Revista Estudos Feministas ISSN: 0104-026X [email protected] Universidade Federal de Santa Catarina Brasil

Stival Pereira e Leal Lozano, Marie-Anne Reseña de "O momento de Orfeu e Eurídice no rock brasileiro: uma reflexão sobre Loki, de Paulo Henrique Fontenelle" de Arnaldo Baptista Revista Estudos Feministas, vol. 20, núm. 2, mayo-agosto, 2012, pp. 583-592 Universidade Federal de Santa Catarina Santa Catarina, Brasil

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O momento de Orfeu e Eurídice no rock brasileiro: uma reflexão sobre Loki, de Paulo Henrique Fontenelle

Loki: Arnaldo Baptista. permitem a Orfeu realizar esse feito se, no caminho de volta, ele não olhar para trás, para a FONTENELLE, Paulo Henrique. esposa. Orfeu desce ao centro mais tenebroso da noite, mas só pode fazê-lo emergir à tona Brasil: Canal Brasil, 2008. virando-lhe as costas.1 Dessa forma, segundo a análise do crítico francês, o mito grego reconheceria que não se pode fazer uma obra (de arte) sem uma experiência da desmesura (da noite, das trevas, Loki é um documentário produzido pelo de um outro mundo, daquilo que quando se Canal Brasil sobre o músico e compositor Arnaldo mira se perde). Tal experiência seria necessária Dias Baptista, nascido em São Paulo e que junto à obra, que não pode apresentá-la, no entanto, com os seus irmãos Sérgio e criaram o senão dissimulando-a. No momento em que, conjunto brasileiro de rock , na durante o caminho de volta, Orfeu fraqueja, década de 1960. O filme resgata a carreira de sente a necessidade de conferir se a esposa o Arnaldo desde esse período inicial até o acompanha, ele olha para ela e Eurídice se momento recente, em que, depois de cair no perde na sombra. Para Blanchot, esse esquecimento e ser de certa forma movimento não é acidental, mas inevitável, marginalizado, seu trabalho vem sendo porque não olhar para a esposa, não conferir reconhecido principalmente no exterior como se ela o seguia, seria também uma forma de um dos mais originais e inovadores no cenário perdê-la. Não há obra sem corte, perda e do rock mundial. O documentário de Fontenelle dissimulação, e o destino de Orfeu implica trair vale não apenas pelo resgate em âmbito a obra, trair Eurídice, trair a noite, no mesmo nacional desse reconhecimento mais amplo, movimento em que ele as salva ou tenta salvar. mas sobretudo pelo arranjo inteligente e sensível A traição e a dissimulação acontecem de depoimentos do próprio Arnaldo, de colegas porque, como diz Vinicius de Moraes na sua valsa de trabalho, amigos e críticos, dos quais nos (de Eurídice), a partida de Orfeu é uma “partida valemos para a escrita deste pequeno ensaio. sem fim”. Ela abriga uma saudade que é maior Depois da morte de Eurídice, Orfeu desce que a própria morte. Para que se possa ao mundo dos mortos, aos infernos, a fim de apresentar essa saudade em uma obra, é recuperar a amada. É com sua lira que o poeta- preciso inevitavelmente romper com ela. Como músico-mago comove Hades e Perséfone. Numa o amor, a canção, mesmo se eterna, tem uma passagem famosa de L’espace littéraire, Maurice duração finita. E é esse o sentido da pergunta Blanchot caracteriza essa passagem do mito de Arnaldo Baptista à coreógrafa Regina dizendo que a arte é a potência que abre a Miranda: “Como é que você aguenta?”. A noite. Através da arte, a noite se torna em boa pergunta nos espanta, e, seguindo o impulso medida íntima e acolhedora, mas num gesto mais imediato de todos nós que não somos paradoxal. Isso porque a tarefa de Orfeu não Orfeu, que não somos poetas, Regina responde consiste simplesmente em descer às profundezas. com outra pergunta: “Aguento o quê?”. Seu objetivo é resgatar a amada, trazê-la de volta Conforme no filme explica a coreógrafa, ao dia. E Hades e Perséfone, que zelam pela tal conversa teria originalmente se passado num permanência dos mortos debaixo da terra, só

Estudos Feministas, Florianópolis, 20(2): 256, maio-agosto/2012 583 mirante ao lado do teatro Ruth Escobar, em São alcançar tal originalidade que muitos músicos Paulo. Depois da resposta espantada de Regina, consideram ser mais significante que a das duas Arnaldo teria então aberto muito os braços e outras bandas referidas. O mínimo que se pode dito: “porque isso tudo... eu me sinto comple- dizer é que eles criaram algo que até então tamente esburacado, por essa experiência, é não existia no cenário do rock brasileiro. Nas como se as pessoas tivessem dançando e pas- palavras de Tárik de Souza, sando por todos os meus poros”. É a experiência [...] até então, era um rock primário que era da desmesura, da partida sem fim e da saudade feito no Brasil. Além de poucos acordes, era maior que a morte. A maneira com que a um rock muitas vezes copiado... Com Os bailarina teve de preencher todos esses buracos mutantes, o rock ganha uma identidade foi abraçando o músico. Diz ela: “a gente ficou brasileira... Isso não é pouca coisa, você pegar muito tempo abraçado e chorando... foi um uma música estrangeira e dar uma identidade momento de fundição”. A duração desse brasileira, realmente precisa ter um estofo momento, de um momento que é eterno, tem musical... capacidade de se projetar na de ter um fim. No caso de Arnaldo, o fim, a música... Foi isso que deu a autenticidade que traição, foi quase que literal. Uma tentativa de Os Mutantes têm. suicídio. Sabe-se que essa capacidade de se Mas venceu a força da dissimulação, e projetar na música, de se expressar na obra, foi Arnaldo acorda nos braços de uma nova Eurídice. algo que Arnaldo aprendeu a fazer desde muito É assim que ele resume o acontecimento: “joguei cedo, no contato com a mãe pianista. Está aí a o jogo mais alto, e parece um milagre que, de raiz de uma relação com a música que, como repente, eu acordei na cama da minha menina”. diz Lobão, faz dessa arte “uma maneira de viver Por minha menina ele se refere à Lucinha, uma realmente muito além de ser um ganha-pão”. A fã, que a partir daí passa a preencher por um música é poder de transformação. Ela é Orfeu tempo a função de mulher amada na vida do encantando os animais selvagens. É também “a poeta. Uma função certamente precária que fusão do homem com o artista, do artista com o ousa responder a um desafio infinito. “Amor que homem”. Nas palavras de Zélia Duncan, “Arnaldo não tem pra comparar... é muito mais que amor é a balada do louco”. Observar do mirante e de marido e mulher, um pouco parecido com sentir-se atravessado, em todos os poros, por amor de mãe, [mas também] uma sina” – declara pessoas que passam por nós e dançam. Uma Lucinha. Lucinha que é uma das faces dessa experiência difícil, senão impossível. Numa lucidez eterna Eurídice do poeta, que o poeta tenta insuspeita, Arnaldo confessa: “é tão difícil dizer all resgatar, ciente, entretanto, “da enorme you need is love... cada um de nós é totalmente diferença que existe entre o homem e a mulher” diferente”. (palavras de Arnaldo). Mas ele faz “a maior força possível” para Lucinha, Martha Mellinger, Rita Lee e a mãe alcançar essa totalidade que nunca nos é pianista, todas elas são faces diferentes de uma inteiramente dada, que possibilitaria acolher o totalidade nunca inteiramente presente: a Eurídice outro na sua diferença irredutível, resgatar, acolher de Orfeu. Muito consciente da importância dessa a noite mais infernal e tenebrosa. A resposta de diferença que ao mesmo tempo o instiga e o Rita Lee – ela que foi, no dizer do próprio Arnaldo, ilude, Arnaldo faz a seguinte observação: em todas o outro elemento-chave d’Os Mutantes – talvez as comparações que sempre se fizeram entre Os não pudesse ter sido outra. Como é que se pode Mutantes, os Beatles e os Rolling Stones, esqueceu- falar de uma ferida infinita? Jamais falando dela, se de um ponto importante. No caso dessas duas virando-lhe as costas, dissociando-a numa outras bandas, elas não tinham mulher entre os jornada de adeus (que não é outra coisa senão integrantes, não tinha o “lado circense”, aquilo uma forma muito justa de falar). A cantora que a Rita trazia em termos de “roupas, instrumentos também tinha uma pianista na família e teria malucos, um lado colorido”. Arnaldo, num passo estudado com ninguém menos que Madga ousado que talvez não pudesse deixar de ser um Tagliaferro.2 Seja como for, o aparente erro, trouxe a mulher para dentro do grupo. Aquela “escapismo” da roqueira brasileira, sua recusa com quem, na lembrança dos amigos, ele tinha de ser engajada, está longe de ser um índice de “uma relação de muito carinho, atávica, uma menoridade artística. É justamente aquilo que relação de irmão e irmã – o típico casal que não complementa Orfeu e sem o que Orfeu não é dá certo para casar”. nada. É a capacidade mais visceral de Isso explicaria talvez por que, no pouco dissimulação, de fantasia. Sem essa capacidade, tempo que durou, Os Mutantes conseguiram mal se pode aceitar o convite àquilo que os

584 Estudos Feministas, Florianópolis, 20(2): 583-592, maio-agosto/2012 ingleses chamam de exhilaration e os franceses 3 É o que está no âmago da experiência estética de um de ivresse,3 termos que também não deixam de Proust. Ver, por exemplo, o momento epifânico da entrada ser uma boa tradução para aquilo que em do narrador no Hotel dos Guermantes, em Marcel PROUST, português chamamos de saudade. Uma vez 1990, p. 173-174. aceito, só então o convite possibilitou um Referências momento, esse momento que não apenas BARTSCH, Henrique. Rita Lee mora ao lado. São passou, mas está sempre passando, de uma Paulo: Panda Books, 2006. forma que, concretamente onde está, nunca BLANCHOT, Maurice. L’espace littéraire. Paris: deixa de passar: o momento de Orfeu e Eurídice, Gallimard, 1955. no rock brasileiro. PROUST, Marcel. Le temps retrouvé. Malesherbes: Notas Gallimard, 1990. 1 Maurice BLANCHOT, 1955, p. 225. 2 Henrique BARTSCH, 2006, p. 22 e p. 36. Alessandro Zir Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Estudos Feministas, Florianópolis, 20(2): 583-592, maio-agosto/2012 585 Descortinando a homofobia

Homofobia: história e crítica de semelhança de outras formas de exclusão como a xenofobia, o racismo, o antissemitismo ou o um preconceito. sexismo. É nesse momento que Borrillo sublinha a BORRILLO, Daniel. complexidade do fenômeno e o descreve como invisível, cotidiano, compartilhado e que, ao Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010. mesmo tempo que transforma o homossexual 141 p. naquele com quem não se deve identificar e que não deve ter plenos direitos, gera também ônus aos heterossexuais ao aliená-los. Neste capítulo, Borrillo demonstra que a homofobia Originalmente editado em francês, o livro baliza, além das fronteiras sexuais, as de gênero, Homofobia: história e crítica de um fazendo com que todos os indivíduos não preconceito, de autoria de Daniel Borrillo, traz pertencentes à ordem clássica dos gêneros uma abordagem histórica, conceitual e crítica sejam vitimados pela violência homofóbica. O dessa forma de violência que, como demonstra autor amplia o conceito de homofobia ao a obra, é um fenômeno complexo e variado. problematizar que essa violência funda-se, Organizada em quatro capítulos, a versão especialmente, na rígida hierarquia que situa brasileira recebeu prefácio de Marco Aurélio outras formas de vivência da sexualidade em Máximo Prado, que pontuou a relevância da obra lugares inferiores ao destinado à para o contexto nacional e a classificou como heterossexualidade. um clássico para o campo. Logo na introdução, O segundo capítulo apresenta as origens o autor apresenta as principais ideias a serem da homofobia e discute a transição da relativa discutidas e problematiza o conceito de tolerância, vivenciada na cultura pagã, para a homofobia, esclarecendo que muitos dos olhares hostilidade, exercida pelo cristianismo, às sobre esse tipo de violência são limitados e relações homossexuais. O autor, oportunamente, passíveis de aprofundamento. Borrillo explica que pontua que a Igreja Católica contemporânea as origens da violência homofóbica estão fixadas apresenta um tom mais sutil ao acolher os junto às da civilização judaico-cristã e que, por homossexuais para curá-los ou, minimamente, isso, as citações históricas e referências teóricas mantê-los abstinentes. No terceiro capítulo, a contidas na obra são incompletas e não visam homofobia é descrita como uma forma de esgotar a discussão em torno do tema. violência que tem cumplicidade jurídica, No primeiro capítulo, a violência científica, cultural e institucional. Borrillo homofóbica é didaticamente classificada e problematiza e exemplifica as doutrinas que conceituada, definindo-se homofobia como veiculam a ideologia heterossexista, mostrando uma forma de inferiorizar, desumanizar, diferenciar a mudança de papel do homossexual: de e distanciar o indivíduo homossexual à pecador para perverso e ameaçador da ordem

Estudos Feministas, Florianópolis, 20(2): 583-592, maio-agosto/2012 585 sanitária. O último capítulo dedica-se a discutir as ainda, na necessidade de manifestação pública causas da homofobia, tratando-a como um da homossexualidade (coming-out) por uma fenômeno cuja compreensão demanda o questão afirmativa ou pela justificação social e entendimento de que essas práticas de inscrição em uma identidade sexual. preconceito não são somente individuais e Na conclusão, o autor dedica-se a explorar tampouco meramente coletivas, e sim os recursos para o enfrentamento da homofobia. socialmente construídas, servindo para nutrir um Afirma que se deve dar maior importância à ação sistema de exclusão e dominação. O autor trata pedagógica, pois a repressão isolada não é de questões relativas à personalidade homo- capaz de dirimir a violência homofóbica. Borrillo, fóbica e diferencia a definição de homofobia por fim, problematiza a criação de legislação ao aprofundá-la e demonstrar que, ainda que a para reprimir a homofobia e a pretensão de rejeição irracional aos homossexuais configure- construção de uma identidade gay, lembrando se como um importante componente da a leitora de que a ideia de constituição de uma homofobia, considerar apenas esse aspecto é “personalidade homossexual” é ilusória e atende reduzir o significado desse fenômeno plural. ao fim de reprimir. A obra contém muitos Borrillo classifica nossa sociedade como elementos do contexto histórico e social francês, androcêntrica e afirma que, em grupos marcados porém, mesmo que se dedique a analisar o pela dominação masculina, a homofobia fenômeno nessa sociedade, não se restringe a organiza a vigilância de gênero. Para o autor, isso. A homofobia não se limita à realidade existe uma lógica binária de construção da francesa, mas, ao contrário, alcança toda identidade sexual em que a mulher está oposta sociedade que se organize em torno da ao homem, assim como o homossexual está ao heterossexualidade como natural aos sujeitos e heterossexual. A identidade sexual masculina é, que, portanto, marginalize outras formas de então, construída de maneira a negar o feminino vivência da sexualidade. e rejeitar a homossexualidade. O autor afirma Partindo do entendimento de que a que a homofobia é um elemento constitutivo da homossexualidade representa uma manifes- identidade masculina e que sexismo e homofobia tação do pluralismo sexual e é tão legítima quanto são faces de um mesmo fenômeno social: “A a heterossexualidade, o autor faz com que a homofobia – e, em particular, a masculina – leitora repense a importância da sexualidade desempenha a função de ‘policiamento da como fator de definição da identidade de um sexualidade’ ao reprimir qualquer indivíduo. Assim, Borrillo afina-se à Judith Butler1 na comportamento, gesto ou desejo que transborde medida em que indica que classificar e as fronteiras impermeáveis dos sexos” (p. 90). conceituar são ações totalitárias e reducionistas. É apresentado neste capítulo o fantasma da Enquanto Butler conduz o entendimento de que desintegração psíquica, social e cultural, que pensar a existência de gêneros significa aceitar consiste no temor do fim da continuidade normas culturais regentes da interpretação dos genealógica e que, segundo o autor, leva ao corpos, Borrillo desconstrói a ideia de importância incentivo à heterossexualidade, ao fortalecimento da sexualidade para definir um indivíduo e adverte da diferença entre os sexos e, por consequência, que a violência homofóbica não depende de à estigmatização da homossexualidade. O autor padrões de sexualidade para se expressar: “A aponta esse temor como o condutor do homofobia manifesta sua hostilidade não só a entendimento de que os homossexuais estariam gays e lésbicas, mas também a qualquer indivduo arriscando a sobrevivência da espécie e afirma que não se adapte aos papéis, supostamente, que não se pode pensar essa possibilidade com determinados pelo sexo biológico” (p. 88). seriedade, pontuando a existência de meios Esta é uma leitura capaz de provocar e, capazes de viabilizar a reprodução de forma minimamente, fazer a leitora problematizar alternativa ao coito heterossexual. Por fim, é convicções, podendo avaliar a possibilidade de discutido o processo de interiorização da ser manipulada pelo discurso de poder utilizado homofobia, que faz com que gays e lésbicas, para manter uma hierarquia das sexualidades inseridos em uma sociedade que considera a que classifica as não reprodutivas como inferiores heterossexualidade cultural e psicologicamente e antinaturais. O livro de Borrillo deve ficar situado superior, direcionem ódio a si mesmos. Borrillo entre os clássicos que foram capazes de afirma que a dominação heterossexista, a escassez problematizar a questão da heterossexualidade de referências culturais, o contexto de violência e como fator natural dos sujeitos. A leitura conduz a perda da autoestima podem resultar no o olhar sobre práticas e formas de preconceito isolamento e na angústia do homossexual ou, muito sutis e faz perceber quão ampla é essa

586 Estudos Feministas, Florianópolis, 20(2): 583-592, maio-agosto/2012 forma de violência que não somente afeta o Referências indivíduo, mas corrói as bases democráticas ao BUTLER, Judith P. Problemas de gênero: feminis- promover a desigualdade, engessar gêneros e mo e subversão da identidade. Tradução favorecer a hostilidade. de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Nota Brasileira, 2003. 236 p. 1 Judith BUTLER, 2003. Daniela Márcia Caixeta Costa Universidade de Brasília

Estudos Feministas, Florianópolis, 20(2): 583-592, maio-agosto/2012 587 A construção social do gênero

Psicologia do gênero: núcleo central da socialização do gênero é a socialização das diferenças nas expressões psicobiografia, sociocultura e emocionais” (p. 127) (como apego, medo, raiva, transformações. culpa), que mantêm a dicotomia dos papéis de gênero e das relações de poder. Além disso, FÁVERO, Maria Helena. Fávero faz uma extensa revisão da literatura nacional e internacional, com um panorama Curitiba: UFPR, 2010. crítico sobre os temas atuais mais marcantes na área de pesquisa da psicologia do gênero. O livro é dividido em três partes: a primeira (Capítulos 1 e 2) fundamenta a construção histó- Maria Helena Fávero, professora do Instituto rica da dicotomia feminino versus masculino; a de Psicologia da Universidade de Brasília, no livro segunda (Capítulos 3 e 4) identifica práticas Psicologia do gênero: psicobiografia, pessoais e sociais consolidadas relativas ao sociocultura e transformações, aponta a gênero; e a terceira (Capítulos 5 e 6) aponta a necessidade de se ultrapassarem os limites do assimetria do gênero estampada no discurso senso comum para explicar a diferença entre de homens e mulheres. os gêneros. A autora repudia a concepção No Capítulo 1, a autora faz uso do conceito simplista que naturaliza (para justificar) as práticas de mediação semiótica para defender sua tese gendradas (como nas relações hierarquizadas, de que as relações de gênero são construídas. nas relações interpessoais e na sexualidade). É Em nossa sociocultura, a experiência do feminino a chamada “naturalização” ou “biologização” e do masculino faz referência a significados de questões que são socializadas e construídas. particulares, representados nas brincadeiras e nos Fávero aponta que a tomada de consciência brinquedos infantis, na moda, nas telenovelas, do mundo dos significados, que fundamenta dentre muitos exemplos. Não pouco frequente, determinadas práticas sociais relativas ao o discurso da ciência, incluindo o da Psicologia, gênero, é essencial para a promoção de também é usado (ou mal-usado) para legitimar mudanças. Ela rejeita categoricamente a ideia e dar credibilidade a disparates do que é “natural” determinista da impossibilidade de transforma- do homem (ex.: competição, força, intelecto) ção de atitudes pessoais e interpessoais nesse versus o “natural” da mulher (ex.: fragilidade, plano. Se convidado a refletir e a questionar delicadeza). Fávero ressalta, então, a importâcia armadilhas conceituais e epistemológicas, o do conceito de mediação semiótica no desen- homem/mulher é capaz de se desprender de volvimento e no entendimento desses significados padrões de comportamento “naturalizados”, ou estabelecidos e “naturalizados”. Ela questiona a seja, é capaz de escapar de círculos viciosos dualidade feminino versus masculino, e defende de determinadas práticas sociais consolidadas. a premissa de que esse dualismo é artificial e A autora defende que o ponto central da construído, e, portanto, pode ser desconstruído construção da subjetividade e da identidade e reconstruído em uma nova forma, tanto do dos gêneros reside na emoção, na maneira ponto de vista pessoal quanto institucional. como essa é entendida e atribuída a significados Partindo da dualidade acima descrita, o ditos “femininos” ou “masculinos”, ou seja, “o Capítulo 2 procura responder como a catego-

Estudos Feministas, Florianópolis, 20(2): 583-592, maio-agosto/2012 587 rização do que é feminino e do que é masculino em práticas de gênero nem sempre evidentes foi criada, perdurou ao longo do tempo e que ou intencionais, como no cuidado com a saúde, consequências trouxe. Fávero descreve como, nas escolhas profissionais, no contexto de a partir do paradigma do patriarcado, se deu a trabalho e nas atividades domésticas. “naturalização” daquilo que era tido como No Capítulo 4, o mais longo e, provavel- “típico” feminino ou masculino e ressalta o mente, a espinha dorsal do livro, a autora, a partir importante papel do movimento feminista no de minuciosa revisão bibliográfica nacional e questionamento desse paradigma e na internacional, analisa as principais questões na transformação de práticas sociais. A autora área de psicologia do gênero: iniciação sexual, aponta algumas concepções (ou “equívocos”) corpo, emoção, autoestima, envelhecimento e que permeiam o paradigma patriarcal, como, violência. Em termos gerais, a revisão da literatura por exemplo, a noção de “privilégio biológico” aponta que a) a pesquisa da sexualidade tem do homem, o parto e a maternidade como o sido historicamente marcada pela masculinidade “destino biológico” da mulher e o mito do amor e a heterossexualidade como linha de base materno. O ponto crucial do processo de normativa; b) as pesquisas de iniciação sexual no “biologização” de características ditas Brasil ainda mostram dados fortemente atrelados “femininas” ou “masculinas” é a dicotomia a papéis tradicionais de gênero no relato de emoção versus razão, que dá suporte à tese moças e rapazes; c) questões socioculturais de que homens são guiados pelo racional e relativas ao gênero conduzem a mulher ao mulheres pela emoção. Como em nossa cultura “projeto disciplinador da feminilidade”, a há maior valorização da razão em detrimento chamada “objetificação sexual” da mulher, em da emoção, essa suposta dicotomia se que seu valor fica reduzido à sua aparência ? configura até hoje como uma das justificativas explicando a busca exagerada pelo corpo ideal, da relação de poder do homem sobre a mulher. o aumento das taxas de transtornos alimentares Essa é apenas uma das facetas do patriarcado e os recordes de cirurgia plástica no Brasil; d) a contemporâneo que aparecem no século XXI, violência é gendrada (a prevalência dos sob nova forma e dissimulado discurso, nas diferentes tipos de abuso infantil varia conforme mídias, nas instituições educacionais, na o gênero da criança e há notável assimetria entre falocracia e na desigualdade de gêneros. as taxas de crimes cometidos por homens e por O Capítulo 3 foca-se fundamentalmente mulheres); e) quanto maior a desigualdade de nas emoções, trazendo evidências de que gênero, mais altas são as taxas de violência contra meninos e meninas são mais parecidos do que a mulher; f) a violência sexual contra a mulher diferentes no que diz respeito ao tema. Os estudos está intimamente atrelada ao conceito de apontam que a maneira como se expressam hipermasculinidade (força, dominação e desejo) os sentimentos depende de múltiplas variáveis e hipersexualização (em que socialmente a como idade, etnia, classe social, circunstância, atividade sexual é encorajada como parte gênero e crenças quanto à expressão de intrínseca e, portanto, inevitável da masculini- emoções. A grande questão parece ser a de dade); g) no entanto, pesquisas nos últimos anos que as mulheres, devido à forma com que são mostram que a violência por mulheres contra socializadas, expressam as emoções com maior homens tem maior prevalência do que o espe- frequência que os homens, mas não necessaria- rado, traindo o papel de vitimização que a mulher mente as experienciam mais. Mediante proces- frequentemente assume; e h) sexualidade, sos sociais evidentes (diante das expectativas autoimagem, relacionamentos, discriminação e de papéis sociais diferentes para cada um dos vitimização referente ao grupo de homossexuais, gêneros), o que se observa é que a expressão bissexuais e transexuais ainda são negligenciados de emoções distintas é aceitável para um em pesquisas sobre gênero. gênero, mas não para o outro (ex.: tristeza, medo Na terceira e última parte do livro, Fávero e vergonha para mulheres e raiva e competitivi- foca-se no discurso da cultura, identificando dade para homens). Dito de outra forma, aspectos gendrados subliminares nas narrativas meninos e meninas desenvolvem maneiras que permeiam relações na família (Capítulo 5), diferentes de expressão de suas emoções con- na sexualidade e na intimidade (Capítulo 6). forme o padrão de apoio social que recebem, A área de psicologia do gênero ainda é mas não por razões biológicas. Esse modelo de incipiente nos currículos de Psicologia e socialização baseado no ideal feminino (de Sociologia no Brasil. O livro de Maria Helena fragilidade e vulnerabilidade) e no ideal mas- Fávero, a partir de um notável diálogo entre a culino (de potência e força) traz prejuízos sociais literatura nacional e a internacional, faz uma

588 Estudos Feministas, Florianópolis, 20(2): 583-592, maio-agosto/2012 profunda reflexão sobre a origem do processo debates sociais relativos às mídias, à educação, de construção dos gêneros, sobre as práticas e à socialização e à violência têm como pano as narrativas com conteúdo gendrado (nem de fundo questões relativas ao gênero, o livro sempre evidente) e suas implicações no mundo traz uma importante contribuição à área de atual. A possibilidade de mudança é pautada psicologia do gênero no Brasil e implementa na tomada de consciência e pensamento crítico discussões nas mais diferentes disciplinas. quanto aos papéis de gênero ainda profunda- mente enraizados na nossa cultura: “se há cons- Lylla Cysne Frota D’Abreu trução é possível reconstruir” (p. 24). Como muitos Universidade de Potsdam, Alemanha

Estudos Feministas, Florianópolis, 20(2): 583-592, maio-agosto/2012 589 Um olhar de gênero e de geração nos universos rurais

Gênero e geração em contextos à organização de atividades de produção, de consumo, de comercialização, de sucessão e rurais. de direitos”. SCOTT, Parry; CORDEIRO, Rosineide; As organizadoras da coletânea optam então por dividi-la em três blocos temáticos, MENEZES, Marilda (Org.). agrupando assim artigos em cada uma dessas partes. A primeira parte foca a questão do “Poder, Florianópolis: Mulheres, 2010. política e negociações”, trazendo artigos que discutem a violência contra a mulher nesse contexto rural, assim como artigos que procuram demonstrar o impacto do Pronaf Mulher para as Fruto de diferentes trajetórias acadêmicas, agricultoras e a importância das políticas a coletânea Gênero e geração em contextos discutidas no âmbito do Mercosul pensando as rurais discute temas como gênero e geração mulheres rurais. no universo rural, em distintos contextos rurais Buscando compreender como se dá a abrangendo todas as regiões do Brasil. violência contra a mulher, Parry Scott, Ana Cláudia Abrindo a coletânea, Ellen Woortmann faz Rodriguez e Jeíza Saraiva, em “Onde mal se uma linha histórica dos estudos feministas no ouvem os gritos de socorro: notas sobre a violência Brasil, mostrando as principais nuances que esses contra a mulher em contextos rurais, procuram estudos apontavam e que rumos estão sendo verificar como a violência ocorre em relação às explorados, fazendo uma breve introdução das mulheres rurais, uma lacuna percebida nos discussões que na coletânea serão debatidas: estudos e nas pesquisas sobre a temática. o universo dos estudos rurais e as questões Tendo discutido a questão da violência relacionadas ao gênero e à geração. contra a mulher no contexto rural e sendo Parry Scott também faz breves reflexões verificado que o acesso da mulher às políticas logo no início da coletânea, antecipando assim públicas permite maior autonomia, Carmen algumas considerações que devem ser Osorio Hernández faz uma análise teórica das levantadas. Uma primeira consideração mostra políticas públicas para essas agricultoras em que cada vez mais as mulheres participam “Reconhecimento e autonomia: o impacto do ativamente dos movimentos sociais e essa Pronaf-Mulher para as mulheres agricultoras”, participação implica diferenciações nos mostrando algumas mudanças que vêm contextos familiares, dando maior espaço ocorrendo no cenário rural em decorrência do também para suas reivindicações. acesso das mulheres a esses benefícios Outro aspecto visto como importante por governamentais. Scott é o foco das atenções dos pesquisadores, Esse acesso às políticas públicas pode ser que cada vez mais se voltam para os jovens, os visto como uma faca de dois gumes; afinal, se idosos e os próprios adultos que “enfrentam a por um lado pode permitir maior autonomia às reordenação das relações familiares, associadas mulheres agricultoras, por outro as mulheres

Estudos Feministas, Florianópolis, 20(2): 583-592, maio-agosto/2012 589 podem ser vítimas desse acesso. É o caso amazônica”, contexto esse altamente demarca- daquelas agricultoras que acessaram o crédito do pelas relações familiares na organização da e realizaram investimentos junto à produção economia doméstica local. Aqui também se leiteira, atividade proeminentemente feminina, procura revelar mais uma vez que o trabalho da mas que, à medida que foi incorporando novas mulher não é reconhecido, apesar de funda- tecnologias, foi se masculinizando. mental dentro da organização familiar. Andrea Butto e Karla Hora apresentam uma Responsáveis pela alimentação familiar, última reflexão nesse primeiro bloco temático plantam, cuidam das crianças, participam da da coletânea, com o ensaio “Integração colheita, preparam as refeições, arrumam e regional e políticas para as mulheres rurais no limpam a casa, lavam roupas e louças, cuidam Mercosul”, em que procuram analisar aspectos do quintal e dos animais de pequeno porte, da formulação e da implementação de políticas carregam ferramentas, limpam os roçados, públicas para as mulheres rurais no âmbito participam de mutirões, e ainda assim seu trabalho regional, a partir da Reunião Especializada sobre não é visibilizado, são vistas como estando Agricultura Familiar (REAF) do Mercosul. apenas “ajudando” seus maridos ou seus pais. A segunda parte da coletânea trata da Fechando a série de artigos que procura “Organização produtiva, gênero e divisão do verificar a organização produtiva das unidades trabalho” e reúne artigos que tratam das relações rurais e a questão de gênero, Hersilia Cadengue estabelecidas entre gênero, trabalho e Oliveira e Mariomar Almeida enfatizam o papel pluriatividade, complementaridade de gênero que as agricultoras ocupam nas unidades e papel da mulher na manutenção da domésticas, verificando as relações de poder agrobiodiversidade, e também das relações de existentes no âmbito familiar e os projetos de gênero e poder em assentamentos rurais. vida que traçam em “Relações de gênero e “As problemáticas de gênero e geração poder no assentamento rural Araraíba da Pedra nas comunidades rurais de Santa Catarina” são – Cabo de Santo Agostinho – Pernambuco”. abordadas por Vilênia Aguiar e Valmir Stropasolas, As autoras se concentram em demonstrar que centram suas atenções nos principais a inserção e a integração das mulheres nas aspectos relacionados à migração dos jovens políticas públicas voltadas para a agricultura no contexto rural. familiar e as consequências desse fenômeno no Há ainda algumas questões ressaltadas no contexto familiar, apresentando um Brasil onde âmbito do gênero, tais como a falta de preparo ainda se mostra presente a ideia de que a mulher gerencial ou até mesmo de estímulo para que é um apêndice do homem, especialmente nessa as mulheres se envolvam com as questões área. relacionadas à gestão da propriedade, o Tendo estabelecido o papel do gênero controle contínuo dos pais e sua própria exclusão nas organizações produtivas e a divisão do dos processos sucessórios. trabalho ali presente, a parte final da coletânea Essas questões também estão presentes no foca nas questões relacionadas às “Mobilidades, artigo de Carolina Braz de Castilho Silva e Sergio juventudes e relações interageracionais”. Nela Schneider, “Gênero, trabalho rural e pluratividade”, são apresentados os diferentes contextos que procura identificar as formas de inserção migratórios no país, tentando desvelar o impacto das mulheres rurais no mercado de trabalho em dessa mobilidade generificada para os locais atividades não agrícolas e fora da propriedade de origem desses migrantes, assim como para familiar e suas consequências e efeitos sobre a os locais de destino escolhidos. unidade produtiva. Um primeiro contexto migratório envolvendo Novamente aqui a invisibilidade do trabalho gênero é apresentado por Marcelo Saturnino Silva feminino é colocada em evidência na discussão e Marilda Aparecida Menezes em “Homens que do lugar da mulher e na divisão do trabalho, migram, mulheres que ficam: o cotidiano das mostrando que as mulheres estão presentes nos esposas, mães e namoradas dos migrantes trabalhos produtivos dos empreendimentos rurais, sazonais do município de Tavares – PB”, sim, mas ainda carregam o peso de serem enfocando a migração temporária de homens concebidas nessa esfera apenas como ajudantes nordestinos para as lavouras de cana do Sudeste, do trabalhador masculino. retornando a seus locais de origem logo após a O trabalho das mulheres no contexto rural safra. é também apreciado por Iraildes Caldas Torres Silva e Menezes demonstram que a e Luana Mesquita Rodrigues no texto “O trabalho autonomia temporária dada às mulheres que das mulheres no sistema produtivo da várzea ficam nos roçados enquanto seus homens

590 Estudos Feministas, Florianópolis, 20(2): 583-592, maio-agosto/2012 migram é bastante superficial, pois essas negociar quanto e como aplicar na propriedade, continuam subordinadas a seus pais e maridos, modificando ainda o acesso a direitos, o que que, mesmo a distância, são os tomadores de anteriormente era inconcebível. decisões da família no que se refere ao Preocupados também com a juventude patrimônio e aos investimentos a serem realizados. rural, Rosineide Meira Cordeiro e Marion Teodósio A análise dessas mulheres que decidem Quadros analisam as jovens agricultoras que migrar, solteiras ou casadas, e as resultantes engravidaram antes dos 16 anos de idade e configurações sociais são abordadas por Maria que, por isso, não podem acessar o salário- Aparecida de Moraes Silva, Beatriz Medeiros maternidade em “Jovens agricultoras, salário- Melo e Andréia Perez Appolinario em “Vidas em maternidade e o critério idade”. Aqui a idade trânsito, mulheres dos cocais maranhenses nas mínima imposta às beneficiárias do programa é periferias das cidades canavieiras paulistas”. questionada, dialogando com algumas ideias As autoras observaram que muitas das feministas sobre a maternidade, assim como mulheres que migram não fazem parte da força com legislações que colocam a proteção da empregada nos canaviais, mas desempenham maternidade sob o prisma da proteção papéis fundamentais que asseguram a trabalhista e previdenciária. permanência da família, mantendo os vínculos O debate sobre a gravidez na adolescên- com os locais de origem, assim como as mulheres cia é também levantado pelas autoras, conside- que ficam também o fazem. rando não somente as questões relacionadas à Focando a juventude, Maria de Assunção idade, mas os diferentes significados da gravidez Lima Paulo, em “Juventude rural, sexualidade e para os jovens em diferentes contextos. gênero: uma perspectiva para pensar a identi- Celecina de Maria Veras Sales também foca dade”, tenta verificar como os jovens rurais se as jovens moças rurais em “Mulheres jovens rurais: percebem como indivíduos, utilizando-se dos marcando seus espaços”, tentando demonstrar o questionamentos envolvendo a sexualidade lugar social das mulheres jovens num assenta- para perceber como essas jovens pensam suas mento rural do sertão cearense. Sales traça um identidades. breve histórico de como o movimento feminista Já Arlene Renk, Rosana Maria Badalotti e foi ganhando força e de como as políticas Silvana Winckler centralizam suas preocupações públicas foram sendo construídas ao longo do com as mudanças socioculturais ocorridas nas tempo, mostrando a importância das lutas das relações de gênero em seu artigo “Mudanças mulheres camponesas pelo reconhecimento civil socioculturais nas relações de gênero e e trabalhista, pelo direito de ter o título da terra e intergeracionais: o caso do campesinato no por participação política. Oeste Catarinense”, focando seu estudo nas A condição juvenil só começa a ser estratégias de reprodução social e de contemplada a partir da década de 1990, empoderamento das mulheres nessa região. levantada por alguns pesquisadores que O artigo fala do controle masculino sobre perceberam dificuldades como falta de as filhas mulheres, vigiando sua reputação moral emprego, violência e outras demandas da para obter boas alianças matrimoniais, mas juventude que começam a ter visibilidade. também do controle que a Igreja e a sociedade Procurando analisar as mudanças no exercem sobre elas. As autoras tentam demonstrar discurso e nas intervenções dos jovens assistidos ainda como as modificações associativas por uma ONG feminista contra a violência de modificaram a situação da mulher no contexto gênero, Hulda Stadtler e Marcílio José Silva, em rural, seja impulsionando a obtenção de “Ações educativas de uma ONG feminista em documentação, seja na incorporação dessas zona rural e mudanças no discurso local de mulheres nos grupos e nas lideranças rurais, como jovens”, finalizam a coletânea mostrando uma o Movimento de Mulheres Agricultoras (atual experiência de sucesso. Movimento de Mulheres Camponesas) e o MST. Neste artigo, Stadtler e Silva anteveem o A pluriatividade é também abordada neste poder de atuação que as ONGs assumem na artigo, vista como uma estratégia que consegue sociedade por estarem em contato direto com conciliar o trabalho da unidade familiar com a as carências vividas pelas comunidades e como venda da mão de obra assalariada, provocando a ação de uma ONG de abordagem feminista alterações nos papéis na família. Dessa forma, pode ser determinante na mudança dos os jovens que trazem renda para casa discursos dos jovens da região em que atua. conquistam um diferente status na relação com Políticas públicas, negociações, organiza- o chefe da família, com quem passarão a ções produtivas, juventude e mobilidade,

Estudos Feministas, Florianópolis, 20(2): 583-592, maio-agosto/2012 591 considerando gênero e geração, são devida- uma diversidade de mulheres jovens e adultas, mente aprofundadas na coletânea, mostrando abrindo a discussão para profícuos debates diversas nuances de um contexto rural tão diversifi- futuros. cado em sua geografia, mas com similaridades que ultrapassam fronteiras estaduais e que unem Marie-Anne Stival Pereira e Leal Lozano Universidade Federal de Santa Catarina

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