14 e 64. 54; Propércio I.18.15 e I.5.3; Tibulo, I.1.50, I.6.75; III.9.8. 101 Remedia Amoris 119 (verso em que o termo aparece duas vezes), 497 e 581. 102 G. B. Conte (1989, p. 37): “elegiac ideology”. 103 Como referimos anteriormente, tal concepção dos exempla como uma ferramenta discursiva encontra-se em F. Graf “Myth in Ovid”, 2002, p. 112. 104 Cf. F. Graf, 2002, p. 114 e G. S. Orosco, “As faces de Vênus em Metamorfoses de Ovídio”, in: Língua, Literatura e Ensino, 2007, p. 313-20. 105 Vemos aqui que a argumentação análoga à que será usada em Trista (Ilias ipsa quid est aliud nisi adultera de qua/ Inter amatorem pugna uirumque fuit? – “Que é a própria Ilíada senão uma adúltera/ Que causou a luta entre o amante e o marido?”, II 371-2) como defesa do poeta já se encontra antes da poesia da fase do exílio.

52 Nesse verso, o poeta afirma a suposta utilidade de seus conselhos: tantas histórias malfadadas e, no caso, a narrativa épica seriam evitadas caso o poeta (que se denomina um médico: Tu pariter uati, pariter succurre medenti – “Socorre a quem é, a um tempo, poeta e médico”,106 Rem. 77) pudesse ter interferido (Redde (...) nobis, Rem. 66). Assim, a partir do verso 135, Ovídio passa a descrever o tratamento para o amor. Seu primeiro conselho aos que almejam a cura é fugir da ociosidade:

Ergo ubi uisus eris nostrae medicabilis arti, Fac monitis fugias otia prima meis (Rem. 135-6; grifo nosso)

“Portanto, assim que achares que nossa arte pode curar-te, trata de evitar em primeiro lugar a ociosidade”.

Poderíamos enumerar uma série de tratamentos prescritos pelo médico-poeta ao discípulo apaixonado. Mas, para nosso estudo, cabe destacar que é perceptível, ao se contemplar os referidos versos, que o vate insere o sentimento amoroso no mesmo campo semântico de uma perturbação da saúde. Interessante é que Ovídio, ao fazer isso, procede de maneira extremamente concisa, condensando, nesta obra relativamente breve e que se declara em sua superfície como poesia didática,107 muitas referências à poesia de outros gêneros.

106 Além das ocorrências já citadas, temos, por exemplo, os seguintes termos relacionados à medicina ou ao médico no poema ovidiano Remedia Amoris: o adjetivo medicus aparece duas vezes (significando “o que cura”, “curativo” ou “médico/ medicinal” – OLD, verbete medicus, sentido único). No v. 76, medicae ocorre referindo-se à medicina (e adjetivando opis, “recurso”) como uma das invenções de Febo – é a essa divindade, portanto, que Ovídio pede inspiração. Já no v. 314, Ovídio afirma que ele mesmo já fora atingido por esse mal e, estando doente, era um péssimo médico. O termo medicina (significando “a arte ou prática da cura, a medicina” – OLD, verbete medicina, sentido 1 – ou ainda, “um remédio, tratamento ou cura” – sentido 4) consta do v. 91, indicando o remédio que tarda a chegar, quando não se trata o mal desde o princípio; cf. ainda v. 131 e também o v. 795 (em ambos, os termos aparecem com o sentido de “arte da cura ou da medicina”); e, finalmente, medicabilis (“aquilo que pode ser curado” – sentido 1; ou “aquilo que cura” – sentido 2) está no v. 135, adjetivando a arte que se ensina na obra. 107 A caracterização de Remedia Amoris como poesia didática já é pressuposta neste estudo, no qual nos eximimos de demonstrá-la exaustivamente. De qualquer modo, trazemos alguns exemplos de excertos dessa obra que conferem um caráter didático ao texto ovidiano: Vixisset Phyllis, si me foret usa magistro – “Fílis teria vivido, se me tivesse tido como mestre” (Rem. 55, grifo nosso); Dura aliquis praecepta uocet mea – “Alguém dirá que são duras as minhas recomendações” (Rem.

53 Os poucos trechos que já citamos servem para ilustrar o quanto seria difícil ao leitor ovidiano conhecedor de Homero e de Virgílio não pensar nas respectivas épicas, não apenas quando Ovídio menciona “guerras” (bella, Rem. 2), como também quando se vê diante dos exempla específicos que remetem a personagens da guerra de Troia.108 Com isso observamos um reflexo, também em Remedia Amoris, da condensação da poesia didática e épica que, como já apontaram estudiosos como Trevizam,109 é fundamental à obra ovidiana Arte de amar que é, como referimos anteriormente,110 pressuposto de Remedia. Conforme nos aponta P. S. de Vasconcellos,111 do ponto de vista da concepção de literatura latina que a toma por matéria composta de incorporações, fusões, retomadas e filiações a outros textos (o que, na época de Augusto, envolve textos latinos além dos gregos), o poema ovidiano em questão parece se prestar especialmente a uma busca por “evocações intertextuais” (tal expressão também emprestamos à obra de Vasconcellos)112 em seus versos. Falemos, portanto, sobre o léxico amoroso presente em Remedia, nomeadamente sobre os termos recorrentes em tal obra que relacionam o amor e a doença, assim como sobre referências à utilização desses termos em outros textos elegíacos. A partir disso, pretendemos propor alusões que o poema em estudo parece fazer a outros elegíacos, predecessores da obra ovidiana, bem como alusões ao gênero elegíaco em si.113

225, grifo nosso); Tu mihi, qui, quod amas, aegre dediscis amare / Nec potes et uelles posse, docendus amare – “A ti que te pões a desaprender penosamente a amar o que amas, que não és capaz e queres ser, a ti tenho eu de ensinar” (Rem. 297-8, grifo nosso). 108 Ilustram tal evocação versos como os seguintes: Non ego Tydides, a quo tua saucia mater/ In liquidum rediit aethera Martis equis. (Rem. 5-6) – “Não, não sou o filho de Tideu; tua mãe, ferida por ele, tornou às límpidas regiões etéreas nos cavalos de Marte”; Vulnus in Herculeo quae quondam fecerat hoste, / Vulneris auxilium Pelias hasta tulit. (Rem. 47-8) – “A lança de Aquiles, que golpeou seu inimigo, filho de Hércules, foi a que lhe curou a chaga.”; Vt semel Aetola Venus est a cúspide laesa, / Mandat amatori bela gerenda suo (Rem. 159-60) – “Vênus, desde que foi ferida pela lança etólia, confia a seu amante gerir a guerra”; vale ainda ressaltar que, do verso 467 ao 486, Ovídio faz uma resumida explanação do episódio mitológico que motivou a peleja entre Aquiles e Agamêmnon, narrado nos primeiros versos de Ilíada (I 5 ss.). 109 Cf. M. Trevizam, 2003. 110 Introdução desta dissertação. 111 2001, p. 13. Para outros estudos que tratam da intertextualidade como método de análise, ver nota 7 acima. 112 P. S. de Vasconcellos (2001, p. 25). 113 P. S. de Vasconcellos (2001, p. 58 ss.), menciona em seu estudo o jogo intertextual entre, de um lado, Remedia e, de outro, Homero e Virgílio. Deixaremos para um estudo posterior buscar com mais detalhes a presença da épica em Remedia de Ovídio.

54 Para identificar tais referências e alusões – tendo em vista, a todo o momento do estudo, a caracterização do amor como doença –, é necessário ter em mente, por exemplo, outros termos do poema que, tais como os já referidos pathos em grego, e furor em latim, compartilham do campo semântico das noções de amor e de doença, assim como aqueles usados por Ovídio em seu poema. Através da leitura do texto latino, principiamos o levantamento de alguns desses termos, cuja análise nos permite tecer os comentários que se seguem. Já nos primeiros versos, encontra-se tepere (tepent, Rem. 7), um verbo que pode significar tanto “ser/estar morno, tépido”, quanto “sentir o calor do amor”, e ainda “ser „morno‟ (pouco entusiasta) em relação aos sentimentos de alguém” (cf. OLD, verbete “tepeo”, sentidos 1, 2 e 3; interessante notar que o dicionário de F. R. Saraiva aponta como sentido (figurado) para o mesmo verbete, “amar”, “ter algum amor a”).114 Os versos citados a seguir demonstram que, embora alguns jovens (iuuenes, Rem. 7) se tenham tornados frios, indiferentes em relação ao amor, a conduta do vate opõe-se à deles. Vejamos a passagem:

Saepe tepent alii iuuenes (Rem. 7)

Amiúde esmorecem outros homens.

Percebe-se essa intenção quando o eu poético afirma, logo após, como contraste, que ele mesmo nunca deixou de amar, ao contrário de jovens que se deixaram enfraquecer o sentimento (conforme o v. 7):

(...) ego semper amaui, Et si, quid faciam, nunc quoque quaeris, amo (Rem. 8)

“(...) eu, eu sempre amei, e se me perguntares o que faço ainda agora, amo”.

114 O termo tepere aparece também em outras elegias, como Ov. Am. II 2 53 e Prop. III 18 2.

55 O poema ovidiano não é, pois, um crime (cf. sceleris, Rem. 3) contra o Amor, prova disso é que o vate ainda ama (Rem. 8). O amor de Ovídio, porém, apoia-se agora na razão (ratio, Rem. 10) (o que viabiliza sua posição como magister), tendo antes sido conduzido pelo arrebatamento:

Et quod nunc ratio est, impetus ante fuit. (Rem. 10).

“E o que hoje é razão, antes foi paixão”.115

Vejamos o que seria o arrebatamento ou impetus ovidiano, o sentimento que o vate teria alegadamente deixado de lado. Ao termo latino se atribuem os seguintes sentidos: “ímpeto”, “impulso”; “ataque”, “violência”; “ataque (de uma doença)”, “uma explosão (de paixão, raiva, etc.)” (OLD, verbete “impetus”, sentidos 1, 3, 3b e 7, respectivamente).116 Trata-se precisamente do tipo de amor que ocorre aos amantes elegíacos dos poemas de Propércio, Tibulo e Catulo,117 cujo universo é constituído apenas pelo amor e todo sofrimento que ele pode acarretar.118 E tamanho é esse sofrimento, que o amante elegíaco tenta, em vão, livrar-se dele – gesto característico da elegia, essa recusa ao sentimento amoroso é denominada renuntiatio amoris.119 Tal amor, afirma o eu elegíaco de Remedia,

115 A tradução aqui citada, de A. S. Mendonça, interpreta o sentido de tal palavra como “paixão”; essa tradução não enfatiza a relação do amor com um mal ou arrebatamento, mas destaca a questão da oposição semântica que há entre ratio e impetus. A maneira de denotar essa relação entre ambas as noções seria, talvez, traduzir essa palavra pela expressão “ímpeto violento”. Ainda assim, não estaria totalmente evidenciado o sentido de “crise ou ataque (de uma doença)” (OLD, verbete impetus, sentido 3b) que também perpassa tal palavra. 116 O Dicionário latino português de F. R. Saraiva (2000) indica para a palavra, entre outros, os sentidos de: “violência (de paixão)”; “desejo ardente”; “arrebatamento” (verbete impetus, sentido 2). 117 Segundo o Thesaurus linguae latinae, o termo impetus ocorre duas vezes em Catulo: 4 3 – neque ullius natantis impetum – e 63 89 – facit leo impetum. 118 A noção de que a presença de um amor violento e impetuoso, conflituoso, por assim dizer, é recorrente na tradição elegíaca romana e representada em versos dos mencionados poetas, se dá em G. B. Conte (1989, p. 45 ss). 119 “... o gesto característico do poeta elegíaco é sua (vã) tentativa em se livrar de sua escravidão dolorosa, e, frequentemente, a forma monológica corresponde a um impulso de recusa (um gesto tão comum que ganhou um nome no léxico filológico: renuntiatio amoris).” – “... the elegiac poet‟s characteristic gesture is his (vain) attempt to free himself from his painful slavery, and, quite often, the monological form corresponds to na impulse of refusal (a gesture so common that it has earned a name in the philological lexicon: renuntiatio amoris).” (Conte, 1989, p 41)

56 arrebatava-o outrora, mas, no momento em que está compondo seu poema, já se transformara em razão (ratio, v. 10). Mais adiante no texto ovidiano, na passagem anteriormente transcrita, as expressões male fereat (com a ideia de “contrair uma doença”, OLD, verbete “male”, sentido 1f) e pereat (que a seguir analisaremos) revelam-nos também a presença de doença fatal e do amor, simultaneamente. Primeiro, contemplemos mais de perto a passagem:

At siquis male fert indignae regna puellae Ne pereat, nostrae sentiat artis opem. (Rem. 15-6, grifo nosso)

“Mas se padece as imposições de uma garota ingrata, Prove, para que não pereça, a assistência de nossa arte.”

O verbo em questão engloba dois sentidos, que corroboram a visão de amor a que atentamos: pereo pode significar tanto “perecer”, “morrer” (OLD, verbete “pereo”, sentido 3), quanto “estar loucamente apaixonado” (OLD, verbete “pereo”, sentido 4). Ovídio convoca como ouvintes de suas lições aqueles jovens que se submeteram às imposições da indignae puellae (Rem. 15), antes que pereçam por conta do amor.120 Ora, vemos aqui a caracterização não de uma amada qualquer, mas sim de uma típica da elegia se lembrarmos, como Conte aponta em seu estudo, da ideologia do seruitium amoris121 como fundamental para tal gênero poético. Trata-se do aspecto servil relacionado à postura excludente que, como referimos anteriormente, o amante elegíaco assume diante do mundo: nada que não se insere (ou que não possa ser inserido) no universo elegíaco em seu código amoroso deve contar para ele; servil, porém, em relação à amada e ao seu sentimento, deve ser o amante elegíaco. Em Amores I 9, o vate ovidiano, ao comparar o amante a um soldado (Militat omnis amans, et habet sua castra Cupido, Amores I 9 1), menciona a atitude do primeiro em relação à sua domina (Am. I 9 8), análoga à do segundo em relação ao seu dux (Am. I 9 5):

120 A tradução de A. S. Mendonça não privilegia a questão central de nossa discussão; mas solucionar a ambiguidade de pereat, atendendo aos dois sentidos aqui mencionados, traduzindo-o por uma única palavra em português, parece-nos pouco possível; uma alternativa seria explicitar um dos sentidos, na expressão “[para que não] morra de amor”. 121 G. B. Conte (1989, p. 37-8).

57

Peruigilant ambo; terra requiescit uterque – Ille fores dominae seruat, at ille ducis. Militis officium longa est uia; mitte puellam, Strenuus exempto fine sequetur amans. (Am. I 9 7-10)

“Ambos velam por toda a noite; um e outro repousam no chão: Um guarda as portas de sua senhora; o outro, as de seu comandante. Longa marcha é o dever do soldado: despacha a menina E o amante diligente a seguirá sem fronteiras.”122

Para o “mal do amor” que pode ser rapidamente sufocado, facilmente encontra-se a cura, nas seguintes condições:

Opprime, dum noua sunt, subiti mala, semina morbi. (Rem. 81).

“Esmaga, enquanto novas, as sementes nocivas do mal repentino”.

Vemos que o tradutor usa a palavra “mal”, conferindo um sentido mais amplo ao termo empregado pelo vate, morbus, que poderia ser lido mais concretamente: doença (cf. OLD, sentido 1). Uma vez, porém, que o tempo fortalece esse amor (cum mala per longas conualuere – “quando o mal se fortaleceu pela longa demora”, Rem. 92), o coração torna-se prisioneiro (mais uma imagem elegíaca: aquele que ama é cativo desse amor),123 e é mais difícil curá-lo. O amor como uma prisão é tematizado nos versos ovidianos que se seguem:

Ducentur capti iuuenes captaeque puellae;

122 Utilizamos aqui a tradução de L. A. de Bem para o texto latino de Amores (2007, p. 189). A estudiosa ainda se refere, em comentário à seruitio amoris, a outros poemas em que o termo domina é usado indicando a relação de escravidão que se estabelece entre o amante e a puella. (2007, p. 252). 123 Ver Conte (1989, p. 41). O autor aponta a tentativa do amante elegíaco em se livrar de sua escravidão amorosa – „slavery‟ – (uma tentativa vã, como afirma Conte, pois o amante está deliberadamente relutante à cura). Nesse sentido, pois, é que chamamos cativo o amante (elegíaco) que Ovídio está descrevendo em Remedia.

58 Haec tibi magnificus pompa triumphus erit. Ipse ego, praeda recens, factum modo uulnus habebo Et noua captiua uincula mente feram. Mens Bona ducetur manibus post terga retortis, Et Pudor et castris quidquid Amoris obest. (Am. I 2 27-32).

“Jovens cativos e menina cativas serão conduzidos. Este cortejo será teu magnífico triunfo. Eu mesmo, presa nova, terei a ferida aberta recentemente E com a mente renovada levarei cativos grilhões. A Boa Mente será conduzida com as mãos atadas para trás. E o Pudor e tudo o mais que impede a milícia do amor.”124

No entanto, nem mesmo a esses nega socorro o eu poético (que, como vimos, aqui é magister, ou seja, assume também a figura do “professor” típica da poesia didática, e ao mesmo tempo, médico; Rem. 77, citado acima). Para referir-se aos amantes que precisam de seu tratamento e ao próprio mal que os acomete, os termos aeger e o já referido morbus são usados, respectivamente, nas seguintes passagens:

(...) sed non, quia serior aegro Aduocor, ille mihi destituendus erit (Rem. 109-10)

“(...) mas não é porque sou chamado bem tarde junto ao doente que deverei abandoná-lo.”

Qui modo nascentis properabam pellere morbos (Rem. 115)

“Eu, que há pouco me apressava em expulsar um mal no nascedouro...”125

124 Tradução de L. A. de Bem (2007, p. 107).

59

A palavra aeger (aegro em Rem. 109) designa alguém “fisicamente doente”; “cansado”; “fraco” (OLD, verbete aeger, sentidos 1, 2 e 2b). Tal caracterização corrobora nossa interpretação: o amante infeliz é enfraquecido, mais ainda, adoecido, pelo mal do amor. Mais uma vez, esse mal que aflige o amante é caracterizado pela palavra morbus (morbos, Rem. 115; cf. também morbi, Rem. 81), que, como vimos, designa uma “doença”, “enfermidade”. Tudo isso enfatiza diversos aspectos do que, segundo lembra Conte, a elegia engloba em seu universo. Vemos, assim, uma imagem do amante elegíaco presente através do espectro lexical de que se vale Ovídio para compor o vate-magister (como médico), o leitor-discipulus (como paciente) e o objeto (amor como morbus, furor) de seus Remedia. Os mencionados versos servem de amostra para percebermos o quanto, em língua latina, o leitor é lembrado de que tal sentimento é uma doença (morbus) que pode ser fatal (pereat) e deve ser curada, como demonstram as passagens a seguir: ut ualeas, multa dolenda feres – “... para te curares, passarás por maus bocados” (Rem. 226); Vt ualeas animo, quicquam tolerare negabis? – “Para a saúde de tua alma, te negarás a suportar alguma coisa?” (Rem. 231). Para nossa investigação, o que aqui se apresenta configura-se, dessa forma, como um ponto de partida para aprofundar a análise de passagens do poema épico Metamorfoses,126 selecionadas a partir de uma comparação desse com os Remedia. Tal análise é feita no capítulo 3 no sentido de observar se nas Metamorfoses há essa ideia de amor como doença, se os termos e imagens respectivos, bem como a alusão a outros gêneros poéticos evocados em Remedia ali também aparecem. No mapeamento de excertos do texto latino de Remedia, buscando terminologia relacionada a doença e/ou ao amor, ficou clara a presença de termos e topoi chave da elegia erótica romana, e, portanto, de algumas alusões nessa obra ovidiana ao gênero elegíaco. Às passagens destacadas intenciona-se relacionar os tópicos recorrentes na poesia romana elegíaca, a saber, a seruitio amoris, renuntiatio amoris, a mulher como domina. Dessa

125 O verbete morbus pode ser encontrado, por exemplo, nos seguintes poemas elegíacos: Tibulo I 5; Catulo 76 9 e 25; id., 39 7; Ovídio, Amores I 14 41; Propércio II 1 58; Tibulo I 5 9; 126 IV 167-181, X 298-739, XIV 441-608.

60 forma, caracterizado como topos elegíaco a ideia que nos guia centralmente, neste estudo, o amor como doença.

2.2 Venus e a patologia amorosa em Remedia e Metamorfoses.

Após a referência ao queixoso Cupido (Rem. 2), uma remissão indireta à Vênus, conforme brevemente referimos na Introdução a este estudo (p. 17), o nome da deusa aparece doze vezes no poema Remedia Amoris.127 Para melhor apreciar tais referências, é importante considerar os sentidos que o termo latino Venus/uenus recebe em geral. Em língua latina, podemos encontrá-lo denotando mais diretamente a própria deusa do amor sexual e da procriação (cf. OLD, sentido 1a). A palavra pode ainda ser usada como metonímia: quer para se referir a uma mulher que inspira amor em alguém (cf. OLD, sentido 1b); quer para denotar objetos associados à deusa (cf. OLD, sentido 2). Ainda em sentido figurado, pode ser também sinônimo de um de seus atributos, a saber, a qualidade de quem atrai o amor sexual, de quem tem encanto e graça (cf. OLD, sentido 3), e, finalmente, designar intercurso ou apetite sexual, ou, no plural, o amor propriamente dito (cf. OLD, sentido 4). Tanto os usos metonímicos quanto a referência mais direta à entidade divina, i.e., ao enredo das história míticas de que ela participa, se encontram em Remedia Amoris. No primeiro caso, é mais frequente observarmos a utilização do termo Venus como equivalente a “amor”, i.e., sentimento amoroso. Em outras palavras, o poeta emprega constantemente em lugar do substantivo comum amor, por exemplo, atributo da deusa, o substantivo “Vênus”.128 Citamos alguns exemplos:

127 Versos 103, 143, 159, 200, 357, 405, 407, 431, 712, 800, 802 e 805. 128 Comparando duas das edições consultadas de Remedia Amoris, nota-se que na edição da tradução de A. S. Mendonça (1994), o nome da deusa aparece no v. 357 (Nunc tibi, quae medio Veneris praestamus in usu) grafado com letra maiúscula; ao passo que na edição da Loeb, tradução de J. H. Moozley (para referência completa, ver Referências Bibliográficas deste estudo), está com letra minúscula. Mais adiante, nos versos 405 (Sustentata Venus gratissima...) e 407 (Et pudet, et dicam: Venerem quoque iunge figura), o mesmo ocorre. "Nos livros antigos, os nomes próprios não eram diferenciados, e mal havia divisão de palavras". Por isso, assim como elementos esporádicos, tais quais a pontuação e sinais diacríticos, "todos esses aspectos da tradição representarão a

61

Nunc tibi, quae medio Veneris praestemus in usu, Eloquar (Rem. 357-8, grifo nosso).

“Agora vou te dizer o que fazer durante o ato mesmo de Vênus”

(...) delectate Veneris decerpere fructum (Rem. 103, grifo nosso).

“... nos apraz colher o fruto de Vênus”.

quod a Veneris rebus surgente puella (Rem. 431, grifo nosso)

“... quando a amiga se levantou dos afazeres de Vênus”.

Em todos os três exemplos acima, não haveria grande mudança de sentido (ao menos à primeira vista) com o uso de maiúsculas ou minúsculas na menção a Venus/uenus com referência a seu atributo. Outro exemplo, porém, de menção mais discreta à deusa nos chamou a atenção: “... tanto ama Vênus a ociosidade” – Tam Venus otia amat (Rem. 144). Aparentemente, nessa passagem o termo é usado apenas no sentido figurado, numa argumentação que podemos parafrasear como a seguir: a ociosidade leva aquele que ama a alimentar o sentimento amoroso. Entende-se: Ovídio prescreve, pois, que se deve, a fim de afastar e curar o amor, ocupar a mente com alguma atividade, e cita a caça como um exemplo. Nesse momento, o poeta estende para outra divindade o recurso utilizado em referência a Vênus/amor:

Vel tu uenandi studium cole; saepe recessit Turpiter a Phoebi uicta sorore Venus (Rem. 199-200, grifo nosso).

interpretação que alguém fez posteriormente de um texto que não consiste virtualmente em nenhuma outra coisa senão numa sequência contínua de letras" (M. L. West, Crítica textual e técnica editorial aplicável a textos gregos e latinos, 2002, p.66).

62

“Ou então, cultiva o gosto pela caça, com frequência Vênus bate em retirada, vergonhosamente vencida pela irmã de Febo”.

Trata-se aqui claramente de Diana, divindade romana identificada com a grega Ártemis, a deusa da caça.129 No entanto, cabe perguntar: seriam aqui as divindades meramente identificadas com aquilo que representam, de modo que o poeta acabaria por sintetizá-las na figura de linguagem, reduzindo seu mito ao atributo que àquelas se associava? Ou teríamos aqui alusão a algum episódio mitológico (a algum confronto entre Vênus e Diana), por exemplo, com que o poeta reforçaria sua argumentação (caça versus amor) ou a alguma passagem que relacione o ser apaixonado a uma caça?130 Ora, um episódio mitológico em que tal combate entre tais atributos das deusas se dá muito claramente é o de Hipólito,131 retratado em diversos textos antigos, como por exemplo, na tragédia homônima de Eurípides (428 a. C) e, posteriormente à época de Ovídio, em Fedra, de Sêneca (59 a. C).132 Em linhas gerais, sabe-se que, no episódio mítico, o filho de Teseu, um jovem casto, amante da caça e da solidão, sofre a ira da deusa do amor pelo fato de que ele, ignorando seu culto, homenageara apenas Diana. Vênus vingara-se inflamando em Fedra, madrasta de

129 Cf. Grimal (2000, verbete “Diana”) que assevera que “Diana é a deusa itálica e romana identificada com Ártemis” e que a assimilação se deu bastante cedo, possivelmente desde o século VI a. C. Dentre as referências de Ovídio a Diana, Grimal (2000, p. 118) enumera: Met. XV 497 ss; Fast. III 265 ss.; VI 735 ss. Cf. ainda, idem, ibidem, verbete “Ártemis” . 130 Cf. a análise feita por P. S. de Vasconcellos sobre Dido, rainha de Cartago, personagem da Eneida, de Virgílio, e seu amor por Eneias: “... num símile do livro IV (...), Dido será comparada a uma corça caçada por um pastor, ferida de morte por uma seta, numa inversão temática que salienta a queda sofrida pela personagem, sua degradação de ser ativo a passivo, de caçadora a caça, exemplo de funcionalidade semântica do símile nessa epopeia requintada, alexandrizante.” (2001, p. 104). Agradecemos à Profa. Dra. Patricia Prata por nos chamar a atenção para a referida análise. 131 Agradecemos ao Prof. Dr. Flávio de Oliveira (IEL-Unicamp) pela lembrança do mito de Hipólito durante nossa apresentação em etapa inicial do estudo no Seminário de Pesquisa em Graduação (Sepeg – IEL – Unicamp), em 2006. Sobre a concepção de amor como doença na tragédia Hipólito de Eurípedes, cf. Oliveira (2011). 132 Para outras fontes do mito pivô da rivalidade entre as deusas, cf. P. Grimal (2000), verbete “Hipólito”. Em Ovídio podemos nos lembrar dos versos 375-6 no livro V das Metamorfoses, em que Vênus manifesta claramente a rivalidade com Diana. Tal passagem será tratada com mais vagar em etapa posterior do estudo, mas uma análise inicial já consta do capítulo 2 deste texto.

63 Hipólito, o amor pelo enteado. Vendo-se rejeitada, Fedra acusa o jovem de tê-la violentado e faz com que Teseu provoque a morte do próprio filho. Um aparte metodológico aqui se faz necessário: essa impressão de que episódios como o de Hipólito sejam aludidos em Remedia pressupõe, evidentemente, que o leitor dessa obra tenha familiaridade, se não com a referida tragédia grega, no mínimo com outros textos clássicos que contenham essa versão do mito de Hipólito.133 Parece-nos, pois, muito provável que a um leitor que conheça esses outros textos, na menção, à primeira vista apenas metonímica, do nome de Vênus (contraposto ao de Diana) em Remedia Amoris (199-200), a presença do mito seja efetivamente evocada e sirva de reforço a um preceito aos mortais (“ocupe-se da caça, para esquecer uma desventura amorosa”). É bem provável que tal conflito entre Vênus e Diana fosse familiar ao público ovidiano: é o que nos sugere o fato de que o mito de Hipólito, filho de Teseu, será tratado em mais três obras do poeta: Heroides IV; Metamorfoses XV 497 ss.; Fastos VI, todas posteriores a Remedia.134 Além disso, é interessante observar que, na versão de um outro mito nas Metamorfoses, a história do teseida já tem sido apontada: estudiosos destacam semelhanças entre o comportamento da ama de Mirra em Ovídio e a ama de Fedra na tragédia Hipólito, de Eurípides.135 Voltaremos a esta questão quando analisarmos o episódio de Mirra, no Capítulo 3. Portanto, é bem provável que diversas das menções a Venus/uenus (não raro apagadas numa tradução que interprete, prioritariamente, o sentido metonímico do termo) trouxessem, ao público antigo, sentidos provindos do diálogo com o mito evocado. No caso, o conflito entre Diana e Vênus parece corroborar o preceito do vate-magister (quanto ao uso da caça, para afastar ociosidade e amor). Mas, será sempre assim? Procuramos ter em mente esta questão durante a tradução e análise dos textos ovidianos selecionados. Ao leitor moderno, a obra Metamorfoses é igualmente importante para o acesso aos mitos aludidos em Remedia. Isso porque esse extenso compêndio mitológico já tem sido

133 Além das obras que tratam do mito de Hipólito mencionadas neste capítulo, mencionam-se outras, também disponíveis ao leitor ovidiano antigo: Virgílio, . VI 445, VII 761; Apollodoro, Biblioteké, III 10.3; Pausânias, I 22 ss., II 27.4, II 32-3 e 10; Schol. ad Aristófanes. Ran. 873; Tzetz. ad Lycoph. 449, 1329, 1332; Cícero, de Nat. Deor. III 31, de Off. I 10; Serv. ad En. VI 445, VII 761. (P. Grimal, 2000, verbete “Hipólito” e W. Smith, 1996, verbete „Hippolytus‟). 134 Cf. P. Grimal (2000), verbete “Hipólito”. 135 Cf. Hill (1995, p. 175).

64 empregado para, retroativamente,136 se entender a referência aos mitos nas obras anteriores de Ovídio. Como se sabe, o épico ovidiano é frequentemente absorvido pelos manuais de mitologia modernos, muitas vezes sem o citar.137 Pensando em Remedia, fica, pois, a impressão de que a menção ao sentimento amoroso, conjugado à menção de Vênus, frequentemente pode também aludir a histórias mitológicas em que a divindade aparece, e de modo a contribuir com um efeito de sentido no texto em que a deusa é mencionada. Um exemplo: tendo em vista que há muitos mitos em que o sentimento amoroso traz desgraça ou aflição, o recurso usado parece ter o efeito de despertar no público a confirmação da asserção ovidiana – o amor é uma doença, um mal que deve ser curado – que é, como já referimos, o mote da obra Os Remédios do amor. Com essa hipótese em mente, passemos a uma leitura de todas as passagens que mencionam Vênus em Remedia: quer empregando o termo Venus/uenus, quer referindo-se a episódios em que a deusa tem participação significativa.138 O primeiro mito aludido é o de Diomedes. Afirma o eu poético:

Non ego Tydides (Rem. 5)139

“Não, não sou eu o filho de Tideu”

Sabe-se que Diomedes,140 companheiro de Ulisses em várias missões, tendo agredido a deusa em uma batalha na guerra de Troia, foi vitimado pela cólera de Vênus:

136 A expressão “vetor retroativo” aparece, por exemplo, em Hinds (1998, p. 52-83); Fowler (2000, p. 129 e seguinte), cf. Cardoso (2009, p.105 , n. 80). Sobre a consciência, enfatizada por estudos intertextuais, de um “vetor retroativo” nos Estudos Clássicos, cf. Vasconcellos (2001), Vasconcellos (2007). 137 Cf., por exemplo, o manual de mitologia de T. Bulfinch (O Livro de ouro da mitologia, 2001), apud M. M. de P. Silva (2008, p. 81). Sobre o papel das Metamorfoses de Ovídio no estudo dos mitos que se deu a partir do séc. XVIII, cf. Graf (2002, p. 108) e G. B. Conte (1994, p. 363). 138 Baseamos nosso levantamento no dicionário de Grimal e de Smith, bem como no levantamento apresentado no índice do editor e tradutor do texto latino da Loeb, F. K. Miller (1984, n. 2). 139 O dicionário de Pierre Grimal menciona tanto o mito em que Diomedes fere a deusa em batalha, quanto faz referência à vingança da deusa. 140 Cf. Grimal e W. Smith, verbete “Diomedes”: os autores não enumeram Ovídio entre os poetas que versam sobre esse episódio; mas ambos mencionam a passagem da Ilíada em que a deusa do amor é ferida pelo herói (a saber, V 84 ss.). É importante ressaltar que, apesar de não

65 como vingança, ela fez com que a mulher do guerreiro lhe fosse infiel. Nesse verso, o vate se refere ao herói etólio afirmando que não se equivalia a ele, no sentido de que não escrevera o poema para atingir Vênus. Leia-se: ele não pretenderia, dessa forma, colocar-se contra ela, ou contra o amor que a deusa mantém sob seu comando. Alguns versos adiante, o poeta, dirigindo-se a Cupido, faz alusão a uma versão mitológica segundo a qual Marte e Vênus teriam sido amantes:

Vitricus et gladiis et acuta dimicet hasta, Et uictor multa caede cruentus eat. Tu cole maternas... artes... (Rem. 27-9).

“Deixa teu padrasto lutar com espadas e lança aguda e, ensanguentado, sair vitorioso em meio a muita morte. Tu cultivas as artes maternas...”.

Dizendo a Cupido que se filie às artes cultivadas pela mãe141 (Vênus) e que deixe as lutas e as lanças para o padrasto (Marte), Ovídio lembra a relação entre a arte do amor e a arte da guerra – aspecto presente na Ars amatoria e também em Amores (em que se sugere que o amante se deve comportar como um soldado).142 É interessante observar como esse tratamento do amor como batalha, presente em Ars, cede espaço em Remedia à apresentação do amor como doença: a ênfase na ferida de guerra (uulnus), anteriormente

mencionado pelas obras de referência consultadas, esse erro do filho de Tideu está presente em Ovídio nas seguintes passagens das Metamorfoses: XIV 477 e XV 769, 806. 141 Sobre uma das possíveis genealogias de Cupido, W. Smith menciona a seguinte fonte: Cic. de Natura Deorum III 23, no verbete “Eros”. Tais “sutilezas de mitógrafos”, diz Grimal, são reunidas por Cícero nesse tratado, e os mitos referentes a Eros são considerados por ele como artificiais, inventados para suprir lacunas ou contradições das lendas primitivas (P. Grimal, 2000, verbete “Eros”). 142 Muitos estudos discutem a relação entre o amor e a guerra em Ovídio, a saber, por exemplo: G. B. Conte (1989, p. 38); A. Sharrock (2002, p. 150); M. Trevizam (2003, p. 118-20), além de L. A. de Bem (2007), que analisa essa oposição nos Amores.

66 comentada, nos parece um exemplo dessa ressignificação das imagens bélicas143 no contexto do gênero didático.144 O próximo mito dos Remedia que conta com a participação da deusa do amor é o julgamento feito por Páris na escolha da mais bela das deusas, em que concorriam Vênus, Juno e Minerva, episódio certamente familiar aos coevos de Ovídio.145 O jovem escolhe a primeira: como recompensa, ganha o amor de Helena, a mais bela das mortais; mas, por conta dessa paixão, dá-se a guerra de Troia.146 É nesse contexto que Ovídio afirma que, se Páris tivesse sido entregue a seus cuidados, a cidade grega seria poupada (Rem. 65-6, acima mencionados). Há finalmente, então, a menção ao mito de Mirra:

Si cito sensisses quantum peccare parares Non tegeres uultus cortice, Myrrha, tuos. (Rem. 99-100)

“Se tivesses percebido logo o tamanho da falta que ias cometer, não cobririas, Mirra, teu rosto de cortiça”.

Certamente o amor seria visto como culpado nas desventuras de Mirra por parte do público ovidiano que tivesse conhecimento de certa versão do mito respectivo. Trata-se da versão, presente, por exemplo, em Paníasis (apud Apollodoro III 14 4) e Higino (Fab. 58, 164, 251, 271),147 segundo a qual a moça despertara a cólera de Vênus por lhe negar

143 Sobre a militia amoris como topos épico incorporado ao gênero didático, cf. M. Trevizam (2003, p. 118 ss.) e M. Gale (2000, p. 114). 144 Cf. Gale (2000, p. 232 ss.). A estudiosa trata da transferência de imagens da épica para o gênero didático. Adiante, neste estudo (capítulo 3.2.4), comentaremos a relação entre os dois gêneros. 145 O dicionário de W. Smith (verbete „Paris‟) fornece as seguintes fontes para tal versão do mito de Páris: Eurip. Iphig. Aul. 1302, 1298 ; Paus. 5.19 § 1; Eustath. ad Hom. p. 986; Hom. Il. 24.25; Schol. ad Eurip. Hecub. 637, Troad. 925, &c., Helen. 23, &c., Androm. 284; Hyg. Fab. 92; Lucian, Dial. Deor. 20. 146 Em sua correspondência do exílio, Ovídio mantem a ênfase quanto à proeminência da motivação amorosa nas narrativas homéricas da guerra de Troia (cf. Tristia II 371-76), passagem que serve de epígrafe ao próximo capitulo. 147 Entre os autores que narram o mito de Mirra, podemos citar: Higino (Poet. Astron. 2.7), Teócrito (Idyll. XV), Bíon (Idyll. I.), sendo a versão de Higino a mais afinada com a de Ovídio.

67 homenagens, e, como consequência, a deusa teria feito com que aquela se apaixonasse pelo próprio pai, Ciniras, rei de Chipre. Nas Metamorfoses não será esta a versão (imediatamente) corroborada, ou assumida, como veremos. Mas ali encontraremos uma detalhada descrição dos efeitos do amor de Mirra, aos quais Remedia alude. O “rosto coberto de cortiça” (tegeres uultus cortice, Rem. 100) refere-se à transformação sofrida por Mirra: os deuses, a fim de protegê- la do intuito do pai ludibriado, transformam-na em árvore (Metamorfoses X 490-502). Meses depois, a cortiça se teria rompido, e dela saído uma criança, Adônis, fruto do amor de Mirra e de seu pai (Met. 512-3). Como se sabe, o jovem, mais tarde, despertaria o amor da própria deusa Vênus (Met. X 524 e 529). Mas, fica a questão de como a transformação de Mirra, apenas aludida em Remedia, é narrada pelo mesmo poeta em Metamorfoses. Esse aspecto será tratado no próximo capítulo.

Vale acrescentar que, nos dicionários consultados (Grimal e Smith), há indicação da narrativa do episódio mitológico nas Metamorfoses (X 345 e ss.) como fonte para elaboração do verbete (“Adônis”) e que o comentário feito por Hill em sua tradução da passagem do livro X das Metamorfoses (1999, p. 175) muito elucida sobre as ocorrências do mito de Mirra na Antiguidade.

68 3 Apreciação de passagens traduzidas

3.1 Vênus e Marte

Quis, nisi Maeonides, Venerem Martemque ligatos narrat in obsceno corpora prensa toro?148 (Tristia II 377-8)

Respondendo à pergunta que Ovídio, nos versos que nos servem de epígrafe, ironicamente coloca, o adultério entre o deus da guerra e a deusa do amor é também abordado, além de por Homero („o Meônida‟) no oitavo canto da Odisseia, também pelo próprio Ovídio: nos versos de Ars amatoria (II 582-92), em Remedia Amoris (159-60)149 e nas Metamorfoses (IV 167-89). Em Remedia, o episódio do adultério de Marte e Vênus é apontado, ainda que en passant, no verso em que Ovídio chama de amante de Vênus (Rem. 160) aquele que comanda a guerra – após já ter se referido a Marte como o padrasto do Cupido (uitricus, Rem. 27):

Vt semel Aetola Venus est a cuspide laesa, Mandat amatori bella gerenda suo. (Rem. 159-60, grifos nossos)

“Vênus, desde que foi ferida pela lança etólia, confia a seu amante gerir a guerra.

Ao traduzir passagens ovidianas referentes a tal mito de Marte e Vênus, interessantes aspectos relativos a estilo e significado na poesia ovidiana foram constatados. Por exemplo, é notável o diálogo intertextual que se poderia explorar entre tal passagem de

148 “Quem, senão o Meônida, canta Vênus e Marte enredados/ com seu corpos entrelaçados em um leito obsceno?”, P. Prata (2007, p. 215). 149 Há ainda o trecho de Remedia em que Ovídio refere-se ao deus da guerra como o padrasto de Cupido, uma vez que seria amante de sua mãe, a deusa do amor: uitricus, Rem. 27.

69 Ovídio (Met. IV 167-189) e o excerto da Odisseia (VIII 266 – 362) em que Homero já narrava o embaraçoso acontecimento. Já foi apontado150 o fato de que consta do texto de nosso poeta apenas uma alusão ao que Homero já apresentara em sua épica e, portanto, não só convergências, como também divergências têm sido apontadas no cotejo de ambas as passagens.151 Sem a pretensão de, neste estudo, nos aprofundarmos na análise de tal relação, gostaríamos de apontar algumas dessas diferenças e semelhanças entre uma e outra versão, no que tange ao conteúdo mítico narrado.152 Ora, apenas pelo número de versos de um e outro texto já é perceptível, por exemplo, que Homero, em seus 96 versos, demora-se mais que Ovídio nessa narrativa.153 Diferente da sucinta narrativa ovidiana, Homero empresta sua voz ao aedo Demódoco154 (VIII 266): é ele quem relata em vários versos o mencionado episódio, e o faz a partir do momento em que o Sol delata a Mercúrio os amores de Vênus e Marte (VIII 270-1) até a parte em que o traído marido, a pedido de Netuno, solta os adúlteros (VIII 359), na presença e sob os comentários e as gargalhadas de outros deuses do Olimpo (VIII 333-43). Vejamos como Homero inicia a narrativa e aponta o deus Sol como o delator do adultério:

“Versa o belo canto sobre o amor de Ares por Afrodite, diadema rútilo, como se uniu a ela na mansão de Hefesto uma primeira vez: humilha o leito heféstio e dons à deusa oferta. Testemunha a união

150 Cf. Hill (1985, p. 238). 151 Cf. bibliografia indicada por Hill (1985). 152 Nossa leitura, que coteja sobretudo os textos ovidianos de Remedia com os respectivas partes de Metamorfoses, se restringirá aos apontamentos em relação aos detalhes do enredo do mito. Mereceria um estudo específico a comparação do texto original do poema homérico com os excertos ovidianos respectivos, o que poderia promover uma discussão intertextual pela observação dos aspectos linguísticos ou estilísticos ressaltáveis no confronto dos textos grego e latino. 153 Sobre a condensação como um marcador alusivo, cf. P. S. de Vasconcellos (2001, p. 93 ss.). Agradecemos, uma vez mais, à Profa. Dra. Patricia Prata por apontar para tal discussão e lembrar- nos de que a amplificação também pode ser um processo alusivo. 154 Demódoco é o nome atribuído a dois aedos presentes nas épicas homéricas (P. Grimal, 2000, verbete “Demódoco”), nomeadamente nos cantos VIII e XIII da Odisseia.

70 o Sol, que os denuncia.” (Odisseia VIII 266-71)155

Em Ovídio, vemos também uma menção ao fato de que a união dos deuses da guerra e do amor foi delatada pelo Sol, mas, nos versos das Metamorfoses, a narrativa é feita por Leucónoe (dicere Leuconoe, IV 168), após a fala de sua irmã que acabava de contar a história de Píramo e Tisbe (Met. IV 55-166). Ela inicia uma série de histórias sobre os amores do Sol (Solis referemus amores – “do Sol os amores narraremos”, Met. IV 170); o episódio da traição de Hefesto é a primeira dessas narrativas:

Desierat: mediumque fuit breue tempus et orsa est dicere Leuconoe: uocem tenuere sorores. “hunc quoque, siderea qui temperat omnia luce, cepit amor Solem: Solis referemus amores. 170 primus adulterium Veneris cum Marte putatur hic uidisse deus: uidet hic deus omnia primus. (Met. IV 167-72, grifos nossos).

“Terminara; e houve breve intervalo de tempo, e Leucónoe começou a falar. As irmãs contiveram a voz. “Também aquele que com sua luz rege todos os astros, o amor capturou: o Sol; do Sol os amores narraremos. Julga-se que este deus foi o primeiro a ver O adultério de Vênus com Marte: este deus vê tudo primeiro.”

A começar pela motivação dos personagens homérico e ovidiano que narram o episódio mítico, Demódoco e Leucónoe, respectivamente, nota-se uma divergência entre uma e outra épica. Na Odisseia, o entretenimento de Odisseu promovido por Alcínoo, o rei de Ítaca (Od. VIII 246-55), é a justificativa do aedo para cantar tal mito. Já em Ovídio, Leucónoe anuncia que narrará episódios amorosos em que o deus Sol tem participação

155 Para a versão em português do texto homérico da Odisseia aqui transcritos, utilizamos a tradução realizada por Trajano Vieira (2011).

71 (Met. IV 170) e contará o que o levou a ser uma vítima do amor (cf. cepit amor, Met. IV 170, “o amor pegou/ capturou”): exatamente o fato de ter delatado o adulterium (Met. IV 171)156 da própria deusa Vênus. Mais adiante, ainda por meio das palavras de Leucónoe, Ovídio claramente associa a essa vingança o mal que atinge o Sol:

Exigit indicii memorem Cythereia poenam inque uices illum, tectos qui laesit amores, laedit amore pari. (Met. IV 190-2)

“A Citereia manteve em mente vingar-se do informante e em retribuição a ele, que prejudicou seus amores furtivos, da mesma forma ela o prejudica no amor.”

Observando mais atentamente as passagens que prenunciam a narrativa que aqui contemplamos, notamos ainda que alguns detalhes, presentes na Odisseia, são omitidos nas Metamorfoses. Por exemplo, em Ovídio não se fala da viagem para a ilha de Lemos que Hefesto simula (“Assim que espalha a rede inteira em torno ao leito/ finge partir a Lemno”, Od. VIII 282-3), nem se descreve o momento em que Poseidon pede ao deus que solte Ares (“... o deus do mar, que solicita/ a liberdade de Ares ao ilustre artífice”, Od. VIII 344-5), mas ao menos um aspecto, como veremos, é estendido na obra ovidiana para além do que se narra no texto homérico, a saber o momento em que Vulcano trama a rede que usará para prender os amantes. Ao presenciar o adultério, então, o Sol vai até Hefesto delatar o que vira:

Indoluit facto, Iunonigenaeque marito furta tori furtique locum monstrauit, (...) (Met. IV 173 - 4)

Condoeu-se do fato e revelou ao marido, filho de Juno, o crime contra o casamento e o local do crime.

156 O verbete „adulterium‟ é usado no sentido primeiro previsto no OLD: “Adultério” – “1. Adultery”.

72

O filho da ciumenta Juno (Iunonigenaeque marito, Met. IV 173) – gênese enfatizada por meio de longa palavra composta, alongada ainda pela partícula enclítica – que) não deixou por menos, armando ardil digno de sua vingativa mãe. Interessante é notar o modo como Ovídio descreve o artifício elaborado pelo deus traído e lembrar que Homero, no já referido trecho da Odisseia, não aborda o momento da trama do artifício de Vulcano de maneira tão detalhada quanto vemos aqui. Citamos o momento da obra de Homero que aqui se comenta:

“sofrendo muito invade a oficina, ecoando Dentro de si a história amargurante. Lá, depõe no cepo a incude enorme e forja argolas Inexpugnáveis, infrangíveis, que os prendessem”. (Od. VIII 272-5, grifos nossos).

Nota-se, então, a ligeira amplificatio ovidiana do momento em que Vulcano forja seu artefato:

(...) at illi et mens et quod opus fabrilis dextra tenebat excidit: extemplo graciles ex aere catenas retiaque et laqueos, quae lumina fallere possent, elimat. (Met. IV 174 – 78, grifos nossos)

“(...) mas, quanto a esse, lhe escaparam tanto a razão quanto o artefato que sua mão direita segurava: imediatamente, do ar, ele lima cadeias delgadas e redes e laços capazes de iludir os olhos.”

Notamos como, por meio da forma, Ovídio ressalta o significado da história que conta. No verso 176, por exemplo, observamos a repetição da sílaba ex: excidit/ extemplo/ ex aere, o que nos parece acentuar o caráter súbito (extemplo) da reação do marido traído.

73 Além disso, ex (“fora de”) parece ressaltar que o deus estaria, num primeiro momento, como que “fora de si” (mens... excidit). Note-se, ainda, a concisão desses versos: o mesmo verbo (excipere), é usado em dois sentidos – um mais concreto, com artefactus, designa a queda do objeto; já excipere mens significa “perder a razão”, “sair de si”. Finalmente, ainda sobre o mesmo trecho, observamos que uma comparação similar a que Ovídio faz da rede de Vulcano com uma teia de uma aranha (Met. IV 179) já tinha sido realizada por Homero, no momento em que o deus envolve o leito dos amantes; trata-se, porém, no caso do „Meônida‟, de uma comparação do próprio Hefesto com uma aranha, no momento em que o deus tece os liames da rede.

“Circunda o estrado com liames, muitos outros espalha acima quase ao teto, feito aranha sutil, imperceptível ao olhar agudo até de um nume, tão exímia era a cilada”. (Od. VIII 278-81).

Nas Metamorfoses, não exatamente uma aranha, mas a sua teia (indicada, no entanto, metonimicamente, pela mesma palavra que designa aranha, aranea, Met. IV 179), serve de comparação para o artefato de Vulcano:

(...) non illud opus tenuissima uincant stamina, non summo quae pendet aranea tigno; utque leuis tactus momentaque parua sequantur efficit et lecto circumdata collocat arte (Met. IV 178-81, grifos nossos).

“(não venceriam tal obra os fios mais finos, sequer a teia de aranha pendurada do alto caibro). Ele os coloca com arte, circundando o leito, a fim de que respondam e, em poucos instantes, a leves toques.

74 A rede forjada pelo marido de Vênus é, em ambas as passagens, notável pela sua invisibilidade, e circunda o leito que aguarda a união dos amantes. Em Homero, o encontro de Ares e Afrodite é em detalhes narrado:

“(...) À espreita, Ares das rédeas áureas viu quando partiu Hefesto da mansão, artífice notável. Invade a casa do ferreiro afamadíssimo, Ansiando amar Citérea, belo diadema. Sentada numa sédia, dá com ela, há pouco Egressa do solar de Zeus, deidade máxima. Em posse de suas mãos falou-lhe: „Vamos, cara, Nos entreguemos ao amor no leito! Hefesto acaba de tomar a direção de Lemno, onde verá os síntios, de pronúncia esdrúxula.‟ Assim falou e seu convite a rejubila. No leito então dormita a dupla e os filames Forjado pelo pluri-imaginoso Hefesto Impede-os de mover minimamente os membros. Concluíram não haver como escapar do ardil.” (Od. VIII 284-99).

É notável como, em Ovídio, a concisão é característica importante no que tange à comparação que realizamos aqui com o excerto de Homero. Vejamos como se dá tal recurso:

Vt uenere torum coniunx et adulter in unum, arte uiri uinclisque noua ratione paratis in mediis ambo deprensi amplexibus haerent. (Met. IV 182-84)

“Quando vieram a esposa e o adúltero se unir em um só leito, Presos pela arte do esposo e pelos vínculos preparados com

75 a nova técnica, Ficam imobilizados, ambos, em plenos abraços.”

No verso 180 dessa passagem, duas possíveis brincadeiras de Ovídio são notáveis. Um jogo verbal se dá pela escolha do termo uenere (“vieram”, forma alternativa de uenerunt, pretérito do verbo uenire), homógrafo do ablativo do substantivo abstrato uenus, “amor”. Outro, na expressão adulter in unum, que lembra o termo adulterium, anteriormente mencionado. Com tais jogos de palavra o poeta imitaria (ou emularia, ora gráfica, ora sonoramente) a ilusão visual da arte de Vulcano. Não há, em Remedia uma alusão ao desfecho ridicularizante narrado tanto em Homero quanto em Metamorfoses. Em ambas as épicas, porém, os deuses vêm para assistir a vergonha dos adúlteros; por um lado, em Ovídio, há uma rápida menção a espetacularização do ocorrido e ao desejo de um dos deuses presentes de jazer atado à Vênus:

Lemnius extemplo ualuas patefecit eburnas inmisitque deos; illi iacuere ligati turpiter, atque aliquis de dis non tristibus optat sic fieri turpis; superi riseri... (Met. IV 185-8)

“O Lêmnio imediatamente escancarou as portas ebúrneas E adentrou os deuses. Os outros jaziam atados Torpemente. Mas alguém, dentre os deuses nada tristes, Queria ficar torpe assim. Os súperos riram...”

Em Homero, por outro lado, os deuses também acorrem para assistir o flagrante de Hefesto, mas o desfecho na Odisseia é mais detalhado quando o comparamos à breve menção de Ovídio aos acontecimentos finais do episódio. Enquanto contemplam a vergonha dos amantes, tecem comentários e riem, conforme o que consta do texto das Metamorfoses. Mas em Homero fica mais clara a relação entre o riso dos súperos presentes e a inveja que um deles teve de Ares, preso na teia com a bela deusa; conforme a versão

76 anterior de Homero (Od. VIII 335-42),157 trata-se do deus Hermes, que se apaixonara por Afrodite. Novamente, o que em Ovídio é apenas uma breve menção trata-se em Homero de uma passagem mais extensa e detalhada, no que concerne ao enredo da lenda:

“(...) Apolo, filho de Zeus, falou a Hermes: „Núncio generoso, enleado em liame inextricável, quererias dormir ao lado de Afrodite áurea?‟ E disse-lhe em resposta o Argicida mensageiro: “Ah, longiflecheiro Apolo, fossem três os elos que me prendessem, ou melhor, fossem inúmeros os elos bem estreitos, deuses com as deusas, todos arregalando os olhos ao redor sim!, dormiria, sim!, com a dourada Cípris. Falou e o riso rebentou entre os divinos. Só um não ri, o deus do mar, que solicita a Liberdade de Ares ao ilustre artífice.” (Od. VIII 334-45).

Talvez não seja exagerado supor que, a um público conhecedor da épica homérica, seria desnecessário retomar minúcias conhecidas do mito, portanto, a narrativa ovidiana que omite alguns detalhes e estende outros, sob um ponto de vista mais superficial, poderia ser vista como tendo um caráter meramente complementar em relação à respectiva passagem da Odisseia. Mas, seria ingênuo reduzir a inuentio ovidiana à uma simples transmissão de informações de caráter mais referencial: mais interessante é observar a maneira também concisa com que Ovídio retoma a espetacularização da vergonha dos amantes que há em Homero. Isso porque no texto de Ovídio, dá-se em quatro versos o que Homero estende por uma longa passagem de 24 versos, nos quais se encerra o mito, conforme vimos anteriormente, desde o momento em que outros deuses (“... e o sólido brônzeo da morada os deuses/ transpõem”, Od. VIII 321-2) assistem e comentam o flagrante (Od. VIII 325-32),

157 Cf. Hill, 1985, p. 238.

77 até a parte em que, libertos, os amantes fogem (Od. VIII 360-2). Mas o foco da narrativa ovidiana está no delato do Sol, na estratégia de Vulcano em ridicularizar os amantes e na teia armada para tanto, não na gravidade de um adultério – na passagem do livro IV das Metamorfoses, o poeta privilegia a referência, em 22 versos, ao caráter de vítima do amor (Met. IV 169-70) e de delator do Sol (Met. IV 171-2) – que é, como vimos, a motivação da personagem narradora de Ovídio para contar a história – o artefato tecido pelo marido Vulcano (Met. IV 173-9), a união dos amantes (Met. IV 180-4) e o espetáculo observado pelos deuses (Met. IV 185-9). Na Odisseia, os mesmos aspectos estão presentes, mas em diversos momentos o adultério é dito grave: quando Hefesto afirma odiar o caráter da bela deusa (Od. VIII 320) e nos comentários dos deuses (“O vício/ não resulta em virtude”, Od. VIII 328-9, e ainda em “Que o outro pague”, Od. VIII 332). O próprio deus do mar, que intervém a favor de Ares, reconhece a dívida do traidor (“Solta-o,/ pois eu garanto que ele pagará sua dívida/ integralmente, diante dos demais olímpicos”, Od. VIII 346-8, e ainda em “Mesmo se Ares/ fugir sem honrar seu débito, Hefesto,/ arco eu com o que deve”, Od. VIII 354-6). Vemos, então, o mesmo mito de três formas distintas: em Remedia Amoris, a referência ao episódio que aqui analisamos é apenas uma alusão; note-se o que os lacônicos termos amatori e uitricus privilegiam: ambos referem-se ao deus da guerra como simples amante da deusa do amor. Já em Metamorfoses, vemos uma extensão da história a que Remedia alude, na medida em que na épica ovidiana o adultério de Vênus em Marte é, não apenas aludido, mas narrado (ainda que de maneira concisa, se o compararmos com sua versão homérica). Na Odisseia, a traição da deusa do amor é ainda mais minuciosamente apontada, no que tange aos detalhes presentes no enredo desse mito. Considerando-se não apenas a recorrência com que o tema do adultério é tratado no universo da elegia erótica romana,158 e sobretudo o tom cínico e mesmo jocoso com que a questão é apresentada em elegias do próprio Ovídio (por exemplo, em Amores II 2; II 9; III 4), pode-se deduzir que qualquer semelhança entre a narrativa de tal affaire de Vênus nas

158 M. Trevizam (2003, p. 116-7) lembra que a puella do amante elegíaco é uma adúltera: “É curioso que, embora o círculo elegíaco se pretenda como dimensão apartada da concretude da vida romana contemporânea, há, por vezes, certa tentativa de integração de valores sociais caros aos „honestos‟ a seu modo peculiar de constituição das relações entre os homens: é exatamente o caso da reivindicação da fides (boa-fé, respeito ao pacto implícito firmado entre os amantes) no contexto duma ligação com ninguém menos do que uma mulher apresentada como adúltera ou venal.”

78 Metamorfoses e a que encontramos em poetas como Propércio, Tibulo e, sobretudo, Ovídio não parece ser mera coincidência.

3.2 O mito de Mirra em Ovídio

Em Remedia Amoris (99-100), como comentamos no Capítulo 2 deste trabalho, há a menção ao mito de Mirra e à falta cometida pela personagem apaixonada como um antiexemplo, bem como à sua metamorfose. A seguir, comentaremos a passagem em que o poeta narra esse episódio, nas Metamorfoses. O longo excerto do livro X (298-502) traduzido para esse estudo revela não apenas a narrativa de um amor extraconjugal tal qual visto no relato dos amores de Vênus, mas sobretudo de um amor incestuoso entre o pai, o rei Ciniras, e a filha, Mirra. Ora, até que ponto, e sob quais aspectos essa desventura amorosa pode ser equiparada ao mal do amor que assola os elegíacos romanos contemporâneos a Ovídio? Ou seja, até que ponto o amor que sente Mirra será o mesmo mal que Remedia Amoris ensina a amenizar? Para investigar essa questão se pretende apreciar mais de perto neste capítulo o modo como tal mito é abordado no livro X das Metamorfoses pelo vate a quem Ovídio empresta a voz nesse excerto de sua épica, ou seja, por Orfeu. Nossa impressão é de que uma análise desse episódio pode, de um lado, ilustrar ao menos um dos modos como a imagem da deusa do amor (e, consequentemente, do amor) se mostra em Metamorfoses, de outro, nos permitir perceber se a história em Metamorfoses corrobora ou não a função do mito de Mirra em Remedia. Em relação a esse mito, costuma-se apontar uma profusão de textos antigos que dele se ocupam (através de uma narrativa ou de referências mais ou menos diretas), mas muito poucos são remanescentes. Por volta de 140 a. C.,159 Apolodoro afirma em sua Biblioteké (III 14 4), que certo poeta épico do século V a. C., Paníase, já a teria contado. Nos versos

159 Cf. verbete “Apollodorus” in M. Howatson (ed.), OCCL.

79 828-30 de Alexandra, uma obra atribuída a Licofronte (c. 320 a. C),160 menciona-se que Adônis teria nascido da árvore da mirra. Antonino Liberal161 (34) conta uma versão da história atribuída já ao poeta grego do início do século V a. C., Ferecides de Leros e de Atenas.162 Mencionado por Catulo em seu poema 95,163 o epílio Zmyrna,164 de autoria do poeta romano Cina (Gaius Heluius Cinna), embora fosse admirado por seus contemporâneos por sua vasta erudição, não foi transmitido à Modernidade,165 de forma que não é possível avaliar sua influência sobre a respectiva narração poética de Ovídio. Tendo em conta as versões transmitidas,166 estudiosos apontam aspectos particulares da versão ovidiana da história de Mirra. Dentre eles, destacamos, primeiramente, um de caráter genealógico: nos versos que antecedem a narrativa do mito da princesa de Chipre, é contada a história de Pigmalião (Met. X 243-97), artífice que se uniu a uma donzela, antes

160 Ou, a Pseudo-Licofronte, tendo em vista as suspeitas quanto à autoria de Alexandra, monólogo dramático atribuído ao referido poeta helenístico proveniente de Cálcis, cf. OCCL, verbete “Lycophron”. 161 Antonino Liberal (Antoninus Liberalis), autor de uma coleção de histórias curtas sobre metamorfoses, teria vivido na época dos Antoninos ou dos Severos (entre os séculos II e III de nossa era). Nos fragmentos de sua obra que foram transmitidos, citam-se nomes de outros autores de obras concernentes à mitologia. Cf. “Antoninus Liberalis”, H. Cancik; H. Schneider (eds.), Der neue Pauly, Bd. I, 1996. 162 Sobreviveram apenas fragmentos dos dez livros em que Ferecides narraria episódios mitológicos. Cf. verbete “Pherecydes”, no OCCL. 163 Zmyrna mei Cinnae nonam post denique messem/ quam coepta est nonamque edita post hiemem,/ milia cum interea quingenta Hortensius uno uersiculorum anno putidus euomuit/ Zmyrna cauas Satrachi penitus mittetur ad undas, Zmyrnam cana diu saecula peruoluent – “Esmirna do meu Cina, após a nona messe,/ do início após o nono inverno surge,/ enquanto Hortênsio fétido num ano só/ milhares de versinhos vomitou. Esmirna vai às ondas côncavas do Sátraco./ Esmirna séculos em cãs vão ler.” (Catulo 95 1-6). J. A. Oliva Neto comenta, em nota ao poema 95, como era comum que os poetas noui fizessem referência uns aos outros em suas obras (1996, p. 246). 164 Myrrha, Smyrna, Zmyrna são variantes dialéticas do mesmo nome, cf. Hill (1992, p. 175). 165 Sobre Zmyrna de Cina, Hill (1992, p. 175) comenta: “A versão mais famora na Antiguidade é a última por nós conhecida” – “The version most famous in Antiquity is the last known to us”. 166 A saber, em Hill (1992, 175), as seguintes obras nas quais o mito é referido ou aludido, são citadas: Panyasis, contada por volta do século V e mencionada por Apolodoro (III 14, 4); Ps. Lycophron em sua Alexandra (828-30); na menção ao nascimento de Adônis a partir de uma árvore de Mirra; Antoninus Liberalis, que narra a versão atribuída a Pherecydes; e, finalmente, a Zmyrna escrita por Cinna, conforme Catulo aponta em seu poema 95. Catulo menciona, em outro poema, o filho de Mirra, Adônis, referindo-se à beleza do jovem: Et ille nunc superbus et superfluens/ perambulabit omnium cubilia/ ut albulus columbus aut Adoneus. – “E ele agora, superior, super- rico,/ vai perambular pelas camas todas/ qual os branquinhos pombos, qual Adônis” (Catulo 29 6- 8).

80 estátua, vivificada por Vênus. Da união, nasceu uma filha, Pafo (Met. X 297), e já no verso seguinte inicia a narrativa que aqui contemplamos: Editus hac ille est.../ Cinyras (Met. X 298-9) – “Nasceu desta aquele Ciniras”. Sendo assim, conforme a versão de Ovídio, há este aspecto aparentemente singular:167 Ciniras, pai da jovem amante, seria neto de Pigmalião:

Illa Paphon genuit, de qua tenet insula nomen Editus hac ille est, qui sine prole fuisset, Inter felices Cinyras potuisset haberi. (Met. X 297-9)

“Ela gerou Pafo, de quem a ilha tem o nome. Nasceu desta aquele Ciniras que, se não tivesse tido prole, Poderia ser numerado entre os felizes”

Foi ressaltado por Hill, ainda, o modo enfático como Ovídio em sua narrativa recusa-se a caracterizar a paixão de Mirra pelo pai como tendo sido gerada por uma vingança da deusa Vênus.168 Mas, vejamos o modo como essa recusa se apresenta no poema. De fato, na respectiva passagem das Metamorfoses, dois aspectos contribuem para eximir a responsabilidade mais direta de Vênus quanto ao nascimento da paixão da jovem: um deles é a ausência de menção à deusa como provocadora da história; outro é o relato, em discurso indireto, do depoimento de Cupido, personagem que negaria ter tido alguma participação na história de Mirra:

Ipse negat nocuisse tibi sua tela Cupido Myrrha, facesque suas a crimine uindicat isto (Met. X 311-2)

“O próprio Cupido nega que suas setas tenham te prejudicado, Ó Mirra, e ele isenta suas tochas de tal crime”.

167 Cf. Hill (1999, p. 175): “… but only Ovid connects her with Pygmalion”. 168 Hill (1999, p. 175) comenta: “Panías(s)is, provavelmente, mas não Nicandro ou Ovídio, atribui o destino de Mirra à recusa em homenagear Afrodite” – “Panyas(s)is, probably, but not Nicander or Ovid, attributes Myrrha´s fate to the refusal to honour Aphrodite”. P. Grimal (2000, verbete “Adónis”) traz a informação de que Afrodite se teria vingado da mãe de Mirra (ou Esmirna), Cencreis, por esta ter dito que a beleza da filha era superior à da deusa.

81

Cupido, desta vez em discurso direto, joga sobre “uma das três irmãs ornadas de iradas serpentes”,169 i. e., sobre uma das Fúrias,170 a responsabilidade por tal amor incestuoso:

stipite te Stygio tumidisque afflauit echidnis e tribus una soror. (Met. X 311-4)

“Uma única irmã, dentre as três, com bordão estígio, e com iradas serpentes, infectou-te”.

Nem a versão narrada por Ovídio em Metamorfoses nem a menção que o poeta faz a tal mito em Remedia Amoris171 atribuem a culpa do crime de Mirra aos desmandos vingativos da deusa Vênus. Já vimos que em Remedia, aliás, atribui-se ao próprio sentimento amoroso, que na demora se fortalece,172 a responsabilidade pela desgraça da jovem. Para perceber isso, vale ler o comentário didático-amoroso que acompanha o exemplum do mito de Mirra usado por Ovídio em Remedia:

Verba dat omnis amor reperitque alimenta morando; Optima uindicatae proxima quaeque dies. Flumina pauca uides magnis de fontibus orta; Plurima collectis multiplicantur aquis. Si cito sensisses quantum peccare parares, Non tegeres uultus cortice, Myrrha, tuos. Vidi ego, quod fuerat primo sanabile, uulnus

169 Tumidisque... echidnis/ e tribus una soror (Met. X 313-4). 170 Cf. notas ao verso Met. X 310 e também X 349 de Hill (1992, p. 175 e 177). 171 Si cito sensisses quantum peccare parares/ Non tegeres uultus cortice, Myrrha, tuos – “Se tivesses percebido logo o tamanho da falta que ias cometer, não cobririas, Mirra, teu rosto de cortiça”. (Rem. 99-100). 172 Verba dat omnis amor reperitque alimenta morando – “Todo amor promete sempre e encontra alimento na demora” (Rem. 95).

82 Dilatum longae damna tulisse morae; Sed quia delectat Veneris decerpere fructum, Dicimus adsidue; cras quoque fiet idem. (Rem. 95-104, grifo nosso)

Na tradução de Antônio Silveira Mendonça:

“Todo amor promete sempre e encontra alimento na demora. O melhor dia para a libertação é o mais próximo. Poucos são os rios que vês nascer de grandes fontes; a maioria se avoluma com águas recebidas. Se tivesses percebido logo o tamanho da falta que ias cometer, não cobririas, Mirra, teu rosto de cortiça. Eu mesmo vi feridas, que a princípio seriam curáveis, agravarem- se devido ao longo tempo de adiamento; mas como nos apraz colher o fruto de Vênus, continuamente dizemos: „Isso aí poderá também ser feito amanhã.‟”

O fato de que com o termo Venus em Remedia desenvolve-se a referência ao mito se pode notar na alusão à transformação em árvore, expressa em metáforas como “colher o fruto” (decerpere fructum, Rem. 103; cf. ainda mala radices altius arbor, Rem. 106). Contudo, mesmo isentada da culpa pela paixão de Mirra, Vênus é citada metonimicamente no decorrer da história em ambas as obras. E é interessante ressaltar que, no trecho acima transcrito, a tradução de Remedia realizada pelo estudioso A. S. Mendonça opta por manter explícita a referência a Venus; por questões de fluência em português, não seguimos essa opção na nossa tradução da passagem das Metamorfoses:

Sed enim damnare negatur hanc Venerem pietas (Met. X 323-24, grifo nosso)

“Pois, em verdade, o amor filial

83 Recusa-se a condenar este amor.”

Nossa prévia apreciação da menção ao mito de Hipólito,173 que propôs rever alusões míticas para além de uma aparente metonímia na menção aos nomes das deusas em versos de Remedia Amoris, nos impede de ignorar que, ao apresentar Venus como substantivo sinônimo de amor, o poeta possa também, revertendo a metonímia por meio de sua poesia, estar aludindo à deusa como, de certa forma, envolvida na fatal paixão de Mirra.174 Em ambos os casos, o envolvimento da deusa se expressa ambiguamente. A passagem das Metamorfoses não nega o caráter de antiexemplo que possui o mito de Mirra em relação ao sentimento amoroso. Mas procuraremos rever esse aspecto será visto com mais clareza na seção a seguir.

3.2.1 Mirra como amante elegíaca nas Metamorfoses de Ovídio175

Não sei o que faço, são duas as minhas mentes... (Safo Fr. 51 V)176

Odi et amo. Quare id faciam fortasse requiris Nescio, sed fieri sentio et excrucior. (Catulo 85)

A personagem Mirra da história narrada por Orfeu, arrebatada por uma paixão proibida e incestuosa por Ciniras, seu pai, recrimina seus próprios sentimentos, e ao

173 Cf. Capítulo 1. 174 Sobre o uso de recursos poéticos ovidianos em outro episódio mitológico (a saber, o de Actéon) como forma de relativizar a inocência de outro personagem, afirmada pelo próprio vate das Metamorfoses, cf. I. T. Cardoso (2005, p. 56, ss.). 175 Uma versão preliminar deste texto foi apresentada no XVII Congresso Nacional de Estudos Clássicos (da SBEC) – Prazer e amizade no Mundo Antigo, realizado em Natal (RN), em setembro de 2009. 176 Tradução de Giuliana Ragusa (2005, p. 444).

84 mesmo tempo, questiona-se sobre o fato de ser ou não um crime o que sente. Sua fala é permeada de hesitações, conflitos e contradições – efeitos que o poeta constrói através de recursos estilísticos como paradoxos e orações condicionais, de que se vê um exemplo na passagem abaixo:

Illa quidem sentit foedoque repugnat amori Et secum "Quo mente feror? Quid molior?" inquit, "Di precor, et pietas sacrataque iura parentum, Hoc prohibete nefas scelerique resistite nostro, Si tamen hoc scelus est.(...)"(Met. X 319-23).

“Ela, de fato, sente e repele o vergonhoso amor E diz para si: “Para onde por tal intenção sou levada? O que tramo? Ó deuses, ó amor filial, ó sagrados direitos dos pais, imploro: Proibi este sacrilégio e refreai o nosso crime, Se, porém, isto for um crime!”

O verso 319, em forma de antítese, diz que Mirra “sente” e “repele” (sentit... repugnat, Met. X 319) o vergonhoso amor (foedoque... amori, Met. X 319). No entanto, a afirmação não somente contém em si uma contradição, como também revela a condição emocional nada estável da personagem: durante seu monólogo, que dura 36 versos (Met. X 319-55), Mirra oscila entre ora considerar tal furor (furor, Met. X 355) um crime, ora considerá-lo legitimo, e expressa sua autocondenação através de um quiasmo no v. 321. Desde já observamos o termo que, segundo apontamos no capítulo anterior, Conte destaca como característico do perturbador amor elegíaco a que o vate de Remedia visaria sanar. Mas, uma vez que não só na elegia há este tipo de amor, observemos se há outras características que aproximariam do universo elegíaco a composição do furor que assola a personagem Mirra de Metamorfoses. Para legitimá-lo, a jovem menciona diversas situações em que o amor filial supostamente se recusaria a condenar esse amor, dito incestuoso: como argumento vemos, pois, um apelo à crítica do caráter convencional de uma censura ao incesto. De um lado, tal

85 reprovação não necessariamente faria parte do mundo natural, já que: entre os animais, as relações sexuais entre pais e filhos seriam permitidas (Met. X 324-8); e, de outro, não necessariamente faria parte do mundo civilizado: há, ainda, outros povos entre os quais também haveria essa permissão. Vejamos como o poeta nos faz perceber tal conflito:

(...) Quid in ista reuoluor? Spes interdictae discedite; dignus amari Ille, sed ut pater, est. Ergo si filia magni Non essem Cinyrae, Cinyrae concumbere possem: Nunc quia iam meus est, non est meus ipsaque damno Est mihi proximitas; aliena potentior essem. (Met. X 335-40, grifos nossos)

“(...) Por que ficar me revolvendo nestes pensamentos? Afastai-vos, ó esperanças proibidas! De ser amado, Mas como pai, ele é digno. Portanto, se eu não fosse filha Do grande Ciniras, com Ciniras eu me poderia deitar. Agora, porque ele já é meu, não é meu; e é o próprio parentesco Que é meu dano; estrangeira, eu poderia mais”.

A paixão da jovem pelo pai a faz oscilar (reuoluor,177 Met. X 335) entre a esperança proibida (spes interdictae, Met. X 336) de tê-lo como amante – esperança que Mirra tenta afastar de si (discedite, Met. X 336) – e o amor filial que ela é socialmente (aliena potentior essem, Met. X 340) forçada a sentir e que, ao mesmo tempo, a impede de consumar sua paixão (si filia magni/ non essem Cinyrae, Cinyrae concumbere possem, Met. X 339). Chama-nos a atenção o recurso de quebra de pensamento (paraprodoskía) no verso ovidiano. Esse é interrompido no momento em que a jovem diz que Ciniras é digno de ser amado (Dignus amari, Met. X 336) – mas para que, em enjambement, o próximo verso

177 O verbo reuoluere pode ter o sentido de “recair (em um estado, prática, etc)”, “cair ou ser jogado de volta (em um plano, ideia, ou sim.)” e ainda “trazer (o discurso de alguém) de volta (a um ponto)” (OLD, verbete “reuoluo”, sentidos 4, 4b e 4c, respectivamente).

86 expresse que sim, ele deve ser amado, no entanto (sed, Met. X 337), como um pai (ut pater, Met. X 337). A ruptura causada pelo verso justamente nesse ponto do seu discurso parece emular a ação do seu pensamento conflitante e cindido entre as duas faces do seu sentimento – o amor sexual e o amor filial; é justamente por ser seu (pai) que Ciniras não pode ser seu (amante): Nunc, quia iam meus est, non est meus (Met. X 339). Também a forma com o que o conflito se expressa lembra a dos versos catulianos que nos servem de epígrafe. Em seguida, Mirra cogita a decisão razoável de partir, mas renuncia a tal pensamento em menos de dois versos:

Ire libet procul hinc patriaeque relinquere fines Dum scelus effugiam; retinet malus ardor euntem (Met. X 341-2, grifo nosso).

“Tenho vontade de ir para longe daqui, e abandonar as fronteiras da pátria, Contanto que eu escapasse do crime: um ardor maligno retém a quem ama.”

Vemos que seu sentimento é caracterizado como “um ardor maligno” (malus ardor, Met. X 342). Esse aspecto do amor como uma chama ou um fogo “cruel” (ferus... ignis, Rem. 267), ou até mesmo algo que queima, provoca ardor, também está presente em Remedia, por exemplo no sentimento da Circe ovidiana, quando ela vê Ulisses partir:

Illa loquebatur, nauem soulebat Vlixes; Inrita cum uelis uerba tulere Noti. Ardet et adsuetas Circe decurrit ad artes. (Rem. 285-7)

“Ela falava, Ulisses desamarrava o barco. Os Notos com as velas levam as vãs palavras. Circe se Abrasa e recorre às costumeiras artes.”

87

Ainda em outras passagens de Remedia Amoris, tal ardor representa o sentimento amoroso (feliciter ardet, Rem. 13; perditus ardes, Rem. 533; ardoris, Rem. 720). Embora a metáfora do amor como chama transite por outros gêneros da poesia e do discurso em geral, já vimos que o um amor abrasador aparece em poemas que o caracterizam como doença em Catulo, como nos versos analisados neste estudo, no Capítulo 2: Non solum meminit, sed, quae multo acrior est res,/ Irata est; hoc est, uritur est coquitur. (Catulo 83 5-6, grifos nossos). O mesmo poeta expressa a dor que sua persona poética sente através do mesmo termo, em seu poema 68:

Nam, mihi quam dederit duplex Amathusia curam, scitis, et in quo me corruerit genere cum tantum arderem quantum Trinacria rupes (Catulo 68 51-3).

“Afinal, que profunda inquietação me deu a dúplice Amatúsia Sabeis, e de que modo me levou à ruína, Quando eu me abrasava tanto quanto a montanha trinácria.”178

Nesse poema de Catulo, o eu-lírico de seu poema expressa a inquietação (curam, 68 51) impingida por Vênus (Amathusia,179 68 51) como algo que abrasa (arderem, 68 52). Nos versos ovidianos de Metamorfoses, um ardor, que também é provocado pelo sentimento amoroso (Venerem, Met. X 324), retém (retinet, Met. X 342) a jovem próxima àquele que é alvo de sua paixão. Esse ardor, no excerto em apreço (Met. X 341-2), pode ser visto como um amor que aprisiona,180 temática que em capítulo anterior apontamos em versos elegíacos e é explorada por Ovídio no contexto elegíaco de seus Remedia.

178 Tradução de P. S. de Vasconcellos (1991, p. 53). 179 “Dúplice Amatúsia: epíteto de Vênus/Afrodite, cultuada em Amatunte. O termo DÙPLICE pode dever-se ao culto em Amatunte, onde havia uma estátua hermafrodita da deusa, ou ao fato de Vênus misturar GOZO E DOR; (...). Ou então por Afrodite ser, entre os gregos, pándemos, „de todo povo‟, e também ouranía, „celeste‟”. (J. A. Oliva Neto, 1996, p. 235, nota ao verso 51, grifos do autor). 180 Conforme mencionamos anteriormente, L. A. de Bem aborda esse topos do amante como um prisioneiro de seu sentimento, presente na elegia erótica romana, em seu estudo sobre os Amores de Ovídio (2007, p. 251).

88 Por exemplo, em retinebit (Rem. 291; cf. ainda os versos 292-3, que contêm claramente essa ideia: Optimus ille fuit uindex, laedentia pectus/ Vincula qui rupit dedoluitque semel – “O melhor libertador de si próprio é aquele que rompe as cadeias que lhe ferem o peito e de uma só vez põe termo a sua dor”). Esse sentimento maligno (malus, Met. X 342) é o que, além de aprisionar e colocar em conflito seus pensamentos, traz a esperança à apaixonada de poder, ao menos, tocar Ciniras (Vt praesens spectem Cinyram tangamque loquarque/ Osculaque admoueam, si nil conceditur ultra – “Na esperança de que, ficando, eu possa ver Ciniras, e tocá-lo, e falar-lhe,/ E beijá-lo, se nada mais é permitido”, Met. X 343-4). Para refutar a ampliação dessa esperança a jovem novamente volta ao pensamento que a impede de consumar seus desejos, propondo a si mesma uma série de perguntas:

Vltra autem sperare aliquid potes, impia uirgo? Et quot confundas et iura et nomina, sentis? Tune eris et matris paelex et adultera patris? Tune soror nati genetrixque uocabere fratris? Nec metues atro crinitas angue sorores, Quas facibus saeuis oculos atque ora petentes Noxia corda uident? (Met. X 345-51)

“Contudo, podes esperar alguma coisa, além disso, jovem ímpia? E sentes quanto confundes não só as leis como também os nomes? E tu serás da mãe a rival e a amante do pai? E tu serás chamada a irmã de teu filho e a mãe de teu irmão? Nem temerás as irmãs com cabelos de negras serpentes Que, espreitando com tochas cruéis, veem os olhos, as faces, os corações atormentados?”

Nota-se que a repetição do pronome tu (tune, Met. X 347 e 348), além dos verbos em segunda pessoa (confundas, 346; sentis, 346; eris, 347), enfatizam a culpa que ela sente pelo crime que anseia cometer, uma vez que são usados, pela própria Mirra, em

89 interpelações de censura, e o texto ovidiano nos revela as inversões desconcertantes dos títulos parentais, socialmente atribuídos. A jovem censura-se por seus sentimentos, tentando desviar-se de seu torpe fim, mas não sem manifestar, contraditoriamente, a vontade de que o furor que a assola também estivesse em seu pai:

(...) At tu, dum corpore non es Passa nefas, animo ne concipe, neue potentis Concubitu uetito naturae pollue foedus. Velle puta, res ipsa uetat; pius ille memorque Moris. Et o! uellem similis furor esset in illo (Met. X 451-5, grifo nosso).

(...) E tu, enquanto ainda não consentistes com teu corpo o sacrilégio, com o espírito não o concebas e não polua A lei da poderosa natureza com tal relação proibida. Que dirá querer isso: os próprios fatos o proíbem. Ele é pio e se lembra de cumprir Os bons costumes. E, oh!, como eu queria que houvesse nele um furor semelhante.

Mais uma vez é possível notar que as contradições e os sentimentos conflitantes que se observam nesse excerto do monólogo de Mirra são similares às que arrebatam a persona poética de Catulo, em seu poema 85, citado em nossa epígrafe:

Odi et amo. Quare id faciam, fortasse requiris. Nescio, sed fieri sentio et excrucior.

Odeio e amo. Talvez perguntes por que faço isso. Não sei, mas sinto que acontece e me torturo.181

181 Tradução de Paulo Sérgio de Vasconcellos (1991, p. 65).

90 Nota-se entre esse poema e o verso 339 do livro X das Metamorfoses uma semelhança em relação à maneira antitética como ambos, Mirra e o amante que é o eu poético de Catulo, sentem o amor: Nunc quia iam meus est, non est meus – “Agora, porque ele já é meu, não é meu” (Met. X 339). Em Catulo, como vimos, o par antitético, conforme nos aponta Paulo Sérgio de Vasconcellos, reflete com uma precisa concisão toda a ambivalência que o sentimento amoroso pode abranger (odi et amo), descrevendo-o através da nítida contradição que há entre amar e odiar, sobre a qual não se pode ter nenhuma resposta que seja condizente com a lógica ou a razão (nescio). E assim, Catulo sente e, por sentir, tortura-se (excrucior).182 Observa-se um comportamento análogo no primeiro monólogo de Mirra, transcrito acima (Met. X 320-355): a jovem sente e repele o amor que sente, pois o sentimento é vergonhoso (por seu caráter incestuoso). A avalanche de questionamentos, que a uirgo propõe a si própria (sem que os consiga responder com solidez, o que também nos lembra Catulo, quando diz: nescio), sugere, de maneira mais amplificada, o processo pelo qual Catulo afirma passar: ele "se tortura" (na tradução de Vasconcellos para o verbo excrucior) com seu sentimento. A Mirra ovidiana também atravessa um torturante processo, que ela não sabe de onde vem (inevitável aqui não pensar em Camões: "... um não sei quê, que nasce não sei onde, vem não sei como e dói não sei porquê"),183 numa completa aporia: quo mente feror? quid molior? (X 320). São ao todo sete perguntas que a jovem se faz, a fim de tentar encontrar um aspecto legítimo em seu sentimento, de se culpar, ou se isentar da culpa, de rogar aos deuses, enfim, com tantas questões Mirra tortura-se (ou, como consta do texto de Ovídio, reuoluor, X 335), de modo semelhante à persona poética de Catulo no citado epigrama. Contemplando os demorados questionamentos de Mirra nesse trecho, recordamos, mais uma vez, o poema 8 de Catulo. Ali o eu poético se vê apartado de Lésbia e a angústia desse sofrimento leva-o a indagar sua amada em sucessivos versos: Quis nunc te adibit? cui uideberis bella?/ Quem nunc amabis? cuius esse diceris?/ Quem basiabis? Cui labella mordebis? – “Quem, agora, se aproximará de ti? A quem parecerás bela?/ Quem, agora,

182 Tradução de P. S. de Vasconcellos (1991, p. 21). Vale ressaltar que a análise do poema de Catulo aqui presente, a qual é parte do estudo, mencionado na nota anterior, de P. S. de Vasconcellos, nos inspirou a comparar tal epigrama com a passagem do mito de Mirra. 183 Camões, Rimas. Intr. Álvaro. J. Costa Pimpão, Coimbra: Livraria Almedina, 1994, p. 118.

91 amarás?/ De quem dirão que és? / Quem beijarás? A quem morderás os lábios?”184 (Catulo 8 16-18). No poema 76, Catulo também indaga-se, revelando, por meio da reiteração das questões, analogamente ao que vimos em Mirra, uma postura desesperada:

Quare cur te iam amplius excrucies? Quin tu animum offirmas atque instinc teque reducis Et deis inuitis desinis esse miser? (Catulo 76 10-2).

“Se é assim, por que continuas a te torturar ainda? Por que tu não fortaleces o teu espírito e não sais dessa, E, sendo contrários os deuses, deixas de ser infeliz”.185

Além da referência a si próprio como um tu, um outro, mais uma semelhança formal pode ser encontrada entre Mirra e o amante dos poemas de Catulo. Vimos que, no verso 321, Mirra inicia uma prece direcionada aos deuses, buscando uma espécie de solução, ou, dentro de nossa perspectiva, uma cura para seu sofrimento:

di precor, et pietas sacrataque iura parentum, Hoc prohibete nefa scelerique resistite nostro (Met. X 321-3).

“Ó deuses, ó amor filial, ó sagrados direitos dos pais, imploro: Proibi este sacrilégio e refreai o nosso crime.”

Ao recordar o poema 76, vemos que o eu-poético de Catulo também faz uma espécie de prece, para que os deuses o livrem de sua paixão. Todavia, nessa elegia ela não é apresentada como scelus, distinguido-se com isso da designação do amor de Mirra. Mas pela descrição de sua manifestação física, como anteriormente apontamos, será claramente caracterizada como doentia:

184 Trad. de P. S. de Vasconcellos (1991, p. 41). 185 Trad. de P. S. de Vasconcellos (1991, p. 41).

92 O dei, si uestrum est misereri, aut si quibus unquam Extremam iam ipsa in morte tulistis opem, Me miserum aspicite et, si uitam puriter egi, Eripite hanc pestem perniciemque mihi, Quae mihi subrepens imos ut torpor in artus Expulit ex omni pectore laetitias. Non iam illud quaero, contra ut me diligat illa, Aut, quod non potis est, esse pudica uelit; Ipse ualere opto et taetrum hunc deponere morbum. O dei, reddite mi hoc pro pietate mea. (Catulo 76 17-26, grifo nosso).

“Ó deuses, se é próprio de vós a compaixão ou se alguém, alguma vez, À beira da morte levastes o derradeiro auxílio, Dirigi vosso olhar para este infeliz e, se tenho vivido com integridade, Arrancai de mim esta peste e esta desgraça, Que, como um torpor, se infiltrando no fundo de meus membros, Expulsou de todo o meu coração as alegrias. Já não peço que aquela mulher corresponda à minha estima, Ou, o que não é possível, queira ser honesta; Só desejo curar-me e deixar esta terrível doença. Ó deuses, concedei-me isto em troca da minha devoção”.186

Além das referências à infiltração da paixão (qualificada de torpor e desgraça) no corpo do amante, nota-se ainda que o amante que roga aos deuses para livrá-lo do sentimento amoroso chama-o expressamente de uma “terrível doença” (tetrum... morbum, 25) infiltrada em seus membros (artus, 21) da qual deseja curar-se (ualere, 21). A chama, que em Catulo percorre os membros do seu eu poético, causa em Mirra a vigília (peruigil igni, Met. X 369) e a consome (carpitur, Met. X 370). Ainda que não haja uma referência direta nesse excerto das Metamorfoses a uma doença como em Catulo,

186 Tradução de P. S. de Vasconcellos (1991, p.63).

93 pode-se encontrar no termo aestuat (Met. X 360) o amor que “inflama”187 Mirra no momento em que ela o observa (patriisque in uultibus haerens – “e fitando a face do pai”, Met. X 359). A manifestação física do sentimento não só ocorre em Mirra quando ela o fita, mas também quando ouve falar dele: “Myrrha, patre audito, suspira duxit ab imo/ pectore. – “Mirra, tendo ouvido „pai‟ suspirou do fundo do peito” (Met. X 402). O amor manifesta- se em Mirra, e também é doloroso (doleam, Met. X 413), e no momento em que está preste a unir-se em leito com seu amante, ela sente os joelhos trêmulos (genua intremuere, Met. X 458) e torna-se pálida (fugitque/ et color et sanguis, Met. X 459): sintoma amoroso que, em capítulo anterior, vimos em Safo (31) e em sua imitação catuliana (Catulo 51), e que será recorrente na poesia elegíaca de Ovídio.188 À mesma pietas à que Mirra se refere no verso 321 do décimo livro das Metamorfoses (Di, precor, et pietas sacrataque iura parentum, grifo nosso), Catulo também alude no poema em apreço (Siqua recordanti benefacta priora uoluptas/ Est homini, cum se cogitat esse pium – “Se, porventura, o homem sente prazer em recordar suas boas ações passadas,/ Quando se dá conta de que sempre cumpriu seu dever” Catulo 76 1-2). Vemos, assim, que tanto a persona poética catuliana, quanto a personagem Mirra procuram aplicar o conceito romano a seu objeto de amor. Catulo serve-se de tal concepção romana para o apelo aos deuses, afirmando ele mesmo ter sido "pio" durante toda a vida189 e, portanto, merecedor de um pio amor. Por instantes, e de forma torturante, Mirra busca levar em conta o dever implicado na pietas, uma noção de respeito aos deuses familiares e aos próprios membros da família, ainda que hesite entre seus deveres familiares e o desejo de transgredi-los:

(...) Gentes tamen esse feruntur In quibus et nato genetrix et nata parenti Iungitur et pietas geminato crescit amore.

187 “Arder de amor ou desejo” – “To burn with love or desire” – OLD, verbete “aestuo”, sentido 4. 188 Em sua dissertação, L. A. de Bem (2007, p. 253) comenta os signa amoris, sinais que manifestam a paixão do amante na elegia, e aponta excertos de poemas em que a palidez é um desses signa, a saber: Ov. Am. II 9, 14; Ars I 729-38. 189 Em seu estudo, P. S. de Vasconcellos (1991, p. 111) analisa, em nota ao poema 76, a pietas catuliana: em troca de sua “escrupulosa religiosidade e honestidade”, pede aos deuses que o livrem de sua paixão.

94 Me miseram, quod non nasci mihi contigit illic Fortunaque loci laedor. (Met. X 331-5)

“(...) Diz-se, porém, que existem outros povos Em que não apenas a mãe se une ao filho, mas também a filha ao pai, De modo que, duplicando-se o amor, cresça o respeito filial. Oh! Pobre de mim, que não nasci lá E sou prejudicada pela sorte deste lugar!”. . Outro ponto em comum entre o amor da personagem ovidiana de Mirra e o do eu poético de Catulo no poema 76 será a ameaça da morte que tal sentimento provoca. Em Catulo, a única salvação (salus, 76 15) é deixar de amar (deponere amorem, 76 13) e o eu poético roga aos deuses que o auxiliem como se fosse alguém a beira da morte (si quibus unquam/ extremam iam ipsa in morte tulisits opem – “se alguém, alguma vez,/ À beira da morte levastes o derradeiro auxílio”, Catulo 76 17-8). Ovídio, do verso 369 ao verso 380, descreve Mirra a oscilar entre o desejo sexual pelo seu pai e a vergonha por tal sentimento, e essa oscilação culmina na tentativa de suicídio da moça. A morte seria a única cura para o amor que Mirra sente (Nec modus et requies, nisi mors, reperitur amoris – “Nem medida, nem repouso – exceto a morte – encontra-se para o amor”, Met. X 377). A ama da jovem, que chega subitamente, impede tal feito e compreende, a certa altura, pelos ditos oblíquos e atos de Mirra, a questão que a afligia:

“Sensimus” inquit “amas; et in hoc mea (pone timorem) Sedulitas erit apta tibi, nec sentiet umquam Hoc pater.” (Met. X 408-10)

“Estou sentindo, estás amando; e quanto a isso (deponha o medo) Meu zelo estará a tua disposição; nem teu pai Um dia saberá”.

95 A demora de Mirra em se livrar do amor (demora criticada em Remedia) acabou, pois, encontrando uma cúmplice, ainda que involuntária. Interessante notar que a representação da escrava ou ama da puella nos poemas elegíacos também é a de alguém que favorece encontro dos amantes.190 A par de tal sentimento, a ama (ainda que constrangida) proporciona o encontro amoroso entre pai e filha, sem que Ciniras saiba que a virgem que recebe em seu leito é sua filha (X 465-71). O feito se repete por diversas noites, até que o rei, conduzindo a amante à luz, reconhece Mirra e seu crime, e a persegue para tentar assassiná-la (X 475-80). Ela foge, e os deuses, movidos pelas novas súplicas da jovem, transformam-na em árvore para protegê-la da morte (X 483-94). Nota-se como a narração da metamorfose em cortiça privilegiará a descrição física da violência que sofre o corpo da personagem (ruptosque, X 490, sanguis, X 493, praestrinxerat, X 495). Grifamos abaixo as partes do corpo que Ovídio destaca em sua narrativa da metamorfose de Mirra:

Numen confessis aliquod patet; ultima certe Vota suos habuere deos; nam crura loquentis Terra superuenit, ruptosque obliqua per ungues Porrigitur radix, longi firmamina trunci; Ossaque robur agunt mediaque manente medulla Sanguis it in sucos, in magnos bracchia ramos, In paruos digiti, duratur cortice pellis. Iamque grauem crescens uterum perstrinxerat arbor Pectoraque obruerat collumque operire parabat; Non tulit illa moram uenientique obuia ligno Subsedit mersitque suos in cortice uultus. (Met. X 488-98, grifos nossos).

“Alguma divindade ouve os que confessam; certamente, as suas últimas Preces foram ouvidas; pois a terra se sobrepõe Às pernas da que as enunciara, e, através das unhas rompidas, Prolonga-se raiz oblíqua, o sustentáculo do tronco;

190 Cf. Amores I 11; Ars II 256-260. Para outras personagens que circundam e corroboram o encontro dos amantes elegíacos com suas puellae, cf. L. A. de Bem (2007, p. 250).

96 Os ossos fazem a madeira, e o sangue permanente da medula central Corre em seivas, os braços estendem-se em grandes ramos, Em pequenos ramos, os dedos; a pele é endurecida em cortiça. E já a árvore que crescia apertara o útero prenhe, Oprimira o peito e fez-se pronta para cobrir o pescoço. Ela não suporta a demora e, vindo ao encontro da madeira, Debruçou-se e mergulhou seu rosto na cortiça.”

Nota-se, ainda, como a descrição conclusiva acima transcrita, focada no rosto mergulhado na cortiça (in cortice uultus, Met. X 496), de certa forma ecoa o verso de Remedia que retomamos a seguir :

Non tegeres uultus cortice, Myrrha, tuos (Rem. 100, grifo nosso).

“Não cobririas, Mirra, teu rosto de cortiça”.

Vimos, até este ponto, alguns aspectos que aproximam o amor de Mirra do sentimento elegíaco. O amor que queima (ardere), ou que é representado como um fogo (ignis), provoca preocupações (cura), e aprisiona o amante (retinere, uinculum). Os conflitos dos amantes são representados por antíteses (odi et amo) e contradições (meus est, non est meus; sentit... repugnat) que permeiam os versos elegíacos, e também a passagem de Metamorfoses que narra o episódio de Mirra. Também o fazem a referência a ações e estados de espírito que refletem as condições emocionais nada estáveis da persona poética dos elegíacos e da jovem filha de Ciniras (reuoluor, excrucior). Um mesmo tipo de prece aos deuses também foi observada em Mirra e em versos catulianos: àqueles, os amantes rogam que os livrem do amor ou que o curem (ualere) – e para tal sentimento, diversos sinônimos que o aproximam de uma doença ou de algo torpe, como um crime ou um mal, são utilizados: scelus, pestis, pernicies, morbus, malus. Ainda como aspecto elegíaco do episódio das Metamorfoses, é notável que tal qual um amante elegíaco, Mirra sofra com a distância do seu amado: nos versos 343 e 344, a jovem menciona que deseja permanecer perto de Ciniras, para que possa ter dele qualquer

97 contato que lhe fosse permitido, demonstrando assim a vontade de minimizar seu tormento com paliativos (Vt praesens spectem Cinyram tangamque loquarque/ Osculaque admoueam, si nil conceditur ultra, X 343-4). Como sabemos, Propércio (para dar um exemplo de outro autor elegíaco, mais próximo da época de Ovídio) também lamenta abundantemente a ausência de Cíntia e a privação de seus carinhos e abraços, por exemplo, em:

tam multa illa meo diuisa milia lecto, quantum Hypanis Veneto dissidet Eridano; nec mihi consuetos amplexu nutrit amores Cynthia, nec nostra dulcis in aure sonat. (Propércio I 12 3-6)

“tanto está ela muitas milhas apartada de meu leito quanto Hípanis do vêneto Erídano191 e Cíntia não me alimenta os amores acostumados com os abraços, nem murmura docemente em meus ouvidos.”

O poeta elegíaco lamenta, também, as noites que passa sozinho sem a amada:

nunc primum longas solus cognoscere noctes cogor et ipse meis auribus esse grauis. (Propércio I 12 13-4).

“agora sou impelido a conhecer, primeiro, longas noites e a ser penoso aos meus próprios ouvidos”

Encontramos, portanto, também no trecho das Metamorfoses, uma imagem, por assim dizer, negativa do amor. Mas, diferentemente do que ocorre no episódio do adultério de Marte e Vênus, em que a visão negativa é expressa por meio da reação de quase todos os

191 Hípanis é rio da Samárcia, atualmente de nome Bug (cf. Tovar e Mártire, em nota ao poema de Propércio (1984, p. 24). Erídano é o rio Pó (também chamado Padus em latim) que percorre o norte da Itália.

98 espectadores do castigo infligido, no episódio de Mirra o lado negativo do amor se expressa a partir de quem sofre a paixão. É uma imagem similar que encontramos em diversas elegias romanas, e é pressuposto dos ensinamentos e do mito de Vênus referido em Remedia Amoris. Pelo breve cotejo entre os textos,192 entende-se melhor porque, antes de escrever Metamorfoses, Ovídio já havia mencionado o mito de Mirra nessa obra elegíaco-didática, afirmando que, se houvesse seguido seus conselhos, a jovem não teria seu rosto coberto de cortiça (Rem. 99-100), ou seja, evitando esse amor, ou a demora em curá-lo (característica dos elegíacos), evitaria sua desgraça. Mas, uma vez tendo se deixado levar pelo furor da paixão, sem buscar a cura para o que, possivelmente se caracterizaria como doença, o fim de Mirra foi funesto e só não foi pior devido à intervenção dos deuses, que a transformaram em árvore. Para sua sorte, por fim, pois a cortiça está livre dos efeitos impiedosos e nocivos do amor, como não o estão os corações humanos. O amante elegíaco dos poemas de Propércio e Catulo, e também de Tibulo está condenado a esse sentimento doentio: sem ele, não há a elegia, segundo enfatiza Conte em seu estudo sobre o gênero.193 Como referimos anteriormente, o texto de Conte explora a constituição do gênero elegíaco, apontando as diversas características que permitem reconhecê-lo; ressalta ainda o estudioso a atitude de certa forma limitada do amante: encerrar no amor todo o seu mundo, fazê-lo parte central de sua poesia, adaptando toda e qualquer temática ao seu sentimento; um sentimento fadado ao sofrimento e aos desapontamentos – essa e outras são características de tal gênero poético. Sem o desejo do amante de permanecer em sua doença, portanto, não há poesia elegíaca:

“O poeta aposta que nada existe além do amor, ainda que o amor o faça sofrer; mas esse sofrimento dele é tão grande quanto o espaço concedido ao amor, de fato, tão grande quanto o mundo inteiro. Para expressar isso, o poeta amante só pode representar sua condição como intolerável. E ele até representa a

192 A comparação entre as obras como um todo, mereceria uma análise mais detalhada, que será objeto de nosso Doutorado. 193 G. B. Conte (1989, p. 37 e ss).

99 si mesmo como se houvesse decidido escapar disso e procurar diferentes soluções. É assim que, quase paradoxalmente, a libertação do amor, a busca por remédios contra o amor, torna-se um tema recorrente na poesia elegíaca”.194

E, mais adiante, no mesmo estudo,195 somos lembrados por Conte do poema em que Propércio se liberta do amor (III 24 17 ss.): trata-se da última elegia de sua obra, uma espécie de despedida do gênero: curado do sentimento, Propércio não é mais um poeta elegíaco. Já em Metamorfoses, como consequência da opção de Mirra em demorar-se no amor (contra o que prescrevera o magister de Remedia...), e permanecer em sua doença, ela vai além do adultério e comete um incesto. Como consequências do encontro incestuoso entre pai e filha, ocorrem ações que parecem, entretanto, ir além do universo elegíaco, do mundo do qual o poeta elegíaco tira a importância de qualquer coisa que não seja o amor, e alcança uma dramaticidade que beira outros gêneros, como a tragédia.196 Recapitulemos, nesse sentido, a tentativa de Ciniras de assassinar Mirra, quando ele percebe que a amante é sua própria filha. E, a seguir, chega-se ao Leitmotiv dessa épica: a metamorfose da jovem em árvore, que, como vimos, nesse caso é a transformação propiciada pelos deuses para protegê-la da morte. Mas, a moça já carrega no ventre o filho, fruto dessa relação incestuosa.

194 “The poet has wagered that nothing exists but love, though love makes him suffer; but this suffering of his is just as large as the space granted to love, as large, in fact, as the whole world. To express this, the lover-poet can only represent his condition as intolerable. And he represents himself as having decided to escape from it and seek different solutions. This is how, almost paradoxically, the liberation from love, the search for remedies against love, becomes a recurrent theme of elegiac poetry.” (Conte, 1989, p. 42). 195 Conte, 1989, p. 43. 196 Embora escape ao âmbito deste trabalho, dedicado a ver Remedia em Metamorfoses, analisar as nuanças trágicas dos episódios (o que nos exigiria frequentar o repertório trágico antigo com mais vagar do que nos foi possível até o momento), podemos apontar na narrativa do episódio de Mirra como mais próximos de uma abordagem trágica (do que do universo elegíaco) a ênfase na gravidade do incesto, do amor como crime (scelus), e mesmo a reação do rei traído pela filha. Sobre gêneros dramáticos nas Metamorfoses, merecerá consulta mais detalhada G. Rosati, Narciso e Pigmalione: illusione e spettacolo nelle Metamorfosi di Ovidio, 1983.

100 3.2.2 O pranto de Vênus

A história contada por Orfeu, após narrar o fim funesto da jovem Mirra, é a da prole da jovem, ou seja, do belo Adônis e seus amores com Vênus (Met. X 503-59) – incluindo a história de Atalanta, narrada por ela ao seu amado (X 560-707), como uma outra narrativa dentro da narrativa de Orfeu197 – até a morte do jovem, lamentada pela deusa do amor (X 715-731).198 O fruto do incesto entre pai e filha encontra-se no ventre de Mirra (Met. X 503-5) no momento em que ela sofre a metamorfose. Ovídio narra em detalhes o nascimento do filho da jovem, já transformada em árvore:

At male conceptus sub robore creuerat infans Quaerebatque uiam qua se genetrice relicta Exsereret; media grauidus tumet arbore uenter. Tendit onus matrem; neque habent sua uerba dolores, Nec Lucina potest parientis uoce uocari. Nitenti tamen est similis curuataque crebros Dat gemitus arbor lacrimisque cadentibus umet Constitit ad ramos mitis Lucina dolentis Admouitque manus et uerba puerpera dixit. Arbor agit rimas et fissa cortice uiuum Reddit onus uagitque puer; quem mollibus herbis Naides impositum lacrimis unxere parentis. (Met. X 503-14)

Mas, mal a criança concebida crescera na madeira, buscou o caminho para se arrancar da mãe abandonada. O ventre grávido no meio da árvore está inchado,

197 Mesmo não sendo parte de nossa discussão central nesta dissertação, é interessante lembrar que A. Barchiesi comenta as técnicas narrativas de Ovídio nas Metamorfoses, em seu estudo “Narrative technique and narratology in the Metamorphoses”, 2002, p. 180-99. 198 O excerto parece ecoar o poema do grego Bíon, Lamento para Adônis – é o que nos aponta Hill (1999, p. 179), em seu comentário à tradução do excerto. O estudioso comenta ainda que essa história recebera diversos tratamentos na literatura e na arte entre os séculos XIII e XX.

101 O fardo inclina a mãe, e suas dores não encontram palavras, Nem Lucina pode ser chamada com a voz da parturiente. A árvore, porém, parece fazer esforços; além de curvada, Dá repetidos gemidos e está úmida com as lágrimas que caem. A doce Lucina parou junto aos ramos sôfregos E, aproximando sua mão, disse as palavras puerperais. A árvore entreabre-se e, pela fenda na cortiça, expele, vivo, O fardo, e grita um menino, que, em ervas tenras Foi colocado pelas Náiades e banhado com as lágrimas da mãe.

A bela criança é comparada aos Amores que são pintados em um quadro carregando a aljava (Met. X 515-8), mas a rápida passagem dos anos a faz crescer e se transformar em um belo rapaz, que atrai os amores da própria deusa Vênus.

Et nihil est annis uelocius; ille sorore Natus auoque suo, qui conditus arbore nuper, Nuper erat genitus, modo formosissimus infans, Iam iuuenis, iam uir, iam se formosior ipso est; Iam placet et Veneri matrisque ulciscitur ignes. (Met. X 520-24).

“E nada é mais veloz que os anos. Ele, nascido da irmã E do avô e que há pouco estava escondido na árvore, E há pouco foi gerado, agora é uma belíssima criança, Já é jovem, já é homem, já é mais belo do que ele próprio. E já apraz à Vênus e vinga os amores da mãe.”

Mais especificamente, esse amor é causado por um descuido de Cupido, que brincava com suas flechas próximo à mãe e acaba por atingi-la. Diz-se desse acidente que, com ele, Adônis vinga os amores de sua mãe, Mirra (X 524). Desta forma, ao se referir à vingança, o poeta, como que en passant, vincula, ainda que em palavras de Orfeu, a paixão de Mirra pelo pai à ação da deusa do amor, culpando-a por tal sentimento. Hill, em seu

102 comentário à tradução,199 lembra o apontamento de Anderson sobre o trecho: com tais palavras (Iam placet et Veneri matrisque ulciscitur ignes, X 524), Ovídio alude à uma versão do mito em que a paixão de Mirra por seu pai teria sido causada pela ira da deusa. Examinemos a confluência desse trecho das Metamorfoses com Remedia Amoris. Uma das maneiras de curar tal patologia, afirma o magister de Remedia, é a vingança. Já observamos, porém, que a vingança proposta por Ovídio para curar o amor é silenciosa (tacendo, Rem. 645) e ocorre aos poucos; não falar do sentimento seria a melhor maneira de demonstrar que já não se ama e com o tempo, assim, deixar de amar:

Tu quoque, qui causam finiti reddis amoris Deque tua domina multa querenda refers, Parce queri; melius sic ulciscere tacendo, Vt desideriis effluat illa tuis. Et malim taceas quam te desisse loquaris; Qui nimium multis „non amo‟ dicit, amat. (Rem. 643-8)

“Também tu, que vais explicando os motivos de tua ruptura e enumeras as muitas queixas que tens de tua amante, para de queixar-te; tu te vingarás melhor assim, calando, até que ela se dilua de tuas saudades. Eu preferia que te calasses a que dissesses que já deixaste de amar. Quem muito vai dizendo a muitos: „Já não amo‟, ama.”200

Outro sentido teria a vingança, quando se fala em vingar (ulciscitur, Metamorfoses X 524) os amores da mãe na história de Mirra: tal desforro equivaleria a fazer sofrer aquela que teria supostamente sido a causadora do sofrimento de Mirra, ou seja, a deusa Vênus (uma versão da história, que, como vimos, não é a que Ovídio afirma seguir em seu

199 Hill (1999, p. 179-80). 200 Lembramos que a tradução de Remedia empregada neste estudo é de A. S. Mendonça (1994).

103 compêndio). São divergentes as formas de uma e outra vingança, mas ambos os amores, de Mirra e dos discipuli de Ovídio, estão a ela relacionados nesses excertos. Infligir em Vênus uma ferida (uulnus, X 527), provocada pela flecha distraída do Amor, na figura de um menino que dá beijos na mãe, é a retribuição201 pela infelicidade de Mirra – a vingativa deusa também seria tocada pelo amor, e não qualquer forma de tal sentimento, mas sim um amor que, tal qual uma doença, causa dor:

Namque pharetratus dum dat puer oscula matri, Inscius extanti destrinxit harundine pectus; Laesa manu natum dea reppulit; altius actum Vulnus erat specie primoque fefellerat ipsam. (Met. X 525-8)

O fato é que, enquanto o menino, armado da aljava, dá beijos na mãe, Descuidado, toca de leve seu peito com a flecha pontiaguda. Ela, ferida, afastou o filho com a mão: o golpe era mais Profundo do que aparentava e enganara, primeiramente, a própria deusa.

Em alguns dos versos ovidianos, a ferida e o sentimento amoroso são assimilados. Por exemplo, no verso 44 de Remedia Amoris, que anteriormente referimos, Ovídio afirma ter trazido a ferida (referindo-se à Ars Amatoria), e, em Remedia, a cura, assim como Aquiles, que com a mesma lança golpeou e curou Télefo:

Vna manus uobis uulnus opemque feret. Terra salutares herbas eademque nocentes Nutrit et urticae proxima saepe rosa est. Vulnus in Herculeo quae quondam fecerat hoste Vulneris auxilium Pelias hasta tulit. (Rem. 44-8).

201 Utilizamos essa palavra de maneira a remeter a certo sentido de ulciscor, que em nosso entender é usado por Ovídio em ambos os excertos. O OLD traz como definição para o verbete: “1. infligir retribuição, vingar-se, de (uma pessoa). b exigir retribuição por, vingar (erros). c (absl.) exigir vingança.” – “1. to inflict retribution, take revenge, on (a person). b to exact retribution for, avenge (wrongs). c (absl.) to take vengeance.”

104

“Aprendei a vos curar com quem aprendestes a amar; uma única mão vos trará a ferida e o socorro. A mesma terra nutre as plantas saudáveis e as daninhas, e a rosa amiúde fica bem perto da urtiga. A lança de Aquiles, que golpeou seu inimigo, filho de Hércules, foi a que lhe curou a chaga.”

O termo uulnus aparece, ainda, comparado com o amor nos versos em que Ovídio afirma que as feridas de amor que não se curam de imediato agravam-se com o tempo (Rem. 101), que uma cicatriz pode se tornar novamente ferida (Rem. 623), e ainda que, ao ser evocado, o amor reaviva a ferida antiga (Rem. 729).202 Assim parece ser o que se apodera de Vênus (capta, Met. X 529), e a afasta de todos os seus afazeres (Met. X 529-32). O termo utilizado em Metamorfoses para expressar a condição cativa da deusa também se encontra em Remedia:

Si tamen auxilii perierunt tempora primi Et uetus in capto pectore sedit amor. (Rem. 107-8).

Se, contudo, se perdeu a oportunidade dos primeiros socorros e o amor já velho, se plantou no teu coração prisioneiro.203

Adônis seria, segundo o que os versos ovidianos nos apresentam, amante da caça – o que poderia justificar a imagem que Ovídio descreve da deusa do amor vestida à maneira de Diana (Met. X 533-6): poderia estar a deusa assim caracterizada para agradar ao jovem.

202 Vidi ego, quod fuerat primo sanabile, uulnus/ Dilatum longae damna tulisse morae – “Eu mesmo vi feridas, que a princípio seriam curáveis, agravarem-se devido ao longo tempo de adiamento” (Rem.101-2); Vulnus in antiquum rediit male firma cicatrix – “A cicatriz ainda frágil voltou a ser ferida antiga” (Rem. 623); Admonitus refricatur amor, uulnusque nouatum/ Scinditur – “Quando evocado, o amor se reanima e a ferida, avivada, se abre” (Rem. 729-30). 203 O verbo capio é definido no OLD como “tomar, pegar, agarrar, tomar posse de, se apropriar”, sem se deixar de mencionar os sentidos de cativar, fascinar com o amor, enamorar (OLD, verbete “capto”, sentido 1b, 6, 8; 17 e 18).

105 Sobre o trecho, Hill comenta a comicidade presente na caracterização da deusa do sexo e do amor vestida para a caça, como Diana, deusa da castidade e da caça.204 O jovem recebe de Vênus o conselho de se manter afastado dos animais a quem a natureza concedeu armas (Met. X 543-52):

Te quoque, ut hos timeas, siquid prodesse monendo Posset, Adoni, monet, “Fortis” que “fugacibus esto” Inquit; “in audaces non est audacia tuta. Parce meo, iuuenis, temerarius esse periclo; Neue feras, quibus arma dedit natura, lacesse, Stet mihi ne magno tua gloria. (Met. X 542-7)

“A ti também ela adverte a temê-los, Adônis, caso advertir Possa ser útil: “Sê corajoso com os fugazes”. Ela afirma: “Contra os audazes, não há audácia segura. Evita ser temerário em meu prejuízo, Não provoques as feras a quem a natureza deu as armas. Que tua glória não vá me custar caro demais.”

A admoestação feita pela deusa está relacionada à caça e também ao sentimento amoroso, de certa maneira, uma vez que é a própria Vênus quem tange o assunto. Além disso, seria possível compreender na relação que se faz entre o amor e a caça uma aversão de uma deusa ao atributo da outra; mantém-se casta não só a própria Diana, como também aquelas que se servem da proteção da deusa, e não cultuam o amor. Ora, lembremos que no poema Remedia Amoris, anterior às Metamorfoses, o vate ovidiano teria aconselhado os mortais que se ocupassem de Diana (i. e., que se dedicassem à caça), como uma das maneiras de curar o mal do amor (Rem. 199-200). Vejamos mais uma vez a passagem:

Vel tu uenandi studium cole; saepe recessit

204 1999, p. 180. Hill remete ainda a um excerto da Eneida virgiliana em que a deusa do amor aparece disfarçada de Diana, En. I 314-34.

106 Turpiter a Phoebi uicta sorore Venus.

“Ou então cultiva o gosto pela caça; com frequência Vênus bate em retirada, vergonhosamente vencida pela irmã de Febo.”

Indicamos, no início deste estudo,205 nossa interpretação de que nessa passagem haveria uma alusão a Hipólito; importante relembrar a negligência desse personagem mítico no que tange as homenagens à deusa do amor. Além disso, percebe-se, através de uma leitura intertextual que leve em conta a referida passagem das Metamorfoses e o poema Remedia Amoris, que a fala da deusa vai contra o que havia dito o próprio poeta (em sua versão de magister), pois aponta agora que a caça (Diana) é causa, em vez de remédio, para o mal amoroso. Durante sua exposição a Adônis (que lembraria, ao que nos parece, os preceitos do magister para seus discipulis na poesia didática), Vênus menciona os animais dos quais o jovem deve manter distância ao caçar:

(...) Non mouet aetas Nec facies nec quae Venerem mouere, leones Saetigerosque sues oculusque animosque ferarum. Fulmen habent acres in aduncis dentibus apri, Impetus est fuluis et uasta leonibus ira Inuisumque mihi genus est. (Met. X 547-552)

“Tua juventude, beleza ou atributos que comoveram Vênus Não comovem leões, os javalis eriçados, os olhos e a natureza das feras. Os impetuosos javalis têm a força de um raio nos dentes aduncos, Há violência e imensa ira nos fulvos leões. A espécie é odiosa para mim.”

205 Cf. Capítulo 1 e F. Oliveira (2011).

107 Para justificar seu ódio em relação aos leões, em especial, Vênus narra a história de Atalanta e Hipômenes (Met. X 560-704). A jovem veloz promove uma corrida em que o vencedor se casaria com ela; os que perdessem, teriam a morte como prêmio (X 569-72). Hipômenes, com o auxílio da deusa do amor (X 640-43), vence a corrida e casa-se com Atalanta. Esquece-se, porém, de homenagear a deusa, como forma de agradecimento, o que provoca sua ira vingativa e a consequente transformação do casal em fulvas feras (X 681- 5). Interessante é ressaltar que a própria personagem da história narrada por Vênus assume que a consequência do amor é desastrosa:

Occidet hic igitur, uoluit quia uiuere mecum, Indignamque necem pretium patietur amoris? (Met. X 626-7).

“Ele perecerá, portanto, porque quis viver comigo, E sofrerá a morte indigna como preço do amor?”

E, na narrativa sobre Atalanta, a desgraça ao amor associada é provocada justamente pela vingança de Vênus. Na história de Vênus e Adônis, também é nefasta a consequência do sentimento, mas dada, dessa vez, pela morte de Adônis (X 715-6). Lembremo-nos das palavras de Orfeu no início do excerto (X 524): Adônis desperta a paixão da deusa e, assim, vinga os amores da mãe – o jovem não segue o conselho da deusa, persegue um javali, e pelas presas do animal é abatido. O desespero que acomete Vênus perante a morte de seu amado, reforça o preceito do amor como um mal. A própria deusa, de quem o sentimento é atributo, reage como uma mortal diante de tal situação. Notem-se lugares-comuns, encontráveis na demonstração de luto de heroínas (como as de tragédias gregas e romana), aqui aplicadas na demonstração de luto da deusa:

(...) utque aethere uidit ab alto Exanimem inque suo iactantem sanguine corpus, Desiluit pariterque sinum pariterque capillos

108 Rupit et indignis percussit pectora palmis. (Met. X 720-3)

“Quando ela viu, do alto céu, Que ele jazia morto e com sangue jorrando do corpo, Desceu e rasgou, ao mesmo tempo, as pregas da roupa e os cabelos, bateu no peito com a palma indigna.”

Nos versos 725-6 do livro X das Metamorfoses, a imortal afirma que nunca esquecerá a dor sentida com a morte de Adônis:

“(...) luctus monimenta manebunt Semper... (Met. X 725-6)

"(...) as lembranças da dor permanecerão Para sempre.”

Voltando à questão sobre o modo como Ovídio trata do mito de Vênus nas obras abordadas, é interessante verificar que também em Ars amatoria o poeta menciona tal pranto da deusa diante da morte de seu amado. Em Ars I 75, a lenda serve de exemplum para prevenir o discipulus de errar na escolha do amante; e ainda em Ars III 85, quando o vate se refere aos amores de Vênus e afirma que por conta do jovem, a deusa ainda chora. Tal qual em Remedia (99-102), Mirra também é referida no livro I dessa mesma obra (Ars 285 e 288), a título de exemplum de história de amor com mau desfecho. E, cabe perguntar: nesse ponto, após apreciar a narrativa completa sobre a história da moça e seu filho, com que impressão fica ao leitor sobre o papel de Vênus e seu filho nessa história? Recapitulando, apontamos que, embora se conteste, a certo ponto, que fosse de Cupido a culpa pela incestuosa paixão – que, como vimos, é caracterizada, por meio de topoi comuns à elegia, como doentia – vários recursos poéticos do texto ovidiano matizam a questão: a presença metonímica do nome Venus, a referência à vingança de Adônis no que concerne aos amores da mãe; a referência ao amor cativo (típica, não somente, mas

109 também do mundo elegíaco), a personagem Atalanta, que culpa o amor em narrativa enunciada pela deusa do amor. Da mesma forma, ainda que o amor de Mirra (e, de qualquer forma, associado a Vênus), não se restrinja ao âmbito elegíaco em que se movera anteriormente seu poeta, também é, segundo defendemos, também matizado pelas nuanças de tal universo.

3.2.3 Vênus na épica ovidiana

Outro episódio em que Vênus é ferida é também mencionado em Remedia:

Non ego Tydides, a quo tua saucia mater In liquidum rediit aethera Martis equis. (Rem. 5-6)

“Não, não sou eu o filho de Tideu; tua mãe, ferida por ele, tornou às límpidas regiões etéreas, nos cavalos de Marte.”

Trata-se aqui de um episódio que envolve o personagem Diomedes, e que, narrado na Ilíada de Homero (V 334-9), e que volta a ser referido em Metamorfoses, também no tocante a Diomedes:

(...) antiquo memores de uulnere poenas Exigit alma Venus (Met. XIV 477-8)

“(...) pela antiga ferida, a graciosa Vênus exige Rancorosos castigos”.

Em que medida o episódio, do modo como apresentado em Metamorfoses, refletiria, tais como os do Sol, Mirra e Adônis acima apreciados, a imagem do amor como doença e

110 da Vênus de Remedia? Para responder a essa questão, observemos o contexto em que as referidas menções a desventuras da deusa se configuram nas Metamorfoses. Tendo realizado as exéquias de sua ama Caieta, Eneias, o filho da deusa do amor, luta contra Turno, a fim de conquistar a casa de Latino e a mão de sua filha (“Ele, da casa e da filha de Latino, descendente de Fauno, apodera-se”)206 – para Turno, Lavínia, a filha de Latino, teria sido a ele prometida, conforme o que consta do verso ovidiano (Met. XIV 451). Interessante é notar que, como aponta Hill,207 no trecho da épica de Virgílio, não haveria, por parte de Latino um compromisso de casar a filha Lavínia com o opositor de Eneias, mas sim uma objeção da mãe da jovem, Amata (Eneida VII 55-7, 359-72), que assevera que tal promessa fora feita. De todo modo, o estudioso afirma que, em Virgílio, isso parece ser apenas uma manifestação da vontade da rainha; já em Metamorfoses é mais categórica a afirmação do narrador. A inevitável guerra dá-se contra Eneias, auxiliado por Evandro (Met. XIV 456), e Turno, que envia Vênulo para buscar, em vão, pela ajuda dos rútulos (XIV 457). Tal episódio é narrado também por Virgílio em sua épica (Eneida VII 45-285), e a respeito do diálogo intertextual entre os excertos ovidiano e virgiliano, já se teceram muitos estudos (cf. Hill, 2000, ad loc.), de modo que aqui nos limitaremos a algumas observações referentes ao cotejo das narrativas. Conforme percebido nos excertos analisados neste capítulo, Ovídio, em suas narrativas, muitas vezes estende alguns detalhes e sintetiza outros, quando os comparamos com as versões anteriores dos mesmos episódios mitológicos. Já contemplamos tanto divergências quanto semelhanças entre Ovídio e Homero, entre Ovídio e a obra dele mesmo, e não poderia ser diferente entre as épicas de Virgílio e Ovídio. Por exemplo, na épica virgiliana, o livro VII também inicia-se, assim como o trecho de Ovídio aqui escolhido para nossa tradução (Met. XIV 441-608), com as exéquias de Caieta, a ama de Eneias, e também naquela obra o filho da deusa segue pelo Tibre para aguardar a luta contra Turno. Nas Metamorfoses, quando Vênulo busca o auxílio dos rútulos, Diomedes recusa-se a ajudá-lo (Met. XIV 463-511). É neste momento que, em seu discurso, o próprio

206 Suscipitur, pactaque furit pro coniuge Turnus. (Met. XIV 449). 207 2000, p. 186.

111 personagem menciona a ferida que provocara na deusa do amor durante a guerra de Troia (Met. XIV 477-8, versos acima citados). Mas aqui, diferentemente do que ocorrera no episódio de Adônis, a ferida de Vênus não é associada ao mal do amor: nem quanto a um amor que acometeria a deusa, tal qual uma doença, a exemplo do que fizera Cupido; nem quanto a um mal resultante da perda de um amor, tal qual ocorrera com a morte de Adônis. De todo modo, até que ponto a vingança da deusa rancorosa será associada com algum tipo de amor? No enredo que Ovídio constrói em Metamorfoses, Diomedes narra as penas que a deusa do amor o fizera passar, junto à sua frota (XIV 479 ss.) e, por causa das dores que sofriam:

Me tamen armiferae seruatum cura Mineruae 475 Fluctibus eripuit; patriis sed rursus ab agris Pellor et antiquo memores de uulnere poenas Exigit alma Venus; tantosque per alta labores Aequora sustinui, tantos terrestribus armis, Vt mihi felices sint illi saepe uocati 480 Quos communis hiems importunusque Caphereus Mersit aquis uellemque horum pars una fuissem.

“A mim, no entanto, o cuidado da guerreira Minerva salvou, 475 Livrando-me das ondas: mas, mais uma vez, sou expulso dos campos De meu pai, e, pela antiga ferida, a graciosa Vênus exige Rancorosos castigos; e tais foram as dores que suportei por Mares profundos, tais eram, por terra, nos exércitos, Que por mim foram, muitas vezes, chamados ditosos 480 Aqueles que a mesma tempestade e o penoso Cafereu Submergiu nas águas; quisera eu ter sido um deles”.

Mas, a certo ponto, Ácmon (personagem desconhecido, exceto por esse trecho ovidiano) desafia Vênus (XIV 486-93):

112

“Quid superest, quod iam patientia uestra recuset Ferre, uiri?” dixit “quid habet Cytherea, quod ultra, Velle puta, faciat? Nam dum peiora timentur, Est locus in uulnus; sors autem ubi pessima rerum, Sub pedibus timor est securaque summa malorum. 490 Audiat ipsa licet et, quod facit, oderit omnes Sub Diomede uiros; odium tamen illius omnes Spernimus et magno stat magna potentia nobis.”

Disse: “O que nos resta agora que vossa tolerância se recuse a Suportar, homens? O que mais a Citereia pode (Supondo que ela queira) fazer? Pois enquanto tememos o pior, Há espaço para as feridas, porém, quando é a sorte a pior das coisas, A nossos pés está o temor, e o maior dos males não é objeto de preocupação. 490 Deixai que ela mesma me escute e que, como faz ela, tenha aversão a todos Os homens subordinados a Diomedes; todos nós, no entanto, desprezamos o Ódio dela, e nos custou muito este nosso poder.”

Diante do audaz discurso, revolta-se a deusa e pune os companheiros do herói. Mas, nem mesmo irada (iratam Venerem, Met. XIV 494), ela lhes inflige uma paixão descontrolada, e sim metamorfoseia-os todos em pássaros (XIV 497-507), a começar com quem a insultara:

(...) cui respondere uolenti Vox pariter uocisque uia est tenuata comaeque: In plumas abeunt, plumis noua colla teguntur Pectoraque et tergum; maiores bracchia pennas 500

113 Accipiunt cubitusque leuis sinuatur in alas; Magna pedis digitos pars occupat oraque cornu Indurata rigent finemque in acumine ponunt.

Censuramos Ácmon; que, ao querer responder, Tem sua voz e a saída de sua voz, ao mesmo tempo, diminuídas, e os cabelos Esvaem-se em plumas, com plumas são cobertos o novo pescoço, E seu peito e suas costas; os braços recebem a maior 500 Plumagem, e os cotovelos curvam-se em velozes asas; Grande parte do pé ocupam os dedos, e sua boca, como um bico Endurecida, enrijece e termina em uma ponta.

Contudo, essa narrativa das Metamorfoses gira em torno de um tema bélico. Mesmo sem o auxílio dos homens de Diomedes, dá-se a guerra. Vênus vê sair vitorioso da batalha seu filho Eneias (XIV 572-3) – ainda que Turno tenha conseguido incendiar a frota do herói (XIV 530-4), os barcos, por intermédio de Cibele, transformam-se em ninfas (XIV 535-58) – e roga aos deuses que o transformem em um imortal (XIV 581-608). A deificação do herói é tratada por Virgílio na Eneida (XII 794-5), conforme o que aponta Hill,208 mas, em Ovídio, dá-se em vinte e sete versos, enquanto que na épica virgiliana há apenas uma menção deste episódio nas palavras de Júpiter: uma vez mais, Ovídio, à primeira vista “preenchendo” uma lacuna narrativa do texto de Virgílio,209 privilegia as transformações, o Leitmotiv de sua épica. O mesmo ocorre com a narrativa da transformação da frota de Eneias em ninfa: os versos virgilianos rapidamente a mencionam (Eneida, XIX 117-22), enquanto que Ovídio a descreve em vinte e três versos. Análises pormenorizadas do diálogo entre as épicas ovidiana, virgiliana e homérica ressaltariam tornariam mais evidentes a riqueza do excerto das Metamorfoses em apreço, particularmente no que diz respeito a seu caráter épico. No entanto, nesta breve apreciação, na caracterização e atuação de Vênus na passagem, não se parece revelar a nuança elegíaca

208 2000, p. 191. 209 Para tanto, chamou-nos a atenção o comentário de Hill (2000, p. 191).

114 que interessa a este estudo, i.e., a composição mais constante da deusa do amor presente no poema Remedia Amoris, cuja nuança épica apreensível nas referências a armas, como aljavas, a comandantes, e a feridas, precisam ser compreendidas como estilizadas. Nesse sentido, após a discussão do gênero elegíaco presente nas passagens de Metamorfoses acima apreciadas, a breve contemplação desse excerto do livro XIV, tão próximas das passagens acima mencionadas da Eneida de Virgílio, ajuda-nos a fortalecer, por contraste, a especificidade da Vênus elegíaca e do amor como doença como parte de seus atributos naquele contexto genérico.

115 116 4 Conclusão: de Mito a pathos

A presença da Vênus ovidiana em Remedia Amoris se verifica mais diretamente em três dos quatro episódios analisados das Metamorfoses, e a observação do texto latino nos mostra que isso ocorre de uma forma mais ampla do que sugere à primeira vista a mera constatação dos temas em comum. A fim de contemplar essa presença da deusa e de seu atributo, o amor, na poesia de Ovídio, foi preciso levar em conta mais do que as duas obras que foram objeto central, ponto de partida deste estudo. Para reconhecê-la, e ainda obter uma melhor visão do tratamento conferido aos temas, foi necessário considerar, na medida do possível, os diversos gêneros que perpassam e se manifestam tanto no poema médico-erótico-didático, quanto na épica ovidiana. Por exemplo, foi importante, na esteira de Conte, rever (ainda que brevemente) a configuração do amor-furor, da seruitium amoris e da renuntiatio amoris como pertinentes ao gênero praticado por um Catulo, Propércio, Tibulo e Ovídio. E notamos que a mera menção de um ou outro léxico ou imagem isolada não é o suficiente para permitir a identificação do amor elegíaco. Nesse sentido, observamos lugares-comuns da poesia desse gênero que frequentemente acompanham a ideia do amor como doença, a ser curado em Remedia: o amor como chama, a referência a sintomas físicos, a escravidão que submete o eu poético e o faz subverter sua posição social, a tentativa de renunciar ao sentimento torturante (uma tentativa vã, por um lado, pois o fim desse sentimento representa o fim da poesia elegíaca, como bem nos lembra Conte), o amor como milícia, como causador de desgraças, desastres e guerras, o amor como ferida. Esses aspectos precisam ser manifestos em seu conjunto, em combinações variadas, para que possamos perceber a configuração própria ao mundo elegíaco, mesmo em um texto como as Metamorfoses, com teor também épico, ora também dramático, ora também didático. No mito de Vênus e Marte, os recortes e escolhas lexicais ovidianos contribuem para brincar com o texto e amenizar uma temática que em outros gêneros já se mostrou de consequências mais graves: a do adultério – tratado, na poesia elegíaca, por exemplo, com mais leveza (já que a própria puella amada pelo eu poético é por vezes representada como uma adúltera), e mesmo na épica ovidiana com um tom cômico (e ressaltando de modo não

117 prejudicial o caráter torpe da ação e seu flagrante), semelhante ao modo como é narrado o mesmo mito na Odisseia. No episódio de Mirra e, consecutivamente, no de Adônis, vimos que também está presente uma imagem do amor como algo que causa dor, ainda que por fim não predomine uma concepção particular do sentimento amoroso como uma patologia. E, ainda que a grave abordagem do tema do incesto provoque algum distanciamento do universo de que partilham os Amores, sem dúvida o leitor das elegias ovidianas reconheceria na filha de Ciniras traços do amante expresso naquelas, com sua chama, furor, hesitações, consequências físicas (que transformam sua natureza) e alma bipartida. Na história de Diomedes referida em Remedia, ao ser narrada em Metamorfoses, no entanto, pareceu-nos que a imagem de Vênus, que ali não usa do encanto de Cupido para infligir amor nos demais personagens, não trouxe tanto consigo o mundo elegíaco: ali, a deusa do amor é que se transveste de épica. Tendo analisado com mais vagar as passagens selecionadas das Metamorfoses e Remedia Amoris notamos, portanto, particularmente nos episódios de Marte e Vênus, de Mirra e de Adônis, o delinear ao menos de uma das imagens que se faz do amor, através das tristes histórias narradas, dos dizeres dos personagens, dos preceitos transmitidos pelas vozes ovidianas em suas obras. Isso porque, tanto na primeira (com seu caráter mais espetacular e talvez cômico), quanto na segunda (com grave dramaticidade), a ideia do amor como doença pressuposta em Remedia se faz notar. O estudo nos mostra ainda que, para obter uma imagem mais completa da presença de Vênus (e mesmo da Vênus de Remedia) nas Metamorfoses, seria necessário considerar com mais vagar a Ars Amatoria e também os Amores, bem como outros textos da Antiguidade clássica, de diversos gêneros, com que o texto ovidiano dialoga, sobretudo o épico (mas também o trágico e o cômico), uma vez que o elegíaco foi o privilegiado em nossas considerações. A complexidade do texto ovidiano nos ensina que muito há que se aprofundar dentre os temas abordados em nosso estudo. De todo modo, esperamos ter oferecido modestamente nossa contribuição no sentido de evidenciar o fato de que a leitura da narrativa mais extensa em Metamorfoses pode sem dúvida nos auxiliar na compreensão de obras anteriores de Ovídio, como Remedia Amoris e (certamente) Ars Amatoria. Com tal

118 leitura “retroativa” (para empregar uma expressão de Fowler), ficam à primeira vista mais claras ao público moderno (e antigo, diriam alguns)210 certas alusões a mitos utilizados como exempla em Remedia. Contudo, gostaríamos de apontar um cuidado necessário nesse cotejo: observando as referidas obras ovidianas (em seu diálogo com outros textos antigos), foi possível notar que não se trata de uma mera relação de complemento de informações de um mito existente independentemente do fazer poético: uma amostra disso é que, mesmo quanto ao papel e culpa de Vênus nas histórias de amor malfadado, as obras apreciadas não apresentam uma voz única, ou que se possa claramente identificar como tal. Como vimos, na história de Mirra, vários aspectos servem-nos de contraponto no que concerne aos preceitos transmitidos pelo magister de Remedia. Um exemplo é observar que o uso metonímico do nome da deusa pode apontar efetivamente para alusões a histórias e características que, ao evocarem sentidos mais profundos, delineiam as diversas faces de Vênus que acompanham o sentimento amoroso. Essas faces também são desenhadas pelo que enuncia o vate em seus poemas, através de seus preceitos, argumentos e constatações sobre o que causa, como age e se comporta, enfim, como se cura o Amor não dominado.

210 Cardoso (2009, p. 105), indicando bibliografia suplementar, afirma: “Também o reconhecimento do efeito retroativo que a interpretação de textos recentes exerce sobre a compreensão de obras antigas é um progresso devido a correntes intertextuais. Que a imagem de Lívio Andronico era, já junto ao leitor antigo, influenciada, por exemplo, pela interpretação de obras posteriores de um Ênio; que a recepção moderna de Plauto depende da visão poética de um Horácio, em suma: produtivos anacronismos do tipo aqui discutido não são hoje em dia mais relegados como tabus, e sim tratados sistematicamente de um ponto de vista epistemológico” – “Auch die Anerkenntnis der Rückwirkung der Interpretation rezenterer Texte auf das Verständnis älterer Werke ist ein intertextuellen Strömungen verdankter Fortschritt. Daß das Bild des Livius Andronicus schon beim antiken Leser etwa von der Interpretation des späteren Werkes des Ennius beeinflußt wurde, daß die moderne Rezeption des Plautus lange von Horazens poetischen Ansichten abhing, kurz: produktive Anachronismen der hier verhandelten Art werden heute nicht mehr tabuisiert, sondern systematisch epistemologisch behandelt”).

119 120 5 Tradução das passagens selecionadas

121 5.1 Vênus e Marte (Met. IV 167-189)211

Desierat: mediumque fuit breue tempus et orsa est dicere Leuconoe: uocem tenuere sorores. “hunc quoque, siderea qui temperat omnia luce, cepit amor Solem: Solis referemus amores. 170 primus adulterium Veneris cum Marte putatur hic uidisse deus: uidet hic deus omnia primus. indoluit facto, Iunonigenaeque marito furta tori furtique locum monstrauit, at illi et mens et quod opus fabrilis dextra tenebat 175 excidit: extemplo graciles ex aere catenas retiaque et laqueos, quae lumina fallere possent, elimat. non illud opus tenuissima uincant stamina, non summo quae pendet aranea tigno; utque leuis tactus momentaque parua sequantur, 180 efficit et lecto circumdata collocat arte.

211 Salvo outra indicação, o texto latino é retirado da edição de Georges Lafaye, publicado pela editora Belles Lettres.

122 Terminara;212 e houve breve intervalo de tempo, E213 Leucónoe começou a falar. As irmãs contiveram a voz. “Também aquele que com sua luz rege todos os astros, O amor capturou: o Sol; do Sol214 os amores narraremos. 170 Julga-se que este deus foi o primeiro215 a ver O adultério de Vênus com Marte: este deus vê tudo primeiro. Condoeu-se do fato e ao marido, filho de Juno,216 Revelou o crime contra o casamento217 e o local do crime218, mas, quanto a esse, Lhe escaparam219 tanto a razão quanto o artefato que sua mão direita 175 Segurava: imediatamente, do ar,220 ele lima cadeias delgadas E redes e laços capazes de iludir os olhos, (não venceriam tal obra os fios mais finos, sequer a teia de aranha pendurada do alto caibro). Ele os coloca com arte, circundando o leito, 180 A fim de que respondam e, em poucos instantes, a leves toques.

212 Terminara (desierat, IV 167): a irmã de Leucónoe acaba de contar a história de Píramo e Tisbe (IV 55-166). 213 O poliptoto “e...e...” que adotamos na tradução tenta recuperar a sequência de conectivos aditivos que no original latino se dá de forma mais variada “mediumque... et”. 214 Procuramos manter em português a ordem que favorece a proximidade dos termos Solem/Solis, que em latim formam um poliptoto. 215 Optamos por considerar primus um adjetivo que qualifica o substantivo deus, assim como fizeram George Lafaye (na edição de Metamorfoses da Belle Lettres), e Frank Justus Miller na respectiva edição da Loeb. Outra opção seria traduzir o termo como advérbio em referência a putatur (“primeiramente se julga”), ou à ordem das narrativas que Leucónoe e suas irmãs tecem ao longo do livro IV. 216 Trata-se do deus Vulcano, filho de Juno (cf. Homero, Il. I 571-2). O substantivo composto Iunonigena (IV 172) é registrado apenas aqui (hapax legomenon), cf. Thesaurus Linguae Latinae e Hill, 1985, p. 238. É notável que Juno seja precisamente a deusa que zela pelo casamento, não raro caracterizada como ciumenta. Sobre o ciúme como tema unificador das histórias que Leucónoe contará acerca do sol (Met. IV 190-273), cf. Met. IV 191-3, Hill (1985, p. 238). 217 Literalmente furta tori (IV 174) significa “crime contra o leito nupcial”, por metonímia, “crime contra o casamento”. 218 Notável é o poliptoto em furta ... furti (IV 174). 219 O mesmo verbo (excipere, IV 175), é usado em dois sentidos: um mais concreto, com artefactus, designa a queda do objeto; já excipere mens significa “perder a razão”, “sair de si”. 220 No verso 176 observamos a aliteração em ex: excidit/ extemplo/ ex aere, o que nos parece acentuar o caráter súbito (exemplo, IV 176) da reação do marido traído. Outra hipótese: ex (“fora de”) ressaltaria que o deus estaria, num primeiro momento, como que “fora de si” (mens...excidit, IV 175-6), cf. nota ao verso 175 acima.

123 ut uenere torum coniunx et adulter in unum, arte uiri uinclisque noua ratione paratis in mediis ambo deprensi amplexibus haerent. Lemnius extemplo ualuas patefecit eburnas 185 inmisitque deos; illi iacuere ligati turpiter, atque aliquis de dis non tristibus optat sic fieri turpis; superi risere, diuque haec fuit in toto notissima fabula caelo.

124 Quando vieram a esposa e o adúltero se unir em um só leito,221 Presos pela arte222 do esposo e pelos vínculos preparados com a nova técnica, Ficam imobilizados, ambos, em plenos abraços.223 O Lêmnio224 imediatamente225 escancarou as portas ebúrneas 185 E adentrou os deuses. Os outros jaziam atados Torpemente. Mas alguém, dentre os deuses nada tristes, Queria ficar torpe assim.226 Os súperos riram, e por longo tempo Essa história foi famosíssima em todo o céu.

221 Vt uenere torum coniunx et adulter in unum (IV 180): notam-se nessa passagem duas possíveis brincadeiras de Ovídio. Uma se dá pela escolha do termo uenere (“vieram”, forma alternativa de uenerunt, pretérito do verbo uenire), homógrafo do ablativo do substantivo abstrato uenus, “amor”. Outra, na expressão adulter in unum (IV 182), que lembra o termo adulterium, anteriormente mencionado. Com tais jogos de palavra o poeta imitaria (ou emularia sonoramente) a ilusão visual da arte de Vulcano? 222 Com o termo “arte”, traduzimos a palavra latina ars, que pode significar também “técnica”, ou “artifício”. Embora esse sentido seja o mais próximo do contexto do verso 183, preferimos manter a repetição do vocábulo, tal como se dá no texto ovidiano (cf. IV 181). 223 A expressão ambo deprensi (“ambos presos”) encontra-se no meio da expressão ambo... amplexibus, o que de certa forma materializa, visualmente, o abraço em que os dois amantes foram aprisionados. 224 Vulcano é chamado de Lemnius (IV 185), pois esse deus teria caído na ilha de Lemnos (principal local de culto a Vulcano) ao ser precipitado do Olimpo por Júpiter, ou em outras versões (por exemplo, em Il. I 571 e ss.), por Juno. (P. Grimal, Dicionário de Mitologia Grega e Romana, verbete “Hefesto”.) 225 Mantivemos a repetição do termo “imediatamente” (extemplo, IV 176 e 185) na tradução. 226 aliquis... optat/sic fieri turpis (IV 187-188): trata-se do deus Mercúrio, conforme Homero (Od. VIII 338-42) e a versão anterior de Ovídio (Ars Am. II 585). Cf. Hill (1985, p. 238).

125 5.2 Mirra (Met. X 289-518)

Editus hac ille est qui, si sine prole fuisset, Inter felices Cinyras potuisset haberi. Dira canam; procul hinc natae, procul este parentes; 300 Aut, mea si uestras mulcebunt carmina mentes, Desit in hac mihi parte fides, nec credite factum; Vel, si credetis, facti quoque credite poenam. Si tamen admissum sinit hoc natura uideri, Gentibus Ismariis et nostro gratulor orbi, 305 Gratulor huic terrae, quod abest regionibus illis Quae tantum genuere nefas; sit diues amomo Cinnamaque costumque suum sudataque ligno Tura ferat floresque alios Panchaia tellus,

126 Nasceu desta227 aquele Ciniras que, se não tivesse tido prole, Poderia ser numerado entre os felizes. Cantarei versos agourentos;228 ficai distantes, oh! filhas, distantes, oh! pais, 300 Ou, se meus poemas atraírem229 vossas mentes, Que me falte credibilidade nesta parte, não acrediteis na façanha, Ou então, se acreditardes, crede também na punição pela façanha. Se, porém, a natureza consente que se admita ver isso, Aos povos de Ísmaro230 e a nossa parte do mundo agradeço, 305 Felicito esta terra, por estar longe daquelas regiões Que tamanhos sacrilégios geraram. Que a terra da Pancaia231 seja rica Em amomo e em canela, e em seu costo,232 e que produza Incensos destilados da madeira e outras flores,

227 Hac (X 298): “desta”, i. e., de Pafo, filha gerada da união de Pigmalião e uma estátua de sua autoria, esta vivificada, a pedido dele, por Vênus. Ovídio parece ter sido o primeiro a associar a história de Mirra à linhagem de Pigmalião (cf. Met. X 243-97, Hill, 1999, p. 175-76). Ciniras não aparece como filho dele, por exemplo, em Homero (Il. XI 19-23). 228 O verbete dirus é definido no OLD, entre outros sentidos, como “1. (de coisas, consideradas presságios) Horrível, terrível, péssimo; 2. Inspirando terror, péssimo, calamitoso, terrível: a. (de coisas, condições, etc. físicas ou não físicas)”. “1. (of things, regarded as omens) Awful, dire, dreadful; 2. Inspiring terror, dreadful, dire, frightful: a. (of physical or non-physical things, conditions, etc)”. Em nossa tradução, explicitamos o sentido de carmina, que subentendemos no texto latino. 229 Aut, mea si vestras mulcebunt carmina mentes (X 301): a tradução aqui proposta para o verbo mulcere se aproxima das outras versões consultadas: “E se acaso as mentes vossas/ ficarem de meus versos atraídas” (Bocage, 2000); “ou bien, si mes chants ont des seducctions pour vos coeurs,...” (Georges Lafaye, 1999); “or, if your minds find pleasure in my songs” (Miller, 1984); “or if you find my song irresistible” (Ted Hughes, 1997). 230 Gentibus Ismariis (X 305): povos de Ísmaro, i.e., os povos da Trácia. Orfeu, personagem que narra a história de Mirra, está em sua terra natal, na Trácia (cf. Met. X 77). Hill (1999, p. 176) aponta aqui a intenção, por parte do personagem narrador, de agradar sua audiência, bem como certa ironia nos cumprimentos à sobriedade do povo, tendo em vista a reputação dos trácios (Met. XI 1-43). 231 Panchaia telus (X 309): a região da Pancaia, registrada pela primeira vez na literatura latina em Lucrécio (II 417), era um lugar imaginário, supostamente uma ilha cheia de especiarias, situada no Oceano Índico (Hill, 1999, p. 176). 232 Costum (X 308): também chamada em latim de costus ou costos (cf., por exemplo, Prop. IV 6 - 5; Ov. Fast. I, 341, Plin. Nat. 12.41). O OLD propõe tratar-se da planta hoje denominada cientificamente como Saussurea lappa (ou do pó feito de sua raiz). Cf., porém, Hill (1999, ad loc.): “obviamente, uma pimenta ou perfume, mas, uma vez que parece não haver identificação segura, foi deixado sem tradução.” – “obviously a spice or perfum, but, since there seems to be no secure identification, it has been left unstranslated”. Müller e Lafaye empregam, respectivamente, “costum” e “costus” sem maiores comentários. Bocage emprega, por sua vez, “costo” para tal passagem.

127 Dum ferat et myrrham; tanti noua non fuit arbor. 310 Ipse negat nocuisse tibi sua tela Cupido, Myrrha, facesque suas a crimine uindicat isto. Stipite te Stygio tumidisque afflauit echidnis E tribus una soror; scelus est odisse parentem; Hic amor est odio maius scelus. Vndique lecti 315 Te cupiunt proceres totoque oriente iuuenta Ad thalami certamen adest; ex omnibus unum Elige, Myrrha, uirum, dum ne sit in omnibus unus. Illa quidem sentit foedoque repugnat amori Et secum: “Quo mente feror? quid molior?” inquit. 320 “Di, precor, et pietas sacrataque iura parentum, Hoc prohibete nefa scelerique resistite nostro,

128 Desde que produza também a mirra: uma árvore nova233 não valia tanto. 310 O próprio Cupido nega que suas setas tenham te prejudicado, Ó Mirra, e ele isenta suas tochas de tal crime. Uma única irmã, dentre as três, com bordão estígio, E com iradas serpentes,234 infectou-te:235 é crime odiar o pai; Crime maior que o ódio é este amor. De todas as partes, seletos236 315 Nobres te desejam, e a juventude de todo o oriente Apresenta-se à disputa por teu leito nupcial. Escolhe, Mirra, Dentre todos, um só homem, conquanto não seja ele, entre todos, um certo homem. Ela, de fato, sente e repele237 o vergonhoso amor E diz para si: “Para onde238 por tal intenção sou levada? O que tramo? 320 Ó deuses, ó amor filial,239 ó sagrados direitos dos pais, imploro: Proibi este sacrilégio e refreai o nosso crime,

233 Tanti noua non fuit arbor (X 310): entenda-se: nem o lucro gerado pela produção de mirra compensa o crime que gerou sua árvore. Apresentamos algumas traduções da passagem: “L´arbre nouveau ne valait pas le prix dont il fut payé” é a tradução de G. Lafaye (1999); Hill (1999) traduz: “the new tree was not worth so much”; Miller (1984): “a new tree was not worth so great a price.” É interessante notar ainda o recurso da antecipatio presente nesse verso: o poeta menciona a árvore na qual a personagem do mito se transformará mais adiante (X 490-8). 234 Echidnis (X 313): a Equidina, mãe de Cérbero, era um monstro com tronco de mulher e, em lugar dos membros inferiores, cauda de serpente (P. Grimal, 2000, verbete “Equidina”). Pode ser ainda, como substantivo comum, sinônimo de víbora (OLD, verbete “echidina”, sentido único), o que condiz com nossa opção para traduzir este trecho. 235 I. e., uma das Fúrias, cf. Met. VI 428-32; e ainda, X 349. Quanto a uma provável alusão à caracterização das Fúrias em Virgílio (Aen. IV 469 e seguintes; VI 324 e seguintes; VII 324 e seguintes), cf. Hill (1999, p. 177). 236 Lectus (X 315): como adjetivo, o verbete pode significar, segundo o OLD, algo escolhido com cuidado (sentido 1), uma excelente escolha (sentido 2); já como substantivo, pode significar leito, principalmente o leito nupcial, localizado no atrium (sentidos 1 e 2). Ambos os sentidos relacionam-se ao contexto da história que Orfeu narra, e o léxico expressa uma ambiguidade em Latim que o Português não reproduz. 237 Sentit foedoque repugnat amori (X 319): sobre o oxímoro presente nesse verso como típico de poesia elegíaca romana, cf. discussão no Capítulo 3 deste estudo. 238 Quo (X 320): significando tal verbete tanto “para onde” quanto “por qual”, observamos que Hill opta por “where”, assim como G. Lafaye (où). Já F. J. Miller verte tal palavra para “to what”. 239 Pietas (X 321): trata-se de um termo de difícil tradução para línguas modernas. A noção envolve respeito aos deuses familiares e aos próprios membros da família, sobretudo pais, filhos, cônjuges (sentidos 1 a 3 no OLD), bem como à pátria (sentido 4 no OLD). Possíveis traduções para o português: “comprimento do dever”, “amor para com os pais” (cf. Saraiva, verbete “pietas”). Sentidos como “amor familiar”, “amor filial”, também podem ser compreendidos no uso de pietas nessa passagem (X 321, 323, 333), cf. capítulo 3 de nosso estudo.

129 Si tamen hoc scelus est. Sed enim damnare negatur. Hanc Venerem pietas; coeunt animalia nullo Cetera delicto, nec habetur turpe iuuencae 325 Ferre patrem tergo, fit equo sua filia coniunx, Quasque creauit init pecudes caper, ipsaque, cuius Semine concepta est, ex illo concipit ales. Felices, quibus ista licent! Humana malignas Cura dedit leges et quod natura remittit 330 Inuida iura negant. Gentes tamen esse feruntur In quibus et nato genetrix et nata parenti Iungitur et pietas geminato crescit amore. Me miseram, quod non nasci mihi contigit illic Fortunaque loci laedor! Quid in ista reuoluor? 335 Spes interdictae discedite; dignus amari Ille, sed ut pater, est. Ergo si filia magni Non essem Cinyrae, Cinyrae concumbere possem; Nunc quia iam meus est, non est meus ipsaque damno

130 Se, porém, isto for um crime! Pois, em verdade, o amor filial Recusa-se a condenar este amor.240 Os outros animais praticam seu coito sem incorrer em nenhum delito, e não se considera torpe à juvenca ter 325 o pai montado às suas costas; ao cavalo, sua própria filha torna-se esposa, E o bode penetra as cabritas que engendrou, E, do sêmen que foi concebida, a mesma ave241 concebe. Felizes a quem isto é permitido! O escrúpulo humano242 Consagrou leis pérfidas, e, aquilo que a natureza permite, 330 Negam as invejosas legislações. Diz-se, porém, que existem outros povos Em que não apenas a mãe se une243 ao filho, mas também a filha ao pai, De modo que, duplicando-se o amor, cresça o respeito filial. Oh! Pobre de mim, que não nasci lá E sou prejudicada pela sorte deste lugar244! Por que ficar me revolvendo nestes pensamentos? 335 Afastai-vos, ó esperanças proibidas! De ser amado, Mas como pai, ele é digno. Portanto, se eu não fosse filha Do grande Ciniras, com Ciniras eu me poderia deitar;245 Agora, porque ele já é meu, não é meu;246 e é o próprio parentesco

240 Venerem (X 325): observa-se que aqui o nome próprio Venus é empregado metonimicamente. Seria uma antecipatio da próxima história? Questionamento das palavras de Cupido acima mencionadas por Orfeu? Cf. capítulos 1 e 2 deste estudo sobre as possibilidades desses efeitos da menção do nome da deusa nessa passagem ovidiana. 241 Ales: além de “ave” (cf. OLD, verbete “ales”, sentido 1), o termo pode significar “ave de agouro” (cf. OLD, sentido 1b), ou, por transferência, o próprio agouro (Catulo 61 20; Horácio, Epod. 10 1). Ao empregar tal palavra (e não, por exemplo, auis, termo mais neutro para “ave”) num contexto nefasto, pode-se pensar que Ovídio, por meio do narrador Orfeu, alude também ao sentido mais negativo daquela, i.e., às consequências negativas já implicadas na tentativa de Mirra justificar como “natural” seu amor condenado. 242 Humana.../ cura (X 329-330): seguimos aqui a solução de Lafaye (“les scrupules de l ´hômme”). 243 Iungo: o verbete tem, de acordo com o OLD, o sentido de atrelar, unir fisicamente, atar, ligar (sentido 1) e ainda, unir sexualmente (sentido 3). 244 Bocage traduz loci (X 335) por “desta pátria”. 245 Non essem Cynirae, Cinyrae cocumbere (X 338): ao traduzir, procuramos manter a proximidade dos termos repetidos no texto original e a forma quiástica do trecho, recursos não raros nas passagens ovidianas contempladas neste estudo. 246 Quia iam meus est, non est meus (X 339): na tradução, procuramos manter o oxímoro e, novamente, o quiasmo encontrados no original latino.

131 Est mihi proximitas; aliena potentior essem. 340 Ire libet procul hinc patriaeque relinquere fines, Dum scelus effugiam; retinet malus ardor amantem, Vt praesens spectem Cinyram tangamque loquarque Osculaque admoueam, si nil conceditur ultra. Vltra autem sperare aliquid potes, impia uirgo? 345 Et quot confundas et iura et nomina, sentis? Tune eris et matris paelex et adultera patris? Tune soror nati genetrixque uocabere fratris? Nec metues atro crinitas angue sorores, Quas facibus saeuis oculos atque ora petentes 350 Noxia corda uident? At tu, dum corpore non es Passa nefas, animo ne concipe, neue potentis Concubitu uetito naturae pollue foedus. Velle puta, res ipsa uetat; pius ille memorque Moris. Et o! uellem similis furor esset in illo” 355

132 Que é meu dano; estrangeira, eu poderia mais. 340 Tenho vontade de ir para longe daqui, e abandonar as fronteiras da pátria, Contanto que eu escapasse do crime; um ardor maligno retém a quem ama, Na esperança de que, ficando, eu possa ver Ciniras, e tocá-lo, e falar-lhe, E beijá-lo, se nada mais é permitido. Contudo, podes esperar alguma coisa, além disso, jovem247 ímpia? 345 E sentes quanto confundes não só as leis como também248 os nomes? E tu serás da mãe a rival e a amante249 do pai? E tu250 serás chamada a irmã de teu filho e a mãe de teu irmão? Nem temerás as irmãs com cabelos de negras serpentes251 Que, espreitando com tochas cruéis, veem os olhos, as faces, 350 os corações atormentados? E tu, enquanto ainda não consentistes com teu corpo o sacrilégio, com o espírito não o concebas e não polua A lei da poderosa natureza252 com tal relação proibida. Que dirá querer isso: os próprios fatos o proíbem! Ele é pio253 e se lembra de cumprir Os bons costumes. E, oh!, como eu queria que houvesse nele um furor254 semelhante! 355

247 Virgo (X 345): constam, no OLD, os significados seguintes para tal verbete: “1. Uma garota em idade apropriada ao casamento 2. Uma mulher sexualmente intacta; uma virgem” –“1. a girl of marrigeable age 2. a woman that is sexually intact; a virgin”. 248 Não só... como também (X 346): tentamos reproduzir na tradução a repetição da aditiva que ocorre no verso latino (et...et). 249 No verso latino, ocorre um quiasmo que tentamos reproduzir mantendo próximos os adjetivos: “matris paelex et adultera patris” (X 347). 250 A anáfora Tune.../ Tune (X 347-8) é no original bastante enfática, reforçando a evocação de Mirra que é feita nas perguntas. 251 Atro crinitas angue sorores (X 349): conferir nota ao verso 314. 252 Neue potentis... naturae (X 352-3): note-se no texto latino um hipérbato ou trangressio (trangressio est quae uerborum pertubat ordinem peruersione aut trasiectione – Retórica a Herênio, IV 32-44), com separação entre o substantivo e o adjetivo. 253 Pius (X 354): trata-se de um adjetivo que pode significar piedoso, no sentido religioso ou profano, que cumpre os seus deveres para com os pais e/ou para com os deuses e ainda pode significar afeiçoado aos pais, dedicado à família. Ambas as conotações acentuam a ênfase dada ao caráter de Ciniras que, segundo a descrição de Ovídio, é um rei apegado aos costumes. Ver nota ao verso 321. 254 Furor (X 355): esse adjetivo pode significar “furor”, “raiva”, “cólera” e ainda “amor violento”, “paixão louca”. Note que os sentidos possíveis de tal verbete possibilitam precisar o desejo de Mirra de que o pai cometa uma loucura, pois só tomado de um furor é que Ciniras poderia entregar-se à tal relação incestuosa.

133 Dixerat; at Cinyras, quem copia digna procorum, Quid faciat, dubitare facit, scitatur ab ipsa, Nonimibus dictis, cuius uelit esse mariti. Illa silet primo; patriisque in uultibus haerens Aestuat et tepido suffundit lumina rore. 360 Virginei Cinyras haec credens esse timoris, Flere uetat siccatque genas atque oscula iungit. Myrrha datis nimium gaudet; consultaque qualem Optet habere uirum: “Similem tibi” dixit; at ille Non intellectam uocem conlaudat et: “Esto 365 Tam pia semper” ait. Pietatis nomine dicto Demisit uultus sceleris sibi conscia uirgo. Noctis erat medium curasque et corpora somnus Soluerat; at uirgo Cinyreia peruigil igni Carpitur indomito furiosaque uota retractat 370 Et modo desperat, modo uult temptare; pudetque Et cupit et, quid agat, non inuenit; utque securi Saucia trabs ingens, ubi plaga nouissima restat, Quo cadat, in dubio est omnique a parte timetur; Sic animus uario labefactus uulnere nutat 375

134 Ela assim falou. Mas Ciniras, a quem a digna multidão de pretendentes Faz duvidar255 acerca de como preceder, consulta a própria Mirra, Mencionando alguns nomes, quanto a qual deles ela queria ter como marido. Ela silencia primeiro, e, fitando a face do pai, Inflama-se e umedece os olhos com uma tépida lágrima. 360 Ciniras, supondo tratar-se de um tremor virginal, Proíbe o choro, seca-lhe os olhos e dá-lhe beijos. Mirra se regozija em demasia com o que lhe é dado e, indagada Sobre que tipo de marido deseja ter, disse: “Alguém como você”; e ele, Não entendendo o que ouve, a elogia: “Sê 365 sempre tão virtuosa256”. Dita a palavra “virtude”, A virgem, consciente de seu erro257, baixa o rosto. Era meia-noite, e o sono acalmara258 as angústias e os corpos Mas a jovem filha de Ciniras, em vigília, é consumida Pela chama indômita e retoma suas insensatas súplicas. 370 E, ora se desespera, ora quer tentar; e envergonha-se E deseja e não imagina como agiria; tal qual uma árvore259 Imensa ferida pelo machado, ao restar apenas o derradeiro golpe, Hesita quanto ao lado para o qual deva cair,260 e é temida por todas as partes, Assim, a mente enfraquecida, abalada por golpes vários, vacila261 375

255 A tradução de Hill vê neste trecho uma hipálage: “... the abundance of worthy suitors...” (Hill, 1999, p. 59) 256 Pia (X 366): qualidade de quem tem pietas; cf. nota ao verso 354. 257 Scelus (X 367): no OLD, a palavra é definida por infortúnio, resultado da vontade dos deuses; maldição, crime, vilania (sentidos 1 e 2). 258 Curasque et corpora… soluerat (X 368-9): o verbo tem o sentido concreto de “dissolver”, mas no contexto procuramos encontrar um sinônimo figurado que alcançasse os dois substantivos aos quais ele se refere. 259 Deste verso em diante, muitos verbetes relacionados a árvores são escolhidos pelo poeta para compor o mito. Trata-se de uma antecipatio, pois se utilizam palavras que reforçam a imagem da transformação de Mirra, que ocorrerá mais adiante (X 490-8). 260 Na tradução dos versos 372-4, procuramos, ao manter uma disposição menos direta, recuperar um pouco do hipérbato que ocorre no original latino. 261 Interessante é observar como o símile da árvore aqui, ao mesmo tempo que formula uma antecipatio da metamorfose de Mirra (conforme comentamos acima), serve ainda para expressar metaforicamente a hesitação que caracteriza os amantes na poesia elegíaca, cf. discussão no

135 Huc leuis atque illuc momentaque sumit ultroque, Nec modus et requies, nisi mors, reperitur amoris. Mors placet. Erigitur laqueoque innectere fauces Destinat; et zona summo de poste reuincta: “Care, uale, Cinyra, causamque intellege mortis” 380 Dixit et aptabat pallenti uincula collo. Murmura uerborum fidas nutricis ad aures Peruenisse ferunt, limen seruantis alumnae. Surgit anus reseratque fores; mortisque paratae Instrumenta uidens, spatio conclamat eodem 385 Seque ferit scinditque sinus ereptaque collo Vincula dilaniat; tum denique flere uacauit, Tum dare complexus laqueique requirere causam. Muta silet uirgo terramque inmota tuetur Et deprensa dolet tardae conamina mortis. 390 Instat anus canosque suos et inania nudans Vbera, per cunas alimentaque prima precatur, Vt sibi committat quicquid dolet. Illa rogantem. Auersata gemit; certa est exquirere nutrix Nec solam spondere fidem: “Dic” inquit “opemque 395 Me sine ferre tibi; non est mea pigra senectus.

capítulos 1 e 2. Para nuto (X 375), seguimos a tradução feita por Bocage: “Assim, de impulsos vários combatido/ Vacila o coração da acesa virgem.”

136 Ora levemente para cá, ora um pouco para lá, movimenta-se para ambos os lados: Nem medida, nem repouso – exceto a morte – encontra-se para o amor. A morte apraz. Ergue-se e, com um laço, decide atar a garganta; E, amarrando a cinta262 na parte mais alta do batente, disse: “Adeus, caro Ciniras, e compreende que tu és a causa da minha morte”, 380 E começa a ajustar o laço no pescoço pálido. Diz-se que tais murmúrios atingiram os ouvidos leais Da ama, que guardava o batente da porta de sua menina263. A velha ergue-se, abre a porta e, vendo os instrumentos Da morte preparada, grita e, ao mesmo tempo, 385 Fere-se e rompe a prega do vestido e dilacera o laço Arrancado do pescoço; então, por fim, se deixou chorar, Então, passa a abraçar e exigir a causa do laço. Muda, a jovem ainda silencia e, imóvel, olha o chão, E lamenta as flagradas tentativas de sua morte adiada.264 390 A velha insiste, desnudando seus cabelos brancos e seu seio Inane e, invocando o berço e o primeiro alimento, Suplica a ela que lhe confie qualquer que seja a sua dor. A outra, afastada, geme à suplicante; a ama está determinada a interrogar E a não apenas prometer lealdade: “Diga” diz ela 395 “Permita que eu a ajude;265 minha velhice não é inerte.

262 Zona (X 379): “uma cinta (sendo usada por mulheres) b (sendo usada por garotas solteiras, portanto, sua remoção indica a perda da virgindade)” – “a girdle (as worn by a woman) b (as worn by unmarried girls, hence, its removal signifying loss of virginity)” (OLD, verbete “zona”, sentido 2). 263 Alumna (X 383): “uma criança do sexo feminino que é amamentada, filha ou criança („adotiva‟)” – “a nursling of the female sex, (foster-) daughter or child.” (OLD, verbete “alumna”, sentido 1). 264 Tardae conamina mortis (X 390): as traduções de Lafaye e Hill interpretam este trecho como uma hipálage – “...elle déplore d‟avoir laissé surprendre lês longs préparatifs qu‟elle a faits pour mourir”. Estranhamos essa tradução, pois a tentativa de morte impetuosa teve rápido preparo. Levamos em conta as seguintes definições do verbete “tardus”, no OLD: “1. Lento no movimento, movendo-se lentamente; (...) 4. Ocorrendo após o tempo esperado ou apropriado, atrasado, tardio (...)” – “1. slow in movement, moving slowly; (…) 4. ocurring after the expecxted or proper time, late, tardy (…)”.

137 Seu furor est, habeo quae carmine sanet et herbis; Siue aliquis nocuit, magico lustrabere ritu; Ira deum siue est, sacris placabilis ira. Quid rear ulterius? Certe fortuna domusque 400 Sospes et in cursu est; uiuit genetrixque paterque.” Myrrha, patre audito, suspiria duxit ab imo Pectore; nec nutrix etiamnum concipit ullum Mente nefas aliquemque tamen praesentit amorem Propositique tenax, quodcumque est, orat, ut ipsi 405 Indicet; et gremio lacrimantem tollit anili Atque ita complectens infirmis membra lacertis: “Sensimus,” inquit “amas; et in hoc mea (pone timorem) Sedulitas erit apta tibi; nec sentiet umquam Hoc pater.” Exsiluit gremio furibunda torumque 410 Ore premens: “Discede, precor, miseroque pudori Parce” ait. Instanti: “Discede, aut desine” dixit “Quaerere quid doleam; scelus est quod scire laboras.” Horret anus tremulasque manus annisque metuque Tendit et ante pedes supplex procumbit alumnae 415 Et modo blanditur, modo, si non conscia fiat, Terret et indicium laquei coeptaeque minatur Mortis et officium commisso spondet amori. Extulit illa caput lacrimisque impleuit obortis Pectora nutricis conataque saepe fateri 420 Saepe tenet uocem pudibundaque uestibus ora Texit et: “O” dixit “felicem coniuge matrem!”

265 “Parle, dit-elle, et permets-moi de venir à ton aide” (Georges Lafaye); “Tell me” she said “and let me bring you help…” (D. E. Hill); “Consente que eu te preste auxílio” (Bocage).

138 Se é furor, tenho como curar com encantamentos e ervas;266 Ou, se alguém lhe fez mal, serás purificada em um rito mágico; Ou, se é a ira dos deuses, a ira é aplacável por sacrifícios. O que mais posso pensar? Certamente, sua fortuna e sua 400 Casa são ditosas e prósperas; e sua mãe e seu pai vivem.” Mirra, tendo ouvido “pai” suspirou do fundo do peito; A ama até então, não concebe nenhum sacrilégio em sua mente, Mesmo que tenha pressentido algum amor. E, firme no propósito, implora que ela revele seja lá o que for; 405 E trouxe a moça chorosa para junto do seio ancião E assim, segurando-a em seus braços fracos, disse: “Estou267 sentindo, estás amando; e quanto a isso (deponha o medo) Meu zelo estará a tua disposição; nem teu pai Um dia saberá”. A moça arrancou-se do seio enfurecida e, apertando 410 O rosto contra o leito: “Afasta-te, eu suplico, e poupa a ti da Minha mísera vergonha.” Como a outra insistia, Mirra disse: “Afasta-te, Ou para de buscar o que me dói; é um crime isso que te empenhas em saber”. A velha horroriza-se e estende as mãos trêmulas dos anos E de medo, e diante dos pés da sua menina, cai em súplicas, 415 E ora afaga, ora, se não for informada de tudo, Aterroriza a moça; e ameaça denunciar a morte intentada com o laço; E garante obediência se ela lhe falar de seu amor. A moça ergueu a cabeça e banhou com lágrimas profusas O peito da ama e tentou várias vezes confessar; 420 Várias vezes conteve a voz e escondeu nas roupas as faces envergonhadas, E: “Ó, feliz de minha mãe com seu marido!”

266 Note-se a ironia da passagem: sem saber a causa da aflição da moça, a ama evoca ervas e magias, um topos (bem como a afirmação da inutilidade do recurso frente ao amor) encontrável na poesia elegia erótica romana, cf. discussão no capítulo 2. 267 Sensimus (X 408): o sujeito do verbo é a ama, mas nesse caso o poeta optou por utilizar a primeira pessoa do plural, o chamado plural poético.

139 Hactenus et gemuit. Gelidos nutricis in artus Ossaque, sensit enim, penetrat tremor albaque toto Vertice canities rigidis stetit hirta capillis 425 Multaque, ut excuteret diros, si posset, amores, Addidit; at uirgo scit se non falsa moneri, Certa mori tamen est, si non potiatur amore. “Viue” ait haec “potiere tuo”; et, non ausa “parente” Dicere, conticuit promissaque numine firmat. 430 Festa piae Cereris celebrabant annua matres Illa quibus niuea uelatae corpora ueste Primitias frugum dant spicea serta suarum Perque nouem noctes uenerem tactusque uiriles In uetitis numerant; turba Cenchreis in illa 435 Regis adest coniunx arcanaque sacra frequentat. Ergo legitima uacuus dum coniuge lectus, Nacta grauem uino Cinyram male sedula nutrix, Nomine mentito, ueros exponit amores Et faciem laudat; quaesitis uirginis annis: 440 “Par” ait “est Myrrhae.” Quam postquam adducer iussa est Vtque domum rediit: “Gaude, mea” dixit “alumna; Vicimus.” Infelix non toto pectore sentit Laetitiam uirgo praesagaque pectora maerent, Sed tamen et gaudet; tanta est discordia mentis. 445

140 Disse tão somente, e gemeu. Nas articulações268 gélidas e nos ossos da ama (pois ela percebeu) penetra um tremor, E a brancura pálida dos cabelos ficou hirta na cabeça rija, 425 E acrescentou muitas palavras para afastar, se pudesse, O amor sinistro; mas a virgem sabe que não são falsos os avisos. No entanto, está decidida a morrer, caso não se apodere do seu amor. “Vive!”, a ama disse, “Apodera-te do teu...” e não ousando “pai”, Dizer, emudeceu e firma a promessa em nome dos deuses. 430 As mães devotas celebravam as famosas festas anuais consagradas a Ceres Nas quais, tendo o corpo coberto de vestes brancas, Dão, como primícias dos grãos, espigas embrulhadas E, por nove noites, os toques de amor de seus esposos269 São listados entre as proibições. Em meio à multidão está presente Cencreide 435 A esposa do rei, e ela participa dos sacros arcanos. Logo, enquanto a legítima esposa deixa o leito vazio, A ama zelosa, encontrando o grave Ciniras embriagado de vinho, Mentiu o nome, mas expôs os verdadeiros amores E elogiou a aparência da virgem; questionada sobre a idade, 440 Ela diz: “É igual a Mirra”. Depois, ordenada a trazê-la consigo, a ama voltou ao aposento e disse: “Alegra-te, minha menina, nós vencemos!” A jovem infeliz não sentiu em todo o peito a alegria; mas o coração pressago270 aflige-se, e, no entanto, também se alegra; tamanho é o conflito em sua mente.271 445

268 Tanto artus quanto os (X 423 e 421) podem significar, respectivamente, “ramos de uma árvore” e “a parte interior do corpo” (tratando-se de árvore ou fruto). Vertis (X 425) também pode denotar “cume” (de uma árvore). Pode-se pensar que a antecipatio da metamorfose que Mirra sofrerá no final da fábula (X 490-8) não está de todo apagada. Tanto em Safo quanto na poesia elegíaca, um tremor que penetra os membros é usado para descrever os sintomas do amor, cf. discussão no Capítulo 2. 269 Venerem tactusque uiriles (X 434): nossa tradução não mantém a hendíade do original, lit. “(os prazeres de) Vênus e os toques viris”. Lafaye a mantém e também a metonímia: “les plaisirs de Vénus et le contact de leurs époux”. 270 Aqui, nos valemos da tradução de Bocage: “... o coração pressago/ Não sei que lhe anuncia.”

141 Tempus erat quo cuncta silente interque Triones Flexerat obliquo plaustrum temone Bootes; Ad facinus uenit illa suum. Fugit aurea caelo Luna, tegunt nigrae latitantia sidera nubes; Nox caret igne suo; primus tegis, Icare, uultus 450 Erigoneque pio sacrata parentis amore. Ter pedis offensi signo est reuocata, ter omen Funereus bubo letali carmine fecit; It tamen et tenebrae minuunt noxque atra pudorem; Nutricisque manum laeua tenet, altera motu 455 Caecum iter explorat.Thalami iam limina tangit

271 Discordia mentis (X 445): essa expressão, usada também em outras passagens das Metamorfoses (IX 630, por exemplo) para indicar a flutuação do espírito, lembra ainda a atitude elegíaca diante do amor, cf. discussão nos capítulos 2 e 3.

142

Era uma hora em que todas as coisas silenciavam, e, entre as Ursas, Bootes,272 tendo dobrado o timão, movera sua carruagem.273 Ela veio ao seu crime. A lua áurea foge do céu, Nuvens escuras escondem as latentes estrelas,274 A noite perdeu sua chama;275 és o primeiro que escondes a face, ó Ícaro, 450 E Erígone é consagrada pelo pio amor pelo pai.276 Três vezes ela, detendo os pés, é incitada a recuar pelo presságio. Três vezes a coruja funesta entoou seu canto de morte. Ela vai, no entanto, e as trevas e a noite negra diminuem o pudor. Sua mão esquerda segura a mão da ama; a outra tateia, 455 Num desvario, o caminho escuro. Agora toca a entrada do quarto nupcial

272 A descrição astrológica aqui a indicação de que passava da meia-noite (cf. Lafaye, 1999, p. 137, n. 1) e detalhes na nota abaixo. Triones (X 446), que aqui traduzimos como “as Ursas”, refere- se às constelações da Ursa Maior e Menor e às regiões próximas a elas (OLD, verbete “triones”, sentido b) e Bootes (Bootes, X 447) também designa uma constelação. O OLD indica (verbete “Bootes”, sentido único) que se trata do mesmo que Arctophylax, “o guarda do Norte, a constelação Boetes” – “the Bear-keeper, the constellation Bootes” (OLD, verbete “Arctophylax”, sentido único). 273 O termo temo (X 447) pode indicar o timão de um carro, ou carruagem, ou ainda as próprias constelações da Ursa Maior (também chamadas de Carro) (Saraiva, verbete temo). O OLD apresenta a seguinte definição: “Uma viga ou parelha de bois de uma carroça, biga, etc.; também de um arado. b (ref. à constelação de Charles Wain)” – “The pole or yoke-beam of a cart, chariot, etc.; also of a plough. b (in refs. to the constellation Charles‟s Wain)” (verbete “temo”, sentido único). Cf. ainda Hill (1999, p. 178): a nota do estudioso aos versos 446-7 aponta o circunlóquio que Ovídio realiza para dizer meia-noite e explica que se trata de referências às constelações que estão na parte mais alta do céu a essa hora, do ponto de vista dos que observam do hemisfério norte e a partir desse momento passam da direção ascendente para a descendente. Os tradutores consultados vertem tal passagem assim: “parmi les Trions le Bouvier avait incline son chariot sur la pente où obliquait le timon” (G. Lafaye); “... and between the Bears Boötes had turned his wain with down- pointing pole.”; “the moon had gone down” (Ted Hughes); “Na imensa esfera o gélido Bootes / Entre os frios Triões volvia o carro” (Bocage); “... and Bootes had turned his Wain with its slanting yoke between the Oxen” (D. E. Hill). A edição da Loeb traz uma nota que esclarece o verso, no mesmo sentido: “À meia-noite, essas constelações atingem seus pontos mais altos no céu, e logo depois começam seus cursos descendentes.” – “At midnight these constellations attain their highest point in the heavens, and thereafter begin their downward course”. 274 Outras traduções: “black clouds were covering the hidden stars” (D. E. Hill); “les astres se cachent derriere de noir nuages” (G. Lafaye). 275 Ignis (X 450): o contexto permite uma leitura polissêmica do vocábulo que em latim também tem o sentido de chama da paixão, do amor. Cf. referências ao termo na poesia elegíaca indicadas no capítulo 3. 276 Ícaro é um personagem amado pela filha Erígone. Ambos foram transformados em estrelas segundo o mito. Cf. Met. VI, Lafaye, 1999, p. 137, n. 3.

143 Iamque fores aperit, iam ducitur intus; at illi Poplite succiduo genua intremuere fugitque Et color et sanguis animusque relinquit euntem. Quoque suo propior sceleri est, magis horret et ausi 460 Paenitet et uellet non cognita posse reuerti. Cunctantem longaeua manu deducit et alto Admotam lecto cum traderet: “Accipe” dixit; “Ista tua est, Cinyra;” deuotaque corpora iunxit Accipit obsceno genitor sua uiscera lecto 465 Virgineosque metus leuat hortaturque timentem. Forsitan aetatis quoque nomine “filia” dixit; Dixit et illa “pater”, sceleri ne nomina desint. Plena patris thalamis excedit et impia diro Semina fert utero conceptaque crimina portat. 470 Postera nox facinus geminat, nec finis in illa est; Cum tandem Cinyras, auidus cognoscere amantem Post tot concubitus, illato lumine uidit Et scelus et natam; uerbisque dolore retentis, Pendenti nitidum uagina deripit ensem. 475 Myrrha fugit tenebrisque et caecae munere noctis Intercepta neci est latosque uagata per agros Palmiferos Arabas Panchaeaque rura reliquit Perque nouem errauit redeuntis cornua lunae, Cum tandem terra requieuit fessa Sabaea, 480

144

E agora a porta se abre, agora mesmo277 ela é levada para dentro. Os joelhos começam a tremer e, com a perna vacilante, Ela vai, e lhe fogem a cor, o sangue e o espírito. Quanto mais perto do seu crime, mais ela se arrepia e arrepende-se 460 Da ousadia e queria, sem ser reconhecida, poder voltar. A velha mulher conduziu pela mão a moça hesitante E, fazendo-a aproximar-se, entrega-a ao alto leito, dizendo: “Aceite, essa é tua,278 Ciniras”. E uniu os corpos amaldiçoados. O pai aceita a filha no seu leito indecente, 465 Alivia os medos virginais e encoraja a moça temerosa. Talvez, em nome da idade, disse: “filha” E ela também tenha dito disse: “pai”, para que nem os nomes faltassem ao crime. Ela sai satisfeita do leito do pai e carrega as ímpias sementes No útero funesto e traz os crimes consumados. 470 Na noite seguinte, duplica-se o feito, que não se limita àquela noite. Finalmente, Ciniras, ávido de conhecer a amante Depois de tantas relações, iluminando-a, viu Seu crime e sua filha; e tendo retido, por dor, as palavras, Arranca a espada reluzente que pendia da bainha. 475 Mirra foge e, pelas trevas, e por obséquio da cega noite Impede o homicídio, errando que estava através dos vastos campos. E ela abandona os palmíferos campos da Arábia e da Pancaia. E, por nove luas crescentes,279 ela vagou Tendo finalmente, exausta, repousado na região de Sabas,280 480

277 Iam... iam... iam: enfática repetição expressa a agilidade das ações consecutivas. 278 Ista tua est (X 464): mais uma vez, a ama opta pelo possessivo para se referir à Mirra, recurso usado várias vezes nessa narrativa, causando ambiguidade significativa: “tua amante” ou “tua mulher”, mas sem perder de vista que, assim usado, sem complemento (substantivamente, e não adjetivamente), o possessivo pode indicar parentesco (“os seus”, ou seja, seus filhos ou parentes). 279 Nouem... cornua lunae (X 479): a lua crescente, que possui um formato semelhante a um chifre (cf. OLD, verbete “cornu”, 7b); repetindo-se uma mesma fase da lua nove vezes, contam-se nove meses, ou seja, o tempo da gestação da jovem.

145 Vixque uteri portabat onus. Tum nescia uoti Atque inter mortisque metus et taedia uitae Est tales complexa preces: “O siqua patetis Numina confessis, merui nec triste recuso Supplicium; sed ne uiolem uiuosque superstes 485 Mortuaque extinctos, ambobus pellite regnis Mutataeque mihi uitamque necemque negate.” Numen confessis aliquod patet; ultima certe Vota suos habuere deos; nam crura loquentis Terra superuenit ruptosque obliqua per ungues 490 Porrigitur radix, longi firmamina trunci; Ossaque robur agunt mediaque manente medulla Sanguis it in sucos, in magnos bracchia ramos, In paruos digiti, duratur cortice pellis. Iamque grauem crescens uterum perstrinxerat arbor 495 Pectoraque obruerat collumque operire parabat; Non tulit illa moram uenientique obuia ligno Subsedit mersitque suos in cortice uultus. Quae quamquam amisit ueteres cum corpore sensus, Flet tamen et tepidae manant ex arbore guttae. 500 Est honor et lacrimis, stillataque robore myrrha Nomen erile tenet nulloque tacebitur aeuo. At male conceptus sub robore creuerat infans Quaerebatque uiam qua se genetrice relicta

280 Sabas (Sabae, X 480) região da Arábia, cf. OLD verbete “Sabaeus” (referindo-se ao povo da região) e Dicionário Latino-Português, F. R. S. Saraiva, verbete “Sabae”. Panchaia segundo o OLD seria: “uma ilha imaginária, localizada por Euémero no Oceano Índico.” – “an imaginary island, set by Euhemerus in the Indian Ocean.” (OLD, verbete “Panchaia”, sentido único), uma definição diferente da apresentada em Saraiva (segundo o qual se trata de região da Arábia).

146 Levava o fardo no útero com dificuldade. Então, não sabe o que suplicar E, no entanto, está entre o medo da morte e os desgostos da vida, Adota tais preces: “Ó divindades, se alguma está Ouvindo as minhas confissões, eu mereci, não nego, o triste Suplício. Mas, para que eu, sobrevivendo, não viole os vivos, 485 Nem que, morrendo, eu viole os extintos, expulsai-me, de ambos os reinos, E, transformando-me, negai-me a vida e a morte”. Alguma divindade ouve os que confessam;281 certamente, as suas últimas Preces foram ouvidas; pois à terra se sobrepõe Às pernas da que as enunciara,282 e, através das unhas rompidas, 490 Prolonga-se raiz oblíqua, o sustentáculo do tronco; Os ossos fazem a madeira, e o sangue permanente da medula283 central Corre em seivas, os braços estendem-se em grandes ramos, Em pequenos ramos, os dedos; a pele é endurecida em cortiça. E já a árvore que crescia apertara o útero prenhe, 495 Oprimira o peito e fez-se pronta para cobrir o pescoço. Ela não suporta a demora e, vindo ao encontro da madeira, Debruçou-se e mergulhou seu rosto na cortiça.284 Embora ela tivesse perdido, junto com o corpo, os sentidos de outrora, Ela ainda chora, e tais lágrimas tépidas gotejam da árvore. 500 Tais lágrimas são preciosas: a mirra285 que destila com a madeira Tem o nome daquela que a legou, o qual jamais se deixará de evocar. Mas, mal a criança concebida crescera na madeira, Buscou o caminho para se arrancar da mãe abandonada.

281 Adotamos aqui a interpretação compartilhada por Lafaye e Hill. 282 Crus (X 490): além de “perna”, essa palavra pode significar “parte inferior do tronco de uma árvore.” 283 Medulla (X 492): denota a medula de um osso, de uma árvore ou planta. 284 Cf. Remedia Amoris, “Si cito sensisses quantum peccare,/ Non tegeres uultus cortice, Myrrha, tuos”, Rem. 99-100. 285 Depois da transformação, esta é a primeira vez que “mirra” aparece como um substantivo comum, pois, tendo sido consumada a metamorfose, este passa a ser o nome da árvore e não mais da princesa, filha de Ciniras.

147 Exsereret; media grauidus tumet arbore uenter, 505 Tendit onus matrem; neque habent sua uerba dolores, Nec Lucina potest parientis uoce uocari. Nitenti tamen est similis curuataque crebros Dat gemitus arbor lacrimisque cadentibus umet. Constitit ad ramos mitis Lucina dolentis 510 Admouitque manus et uerba puerpera dixit. Arbor agit rimas et fissa cortice uiuum Reddit onus uagitque puer; quem mollibus herbis Naides impositum lacrimis unxere parentis. Laudaret faciem Liuor quoque; qualia namque 515 Corpora nudorum tabula pinguntur Amorum, Talis erat, sed, ne faciat discrimina cultus, Aut huic adde leuis, aut illi deme pharetras.

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O ventre grávido no meio da árvore está inchado, 505 O fardo inclina a mãe, e suas dores não encontram palavras, Nem Lucina286 pode ser chamada com a voz da parturiente. A árvore, porém, parece fazer esforços: além de curvada, Dá repetidos gemidos e está úmida com as lágrimas que caem. A doce Lucina parou junto aos ramos sôfregos 510 E, aproximando sua mão, disse as palavras puerperais. A árvore entreabre-se e, pela fenda na cortiça, expele, vivo, O fardo, e grita um menino, que, em ervas tenras Foi colocado pelas Náiades287 e banhado com as lágrimas da mãe. Até mesmo a Inveja288 louva sua aparência, pois, de fato, tal qual 515 Os corpos nus dos Amores289 em uma pintura Ele era – mas, para que suas vestes não os distingam, Ora dê a aljava290 a ele, ora deles a arranque.

286 Deusa que presidia os partos, associada ora a Juno, ora a Diana. 287 Ninfas dos rios e das fontes. 288 O substantivo Liuor (X 515), que tem “inveja” como um de seus significados (cf. OLD, verbete “liuor”, sentido 2) aqui é personificado. Mantivemos a grafia de “inveja” com letra maiúscula adotada edição que aqui utilizamos (Belles Lettres). Sobre a impossibilidade de se distinguir tal recurso gráfico nos manuscritos transmitidos, cf. West (2002). 289 Amor (X 516) também está personificado, em referência à representação do Cupido (Hill, 1999, p. 179, nota ao verso 516). 290 Pharetra (X 518): aljava, estojo para setas que se leva nos ombros. Tal objeto faz parte da representação do deus Amor/Cupido. (Cf. OLD, verbete “pharetra”, sentido 1 e P. Grimal, verbete “Eros”).

149 5.3 Vênus e Adônis (Met. X 519-739)

Labitur occulte fallitque uolatilis aetas Et nihil est annis uelocius; ille sorore 520 Natus auoque suo, qui conditus arbore nuper, Nuper erat genitus, modo formosissimus infans, Iam iuuenis, iam uir, iam se formosior ipso est; Iam placet et Veneri matrisque ulciscitur ignes. Namque pharetratus dum dat puer oscula matri, 525 Inscius extanti destrinxit harundine pectus; Laesa manu natum dea reppulit; altius actum Vulnus erat specie primoque fefellerat ipsam. Capta uiri forma non iam Cythereia curat Litora, non alto repetit Paphon aequore cinctam 530 Piscosamque Gnidon grauidamque Amathunta metallis. Abstinet et caelo; caelo praefertur Adonis. Hunc tenet, huic comes est; assuetaque semper in umbra Indulgere sibi formamque augere colendo, Per iuga, per siluas dumosaque saxa uagatur, 535 Fine genu uestem ritu succincta Dianae;

150 O tempo efêmero escoa despercebido e nos engana291, E nada é mais veloz que os anos. Ele, nascido da irmã 520 E do avô e que há pouco estava escondido na árvore, E há pouco fora gerado, agora é uma belíssima criança, Já é jovem, já é homem, já é mais belo do que ele próprio. E já apraz a Vênus e vinga os amores da mãe.292 O fato é que, enquanto o menino, armado da aljava,293 dá beijos na mãe, 525 Descuidado, toca de leve o peito da deusa com a flecha pontiaguda. Ela, ferida, afastou o filho com a mão: o golpe era mais Profundo do que aparentava e enganara, primeiramente, a própria deusa. Capturada pela beleza e por um homem, ela já não cuida Da costa da Citera294, nem se lembra de Pafos295 rodeada pela alta planície, 530 E nem da piscosa Cnido296 e de Amatunte297, carregada de metal. Até do céu se afasta: prefere Adônis ao céu. Ela o seduz, dele é companheira; e fica acostumada a sempre Se entregar às sombras e a aumentar a beleza, cultivando-a; Através das montanhas, através das matas, pedras e arbustos, ela vagueia 535 Tendo o vestido encurtado, até o joelho, à maneira de Diana.

291 Neste trecho, partilhamos da interpretação de Hill para fallitque (v. 519): “... and deceives us...” (D. E. Hill, 1999, pág. 65). 292 Ao dizer que, despertando o amor em Vênus, Adônis vinga o amor da mãe, o poeta vincula a paixão de Mirra pelo pai à ação da deusa do amor, culpando-a de certa forma, uma vez que seu filho vinga-a ao causar em Vênus a dor do amor que Mirra sentiu. Percebemos, nesse ponto, uma confluência com Remedia Amoris: o amor, sendo um feito prejudicial é tratado com a vingança, que pode ser enxergada como uma cura para o amor. Cf. discussão no capítulo 3 do estudo. 293 Trata-se de Cupido, o deus do amor, filho da deusa Vênus (cf. notas aos versos 516 e 518 deste texto). Na tradução de Frank Miller (1984), o aposto é vertido para “The godess‟ son”, ou seja, “o filho da deusa”. Nós preferimos realizar uma tradução mais literal de tal passagem, para contribuir com a imagem transmitida no poema: Cupido, carregando a aljava no ombro, descuida-se e, ao beijar a mãe, deixa uma das setas atingi-la. 294 Cythera: “Uma ilha no Egeu, ao sudoeste do cabo Maleia, consagrada à Vênus” – “An island, in the Aegean, south-west of Cape Malea, sacred to Venus” (OLD, verbete “Cythera”, sentido único). 295 Paphon: “Uma cidade no sudoeste de Chipre, associada a Vênus” – “A city in south-west Cyprus, associated to Venus” (OLD, verbete “Paphos”, sentido único). 296 Gnidon: “Uma cidade no extremo sudoeste da Cária” – “A town in the extreme south-west of Caria” (OLD, verbete „Cnidos‟, sentido único). 297 Amathunta: “Uma cidade em Chipre” – “A town in Cyprus” (OLD, verbete “Amathus”, sentido único).

151 Hortaturque canes tutaeque animalia praedae, Aut pronos lepores, aut celsum in cornua ceruum Aut agitat dammas; a fortibus abstinet apris Raptoresque lupos armatosque unguibus ursos 540 Vitat et armenti saturatos caede leones. Te quoque, ut hos timeas, siquid prodesse monendo Posset, Adoni, monet: “Fortis” que “fugacibus esto” Inquit; “in audaces non est audacia tuta. Parce meo, iuuenis, temerarius esse periclo; 545 Neue feras, quibus arma dedit natura, lacesse, Stet mihi ne magno tua gloria. Non mouet aetas Nec facies nec quae Venerem mouere, leones Saetigerosque sues oculusque animosque ferarum. Fulmen habent acres in aduncis dentibus apri, 550 Impetus est fuluis et uasta leonibus ira Inuisumque mihi genus est.” Quae causa, roganti: “Dicam” ait “et ueteris monstrum mirabile culpae. Sed labor insolitus iam me lassauit et ecce Opportuna sua blanditur populous umbra 555 Datque torum caespes; libet hac requiescere tecum (Et requieuit) humo” pressitque et gramen et ipsum Inque sinu iuuenis posita ceruice reclinis Sic ait ac mediis interserit oscula uerbis. “Forsitan audieris aliquam certamine cursus 560 Veloces superasse uiros; non fabula rumor Ille fuit, superabat enim; nec dicere posses, Laude pedum formaene bono praestantior esset. Scitanti deus huic de coniuge: “Coniuge” dixit “Nil opus est, Atalanta, tibi; fuge coniugis usum; 565

152 E exorta os cães, guardando as criaturas das presas Perseguindo ora as lebres fugidias, ora os cervos altos nas galhardas, Ou as cabras; mantém-se afastada dos fortes javalis E evita os lobos raptores e os ursos armados com garras, 540 E os leões saciados com o massacre da manada. A ti também ela adverte a temê-los, Adônis, caso advertir Possa ser útil: “Sê corajoso com os fugazes”. Ela afirma: “Contra os audazes, não há audácia segura. Evita ser temerário em meu prejuízo, 545 Não provoques as feras a quem a natureza deu as armas. Que tua glória não vá me custar caro demais.298 Tua juventude, beleza ou atributos que comoveram Vênus Não comovem os leões, os javalis eriçados, os olhos e a natureza das feras. Os impetuosos javalis têm a força de um raio nos dentes aduncos, 550 Há violência e imensa ira nos fulvos leões. A espécie é odiosa para mim”. Tendo ele questionado os motivos, Ela afirmou: “Eu te direi e te espantará a monstruosidade de um antigo crime. Mas o insólito trabalho já me fatigou e, eis que o choupo seduz com sua sombra propícia, e a relva nos serve de leito; 555 Agrada-me deitar por aqui contigo” (E deitou-se) “na terra”. E premeu ao mesmo tempo a grama e o jovem. Após colocar a cabeça no peito do amante reclinado, Assim disse, entremeando, todavia, beijos com meias palavras: “Talvez tenhas ouvido sobre certa moça que superava 560 Os homens velozes na disputa de corrida; aquele boato não Foi mentira, pois ela de fato os superava; nem poderias dizer Se ela era mais notável pelos ótimos pés, ou mais louvável pela beleza. Quando procurou saber sobre um cônjuge, um deus disse: “Não há necessidade de marido para ti: fuja de ter um marido. 565

298 Transcrevememos, para esse verso, traduções adotadas por F. J. Miller (1984) e Lafaye (2000), respectivamente: “...lest your glory be at great cost to me” e “...ta gloire me coûterai trop cher”.

153 Nec tamen effugies teque ipsa uiua carebis.” Territa sorte dei per opacas innuba siluas Viuit et instantem turbam uiolenta procorum Condicione fugat: “Nec sum potienda, nisi” inquit, “Victa prius cursu; pedibus contendite mecum. 570 Praemia ueloci coniunx thalamique dabuntur, Mors pretium tardis; ea lex certaminis esto.” Illa quidem inmitis; sed (tanta potentia formae est) Venit ad hanc legem temeraria turba procorum. Sederat Hippomenes cursus spectator iniqui 575 Et “petitur cuiquam per tanta pericula coniunx?” Dixerat ac nimios iuuenum damnarat amores. Vt faciem et posito corpus uelamine uidit, Quale meum, uel quale tuum, si femina fias, Obstipuit tollensque manus: “Ignoscite,” dixit 580 “Quos modo culpaui; nondum mihi praemia nota, Quae peteretis, erant.” Laudando concipit ignes Et, ne quis iuuenum currat uelocius, optat Inuidiaque timet. “Sed cur certaminis huius Intemptata mihi fortuna relinquitur?” inquit 585 “Audentes deus ipse iuuat.” Dum talia secum Exigit Hippomenes, passu uolat alite uirgo. Quae quamquam Scythica non setius ire sagitta Aonio uisa est iuueni, tamen ille decorem Miratur magis; et cursus facit ille decorem. 590 Aura refert ablata citis talaria plantis Tergaque iactantur crines per eburnea quaeque, Poplitibus suberant picto genualia limbo;

154 Não fujas, porém, e ficarás sem tua própria vida”. Amedrontada com o oráculo dos deuses, passa a viver, solteira, por sombrias matas E, com impetuosa proposta, afugenta a insistente multidão de pretendentes. Disse: “Não sou de se dominar, exceto se, antes, For vencida na corrida; rivalizai com meus pés: 570 A esposa e o casamento serão dados como prêmios aos velozes, A morte é o prêmio dos lentos; que essa seja a regra da disputa.” De fato, ela é impiedosa, mas (tamanho poder há na beleza) Audaciosa multidão de seguidores veio, mesmo com tal regra. Hipômenes299 ficara sentado como espectador da iníqua corrida. 575 “Uma esposa é solicitada por algum homem mesmo com tantos perigos?” Dissera ele e censurara os desmedidos amores dos jovens. E, quando ele viu seu rosto e, despojado das roupas, seu corpo, (Tal qual o meu, ou tal qual o teu, se fosses mulher), Ficou estupefato e, erguendo a mão, disse: “Perdoai-me, 580 Vós que eu acabo de criticar. Não me era conhecida ainda A prenda que disputais”. Tendo feito o elogio, inflama-se E deseja que nenhum dos jovens corra mais rápido, E teme a inveja: “Mas por que, nesta disputa, Minha sorte é relegada sem que eu tente?” Diz: 585 “Que o próprio deus auxilie os audazes”. Enquanto Hipômenes avalia tal questão consigo mesmo, a jovem voa com passo veloz. Ainda que, ao jovem da Aônia, ela tenha parecido ir não menos bem Que uma flecha da Cítia, ele contempla Mais a beleza dela, e a própria corrida faz a sua beleza: 590 A brisa revolve as tiras das sandálias nos tornozelos300 em seus pés ligeiros E os cabelos agitam-se nas costas ebúrneas; As joelheiras ornadas com bordados insinuam-se nas pernas,

299 Filho de Megareu e Mérope, é reconhecido na mitologia como aquele que quis desposar Atlanta e casou-se com ela, tal qual a história que Vênus conta para Adônis nesta altura do poema (Cf. P. Grimal, verbete “Hipómenes”). 300 Cf. verbetes “talaria” (2a) e “talaris” (1a) no OLD.

155 Inque puellari corpus candore ruborem Traxerat, haud aliter quam cum super atria uelum 595 Candida purpureum simulatas inficit umbras. Dum notat haec hospes, decursa nouissima meta est Et tegitur festa uictrix Atalanta corona. Dant gemitum uicti penduntque ex foedere poenas. Non tamen euentu iuuenis deterritus horum 600 Constitit in medio uultuque in uirgine fixo: “Quid facilem titulum superando quaeris inertes? Mecum confer” ait. “Seu me fortuna potentem Fecerit, a tanto non indignabere uinci; Namque mihi genitor Megareus Onchestius, illi 605 Est Neptunus auus, pronepos ego regis aquarum; Nec uirtus citra genus est; seu uincar habebis Hippomene uicto magnum et memorabile nomen.” Talia dicentem molli Schoeneia uultu Aspicit et dubitat superari an uincere malit, 610 Atque ita: “Quis deus hunc formosis”, inquit “iniquus Perdere uult caraeque iubet discrimine uitae Coniugium petere hoc? Non sum, me iudice, tanti. Nec forma tangor (poteram tamen hac quoque tangi), Sed quod adhuc puer est; non me mouet ipse, sed aetas. 615 Quid, quod inest uirtus et mens interrita leti? Quid, quod ab aequorea numeratur origine quartus? Quid, quod amat tantique putat conubia nostra, Vt pereat, si me fors illi dura negarit? Dum licet, hospes, abi thalamosque relinque cruentos. 620 Coniugium crudele meum est; tibi nubere nulla Nolet et optari potes a sapiente puella. Cur tamen est mihi cura tui, tot iam ante peremptis?

156 E no seu corpo de uma candura de menina trouxera o rubor, Da mesma forma que um véu purpúreo sobre 595 Cândido átrio tinge as simuladas sombras. Enquanto o estrangeiro observa isso, a reta final é percorrida E, vitoriosa, Atlanta é coberta pela coroa solene. Os vencidos gemem e sofrem o castigo que convém às regras. Não sendo, contudo, amedrontado pelo ocorrido com os jovens, 600 Deteve-se entrementes, fitando o rosto da virgem; Diz: “Por que buscas o título fácil, vencendo os inábeis? Disputa comigo. Se a Fortuna me fez forte, Não te indignarás em ser vencida por tamanho rival. O fato é que meu pai é Megareu de Onqueste, e dele 605 Netuno é avô; eu sou bisneto do rei das águas, Nem meu valor é inferior à minha linhagem; e, se eu for vencido, terás Um nome elevado e memorável por vencer Hipômenes.” Tendo ele dito tais coisas, com a face delicada a filha de Esqueno Olha e hesita se prefere ser vencida ou vencer, 610 Assim exclama, contudo: “Qual deus injusto quer arruinar este entre os formosos E leva-o a pedir-me em casamento, um grave perigo Para sua vida estimada? Não sou de tanto valor, segundo julgo. Nem estou tocada pela beleza (pudera, contudo, também ser por ela tocada) Mas ele ainda é um menino; não é ele mesmo que me comove, mas sim sua juventude. 615 Por que o que vem a sua mente é a coragem, sem o medo da morte? Por que, além do mais, ele pertence à quarta geração da equórea origem? Por que, além disso, ama-me e considera nosso casamento tão importante, a ponto de morrer se a cruel fortuna me negar a ele? Enquanto é permitido, estrangeiro, sai e abandona o casamento sanguinário 620 Ser meu esposo é cruel, nenhuma mulher recusará casar-se contigo, E podes ser escolhido por uma moça sensata. Por que, porém, te ocupas de mim diante de tantos já aniquilados?

157 Viderit; intereat, quoniam tot caede procorum Admonitus non est agiturque in taedia uitae. 625 Occidet hic igitur, uoluit quia uiuere mecum, Indignamque necem pretium patietur amoris? Non erit inuidae uictoria nostra ferendae. Sed non culpa mea est. Vtinam desistere uelles, Aut, quoniam es demens, utinam uelocior esses! 630 At quam uirgineus puerili uultus in ore est! A! miser Hippomene, nollem tibi uisa fuissem; Viuere dignus eras; quod se felicior essem Nec mihi coniugium fata inportuna negarent, Vnus eras cum quo sociare cubilia uellem.” 635 Dixerat utque rudis primoque Cupidine tacta, Quid facit ignorans, amat et non sentit amorem. Iam solitos poscunt cursus populusque paterque, Cum me sollicita proles Neptunia uoce Inuocat Hippomenes: “Cytherea” que “comprecor, ausis 640 Adsit”, ait “nostris, et, quos dedit, adiuuet ignes.” Detulit aura preces ad me non inuida blandas; Motaque sum, fateor; nec opis mora longa dabatur. Est ager, indigenae Tamasenum nomine dicunt, Telluris Cypriae pars optima, quam mihi prisci 645 Sacrauere senes templisque accedere dotem Hanc iussere meis; medio nitet arbor in aruo, Fulua comam, fuluo ramis crepitantibus auro. Hinc tria forte mea ueniens decerpta ferebam Aurea poma manu; nullique uidenda nisi ipsi 650 Hippomenen adii docuique, quis usus in illis. Signa tubae dederant, cum carcere pronus uterque Emicat et summam celeri pede libat harenam.

158 Que ele enxergue! Que se perca, já que, depois do massacre de tantos pretendentes, Ele não está alarmado e é impelido aos desgostos da vida. 625 Ele perecerá, portanto, porque quis viver comigo, E sofrerá com a morte indigna como preço do amor? Nossa vitória não será de causar inveja. Mas não é minha culpa! Quem dera quisesses desistir Ou, pois que és insensato, quem dera fosses mais veloz. 630 Mas quantos traços virginais há na face pueril! Ah! Pobre Hipômenes, não queria ter sido vista por ti! Eras digno de viver. Porque, se eu fosse mais feliz, E o cruel destino não me negasse um esposo, Serias o único com quem eu desejaria partilhar os leitos”. 635 Disse, e como a jovem ingênua estava tocada pela primeira vez por Cupido, Não sabendo o que fazer, ama e não percebe o amor. O povo e seu pai já pedem a corrida habitual, Quando Hipômenes, descendente de Netuno, Invoca-me com voz aflita: “Citereia” disse “suplico que ela 640 Esteja comigo na minha ousadia e proteja a paixão que nos deu.” A brisa não malfazeja trouxe até mim as meigas preces; Confesso que fiquei comovida; e não se deu longa demora até a chegada de meu auxílio. Há um território, os nativos o chamam de Tâmaso301, A melhor região do território de Chipre, a qual os anciães 645 De outrora consagraram a mim e mandaram acrescentar esse Dom aos meus templos: uma árvore fulva, no meio da costa, floresce Com fulva copa, sendo os ramos crepitantes com o fulvo brilho do ouro. Casualmente, vinda desse lugar, eu levava na mão meus três frutos Áureos ali colhidos e, aparecendo para ninguém mais, 650 salvo para o próprio Hipômenes, aproximei-me e ensinei o jovem a usá-los. As trombetas tinham dado os sinais, e, inclinados no ponto de partida, Ambos lançam-se e tocam levemente a superfície da areia com pé veloz.

301 Tamasenum (X 644): Tamaseu, de Tâmaso, cidade de Chipre, grande ilha do mar Egeu.

159 Posse putes illos sicco freta radere passu Et segetis canae stantes percurrere aristas. 655 Adiciunt animos iuueni clamorque fauorque Verbaque dicentum: “Nunc, nunc incumbere tempus; Hippomene, propera; nunc uiribus utere totis. Pelle moram, uinces.” Dubium, Megareius heros Gaudeat an uirgo magis his Schoeneia dictis. 660 O quotiens, cum iam posset transire, morata est Spectatosque diu uultus inuita reliquit! Aridus e lasso ueniebat anhelitus ore Metaque erat longe; tum denique de tribus unum Fetibus arboreis proles Neptunia misit. 665 Obstipuit uirgo nitidique cupidine pomi Declinat cursus aurumque uolubile tollit. Praeterit Hippomenes; resonant spectacula plausu. Illa moram celeri cessataque tempora cursu Corrigit atque iterum iuuenem post terga relinquit; 670 Et rursus pomi iactu remorata secundi, Consequitur transitque uirum. Pars ultima cursus Restabat: “Nunc” inquit “ades, dea muneris auctor;” Inque latus campi, quo tardius illa rediret, Iecit ab obliquo nitidum iuuenaliter aurum. 675 An peteret, uirgo uisa est dubitare; coegi Tollere et adieci sublato pondera malo Impediique oneris pariter grauitate moraque; Neue meus sermo cursu sit tardior ipso, Praeterita est uirgo; duxit sua praemia uictor. 680 Dignane, cui grates ageret, sui turis honorem Ferret, Adoni, fui? Nec grates immemor egit,

160 Pensarias que eles podem costear as ondas dos mares com passo firme E percorrer as espigas da branca colheita sem movê-las. 655 Unem-se aos desejos do jovem os aplausos e o clamor E as palavras dos que falavam: “Agora, agora apressa-te, Hipômenes, para perseguir o tempo! Agora, usa toda a sua força Afasta a demora, tu serás vencedor!” E é dúbio, se o herói Megareio Ou se a virgem Esqueneida302 alegrou-se mais com os ditos. 660 Oh! Quantas vezes, quando já podia ultrapassar, ela demorou E, sem querer, abandonou por longo tempo os olhos fixos em sua face. O suspiro seco vinha da boca fatigada E o fim estava distante; então, finalmente, O descendente de Netuno lançou um dos três frutos da árvore. 665 A virgem ficou estupefata pelo desejo do fruto luzidio, E, desviando seu curso, ergue o ouro redondo. Hipômenes ultrapassa; a plateia retumba com os aplausos. E, tendo parado a corrida por um momento, ela corrige O atraso e de novo deixa o jovem para trás de suas costas; 670 E, pela segunda vez, tendo sido atrasada com o arremesso do fruto seguinte, Perseguiu e ultrapassou o homem. Restava a última parte Da corrida; “Agora” disse “Assiste-me, ó deusa, autora do presente”. E num campo aberto, a fim de torná-la novamente mais lenta, Com seu ar de jovem, lançou, obliquamente, o ouro brilhante. 675 A jovem parece hesitar em se voltar; eu a obriguei A ir e acrescentei peso ao fruto que ela ergueu, E eu a impedi, ao mesmo tempo, com o peso do ônus e com a demora; E, que a minha conversa não seja mais lenta que a própria corrida: A virgem foi ultrapassada; o vencedor levou seu prêmio. 680 Acaso não fui digna de que ele me agradecesse, de que trouxesse incenso Em minha homenagem, Adônis? E o ingrato nem agradeceu,

302 Megareïus heros… uirgo magis his Schoeneïa (X 659-60): tais epítetos referem-se a Hipômenes, filho de Megareu, e à Atlanta, filha de Esqueneu.

161 Nec mihi tura dedit. Subitam conuertor in iram Contemptuque dolens, ne sim spernenda futuris, Exemplo caueo meque ipsa exhortor in ambos. 685 Templa, deum Matri quae quondam clarus Echion Fecerat ex uoto, nemorosis abdita siluis, Transibant et iter longum requiescere suasit. Illic concubitus intempestiua cupido Occupat Hippomenen, a numine concita nostro. 690 Luminis exigui fuerat prope templa recessus, Speluncae similis, natiuo pumice tectus, Religione sacer prisca, quo multa sacerdos Lignea contulerat ueterum simulacra deorum. Hunc init et uetito temerat sacraria probro. 695 Sacra retorserunt oculos; turritaque Mater, An Stygia sontes, dubitauit, mergeret unda. Poena leuis uisa est; ergo modo leuia fuluae Colla iubae uelant, digit curuantur in ungues, Ex umeris armi fiunt, in pectora totum 700 Pondus abit, summae cauda uerruntur harenae. Iram uultus habet, pro uerbis murmura reddunt, Pro thalamis celebrant siluas; aliisque timendi Dente premunt domito Cybeleia frena leones. Hos tu, care mihi, cumque his genus omne ferarum, 705 Quod non terga fugae sed pugnae pectora praebet, Effuge, ne uirtus tua sit damnosa duobus.”

162 Nem me ofertou incensos. Fui tomada por uma ira repentina, E, condoída com seu desprezo, para não ser desprezada no futuro, Cuido de fazê-los de exemplo e incito a mim mesma contra os dois. 685 Nas profundezas de um espesso bosque, ambos passavam por um templo Que o ilustre Equíon,303 cumprindo uma promessa, dedicara outrora À Mãe dos deuses,304 e o longo caminho persuadiu-os a descansar. Ali, apodera-se de Hipômenes um inoportuno desejo sexual, provocado por nosso poder divino. 690 Perto do templo, havia um lugar retirado, com pouca claridade Semelhante a uma gruta, coberto por rochedos naturais, Venerado como sagrado por um antigo culto e aonde o sacerdote Havia levado muitas imagens de madeira, representando os antigos deuses. Lá entra ele e profana o santuário com o proibido ultraje. 695 As imagens sagradas voltaram todas seus olhos; a Mãe, adornada de torres,305 hesitou quanto a mergulhar ou não os culpados em Estígia306 água. O castigo pareceu-lhe leve. Então, seus pescoços, até há pouco lisos, Cobrem-se de fulvas cabeleiras, seus dedos se arqueiam em garras. Dos ombros saíram flancos, mudou todo o peso 700 para os peitos, a superfície da areia passa a ser varrida pelas caudas. Seus semblantes têm ira; em vez de palavras, dão rugidos, Em vez de leitos, frequentam bosques, e, como leões, Temidos pelos demais, apertam sob o dente domado os freios de Cibele. Como faz toda espécie de fera que oferece as costas para a fuga, 705 Mas não o peito para o combate, evita-os, meu querido, Para que tua coragem não seja prejudicial a nós dois”.

303 Um dos argonautas, filho de Mercúrio (P. Grimal, verbete “Equíon”, sentido 2). 304 Trata-se de Cibele; cf. Grimal (verbete “Cibele”) e Miller (1984, p. 113, n. IV). 305 Turrita (X 697): epíteto de Cibele, cf. OLD, sentido 1b. A deusa era representada com a cabeça coroada de torres, acompanhada de leões, ou em cima de um carro puxado por esses animais (P. Grimal, 2000, verbete “Cibele”). Ver Virgílio En. IX 82 para uma descrição completa. Sobre a ligação de Ida com Cibele e as naus de Eneias, ver Virgílio En. IX 80-9. (Hill, 1999, p.189, nota ao v. 535-6). 306 Stygius (X 697): Estige é, segundo a tradição mítica, a fonte da Arcádia, cuja água era mortal. Trata-se do rio dos Infernos, pelo qual juravam os deuses. Também pode ser usado como sinônimo de Infernos. (P. Grimal, 2000, verbete “Estige”).

163 Illa quidem monuit iunctisque per aera cygnis Carpit iter; sed stat monitis contraria uirtus. Forte suem latebris uestigia certa secuti 710 Exciuere canes siluisque exire parantem Fixerat obliquo iuuenis Cinyreius ictu. Protinus excussit pando uenabula rostro Sanguine tincta suo trepidumque et tuta petentem Trux aper insequitur totosque sub inguine dentes 715 Abdidit et fulua moribundum strauit harena. Vecta leui curru medias Cytherea per auras Cypron olorinis nondum peruenerat alis; Agnouit longe gemitum morientis et albas Flexit aues illuc; utque aethere uidit ab alto 720 Exanimem inque suo iactantem sanguine corpus, Desiluit pariterque sinum pariterque capillos Rupit et indignis percussit pectora palmis Questaque cum fatis: “Et non tamen omnia uestri Iuris erunt” dixit; “luctus monimenta manebunt 725 Semper, Adoni, mei; repetitaque mortis imago Annua plangoris peraget simulamina nostri. At cruor in florem mutabitur. An tibi quondam Femineos artus in olentes uertere mentas, Persephone, licuit, nobis Cinyreius heros 730 Inuidiae mutatus erit:” Sic fata cruorem Nectare odorato sparsit; qui tactus ab illo Intumuit sic ut fuluo perlucida caeno Surgere bulla solet; nec plena longior hora Facta mora est, cum flos de sanguine concolor ortus, 735 Qualem, quae lento celant sub cortice granum, Punica ferre solent; breuis est tamen usus in illo; Namque male haerentem et nimia leuitate caducum

164 Ela de fato avisou e, com seus cisne atrelados, Tomou o caminho dos ares, mas a coragem é oposta aos avisos. Por acaso, perseguindo certeiros vestígios, os cães tinham atraído 710 para fora do esconderijo um javali; no momento em que este já se preparava para correr para a mata, com golpe oblíquo ferira-o o jovem neto de Ciniras. Imediatamente, o animal, com o focinho curvado, lança venábulos Tingidos com seu sangue. Ao jovem, tremendo e buscando abrigo, O feroz javali persegue, sob sua virilha, cravou-lhe todos os dentes 715 E, na areia amarela, abateu o moribundo. A Citereia, levada pelo meio dos ares por seu carro ligeiro Com suas asas de cisne, ainda não atingira Chipre. Reconheceu de longe o gemido do agonizante e fez voltar Em sua direção as brancas aves. Quando ela viu, do alto céu, 720 Que ele jazia morto e com sangue jorrando do corpo, Desceu e rasgou, ao mesmo tempo, as pregas da roupa E os cabelos, bateu no peito com a palma indigna E queixou-se com as parcas: "E nem tudo será, porém, submetido a vossa lei", disse, "as lembranças da dor permanecerão 725 Para sempre, ó Adônis meu; e, retomada a imagem da morte, Realizar-se-á todo ano a representação da nossa dor. E seu sangue derramado será transformado em flor. Acaso te foi um dia Permitido, Perséfone, transformar os membros femininos em perfumadas hortelãs, Será motivo de me odiarem se acaso eu der ao herói, descendente de Ciniras, 730 Uma nova forma?” Tendo assim falado, a deusa espargiu sobre O sangue um néctar perfumado, e, ao tocá-lo, inchou assim, como costumam surgir, da lama amarelada, Bolhas transparentes. Depois de não mais do que Uma hora cheia, nasceu do sangue uma flor, de mesma coloração, 735 Tal qual as romãs costumam levar sob a casca flexível seus grãos escondidos. Aquela, porém, não tem longa vida útil. Pois, não sendo bem fixados, e sujeitos à queda por sua extrema leveza,

165 Excutiunt idem, qui praestant nomina, uenti.”

166 Arrancam-na os ventos mesmos que lhes emprestam o nome.307

307 Lafaye (op. cit., p. 146, n. 3), em nota ao verso, explica que se trata de uma associação entre o nome de vento e da anêmona, um tipo de flor (cf. OLD, “wind-flower”, verbete “anemone”, sentido 1; Plin. Nat. 21, 164; Quint. Inst. 8.3.8): “Il s´agit de l´anémone, dont le nom grec était mis en rapport avec celui du vent, anémos.

167 5.4 A morte de Eneias (Met. XIV 441-608).

Finierat Macareus; urnaque Aeneia nutrix Condita marmoreo tumulo breue carmen habebat; “Hic me Caietam notae pietatis alumnus Ereptam Argolico, quo debuit, igne cremauit.” Soluitur herboso religatus ab aggere funis 445 Et procul insidias infamataeque relinquunt Tecta deae lucosque petunt, ubi nubilus umbra In mare cum flaua prorumpit Thybris harena; Faunigenaeque domo potitur nataque Latini, Non sine Marte tamen; bellum cum gente feroci 450 Suscipitur, pactaque furit pro coniuge Turnus. Concurrit Latio Tyrrhenia tota diuque

168 Macareu308 terminara309; e a ama de Eneias, Recôndita em urna, tinha em seu túmulo de mármore um breve poema: “Aqui, meu pupilo, notável pela sua devoção,310 cremou a mim, Caieta, Que fui apartada do fogo argólico, e trazida a este local, a mim devido”. O nó da corda é desatado da terra ervosa 445 E eles deixam para trás311 as perfídias e as moradas Da difamada deusa e dirigem-se aos bosques, onde, turvado pela escuridão, O Tibre312 lança-se ao mar com sua amarela areia. Ele313, da casa e da filha de Latino, descendente de Fauno,314 apodera-se, Mas não sem combate;315 empreende-se a guerra contra um povo violento. 450 E, por causa de sua prometida esposa,316 Turno encoleriza-se. Toda a Tirrênia317 lutou contra o Lácio, e por muito tempo

308 Macareus (XIV 441): segundo Hill, Macareu foi uma invenção de Ovídio (tal qual Virgílio teria, aparentemente, inventado o personagem Aquemênides, que fora abandonado por Ulisses e resgatado por Eneias): “(…) Tanto foi Aquemênides uma invenção virgiliana, quanto Macareu foi uma ovidiana, introduzida, talvez, para dar a Aquemênides uma audiência familiar para essa narrativa. O nome Macareu (…) também foi emprestado, provavelmente, de um, senão desconhecido, Lapith (12.452).” – “(…) Just as Achaemenides was a Virgilian invention, so was Macareus an Ovidian one, introduced, perhaps, to give Achaemenides a familiar audience for his narrative. The name, Macareus (…), has also been borrowed, probably from that of an otherwise unknown Lapith (12.452).” (Hill, 2000, nota aos versos 158-222, p. 176). 309 Macareu terminara de narrar sua metamorfose, provocada por Circe. Segundo essa versão (Met. XIV 223-440), Circe transformara-o, bem como seus companheiros, em porco; mas Ulisses salvou-os casando-se com a feiticeira e exigindo, como presente de casamento, a antiga forma dos demais. 310 Pietatis (XIV 443): sobre o sentido de pietas em português, cf. nota ao verso X 354. Hill (2000, p. 69) também interpreta que nota pietatis se refere a quem homenageia, e não ao homenageado. 311 Procul... relinquunt (XIV 446): lit., “abandonam ao longe”. 312 Thybris (XIV 448): o rio Tibre (OLD, verbete “Thybris”, sentido único). 313 Ele (XIV 449): Eneias. O tema da passagem se encontra em Virg. Eneida VII 45-285. 314 Latino, que reinava entre os Aborígenes (a mais antiga população da Itália), segundo a tradição latina, é filho do deus Fauno, nativo da região, e da deusa Marica, de Minturnas. (P. Grimal, 2000, verbete “Latino”). Virgílio conta que ele recebera Eneias em seu reino (En. VII 45- 285). 315 Non sine Marte tamen (XIV 450): note-se o uso metonímico da menção ao deus Mars (grafado com inicial maiúscula na edição de Hill (2000, p. 70) e na edição de Lafaye, cujo texto latino adotamos). 316 Em relação à esposa prometida, Hill comenta que Virgílio nunca sugerira que Lavínia, a filha de Latino, fora oficialmente prometida a Turno, mas a mãe da jovem, além de apoiar a batalha (En. VII 55-7, 359-72), afirma que tal promessa fora feita (En. VII 365-6), o que parece ser apenas sua vontade. (Hill, 2000, p. 186).

169 Ardua sollicitis uictoria quaeritur armis. Auget uterque suas externo robore uires Et multi Rutulos, multi Troiana tuentur 455 Castra; neque Aeneas Euandri ad limina frustra, At Venulus frustra profugi Diomedis ad urbem Venerat; ille quidem sub Iapyge maxima Dauno Moenia condiderat dotaliaque arua tenebat; Sed Venulus Turni postquam mandata peregit, 460 Auxilium petiit, uires Aetolius heros Excusat; nec se aut soceri commitere pugnae Velle sui populos, aut quos e gente suorum Armet, habere ullos: “Neue haec commenta putetis, Admonitu quamquam luctus renouentur amari, 465 Perpetiar memorare tamen. Postquam alta cremata est Ilion et Danaas pauerunt Pergama flammas

317 Tyrrhenia (XIV 452): Etrúria. (OLD). Na tradução de Hill (2000, p. 71): “all of Tyrrenia came to fight against ”.

170 A árdua vitória é almejada com inquietas armas.318 Cada um aumenta suas forças com tropas estrangeiras E muitos defendem os rútulos319; muitos, o acampamento 455 troiano. E Eneias não viera em vão às cidades320 de Evandro;321 Vênulo, contudo, para a do exilado Diomedes Viera em vão322. Ele, na verdade, sob comando de Dauno Iapígio323, Fundara os imensos muros da cidade e ocupava os terrenos dotais. Mas, depois que Vênulo cumpriu as ordens de Turno, 460 Pediu ajuda; o herói Etólio324 alega falta de recursos;325 Ele nem queria expor a si mesmo ou os povos de seu Sogro ao combate, nem tinha quaisquer homens de seu povo Para armar: “E não penseis que são pretextos,326 Mesmo que, pela menção, as dores amargas sejam renovadas, 465 Que eu suporte, contudo, delas lembrar.327 Depois que a alta Ílio foi Queimada e Pérgamo328 foi aterrorizada pelas chamas gregas329,

318 Sollicitis... armis (XIV 453): trata-se de uma hipálage, transposição do adjetivo sollicitus, que deveria ser atribuído aos homens que carregam as armas; é atribuído, porém, às próprias armas. 319 Os rútulos são o povo de Turno (En. 7-12 passim; ver Hill, 2000, p. 186). 320 Moenia (XIV 457): lit. os muros, as muralhas, por metonímia, a cidade. 321 Trata-se do lugar que futuramente seria Roma (En. VII 66-183; 280-369, 454-584; ver Hill, 2000, nota ao v. 456, p. 186) 322 Apesar de não haver essa repetição no texto latino, parece-nos a melhor alternativa para esse caso, assim como também Hill procede em sua tradução (2000, XIV 456-8, p. 70; ver também p. 186, nota aos v. 456-8). 323 Dauno, rei da Apúlia, recebe esse epíteto (Iapyge, XIV 458) como uma referência ao nome grego da cidade de Apúlia. 324 I.e., Diomedes. Seu pai, Tideu, era filho de Eneu, rei da Calidonia, na Etólia (ver, p. ex., Hom., Il. II 638-44 e Virg., En. XI 270) (in: Hill, 2000, p.187, nota ao v. 461). 325 Seguimos, aqui, a tradução de Hill: “...the Aetolian hero pleaded lack of resources” (Hill, 2000, p. 71). 326 Neue haec commenta putetis (XIV 464): optamos por traduzir como G. Lafaye (Belles Lettres): “... qui ce soient là des pretextes”. Hill (2000, p. 187) verte de modo parecido: “And, in case you think these things are falsehoods”. 327 Hill (2000, p. 187) aponta a alusão presente nesses versos (XIV 455-6) ao momento em que Eneias narra a Dido o que lhe ocorrera até então (En. II 3, 10-13). O estudioso ressalta a intertextualidade a partir da utilização de vocábulos comuns aos dois textos (renouare, quamquam, luctus), e menciona ainda o fato de Ovídio utilizar-se deles em contexto banal, diferente de Virgílio, que o faz em momento sublime de sua épica. 328 Pergama (XIV 461): trata-se da fortaleza ou cidadela de Troia. (OLD, verbete “Pergama”, sentido único).

171 Naryciusque heros, a uirgine uirgine rapta, Quam meruit poenam solus, digessit in omnes, Spargimur et uentis inimica per aequora rapti 470 Fulmina, noctem, imbres, iram caelique marisque Perpetimur Danai cumulumque Capherea cladis. Neue morer referens tristes ex ordine casus, Graecia tum potuit Priamo quoque flenda uideri. Me tamen armiferae seruatum cura Mineruae 475 Fluctibus eripuit; patriis sed rursus ab agris Pellor et antiquo memores de uulnere poenas Exigit alma Venus; tantosque per alta labores Aequora sustinui, tantos terrestribus armis, Vt mihi felices sint illi saepe uocati 480 Quos communis hiems importunusque Caphereus Mersit aquis uellemque horum pars una fuissem.

329 Danaas (XIV 467): lit. “dos Dânaos”; conforme verbete do OLD (verbete “Danai”, sentido único) o adjetivo refere-se ao que é dos ou pertencente aos gregos (antes de Troia), ou ainda dos Argivos (em Tebas).

172 O herói da Narícia,330 por castigo de uma virgem, devido à uma virgem raptada,331 Merecia, sozinho, a pena que dividiu com todos nós.332 Fomos dispersados e, arrastados pelos ventos através dos mares mais hostis, 470 Nós, os Dânaos, suportamos os raios, a noite, as chuvas, A ira do céu e do mar e o auge da nossa ruína, o Cafereu333. E que eu não me demore contando a sequência de nossa triste sina, À época, também para Príamo, a Grécia pôde parecer lastimável. A mim, no entanto, o cuidado da guerreira334 Minerva salvou, 475 Livrando-me das ondas: mas, mais uma vez, sou expulso dos campos De meu pai, e, pela antiga ferida, a graciosa Vênus335 exige Rancorosos castigos336; e tais foram as dores que suportei por Mares profundos, tais eram, por terra, nos exércitos, Que por mim foram, muitas vezes, chamados ditosos 480 Aqueles que a mesma tempestade e o penoso Cafereu Submergiu nas águas; quisera eu ter sido um deles.

330 Narycius... heros (XIV 468): o epíteto Narycius é atribuído ao herói da Guerra de Troia, Ajax, filho de Oileu. Ele veio da Lócrida, cuja principal cidade era a Narícia (OLD, verbete “Narycius”, sentido único, e Hill, 1999, p. 187, nota ao v. 468). 331 A uirgine, uirgine rapta (XIV 468): tal como ressalta Hill (2000, p. 187, nota ao v. 468), temos aqui um poliptoto: a uirgine (ablativo de agente: por uma virgem, i.e., por Atena/Minerva); uirgine rapta (ablativo de causa, “devido ao rapto de uma virgem”, referência a Cassandra). Faz-se remissão à lenda em que Ajax, filho de Oileu, despertou a ira da deusa Atena (Minerva) ao arrastar Cassandra (que se agarrava à sua estátua) para fora do templo da deusa onde ela se refugiava. Virgine serve de epíteto para ambas as figuras míticas da lenda, e as palavras figuram lado a lado, possivelmente sugerindo o modo como estavam no momento do crime. Hill aponta ainda outras ocorrências do mesmo episódio mitológico: Apollod., Epit. V 22, 23; VI 5-6; Hom., Od. IV 449- 511. Ovídio opta, segundo o autor, pela versão virgiliana, em que Vênus reclama da postura vingativa de Palas Atena (En. 1.39-45). 332 Não apenas Ájax, mas também outros tripulantes da frota argiva foram punidos pelo crime cometido (ver nota ao verso acima). Atena castiga-os com uma tempestade que faz com que parte das naus naufrague. 333 Capherea (XIV 472): “um promontório perigoso no canto sudeste da Eubeia; para a história, ver Apollod., Epit. 6.7 (…)” – “a dangerous promontory at the south-east corner of Euboea; for the story, see Apollod., Epit. 6.7 (…)” (Hill, 2000, p. 187, nota ao v. 472). 334 Armiferae (XIV 475): lit. “a que transporta armas”. 335 Alma Venus (XIV 479): Em Homero (Il. V 124-31), Atena afirma que Diomedes não poderia lutar contra nenhum deus, exceto com Afrodite; mais adiante (V 330, 334-9), há o encontro entre os dois (Hill, 2000, p. 188, nota ao v. 478). 336 Memores de ulnere poenas: trata-se da ferida provocada por Diomedes na deusa do amor, conforme narrativa de Homero (Ilíada V 124-31; V 330 e 334-39).

173 Vltima iam passi comites belloque fretoque Deficiunt finemque rogant erroris; at Acmon Feruidus ingenio, tum uero et cladibus asper; 485 “Quid superest, quod iam patientia uestra recuset Ferre, uiri?” dixit “quid habet Cytherea, quod ultra, Velle puta, faciat? Nam dum peiora timentur, Est locus in uulnus; sors autem ubi pessima rerum, Sub pedibus timor est securaque summa malorum. 490 Audiat ipsa licet et, quod facit, oderit omnes Sub Diomede uiros; odium tamen illius omnes Spernimus et magno stat magna potentia nobis.” Talibus iratam Venerem Pleuronis Acmon Instimulat uerbis stimulisque resuscitat iram. 495 Dicta placent paucis; numeri maioris amici Acmona corripimus; cui respondere uolenti Vox pariter uocisque uia est tenuata comaeque: In plumas abeunt, plumis noua colla teguntur Pectoraque et tergum; maiores bracchia pennas 500 Accipiunt cubitusque leuis sinuatur in alas; Magna pedis digitos pars occupat oraque cornu Indurata rigent finemque in acumine ponunt.

174 Meus companheiros, chegando às últimas penas,337 na guerra e no mar, Desanimam e pedem termo à errância; mas Ácmon338, Impetuoso por natureza339 e àquela altura já áspero por nossas desgraças, 485 Disse: “O que nos resta agora que vossa tolerância se recuse a Suportar, homens? O que mais a Citereia pode (Supondo que ela queira) fazer? Pois, enquanto tememos o pior, Há espaço para as feridas, porém, quando é a sorte a pior das coisas, A nossos pés está o temor, e o maior dos males não é objeto de preocupação. 490 Deixai que ela mesma me escute e que, como faz ela, tenha aversão a todos Os homens subordinados a Diomedes; todos nós, no entanto, desprezamos o Ódio dela, e nos custou muito este nosso poder.” Ácmon de Pleurão340 provoca a furiosa Vênus Com tais palavras e, nas provocações, ressuscita sua ira. 495 Seu discurso agrada a poucos, e nós, a maioria de seus amigos, Censuramos Ácmon; que, ao querer responder, Tem sua voz e a saída de sua voz, ao mesmo tempo, diminuídas, e os cabelos Esvaem-se em plumas, com plumas são cobertos o novo pescoço, E seu peito e suas costas; os braços recebem a maior 500 Plumagem, e os cotovelos curvam-se em velozes asas; Grande parte do pé ocupam os dedos, e sua boca, como um bico Endurecida, enrijece e termina em uma ponta.341

337 Vltima iam passi ... belloque fretoque (XIV 483): lit. “já tendo suportado os extremos tanto na guerra quanto no mar”. A versão não reproduz a ambiguidade presente em ultima, que pode significar parte mais afastada, a parte final de um processo, ou ainda, algo que marque o fim da vida (OLD, verbete “ultimus”, sentido 1). 338 Acmon (v. 484): o verbete não consta no OLD ou no Dicionário de Mitologia Grega e Romana (P. Grimal), mas aparece no dicionário de Liddell&Scott como “um companheiro de Eneias” – “a companion of Aeneas” e no Dicionário Latino-Português (F.R. dos Santos Saraiva) como um dos companheiros de Diomedes, transformado em ave por Vênus, metamorfose narrada nesse trecho (Met. XIV 498-503). Ao termo, Hill (2000, p. 188) anota: “de outra maneira não conhecido” – “not otherwise known”. 339 Seguimos a tradução de Hill: “...but Acmon, impetuous by nature” (2000, p. 71). 340 Pleuronis Acmon (XIV 494): Pleurão era a segunda cidade da Etólia, depois da Calidônia (Hill, 2000, p. 188, nota ao v. 494). 341 A transformação narrada por Diomedes também é referida, de acordo com Hill (2000, p. 188, nota aos XIV 494-509), em Virgílio (En. XI 271-7) e em Lycoph. (Alex. 594-9).

175 Hunc Lycus, hunc Idas et cum Rhexenore Nycteus, Hunc miratur Abas; et dum mirantur, eandem 505 Accipiunt faciem numerusque ex agmine maior Subuolat et remos plausis circumuolat alis, Si uolucrum quae sit dubiarum forma requiris, Vt non cygnorum, sic albis proxima cygnis. Vix equidem has sedes et Iapygis arida Dauni 510 Arua gener teneo minima cum parte meorum.” Hactenus Oenides; Venulus Calydonia regna Peucetiosque sinus Messapiaque arua relinquit. In quibus antra uidet, quae multa nubila silua Et leuibus guttis manantia semicaper Pan 515 Nunc tenet, at quodam tenuerunt tempore nymphae. Apulus has illa pastor regione fugatas

176 E Lico se admira, e Idas junto a Rexenore e Nicteu, E Abante;342 e enquanto se admiram, recebem a mesma 505 Forma, e a maioria do meu exército Eleva-se voando e, batendo as asas, voam em volta dos remos, Se acaso perguntas qual era a aparência de tais dúbias aves: Sem ser a dos cisnes, era bem próxima à dos brancos cisnes. É, com efeito, a custo que eu, genro de Dauno Iapígio,343 ocupo essa morada 510 E esses campos áridos, com uma parte mínima dos meus homens”. Até este ponto, falou Enides344. Vênulo abandona o reino da Calidonia345, Os golfos da Peucécia, os campos da Messápia.346 Lá ele vê as cavernas, enevoadas por muitas árvores E molhadas por leves gotas, que o sátiro Pã 515 Agora ocupa, e que outrora as ninfas ocuparam. Um pastor da Apúlia347 afugentando-as daquela região,

342 Hunc Lycus, hunc Idas et cum Rhexenore Nycteus,/ Hunc miratur Abas (XIV 504-5): “esses nomes foram escolhidos randomicamente por Ovídio de uma variedade de possíveis fontes: entre as mais prováveis estão, para os primeiros três, os relatos de Virgílio sobre os homens de Eneias (En. I 222; IX 575; I 121), para o seguinte, Propertius I 4 5, e, para o ultimo, Hom. Od. VII 63-4” – “these names have been chosen at random by Ovid from a variety of possible sources; among the more probable are, for the first three, Virgil‟s accounts of Aeneas‟ men (En. I 222; IX 575; I 121), for the next one, Propertius I 4 5, and, for the last one, Hom. Od. VII 63-4”. (Hill, 2000, p. 189, nota aos v. 504-5). 343 Iapygis... Dauni (XIV 510): ver nota ao verso 458, acima. 344 Oenides (XIV 512): i.e., Diomedes (neto de Eneu) (Hom., Il. 5.813). (Hill, 2000, p. 189, nota ao v. 512). 345 Calydonia (XIV 512): ver nota ao v. 461, acima. A história em seguida é atribuída por Antonino Liberal (31) a Nicandro, segundo informa Hill (2000, p. 189). 346 Peucetiosque... Messapiaque (XIV 513): “ver Ant. Lib. 31.1-2: „Licáon… teve três filhos, Iápige, Dauno e Peucécio. Eles montaram um exército e chegara na Itália pelo Adriático. Depois de expulsar os Áusones que lá viviam, povoaram a região. A maioria do exército deles era de Ilírios liderados por Messape (sic). Eles dividiram o exército e a terra em três e os nomearam, segundo cada grupo, Dáunios, Peucécios e Messápios‟. Messapo também era uma figura proeminente no relato de Virgílio sobre o exército Latino” – “see Ant. Lib. 31.1-2: „Lycaon... had three sons, Iapyx, Daunius and Pecetius. These assembled an army and arrived in Italy by the Adriatic. After expelling the Ausonians who lived there, they settled there themselves. Most of their army were Illyrian colonists led by Messapius [sic]. They divided their army and their land in three and called them after of each group, Daunians, Peucetians and ‟. Messapeus was also a prominent figure in Virgil‟s account of the Latin army (Aen. 7.691 and Fordyce)”. (Hill, 2000, p. 189, nota ao v. 513). 347 Apulus (XIV 517): da Apúlia (província do sudeste da Itália); Apúlio. (OLD, verbete “Apulus”, sentido único).

177 Terruit et primo subita formidine mouit; Mox, ubi mens rediit et contempsere sequentem, Ad numerum motis pedibus duxere choreas. 520 Improbat has pastor saltuque imitatus agresti Addidit obscenis conuicia rustica dicitis; Nec prius os tacuit, quam guttura condidit arbor; Arbor enim est sucoque licet cognoscere mores; Quippe notam linguae bacis oleaster amaris 525 Exhibet; asperitas uerborum cessit in illas. Hinc ubi legati rediere, negata ferentes Arma Aetola sibi, Rutuli sine uiribus illis Bella instructa gerunt; multumque ab utraque cruoris Parte datur; fert ecce auidas in pinea Turnus 530 Texta faces ignesque timent, quibus unda pepercit. Iamque picem et ceras alimentaque cetera flammae Mulciber urebat perque altum ad carbasa malum Ibat et incuruae fumabant transtra carinae, Cum, memor has pinus Idaeo uertice caesas, 535

178 Aterrorizou-as: primeiro ele provocou-as com susto repentinos, Logo depois, quando a sensatez voltou, e elas desdenharam seu perseguidor, Dançavam348 em compasso ritmado com batidas dos pés.349 520 O pastor zombou delas e, imitando-as com uma dança agreste, Juntou gritos rústicos em palavras obscenas. E não se calou até uma árvore cobrir sua garganta; Ele é, pois, uma árvore, e no seu sumo, pode-se reconhecer sua natureza. De fato, a oliveira350 denota a marca de sua língua nas azeitonas 525 Amargas: nelas, encerra-se a agrura de suas palavras. Quando os emissários voltaram daqui, anunciando que351 As armas da Etólia haviam sido negadas a eles, os rútulos, sem tais recursos, Fizeram a guerra já armada,352 e muito sangue foi derramado Dos dois lados. Eis, Turno está trazendo353 as tochas ávidas pela 530 Madeira do navio, e temem as chamas aqueles que a onda poupou. E agora, o Mulcíbero354 passou a incendiar pez e resinas E outros combustíveis355 para o fogo; e, pelos altos mastros, ia até As velas, e as bancadas356 do curvo navio fumegavam. Ao mesmo tempo, lembrando-se dos pinhos cortados do cume do monte Ida, 535

348 Choreas (XIV 520): “Uma dança circular” – “A round dance” (OLD, verbete “chorea”, sentido único). 349 Seguimos a tradução de G. Lafaye (Belles Lettres): “... leurs pieds s‟agitaient en mesure.” 350 Oleaster (XIV 525): “oliveira Silvestre, zambujeiro” – “the wild olive, oleaster”. (OLD, verbete “oleaster”, sentido único). 351 Hill ressalta um paralelo para a passagem compreendida entre os versos Met. XIV 527-65: “Turno incediou os navios troianos que foram transformados em ninfas. Uma recriação da narrativa de Virgílio em En. IX 69-122 com alusões a X 230-5” – “Turnus sets fire to the Trojan ships which are turned into nymphs. A retelling of Virgil‟s account at En. IX 69-122 with allusions to X 230-5” (Hill, 2000, p. 189, nota aos v. 527-65). 352 Bella instructa gerunt (XIV 529): para o adjetivo instructa, a tradução procura abarcar os sentidos “construída” e “munida, equipada”, pertinentes a tal vocábulo. O advérbio foi acrescentado na tentativa de conservar a ideia de anterioridade, presente no texto original. 353 Fert ecce (XIV 530): O verbo foi vertido aqui para uma locução (com gerúndio) a fim de corroborar a referência dêitica (ecce). 354 Mulciber (XIV 532): Mulcíbero, um dos nomes de Vulcano (Virg. En. VIII 724), conforme aponta Hill (2000, p. 189, nota ao v. 532). 355 Alimentaque cetera flammae (XIV 532): a nossa versão para esse verso apoia-se na tradução de Hill (2000, p. 73): “...and the other fuels for flame”. 356 Transtra (XIV 534): bancos transversais, onde ficavam os remadores nas embarcações. (OLD, verbete “transtrum”, sentido único)

179 Sancta deum genetrix tinnitibus aera pulsi Aeris et inflati compleuit murmure buxi Perque leues domitis inuecta leonibus auras: “Irrita sacrilega iactas incendia dextra, Turne;” ait “eripiam, nec me patiente cremabit 540 Ignis edax nemorum partes et membra meorum.” Intonuit dicente dea tonitrumque secuti Cum saliente graues ceciderunt grandine nimbi Aeraque et tumidum subitis concursibus aequor Astraei turbant et eunt in proelia fratres. 545 E quibus alma parens unius uiribus usa, Stuppea praerupit Phrygiae retinacula puppis Fertque rates pronas medioque sub aequore mergit. Robore mollito lignoque in corpora uerso, In capitum facies puppes mutantur aduncae, 550 In digitos abeunt et crura natantia remi, Quodque prius fuerat, latus est mediisque carina

180 A sagrada mãe dos deuses357 encheu o ar com o tinido do Bronze vibrante,358 e, com o ruído do seu sopro na madeira359, É levada através das leves brisas pelos leões domados,360 dizendo: “Vãs são as chamas que tu lanças com a ímpia mão direta, Turno; eu te impedirei, e não admito que o fogo voraz 540 consuma partes e membros das minhas florestas”. Trovejou, ao falar a deusa, e, seguindo o trovão, Caíram fortes chuvas de granizo pululante,361 Os irmãos Astreios362 agitam o ar e o mar revolto Com os choques súbitos, e vão para a batalha. 545 Servindo-se da força de um deles, a venerável mãe Corta as cordas de estopa da frota frígia, E arrasta agora as embarcações, inclinando-as, e submerge-as no meio do mar. Tendo a madeira sido amolecida e o navio363 tornado corpo, As popas inclinadas tomam a forma de cabeças, 550 Os remos transformam-se em dedos e pernas flutuantes E o que primeiro tinha sido, é ainda364 o flanco365 e o casco,

357 Sancta deum genetrix (XIV 536): i.e., Cibele. Ver nota supra ao verso 696, no episódio de Adônis e Vênus (livro X). 358 Sobre a música associada a Cibele, ver Catulo (64 261-4). (Hill, 2000, p. 190, nota ao v. 537). 359 Buxi (XIV 537): “1. A box-tree; 2. Boxwood.” (OLD, verbete “buxus”); sua tradução em Português seria, segundo Saraiva, “buxo (planta ou madeira)”. 360 Ver comentário de Bailey a Lucr. II 601 – suas notas incluem descrições de duas moedas que mostram Cibele levada por leões (Hill, 2000, p. 190, nota ao v. 538). Sobre os leões domados, cf. ainda o episódio de Adônis, que acima traduzimos. 361 Hill ressalta a presença de tal tempestade em Virgílio (En. V 693-6). O incêndio dos navios troianos foi causado sob a maligna influência de Juno (Hill, 2000, p. 190, nota aos v. 542-5). 362 Astraei... fratres (XIV 545): os ventos. Ver Hesíodo, Teog. 378-80. (Hill, 2000, p. 190, nota ao v. 545). 363 Robore... lignoque (XIV 529): o primeiro substantivo refere-se à arvore de carvalho ou ao tronco dessa ou de outra árvore (OLD, verbete “robur”, sentidos 1 e 2, respectivamente) e também pode denotar firmeza, solidez de um material (OLD, sentido 3, verbete citado), contrapondo-se ao adjetivo mollito que o sucede; já ligno refere-se, de maneira mais geral, à madeira como um material (OLD, verbete “lignum” , sentido 1). Optamos por verter o segundo substantivo, metonimicamente, por “navio”, de modo a manter a diferenciação observada no original latino entre os dois termos. Hill (2000, p. 75) também opta por manter dois termos distintos em sua versão (“When the wood had softened and the timbres had turned into flesh”), mas F. J. Miller (edição da Loeb) usa um único termo como sujeito para ambos os verbos da frase: “Straightway the wood softened and turned to flesh”.

181 Subdita nauigiis spinae mutatur in usum, Lina comae molles, antemnae bracchia fiunt; Caerulus, ut fuerat, color est; quasque ante timebant, 555 Illas uirgineis exercent lusibus undas Naides aequoreae; durisque in montibus ortae Molle fretum celebrant, nec eas sua tangit origo; Non tamen oblitae, quam multa pericula saeuo Pertulerint pelago, iactatis saepe carinis 560 Supposuere manus, nisi siqua uehabat Achiuos. Cladis adhuc Phrygiae memores, odere Pelasgos Neritiaeque ratis uiderunt fragmina laetis Vultibus et laetis uidere rigescere puppem Vultibus Alcinoi saxumque increscere ligno. 565 Spes erat, nymphas animata classe marinas, Posse metu monstri Rutulum desistere bello; Perstat habetque deos pars utraque, quodque deorum est Instar, habent animos; nec iam dotalia regna Nec sceptrum soceri, nec te, Lauinia uirgo, 570 Sed uicisse petunt deponendique pudore Bella gerunt; tandemque Venus uictricia nati Arma uidet; Turnusque cadit, cadit Ardea, Turno

364 Apesar de não constar do original latino, pareceu-nos conveniente, para a fluência e a coesão de nossa versão, acrescentar aqui esse advérbio, de forma a reforçar a sucessão dos acontecimentos, que no texto latino garante-se apenas com o verbo em tempos diversos (fuerat e est, XIV 552) e com o advérbio prius (XIV 552). 365 Há uma discrepância entre as edições consultadas no texto original, para este verso 552: na edição de Hill (2000, p. 75), há a repetição do termo latus: quodque latus fuerat latus est, mas tanto a edição da Loeb quanto a da Belles Lettres trazem a seguinte sentença: quodque prius fuerat, latus est. Optamos, conforme já mencionado, seguir a edição com a tradução de G. Lafaye.

182 Sotoposto ao centro das naus, foi transformado para servir de espinha.366 As velas tornam-se os cabelos; os mastros, braços Azul, como tinha sido, é ainda agora sua cor. E quanto às ondas 555 Que antes temiam, as perseguem em jogos virginais Essas Nereidas do mar; nascidas nos montes inóspitos, Frequentam o mar plácido, e a origem delas não as comove.367 Mas, não esquecendo os muitos perigos que suportaram no mar atroz, quando os cascos eram frequentemente lançados, 560 Elas seguravam-nos com as mãos – exceto aquele que transportava os aqueus. Elas se lembram ainda das ruínas da Frígia e do ódio aos pelasgos368 E viram os pedaços da embarcação Nerícia369 com ledos Semblantes e com ledos semblantes viram enrijecer-se o navio de Alcino e crescer um rochedo em sua madeira. 565 Havia esperança de que, tendo a frota passado a seres animados, ninfas do mar, O rútulo pudesse, com medo do monstruoso, desistir da guerra. Ele persiste: e ambas as partes têm seus deuses, e, o que é semelhante aos Deuses, eles têm coragem. E já não querem a realeza dada como dote, Nem o trono do sogro, e nem a ti, jovem Lavínia370 570 Mas vencer, e por terem pudor em renunciar Fazem a guerra. E, por fim, Vênus vê vitoriosas as armas De seu filho; Turno é vencido; é vencida371 Árdea;372

366 Nossa versão segue a de Hill: “... was altered to serve as spine” (2000, p. 75). 367 Segundo Hill (1999, p. 190), essa metamorfose que aqui é narrada (XIV 546-58) aparece em Virgílio (En. IX 117-22) em uma versão mais curta. O estudioso também nos informa a respeito da constatação de Hardie (Virgilio, En. IX 77-122), que pensa que essa narrativa é uma invenção de Virgílio. 368 Pelasgos (XIV 562): nome dado a vários heróis, epônimo do povo de Pelasgo. Supõe-se que esse povo mítico teria vivido no Peloponeso ou na Tessália; como consequência, diversos heróis dessa região foram assim denominados (P. Grimal, 2000, verbete “Pelasgo”). 369 Trata-se da embarcação de Ulisses. O herói teria sido dado à luz no monte Nérito, na ilha de Ítaca, segundo uma das versões sobre o seu nascimento. O episódio de destruição da única embarcação que sobrara da frota de Ulisses dá-se na ilha de Trinácria: os marinheiros foram punidos por comerem os bois que pertenciam ao Sol e foram punidos com uma tempestade que assolou o navio, permanecendo vivo apenas Ulisses. Tal episódio é narrado na Odisseia, XII 403-46 (ver Hill, 2000, p. 190 e P. Grimal, 2000, verbete “Ulisses”). 370 Lauinia (XIV 570): Lavínia, filha do rei Latino (ver nota ao v. 451).

183 Sospite dicta potens; quem postquam barbarus ensis Abstulit et tepida patuerunt tecta fauilla, 575 Congerie e media tum primum cognita praepes Subuolat et cinere plausis euerberat alis; Et sonus et macies et pallor et omnia, captam Quae deceant urbem, nomen quoque mansit in illa Vrbis et ipsa suis deplangitur Ardea pennis. 580 Iamque deos omnes ipsamque Aenia uirtus Iunonem ueteres finire coegerat iras, Cum, bene fundatis opibus crescentis Iulli, Tempestiuus erat caelo Cythereius heros. Ambieratque Venus superos colloque parentis 585 Circumfusa sui: “Numquam mihi” dixerat “ullo Tempore dure pater, nunc sis mitissimus, opto, Aeneaeque meo, qui te de sanguine nostro Fecit auum, quamuis paruum des, optime, numen, Dummodo des aliquod; satis est inamabile regnum 590

371 Turnusque cadit, cadit Ardea (XIV 573): tentamos reproduzir, em nossa versão, não só a repetição de termos que ocorre no texto original, como também a posição desses termos, a fim de demonstrar a concomitância com que ambos são derrubados na guerra. As orações assindéticas desses versos (XIV 573-5) revelam uma sucessão de acontecimentos na narrativa. 372 Nos versos 566-80, Ovídio narra, de maneira concisa, um excerto da Eneida em que Turno morre na cidade de Árdea (VII 412), a principal cidade dos Rútulos, localizada no Lácio. Hill aponta a etimologia da palavra Ardea: o termo nomeia uma espécie de garça, que aparece na metamorfose narrada aqui por Ovídio (das cinzas de tal cidade, nasce essa ave – v. 576) e ainda a etimologia que Virgílio parece favorecer em sua épica, relacionada à palavra arduus. (cf. Hill, 2000, p. 191 e OLD, verbete “Ardea”, sentido único).

184 Com Turno incólume, era tida como poderosa. Depois que a espada estrangeira Destruiu-a e nas mornas cinzas esconderam-se os telhados 575 Então, do meio desse amontoado373, uma ave, pela primeira vez conhecida, Eleva-se voando e, batendo as asas, açoita as cinzas. E o ruído e a penúria e a palidez e todas as coisas que cabem A uma cidade aprisionada, além do nome da cidade, perdurou Nela: a própria Árdea é lamentada em suas asas. 580 E já a coragem de Eneias impelira todos os deuses E a própria Juno a findar antigos ressentimentos Quando, com os recursos bem estabelecidos do jovem Iulo374, que amadurecia,375 O herói Citereio já estava pronto para o céu: Vênus rogara aos deuses e, lançando-se376 ao pescoço de seu pai,377 585 Dissera: “Ó pai, nunca para mim, em tempo algum, Fostes severo; que agora tu sejas o mais afável, é o que desejo, E, por meu Eneias, homem que, sendo minha prole, Te tornou um avô, concedas a ele o quanto aprouver de uma ligeira divindade, Ó grandioso, contanto que concedas alguma. Já basta ele ter avistado 590

373 Congerie (XIV 576): pareceu-nos conveniente essa versão para o termo, que denota “pilha, monte” ou “uma coleção, um acúmulo (de eventos, palavras, etc.)” (OLD, verbete “congeries”, sentido 2 e 3, respectivamente). Percebe-se, pelo contexto, que se trata do amontoado de cinzas ou de destruição, de uma maneira geral, deixada pelo fogo; para ressaltar a que se refere esse amontoado, utilizamos o pronome anafórico “desse”, conforme a versão de Hill: “from the middle of that heap”. Indicamos também as outras versões consultadas: “du milieu de ses ruines” (G. Lafaye); “from the confused mass” (F. J. Miller). 374 Iulus (XIV 583): Iulo é outro nome para Ascânio, filho de Eneias, onde a família dos Iulii (da qual pertenciam César e Augusto) busca a origem do seu nome. Iulo teria fundado a cidade de Alba, no Lácio. (P. Grimal, 2000, verbete “Iulo”). 375 Crescentis Iuli (XIV 583): acrescentamos o termo “jovem” para nossa versão, as traduções consultadas vertem da seguinte forma: “budding Iülus” (F. J. Miller); “growing Iulus” (Hill) e “Iule grandissant” (G. Lafaye). 376 Hill (2000, p. 191) aponta a ironia presente no termo ambierat (XIV 585): para o estudioso, trata-se de um termo técnico em latim que indica uma atividade política tida como corrupta, um tipo de sondagem realizada com a intenção de se obter algo: “ambire, „circular‟ é o termo técnico latino para a sondagem política (OLD, s.v.2 e 3), uma atividade normalmente considerada corrupta; Ovídio não pode resistir ao efeito humorístico da introduzir aqui esse anacronismo deslocado e ligeiramente de má-reputação” – “ambire, „to go around‟ is the Latin technical term for political canvassing (OLD, s.v.2 e 3), an activity normally thought of as corupt; Ovid cannot resist the humorous effect of introducing this incongruous, and slightly disreputable, anacrhonism here”. 377 Coloque parentis (XIV 585): pescoço de Júpiter, o pai de Vênus.

185 Aspexisse semel, Stygios semel isse per amnes.” Assensere dei; nec coniunx regia uultus Immotos tenuit placatoque annuit ore. Tum pater: “Estis” ait “caelesti numine digni, Quaeque petis, pro quoque petis; cape, nata, quod optas.” 595 Fatus erat; gaudet gratesque agit illa parenti; Perque leues auras iunctis inuecta columbis Litus adit Laurens, ubi tectus harundine serpit In freta flumineis uicina Numicius undis. Hunc iubet Aeneae quaecumque obnoxia morti 600 Abluere et tacito deferre sub aequora cursu; Corniger exsequitur Veneris mandata, suisque, Quicquid in Aenea fuerat mortale, repurgat Et respergit aquis; pars optima restitit illi. Lustratum genetrix diuino corpus odore 605 Vnxit et ambrosia cum dulci nectare mixta Contigit os fecitque deum; quem turba Quirini Nuncupat Indigetem temploque arisque recepit.

186 O medonho império uma vez, ter ido lá uma vez através dos rios estígios”.378 Os deuses concordaram, e nem sua esposa soberana379 Guardava em si um semblante inabalável e, com um ar benévolo, consentiu. Então, fala o pai: “Vós sois dignos de um obséquio divino, tanto tu, que suplicas, Quanto aquele por quem suplicas; toma, filha, aquilo que desejas”. 595 E assim foi dito. Ela se alegra e dá graças ao pai, E, através de ligeiras brisas, puxadas pelas pombas atreladas380 Vem para o litoral de Laurento, onde, encoberto pela cana, escoa O rio Numício381, com suas águas fluviais, no mar vizinho. Ela ordena que ele lave, de Eneias, tudo aquilo que o sujeite à morte 600 E leve sob as águas em seu silencioso curso. O cornígeno382 cumpre as ordens de Vênus Expurga tudo aquilo que fora mortal em Eneias Molhando-o com suas águas; a parte perfeita nele permaneceu. A mãe unge o corpo purificado com olor 605 Divino e a ambrosia383, misturada a um néctar suave, Tocou a boca dele, tornando-o um deus, que a multidão de Quirino384 Denomina uma divindade pátria385 e com templos e aras o recebeu.

378 Ovídio faz uma espécie de correção à previsão de Sibila: “Mas se o seu desejo é tão grande, se você tem tanta vontade em navegar duas vezes sobre as águas do Estígio, e duas vezes para ver o negro tártaro.” – “But if your desire is so great, if you have so much longing to sail twice upon the pools of Stix, and twice to see black tartarus”. (Virgílio, En. VI 133-4, tradução de West, in: Hill, 2000, p. 191). 379 Coniunx regia (XIV 592): a “esposa rainha” mencionada por Ovídio nesse verso é Juno. 380 Iunctis ... columbis (XIV 597): um casal de pombas, animais favoritos da deusa Vênus, puxavam seu carro (P. Grimal, op.cit., verbete “Afrodite”). 381 Numicius (XIV 599): um rio do Lácio. (cf. Hill, 2000, p. 192). 382 Corniger (XIV 602): os deuses rios eram representados com chifres (Hill, 2000, p. 192). 383 Ambrosia e néctar são a comida e a bebida dos deuses. (Hill, 2000, p. 192). 384 Quirini (XIV 607): comumente identificado com Rômulo ou o nome de uma das tribos romanas (OLD, verbete “Quirinus”, sentidos 1 e 2). 385 Indigitem (XIV 608): “um título obscuro aplicado a deuses locais em oposição a deuses estrangeiros (...); Iuppiter ~es (também ~es somente), um título através do qual Eneias era cultuado. b (como um título para o Sol).” – “an obscure title applied to local gods as opp. to foreign gods (...); Iuppiter ~es (also ~es alone), a title under which Aeneas was worshipped. b (as a title of the Sun).” (OLD, verbete “indiges”, sentido único).

187 188 6 Referências Bibliográficas

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