Resenhas

O momento de Orfeu e Eurídice no rock brasileiro: uma reflexão sobre Loki, de Paulo Henrique Fontenelle

Loki: Arnaldo Baptista. permitem a Orfeu realizar esse feito se, no caminho de volta, ele não olhar para trás, para a FONTENELLE, Paulo Henrique. esposa. Orfeu desce ao centro mais tenebroso da noite, mas só pode fazê-lo emergir à tona Brasil: Canal Brasil, 2008. virando-lhe as costas.1 Dessa forma, segundo a análise do crítico francês, o mito grego reconheceria que não se pode fazer uma obra (de arte) sem uma experiência da desmesura (da noite, das trevas, Loki é um documentário produzido pelo de um outro mundo, daquilo que quando se Canal Brasil sobre o músico e compositor Arnaldo mira se perde). Tal experiência seria necessária Dias Baptista, nascido em São Paulo e que junto à obra, que não pode apresentá-la, no entanto, com os seus irmãos Sérgio e criaram o senão dissimulando-a. No momento em que, conjunto brasileiro de rock , na durante o caminho de volta, Orfeu fraqueja, década de 1960. O filme resgata a carreira de sente a necessidade de conferir se a esposa o Arnaldo desde esse período inicial até o acompanha, ele olha para ela e Eurídice se momento recente, em que, depois de cair no perde na sombra. Para Blanchot, esse esquecimento e ser de certa forma movimento não é acidental, mas inevitável, marginalizado, seu trabalho vem sendo porque não olhar para a esposa, não conferir reconhecido principalmente no exterior como se ela o seguia, seria também uma forma de um dos mais originais e inovadores no cenário perdê-la. Não há obra sem corte, perda e do rock mundial. O documentário de Fontenelle dissimulação, e o destino de Orfeu implica trair vale não apenas pelo resgate em âmbito a obra, trair Eurídice, trair a noite, no mesmo nacional desse reconhecimento mais amplo, movimento em que ele as salva ou tenta salvar. mas sobretudo pelo arranjo inteligente e sensível A traição e a dissimulação acontecem de depoimentos do próprio Arnaldo, de colegas porque, como diz Vinicius de Moraes na sua valsa de trabalho, amigos e críticos, dos quais nos (de Eurídice), a partida de Orfeu é uma “partida valemos para a escrita deste pequeno ensaio. sem fim”. Ela abriga uma saudade que é maior Depois da morte de Eurídice, Orfeu desce que a própria morte. Para que se possa ao mundo dos mortos, aos infernos, a fim de apresentar essa saudade em uma obra, é recuperar a amada. É com sua lira que o poeta- preciso inevitavelmente romper com ela. Como músico-mago comove Hades e Perséfone. Numa o amor, a canção, mesmo se eterna, tem uma passagem famosa de L’espace littéraire, Maurice duração finita. E é esse o sentido da pergunta Blanchot caracteriza essa passagem do mito de Arnaldo Baptista à coreógrafa Regina dizendo que a arte é a potência que abre a Miranda: “Como é que você aguenta?”. A noite. Através da arte, a noite se torna em boa pergunta nos espanta, e, seguindo o impulso medida íntima e acolhedora, mas num gesto mais imediato de todos nós que não somos paradoxal. Isso porque a tarefa de Orfeu não Orfeu, que não somos poetas, Regina responde consiste simplesmente em descer às profundezas. com outra pergunta: “Aguento o quê?”. Seu objetivo é resgatar a amada, trazê-la de volta Conforme no filme explica a coreógrafa, ao dia. E Hades e Perséfone, que zelam pela tal conversa teria originalmente se passado num permanência dos mortos debaixo da terra, só

Estudos Feministas, Florianópolis, 20(2): 256, maio-agosto/2012 583 mirante ao lado do teatro Ruth Escobar, em São alcançar tal originalidade que muitos músicos Paulo. Depois da resposta espantada de Regina, consideram ser mais significante que a das duas Arnaldo teria então aberto muito os braços e outras bandas referidas. O mínimo que se pode dito: “porque isso tudo... eu me sinto comple- dizer é que eles criaram algo que até então tamente esburacado, por essa experiência, é não existia no cenário do rock brasileiro. Nas como se as pessoas tivessem dançando e pas- palavras de Tárik de Souza, sando por todos os meus poros”. É a experiência [...] até então, era um rock primário que era da desmesura, da partida sem fim e da saudade feito no Brasil. Além de poucos acordes, era maior que a morte. A maneira com que a um rock muitas vezes copiado... Com Os bailarina teve de preencher todos esses buracos mutantes, o rock ganha uma identidade foi abraçando o músico. Diz ela: “a gente ficou brasileira... Isso não é pouca coisa, você pegar muito tempo abraçado e chorando... foi um uma música estrangeira e dar uma identidade momento de fundição”. A duração desse brasileira, realmente precisa ter um estofo momento, de um momento que é eterno, tem musical... capacidade de se projetar na de ter um fim. No caso de Arnaldo, o fim, a música... Foi isso que deu a autenticidade que traição, foi quase que literal. Uma tentativa de Os Mutantes têm. suicídio. Sabe-se que essa capacidade de se Mas venceu a força da dissimulação, e projetar na música, de se expressar na obra, foi Arnaldo acorda nos braços de uma nova Eurídice. algo que Arnaldo aprendeu a fazer desde muito É assim que ele resume o acontecimento: “joguei cedo, no contato com a mãe pianista. Está aí a o jogo mais alto, e parece um milagre que, de raiz de uma relação com a música que, como repente, eu acordei na cama da minha menina”. diz Lobão, faz dessa arte “uma maneira de viver Por minha menina ele se refere à Lucinha, uma realmente muito além de ser um ganha-pão”. A fã, que a partir daí passa a preencher por um música é poder de transformação. Ela é Orfeu tempo a função de mulher amada na vida do encantando os animais selvagens. É também “a poeta. Uma função certamente precária que fusão do homem com o artista, do artista com o ousa responder a um desafio infinito. “Amor que homem”. Nas palavras de Zélia Duncan, “Arnaldo não tem pra comparar... é muito mais que amor é a balada do louco”. Observar do mirante e de marido e mulher, um pouco parecido com sentir-se atravessado, em todos os poros, por amor de mãe, [mas também] uma sina” – declara pessoas que passam por nós e dançam. Uma Lucinha. Lucinha que é uma das faces dessa experiência difícil, senão impossível. Numa lucidez eterna Eurídice do poeta, que o poeta tenta insuspeita, Arnaldo confessa: “é tão difícil dizer all resgatar, ciente, entretanto, “da enorme you need is love... cada um de nós é totalmente diferença que existe entre o homem e a mulher” diferente”. (palavras de Arnaldo). Mas ele faz “a maior força possível” para Lucinha, Martha Mellinger, Rita Lee e a mãe alcançar essa totalidade que nunca nos é pianista, todas elas são faces diferentes de uma inteiramente dada, que possibilitaria acolher o totalidade nunca inteiramente presente: a Eurídice outro na sua diferença irredutível, resgatar, acolher de Orfeu. Muito consciente da importância dessa a noite mais infernal e tenebrosa. A resposta de diferença que ao mesmo tempo o instiga e o Rita Lee – ela que foi, no dizer do próprio Arnaldo, ilude, Arnaldo faz a seguinte observação: em todas o outro elemento-chave d’Os Mutantes – talvez as comparações que sempre se fizeram entre Os não pudesse ter sido outra. Como é que se pode Mutantes, os Beatles e os Rolling Stones, esqueceu- falar de uma ferida infinita? Jamais falando dela, se de um ponto importante. No caso dessas duas virando-lhe as costas, dissociando-a numa outras bandas, elas não tinham mulher entre os jornada de adeus (que não é outra coisa senão integrantes, não tinha o “lado circense”, aquilo uma forma muito justa de falar). A cantora que a Rita trazia em termos de “roupas, instrumentos também tinha uma pianista na família e teria malucos, um lado colorido”. Arnaldo, num passo estudado com ninguém menos que Madga ousado que talvez não pudesse deixar de ser um Tagliaferro.2 Seja como for, o aparente erro, trouxe a mulher para dentro do grupo. Aquela “escapismo” da roqueira brasileira, sua recusa com quem, na lembrança dos amigos, ele tinha de ser engajada, está longe de ser um índice de “uma relação de muito carinho, atávica, uma menoridade artística. É justamente aquilo que relação de irmão e irmã – o típico casal que não complementa Orfeu e sem o que Orfeu não é dá certo para casar”. nada. É a capacidade mais visceral de Isso explicaria talvez por que, no pouco dissimulação, de fantasia. Sem essa capacidade, tempo que durou, Os Mutantes conseguiram mal se pode aceitar o convite àquilo que os

584 Estudos Feministas, Florianópolis, 20(2): 583-592, maio-agosto/2012 ingleses chamam de exhilaration e os franceses 3 É o que está no âmago da experiência estética de um de ivresse,3 termos que também não deixam de Proust. Ver, por exemplo, o momento epifânico da entrada ser uma boa tradução para aquilo que em do narrador no Hotel dos Guermantes, em Marcel PROUST, português chamamos de saudade. Uma vez 1990, p. 173-174. aceito, só então o convite possibilitou um Referências momento, esse momento que não apenas BARTSCH, Henrique. Rita Lee mora ao lado. São passou, mas está sempre passando, de uma Paulo: Panda Books, 2006. forma que, concretamente onde está, nunca BLANCHOT, Maurice. L’espace littéraire. Paris: deixa de passar: o momento de Orfeu e Eurídice, Gallimard, 1955. no rock brasileiro. PROUST, Marcel. Le temps retrouvé. Malesherbes: Notas Gallimard, 1990. 1 Maurice BLANCHOT, 1955, p. 225. 2 Henrique BARTSCH, 2006, p. 22 e p. 36. Alessandro Zir Universidade Federal do Rio Grande do Sul

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