EDUARDO BORDINHON DE MORAES

MARLON BRANDO - O “JOVEM REBELDE” E O “PADRINHO”: As figuras de um ator autor

Campinas 2015

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ARTES

EDUARDO BORDINHON DE MORAES

MARLON BRANDO - O “JOVEM REBELDE” E O “PADRINHO”: As figuras de um ator autor

Dissertação apresentada ao Programa de Pós- graduação em Artes da Cena da Universidade Estadual de Campinas como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Artes da Cena, na Área de Concentração: Teatro, Dança e Performance.

Orientador: MARCELO RAMOS LAZZARATTO

Este exemplar corresponde à versão final de Dissertação defendida pelo aluno Eduardo Bordinhon de Moraes e orientado pelo Prof. Dr. Marcelo Ramos Lazzaratto.

Campinas 2015

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Ficha catalográfica Universidade Estadual de Campinas Biblioteca do Instituto de Artes Eliane do Nascimento Chagas Mateus - CRB 8/1350

Moraes, Eduardo Bordinhon de, 1987- M791m MorMarlon Brando - O "Jovem Rebelde" e o "Padrinho" : As figuras de um ator- autor / Eduardo Bordinhon de Moraes. – Campinas, SP : [s.n.], 2015.

MorOrientador: Marcelo Ramos Lazzaratto. MorDissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes.

Mor1. Atores e atrizes de cinema. 2. Filme cinematográfico. 3. Brando, Marlon - diretor. I. Lazzaratto, Marcelo Ramos,1967-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Artes. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Marlon Brando: The "young rebel" and the "godfather" : The figures of an actor-author Palavras-chave em inglês: Actor and actresses of cinema Motion picture Brando, Marlon - director Área de concentração: Teatro, Dança e Performance Titulação: Mestre em Artes da Cena Banca examinadora: Marcelo Ramos Lazzzaratto [Orientador] Verônica Fabrini Machado de Almeida Pedro Maciel Guimarães Júnior Data de defesa: 19-01-2015 Programa de Pós-Graduação: Artes da Cena

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RESUMO

Essa dissertação teve como objetivo estudar os procedimentos técnicos que envolvem o trabalho a interpretação para cinema. Para isso, tivemos como objeto de pesquisa a filmografia do ator Marlon Brando (1924 – 2004), com enfoque nos filmes “Uma Rua Chamada Pecado” (Elia Kazan, 1951), “Sindicato de Ladrões” (Elia Kazan, 1954), “A Face Oculta” (Marlon Brando, 1961), “O Grande Motim” (Lewis Milestone, 1962), “O Poderoso Chefão” (Francis Ford Coppola, 1972) e “Apocalipse Now” (Francis Ford Coppola, 1979). Verificamos, ao longo desses filmes, os procedimentos de construção de cena e personagens apoiados nos escritos de Stella Adler (2002) e Constantin Stanislavski (2001) sobre o trabalho do ator, com enfoque nas ações físicas no uso da imaginação e observação. Além disso, analisamos os temas e personagens recorrentes na filmografia de Brando identificando uma padronização de seu aparecimento na tela. Tal padrão está intimamente ligado à própria personalidade do ator e chega em duas figuras essenciais: o “jovem rebelde”, presente nos filmes dos anos 1950 e caracterizado por sua postura contra o sistema vigente e o “padrinho”, consolidado nas obras da década de 1970, marcado por sua relação de mentor de um personagem ou grupo de personagens. Para investigarmos essa padronização, utilizamos o conceito de ator-autor proposto por Patrick McGuiligan (1975) e desenvolvido por Luc Moullet (1993) e Pedro Maciel Guimarães (2012), com o qual se analisa a filmografia de um ator em busca de aspectos formais e temáticos que o possam nomeá-lo como co-autor de um filme.

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ABSTRACT

This dissertation aim was studying the technical procedures of acting in cinema. In order to do this, we took as research material the filmography of the actor Marlon Brando (1924 – 2004), focusing in the films “A Streetcar Named Desire” (Elia Kazan, 1951), “On The Waterfront” (Elia Kazan, 1954), “One-Eyed Jacks” (Marlon Brando, 1961), “Moutiny on the Bouty” (Lewis Milestone, 1962), “The Godfather” (Francis Ford Coppola, 1972) and “Apocalipse Now” (Francis Ford Coppola, 1979). Through those movies, we verified the procedures of creating a scene and a character supported by the writings of Stella Adler (2002) and Constantin Stanislavski (2001) on acting, focusing on physical actions, imagination and observation. Furthermore, we analysed the recurrent themes and characters on Brando’s filmography investigating a pattern in his appearance on screen which is linked with the personality of the actor himself. Thus, we find two essential figures, the “young rebel”, in the movies of the 1950s and characterized by his position against the hegemonic system, and the “godfather”, consolidated in the 1970s, characterized by his relation as a mentor of a character or a group of characters. To investigate this standardization, we used the concept of the actor-author, proposed by Patrick McGuiligan (1975) and further developed by Luc Moullet (1993) and Pedro Maciel Guimarães (2012), in which one analyses an actor’s filmography searching thematic and formal aspects that can categorize the actor as a co-author of a film.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...... 1

1 O ATOR NO CINEMA...... 9 1.1 Chega de homens imbatíveis: Marlon Brando, a fragiidade do líder marginal...... 16

2 A CENA CRIADA PELA FUSÃO DE UM ROTEIRO COM UMA PERSONALIDADE...... 25 2.1 A construção de um personagem...... 28 2.2 Stanley Kowalski – A imagem eternizada de Brando...... 34 2.3 Personagens femininos e suas atrizes...... 37 2.4 “Sindicato de Ladrões” (1954) – A projeção do diretor em seu ator...... 43 2.5 Terry Malloy – Aspectos do Jovem rebelde...... 47 2.6 A voz e a fala – Brando orador...... 54

3 O AMADURECIMENTODENTRO E FORA DA TELA...... 63 3.1 Anos 60 – Deixar a jaqueta para trás...... 66 3.2 Fletcher Christian – Assumir suas posições. De um personagem solar à morte na penumbra...... 70 3.3 “A Face Oculta” (1961) – O ator autor e o ator diretor...... 80 3.4 Rio – Um personagem autobiográfico...... 88

4 O PADRINHO...... 95 4.1 Don Vito Corleone - Brando como pai de todos...... 102 Coronel Kurtz – Brando imaterial...... 122

CONCLUSÃO: EU VOU ESTAR “MARLONBRANDO”...... 137

FILMOGRAFIA...... 143

BIBLIOGRAFIA...... 145

ANEXO...... 151

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Para Ana, Mariana e Aloisio; os de sangue. Lu, Chico e Ivan; os de coração.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a todos que, de alguma forma, me auxiliaram no caminho para esse mestrado e durante ele também. Suas contribuições, grandes ou pequenas, creditadas ou não, foram de extrema importância. O mundo a minha volta me atravessa de maneira tão plural e intensa que eu, esponja, tenho um pedaço de cada uma dessas influências aqui. A Marcelo Lazzaratto, pela orientação. À Verônica Fabrini e Pedro Maciel Guimarães pela conversa generosa na qualificação. Às professoras e professores do Programa de Pós-graduação em Artes da Cena que me possibilitaram intensas trocas e aos alunos também, amigos, pelos papos sobre cinema. Às funcionárias e funcionários do Instituto de Artes, em especial as da secretaria, que me ajudaram com burocacias pelas quais eu não passaria sozinho. À CAPES, pelo financiamento no último ano. Agradeço também aos criadores e usuários do Pirate Bay. A existência desse recurso viabilizou muito essa pesquisa e acredito que muitas outras também. À Cia de Teatro Acidental, pela parceria e pela maravilhosa televisão de 51 polegadas sem a qual eu não conseguiria ver tantos filmes. Ao Pedro e ao Tom pelos livros, conversas, dicas, apoio e amizade. Ao Burlan que me proporcionou experiências cinematográficas muito legais nesses anos e ao Luciano, que me manteve inteiro durante o último ano. Ao mestre Macacachorro por sua orientação zen. Aos meus pais, Ana e Aloisio, e à minha irmã Mariana. Ao Chico, irmão e parceiro por tantos anos, ao Ivan pela amizade sem tamanho e à Pâm, pelas trocas intensas últimos dois (oito) anos. À Lu, que tem muitos pedaços lá e cá nesse trabalho e em mim, que o acompanhou em todas as suas etapas e que me apoiou demais durante sua realização e mesmo antes disso. A todos vocês, muito obrigado.

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An idea for a short story about, hum, people in Manhattan who are constantly creating these real, unnecessary, neurotic problems for themselves, cos it keeps them from dealing with more unsolvable, terrifying problems about... the universe. Let's...Well, it has to be optimistic. Well, all right, why is life worth living?That's a very good question. Well, there are certain things, I guess, that make it worthwhile. Like what? OK... for me... Ooh, I would say Groucho Marx, to name one thing. And Willie Mays. And... the second movement of the Jupiter Symphony. And... Louis Armstrong's recording of Potato Head Blues. Swedish movies, naturally. Sentimental Education by Flaubert. Marlon Brando, Frank Sinatra. Those incredible apples and pears by Cranne.The crabs at Sam Wo's...Tracy's face.1

Woody Allen

1 Em tradução livre: “Uma ideia para uma história curta sobre, hum, as pessoas em Manhattan que estão constantemente criando esses reais, desnecessários, neuróticos problemas para si, porque isso os mantém afastados de lidar com problemas mais aterrorizantes e sem solução sobre... O universo. Vamos... Bem, temos que ser otimistas. Bem, tudo certo, por que a vida vale ser vivida? Essa é uma questão muito boa. Bem, tem algumas coisas, eu acho, que a fazem valer a pena. Como o que? Ok... Para mim.... Ooh, eu diria Goucho Marx, para nomear uma coisa. E Willie Mays. E... o segundo movimento da Sinfonia de Júpiter. E... a gravação de Louis Armstrong do Potato Head Blues. Filmes suecos, naturalmente. “Educação Sentimental” do Flaubert. Marlon Brando, Frank Sinatra. Aquelas maçãs e peras da Cranne. Os caranguejos do Sam Wo’s... O rosto da Tracy. xvii

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INTRODUÇÃO

Eu vou virar a própria mesa,/ quero uivar numa nova alcateia./ Vou meter um Marlon Brando nas ideias/ e sair por ai. (SÁ; RODRIX; GUARABYRA, 2001).

A presente pesquisa surgiu do desejo de se estudar o ator no meio cinematográfico. Desde o surgimento do cinema, diversos estudiosos e cineastas se debruçaram sobre esse tema, criando diferentes metodologias e formas de aparecimento do ator na tela. Dentre essas abordagens, podemos citar a do cineasta Robert Bresson, diretor que desenvolveu uma metodologia própria de trabalho com “modelos” (BRESSON, 2005), pessoas sem formação em interpretação e que participavam de apenas um filme do cineasta. Jean Luc Godard foi um diretor que também se debruçou sobre aspectos do ator. Diversos de seus filmes jogam com a relação entre ator e personagem e com as fricções causadas pelo aparecimento dessas duas figuras em cena. Na área de estudos sociais, Edgard Morin fez uma análise profunda sobre os atores como um produto da indústria cinematográfica e como suas figuras constituíam algo que estava para além do filme; formavam um produto comercial utilizado em diversas instâncias, como a publicidade.

No cinema americano, que se espalhou e influênciou cinematografias ao redor do mundo (CARRIÈRRE, 2006), destacam-se as metodologias desenvolvidas pelos atores e professores Lee Strasberg e Stella Adler. As ideias de ambos foram desenvolvidas a partir das reflexões de Constantin Stanislavski para o teatro em busca de uma “naturalidade” em cena, em consonância com o surgimento do realismo no fim do século XIX. Embora o próprio Stanislavski não tivesse a intenção de desenvolver um sistema e seus escritos sejam muito mais um registro de períodos de estudo do diretor russo (ROSENFELD, 1993), diversos “discípulos de Stanislavski” – artistas e teóricos que deram continuidade ao pensamento do diretor - desenvolveram suas próprias

1 metodologias e sistemas a partir do material que encontraram ou pela convivência direta com Stanislaviski, aprofundando suas reflexões ou se afastando delas.

Dentre esses estudiosos, teóricos e práticos, do teatro e cinema, destacam-se Eugênio Kusnet, Elia Kazan, Michael Chékhov, Sanford Meisner, Lee Strasberg e Stella Adler, sendo que esses dois últimos desenvolveram métodos de trabalho que formaram grande número de atores no cinema americano dos anos 50 a 80, como Warren Beatty e Marlon Brando, no caso de Adler, e, no caso de Strasberg, James Dean e Al Pacino (LONGWORTH, 2013). Mesmo cem anos depois de sua sistematização, os ensinamentos de Stanislavski ainda são base sólida dos estudos interpretação teatral ou cinematográfica, o que pode ser confirmado pela grande quantidade de cursos de formação profissional ou acadêmica que tem esses pensadores em suas bibliografias básicas.

Ao chegarem aos EUA nos anos 30, as ideias de Stanislavski influenciaram, em maior ou menor grau, todo o cinema americano, principalmente a partir dos anos 50, período no qual o cinema buscava se reinventar agora que concorria com o surgimento e o subsequente crescimento da popularidade da televisão. Tal reinvenção teve, como parte importante, o desenvolvimento de temas que se aproximavam da realidade da vida burguesa em contraposição às temáticas heróicas e de aventuras presentes nos filmes precedentes (MORIN, 1984). Agora, o público pedia um maior realismo em cena e consequentemente uma nova forma de interpretar, que buscasse também essa aproximação com a vida; a metodologia de interpretação realista proposta por Stanislaviski prestava bem a essa função.

Assim, as ideias desenvolvidas a partir de Stanislavski foram, e ainda são, a pedra angular da técnica de interpretação de muitos atores americanos. Como esses atores influenciaram outros no mundo todo, podemos dizer que essas ideias estão amplamente difundidas também no Brasil, país fortemente influenciado por essa cinematografia. Assim, para a presente pesquisa, buscou-se no cinema americano, feito

2 a partir dos anos 50, uma fonte de estudos para o trabalho de ator sobre a qual poderíamos nos debruçar.

Fechando ainda mais o foco de investigação, acreditamos que a análise do trabalho do ator Marlon Brando (1924 - 2004) seja interessante como objeto de estudo por sua importância dentro da escola americana de cinema. Brando iniciou sua carreira no teatro, estudou com Adler os princípios de interpretação desenvolvidos a partir de Stanislaviski e é considerado um dos maiores atores de todos os tempos por diversos diretores, como Bernardo Bertolucci, Francis Ford Coppola e Martin Scorcese. Com uma carreira sólida de trinta e nove filmes, a obra de Brando se mostrou um material fértil para a pesquisa sobre a atuação, perpassando por meio século de cinema, trabalhando com grandes diretores como Elia Kazan e Sidney Lumet e abordando variados temas. Segundo a pesquisadora Florence Colombani:

Estudar o ator Marlon Brando é repassar pela evolução do cinema durante meio século, seguindo algumas vezes um caminho que cruza pelos maiores autores (Tennessee Williams, Carson McCullers) e atores míticos (Elisabeth Taylor, Al Pacino), e que convoca questões do presente (a máfia do porto de Nova York, a guerra do Vietnã) enquanto recria o passado. (2013, p.11, tradução nossa) 1.

Para tentar cobrir aspectos tão abrangentes de um ator importante e plural, dividimos essa dissertação em quatro capítulos. No primeiro, “O ator no cinema”, traçamos uma breve perspectiva histórica da relação entre a cena teatral e a cena filmada. O mesmo fizemos com a chegada dos ensinamentos de Stanislavski nos EUA e a mudança que eles causaram no modo de interpretar dos atores do cinema americano dos anos 50. Também analisaremos as mudanças sociais e políticas desse período e como Marlon Brando representou, no cinema, a ascensão de uma juventude que buscava afirmar sua identidade negando o status-quo das gerações anteriores,

1 To study Marlon Brando the actor is to retrace the evolution of cinema over a half century, following a sometimes winding path that crosses that of major contemporary authors (Tennessee Williams, Carson McCullers) and mythic actors (Elizabeth Taylor, Al Pacino), and that calls into question the present time (the mafia of New York’s dockworkers, the Vietnam War) while re-creanting the past.

3 mudando seu estilo de se vestir, seus gostos musicais e comportamento sexual. O cinema, um produto altamente difundido na cultura americana, transformou seus atores em estrelas, figuras públicas e facilmente reconhecidas pelo público e Brando será uma dessas estrelas.

A ideia de estrela apresentada aqui segue o conceito de Morin (1984), que a estabelece como a figura criada sobre o ator pela indústria cinematográfica como estratégia comercial para aumentar o consumo dos filmes e dos diversos produtos ligados a este. Ela surge de um amálgama entre a figura que o ator apresenta ao mundo e os personagens que ele representa no cinema. Para Morin, essa ligação é tão grande que faz com que as duas figuras, ator e personagem, não se dissociem; assim “do casamento entre os dois, nasceu um híbrido que participa de um e de outro, que os envolve: a estrela.” (MORIN, 1984, p.25). Essa estrela é quem criará a imagem que o público terá e esperará do ator em seus filmes e, tendo o cinema americano alcance global, seus atores passam a ter uma imagem consolidada em escala mundial. Acreditamos que o conceito de “estrela” definido por Morin é de grande importância para a análise da filmografia de Marlon Brando, embora ela tenha seu início no fim do que Morin chamou de “star system” 2 (MORIN, 1984).

No segundo capítulo, “A cena criada pela fusão de um roterio com uma personalidade”, iniciamos a investigação sobre a sua filmografia, tendo como enfoque os filmes “Uma Rua Chamada Pecado” (Elia Kazan, 1951) e “Sindicato de Ladrões” (Elia Kazan, 1954). A partir dessas obras, realizamos a investigação dos procedimentos técnicos de Brando e a relação destes com os conceitos de “imaginação”, “observação” e “ação física” oriundos de Adler e Stanislavski. Elementos como mergulho no imaginário do personagem por meio de observação em campo, estudo histórico, composição de características físicas, realização de ações, o uso de objetos e construção vocal são notoriamente presentes tanto na formação de Brando com Adler

2 “sistema de estrelato” ou “sistema de estrelas” em tradução livre.

4 quanto em sua filmografia e acreditamos que podem ser elementos determinantes para compreender a obra deste ator no cinema.

Juntamente com essa análise, utilizamos os outros filmes de Brando nos anos 50 para verificar a repetição desses procedimentos de interpretação. Além disso, esse conjunto de filmes permitiu a verificação de um padrão no aparecimento do ator no cinema. Padrão de gestualidade e de personagens, que diferentes diretores passaram a lançar mão em seus filmes, criando uma assinatura, uma característica autoral da filmografia de Brando. Por meio da repetição de “figuras ou orientações essenciais” (MOULLET, 1993, p. 88), que são figuras ou gestualidades que se repetem ao longo da cinematografia do ator, e também da sua “persona3 cinematográfica” (MACIEL GUIMARÃES, 2012), que é aquilo que a estrela projeta com e para além de seus filmes, que o ator é capaz de trazer para a construção do filme o seu estilo pessoal. Segundo Maciel Guimarães:

A teoria do ator autor busca ver, no trabalho dos atores, constantes formais e temáticas que aparecem ao longo de toda sua carreira. Essas repetições de formas e temas seriam capazes de se tornar instâncias autorais legítimas que pudessem determinar a concepção formal e temática não só de um personagem (o que bastaria para qualificar o ator de criador), mas também, num sentido mais amplo, de um plano, de uma sequência ou de um filme, no geral. (ibid, p. 86).

Essa assinatura do ator em um filme será analisada também sob a luz das pesquisas sobre o ator realizadas por Luc Moullet (1993) e por Christophe Damour (2009). Essas reflexões servirão como modelo na análise de elementos que se repetem na filmografia de um ator, como repetição de gestos, objetos, figurinos e personagens que determinam padrões de figuras na tela. Essa busca de padrões nos levou a uma figura essencial que Brando apresentou nos anos 50, que chamamos de “jovem

3 Em sua análise sobre o ator de cinema, Maciel Guimarães utiliza o conceito junguiano de persona, que é, em resumo, “o conjunto representativo do nosso ser [...] o que cada um representa para si mesmo ou para os outros, não o que cada um é.” (JUNG, 1967, apud MACIEL Guimarães, 2012, p.89). Para essa pesquisa lançaremos mão do mesmo conceito.

5 rebelde”, caracterizado por sua postura contra o sistema vigente e que estava em sintonia com a juventude da época. Por fim, analisamos a fundo a relação de seus personagens com figuras femininas e verificamos a forte influência delas na construção da figura do “jovem rebelde”.

Ao longo do capítulo três, “O amadurecimento dentro e fora da tela”, verificamos outro aspecto da carreira de um ator de cinema que é a possibilidade do público acompanhar o seu amadurecimento e envelhecimento na tela ao longo de sua cinematografia. A partir dos anos 60, o ator, próximo aos quarenta anos, se distanciou da figura do jovem e passou a interpretar personagens que amadurecem ao longo da narrativa. Fora das telas, conforme Brando se consolida como uma estrela, seu poder de influência na produção do filme é cada vez maior, aumentando sua marca nessas produções. Segundo Patrick McGiligan (1975), existem atores capazes de imprimir uma marca de sua autoria no filme, assim como fazem os diretores de cinema que são considerados autores (MACIEL GUIMARÃES, 2012). Essas marcas serão tanto formais, como o constante olhar para fora do quadro, como temáticas. Brando escolhia muito de seus filmes para tentar abordar questões políticas que lhe eram caras, como a segregação racial. Para guia desse capítulo, realizamos a análise do aparecimento de Brando nos filmes “A Face Oculta” (Marlon Brando, 1961) e “O Grande Motim” (Lewis Milestone, 1962).

No quarto capítulo, “O padrinho”, analisamos a fundo o aparecimento de Brando nos filmes “O Poderoso Chefão” (Francis Ford Coppola, 1972) e “Apocalipse Now” (Francis Ford Coppola, 1979). Constatamos que, nesse período, com a carreira consolidada, Brando não era mais necessariamente o protagonista, mas possuía uma influência substancial no filme; o poder de sua persona era tão forte que, mesmo aparecendo pouco, sua figura era emblemática. A essa nova figura, demos o nome de “padrinho”. Verificamos como Brando passa, cada vez mais, a influenciar em aspectos da composição de seus personagens, do roteiro, da iluminação e escolha do elenco. Aprofundamos a investigação de elementos recorrentes, técnicos, como o emprego da voz, e formais, como o padrão na morte de seus personagens. Nesse mesmo capítulo,

6 também examinamos as “figuras de exceção” ao longo da filmografia de Brando, que não se encaixam na figura do “jovem rebelde” nem do “padrinho”, mas que auxiliam na compreensão do aparecimento de Brando em seus filmes.

Ao final, pretendemos com essa pesquisa criar um mapeamento de quais técnicas Brando se utilizava para a construção de personagens e como a sua persona influencia no seu aparecimento no filme, o que expande a ideia da técnica de representação do cinema para além de procedimentos empregados durante a construção da cena filmada.

7 8 1. O ATOR NO CINEMA

We live and dream about the future/ Please ask me up I need to count well now/ Sit through the annals of our favorite times/ Our heroes and all their fade out thoughts/ Me, Marlon Brando, Marlon Brando and I say/ Lay me down, down, down/ Lay me down down down/ Help me off to sleep/ Or take me deep again 4. (STIPE; BUCK, 2011)

O final do século XIX apresentou uma revolução no campo das artes com a invenção da câmera filmadora. Esse instrumento foi fruto da revolução tecnológica do período, impulsionada pela industrialização e pelo capitalismo, o que nos leva a afirmar que o cinema, a arte criada a partir do uso da câmera, é uma arte inventada pela burguesia (BERNARDET, 1980). Tal informação é importante porque colocará o cinema como uma arte que interessa, muitas vezes em primeiro lugar, ao lucro. E o lucro está ligado a vender a maior quantidade possível de seus produtos para o maior número de mercados consumidores, o que levou o cinema a ser direcionado para que atingisse o maior número possível de espectadores, as massas (HOBSBAWM, 1995).

Inicialmente utilizado para experimentos científicos, foi com Georges Méliès, em Paris, que o cinema começou sua migração para o campo das artes. Méliès, um homem que trabalhava com mágica e shows de teatro, acreditava que o instrumento científico utilizado para captar imagens em movimento, podia ser utilizado para contar histórias (BERNARDET, 1980) que seriam projetadas em conjunto com os shows de mágica. Dessa forma, criou-se na Europa uma relação íntima entre teatro e cinema, com o segundo se servindo muito da tradição criada pelo primeiro. Já nos Estados Unidos, a relação teatro e cinema foi diferente e podemos afirmar que, nesse país, é o teatro que se serve do cinema. Segundo Moullet:

4 Em tradução livre: Nós vivemos e sonhamos sobre o futuro/ Me interrogue, por favor, agora eu preciso contar bem/ Passando pelos anais dos nossos tempos favoritos/ Nossos heróis e todos os seus pensamentos apagados/ Eu Marlon Brando, Marlon Brando e eu dizemos/ Me deite, deite, deite/ Me deite, deite, deite/ Me ajude a sair do sonho/ Ou me leve aprofundar de novo.

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Não nos esqueçamos que a primeira peça de teatro americana que tenha sobrevivido continua sendo “The Emperor Jones”, de Eugène O’Neill, que data de 1920. O primeiro grande filme americano é “The Birth of a Nation”, lançado em 1914. Eu não ignoro que havia teatro em Nova York e em outras cidades, bem antes de 1920. Mas o repertório era composto essencialmente por peças de importação, sobretudo inglesas. [...] O cinema americano, então, precede o teatro americano. [...] Uma situação, então, totalmente original e que é diametralmente oposta à dos atores na Europa. (MOULLET, 1993, p. 14-15, tradução nossa) 5.

Enquanto na Europa, a tradição teatral era secular, nos EUA, o teatro e cinema se desenvolveram ao mesmo tempo, ao longo de século XX. Dessa maneira, o teatro americano concorria com uma arte muito mais abrangente que ele; um filme pode alcançar mais lugares do que uma peça devido à possibilidade de se tirar cópias, o que é impossível com uma peça. Como o cinema buscou, desde seu início, ser uma arte que representasse a realidade (CARRIÈRRE, 2006), um modo de interpretação mais “discreto”, mais “natural”, acabou ganhando força dentro cena filmada, o que mudou o modo como os atores apareciam na tela e no palco. (MOULLET, 1993).

Dessa forma, para os atores, a invenção do cinema apresentava a possibilidade não somente do registro de seu trabalho, como também da mudança de seu estilo de interpretar, já que um pequeno detalhe do seu corpo poderia ganhar as dimensões de uma tela, seu corpo em cena era outro. Segundo Jean Jaques Roubine:

A proximidade proporcionada pelos efeitos de filmagem transforma, em comparação com o teatro, a própria natureza deste corpo. A menor transpiração, algumas rugas... tudo pode virar signo e meio de expressão. Pode-se, aliás, dizer o mesmo dos menores detalhes da roupa que, exibidos pela câmera, se tornam prolongamentos sugestivos do corpo, e logo instrumentos de trabalho do ator. Enfim, o corpo cinematográfico insere-se num outro modo de relação com o espaço. No cinema, o espaço é autônomo. Não

5 N’oublions pás que La première pièce de Théatre américaine qui ait suvércu reste The Emperor Jones, d’Edugène O’Neill qui date de 1920. Le premier grand film américain, c’est The Birth of a Nation, tourné on 1914. Je n’ignore pás qu’il y avait des théâtres à New York et dans autres Villes bien avant 1920. Mais le répertoire était composé essentielment de piéces d’importation, anglaises sourtout. [...] Le cinema américain donc precede le théâtre américain. [...] Une situation donc tout à fait originale, et qui était diamétralment opposée à celle des comédiens em Europe.

10 se pede ao ator para sugeri-lo por diversos artifícios, nem ao espectador que o imagine a partir de alguns sinais sugestivos. Esta autonomia amplifica e altera as capacidades expressivas do corpo: a grande cena erótica de A um passo da eternidade mostra os corpos de dois amantes rolando abraçados, na areia molhada da praia, envoltos pela espuma das ondas que rebentam... Está claro que o erotismo da cena emana de uma fusão da sensualidade dos corpos despidos e de um símbolo fortemente conotativo proveniente da natureza ambiente: fluxo e refluxo de água, efeitos de submersão, espuma fervilhante... O teatro deveria proceder de maneira bem diferente. Não podendo mostrar tudo isso, ele sugeriria. Quer dizer, os atores teriam a tarefa de exprimir a sensualidade dos seus personagens, e, simultaneamente, por seus movimentos, criar este espaço erotizado. (2002, p.53)

A nova perspectiva de captar o corpo do ator pela câmera, os infinitos enquadramentos e a possibilidade de dois personagens estarem em um espaço real, fazia com que os atores não precisassem mais criar esse espaço a partir de sua interpretação. Também era possível que um pequeno gesto ou uma ação mínima fossem captados através do close; as possibilidades de trabalho do ator ganharam uma nova perspectiva e era necessário criar um novo modo de interpretar que correspondesse a essa forma artística. Os atores dos primeiros filmes ainda não se deparavam de maneira tão forte com essa questão já que as primeiras produções se serviram muito da linguagem teatral para sua composição; esses filmes não possuíam falas, as narrações ou diálogos apareciam em cartões entre uma cena e outra, então, cabia ao ator colocar no corpo e no rosto a intenção de suas falas. Mas o advento do cinema falado provocou mais uma mudança no trabalho do ator: agora os diálogos podiam ser registrados e um ruído mínimo podia ser captado pelo microfone. Dessa maneira, era necessário desenvolver um método de interpretação que dialogasse diretamente com essa nova linguagem.

Concomitante aos primeiros passos do cinema, na Rússia, o ator, diretor e professor de teatro Constantin Stanislavski desenvolveu uma forma de interpretação naturalista que buscava, segundo Roubine, “eliminar o formalismo e a mecanização da representação, romper com as rotinas, eliminar os estereótipos.” (2003, p. 117). Essa busca por uma verdade em cena por parte de Stanislavski e de muitos de seus contemporâneos está intimamente ligada à ascensão da burguesia como classe

11 dominante e seu desejo de tomar para si os costumes da nobreza, dentre eles a arte, fazendo com que essa classe passasse a ser o grande frequentador do teatro da época. Com o decorrer do tempo, tal segmento social passou a desejar cada vez mais uma imagem “semelhante” a si no palco, discordando das buscas românticas do começo do século XIX que traziam à cena os grandes heróis da História sob o olhar do dramaturgo e eram associadas aos nobres (ROUBINE, 2003).

Podemos fazer uma analogia semelhante com o cinema americano quando este inicia o “aburguesamento” (MORIN, 1984) de sua temática nos anos 20 e 30. Nesse período, que marca os primeiros anos do cinema clássico, predominavam as histórias dos heróis, as aventuras míticas de grandes arquétipos como a “virgem inocente”, a “femme fatale” ou o “herói da justiça” (MORIN, 1984, p.8). Mas essa realidade mudou, conforme as massas populares, que eram o grande público de cinema, passavam a ser estimuladas a desejar e consumir o modo de vida burguês. Assim como o teatro aproximou sua temática de uma realidade burguesa para condizer com os anseios dessa classe, o cinema fez o mesmo para condizer com o desejo de uma classe que ansiava ser burguesa. Então, uma nova abordagem para o cinema, mais próxima dessa realidade, pedia um novo tipo de ator e as ideias de interpretação realista sistematizadas por Stanislavski foram a pedra angular dessa nova abordagem de interpretação cinematográfica. Segundo Morin:

Um movimento natural faz as massas ascenderem ao nível afetivo da personalidade burguesa. Suas necessidades são moldadas pelos modelos- padrão reinantes, que são os da cultura burguesa. [...] Dessa forma, o aburguesamento do imaginário cinematográfico corresponde ao aburguesamento da psicologia popular. [...] Uma vez que as necessidades de assimilação afetiva se dirigem em primeiro lugar aos heróis dos filmes, as estrelas foram o primeiro objeto dessa transformação. (1984, p. 12).

As metodologias de treinamento do ator e criação da cena elaboradas por Stanislavski espalharam-se pelo mundo, tendo grande aceitação nos países anglo- saxões, e chegaram aos EUA nos anos 20 com uma turnê do Teatro de Arte de

12 Moscou. Após essa turnê, permaneceram no país os atores Richard Boleslavski e Maria Ouspenskaya que fundaram o “American Laboratory Theatre” e é dele que surge o “Group Theatre”, formado por, dentre outros, Lee Strasberg, Elia Kazan e Stella Adler.

Strasberg, a partir de seus estudos, principalmente embasados em “A Preparação do Ator”, livro de Stanislavski lançado nos Estados Unidos em 1936 (GONÇALVES, 1999 apud STANISLAVSKI, 1999), desenvolveu o chamado “Método”, técnica de interpretação que formou um grande número de atores do cinema americano, como James Dean, Paul Newman, Al Pacino e Dustin Hoffman. Segundo Colombani, o “Método” pode ser resumido no “uso de exercícios técnicos que encorajam o ator a trazer a tona, a qualquer momento de uma cena, emoções autênticas de sua memória pessoal.” (2013, p.8, tradução nossa) 6. Karina Longworth faz semelhante análise e completa:

No Actor’s Studio, Strasberg introduzia técnicas como a improvisação e a memória afetiva (também chamada de “substituição”) para ensinar aos atores como trazer a vitalidade da experiência vivida para o texto estático do roteiro. Um ator usando o Método de Strasberg deve, por exemplo, se preparar para uma cena de um personagem em luto se recordando como ele se sentiu quando alguém próximo a ele morreu na vida real; caso ele não tivesse uma morte para recorrer, o ator deveria tentar substituir com a memória de outro evento que o fez sentir tristeza semelhante. (2013, p. 42, tradução nossa) 7.

Como a observação das pesquisadoras indica, trata-se de um método muito enraizado na relação do evento realizado em cena com a emoção provocada por eventos que ocorreram e marcaram o ator durante sua vida privada; a construção do personagem e da cena se dá de dentro para fora do ator.

6 The Stanislavski Method, as taught at Actor’s Studio, is well-known for using tecnical exercices to encourage actors to draw out at any momento f a scene authentic emotions from their personal memories. 7 At the Actor’s Studio, Strasberg instilled techniques like improvisation and affective memory (also called “substitution”) to teach actors to bring the vitality of lived experience to the static text of the script. An actor using the Strasberg Method might, for example, prepare for a scene featuring a character in mourning by recalling what it felt like when someone close to him died in real life; if he dindn’t have a death to drawn on, the actor would try to substitute the memory of another event that made him fell comparative sorrow.

13 É a esse “Método” ao qual geralmente Marlon Brando é associado por muitos estudiosos, que não fazem a distinção das variadas metodologias de interpretação presentes no mesmo período. Contudo, Brando foi aluno de Stella Adler, que, apesar de trabalhar inicialmente em parceria com Strasberg, rompeu com o colega principalmente por discordar de sua abordagem e desenvolvimento sobre a utilização da memória emotiva do ator, aquela “que faz [o ator] reviver emoções já sentidas alguma vez” (STANISLAVSKI, 2001, p.131), para a composição do personagem ou da cena. Adler, a partir de seu encontro com Stanislavski em Paris nos anos 30, quando ele já desenvolvia os escritos de seu seguinte livro, “A Construção da Personagem”, desenvolveu uma metodologia de trabalho do ator que, segundo Elia Kazan, “enfatiza mais a caracterização e interpretação do papel do que a memória emotiva.” (1989, apud COLOMBANI, 2013, p. 8, tradução nossa) 8. Tal ênfase na construção externa do personagem (caracterização, ações), em lugar da memória emotiva e dos sentimentos do ator, é uma das principais distinções entre o pensamento de Adler e Strasberg, chegando ela a declarar que o “colega” havia feito um mal para a arte de representar com a criação do seu método (BRANDO, 1994).

Para Adler, ao representar, o ator deve se afastar de si. O drama está atrelado ao fazer e não ao sentir. Ela encorajava os atores a fazer escolhas de ações não óbvias e criativas no palco sem privá-los de localizar a maior gama de motivações internas de seus personagens por meio de sua imaginação, ao invés de fazê-los depender de sua memória pessoal. Ela reconhecia o valor da memória a serviço do personagem, mas a expandia para uma memória que podia ser inventada pelo ator. Seu foco estava na construção de ações e de elementos concretos que sustentassem uma interpretação:

Sua imaginação consiste na habilidade de imaginar coisas nas quais nunca havia pensado antes. Para fazer isso sem grande esforço, você deve estar consciente da riqueza da sua memória, pois a memória coletiva do Homem é

8 Stella Adler was na attractive figure: the daughter of a famous Yiddish actor, a student of Stanislavski in Paris, and a marvelous professor – “a spirited and flamboyant teacher,” writes Kazan in his memoirs, “who emphasizes characterization and role interpretation rather than emotional recall.”.

14 tamanha que ele não esquece de nada que já ouviu, leu ou tocou. [...] Se você se limita somente ao momento social de sua geração, se você está preso dentro dos limites da sua esquina, separado de cada objeto ou período que não diga respeito às suas experiências pessoais, então o resultado será um desrespeito pelo mundo em geral e uma alienação de qualquer coisa que não seja reconhecível como parte de seus hábitos cotidianos. [...] Se você precisa de um limoeiro, mas nunca viu um, terá que imaginar alguma espécie de limoeiro. Você o aceitará como se o tivesse visto. Você o imaginou, portanto, ele existe. (ALDER, 2002, p. 39, 40, 49, grifo nosso).

Nesse sentido, Marlon Brando, por ter estudado com Adler e nunca com Strasberg no famoso Actor’s Studio, não foi discípulo desta escola e a associação direta de sua formação como ator com os preceitos do “Método” é um equívoco ao se estudar o cinema americano. Quando o Actor’s Studio foi fundado, em 1947, Brando já iniciara sua carreira no teatro e estreava a peça que o levaria ao cinema “Um Bonde Chamado Desejo”. Depois disso, ele não voltou à sala de aula (COLOMBANI, 2013). Segundo o próprio Brando:

Depois que obtive algum sucesso, Lee Strasberg tentou ficar com o crédito de ter me ensinado a representar. Ele nunca me ensinou nada. [...] De vez em quando eu ia ao Actor’s Studio nas manhãs de sábado porque Elia Kazan estava lecionando, e habitualmente havia muitas garotas bonitas. Mas Strasberg nunca me ensinou a representar. Stella, sim, e mais tarde, Kazan. (1994, p. 76).

A importância dessa dissociação se dá porque as abordagens de Strasberg e Adler são bem distintas no que tange a construção de um personagem. Enquanto o “Método” de Strasberg aproximava o ator de suas memórias, aproximava ele de si enquanto o fazia acessar um evento passado, Adler propunha a construção de ações, a serem feitas no presente e que estimulassem a imaginação do ator para a escrita poética no momento da cena. Para o cinema, acreditamos, essa abordagem nos pareceu mais interessante. Sem desmerecer a proposta de Strasberg, a de Adler permite que, em um ambiente fragmentado de gravações – para rodar poucos minutos de uma cena se despende muito tempo no qual o ator não está diretamente envolvido –

15 o ator acesse rapidamente e de maneira objetiva elementos de construção da sua cena, suas gestualidades, suas ações e falas, como também a possível emoção requisitada para o momento.

1.1 Chega de homens imbatíveis: Marlon Brando, a fragiidade do líder marginal

Marlon Brando foi um ponto de virada para o ator no cinema. Apesar da liberdade de conduta já presente em atores como James Cagney (NAREMORE, 1988), com Brando, o protagonista masculino se apresentava livre de diversas amarras. Seus personagens serão jovens que se revoltam contra a norma vigente, se colocam à margem e são guiados por suas vontades e não pelo que está pré-estabelecido. Há uma divergência em relação ao mundo que nunca se da tranquilamente. São homens que não conseguem expor ou lidar com seus sentimentos e sensações e acabam os revelando por meio da violência e da imposição bruta de suas vontades, são jovens rebeldes e agressivos.

Essa forma dura, com a qual os personagens de Brando se relacionam com seus sentimentos, se dá de forma evidente em sua ligação com as personagens femininas. O ato de impor sua vontade sexual violentamente, por meio de um estupro como em “Uma Rua Chamada Pecado” (1951) ou por um beijo roubado de maneira invasiva como em “O Selvagem” (Lazlo Benedeck, 1953), “Sindicato de Ladrões” (1954), “Désirée” (Henry Coster,1954), dentre outros, será recorrente na filmografia de Brando principalmente nos anos 50 e 60, mas aparecerá também na maturidade do ator, como em “O Pecado de Todos Nós” (John Houston, 1967) e “O Último Tango em Paris” (Bernardo Bertolucci, 1972). Ainda há, nos personagens de Brando, uma imposição do poder do homem sobre a mulher.

Em contraposição à agressividade de suas ações, estavam seus aspectos visuais. Brando trazia atributos de delicadeza e fragilidade em sua figura, pelos traços

16 finos do seu rosto sem barba, suas sobrancelhas arqueadas, e pelo uso recorrente de roupas apertadas, principalmente jaquetas fechadas, estas, muitas vezes, lhe servindo como proteção do mundo hostil a sua volta.

A fragilidade de Brando também se dá nos aspectos psicológicos de seus personagens, Em “Viva Zapata!” (Elia Kazan, 1952) ele sofre por não saber ler, assim como é rebaixado intelectualmente por seus pares em “Sindicato de Ladrões” (1954). Esses aspectos colocam a figura de Brando em certa “desvantagem”; ele possui uma fraqueza (aleijado, sensível, pouco inteligente) em contraposição a sua força física e beleza. Assim, o espectador se torna menos distante de Brando. Com exceção de seus personagens que eram figuras históricas conhecidas (Marco Antônio, Napoleão Bonaparte), Brando se aproxima do nível do espectador e representa um homem comum, distante do herói mítico e imbatível dos filmes de aventura dos anos 30 e 40.

A aproximação com o “homem comum” tem um recorte específico com a juventude que surgia pós Segunda Guerra Mundial. “A juventude, um grupo com consciência própria [...] agora se tornava um agente social independente” (HOBSBAWM, 1995, p. 317) e buscava uma identidade cultural que lhe fosse própria. Para isso, ela não só negou aspectos culturais das gerações anteriores, como foi buscar nas classes proletárias sua inspiração, adotando como estilo musical o rock, um “idioma de adolescentes derivado do blues urbano autóctone dos guetos negros da América do Norte” (ibd, p.496) altamente contestador. Como vestimenta, aderiram ao jeans, uma roupa de operários e vaqueiros cujo uso era vetado em diversos estabelecimentos. As drogas se tornaram populares entre os jovens e apontava-se uma revolução sexual altamente libertária. “Liberação pessoal e liberação social, assim, davam-se as mãos, sendo o sexo e as drogas as maneiras mais óbvias de despedaçar as cadeias do Estado, dos pais e do poder dos vizinhos, da lei e da convenção.” (ibid, p.326)

Ao encarnar o “jovem rebelde” no cinema, Brando foi fruto e também determinador dessa geração de jovens. Seu estilo de interpretar era livre e solto, cheio

17 de improvisações e vida, pautada apenas por seus instintos (KAEL, 1968, apud THOMAS, 1973) que faziam com que sua presença transbordasse da tela, algo ainda não visto no cinema. Havia, em seu aparecimento em cena, um humor e arrogância que o assimilavam a um menino durão, um temperamento explosivo em um garoto muito doce. Seus personagens pouco ligavam para seus status, não pretendiam ser homens bem sucedidos. Segundo Pauline Kael:

Brando representou uma reação contra a mania de segurança do pós-guerra. Como protagonista, o Brando do início dos anos 50 não tinha nenhum código, apenas seus instintos. Ele era um desenvolvimento do líder gângster, do fora da lei. Ele era antissocial porque sabia que a sociedade era um lixo; ele era um herói para a juventude porque ele foi forte o bastante para não engolir o lixo. [Na Inglaterra se pensou que O Selvagem incitaria os adolescentes à violência.] [...] Brando representou uma versão contemporânea do Americano livre. (1968, apud THOMAS, 1973, p.1, tradução nossa) 9.

Foram em suas participações consecutivas em ”Espíritos Indômitos” (Fred Zinnerman, 1950), “Uma Rua Chamada Pecado” (1951), “O Selvagem” (1953) e “Sindicato de Ladrões” (1954) que Brando cunhou a imagem do rebelde sem causa, mais tarde imortalizado por James Dean em “Juventude Transviada” (Nicholas Ray, 1955). Ambos se tornaram símbolos de uma geração de jovens que estavam insatisfeitos com a sociedade e com a obrigação de serem homens bem sucedidos e, juntos com o rock, influenciaram toda uma geração.

É verdade que eu sempre detestei o conformismo porque ele gera mediocridade, mas a verdadeira origem da minha fama de rebelde foi a minha recusa em seguir as regras de Hollywood. [...] Esperava-se que todo ator adulasse os colunistas sociais, fizesse cara alegre e fornecesse detalhes de sua vida pessoal; em suma, que fizesse o jogo deles, que, em troca o ajudariam

9 Brando represented a reaction against the post-war mania for security. As a protagonist, the Brando of the early fifities had no code, only his instincts. He was a development of the gangster leader and the outlaw. He was antissocial because He knew society was crap; He was a hero to youth because He was strong enouth not to take the crap. (In England it was thought that The Wild One would incite adolescents to violence.) (...) Brando represented a contemporary version on the free American.

18 e vender entradas para seus filmes e a estabelecer o rumo de sua carreira. (BRANDO, 1994, p. 184).

Embora Brando relutasse em ser uma estrela, essa postura dentro e fora da tela serviram de material para que Hollywood criasse a persona de Brando como um “jovem rebelde” e, assim, vendesse seus filmes e os modos de viver e se vestir associados a ele. Segundo Morin, “a tendência mimética não poupa se quer o sistema piloso masculino, que fez triunfar sucessivamente os penteados a Marlon Brando e, em seguida, a James Dean” (1984, p.99). As estrelas ditam a moda, a tendência, principalmente em um período no qual uma juventude se encontra perdida pós Segunda Guerra, encontrando no niilismo, na rebeldia, na motocicleta, sua maneira de estar no mundo.

Essa liberdade também aparece na vida pessoal de Brando e nas escolhas sobre sua carreira. Aproveitando o enfraquecimento do sistema de produção de filmes controlados pelo estúdio cinematográfico a partir dos pós Segunda Guerra (HOBSBAWM, 1995), Brando optou por assinar seus contratos a cada filme no qual trabalhou, tendo o comando de com quais produções se envolveria. Ele ficou nove anos sem atuar em nenhum filme (BRANDO, 1994) e, apesar de sua condição de celebridade, relutava em fazer campanhas publicitárias, era avesso a entrevistas, principalmente para falar sobre sua vida pessoal, e utilizava de sua fama muitas vezes para chamar a atenção para questões políticas nas quais era engajado, como a luta por direitos sociais travada pelos indígenas norte-americanos de maneira intensa nos anos 60 e 70.

Dentro desse contexto, vale ressaltar que não raras foram as vezes nas quais ele admitiu detestar atuar (BRANDO, 1994), embora, segundo o pesquisador Tony Thomas, é comum dizer que “toda sua vida é uma encenação, ele nunca parou de atuar” (1973, p. 3, tradução nossa) 10, ou seja, Brando podia detestar atuar no teatro ou

10 ...his hole life is an act, he never stops acting.

19 no cinema, mas a sua persona cinematográfica, Brando como estrela, era uma constante, independentemente de sua aversão ao star system.

É interessante notar que o reconhecimento de Brando é resultado de poucos trabalhos de sucesso de crítica ou público. Seu maior sucesso no teatro, “Um Bonde Chamado Desejo”, foi sua sexta e última peça profissional, com a exceção de uma participação de algumas semanas, em 1957, na montagem de “Arms and the Man” de George Bernard Shaw. Muitas foram as vezes nas quais ele se envolveu em produções cinematográficas pouco expressivas, principalmente nos anos 60, mas que ele acreditava possuírem uma mensagem social relevante ou apenas por questões financeiras, já que, para Brando, o cinema era apenas um mercado. Todavia, Brando era ciente da potência e da influência do cinema e achava que isso poderia ser também utilizado para passar uma mensagem ao mundo. Augusto (1994), Citado por Carlos (2014) pontua o aspecto do reconhecimento que Brando possui mesmo tendo realizado poucos filmes significativos. Além disso, fala do poder da sua imagem, a força que essa estrela tinha quando aparecia na tela:

Apenas nove dos filmes em que atuou contribuíram para sua reputação de forma positiva. Qualquer outro ator teria sido aposentado precocemente com as idiotices que ele, por contingências várias, aceitou fazer. Mas até com seus fracassos ele lucrou, infundindo a crença de ser um ator invariavelmente superior a seus papéis. E sempre tão superior aos seus companheiros de elenco que até mesmo imóvel conseguia roubar-lhes todas as cenas. Nem quando, fato raro, aceitou contracenar com alguém do primeiro time (John Gielgud [1904-2000] e James Manson [1909-1984] em “Júlio César”, Anna Magnani [1908-1973] em “Vidas em Fuga”, Trevor Howard [1913-1988] em “O Grande Motim”, Jack Nicholson [1937] em “Duelo de Gigantes”) deixou de ser o centro de gravidade do filme. “Apocalipse Now” não precisava dele para ser uma obra-prima, mas a expectativa que a sua aparição, nas sequências finais, gera na plateia é uma regalia que só os verdadeiros mitos têm direito. (2014, p. 24).

Essa expectativa que causava a espera por Brando no filme também aponta para a questão de autoria da obra por parte do ator. Ao longo de sua carreira, Brando, mesmo quando não é o protagonista, continua como centro de gravidade do filme, é

20 aquele que o público aguarda o surgimento. Tal aspecto, somado ao aparecimento de constantes temáticas e formais (MACIEL GUIMARÃES, 2012) em seus filmes podem colocá-lo como co-autor dessas obras. Seu estilo de representar, mais relaxado, com falas muitas vezes murmuradas, difíceis de serem compreendidas e cheias de pausas, seus aspectos sensíveis, seu visual com traços andróginos, causaram estranhamento e admiração, ao mesmo tempo em que criaram uma assinatura de sua persona no cinema, influenciando o modo como os diretores o colocavam em cena.

Tais características ajudam a compor a persona cinematográfica Marlon Brando. Para um ator de cinema, sua persona será construída a partir de engajamentos políticos e sociais, culturais e ideológicos ou até muitas vezes na exposição de sua vida privada (MACIEL GUIMARÃES, 2012). Soma-se a esses elementos, o padrão de personagens que ele representa nas telas. No caso de Brando destaca-se a construção da persona a partir do aparecimento recorrente de um homem que é viril e bruto, mas que absorve características frágeis e femininas, em oposição ao galã inatingível personificado por Clark Gable ou Humprhey Bogart nos anos 40 (MORIN, 1984), construindo uma figura que é próxima do espectador.

Essa figura recorrente que se utiliza da violência, tem dificuldade de lidar com seus sentimentos, mas não deixa de expressá-los, que chora e se fragiliza, aparece desde seus filmes dos anos 50, como “O Selvagem” (1953) até nos filmes dos anos 70, como “O Último Tango em Paris” (1972). Por exemplo, nesse filme, Brando interpreta um misterioso e viril dono de hotel que se envolve em um romance com uma jovem francesa, mas que, em determinado ponto se entrega profundamente a dor e a fragilidade acometida pela falta da falecida esposa. Essa violência com o mundo ao redor também acaba se voltando para o próprio Brando, que vai recorrentemente aparecer em situações nas quais seus personagens têm o corpo torturado, machucado, retorcido ou queimado. Tal aspecto, que será desenvolvido mais adiante, parece ser uma escolha do próprio ator, uma marca que ele buscou inscrever em sua filmografia. Durante a produção de “” (Joshua Logan, 1957), ele disse ao diretor, “eu tenho que ter uma cena brutal em cada filme.” (BRANDO, apud THOMAS, 1973, p. 6,

21 tradução nossa) 11. Somadas a essas características, no plano temático, Brando apresenta o constante aparecimento em figuras chefes ou centrais – Emiliano Zapata, Marco Antônio, Napoleão, um xerife ou coronel. Contudo, essas figuras centrais, em geral, estão à margem da sociedade ou se colocam em confronto com ela. Emiliano Zapata é o líder de uma revolução proletária mexicana, o jovem rebelde Johnny de “O Selvagem” (1953) é líder de uma gangue de motociclistas, Don Vito Corleone é um chefão da máfia e o coronel Kurtz é um desertor do exército americano. É como se esses personagens convergissem para um padrão de tipo de personagem. Essas figuras padrão serviriam ao ator em sua assinatura ao mesmo tempo em que se servem das suas próprias características para sua relação com o espectador. Segundo Malraux, esse aspecto de fazer com que seus personagens se curvem em relação a sua persona, se encaixando nela, e que é reconhecido em Brando, é algo intrínseco à estrela:

Uma grande atriz é uma mulher capaz de encarnar um grande número de papéis distintos, uma estrela é uma mulher capaz de dar origem a um grande número de roteiros convergentes. (MALRAUX, 2003, apud MACIEL GUIMARÃES, 2012, p.91).

Não podemos deixar de notar que essa “escolha de um mesmo tipo de personagem” está muitas vezes ligada ao posicionamento político de Brando, em busca de mostrar ao mundo aqueles que, em geral, estão à margem da sociedade. Isso pode ser verificado ao longo de sua biografia, evidenciando o aspecto da criação da estrela de cinema; suas produções artísticas são frutos de suas preferências e escolhas. O ator ficou famoso por sua luta pelos direitos dos negros e nativos norte-americanos, inclusive enviando uma militante da causa indígena para receber seu Oscar de melhor ator por “O Poderoso Chefão” (1972). Escolher os seus trabalhos devido a uma identificação pessoal ou política com a obra e não por obrigação contratual não só reforça a ideia de Brando como um autor de sua obra como também reflete no relativo

11 I’ve got to have one brutal scene in every picture.

22 baixo número de filmes em que Brando atuou: trinta e nove em cinquenta anos. Embora a quantidade seja significativa, vale lembrar que o ator participa apenas de algumas etapas da produção do filme, tendo maior tempo disponível do que o diretor para fazer mais de um filme por ano (MOULLET, 1993).

Essa postura autoral também fez Brando se envolver em diversos aspectos da criação do filme, como alterar o roteiro, o que era uma exigência de seus contratos. Já em 1957, Brando mudou o final de “Sayonara”, no qual o personagem de Brando, Major Lloyd Gruver, se apaixonava pela dançarina japonesa Hana – Ogi (Miiko Taka), mas não terminava a história junto de seu amor. Brando acreditou que esse final era uma afirmação do preconceito perante a união inter-racial e alterou o roteiro, fazendo com que o Major Gruver e Hana – Ogi terminassem juntos:

Achei que a história [de “Sayonara”] [...] defendia indiretamente uma forma de racismo. No entanto, com um final diferente talvez pudesse ser um exemplo dos filmes que eu queria fazer, filmes que exercessem uma influência positiva. Eu disse a Logan que aceitaria o papel se o final Madame Buterfly fosse substituído por outro que declarasse não haver nada errado no casamento inter-racial e que isto é uma consequência natural quando as pessoas se apaixonam. Eu queria que os dois apaixonados se casassem no fim do filme, e Logan concordou. (BRANDO, 1994, p. 201).

A fala de Brando não só confirma seu poder de participar de variados aspectos da produção do filme, como também indica seu desejo de fazer filmes que estivessem sintonizados com seus pensamentos políticos, principalmente a questão racial. Outro exemplo foi a sua participação no filme “Assassinato Sob Custódia” (Euzahn Palcy, 1989) sem receber pagamento por acreditar que a temática do filme – a luta contra o Apartheid na África da Sul – era um tema que deveria ser apresentado e discutido no cinema (BRANDO 1994).

Além de alterar o roteiro do filme como em “Sayonara” (1957) ou “Apocalipse Now” (1979) – no qual Brando reescreveu as falas do coronel Kurtz (BRANDO, 1994) – Brando também fazia alterações de “maneira subterrânea” (MACIEL GUIMARÃES,

23 2012) como fez ao improvisar suas falas ou mudar suas ações em “Sindicato de Ladrões” (1954), no qual ele se recusou aceitar que o personagem Charley (vivido por Rod Steiger) apontasse uma arma para seu irmão Terry (Brando) e improvisou toda uma cena a partir dessa ação (COLOMBANI 2013). Em “O Poderoso Chefão” (1972), Brando improvisava muitas de suas falas. Ele tinha o roteiro como um guia no qual ele criava suas propostas (BRANDO, 1994). Ele também utilizava dessa liberdade para propor não só textos como também ações e puxar a atenção da cena ou da câmera para si. Segundo o ator :

[Em uma cena de Sindicato de Ladrões] o que você vê no filme é ele coçando a parte de trás da cabeça, enquanto eu estou falando e chegando cada vez mais perto. Ele está roubando a cena de mim, mas eu não me importo. Ele fez a mesma coisa nas filmagens de Uma Rua Chamada Pecado. Ele está olhando para Vivien e diz, “Oh, eu não sabia que você viria”, e então ele vai até a caixa de gelo, e ele coça as costas conforme ele se afasta. Normalmente a câmera iria para Vivien, mas ela o segue enquanto ele coça as costas. Você vê, ele sabe onde se coçar. Isso era o melhor, isso era o que eu amava nele. Entretanto, outras pessoas o odiavam por isso, porque elas viam isso como monopolizar a atuação. (apud MANSO, 1994, p. 367, tradução nossa) 12.

São essas abordagens técnicas, constantes formais e temáticas e a persona de Brando que servirão de norteadores para as reflexões dessa pesquisa, na qual determinamos duas “figuras essenciais” no aparecimento de Brando no cinema: o “jovem rebelde”, aparecendo principalmente nos anos 50 e o “padrinho”, consolidado nos anos 70. Essas duas figuras funcionarão mais como uma lente à frente do objeto estudado – Marlon Brando – do que a busca por uma certeza nessa definição. Essa segunda opção seria matar o trabalho do ator, seria prendê-lo a uma forma estanque de aparecimento nos filmes, o que não é o caso.

12 What you see in the picture is his scratching the back of his head, while I’m talking, walking closer and closer and closer. He’s stealing the scene of me, but I don’t mind it. He had done the same thing in the filming of Streetcar. He’s watching Vivien and he says, “Oh, I din’t know you were coming,” and then as he goes to the icebox, he scraches his back as he walks away. Ordinarily the câmera would go to Vivien, but it’s following him scratching his back. See, he knows where to scratch. That’s what’s good, that’s what I love about him. Other people hate him for it, though, because they see it as hogging the act.

24 2. A CENA CRIADA PELA FUSÃO DE UM ROTEIRO COM UMA PERSONALIDADE

Posso solo questo sogno scusa per la mia fantasia/ giu' in platea sedie di legno/ gole secche per la sete d'eroi/ E Marlon Brando è sempre lui/ uooh lui, ooh lui/ Marlon Brando è sempre lui/ ooh lui, ooh lu/i Un po' piu' avanti con negli occhi ancora tanto flm/ Terry Malloy infine, vince lui/ Lui le dice come vedi siamo sempre qui/ e non è obbligatorio essere eroi13. (LIGABUE, 1990)

O segundo filme de Brando, “Uma Rua Chamada Pecado” (1951) foi dirigido por Elia Kazan, tem como título original “A Streetcar Named Desire” 14 e é baseado na peça homônima de Tennessee Williams. O filme se passa em Nova Orleans e conta sobre a chegada de Blanche DuBois (Vivien Leigh) na casa onde sua irmã, Stella (Kim Hunter) vive com o marido Stanley Kowalski (Marlon Brando).

Stanley trabalha em uma fábrica, gosta de pôquer, boliche e cerveja. Nutre um carinho e amor por Stella e é um homem bruto que não gosta de dar satisfação a ninguém. Ele pouco aprecia a chegada de sua cunhada com uma mala enorme, cheia de roupas caras e a notícia da perda da propriedade da família, Belle Reve. Ele percebe que Blanche perdeu toda a herança com joias e uma vida luxuosa, enquanto ele e a esposa vivem uma vida pobre. A partir daí, inicia-se um grande embate entre os dois, que mistura ódio e tensão sexual em grandes e iguais intensidades terminando com a vitória de Stanley e a loucura de Blanche.

Na análise de “Uma Rua Chamada Pecado” (1951), não podemos desconsiderar o fato de o filme ser quase a transposição da peça montada na Broadway quatro anos antes. Elia Kazan, diretor do filme, dirigiu também a peça e Tennessee Williams foi quem escreveu o roteiro. Além disso, o texto final da peça foi elaborado após a

13 Em tradução livre: “Posso apenas este sonho, desculpe pela minha fantasia/ Na plateia, cadeiras de madeira/ Gargantas secas pela sede de heróis,/ E o Marlon Brando é sempre o mesmo/Ooooh o mesmo, oooh o mesmo/ Marlon Brando é sempre o mesmo/ Ooooh o mesmo, oooh o mesmo/ Um pouco para frente com muitos filmes nos olhos/ Terry Malloy, no final, ele vence/ Ele fala pra ela ‘como você pode ver estamos sempre aqui/ E não é obrigatório ser herói’”. 14 No Brasil, a peça teve seu título traduzido para “Um Bonde Chamado Desejo”.

25 montagem teatral de Kazan, e inclui elementos adicionados pelo diretor e pelo elenco da montagem em Nova York (COLOMBANI 2013).

Com exceção da troca de Jessica Tandy por Vivien Leigh no papel de Blanche DuBois, por uma exigência do estúdio que queria uma estrela no papel, o elenco principal do filme é igual ao da peça. Mesmo Leigh, que veio como elemento externo, também reprisava o papel de Blanche, já que acabara de interpretá-lo na versão londrina da peça dirigida por Lawrence Olivier, seu marido.

Assim, temos um caso raro no qual o diretor e os atores já eram profundamente íntimos da obra a ser filmada; o processo de filmagem foi quase como refazer a peça, tanto que, apesar de uma tentativa inicial, logo abandonada por Kazan, de abrir o espaço onde corre a ação da peça (THOMAS, 1973), o filme se passa quase inteiramente em estúdio, em um apartamento muito semelhante ao cenário da montagem nova-iorquina, reforçando o aspecto “teatral” do filme.

O cenário fechado de estúdio somado a aproximação da câmera reforçam as relações já presentes no texto, cujo foco é o embate entre Stanley e Blanche, personagens extremamente fortes. Estes recursos potencializam a captação das nuances dos personagens, em um desnudamento de seus impulsos, medos e desejos, o que foi reconhecido em diversas premiações para o elenco, incluindo um Oscar para Vivien Leigh e uma indiação ao prêmio para Brando. Essa potencialização do texto pelo dispositivo cinematográfico fez que tanto Brando quanto o próprio Williams declarassem sua preferência ao filme a sua montagem teatral (BRANDO 1994).

26 Foto 1 - O cenário de “A Streetcar Named Desire” na montagem em Nova York

Fonte: Blog Eve’s Reel Life15.

Foto 2 - O Set de filmagem do apartamento de Stanley no filme.

Fonte: Print screen de “Uma Rua Chamada Pecado” (1951).

15 Disponível em: . Acesso em ago. 2013.

27 2.1 A construção de um personagem

Não me ocorrera que valor excelente apareceria ao escolher um ator tão jovem para o papel. Isso humaniza o personagem Stanley, pois se trata da brutalidade e insensibilidade do jovem e não de um homem mais velho e perverso. Não quero concentrar a culpa nem responsabilizar em particular nenhum dos personagens; quero que seja uma tragédia de sentimentos e de insensibilidade com os outros. (WILLIAMS,1947, apud, BRANDO, 1994, grifo nosso).

Foi com Stanley Kowalski que Brando consolidou sua persona cinematográfica como a do homem bruto e extremamente sexualizado, uma das bases que configuram o “jovem rebelde”. Stanley é o personagem que, junto com Don Vito Corleone de “O Poderoso Chefão” (1972), mais forte marcou a carreira de Brando. Isso ocorre não só porque o star system americano criava suas estrelas segundo uma padronização de tipos (MORIN 1984), mas porque Brando o representou de maneira tão intensa que esse personagem se tornou sua pedra angular.

Tennessee fixou uma associação entre eu e Kowalski. Eu quero dizer, nós somos amigos e ele sabe que como pessoa eu sou justamente o oposto de Kowalski, que era tudo aquilo que sou contra – totalmente insensível, bruto, cruel. Mas ainda assim, a imagem que Tennessee tem de mim é confundida pelo fato de que eu interpretei essas coisas. Então, eu não sei se ele poderia escrever para mim em uma diferente gama de cores. (BRANDO, apud, CAPOTE, 1957 tradução nossa) 16.

Essa amálgama entre ator e personagem é tão intensa que a interpretação de Brando ainda é parâmetro para outros atores que realizam o papel de Stanley no teatro ou no cinema. Exemplo disso foi a crítica de David Rooney sobre a atuação de Joel Edgerton no papel de Stanley na versão dirigida por Liv Ulman: “Uma performance sem

16 Tennessee has made a fixed association between me and Kowalski. I mean, we’re friends and he knows that as a person I am just the opposite of Kowalski, who was everything I’m against – totaly insensitive, crude, cruel. But still Tennessee’s image of me is confused whith the fact that I played that part. So I don’t know If he could write for me in a different color range.

28 dívidas com o molde definitivo de Marlon Brando” (2009, tradução nossa) 17, ou seja, é Brando, mesmo após sua morte, quem determina o modo como Stanley Kowalski deve ser interpretado.

Alguns críticos na época do filme sugeriram que a interpretação de Stanley era apenas Brando representando a si mesmo, mas tal afirmação não condiz com o seu modo de trabalho. Brando era um ator que buscava observar e entender os homens a sua volta. “Encontrei muitos Stanley Kowalskis na minha vida: animais musculosos, inarticulados e agressivos que passam pela vida reagindo apenas aos próprios desejos, sem jamais duvidar de si mesmos, [...], percebendo pouca coisa de si próprios.” (BRANDO, 1994, p. 104). Esse aspecto é importante de ser destacado porque indica como era o processo de Brando para a construção de seus personagens. Ele se dava muito pela observação do mundo ao redor, o que Adler vai chamar de “Consciente Coletivo” (2002). Adler diz que “os atores devem exercitar seu poder de observação. Você [o ator] deve estar continuamente atento às mudanças em curso no seu mundo social.” (2002, p. 47). Tanto Adler quanto Stanislavski vão ressaltar a observação como ferramenta importante na construção de personagens. É através de seu olhar para fora, da busca inquieta por detalhes do mundo ao redor que o ator capta os materiais para o seu fazer artístico:

Um ator deve ser observador não só quando está em cena, mas também na vida real. Deve concentrar-se, com todo seu ser, em tudo o que chame sua atenção. [...] Em média, as pessoas não fazem ideia de como se deve observar a expressão facial, o jeito de olhar e o tom da voz, para que possam entender o estado de espírito daqueles com quem conversam. Se pudessem fazê-lo, [...] o seu trabalho criador seria infinitamente mais rico, sutil e profundo. Isto [...] exige uma imensa quantidade de trabalho, tempo, vontade de ser bem sucedido e prática sistemática. [...] Esse esforço os levará a observar mais de perto o objeto, e a fazê-lo com mais eficácia; [...] e não tentem negligenciar o lado mais sombrio da natureza [...] A desfiguração muitas vezes [...] realça a beleza. (STANISLAVSKI, 1997 p. 144-145).

17 A performance indebted to the defining mold of Marlon Brando.

29 No caso de Brando, foi comum a realização de laboratórios no início de sua carreira seja para observar ou vivenciar a situação na qual o personagem estaria envolvido, como fez ao visitar o porto em “Sindicato de Ladrões” (1954), ou quando passou a morar um tempo com mexicanos enquanto estudava as publicações sobre Emiliano Zapata (THOMAS, 1973). Para viver um veterano de guerra paraplégico em “Espíritos Indômitos” (1950), Brando passou três meses internado como um paraplégico no Hospital de Veteranos de Guerra em Birmingham, no sul da Califórnia, onde a maioria dos pacientes não sabia que Brando era um ator estudando seu papel.

Outro dado que evidencia a construção de um personagem por parte de Brando é a sua formação com Adler estar muito focada na construção de um imaginário das características físicas e das ações de um personagem (BOGDANOVICH, 2000). Ou seja, em seu trabalho, Brando buscava construir um personagem que fosse condizente com o texto, por meio de ações que o revelassem e não por um acesso voluntário de sua memória emotiva. Segundo Brando, Kowalski “era um compêndio da minha imaginação, baseado nas falas da peça. Eu o criei com base nas palavras de Tennessee.” (1994, p.104). Essa fala destaca o modelo de criação distanciada de suas memórias pessoais, focado na imaginação a partir do texto e é fator que o conecta diretamente com os escritos de Alder.

Para Adler, a imaginação é fator majoritário na construção de um personagem. Isso porque, a princípio, a cena é uma instância criada por uma série de imaginações, a do roteirista (ou dramaturgo), a do diretor e também a do ator. Assim sendo, a imaginação do ator é um dos alicerces para a construção da verdade em cena, ou seja, “se um fato não conseguir passar pela imaginação do ator, ele parecerá falso” (ADLER, 2002, p.39). Para ela, o ator deve ancorar sua criação na “imaginação coletiva do homem” (ibid, p.39), um conhecimento que não se limita a sua experiência pessoal, mas é adquirida pelo contato com outras áreas do conhecimento como História, Filosofia e Literatura. Esses aspectos ajudam a compreender o desejo de Brando no cinema. Para ele e Adler, a obra produzida, seja uma peça ou filme, deve possuir alguma importância política. Essa ideia se alia a de Piscator, diretor do Dramatic

30 Workshop da New School for Social Research, escola onde Adler deu aulas para Brando.

O diretor alemão Erwin Piscator foi, juntamente com Bertolt Brecht, um dos expoentes do teatro político no século XX. Em sua obra, Piscator buscava falar de um microcosmo para abarcar um macrocosmo. Mesmo em uma peça sobre “um aposento apertado com homens infelizes; [Piscator] queria pensar nas dimensões de um bairro miserável da megalópole moderna”. (PISCATOR apud SZONDI, 2001, p. 128). Ele queria, em sua obra, abarcar o todo ao falar de uma parte, buscando refletir sobre os mecanismos políticos que determinam o sujeito:

Sobre o palco, o homem tem para nós o significado de uma função social. Não é a sua relação consigo, não é a sua relação com Deus que está no centro, mas sua relação com a sociedade. Onde ele se apresenta, como ele se apresenta, ao mesmo tempo, sua classe ou sua camada social. Quando ele entra em conflito, moral ou psíquico ou afetivo, entra em conflito com a sociedade. [...] Num tempo em que estão na ordem do dia as relações recíprocas da universalidade, a revisão de todos os valores humanos e a reestruturação de todas as relações sociais, não se pode ver o homem senão em sua atitude frente à sociedade e aos problemas de sua época, isto é, como um ser político – que não parte de nós, mas sim da desarmonia das atuais condições sociais, que fazem de toda manifestação de vida uma manifestação política – talvez leve em certo sentido a uma deformação da imagem ideal do homem, essa imagem possui em todo caso o mérito de corresponder à realidade. (PISCATOR apud SZONDI, 2001, p. 129-130).

A partir da fala de Piscator, podemos estabelecer um paralelo com a figura contestadora que Brando traz, com o “jovem rebelde” que vai contra o sistema social hegemônico. Diferente dos heróis dos anos 20 e 30, com os personagem de Brando ocorre uma deformação da figura do herói, que a aproxima mais da realidade, evidente em filmes como “Viva Zapata!” (1952) e “Sindicato de Ladrões” (1954) que, a partir de seu aspecto local (o sul do México ou o cais do porto de Hoboken) buscam abarcar as relações sociais que determinam o caráter de seus personagens.

Além da observação, imaginação e ligação com elementos políticos, para Brando a composição de cena e personagem se dá por elementos plásticos (figurino,

31 maquiagem), movimentação, concepção dos diálogos, da relação com os objetos. Na escola, Brando teve aulas de técnicas de maquiagem, voz, mímica e acrobacia. Esses elementos para a construção do personagem reverberam no fazer de Brando, que aparece em quase toda sua filmografia com diferentes sotaques, posturas, modos de caminhar e com ao menos um detalhe de maquiagem – muitas vezes uma prótese – em sua composição, feito por ele ou por seu maquiador pessoal, como no caso do japonês Sakini em “A Casa de Chá do Luar de Agosto” (Daniel Mann, 1956) ou do mafioso Don Vito Corleone em “O Poderoso Chefão” (1972).

Foto 3 - As diversas maquiagens de Brando.

Fonte: Montagem elaborada pelo autor a partir de fontes variadas18.

18 Disponível em: ,< goo.gl/48H9p7>,< goo.gl/lY8YNi>, ,< goo.gl/7T5lxJ>, . Acesso em 09 jun. 2013.

32 No que tange a imaginação, Adler propõe exercícios que estimulem o desenvolvimento da criação em cena, evocando a ideia já citada de “consciente coletivo”, uma memória que é coletiva e é adquirida por meio da observação e da imaginação. Dentre esses exercícios, podemos destacar:

Exercício 12 Uma atriz deixou roupas limpas arrumadas num cabide do camarim. Veja cada artigo do vestuário e descreva-o instantaneamente.  De que cor era o tailleur?  Como era feira a gola?  Onde eram os bolsos do tailleur?  De que material era feito o tailleur?  Onde são os botões? [...] Exercício 16 Ver Especificamente Descreva uma pedra. Esta pedra é minha, apanhada no parque. “Eu vi uma grande pedra no parque. Era cinza e sua superfície era irregular. Em torno dela havia grama, porém alguns trechos já estavam mortos e amarelecidos.” Para tornar a pedra mais vívida para seu parceiro, você amplia o que vê. [...] Exercício 21 Ver as Simples e Eternas Cenas da Natureza e do Comportamento Humano em seu Cenário Histórico. Há atividades do Homem, hoje, que existiram ao longo da História. Coisas que se veem todo dia, sem lhes dar a maior atenção, têm uma vida histórica. A título de exercício, anote vinte atividades que permanecerão para sempre, tais como: 1. Um homem brincando com cachorro. 2. Uma mulher empurrando um carrinho de bebê. 3. Um homem comprando um jornal. 4. Um rapaz e uma moça dando-se as mãos. 5. Uma mulher carregando cesta de roupa suja. Os atores devem exercitar seu poder de observação. (ADLER, 2002, p. 41-44-45-46-47).

33

Adler, nesse sentido, está de acordo com os escritos de Stanislavski sobre a ação em cena, que ampliam a questão da imaginação para a relação concreta provocada pelos materiais que cercam o ator, sejam eles visuais, sonoros ou até olfativos com o objetivo de criar imagens para a construção de uma situação em cena já que “embora nossos sentimentos e nossas experiências emocionais sejam mutáveis e impossíveis de captar [...] as imagens se fixam com muito mais facilidade e firmeza em nossa memória visual e podem ser evocadas à vontade.” (STANISLAVSKI, 1999, p.97). Em suas falas, tanto Stanislavski quanto Adler evidenciam seu foco em uma construção de cena apoiada em elementos concretos que pudessem ser evocados pelo ator e não tanto por sua memória de um evento semelhante ao realizado em cena.

2.2 Stanley Kowlaski - A imagem eternizada de Brando

O primeiro vislumbre que o público tem de Stanley em “Uma Rua Chamada Pecado” (1951) ocorre de longe e nela vemos um homem jovem brigando com vários outros em meio a uma pista de boliche. A essa imagem, segue o comentário de sua esposa, Stella, à irmã que o vê pela primeira vez, “Ele não é maravilhoso?” 19. As duas saem sozinhas do boliche e falam sobre ele, Stella diz que ele é lindo, mas a cunhada o diminui, gozando de sua ascendência polonesa e de sua maneira bruta. O diálogo das irmãs prepara sua segunda cena, agora, filmado de perto. Esse recurso de adiar a introdução da estrela no filme é utilizado por muitos cineastas para que o espectador crie uma expectativa de seu aparecimento (MOULLET, 1993) e será amplamente utilizado na filmografia de Brando.

Na segunda vez que Stanley surge na tela, voltando para casa depois da partida de boliche, a cena segue a mesma tônica de sexualização da imagem de Brando20. Ele

19 Minutagem do filme como referência para esta cena: Um Bonde Chamado Desejo: de 03’ 54’’ a 04’50’’. 20 Minutagem do filme como referência para esta cena: Um Bonde Chamado Desejo: de 10’57’’a 13’24’’

34 aparece suado do jogo, entra em casa e conhece a cunhada, que está sozinha. Nessa cena, o corpo de Brando é utilizado como objeto de desejo no jogo de sedução entre os dois personagens, jogo este que, somado à decupagem de câmera e trilha sonora, aumenta a tensão da cena. Ele entra no apartamento, olha para ela, que sorri desajeitada: “Você deve ser Stanley, eu sou Blanche”. Esse é o começo de uma coreografia de Brando com Leigh e a câmera, na qual o ator tira sua jaqueta, anda em direção à cozinha, onde pega uma cerveja e encosta-se na pia. Então, ele caminha para o quarto, trocando de camiseta: “esteja confortável, esse é o meu lema”, e depois se volta para Blanche, parando muito próximo e olhando-a de cima a baixo até que um miado vindo da rua a assusta. Em um impulso, Blanche agarra o braço de Stanley que, impassível, olha para a mão dela em seu braço e ironicamente comenta “ah, esses gatos”. Logo depois, é ele mesmo quem imita um alto miado de gato, assustando Blanche e deixando olhando para ela com sedutora crueldade (COLOMBANI, 2013).

Nessa cena, Brando percorre o cenário com pequenas pausas, obrigando a câmera a seguir seus passos, enquanto Leigh permanece imóvel no meio da sala. Essa imobilidade dá um ar de ameaça a sua chegada, como um predador que percorre e demarca seu território ou espreita sua presa. É a postura de um ator que propõe a construção de uma cena por meio do jogo com o dispositivo cinematográfico, a câmera, e com os padrões de filmagem do cinema clássico, que determinam que a câmera tenda a seguir o ator que age, fala ou se movimenta na cena.

A utilização do corpo de Brando como símbolo sexual acontece em diversos filmes nos anos 50, 60 e 70. Algumas vezes, a exploração da sensualidade se dá pela utilização de seu peito nu, das formas atléticas de seu corpo, como Elia Kazan faz novamente, mas dessa vez com sutileza, em “Viva Zapata!” (1952). O uso do torso nu de Brando também é empregado em “Júlio César” (Joseph L Mankiewicz, 1953), filme no qual Brando interpreta Marco Antônio. Aqui o corpo de Brando evoca, por meio de sua musculatura definida, seu nariz aquilino, seus cabelos claros, a idealização nazista da raça de corpo ideal, viril e forte, já que era intenção do diretor estreitar a relação entre a figura de César no texto shakespeariano e o totalitarismo da Alemanha nazista

35 (COLOMBANI 2013). Já em outras situações a sensualidade de sua imagem se dá quando o corpo Brando é “escondido” pelo figurino – como o motoqueiro “fetiche”, Johnny, em “O Selvagem” (1953) – ou por closes no rosto de Brando, como em “Sindicato de Ladrões” (1954). Fora do cinema, “nas revistas, suas fotos em preto e branco passam uma sensualidade que contrasta com o clima modorrento da era Eisenhower” (FORESTIER, 2014, p.50). Ou seja, a sensualidade de Brando era algo que reforçava seus aspectos rebeldes. Essa repetição do aparecimento de Brando é tão forte que dá a ideia de uma continuidade e evolução de seus papéis e marcam a persona de Brando como símbolo sexual mesmo ele sendo avesso a aparições na mídia ou em publicidades.

Fotos 4, 5, 6 e 7 – O Corpo de Brando.

Fonte: Print screen de “Uma Rua Chamada Pecado” (1951), “Viva Zapata!” (1952), Júlio César (1953) e O Selvagem (1953).

36 2.3 Personagens femininos e suas atrizes.

Em todos os casos, o parceiro é necessário para dar-lhe a sua ação, e você terá que conhecer a atitude dele com respeito a tudo. [...] Você deve conhecer o papel do seu parceiro tão bem quanto o seu. (ADLER, 2002, p. 119).

“Uma Rua chamada Pecado” (1951) nos apresenta uma relação que será comum dos personagens de Brando com personagens femininas: a imposição de suas vontades e desejos ao mesmo tempo em que absorve as características do outro e é dependente dele. No caso de Stanley, ele agride a esposa e, logo em seguida é doce e carinhoso com dela. Ao longo do filme, essa relação é dividida entre Stella, e a irmã dela, Blanche.

Blanche DuBois foi, ao lado de Scarlet O’Hara, o papel mais marcante de Vivien Leigh. As personagens apresentam temáticas próximas: Ambas viveram o esplendor de um passado aristocrático no Sul dos EUA e uma posterior luta para sobreviver nesse duro território após a perda de uma propriedade da família - Belle Reve no caso de Blanche e Tara para Scarlet. Além disso, Leigh foi profundamente marcada pela personagem, declarando na época das filmagens: “Eu tive nove messes de Blanche DuBois no teatro. Agora ela está no comando de mim em Hollywood” (LEIGH apud COLOMBANI, 2013, p.21, tradução nossa) 21. A interpretação de DuBois marcará tanto Leigh que, já mais velha e em um hospital psiquiátrico, ela carregará marcas de sua personagem. Certa vez, para reconfortá-la de um delírio, uma enfermeira gritou: “'Eu sei quem você é. Você é Scarlet O’Hara, não é?' Ao que a atriz respondeu prontamente 'Eu não sou Scarlet O’Hara, eu sou Blanche DuBois.’” (COLOMBANI, 2013, p.21, tradução

21 I had nine months in the theatre of Blanche Dubois. Now, she’s in commmand of me in Hollywood.

37 nossa) 22. Leigh era também uma estrela e sua persona foi tão forte para ela, que essa relação imposta pelo star system terminou por consumi-la.

Em “Uma Rua Chamada Pecado” (1951), o confronto entre Stanley e Blanche se dá em cena, mas, fora da instância ficcional, o embate também ocorreu pelos procedimentos distintos que Brando e Leigh utilizaram para interpretar seus papéis. Já na montagem da peça, Brando fazia várias improvisações e brincadeiras em cena para desconcentrar Jessica Tandy – que interpretava Blanche na montagem teatral – ou chamar para si a atenção do público, como colocar um cigarro em seu nariz enquanto Tandy era o foco da cena, ou pigarrear durante as falas da atriz, o que gerou atrito entre os dois (COLOMBANI, 2013). No filme, apesar não brincar com sua colega em cena, foi a colisão entre o estilo formal inglês de interpretação de Leigh com o estilo solto e improvisado de Brando que contribuiu também para o distanciamento entre Blanche e Stanley. “Você nunca sabe o que ele fará em seguida, aonde ele irá ou o que ele falará” (LEIGH apud COLOMBANI, 2013, p.21, tradução nossa) 23 declarou a atriz sobre as mudanças que Brando fazia nas cenas. Segundo Colombani, “sua capacidade de mudar a cada tomada se tornou lendária. Seus suspiros ou murmúrios repentinos interrompiam as falas dos outros atores, seus movimentos surpreendiam os outros e deixavam o operador de câmera enlouquecido.” (2013, p.21, tradução nossa) 24. Ou seja, esse conflito de jogo ocorre porque Brando era também um jovem rebelde, seu procedimento de interpretação e sua postura, no palco ou em cena, se chocavam com o sistema vigente e estavam descompassados com os atores de gerações anteriores.

Se, na relação com a cunhada, os vetores norteadores são a violência e a tensão sexual, em sua relação com Stella, Stanley apresenta, além desses vetores, uma ternura, como se ele tivesse absorvido a feminilidade da esposa. Se com Blanche é Stanley quem anda em oposição à imobilidade da cunhada, mandando no jogo de

22 “I know Who you are. You’re Scarlett O’Hara, aren’t you?” The actress snapped back at her, “I’m not Scarlett O’Hara. I’m Blanche DuBois.” 23 You never know what he’s going to do next, where he’s going to be or what he’s going to say 24 His capacity to change things in each take has become legendary. His sudden sighs or murmurs interrupted the lines of other actors; his movements surprised them and drove the cameraman crazy.

38 sedução, acuando Blanche na sala, com Stella, ele se deixa seduzir. Exemplo disso ocorre na cena após o jogo de pôquer, na qual Stanley, bêbado, quebra tudo, expulsa os amigos e bate na esposa, que foge para o apartamento de cima. Em seguida ele cai em si e vai para a frente da casa chorando pelo retorno da esposa enquanto grita: “Stella!... Hey, Stella!”. Ela aparece no terraço e agora é Stanley que permanece imóvel, como quem é seduzido, enquanto Stella desce a escada, movimenta-se e o seduz, em espelho à primeira vez em que Brando aparece no filme. A diferença aqui é que o corpo seduzido (Stanley) se entrega completamente ao corpo que o seduz (Stella). A sensação de perigo não existe e a fragilidade de Kowalski é revelada pela presença feminina e demonstrada somente a ela25.

Essa dicotomia entre violência e doçura, ou fragilidade, também aparece na cena (uma das últimas do filme) na qual Stanley estupra a cunhada. Estando os dois a sós em casa, após Stanley encontrar Blanche em um delírio no qual dizia que recebera o convite de um milionário para viajar em um cruzeiro, ele a atira na cama e a agarra gritando “Você sabe do que eu estou falando? Há, há! Você me escuta? Há, há, há!”. Logo em seguida, ele deixa a cunhada na cama e entra no banheiro para trocar de roupa, de onde sai um Stanley gentil, vestindo um pijama de seda que lhe da um ar patético. Mas essa gentileza dura pouco, porque Stanley já passa a olhar a cunhada maliciosamente, envolvendo a num jogo de caça e caçador que culmina com o ataque de Stanley sobre Blanche26.

As imposições e arroubos de violência são elementos frequentes na construção das ações de Brando em cena. Esses gestos, como o beijo roubado, ou, como faz Stanley, quebrar a louça para tirar a mesa27 ou quebrar o rádio para desligá-lo, conectam-se com a ideia de Stanislavski sobre a ação em cena, esta devendo sempre se ligar aos elementos da construção de um personagem, como ele pensa e como se relaciona com o mundo (STANISLAVSKI, 2008). Segundo Adler, “uma ação é uma

25 Minutagem do filme como referência para esta cena: Um Bonde Chamado Desejo: 37’15’’ a 41’51’’. 26 Minutagem do filme como referência para esta cena: Um Bonde Chamado Desejo: de 97’10’’ a 108’10’’. 27 Minutagem do filme como referência para esta cena: Um Bonde Chamado Desejo: de 77’52’’ a 81’55’’.

39 coisa que você faz: Ler. Uma ação tem um fim: Estou lendo o jornal. Uma ação é feita em determinadas circunstâncias: Estou lendo no metrô. Uma ação é justificada: Estou lendo para acompanhar a bolsa de valores.” (ADLER, 2002, p.63). Dessa forma, ao falar sobre as ações, Adler propõe um modelo esquemático tanto para sua construção quanto para sua análise.

No caso dos personagens de Brando há uma violência para com um mundo no qual eles não se encaixam que acaba por lhes machucar, e essa dor é expressa por meio de suas ações. Essas ações com um claro objetivo e um fim – a ação termina quando a louça quebra - é o que Adler chamou de “ações fortes” (2002, p.63), que são assim classificadas por possuírem um “objetivo criador” (STANISLAVSKI, 1997, p. 141). O objetivo e a ação, assim, se constroem em conjunto. Para Stanislavksi:

Cada objetivo traz, em si a gênese da ação. [...] Vocês não devem tentar exprimir o significado de seu objetivo em termos de um substantivo, [...] mas devem sempre empregar um verbo [...] (por exemplo, “quero” ou “quero fazer”). Tal objetivo provoca o afloramento de desejos que se voltam para a ânsia de criar. [...] Todos os objetivos físicos terão, em si, algo de um objetivo psicológico, uma vez que estão indissoluvelmente ligados. [...] A correta execução de um objetivo físico ajudará a criar um estado psicológico ideal. (1997, p. 141-142).

Na observação do diretor russo, fica clara a conexão entre a ação e um objetivo físico como também a potência que a ação possui de definir uma construção psicológica do personagem, ou seja, ela se dá de fora para dentro. Dessa forma, a cena em que Kowalski quebra a louça poderia ser dividida da seguinte maneira: Uma ação é algo que ele faz: Quebrar. Essa ação tem um fim: Ele quebra as louças. Essa ação é feita em determinadas circunstâncias: Ele quebra as louças no jantar de aniversário de Blanche. Essa ação é justificada: Ele quebra as louças para impor seu poder de homem da casa, para que as duas mulheres o respeitem e não o ridicularizem.

Para Adler, as ações são os elementos que o ator deve lançar mão para a construção de sua cena e de seu personagem. “Todo personagem deve caminhar em

40 direção ao superobjetivo da peça. [...] Todas as ações numa peça são interligadas e conduzem o ator ao superobjetivo, ou ação total.” (ADLER, 2002, p. 66). A importância do suberobjetivo de dá porque ele é “a ideia, o cerne que deu origem ao impulso de escrever uma peça” (STANISLAVSKI, 1997, p.176), o que podemos também empregar para a realização de um filme.

O processo de construção das ações segundo Adler revela outro aspecto do papel da memória em seu trabalho.

Usar uma ação de seu passado é a única maneira em que ele pode ser trazido para a peça. Permanecer com seu passado pessoal, que o fez chorar ou que lhe causou grande emoção, é falso, porque você não está naquelas circunstâncias agora. Você está na peça e são as circunstâncias da peça que tem de ser realizadas verdadeiramente, tomando emprestado da ação que você teve no passado apenas o que era físico, não a emoção. (ADLER, 2002, p. 76-77, grifo nosso).

Dessa forma, Adler aponta sua consonância com as ideias de Stanislavski sobre o papel da ação na construção de um estado interior de um ator. São elas que produzem as características psicológicas do personagem e para construí-las, um ator se utiliza de elementos físicos de seu passado, pessoais ou observados em outros, e não de seus aspectos psicológicos.

Para um ator, a ação também é utilizada na construção da relação entre dois personagens. No caso de “Uma Rua Chamada Pecado” (1951) as ações criam a intimidade de Stanley com a esposa e também com a cunhada. Quando, no começo do filme, eles estão abrindo o baú de Blanche, ao ver todas as roupas caras e joias da cunhada, Stanley passa a questionar de onde teria vindo o dinheiro para tais compras, mas a esposa o ignora. Para ser escutado, ele segura o braço de Stella em um gesto bruto e agressivo, mas que aponta a extrema intimidade corporal do casal. Essa intimidade é transferida para a relação com corpo de Blanche na cena seguinte, na qual

41 o mesmo gesto se repete quando, a sós com a cunhada, Stanley declara seu ódio por ela. Suas palavras são de desprezo, mas os corpos dos atores revelam a intimidade e o jogo de sedução entre os dois28. Essa ação de Stanley resume sua relação com Blanche e constrói um caminho para o embate final entre os personagens, mostrando que essa ação tem um objetivo interligado a esse superobjetivo do filme.

Fotos 08 e 09 - Stella e Stanley/Blanche e Stanley – Intimidade e transferência de gestualidade.

Fonte: Print screen de “Uma Rua Chamada Pecado” (1951).

28 Minutagem do filme como referência para esta cena: Um Bonde Chamado Desejo: de 16’07’’ a 27’00’’.

42 2.4 “Sindicato de Ladrões” (1954) - A projeção do diretor em seu ator

Em “Sindicato de Ladrões” (1954) terceiro filme de Brando com Elia Kazan, o ator interpreta Terry Malloy, um ex-boxeador pouco inteligente e sem grandes talentos que é facilmente manipulado por seu irmão Charley (Rod Steiger) e por Johnny Friendly (Lee J. Cobb), o chefão da máfia do porto de Hoboken em Nova Jersey. O filme começa com Brando, sem saber, ajudando os mafiosos no assassinato de Joey Doyle, um estivador que delatou a máfia na Comissão de Investigação de Crimes Portuários. A alienação em relação aos mafiosos começa a acabar e a sua própria posição dentro do sistema muda quando ele conhece Eddie (Eva Marie Saint), irmã do estivador assassinado, por quem Terry se apaixona e quem o acompanha no amadurecimento que o levará a enfrentar a máfia local.

Esse é o segundo filme no qual Kazan e Brando abordam um tema considerado fora dos padrões do mercado hollywoodiano. Falar sobre máfia e sindicatos não era algo bem visto, mas Kazan já provara anteriormente com “Viva Zapata!” (1952) que poderia abordar temáticas sociais em um filme americano. Na produção de 1952, Brando interpreta Emiliano Zapata, o revolucionário que lutou bravamente contra a ditadura de Porfírio Dias no México.

Além da temática social, outro elemento que aproxima “Viva Zapata!” (1952) e “Sindicato de Ladrões” (1954) é o modo de filmar. Diferente de “Uma Rua chamada Pecado” (1951), esses dois filmes foram majoritariamente rodados em locações reais, utilizando para a composição da cena figurantes locais – estivadores no caso de “Sindicato de Ladrões” (1954) e mexicanos moradores do Texas em “Viva Zapata!” (1952). Esse modo de filmar de Kazan foi influenciado pelo neorrealismo italiano (NAREMORE, 1990), movimento de cinema surgido no pós Segunda Guerra Mundial e que, dentre outros elementos estéticos os quais essa pesquisa não abordará, utiliza-se de locações reais e de não atores geralmente da própria região onde o filme é realizado, aproximando-o de uma “estética documental”. Essa forma de filmagem

43 também aproxima a obra de sua temática social, afastando-a de uma representação burguesa, estereotipada do proletário, em busca de um autêntico naturalismo. O ambiente habitado por esses homens e suas relações não são apenas representados, mas explorados ativamente (RAYMOND WILLIAMS, 1961, apud NAREMORE, 1990 p. 200). Ou seja, o ambiente de gravações era propício não só para a observação do entorno do porto por parte de Brando, mas também para que fosse colocada em cena uma imagem do homem que correspondesse a algo mais próximo da realidade como imaginava Piscator.

Uma relação importante estabelecida em “Sindicato de Ladrões” (1954) é a projeção do próprio diretor em seu ator. Além da relação paternal de Kazan com Brando estabelecida durante o início da carreira cinematográfica de ambos (COLOMBANI 2013), no caso específico desse filme, Kazan criou a história de Terry Malloy para falar de sua própria situação como traidor. Isso porque, em 1952, no contexto da perseguição macartista a diversos artistas, o diretor delatara, na Comissão de Atividades Antiamericanas, a participação de diversos colegas em reuniões do Partido Comunista ou em reuniões com “teor subversivo”. O macartismo é o nome de uma série de práticas adotadas duarante a Grerra Fria para investigar cidadãos americanos que pudessem ter conexões com o comunismo, também conhecido como “caça às buxas anticomunista” (HOBSBAWM, 1995, p. 232). Dentre essas ações, estava a busca de mensagens subversivas em obras de arte e jornais, além do interrogatório de cidadãos que pudessem estar envolvidos com o regime soviético.

A delação de Kazan fez com que o diretor perdesse a amizade de diversas pessoas, dentre elas seu grande parceiro Arhur Miller e também o próprio Brando. Assim, Kazan se juntou ao roteirista Budd Schulberg, que também denunciou nomes na mesma comissão, e criou a história na qual um delator é o herói.

Inicialmente, o papel de Terry Malloy seria de Frank Sinatra, mas o produtor Sam Spiegel convenceu um relutante Brando a voltar a atuar com Kazan (na última parceria dos dois), não sem diversas exigências contratuais deste, como o limite de gravações

44 até às três da tarde, porque Brando tinha sessões diárias com seu analista no fim do dia. Segundo Colombani essa foi “uma mensagem endereçada a Kazan, um sinal de que ele não havia sido perdoado, que Marlon não era mais o jovem maleável de Uma Rua... e que, se ele era influenciado por alguém, era agora por seu terapeuta.” (2013, p. 45, tradução nossa) 29. Foram sob essas tensões do diretor com o seu protagonista que Kazan e Brando construíram o filme e principalmente o personagem Terry Malloy.

É para essa relação entre criador e criatura que Alain Bergala vai chamar a atenção. Para ele o que se vê como resultado final de um filme é uma “relação intersubjetiva onde entra em jogo uma alta gama de emoções, de pulsões e sentimentos humanos” (BERGALA, 2005). Ou seja, o personagem que nos aparece é fruto da relação concreta entre o diretor e seu ator, que é registrado pela câmera e profundamente afetado por esse embate. Essa relação será escancarada e aprofundada muitas vezes pelos cineastas europeus da Nouvelle Vague, principalmente aliada à quebra da transparência da situação ficcional do filme. Aqui, Kazan não quebra essa transparência, mas deposita sobre seu protagonista do plano ficcional a tarefa de dar voz ao seu grito:

Quando Brando, no final, grita para Lee Cobb, o chefe da máfia, “Eu estou feliz com o que fiz – você me ouve? – Feliz com o que fiz!”, aquilo era eu gritando, acalorado do mesmo modo, que eu estava contente por ter testemunhado do modo como o fiz. Eu fui destratado por amigos todos os dias por vários meses em meus velhos e conhecidos locais de trabalho e eu não esquecerei ou perdoarei os homens, alguns deles velhos amigos, que me destrataram. Assim, a cena do filme na qual Brando volta para o porto para buscar por emprego e é rejeitado por homens com quem ele trabalhou todos os dias – aquela também era minha história, agora contada para o mundo todo. (1988, apud COLOMBANI, 2013, p. 46, tradução nossa) 30.

29 A message intended for Elia Kazan, a sign that all was not forgiven, that Marlon was no longer the malleable young man from Streetcar and that, if he was influenced by anyone, it was now by his therapist. 30 When Brando, at the end, yeels at Lee Cobb, the mob boss, “I’m glad what I done – you hear me? – glad what I done!” that was me saying, with identical heat that I was glad I’d testified as I had. I’d been snubbed by friends each and every day for many months in my old show businnes haunts, and I’d not forgotten nor would I forgive the men, old friends some of them, who’d snubbed me, so the scene in the film where Brando goes back to the waterfront to “shape up” again for employment and is rejected by men with whom he’d worked day after day – that, too, was my story, now told to all the world.

45 Segundo Maciel Guimarães, um “filme pode guardar os rastros da gama de desejos e afetos que entram em jogo quando se coloca diante da câmera (de um corpo desejante, o do diretor), um corpo desejado (o do ator)” (2014, p. 293). Dessa forma, o aparecimento de Terry Malloy em cena é a projeção do prórpio Kazan, que delegou a Brando a função de representá-lo. O filme nasce dessa relação de desejo do diretor em criar determinada obra tendo o ator como o veículo desse desejo. Caso o diretor não se coloque nessa relação, é possível que o ator se perca durante o processo de filmagem ou que se coloque contra o diretor. Segundo Brando:

Um ator pode se beneficiar muito com um diretor bom, mas em geral os diretores que não se sentem preparados procuram ocultar isso mostrando-se autoritários, emitindo ordens e ultimatos. Com diretores assim, que pensam que o ator é um burro de carga, somos obrigados a reagir. É surpreendente o número de diretores que pensam que sabem tudo. Além de não terem nenhum insight nem entenderem o que significa ser ator e muito menos o processo de interpretação, eles não têm a mínima ideia de como o ator elabora a caracterização de um personagem. Esses diretores nos dão um roteiro e dizem para comparecermos na segunda-feira; quem fica com a tarefa de criar o papel somos nós, os atores. Se o ator está trabalhando com um diretor que não tem bom gosto ou que é perigosamente inseguro, precisa assumir o controle e garantir que a cena seja bem feita; na realidade, o ator tem que dirigir a cena. (BRANDO, 1990, p. 172).

Essa relação entre diretor e ator é importante de se destacar porque serão poucos os diretores que Brando irá respeitar. Em geral, ele, a partir de seu poder de influência na produção do filme, se colocava em choque com o diretor, interpretando seus personagens e fazendo as cenas como bem entendia, brigando com os diretores em filmes como “Désiréé” (1954), “O Grande Motim” (1962) e “Queimada!” (Gillo Pontecorvo, 1969). Kazan é, ao lado de Mankiewicz, Lumet, Houston, Coppola e Bertolucci, um dos poucos diretores que Brando respeitou e trabalhou em conjunto na criação das cenas.

46 2.5 Terry Malloy – Aspectos do jovem rebelde

Terry Malloy reafirma e aprofunda elementos frequentes no aparecimento de Brando no cinema dos anos 50. Aqui, a figura fora do sistema e o homem bruto que apresenta fragilidades e feminilidades reaparece com maior refinamento. Terry não é um herói perfeito. Ele começa fazendo algo errado e é a reflexão sobre essa sua ação que inicia o movimento de transformação do caráter do personagem.

Logo após o assassinato de Joey, Terry está aturdido pelo crime: “Eu achei que vocês iriam falar com ele!”, diz surpreso a seu irmão. Após escutar o homem ser jogado do telhado de um prédio, Terry vai ao bar onde Johnny Friendly (Lee J. Cobb) se reúne com sua gangue e recebe o pagamento pelo serviço.

Nessa cena, a construção das ações de Terry em relação a Friendly pode ser comparada ao primeiro encontro de Stanley e Blanche em “Uma Rua Chamada Pecado” (1951), mas em “Sindicato de Ladrões” (1954) é o corpo de Brando que se apresenta frágil e ameaçado por um “caçador” que o espreita31. Em uma sala reservada no bar, Friendly anda à vontade e sem parar em torno de uma mesa de bilhar. Ele come e vibra rudemente enquanto assiste a uma partida de boxe na televisão. Terry entra vagarosamente, vestindo um pulôver preto e agarrado que emagrece e fragiliza sua figura, e responde timidamente aos cumprimentos de Friendly que, extremamente à vontade com Malloy, brinca com ele de boxe, o agarra e o suspende no ar, afirmando com seu gestual que Terry é sua propriedade, que é ele quem manda no lugar e a quem todos estão subordinados. Em seguida, Malloy encosta na mesa de bilhar e ali permanece em uma postura extremamente fragilizada.

31 Minutagem do filme como referência para esta cena: Sindicato de Ladrões: de 6’20’’ a 10’26’’

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Foto 10 - Terry Malloy como objeto de dominação, corpo entregue e frágil.

Fonte: Print screen de “Sindicato de Ladrões” (1954).

Terry Malloy é também um homem que apresenta fraquezas. Já em “Espíritos Indômitos” (1950), o seu primeiro filme, essa característica aparece nos personagens de Brando. Nele, o ator interpreta Ken, um bravo soldado que perde os movimentos das pernas devido a um tiro que recebeu na guerra e cuja grande dificuldade é aceitar sua condição de paraplégico. Essa padronização da imagem de Brando é tanto fruto de escolhas temáticas do ator, quanto reflexo de uma nova figura masculina que aparece no período. Vale ressaltar a distinção entre Ken e Terry de um lado e Kowalski de outro. O último é um homem aparentemente imbatível e ao longo do filme temos a revelação das suas fragilidades, principalmente disparadas pela relação com Stella. Já os dois primeiros possuem uma fragilidade aparente (a cadeira de rodas e a falta de inteligência) apesar de estarem ligados a atividades relacionadas à força (o exército e o boxe).

Em contraposição aos homens maduros e inatingíveis dos anos 40, como Clark Gable e Humphrey Bogart, o homem dos anos 50 representado por Brando e sua geração (como James Dean) apresenta fragilidades físicas (eles apanham, choram e se

48 cansam) e psicológicas (sofrimentos sentimentais e limitação intelectual). Eles trazem consigo elementos que antes eram características exclusivas das estrelas femininas. Possuem traços delicados em seus corpos e personalidades e expõem seus sentimentos (MORIN, 1984); é um novo modo representar o homem no cinema, mais tarde aprofundado por atores como Al Pacino, que, por exemplo, interpretará um policial que frequenta aulas de balé sem que isso seja um problema ou uma grande questão (LONGWORTH, 2013).

Podemos atribuir que essa mudança no perfil também está associada ao o aburguesamento do público cinematográfico e da psicologia popular a partir dos anos 30, que tentava trazer o herói para perto da realidade do espectador. Segundo Morin:

Uma vez que as necessidades de assimilação afetiva se dirigem em primeiro lugar aos heróis dos filmes, as estrelas foram o primeiro objeto dessa transformação. Certamente os heróis continuam heróis, isto é, modelos e mediadores. Mas, combinando cada vez mais intimamente, e de forma variada, o excepcional e o habitual, o ideal e o quotidiano, eles passam a oferecer a identificação de pontos de apoio mais e mais realistas. (1984, p. 12-13).

Assim, mesmo vivendo um rude camponês em “Viva Zapata!” (1952) Brando traz uma fragilidade a seu personagem, que o humaniza, o deixa “mais realista”. Emiliano Zapata, o grande revolucionário, não sabia ler e o que Brando nos apresenta é o seu sofrimento e sua dificuldade em lidar com essa situação. Terry Malloy também é fragilizado e sofre por suas limitações intelectuais. Na cena em que está com os mafiosos no bar, Johnny Friendly pede a ele que conte as cédulas em um bolo de notas e Malloy perde a contagem e mostra sua frustração em relação a sua incapacidade. Então, ele larga o monte de notas sobre a mesa de bilhar e é ajudado por seu irmão mais velho Charley (Rod Steiger), um homem que se destaca por sua inteligência. Nesse momento, a vulnerabilidade de Terry é revelada pela relação com o irmão. Embora Terry tenha o porte de um pugilista e Charley seja um tipo gordinho de óculos,

49 é ele quem proteje o caçula no sistema da máfia, já que o enxerga como um jovem ainda perdido em sua vida.

Essa jovialidade também liga Terry Malloy a outro personagem de Brando, Johnny de “O Selvagem” (1953). Os dois poderiam perfeitamente ser amigos, rebeldes que relutam em amadurecer e encontram na manutenção de sua juventude uma maneira de encarar o mundo. Usam jaquetas que escondem seus corpos, que servem como armaduras nas quais eles se encolhem para proteger-se do frio do próprio mundo. Ambos possuem uma gangue, a de Johnny é formada pelos motoqueiros “The Black Rebels Motorcicle Club”32 e a de Terry são os adolescentes “Golden Wariors”33. Terry Malloy é um homem formado que conserva traços físicos de um adolescente, se sente confortável entre eles e, às vezes, se comporta como um. É a saída desse estado, o amadurecimento de Terry, que o filme apresenta em sua parte final.

Terry Malloy é um personagem que amadurece ao longo do filme. Esse amadurecimento é simbolizado por, entre outros elementos, uma jaqueta. É após a morte de Charley, assassinado por acobertar Terry, que esse veste a jaqueta do falecido Joey Doyle e decide enfrentar Johnny Friendly e a máfia do cais. Esse objeto representa a tomada de decisão de Terry e manifestação de qual lado o personagem escolheu para si no sistema do porto e na sua própria vida.

32 “Clube de Motociclistas Rebeldes Negros” 33 “Guerreiros Dourados”

50 Fotos 11 e 12 - A jaqueta como símbolo de amadurecimento e como proteção do corpo.

Fonte: Print screen de “Sindicato de Ladrões” (1954).

51 Em “Sindicato de Ladrões” (1954) temos um momento que pode representar bem a construção de ações de Brando em cena (NAREMORE 1990). Trata-se do primeiro encontro entre Terry e Eddie34. Nele, após fugirem de um ataque da máfia aos estivadores que se reuniam na igreja para debater sobre seus direitos, os dois caminham pelo parque. Nessa caminhada, a luva de Eddie cai no chão, Terry a pega de volta, tira a grama que a sujou e não a devolve logo em seguida, colocando-a em sua própria mão.

Podemos decupar essa ação e observar a importância dos objetos para a construção da cena do ponto de vista do ator. É Brando quem cria a relação com a luva, não há um close por parte do diretor que valorize esse objeto ou a expressão de Brando ao pegá-lo, tampouco uma retomada da luva durante o filme. Para Adler, o ator deve se familiarizar com o uso de objetos, “você não deve usar um adereço, a menos que lhe dê valor e que tenha simpatia por ele. Deve trabalhar com o adereço até saber que pode usá-lo. [...] Personalize os adereços que você usa, dotando os de alguma qualidade que seja sua.” (ADLER, 2002, p.94-95). Brando cria uma história com a luva e mostra através dela as intenções veladas de Terry. Segundo Ciment (1973):

A luva foi a maneira de ele segurá-la. Além disso, ao passo que ele não podia, por causa da tensão acerca do assassinato do irmão dela, demonstrar nenhum desejo sexual ou amoroso a ela, ele podia através da luva. E ele colocou a sua mão dentro da luva, você se lembra, então a luva era tanto sua maneira de segurá-la contra a vontade, e ao mesmo tempo ele podia expressar através da luva algo que ele não podia expressar diretamente a ela. Então o objeto, desse modo, fez tudo isso. (apud, NAREMORE, 1990, p. 193, tradução nossa) 35.

Nessa cena, Brando também nos mostra um pouco mais do lado doce de seu personagem. Além disso, vestir a luva ajuda na feminilização ou androginia da figura de

34 Minutagem do filme como referência para esta cena: Sindicato de Ladrões: de 25’03’’ a 29’40’’. 35 The glove was his way of holding her. Futhermore, whreas He coudn’t, because of his tension about her brother being killed, demonstrate any sexual or loving feeling towards her, He could towards the glove. And He put his hand inside the glove, you remember, so that the glove was both his way of holding on to her against her Will, and the same time He was able to express through the glove something He couldn’t express to her directly. So the object, in that sense, did it all.

52 Brando. Com exceção de James Cagney, talvez, poucos atores colocaram uma luva feminina no cinema de maneira tão tranquila antes dos anos 50 (NAREMORE 1990). Anteriormente, aos homens, cabia a reafirmação de sua virilidade, mas Brando quebra com esse paradigma e cria um contraponto de sua figura com os atores de gerações anteriores. Segundo Adler, “acrescentar detalhes todo o tempo é sua personalização do objeto. A maneira na qual um ator personaliza seus adereços pode se tornar um desempenho memorável. [...] Não permita que os adereços o apavorem. Torne-os seus.” (2002, p. 97-98). Ao lidar com a luva, Brando detalha um pouco mais da personalidade de Terry Malloy, criando mais um aspecto que reforça a dualidade do personagem.

Essa presença forte de um elemento feminino se repete nesse Brando dos anos 50. Em “Espíritos Indômitos” (1950), “Uma Rua Chamada Pecado” (1951), “O Selvagem” (1953) são as mulheres que trazem a tona o lado delicado de Brando ou até mesmo auxiliam em sua superação ante seus obstáculos ou mudam seu modo de ver o mundo. Em “Viva Zapata!” (1952), é Josefa (Jean Peters), esposa de Zapata, quem o ensina a ler, dificuldade que fazia com que o líder revolucionário pudesse ser uma presa fácil nas mãos dos políticos mexicanos. Em “Eles e Elas” (Joseph L. Mankiewicz, 1955) é através do despertar de um interesse amoroso por Sarah Brown (Jean Simmons) que o boêmio Sky Masterson (Brando) encontra o ponto de mudança de sua vida de apostador, semelhante ao que acontece em “Dois Farristas Irresistíveis” (Ralph Levy, 1964). Em “Sindicato de Ladrões” (1954), é o amor por Eddie que inspira Terry a mudar de vida. Também em “Désirée” (1954), é a jovem francesa Désirée (Jean Simmons) que consegue fragilizar a figura imbatível de Napoleão Bonaparte (Brando).

Em Sindicato de Ladrões (1954) a androginia de Brando é acentuada pela composição com roupas apertadas que aparece ao longo de todo filme e soma-se a postura recolhida de um corpo ameaçado pelo frio real presente no cais nos idos de abril, período da gravação do filme. A ela soma-se a maquiagem que Brando usa nas sobrancelhas de Malloy, que deixa seu supercílio mais evidente, feminilizando seu

53 olhar, ao mesmo tempo em que lhe dá uma feição de quem acabou de levar um soco nesse lugar.

Foto 13: Traços femininos no rosto de Brando.

Fonte: Print screen de “Sindicato de Ladrões” (1954).

2.6 A voz e a fala - Brando Orador

É comum associar Brando a uma fala murmurada, muitas vezes de difícil compreensão. O ator era alguém que dava grande importância à construção vocal de seus personagens e também de todos que apareciam no filme. Contudo, a fala, para

54 Brando, devia ser algo que se aproximasse do modo como as pessoas realmente se expressam, negando a limpeza na oratória que aparecia no cinema até então, onde os personagens, independentemente de classe social ou região, discursavam claramente e sem um regionalismo carregado. A estrela não podia ter um sotaque (MORIN, 1989). Para Brando, “Viva Zapata!” (1952) ficou um filme artificial porque “todos os outros atores falavam o inglês comum” (1994, p. 142) e na primeira versão de “O Grande Motim” (Frank Lloyd,1935) – Brando participou da refilmagem em 1962 – ele acredita que Clark Gable fez um trabalho ruim porque, mesmo interpretando um oficial britânico, Gable mantinha seu sotaque americano. Essa valorização da composição vocal é um dos elementos principais da busca de Brando por uma maior naturalidade e identificação – do ator e do público – com seu personagem em cena:

Se todos nós falássemos de acordo com as regras da antiga escola de interpretação, nunca pararíamos para procurar uma palavra, jamais falaríamos de maneira ininteligível [...] No dia-a-dia raramente sabemos exatamente o que vamos dizer quando abrimos a boca e começamos a expressar nossos pensamentos. Ainda estamos pensando e o fato de procurarmos as palavras fica estampado em nosso rosto. (BRANDO, 1994, p.168).

Essa “procura pelas palavras” é outro elemento recorrente nos personagens de Brando. Muitas vezes, ele utiliza o olhar para buscar fora do quadro a palavra ou frase que quer dizer. Essa ação geralmente está ligada ao tempo de pensamento que quebra o fluxo das falas, evidencia o desenvolvimento da reflexão e, dessa maneira, traz o personagem para perto da realidade da vida. Adler é de opinião semelhante, ao se referir à construção da voz e da fala em cena: “Falar é interromper o tempo todo” (2002, p. 137). Depois de “Os Deuses Vencidos” (Edward Dmytryk, 1958), Brando deixou de decorar seus textos e passou literalmente a buscar suas falas fora da cena, já que ele parou de decorá-las e apenas lia o texto e entendia a potência de cada fala. Mais tarde, ele improvisava ou lia-as em cartões que colava em pontos do cenário que não apareciam em cena para produzir uma maior espontaneidade em sua representação (BRANDO, 1994).

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Foto 14: O olhar para fora do quadro e as interrupções de pensamento.

Fonte: Print screen de “Sindicato de Ladrões” (1954).

Foto 15: O Olhar para fora do quadro. “O Poderoso Chefão” (1972).

Fonte: Print screen de “O Poderoso Chefão” (1972).

O modo de representar relaxado de Brando foi pauta nos debates que surgiram quando foi anunciado que o ator estaria na adaptação para o cinema de uma tragédia shakespeariana. Antes do lançamento de “Júlio César” (1953), críticos e público perguntavam se Brando seria capaz de articular o discurso persuasivo de Marco

56 Antônio que levaria Roma a insurgir contra os assassinos de César (COLOMBANI, 2013), o que foi calado após o êxito de Brando no filme36. Já em “Viva Zapata!” (1952) Brando demonstra sua capacidade de oratória e de realizar grandes falas quando, quase no fim do filme, o revolucionário discursa para os homens que o acompanham. Em sua fala, com uma voz dura e tensa, carregada de sotaque mexicano, Zapata encoraja os camponeses a resistirem mesmo quando “queimarem sua casa”, “destruírem suas plantações” ou “matarem seus filhos.” 37.

Tanto em “Viva Zapata!” (1952) quanto em “Júlio César” (1953), Brando assume a figura líder e para a qual o filme se volta, mas os desafios da tragédia inglesa eram maiores. Para ele, é possível ter uma ideia geral de suas falas e improvisar em cena com a maioria dos textos, mas não é possível fazer o mesmo com as falas de Shakespeare (COLOMBANI, 2013). Assim, Brando investiu profundamente em seus ensaios para o filme, estudando a cadência das rimas e escutando a versão de Marco Antônio de três grandes atores que admirava: Laurence Olivier, Ralph Richardson e John Barrymore. Durante as filmagens, ele se aproximou do britânico John Gielgud (que interpretava Cássio) e passou a acompanhar a filmagem de suas cenas, chegando a registrar o monólogo deste para compor o seu. Segundo o próprio Brando, “no que se refere ao estilo, maneira de falar e familiaridade com Shakespeare, os atores ingleses são, de longe, superiores aos americanos...” (1994, p.144). Brando utilizou seu agudo senso de observação para dissecar a interpretação dos atores ingleses e construir uma das maiores interpretações de Marco Antônio no cinema.

Em “Sindicato de Ladrões” (1954) as falas surgem com detalhes de sotaque local. Terry Malloy aparece diversas vezes no filme mascando um chiclete, comendo ou bebendo algo (como também faz Kowalski) o que dificulta a articulação de suas palavras. Mas aqui há uma cena na qual Malloy dá um discurso extremamente articulado e complexo em sua construção, sem perder os elementos de “naturalidade”

36 Minutagem do filme como referência para esta cena: Júlio César: de 69’15’’ a 79’40’’. 37 Minutagem do filme como referência para esta cena: Viva Zapata!: de 93’00’’ a 94’45’’.

57 empregados por Brando em cena38. Perto do fim do filme, Charley chama Terry para uma conversa em um táxi na qual ameaça o irmão caso ele resolva delatar as ações da máfia em seu depoimento no tribunal. Ali, os dois irmãos debaterão suas expectativas e frustrações mútuas, permeados pelo medo da sua própria morte e da morte do outro. Dizem:

CHARLEY: Quando você pesava setenta e cinco, você era lindo. Você poderia ser outro Billy Conn. Aquele traste que eu arrumei para te gerenciar te derrubou muito rápido. TERRY: Não foi ele! Foi você, Charley. Você e Johnny. Como na noite que vocês dois vieram ao vestiário e você disse: “Garoto, essa noite não é sua – nós vamos apostar no Wilson.” Não era minha noite. Eu teria derrubado o Wilson naquela noite! Eu estava pronto – lembre das trocas de combinações dos primeiros rounds. Então aconteceu – Esse traste do Wilson, ele vai para a disputa do título – outdoors no estádio! – e o que eu consigo – um pouco de grana e uma passagem só de ida para lugar nenhum. Foi você Charley. Você era o meu irmão. Você devia ter cuidado de mim. Ao invés de me conduzir para o caminho do dinheiro que acaba rápido. CHARLEY: Eu sempre apostava em você! Você também ganhou dinheiro. TERRY: Vê?! Você não entende! (SINDICATO DE LADRÕES, 1954).

Essa cena também possui um aspecto que ajuda na aproximação entre o espectador e os dois personagens. O ambiente reduzido do banco traseiro do táxi ajuda a câmera a revelar as contradições presentes nas ações dos irmãos, escancarando os seus sentimentos. Segundo Stanislavski:

Como desnudar no palco as almas dos atores, para que os espectadores pudessem vê-las e compreender tudo o que acontecia em seu interior? Terrível problema cênico! Não se pode resolvê-lo com gestos, nem com jogo de braços e pernas, nem com as técnicas de representação dos espetáculos comuns. Eram necessárias irradiações invisíveis de vontade e sentimentos criadores, precisava-se de olhos, mímica, uma entonação de voz pouco perceptível, pausas psicológicas. Ademais, era preciso suprimir tudo o que impedia os milhares de espectadores de perceber a essência interior dos sentimentos e ideias vividos pelos atores. Tivemos de recorrer mais uma vez a imobilidade, à supressão de gestos; anular os movimentos supérfluos, o caminhar e passar dum lugar para o outro do palco, e não só reduzir como anular qualquer mise-

38 Minutagem do filme como referência para esta cena: Sindicato de Ladrões: de 67’30’’ a 72’40’’.

58 en-scène do diretor de cena. Era deixar que os artistas ficassem sentados sem mexer, que sentissem, falassem e contagiassem com suas vivências os milhares de espectadores. Que ficasse no palco apenas um banco de jardim ou sofá, no qual deveriam sentar-se todos os personagens da peça, para, à vista de todo o mundo, revelarem a essência interior da alma e o desenho complexo das rendas psicológicas tecidas por Turguêniev.(1989, p.444).

Assim como acontece no exemplo citado pelo diretor russo, na cena de Terry e Charley, o espectador se aproxima dos dois personagens quando eles são colocados em um ambiente quase isolado do mundo, no qual eles se sentam um ao lado do outro, muito próximos, e também próximos da câmera, proporcionando que esse dispositivo revele suas intimidades.

O processo de criação dessa cena tem também um detalhe importante. Era comum nas parcerias de Brando com Kazan a colaboração do ator na construção do filme. Geralmente Kazan pedia aos atores que construíssem a cena e depois discutia com eles diferentes opções. Brando muitas vezes batia de frente com a opinião do diretor, fazendo com que sua versão da cena também fosse filmada para que a decisão fosse para a edição (BRANDO, 1994). No caso específico dessa cena, o ator não concordava com o fato de Charley apontar uma arma para Terry, ao que Kazan o provocou, estimulando o ator a resolver em cena essa questão. O resultado, que foi a versão editada no filme, é um Terry descrente da ação do irmão que, sem se sentir ameaçado, mas sim, profundamente desapontado, abaixa a arma com um gesto gentil. A cena segue em uma improvisação dos dois atores, na qual Terry toma consciência e expõe para o irmão que a causa de seu fracasso não é a falta de vontade em colaborar com a máfia, mas sim, o próprio irmão, que o envolveu nos esquemas de apostas em lutas de boxe e pediu para que Terry perdesse a luta que poderia levá-lo ao topo da carreira no pugilismo. A cena é permeada de diversas ações pequenas e contidas, que provocam uma profunda mudança nos personagens no decorrer da cena. Charley desiste de entregar o irmão e o deixa partir ao reconhecer que foi protagonista no fracasso dele e Terry sai do carro desiludido com o irmão, mas muito mais convicto que seu lugar não é a máfia do porto de Nova Jersey.

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Fotos 16 e 17: Charley e Terry, cena do táxi – início e fim; personagens tranformados.

Fonte: Print screen de “Sindicato de Ladrões” (1954).

Foi com “Sindicato de Ladrões” (1954) que Brando ganhou seu primeiro Oscar. O reconhecimento pelo filme – o sexto em sua carreira – também ajudou a consolidá-lo como um dos grandes atores de Hollywood que surgiam naquele tempo, dando a ele

60 também maior poder de negociação e escolha de seus projetos. Essa liberdade de escolha fez com que Brando muitas vezes se envolvesse em produções de diversas temáticas, como a ocupação americana no Japão pós Segunda Guerra Mundial, o casamento inter-racial e o nazismo. Seus filmes seguintes, no fim dos anos 50, foram histórias de estadistas, como Napoleão Bonaparte em “Désirée” (1954), ou militares como em “Sayonara” (1957) e “Os Deuses Vencidos” (1958). Ele também interpretou papéis cômicos, como Sakine, um interprete japonês em “Casa de Chá ao Luar de Agosto” (1956). Ao fazer isso, Brando não só variava as temáticas de suas obras como também se afastava da figura de “jeans e jaqueta”.

Essa busca por dissociar sua imagem do “jovem rebelde” ocorria também fora de cena, fazendo com que Brando aparecesse muitas vezes em público de terno ou fraque na tentativa da construção de uma nova persona (BRANDO, 1994). Brando sabia que estava inserido dentro de um padrão ditado pelo star system americano, mas queria ter as rédeas do controle de sua figura. Assim como seus personagens, Brando tentava se impor contra o sistema vigente.

Após uma série de grandes filmes nos anos 50, Brando, que muitas vezes declarou detestar atuar e que a profissão era apenas uma forma de ganhar muito dinheiro rapidamente (GROBEL, 1991), envolveu-se em produções de pouca expressão, tornando a década de 60 um período de filmes pouco significativos na cinematografia do ator. Foi, contudo, nesse período que Brando realizou sua única direção “A Face Oculta” (1961), projeto que o ator ofereceu inicialmente a e, diante da negativa do diretor, resolveu ele mesmo assumir o projeto, aproveitando o poder que detinha em Hollywood nos primeiros dez anos de sua carreira. Podemos considerar que Brando, já no início de sua trajetória, dava indícios de sua postura e desejo de autor em seus filmes e é sobre essa vertente, Brando ator e autor, que continuaremos nos próximos capítulos.

61 62 3. O AMADURECIMENTO DENTRO E FORA DA TELA

Eu sou Marlon Brando, vivo numa ilha/ Não faço papel de santo nem pra minha família/ Não posso ser outra coisa se não James Dean/ Eu sempre fui mais bonzinho quando sou ruim/ Minha dor não dói, sou marginal, sou herói. (LEE Rita; LEE, Beto, 1998).

Mesmo nos anos 50, quando predominava em seus filmes a figura do “jovem rebelde”, Brando interpretou personagens que se constituem como precursoras do “padrinho”. Essa figura pode ser resumida como o líder maduro, que não protagoniza a história, mas para quem o filme se volta, funcionando como um eixo ou um ponto de confluência para os protagonistas. É, em geral, esse protagonista que o substituirá ao fim do filme; há, dessa maneira, uma ideia de sucessão. A figura do “padrinho” se consolida nos filmes de Brando nos anos 70 e seus maiores exemplos são Don Vito Corleone em “O Poderoso Chefão” (1972) e o Cel. Walter E. Kurtz em “Apocalipse Now” (1979).

Dessa forma, as “figuras precursoras do padrinho” serão aquelas que, mesmo antes dos anos 70, se distanciarão do “jovem rebelde” e que apresentarão a sua maturidade em cena. Elas aparecem nos filmes em que Brando interpreta generais estadistas, como o romano Marco Antônio ou o francês Napoleão Bonaparte. Ao fim de “Júlio César” (1953), é Marco Antônio (Brando) quem guiará o jovem Augusto César (Douglas Watson) contra os inimigos de Roma, que na verdade, são seus inimigos, no controle do futuro Império Romano. Nesse filme há também um caso de sucessão; Brando inicia o filme como o preferido de Júlio César, como um jovem que está sendo moldado por ele e que está em sua base de aliados. Quando César é assassinado, Marco Antônio se utiliza do cadáver de seu mentor para incitar a população contra os seus assassinos, e para se destacar como aquele que irá concretizar os planos de César para Roma.

63 Esse amadurecimento em cena já nos anos 50 acontece também porque nesses dois filmes – e podemos juntar a eles “Viva Zapata!” (1952) – Brando interpreta personagens históricos famosos, grandes líderes de revoluções em diferentes lugares e períodos de suas vidas. Em suma, os filmes acompanham o amadurecimento dessas figuras. Ser Emiliano Zapata, Marco Antônio ou Napoleão, pedia uma abordagem de interpretação diferente da que o ator apresentara até então, que não remetesse a figura do “jovem rebelde”. Principalmente no caso de Marco Antônio e Napoleão, era necessário se distanciar do homem comum, esconder suas paixões e apresentar o nobre. Napoleão Bonaparte projetou-se rapidamente na carreira militar e política durante o processo revolucionário francês, conquistando aos vinte e quatro anos a patente de general e aos trinta e cinco foi proclamado Imperador da França (SANTIAGO, 2012). No caso de “Désirée” (1954), Brando encarava o desafio de construir em cena alguém que não é só um personagem, mas uma figura histórica, quase um mito da Europa, sobre quem o público já tinha uma imagem pré-concebida.

Para representar Bonaparte, Brando optou por uma composição visual do personagem. Ele colocou uma prótese de um nariz maior, marca conhecida do estadista, usou lentes de contato escuras, diminuiu seus lábios e utilizou uma peruca para algumas cenas. No restante, é quase como se ele se mantivesse estático nas roupas do general. Segundo o próprio ator, essa era uma escolha consciente: “Na maioria das vezes, eu deixo a maquiagem interpretar o papel.” (BRANDO apud MANSO, 1999, p. 393, tradução nossa) 39. Ou seja, Brando optou por uma interpretação fria do estadista, quase mecânica, revelando a frieza estratégica do general, sua não passionalidade, mas a solenidade de sua figura. As informações estão concentradas em seus comandos e suas ações são extremamente precisas e sucintas. Exemplo disso é a cena na qual o jovem general é preso, no período logo após a Revolução Francesa40. Os soldados aparecem em uma loja de tecidos onde estão Napoleão e sua noiva Désirée (Jean Simmons), e o sargento o convoca: “General Napoleone

39 Most of the time I Just let the makeup play the part. 40 Minutagem do filme como referência para esta cena: “Désirée”: 12’40’’ a 14’54’’.

64 Buonaparte [...] Temos um mandado para prender o cidadão General Napoleone Buonaparte.” Ao que Bonaparte simplesmente pergunta, enquanto toma o documento das mãos do soldado, “O cidadão Robespierre sabe disso?” Quando o soldado responde “Eu lamento informar que o cidadão Robespierre foi guilhotinado em Paris há três dias”, Napoleão entrega suas armas ao sargento e dá ordens mecânicas que Désirée – perplexa – informe da prisão a sua família. Em seguida, dá uma bronca no sargento: “Mesmo em um dia quente de verão, o uniforme de um sargento do exército republicano deve estar abotoado de acordo com o regulamento” – ordem que o sargento atende prontamente. Por fim, Bonaparte sai com o sargento e os soldados, teoricamente preso, mas na frente de todos, como se os liderasse, emocionalmente impassível com sua prisão. É uma escolha onde Brando interpreta o lado rígido, frio e calculista do estrategista militar que foi Napoleão. É quase como se Brando tentasse se retirar de cena para deixar que o espectador completasse com seu imaginário a figura de Bonaparte.

Outro aspecto interessante é a composição vocal de Brando. Ele optou por utilizar um sotaque inglês o que dá um ar pomposo às falas do general. Ele achava que falar inglês com um sotaque francês ficaria cômico (BRANDO, 1994). Também importante é a escolha do tom da voz. Ela sempre será impassível; Napoleão falará de suas paixões, de seus sonhos megalomaníacos com uma voz macia, nada grandiloquente (COLOMBANI, 2013). Ele deixa evidente que o poder de Napoleão não precisa ser afirmado pela voz, mas que esse poder já emana de sua figura.

No filme, não é somente no título que a personagem de Jean Simmons ganha destaque; é ela quem revelará os aspectos humanos e sensíveis do estadista. Embora, se mantenha seco com a amante por quase todo filme, é sempre a ela que Napoleão recorrerá em seus momentos de fragilidade. Ao longo do filme, ela será a noiva, amante, confidente e aquela que fará Bonaparte se entregar pelos crimes que cometeu como ditador. Somente a presença de Désirée será capaz de quebrar a frieza constante que Napoleão apresenta.

65 Da relação com Désirée, vale destacar também que esse entrelaçamento entre amor e política são temas recorrentes na filmografia de Brando, como acontece em “Viva Zapata!” (1952) – no amor entre o camponês e a burguesa, em “Sayonara” (1957) - no amor entre etnias, em “A Condessa de Hong Kong” (Charlie Chaplin, 1967) – o casamento de aparências e em “O Pecado de Todos Nós” (1967) – o amor homossexual em um quartel.

Por fim, as características apresentadas por Napoleão o aproximam muito do “padrinho”. Embora ainda seja um personagem jovem, que se volta contra o mundo (e o conquista), uma figura que não possui personagens ao seu redor que ele possa “apadrinhar”, trata-se de um líder que impõe seu poder se valendo de pouco esforço, cuja mente é pouco sondável e de quem o espectador se aproxima pouco, como serão os personagens dos anos 70.

3.1 Anos 60 – Deixar a jaqueta para trás

Ao analisarmos a filmografia do ator ao longo dos anos 60, verificamos que Brando aparece em obras nas quais o personagem realiza, ao longo da narrativa, a transição do “jovem rebelde” para o “padrinho”. São filmes nos quais o amadurecimento do protagonista é ponto importante para a construção do filme, processo semelhante ao que vimos com Terry Malloy em “Sindicato de Ladrões” (1954). Mas, se no filme de Elia Kazan a fase madura do personagem fica na imaginação do espectador, nesses outros, as ações e decisões da maturidade aparecem. Tal aspecto, o amadurecimento, é importante para compreender a filmografia de Brando porque não são apenas os personagens que passam por esse processo, como também o próprio ator. Seu envelhecimento é acompanhado na tela ao longo da História; o espectador chega aos anos 60 tendo acompanhado Brando no cinema dos 26 aos 36 anos de idade. Nesse período, a figura do “jovem rebelde” não lhe cabia mais. Ela foi ocupada por outros, como James Dean, que, em sua morte prematura aos 24 anos, em 1955, se eternizou

66 na figura do “rebelde sem causa”. Nesse sentido do amadurecimento de Brando há também a ideia de sucessão do prórpio ator, o que leva Brando a caminhar, ele também, para a persona do “padrinho”. Podemos dizer que a última vez na qual Brando interpreta a figura do “jovem rebelde” de maneira crível, é em “Vidas em Fuga” (Sidney Lumet, 1959).

No filme, um roteiro adaptado por Tennessee Williams a partir de uma peça sua, Marlon Brando é Val Xavier, um jovem músico que sai da prisão e acaba por acaso em uma pequena cidade no interior do Mississipi, onde tenta se fixar arrumando um emprego. Ali, ele consegue um cargo na loja de Lady Torrance (Anna Magnani), uma mulher mais velha que mora com o marido doente no segundo andar do estabelecimento. O filme narra o surgimento da paixão entre Lady e Val Xavier e o seu fim trágico: a morte de ambos por ousarem flertar com esse amor, proibido tanto por ser uma relação extraconjugal quanto o romance de uma mulher mais velha com um jovem.

Quanto à composição visual de Brando, a jaqueta como elemento protetor reaparece. Feita com couro de cobra ela não só protege o corpo de Brando como ocorre em “Sindicato de Ladrões” (1954) como também dá o apelido do personagem: Snakeskin (Pele de cobra) e realça o aspecto selvagem de sua personalidade. Val Xavier, por seus ares de jovem rebelde, por seu descompasso com o mundo, é resumido da seguinte maneira por Carol Cutere, personagem de , que é considerada a “ovelha negra da cidade”, a jovem rebelde: “criaturas selvagens deixam suas peles para trás, assim os tipos que vivem em fuga sempre podem seguir os do seu tipo”. Brando não é só apelidado como uma criatura selvagem, um animal, mas sua presença no filme é como a de um animal arisco e perdido.

Quanto a sua estrutura de construção, “Vidas em Fuga” (1959) é um filme que retoma elementos muito similares a “Uma Rua Chamada Pecado” (1951): é baseado em uma peça, possui um conflito entre um ator masculino jovem (Brando) e uma atriz mais velha (Anna Magnani) e um conflito de procedimentos de interpretação semelhante ao que ocorreu no filme de Elia Kazan. Aqui era o modo solto e cheio de

67 improvisações de Brando que entrava em choque direto com o apego que Magnani tinha ao roteiro, principalmente porque a atriz italiana não dominava bem o inglês. As improvisações de Brando tiravam Magnani do eixo e essa relação transborda para a relação dos personagens, fica evidente na tela. Segundo o produtor do filme, Richard Shepherd, em uma cena que fora ensaiada diversas vezes, na qual Val Xavier ia buscar emprego na loja de Lady e ela lhe pedia uma carta de referências, Brando utilizou a improvisação para propor algo diferente na cena, ganhando com isso, mais tempo de tela41. Pelo combinado, Brando deveria apenas entregar um envelope a Magnani, mas segundo o produtor:

Ele começou a buscar [o envelope] nos bolsos de sua calça, com um sorriso malandro no seu rosto. [...] Apenas enrolando. Finalmente, ele pegou o envelope e ele estava todo amassado. Ele o desamassou e entregou a ela, e ela estava ali apenas parada e irritada com ele. Marlon tinha preparado tudo isso, e foi uma decisão brilhante de atuação, mas ele também estava ganhando tempo de tela para ele. (apud MANSO, p.507 tradução nossa) 42.

Outro elemento importante da construção do filme é que o personagem Val Xavier foi escrito para o próprio Marlon Brando, ou seja, Tennessee Williams utilizou na construção do personagem elementos que eram marca do sistema de aparecimento de Brando no cinema. Para Williams, Brando era “provavelmente o maior ator vivo... maior que Olivier” (apud MANSO, 1994, p. 497, tradução nossa) 43. Assim como existe a relação de criador e criatura entre diretor e ator, temos também a mesma relação entre roteirista e ator. Como Williams conhecia Marlon Brando pessoalmente, ele não só utilizou elementos da individualidade de Brando que apareciam na tela, mas também de aspectos pessoais da vida do ator, que tanto encantaram o autor, para a escrita do personagem. Segundo Thomas, Val Xavier é um retorno à Stanley Kowalski:

41 Minutagem do filme como referência para esta cena: “Vidas em Fuga”: 42’33’’ a 43’35’’. 42 He started searching through his pants pokets, sort of shit-kicking smile on his face. [...], Just milking it. Finally He took the envelope out, and it was all wadded up. He smoothed it out and handed to her, and she was Just standing there glaring at him. Marlon had set the whole thing up, and it was a brilliant acting decision, but He was also grabbing the sreeen time for himself. 43 [...], probably the greatest living actor... greater than Olivier, [...]

68 Para interpretar o triste e perambulante Val Xavier, Marlon Brando retornou à imagem que o perseguiu desde “Uma Rua Chamada Pecado”, aquela do irritado, de resmungos introspectivos, o que pode ter sido uma das razões pelas quais Brando relutou em aceitar o papel na primeira vez [na montagem da Broadway]. Sua atuação em “Vidas em Fuga” é, na maior parte do tempo, apagada, minguante, talvez para não sugerir qualquer similaridade com Stanley Kowalski, mas ela tem alguma intensidade luminosa. Sua cena mais memorável – e é claramente a interpretação de Tennessee Williams do que é o espírito livre do artista criador – é quando ele fala sobre pássaros que não possuem pernas e que passam toda sua vida no céu porque não podem pousar: “Eu vi um uma vez... ele tinha um corpo pequeno como um dedo mindinho... mas suas asas abriam muito. Elas eram transparentes, da cor do céu, e você podia ver através delas... Mas esses pequenos pássaros, eles não têm perna alguma, eles vivem a vida toda voando, e eles dormem no vento... Eles apenas abrem suas asas e dormem no vento. Eles dormem no vento e nunca pousam nessa terra a não ser uma vez. Quando eles morrem”. (1973, pg.127, tradução nossa) 44.

Como o próprio Brando mencionara em sua entrevista para (1957), Williams havia fixado a imagem de Brando com a figura do “jovem rebelde”, escrevendo, então, um personagem que se encaixasse nesse perfil. “É através da construção histórica de um sistema de interpretação que um ator poderá expressar mais legitimamente sua persona, sua individualidade dentro de um filme” (MACIEL GUIMARÃES, 2012, p.89). Foi ao longo dos anos 50, por meio de seu aparecimento em doze filmes, que Brando lançou elementos individuais que foram utilizados ao longo de toda sua carreira por diversos diretores. Dessa forma, ao dirigi-lo, Lumet já sabia quais elementos e marcas de Brando poderiam ser utilizadas para compor Val Xavier em cena e essas marcas são aspectos de autoria por parte de Brando.

44 To play the sad and wandering Val Xavier, Marlon Brando returned to the image that had dogged him since Streetcar, that of the sullen, introspective mumbler, which is possibly a strong reason for Brando’s reluctance to play the role in the first place. His acting in The Fugitive Kind is mosty subdued, perhaps in order not to suggest any similarity whith Stanley Kowalski, but it does have a kind of luminuos intensity. His most memorable scene – and this is obviously Tennessee Williams’ interpretation of the freee spirit of the creative artist – is where He talks about birds that have no legs and spend their lives in the sky because they cannot land: “I seen one once... it had a body as tiny as your little finger... but its wings spread out this w-i---de (sic). They was transparent, the color of the sky, and you could see through them... But those little birds, they don’t have no legs at all, and they live their whole lives on the wing, and they sleep on the Wind... They just spread their wings and go to sleep on the Wind. They sleep on the Wind and never light on this earth but one time. When they die.”

69 Além de Val Xavier ter sido escrito para ele, Brando também influenciou em outros aspectos da criação de “Vidas em Fuga” (1959), que o colocam como coautor da obra. A cena de abertura do filme é um monólogo de apresentação de seu personagem, no qual Val Xavier conta para o juiz porque foi preso. Essa cena45 foi uma exigência de Brando para destacar seu personagem, que aparece diante da corte com a câmera sempre valorizando sua interpretação e seus trejeitos, como o olhar para fora do quadro, tocar o rosto, pausar a frase em busca das palavras, e que foi considerada pelos críticos a melhor sequência do filme (MANSO, 1994).

Val Xavier foi a última parceria de Brando com Tennessee Williams e o último personagem que consideramos como “jovem rebelde”. Conforme o ator envelhece, ele começa a interpretar personagens maduros, que se consolidarão como “padrinho” ao longo do filme, ou já aparecerão nessa figura. Como principal característica dessa nova fase, teremos personagens cada vez mais introspectivos, silenciosos e observadores, com rompantes de fúria pontuais que farão remeter à Stanley Kowalski. Dois filmes em particular apresentam de forma exemplar essa transição em cena. “A Face Oculta” (1961) e “O Grande Motim” (1962), os quais serão analisados a seguir em ordem inversa à cronológica, devido à importância de “A Face Oculta” (1961) na trajetória artística de Brando, já que o filme também é dirigido pelo ator.

3.2 Fletcher Christian – Assumir suas posições. De um personagem solar à morte na penumbra

“O Grande Motim” (1962), assinado por Lewis Milestone, é uma refilmagem da obra homônima dirigida por Frank Lloyd em 1935 e que tinha como protagonista Clark Gable no papel de Fletcher Christian.

45 Minutagem do filme como referência para esta cena: “Vidas em Fuga”: 00’42’’ a 06’13’’.

70 O filme conta a história, baseada em fatos reais, do motim contra o capitão Bligh (Trevor Howard) liderado pelo segundo em comando, o tenente Fletcher Christian (Marlon Brando) devido às duras medidas punitivas – incluindo a tortura – do capitão sobre seus marinheiros. A narrativa se desenvolve majoritariamente no navio inglês Bounty e no Taiti, local onde os amotinados escolhem passar o resto de suas vidas escondidos e onde o tenente tem seu fim trágico.

Assim como na maioria dos filmes até então lançados, o personagem interpretado por Brando só aparece depois da introdução e, antes disso, os outros falam sobre ele. Quando surge, o tenente Fletcher aparece não como um militar, mas como um aristocrata inglês, vestindo um fraque cinza, uma capa vermelha e cartola, acompanhado de duas mulheres. Ele as leva para conhecer o navio e o trio desperta curiosidade da tripulação por sua dissonância com o ambiente. Quando o capitão pergunta a Fletcher por que um jovem que poderia levar a vida de modo tranquilo e luxuoso está embarcando para o mar, Fletcher responde tranquilamente: “Você sabe, alguma coisa o homem tem que fazer.”46.

Esse é o jogo dual que Brando apresentará de seu personagem. Fletcher Christian pode parecer inicialmente um aristocrata excêntrico que tem um desejo de aventuras ao mar. Ele não é um herói por natureza – como é o Fletcher interpretado por Clark Gable na filmagem de 1935 –, mas alguém que passará quase metade do filme sem tomar partido em relação às atitudes cruéis do capitão Bligh. Nesse tempo, é como se ele ponderasse se deve agir ou não, tomando partido em relação aos marinheiros. Temos em Fletcher Christian, um arco semelhante ao de Terry Malloy, que habita entre dois mundos e que se vê obrigado a tomar partido por um dos lados. Para Colombani:

Fletcher parece superficial, sem princípios, encantador. Ele é, na verdade, generoso, profundo e irrepreensível. Nós pensamos que ele simboliza a jocosidade em relação à severidade de Bligh, mas o que ele realmente representa é a pureza. [...] Fletcher é o cordeiro sacrifical, ele que – após uma longa reflexão – concorda em dar sua vida para o bem comum. Quando seus

46 Minutagem do filme como referência para esta cena: “O Grande Motim”: 11’00’’ a 14’15’’.

71 homens o parabenizam por ter vencido, Fletcher, com o rosto na sombra, exclama: “Vencido? Vencido o que, seus tolos malditos?” Ele está bem ciente que, em seu ato e em seu altruísmo, um desejo de morte também pode ser distinguido. (2013, p. 103, tradução nossa) 47.

No plano temático, a história dos amotinados interessava a Brando. Diferente da versão dirigida por Frank Lloyd, que terminava com um “final feliz”, Brando queria explorar os aspectos sombrios da história real. Após se refugiarem na ilha perdida de Pitcairn com dezessete taitianos, que foram com eles por vontade própria ou sequestrados, diversas brigas internas acabaram por colapsar o grupo. O próprio Fletcher terminou assassinado por seus marinheiros por defender a paridade de poder entre taitianos e ingleses (COLOMBANI, 2013). Segundo o próprio Brando essa parte da história “apresenta um microcosmo da situação do homem ao longo da História: A luta dos negros contra os brancos, do bem contra o mal, da urgência em criar e da urgência em destruir” (apud MANSO, 1994, p. 518, tradução nossa) 48. Com isso, Brando deixava claro o seu desejo de se engajar em obras que possuíssem uma abrangência política, que pudessem discutir temas que eram caros ao ator. No mesmo período, Brando tentava financiar um filme sobre o programa de assistência da ONU para países subdesenvolvidos e queria que suas obras dialogassem de alguma forma com esse projeto. Mais tarde, embora com severas restrições ao tema, Brando conseguiu tratar do assunto em “Quando os irmãos se defrontam” (George Englund, 1963), filme no qual Brando interpreta Harrison Carter McWhite, um embaixador americano enviado ao país (fictício) de Sarkhan, local onde ele descobre que, apesar

47 Fletcher seemed superficial, inconsistent, charming. He is in fact generous, deep, irreproachacle. We thought he symbolized whimsy in the face of Bligh’s rigidity, yet what he really represents is purity. [...] Fletcher is the sacrifical lamb, he who – after long reflection – agrees to give his life for the common good. When his men congratulate him for having won, Fletcher, his face in shadow, exclaims, “Won? Won what, you damn fool?” He is well aware that, in his deed and his fine altruism, a death whis can also be discerned. 48 Our early-day heroes were not brave one hundred percent of the time, nor were they good one hundred percent of the time. [...] My part is that of a man Who is intuitive and suspicious, prideful and searching. He hás a touch of the vain and a childish and disproportionate sense of virtue and manly ethics. He is lonely and generally distrustful of human contacts.

72 de suas boas intenções, o objetivo dos EUA na Ásia era o controle político desse local, e não a troca entre culturas.

Em “O Grande Motim” (1962), também era importante para Brando a presença de nativos de verdade para a figuração do filme, assim como aconteceu em “Viva Zapata!” (1952) e “Sindicato de Ladrões” (1954). Isso também era um desejo do estúdio, com o objetivo de transformar o filme em uma reprodução fiel do evento histórico. Mais uma vez o choque entre culturas, como em “Casa de Chá ao Luar de Agosto” (1956) e “Sayonara” (1957), era uma temática que interessava a Brando e, como ele podia – por cláusula contratual – alterar o roteiro, ele mudou aspectos que acreditava terem o poder de tornar o filme mais próximo do real. Brando queria torná-lo um filme com uma mensagem (COLOMBANI 2013) e propôs que ele explorasse as tensões políticas entre os refugiados na ilha após o motim. No entanto, o filme não escapa de representar os nativos taitianos de forma caricatural: para as cenas no Taiti, a produção cobriu os seios das figurantes nativas com biquínis de coco e colares de flores, além de distribuir perucas e dentaduras para os extras do filme. (MANSO, 1994).

O enredo de “O Grande Motim” (1962) narra a viagem realizada em 1789 pela tripulação da marinha britânica do navio Bounty, saindo da Inglaterra para o Taiti, com a missão de coletar mudas de fruta pão para serem replantadas na Jamaica. Contudo, há um período específico para se transportar as mudas, o que apressa a tarefa do capitão Bligh. Pressionado para cumprir sua missão e manter as plantas vivas durante a viagem, o capitão passa a infligir duras regras a seus marinheiros, inclusive o racionamento de água. Qualquer marinheiro que fosse de encontro a essas regras seria severamente punido. São essas duras restrições e castigos que levam ao motim e a expulsão do capitão do navio durante a viagem de volta, que, agora sob o comando de Fletcher, resolve permanecer nas ilhas do Pacífico.

Entre os momentos de tensão no navio, tem-se a chegada ao paradisíaco Taiti, onde os marinheiros conhecem as belezas naturais e se enamoram pelas nativas. Fletcher Christian não escapa dessa regra e se apaixona pela filha do chefe da tribo, a

73 jovem Maimiti (Tarita). A nativa taitiana é uma das figuras mais interessantes do filme, por sua personalidade forte e sua independência. Das personagens femininas que se relacionam com os personagens de Brando, Maimiti é a única a bater de frente com ele no plano verbal, a contestar e ir de encontro a suas decisões. Diferente da relação entre Stella e Stanley em “Uma Rua Chamada Pecado” (1951) ou entre Zapata e Josefa em “Viva Zapata!” (1952), na qual há uma imposição do homem sobre a mulher, no caso de “O Grande Motim” (1962), Maimiti impõe sua vontade sobre Fletcher e será talvez essa personalidade forte que fará despertar nele o “verdadeiro amor”. Se antes, Fletcher é um galanteador para quem, aparentemente, mulheres são descartáveis, quando ele chega ao Taiti, a nativa vai conquistando o coração do tenente. Ela, inclusive, acentua o processo que revela que Fletcher possui um bom coração e que se preocupa com os que o cercam. O bon vivant do início do filme tem a transformação em líder maduro pelo contato e influência de Maimiti. Do mesmo modo que em “Sindicato de Ladrões” (1954), “Eles e Elas” (1955) e “A Face Oculta” (1961), o amadurecimento se dá pela influência de uma personagem feminina, evidenciando o padrão de relação dos personagens de Brando com suas parceiras de cena.

Não é só em relação ao amor que Fletcher apresenta uma transformação, mas também em seu posicionamento ante as atrocidades cometidas pelo capitão Bligh. É comum Brando interpretar personagens que apresentam dois lados, duas energias, podendo elas ser evidentes como as de Fletcher, ou sutis como em Stanley ou Don Corleone. Essas duas facetas aparecem no seu modo de agir: Stanley agride a esposa e depois é terno com ela e Don Corleone se apresenta como um senhor que ama e se dedica à sua família, mas que não hesita em mandar matar alguém. Fletcher é um jovem inglês bon vivant interessado em mulheres, mas também o homem que irá se voltar contra o capitão do navio pela crueldade deste com seus subordinados. Seus personagens trabalham nessa dualidade, os aspectos profundos de sua personalidade não são facilmente identificáveis. No entanto, esses personagens estão mais próximos do espectador, já que compartilham com ele suas dúvidas em relação ao mundo. Esse

74 é o aspecto principal que separa o Fletcher dessa segunda versão do filme daquele interpretado por Gable. Segundo o próprio Brando:

Nossos heróis do dia a dia não são corajosos cem por cento do tempo, nem são bons cem por cento do tempo. Minha interpretação é a do homem que é intuitivo e desconfiado, cheio de orgulho e desconfiança. Ele tem um toque de egoísmo e um senso de virtude e ética masculinas infantis e desproporcionais. Ele é solitário e, em geral, descrente do afeto humano. (apud MANSO, 1994, p. 479, tradução nossa) 49.

Como já foi dito, essa dualidade aparece muitas vezes revelada pela influência de uma figura feminina. No caso de “O Grande Motim” (1962), é na relação com a personagem de Tarita que aspectos mais delicados da personalidade do tenente são evidenciados. Até mesmo o modo como Fletcher conhece Maimiti é diferente do que se esperaria de um galanteador, ele não escolhe sua parceira, é escolhido por ela50. Quando a tripulação é recebida pelos nativos em uma grande festa, Maimiti dança para Fletcher tomando ela a iniciativa do flerte, e não o contrário. Ao tenente, cabe a função apenas de, com um leve sorriso nos lábios, acompanhar a dança com os olhos. O espectador se encontra como testemunha desse momento, tentando descobrir o que se passa na cabeça de Fletcher, ao mesmo tempo em que também é seduzido pela dança da taitiana. Além de, durante sua dança, escolher seu parceiro, é ela também que, atraindo o tenente com seu olhar, o leva para um arbusto, onde os dois farão sexo pela primeira vez51. Segundo Colombani “Esse será o único exemplo desse tipo de relacionamento nos filmes de Brando: sem amor romântico, sem violinos, mas, ao invés

49 Our early-day heroes were not brave one hundred percent of the time, nor were they goog one hundred percent of the time. [...] My part is that of a man Who is intuitive and suspicious, prideful and searching. He hás a touch of the vain and a childish and disproportionate sesnse of virtue and manly ethics. He is lonely and generally distrustful of human contacts. 50 Minutagem do filme como referência para esta cena: “O Grande Motim”: 75’00’’ a 78’00’’. 51 Minutagem do filme como referência para esta cena: “O Grande Motim”: 81’00’’ a 83’00’’.

75 disso, um pragmatismo determinado, uma vontade de ferro no corpo de uma ninfa” (2013, p. 104, tradução nossa) 52.

Foto 18: O personagem seduzido; o olhar de Brando.

Fonte: Print screen de “O Grande Motim” (1962).

À observação de Colombani, acrescentamos também a relação do major Weldon Pernderton (Brando) com sua esposa (Leonora) em “O Pecado de Todos Nós (1967). Nela, Brando retoma a relação conflituosa de seus personagens com as mulheres e a aprofunda em direção ao ódio e desprezo. Homoxessual enrustido, o Major não sabe lidar com a esposa, submetendo se à uma intensa introspecção e se sujeitando ao evidente adutério dela e até mesmo à violência física quando Leonora, sabendo que o major machucara seu cavalo, chicoteia o marido no rosto enquanto este permacene impassível. Embora diferente de Fletcher, Weldon Penderton também se submete à vontade da figura feminina, é ela quem está em comando.

52 It might be the only example of this type of relationship in one of Brando’s films: no romantic love, no violins, but rather a determined pragmatism, an iron will in the body of a nymph.

76 Apesar do desejo de fidelidade histórica, o filme tem um fim diferente do ocorrido verdadeiro, no qual o tenente é assassinado por seus marinheiros na ilha de Pitcairn. Na proposta inicial de Brando, Fletcher terminaria o filme em uma caverna, observando as sombras de seus marinheiros pilharem o seu refúgio paradisíaco e estuprarem as mulheres. Para o ator, seu personagem é um observador recluso (COLOMBANI 2013). Temos aí uma ligação forte com o coronel Kurtz de “Apocalispe Now” (1979), o “amotinado” do exército americano durante a Guerra do Vietnã, o condenado à morte que se fecha em um templo abandonado e ali morre, enquanto seus “marinheiros” realizam um ritual/festa de sacrifício.

Essa tendência de personagens que mais observam o mundo a seu redor, agindo pontualmente ao longo da narrativa, e que terá seu melhor exemplo no personagem do filme de 1979, é uma característica que aparece no Brando maduro, a partir dos anos 60. Ela é uma das composições que constituem a figura do “padrinho”, aparecendo em “A Face Oculta” (1961), “Morituri” (Bernhard Wicki, 1965), “Sangue em Sonora” (Sidney J. Furie, 1966), “O Pecado de Todos Nós” (1967), “O Poderoso Chefão” (1972), “O Último Tango em Paris” (1972) e “Cristovão Colombo – A Aventura do Descobrimento” (John Glen, 1992), entre outros, independentemente se eles se encaixam estritamente no perfil do “padrinho” ou não.

O final de “O Grande Motim” (1962) proposto por Brando não foi aprovado pelo estúdio e o filme acaba da seguinte maneira: Após um tempo refugiado na ilha, Fletcher expõe ao grupo de marinheiros seu desejo de retornar à Inglaterra e se entregar à corte, onde seria julgado por amotinamento. Contudo, ele é impedido pelo restante da tripulação que põe fogo no navio e, ao tentar salvar seus instrumentos de navegação, Fletcher acaba morrendo devido às severas queimaduras em seu corpo53. Tal destino para o personagem mostra outro elemento presente na filmografia de Brando: o auto- sacrifício com tons masoquistas, que já aparece claramente em diversos momentos do filme, nas cenas dos marinheiros sendo chicoteados pelo capitão. Nesse trecho, é o

53 Minutagem do filme como referência para esta cena: “O Grande Motim”: 166’00’’ a 184’30’’.

77 próprio corpo de Brando que sofre a tortura física. Na penumbra, com o corpo coberto para protegê-lo das severas queimaduras, descrente da ação de seus marinheiros, o tenente diz: “Bligh deixou sua marca em todos nós”. Depois disso, percebe que a morte é o seu destino, se despede de Maimiti e se entrega para o fim encarando de olhos arregalados a morte na escuridão da ilha.

78 Fotos 19, 20 e 21: Fletcher em três momentos: Sua apresentação, o aristocrata; após o motim: mudança para as sombras; no fim, morte encarando a escuridão.

Fonte: Print screen de “O Grande Motim” (1962).

79 3.3 “A Face Oculta” (1961) – O ator autor e o ator diretor

No fim dos anos 50, Marlon Brando fundou a produtora Peenbaker Productions e passou a ter parte como produtor de seus filmes. Seu objetivo era, segundo o próprio Brando, “fazer filmes que promovessem o bem mundial; gerar um emprego para meu pai [...] e pagar menos impostos.” (1994, p.192). A Peenbaker tinha um acordo com a Paramount, um dos estúdios cinematográficos mais importantes do período, para que realizassem filmes em conjunto (MANSO,1994). Em 1959 a Peenbaker começou a produção de “A Face Oculta” (1961), um western, ou faroeste, gênero que narra as histórias daqueles que povoaram o oeste dos EUA e que é uma das grandes lendas formadoras da nação norte-americana, um terreno fértil para a formação de figuras icônicas da cinematografia americana como John Wayne e Clint Eastwood.

“A Face Oculta” (1961) é um filme propício para analisar quais as temáticas e abordagens interessavam a Brando, já que nessa obra ele assina como diretor e protagonista do filme. Esse controle criativo sobre aspectos chaves da produção cinematográfica permitem observar quais elementos temáticos e formais eram importantes para ele. Se em produções como “O Grande Motim” (1962) e “O Pecado de Todos Nós” (1967) o flagelo sobre o corpo de Brando aparece colocado pelas mãos de outro diretor, aqui é o próprio Brando que se coloca para ser chicoteado em praça pública e ter os dedos quebrados pelo seu algoz.

O filme conta a história de dois parceiros de banditismo no oeste americano, Rio (Brando) - também chamado de Kid – e Dad (Karl Malden) que rompem suas relações depois que Dad deixa Rio sozinho em uma emboscada e foge com o ouro que os dois haviam roubado. Depois de cinco anos na prisão, Rio parte em busca de Dad para realizar sua vingança contra o companheiro traidor. Quando Rio o encontra, Dad se instalou em uma cidade na costa da Califórnia onde se tornou xerife. Ali ele omitiu seu passado de banditismo, casou-se com a mexicana Maria () e adotou sua jovem filha, Louisa (Pina Pellicer), por quem Rio irá se apaixonar.

80 Rio chega à cidade em um período de festa, escondendo suas verdadeiras intenções, encontra-se com Dad e passa a investigar o agora seu inimigo. Como parte de sua vingança, ele seduz a filha adotiva de Dad e a engravida, além de planejar roubar o banco da cidade para entrar em confronto direto com o xerife. Contudo, seus planos são alterados: Rio mata um homem que tentava abusar de uma mulher e, pelo crime de assassinato, é chicoteado e expulso da cidade por Dad.

A segunda parte do filme mostra o retiro de Rio em uma vila de pescadores para se curar das feridas e planejar nova vingança contra Dad. Lá ele recebe a visita de Louisa e descobre que ela está grávida dele. No retorno de Rio para a cidade, ele é pego por Dad em uma emboscada e acaba preso e condenado à forca. Por fim, Rio foge da prisão e duela com Dad, matando-o. O filme acaba com Rio fugindo da cidade em seu cavalo, prometendo à jovem Louisa que retornará para encontrá-la.

Mais uma vez, um personagem de Brando encontra sua redenção pelo amor. No início do filme temos Rio convencendo uma jovem a beijá-lo ao entregar a ela o anel de noivado que fora de sua mãe, mas que, na verdade, é uma joia roubada por ele. Ao longo do filme, ele faz a mesma ação quando conhece Louisa, revelando um padrão de comportamento cafajeste do personagem. Mas, após seduzir Louisa e passar a noite com ela na praia, seu comportamento muda. A sinceridade e pureza da jovem despertam o amor e a sinceridade em Rio, o que o leva a revelar suas verdadeiras intenções – que está ali para matar Dad. Rio descobre em Louisa a possibilidade de uma vida sem mentiras. Essa força da influência feminina, que nos remete à Stella Kowalski, Eddie e Maimiti, está também presente em Louisa, principalmente quando Rio está em seu exílio na vila de pescadores. É nesse lugar, nessa purificação no mar, que Louisa vai visitá-lo para contar de sua gravidez, aprofundando sua influência na redenção de Rio. Tal visita reafirma a transformação do homem em busca de vingança, que não hesita em enganar e mentir, no homem verdadeiro que parte no fim do filme em seu cavalo na direção do horizonte.

81 O final de “A Face Oculta” (1961) é outro que também foi alterado pela Paramount em detrimento ao original gravado por Brando, o que gerou atritos do ator com o estúdio. Em sua primeira direção, Brando queria controle de sua obra, chegando a propor diferentes versões do filme com oito, quatro e três horas de duração. Todavia, os executivos da Paramount tomaram para o estúdio os direitos de montagem do filme. Por mais que o ator e diretor tivesse controle criativo sobre a obra, o material a ser lançado no mercado ainda tinha que passar pelo crivo do estúdio.

No final original, Dad, depois de perder o duelo e já estar à beira da morte, atira em Louisa quando ela fugia com Rio de cavalo. Rio, então, desce do cavalo, se despede de sua amada e retorna à cidade carregando seu corpo (MANSO 1994). A Paramount pediu que se rodasse uma nova versão, e temos o final no qual Rio parte montado em seu cavalo jurando retornar. Embora, a ideia original de Brando fosse um fim trágico, o “final feliz” presente na versão lançada se mantém plausível. Isso ocorre porque o vínculo de Rio com Louisa é construída pelo diretor de maneira sincera, sem falsidades, de maneira distinta à relação de Rio com os outros personagens.

No que diz respeito a Brando como diretor, as propostas para a construção da cena distanciavam-se das ideias de Adler ou Stanislavski, de estudo do texto e a busca por ações, e apareciam as táticas que Brando utilizava com seus parceiros de cena em outros filmes: A intimidação - que aponta para como ele via que um diretor podia ajudar seus atores a construir seus personagens e cenas. Várias foram às vezes que Brando bateu no ator Larry Dunan, que interpretava o parceiro de Rio, Chico Modesto, ou atirava para cima para assustar os atores e fazê-los reagir. (COLOMBANI, 2013). Contudo, isso parecia não incomodar seu elenco: Malden disse: “Eu confiei no seu olhar. Eu consigo lidar com tudo que se passa diante das câmeras, mas eu não sabia droga nenhuma sobre estar atrás das câmeras. Marlon sabia sobre iluminação e como enquadrar um plano pictoricamente, ele sabia o que estava fazendo.” (apud

82 MANSO,1999, p. 483, tradução nossa) 54. Ou seja, Brando criava um ambiente de intimidação ao mesmo tempo em que era amoroso com seus atores. Ele também se envolvoeu amorosamente com Pinna Pellicer (a atriz que fazia Louisa), o que indica que as cenas de amor filmadas também são o registro da própria paixão dos atores. Quanto ao restante do elenco, são diversas as declarações de afeto de Malden sobre Brando. Esse reconhecimento dele como diretor não vem só de seus companheiros de cena, mas de diretores de uma geração posterior. Segundo Tarantino o filme é “a personificação da mística de Brando e um das maiores estreias de um diretor de todos os tempos” (apud COLOMBANI, p. 85, tradução nossa) 55.

Enquanto buscava reações espontâneas de seus atores, Brando optou por ir “na contramão” dessa construção, criando um personagem que pouco expressa seus pensamentos, e passa muito tempo observando, quase sem reagir ao entorno. Nesse aspecto, Rio se assemelha a Fletcher e a diversos personagens de Brando nos anos 60, como Robert Crain em “Morituri” (1965), Matt Fletcher em “Sangue em Sonora” (1966), major Penderton de “O Pecado de Todos Nós” (1967) e que tem seu expoente em Don Corleone e no coronel Kurtz. Todos são personagens que se expõem pouco, mas que agem muito, diferente do que fazem os personagens da juventude de Brando, que expõem seus dilemas ao longo do filme, como em “Espíritos Indômitos” (1950), “Uma Rua Chamada Pecado” (1951) e “Sindicato de Ladrões” (1954). .

Esse aspecto quase neutro das feições de Brando, principalmente na primeira metade do filme, evidencia o contraste ente as figuras de Rio e Dad. Ambos camuflam suas verdadeiras intenções, eles atuam de maneiras diferentes para enganar ao outro. Enquanto o primeiro esconde seus pensamentos por trás de um rosto quase inexpressivo, o outro esconde os seus por meio de uma alegria cheia de sorrisos falsos. As verdadeiras intenções ficam evidentes não pela reação de um diante do outro, mas pelas informações dadas antes do reencontro dos dois e também pelo modo que a

54 I trusted his eyes. [...] Anything in front of the cameras I can handle, but I didn’t know a goddam thing about behind the camera. Marlon knew lighting and how to frame a shot pictorially, He knew what he was doing. 55 The personification of the Brando mystique and one of the greatest [directorial] debuts of all time.

83 câmera os filma. Na sequência do primeiro reencontro entre Dad e Rio, quando este sai da prisão, Brando deixa, por meio do modo como enquadra os personagens, inverter a situação em que eles se encontram naquele momento, colocando o xerife atrás das grades e o fugitivo da prisão em uma postura triunfante56. É como se essas imagens refletissem o ponto de vista de Rio sobre o destino dos personagens.

Fotos 22 e 23: Sugestão de enquadramento: A chegada triunfante de Rio e Dad atrás das grades.

Fonte: Print screen de “A Face Oculta” (1961).

56 Minutagem do filme como referência para esta cena: “A Face Oculta” (1961): de 35’36’’ a 38’18’’

84 Esses planos estabelecem a nova relação entre os personagens. Fica nítido que Rio, triunfante, representa uma ameaça a Dad, que está deitado e desprotegido. Os dois se encontram e durante a cena que se segue, os personagens se sondam, como buscando entender quem atacará primeiro, em uma referência aos duelos entre mocinho e bandido consagrados pelo gênero western. A câmera os filma no mesmo enquadramento, em igualdade. Eles se medem e estabelecem as bases de sua relação a partir desse momento no filme: o que os conduzirá agora é o ódio mútuo e velado de ambos enquanto esperam o melhor momento para matar o inimigo. Eles passam a encenar uma amizade, como já dito, Rio impassível e Dad expressivo, quase bonachão, em uma atuação deliberadamente falsa de sua felicidade ao rever o amigo

Fotos 24 e 25: O reencontro. Personagens em igualdade.

Fonte: Print screen de “A Face Oculta” (1961).

85 Esse aspecto de “ator” presente em Rio também aparece nos personagens observadores já citados, com destaque para os seguintes filmes: “Morituri” (1965) no qual ele interpreta um sabotador infiltrado em um navio nazista; “O Pecado de Todos Nós” (1967), no qual o protagonista esconde sua homossexualidade dentro do exército; e “O Grande Motim” (1962) já que Fletcher, em sua inação ante as atrocidades cometidas pelo capitão Bligh, finge não se importar e até compartilhar do prazer do capitão pela tortura. Por fim, esse elemento aparece novamente em “O Poderoso Chefão” (1972): Don Corleone, ao promover uma reunião para conciliar a guerra entre as máfias de Nova York, faz isso também para descobrir quem matou seu filho e quais são seus traidores. Ele atua no jogo político para descobrir informações de seu interesse. Essa característica, de personagens que atuam, agrada a Brando:

...há uma grande questão sobre atuar que não faz sentido para mim. Todo mundo é ator, você passa a sua vida toda atuando. Todo mundo já passou por momentos em que você está pensando e sentindo uma coisa e não está mostrando. Isso é atuar. (apud GROBELL, 1970, p. 53, tradução nossa) 57.

Em “A Face Oculta” (1961), os personagens permaneceram atuando até quando Dad acha um momento para por fim ao “teatro” armado por ambos, encontrando sua oportunidade de atacar abertamente. Com a justificativa de punir Rio pela morte de um bandido, Dad o amarra em praça pública, o chicoteia e depois quebra seus dedos. Rio permanece impassível durante o flagelo. Seu corpo permanece ereto e vai descendo lentamente ao chão, sem gritos ou lágrimas. Não há close no rosto de Brando, a câmera também permanece distante, como um observador neutro da ação58. Depois disso, Dad coloca Rio em um cavalo e o expulsa da cidade em uma cena quase oposta a chegada triunfal de Rio nas terras do xerife. Segundo Colombani, essa sequência

57 There’s a big bugaboo about acting, it doesn’t make sense to me. Everybody is an actor, you spend your whole day acting. Everybody has suffered through moments where you’re thinking one thing and feeling one thing and not showing it. That’s acting.

58 Minutagem do filme como referência para esta cena: “A Face Oculta” (1961): de 76’84’’ a 81’46’’.

86 ilustra a visão de Brando sobre a relação diretor ator, para ela “essa cena em questão contém uma metáfora da falta de poder do diretor – Brando, como diretor e estrela do filme se sujeita às chicotadas de seu ator e personagem.” (2013, p. 85, tradução nossa) 59. Tal metáfora poderia ser analisada à luz da desconsideração de Brando com os diretores, optando, em geral, por fazer suas próprias construções de personagens, falas e cenas. Apenas com Kazan, Mankiewicz, Lumet, Coppola e Bertolucci, Brando travou algum diálogo para a construção de suas cenas; na maioria dos filmes, era ele quem determinava como seria a trajetória e como seria filmado seu personagem.

Foto 26: Rio impassível. O diretor se sujeita ao chicoteamento por meio de seu personagem.

Fonte: Print screen de “A Face Oculta” (1961).

A partir da cena do chicoteamento, há uma virada na relação ente Rio e Dad. Eles param de interpretar sua falsa amizade. Isso fica evidente porque Malden passa a ser mais reservado e sisudo, a manter um rosto inexpressivo. Por sua vez, Rio mostra mais suas sensações e sentimentos; ele se mostra frágil ao longo de sua recuperação, mostra sua dor em reaprender a atirar com os dedos quebrados e também se permite rompantes de fúria. Logo após a visita de Louisa, durante uma partida de pôquer, um

59 The scene in question contains a metaphor of the director powerlessness – Brando, as star and director, submits to the blows of his actor and character...

87 de seus comparsas diz “ele ficou amuado depois que sua avezinha veio visitá-lo”. Rio se levanta subitamente, joga a mesa e as cadeiras ao longe e chama o companheiro para a briga, em um movimento e expressões que poderiam muito bem vir de Stanley Kowalski60. Esse é um dos poucos arroubos de fúria de Rio, que demonstra um comportamento que se seguirá na maturidade de Brando. Seus personagens serão figuras tranquilas, mas que, ao serem provocadas, evocam a gestualidade bruta do “jovem rebelde”. O Brando maduro sabe quando deve impor seu poder, há uma economia de seus gestos e de sua energia. Tal comportamento pode ser verificado em “O Grande Motim” (1962), “O Pecado de Todos Nós” (1967), “Os Que Chegam Com a Noite” (Michael Winner, 1971) e “O Último Tango em Paris” (1972), dente outros, e estão associados à figura observadora que os personagens de Brando passam a ser nesse período; eles observam o mundo ao seu redor e agem pontualmente.

3.4 Rio - Um personagem autobiográfico

Eu não tenho nenhum respeito pela atuação. Atuar é, de longe, a expressão de um impulso neurótico. [...] Atuar é uma vida de vagabundo, que leva a uma perfeita autoindulgência [...] Atuar é fundamentalmente uma coisa infantil a se buscar. Deixar de atuar – essa é a marca da maturidade.” (BRANDO apud MANSO, p. 477, tradução nossa) 61.

Segundo o conceito de estrela, podemos relacionar os aspectos sempre presentes nos personagens de um ator com aspectos que dizem respeito a sua vida pessoal. No caso de Brando, podemos resumir seus filmes como retratos de uma mente perturbada e complexa (COLOMBANI, 2013), que mostram um homem com dificuldades de relação com o sexo oposto, com figuras masculinas paternas e que constantemente se flagela por isso em busca de uma redenção:

60 Minutagem do filme como referência para esta cena: “A Face Oculta” (1961): de 106’42’’ a 101’85’’. 61 I have no respect for acting. [...] Acting by any large is the expression of a neurotic impulse. [...] Acting is a bum’s life, in that it leads to perfect self indulgence. [...] Acting is fundamentally a childish thing to pursue. Quitting acting – that is the mark of maturity.

88

A atração de Marlon Brando por papéis nos quais ele é mal tratado ou humilhado é óbvia (...). Assim, no notável “Vidas em Fuga” (Sidney Lumet, 1959), seu personagem, Val, um andarilho que tem um caso adúltero com uma mulher casada interpretada por Anna Magnani, é linchado por uma multidão enfurecida. Outro linchamento – um exemplo extraordinário e brutal – aparece em “Caçada Humana” (Arthur Penn, 1966), no qual Brando, como xerife, desperta a ira dos moradores da cidade. O personagem sobrevive, mas a cara ensanguentada do ator e seu corpo estraçalhado quase nos faz esquecer a violência de “A Face Oculta”. A dimensão sexual do apreço de Brando pelo sofrimento é aparente antes de “O Último Tango em Paris” em “Os Que Chegam Com a Noite” (Michael Winner, 1971)... (COLOMBANI, 2013, p. 145 tradução nossa) 62.

Por assumir um maior controle sobre a criação em “A Face Oculta” (1961), tais elementos ficam mais evidentes e, segundo Colombani (2013), podemos classificar Rio como um “autorretrato” de Brando. No entanto, diferente da pintura, de onde essa ideia é oriunda e na qual “o corpo pintado [...] não é uma marca real do corpo do modelo” (BERGALA, 2005) no filme, é o próprio corpo do ator que está inscrito na tela. Maciel Guimarães (2012) destaca esse aspecto do ator quando fala sobre o cinema de Jean- Luc Godard, que costumava, através do dispositivo cinematográfico, quebrar com a barreira ficcional de seus filmes, mostrando os atores ao invés dos personagens, mas ele pode também ser aplicado para qualquer filme, mesmo em um caráter estrito a ficção. Segundo Alain Bergala isso se dá por que:

O personagem, no cinema, não é oriundo somente do registro do imaginário já que o criador, para dizer rapidamente, necessita de uma criatura real para fazê- lo existir na tela. A criatura existente no filme jamais será uma criatura puramente “enunciada”; ela é sempre um misto de criatura imaginária (que o criador tem na sua mente) e de criatura real (em carne, osso e sentimentos). A pessoa que encarna essa criatura é inscrita carnalmente na obra, com seus

62 Marlon Brando’s attraction to roles in which he’s mistreated or humiliated is obvious [...]. Thus, in the remarkable Fugitive Kind (Sidney Lumet, 1959), his character, Val, a drifter who has na adulterous affair whith a married woman played by Anna Magnani, is lynched by an enraged mob. Another lynching – na extraordinarily brutal one – takes place in The Chase (Arthur Penn, 1966), in which Brando, as sheriff, arouses the wrath of the townspeople. The character survives, but the actor’s bloodied face and mangled body almost make us forget the violence of One-Eyed Jacks. The sexual dimension of Brando’s taste for suffering is apparent before Last Tango in The Nightcomers (Michael Winner, 1971)...

89 gestos, sua voz, seu ser físico nesse momento da sua vida, nesse dia em que o plano foi feito, ao contrário do modelo na pintura – seja ela fonte de inspiração ou observação – do qual o corpo não faz ontologicamente parte dos materiais que constituem a tela. (BERGALA, 2005)

A afirmação de Bergala nos leva a concluir que o prórpio fato de ser registrado pela câmera torna o aparecimento do ator na tela um registo biográfico. No caso de Brando, acompanhamos sua vida ao longo de meio século, dos 26 aos 77 anos. Seu corpo, inscrito na tela, passa por modificações que são visíveis ao longo de sua filmografia; vemos seu envelhecimento, o ganho e a perda de peso. Somado isso ao fato da persona de Brando ser conhecida internacionalmente, as repetições de seu aparecimento no cinema ao longo dos anos, vão criando uma relação de familiraridade com o espectador. Uma filmografia, assim, aproxima-se muito de uma biografia.

Sobre “A Face Oculta” (1961), Thomas vê essas características autobiográficas ao afirmar que “por um lado, ele [o filme] é duro e realista e, por outro, é doce e romântico. O filme tem agitação e violência, mas também é triste, sensual e ocasionalmente sadomasoquista. É difícil não interpretar isso em um nível pessoal, como um reflexo do próprio Brando.” (1973 p. 115, tradução nossa) 63. Tais características são recorrentes não só nos personagens de Brando ao longo de sua filmografia, mas também são características do próprio ator. São diversos os episódios citados por seus biógrafos nos quais Brando alterna entre a doçura e a fúria ou o descaso para com os outros. Eles, por diversas vezes, citam o seu poder de sedução sobre mulheres e homens e também seus ataques de bulimia, suas tendências sadomasoquistas e sua tristeza profunda (FORRESTIER, 2014). Segundo Brando (1957):

Os últimos oito ou nove anos da minha vida têm sido uma bagunça, talvez os dois últimos tenham sido um pouco melhor. Menos como estar no meio de uma

63 On the one hand [the movie] it is tough and realistic and in the onther it is softly and romantic. The Picture hás excitement and violence, but it is also moody, sensuous and occasionally sado-masochist. It is difficult not to interpret all of this on a personal level, as a reflection of Brando himself...

90 onda. Você já foi num analista? No começo eu estava com medo disso. Com medo de que isso destruísse os impulsos que me fazem criativo, um artista. Uma pessoa sensível recebe cinquenta impressões de algo que outro alguém deve receber apenas sete. Pessoas sensíveis são muito vulneráveis; elas são tão facilmente brutalizadas e machucadas apenas por que são sensíveis. Quanto mais sensível você for, é maior a certeza de você ser brutalizado, de desenvolver cascas. Nunca evoluir. Nunca se permitir sentir nada, porque você sempre sente demais. Análise ajuda. Me ajudou. Mas ainda assim, nos últimos oito, nove anos eu tenho ficado muito mexido, uma bela bagunça... (apud CAPOTE, 1957, tradução nossa) 64.

A declaração de Brando a Capote poderia perfeitamente se encaixar em seus personagens de filmes como “O Selvagem” (1953) ou “Sindicato de Ladrões” (1954). São homens frágeis geralmente acossados pelo mundo que os envolve. Contudo, em “A Face Oculta” (1961), a punição e a tortura parecem cair sobre Rio porque ele é um mentiroso que deve ser punido por fingir, porque ele é um aproveitador. Sua redenção e amadurecimento só parecem possíveis quando ele deixa de fingir e de se aproveitar das pessoas, ou seja, quando ele deixar de atuar.

A segunda metade [do filme] é sobre a empatia por um homem que sofre. Em uma cena que evoca pinturas renascentistas da Via Crucis, Rio é trazido de volta à cidade algemado, escorraçado pela multidão, ele se encontra novamente atrás das grades, humilhado e impotente. É nesse momento em que a questão crítica que está no coração do filme para os fãs de Brando é levantada: Rio é um autorretrato? Nós devemos ver esse filme peculiar como o momento decisivo no qual Marlon Brando nos revela a visão que tem de si mesmo? (COLOMBANI, 2013, p. 84, tradução nossa) 65.

64 The last eight, nine years of my life have been a mess, maybe the last two have been a little better. Less rolling in the trough of the wave. Have you ever been analyzed? I was afraid of it at first. Afraid it might destroy the impulses that made me creative, an artist. A sensitive person recieves fifty impressions where somebody else may only get seven. Sensitive people are so vulnerable; they´re so easily brutalized and hurt just because they are sensitive. The more sensitive you are, the more certain you are to be brutalized, develop scabs. Never evolve. Never allow yourself to fell anything because you always feel to much. Analysis helps. It helped me. But still, the last eight, nine years I’ve been pretty mixed up, a mess pretty much... 65 ... the second half is one of empathy for a man Who suffers. In a scene that evokes The Mocking of Christ paintings of the Italian Renaissance, Rio is brought back to town in handcuffs. Manhandled by the mob, he finds himself once again behind bars, humiliated and powerlees. This is when the critical question is raised that lies at the heart of the film for Brando fans: Is Rio a self-portrait? Must we see this peculiar film as the decisive moment when Marlon Brando reveals to us his vision of himself?

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Como Rio é alguém que atua, finge suas emoções, engana a todos ao seu redor, ele será punido e só poderá ter um destino feliz (ao lado da amada Louisa) depois que de redimir e pagar por seus crimes. Ainda segundo Colombani, “a lógica do filme – que segue a lógica interna de seu criador – quer que Rio pague por seu talento em fraudar, seu talento em fazer as pessoas acreditarem em suas histórias, em suma, seu óbvio talento na arte de atuar.” (2013, p. 86) 66. A lógica interna da qual a pesquisadora se refere é o aparente desprezo de Brando pelo ofício do ator, que cai sobre o ele próprio. Ele flagela seus personagens como expiação de sua própria vida, como punição pela escolha de uma profissão na qual, segundo ele, mentir é a regra.

Foto 27: Corpo flagelado 1.

Fonte Print screen de “Sindicato de Ladões” (1954).

65 Following the inner logic of its creator – wants Rio to pay for his talent for swinding, his ability to make people believe his tall tales, in short, his obvious gift for the actor’s craft. 66 The logic of the film – following the inner logic of its creator – wants Rio to pay for his talent for swinding, his ability to make people believe his tall tales, in short, his obvious gift for actor’s craft.

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Foto 28: Corpo flagelado 2.

Fonte: Print screen de “Caçada Humana” (1966).

Outro aspecto autobiográfico é a relação conflituosa com a figura paterna. Esse é um elemento central na construção de “A Face Oculta” (1961) e é dado logo na apresentação dos personagens Dad (“Pai” em tradução livre do inglês) e Rio, ou Kid (“Criança”, ou “Filho”, em tradução livre). Nos primeiros 20 minutos de filme, Dad é quem cuida de Rio, que vê no homem mais velho uma figura paterna a qual ele admira. Mas todo o restante do filme, após a traição de Dad, é sobre a relação de ódio dos dois e sobre a vingança de Kid contra seu mentor. Isso esbarra na própria relação de Brando com o pai, segundo ele: “Meu pai era indiferente em relação a mim, nada que eu pudesse fazer interessava a ele ou o agradava.” (apud CAPOTE, 1957, tradução nossa) 67. Somamos isso aos inúmeros episódios de desavenças entre pai e filho citadas na autobiografia do ator:

Eu o amava e ao mesmo tempo o detestava. Ele era um homem ameaçador, taciturno e grosseiro que vivia remoendo um pensamento qualquer, irritado,

67 My father was indifferent to me, nothing I could do interested him, or pleased him.

93 sempre bebendo muito, um tirano que adorava dar ordens e emitir ultimatos; era duro até no falar. Talvez por isso, a vida inteira sempre tive aversão pela autoridade. (BRANDO, 1994, p.16).

A relação conflituosa com personagens mais velhos que assumem essa figura paterna está presente em diversos filmes de Brando. Seus personagens, na maioria das vezes, vão entrar em choque com a geração anterior, característica que é evocada diretamente por “O Selvagem” (1953) – revoltar-se contra “o mundo” na figura do “jovem rebelde” – ou “Sayonara” (1957) – contrariar as ordens de um superior militar que também é seu sogro – e “O Grande Motim” (1962) – amotinar-se contra o seu superior. Em “O Último Tango em Paris” (1972), filme que possui diversas falas extensas, divagações improvisadas pelo próprio ator, ele cita um momento de humilhação pelo qual seu pai o fez passar. Em determinado momento, Paul (Marlon Brando) diz:

Eu me lembro... uma vez eu estava todo pronto para sair com uma garota em um jogo de basquete. Eu comecei a sair e meu pai disse “você tem que ordenhar a vaca” Eu disse “você pode, por favor, fazer isso para mim?” Ele disse: “não, mexa sua bunda daqui”... Então eu saí e eu estava com tamanha pressa que não tive tempo de trocar meus sapatos. E eu tinha bosta de vaca em meus sapatos e, no caminho para o jogo, eu alastrava esse cheiro pelo carro todo. (O ÚLTIMO TRANGO EM PARIS, 1972).

Para os personagens de Brando há duas opções: “matar o pai” ou assumir o seu lugar, tornar-se o “padrinho”. Tal elemento é importante na sua filmografia e poderia ser dividido da seguinte maneira: Nos anos 50, Brando interpreta personagens que se revoltam contra o mundo estabelecido, contra as normas impostas pela geração anterior, constituindo a figura do “jovem rebelde”. Nos anos 60, aparecerão personagens que mostram seus processos de amadurecimento e que se rebelam contra a geração anterior, em geral, tomando seu lugar ao fim do filme, o lugar de líder. A partir dos anos 70, os personagens de Brando iniciam os filmes como “padrinho” e é para a geração seguinte que seus personagens darão seu lugar, como acontece com Don Corleone ou com o coronel Kurtz.

94 4. O PADRINHO

Say goodbye to loneliness, say goodbye to Marlon Brando/ Say goodbye to latitudes and the confusion that surrounds you/ Say goodbye to misery, say goodbye to the morning news/ Say goodbye to prime time and the fools that choose to view 68. (JOHN; JOHNSTONE; TAUPIN 1988).

Como citado anteriormente no início desse trabalho, o objetivo de nomear as figuras essenciais (MOULLET, 1993) “jovem rebelde” e “padrinho” na filmografia de Brando não busca limitar o trabalho desse ator, muito menos afirmar que ele sempre representa o mesmo personagem, como uma classificação assim pode vir a sugerir. Tal definição busca, em conjunto com a ideia de estrela (MORIN,1984), estabelecer a assinatura de Brando, o que constitui uma de suas caracteristicas como “ator autor” (Maciel Guimarães, 2012) de seus filmes. Brando seria, assim, um participante ativo e determinador dos aspectos da produção do filme. A ideia de ator autor é importante porque amplia o pensamento sobre quais áreas o ator influencia, ou pode vir a influenciar, na construção de uma obra cinematográfica cuja autoria, em geral, é dada exclusivamente ao diretor.

Ao estudarmos a filmografia de Brando, podemos analisar quase todos seus personagens à luz dessas figuras, do “jovem rebelde”, do “padrinho” ou de uma transição entre elas. As figuras que escapam a essa classificação ou se distanciam dela aparecem em quatro filmes: “Eles e Elas” (1955), “A casa de Chá ao Luar de Agosto” (1956), “Dois Farristas Irresistíveis” (1964) e “A Condessa de Hong Kong” (1967). Essas obras têm em comum serem comédias ou se aproximarem do gênero cômico. Ao todo, Brando atuou em sete comédias ao longo de sua carreira e tal destaque é importante porque é uma das características da assinatura do ator; ele será associado a papéis “sérios”. Isso se deve a dois fatores principais: o desinteresse do

68 Em tradução livre: Diga adeus à solidão, diga adeus a Marlon Brando/ Diga adeus às latitudes e à confusão que te cerca/ Diga adeus à miséria, diga adeus ao noticiário da manhã/ Diga adeus ao horário nobre e aos tolos que escolhem assisti-lo.

95 ator pelo gênero cômico, que pode ser percebido por sua declaração: “Nunca fui comediante e não sou muito bom para comédias.” (BRANDO, 1994, p.248) e também a inadequação de sua persona nessa categoria. Tanto o “padrinho” quanto o “jovem rebelde” não se encaixam bem nessas figuras.

Os personagens Sky Masterson da comédia musical “Eles e Elas” (1955) e Freddy Benson de “Dois Farristas Irresistíveis” (1964) são muito semelhantes. O que os caracteriza fora da figura do “jovem rebelde” é a sintonia com o mundo ao redor, do qual eles tiram enorme proveito. Ambos não tem a angústia e o descompasso em relação ao mundo que são tão fortes nos personagens de “Uma Rua Chamada Pecado” (1951), “Vidas em Fuga” (1959) ou “Caçada Humana” (Arthur Penn, 1966). Segundo Brando, personagens de filmes como “O Selvagem” (1963) estão ligados a uma destruição social criada por um mundo hostil aos afetos humanos:

... declarei a um repórter que “eu quis mostrar que só com gentileza e tolerância podemos dissipar as forças da destruição social” porque via Johnny [de “O Selvagem”] como um homem dividido por uma luta interior que estava além de sua capacidade de expressão. Ele tivera tantas frustrações na vida que sentia dificuldade em expressar o amor, mas por trás daquela hostilidade jaziam uma ânsia e um desejo desesperados de sentir amor, que recebera tão pouco. (BRANDO, 1999, p. 148).

Essa afirmação do ator se encaixa bem em qualquer um de seus personagens outsiders, mas Masterson e Benson parecem estar tranquilos em relação ao mundo, inclusive se aproveitam dele, tirando vantagem de jogos e mulheres. O vínculo forte que os liga aos outros personagens é a redenção pelo amor, já que nesses dois filmes, Brando interpreta boêmios que no fim se apaixonam e se casam com as mulheres que eles tentavam conquistar devido a uma aposta.

Em “A Casa de Chá ao luar de Agosto” (1956), filme que fala sobre a ocupação americana no Japão pós Segunda Guerra Mundial, Brando aparece sob um grande efeito de maquiagem como o intérprete japonês Sakini. Esse é um dos personagens

96 mais distintos da carreira de Brando. De caucasiano loiro, Brando se tornou um oriental de cabelos lisos e negros, falando um inglês com acentuado sotaque okinawano. Na trama do filme, Sakini é encarregado de acompanhar um oficial americano na implementação de uma escola em um vilarejo. Com a construção da escola, o governo americano pretende ensinar a democracia ao povo de Okinawa, mas Sakini convence o oficial que o melhor para o vilarejo não é uma escola, mas uma casa de chá.

A trama, embora leve e cômica, apresenta tons de crítica à política norte- americana de intervenção nos países da Ásia e interessou ao ator por esse caráter (BRANDO 1994). No monólogo de abertura do filme, o único no qual Brando faz um personagem que conversa diretamente com o espectador, Sakini apresenta ao público seu modo irônico de ver a ocupação americana no Japão. Mostrando um chiclete que guarda em seu dicionário de inglês, ele diz:

Tutti-fruti. O presente mais generoso do sargento americano. Amáveis senhoras, gentis senhores, permitam-me que eu me apresente. Sakini pelo nome, intérprete pela profissão. Educação pelo antigo dicionário. Okinawano pela vontade dos deuses. A História de Okinawa revela uma distinta lista de conquistadores. Nós tivemos a honra de sermos subjulgados no século XIV por piratas chineses, no século XVI por missionários ingleses, no século XVIII por senhores de guerra do Japão e, no século XX, pela marinha americana. Okinawa é muito afortunada. A cultura vem até nós, não precisamos sair de casa por ela. E nós aprendemos muitas coisas. A mais importante: que o resto do mundo não é como Okinawa. O mundo é cheio de diferenças. Exemplo: Em Okinawa, não há fechaduras nas portas. É falta de educação não confiar nos seus vizinhos. Na América, chaves e fechaduras são uma grande indústria. Conclusão: Condutas más, bons negócios. Outro exemplo: Em Okinawa uma mulher se banha em banheiro público, nua, como é apropriado... mas a foto de uma mulher nua dentro da casa é impróprio. Na América a estátua de uma mulher nua em um parque ganha prêmios... Mas uma mulher nua no parque ganha uma punição. Conclusão: pornografia, questão de geografia. Mas Okinawa está ansiosa para ser educada pelos conquistadores. Não é fácil aprender. Às vezes, é muito doloroso. Mas dor faz o homem pensar. Pensar faz o homem sábio. E sabedoria faz a vida suportável. Agora... Nós vamos contar a vocês uma pequena história para demonstrar o exemplo esplêndido da benevolente assimilação da democracia por Okinawa. (A CASA DE CHÀ AO LUAR DE AGOSTO, 1956).

97 Sakini é um dos personagens com o qual Brando mais se distancia da figura do “jovem rebelde” ou do “padrinho”. Em cena, temos um jovem cujo corpo não economiza em gestualidades, completamente mobilizado em suas ações. A introspecção, reclusão e também o caráter observador presentes em seus personagens de “Viva Zapata!” (1952), ou “Désirée” (1954), entre outros, não aparecem aqui, em um personagem bem distinto do que se espera de Marlon Brando.

Foto 29: Sakini: Maquiagem, construção gestual e vocal.

Fonte: Print screen de “A Casa de Chá ao luar de Agosto” (1956).

Outra figura de exceção importante na carreira de Brando é Ogden Mears, o protagonista de “A Condessa de Hong Kong” (1967), filme dirigido por Charlie Chaplin a partir de um roteiro escrito por ele nos anos 30. Na época das filmagens, o cineasta estava com 76 anos e delegou a Brando um personagem que assimila gestualidades que são a sua marca, já que não conseguiria realizar as cenas que lhe exigiriam grande esforço físico. Assim, o ator foi escolhido como a projeção do corpo do diretor em cena; é como se Brando se escondesse e desse lugar a Chaplin. Segundo o próprio Brando, o ator “era um boneco, uma marionete naquilo. Eu não estava ali para ser nada além

98 disso, porque Chaplin era um homem de talento imensurável e eu não iria argumentar com ele o que era engraçado ou não.” (apud GROBELL, 1991, p. 65, tradução nossa) 69. Para esse aparecimento de Chaplin no corpo de Brando, o filme se utiliza de diversas pantomimas, sequências contadas sem palavras, em geral ligadas à mímica e que foram marca dos filmes de Chaplin. Exemplo disso é a cena na qual Ogden Mears, que faz uma viagem de navio de Hong Kong aos Estados Unidos, está em sua cabine e tem o auxílio de seu criado para trocar de roupa. Quase sem falas e ao som de uma música instrumental, é como se os dois atores se movessem em uma coreografia, uma dança cômica comum às pantomimas de Chaplin70.

Foto 30: Gestualidade de Chaplin mimetizada por Brando.

Fonte: Print screen de “A Condessa de Hong Kong” (1967).

69 I was a puppet, a marionette in that. I wasn’t there to be anything else because Chaplin was a man of siezable talent and I was not to argue with him what’s funny or not funny. 70 Minutagem do filme como referência para esta cena: “A Condessa de Hong Kong” (1967) de 13’25’’ a 14’42’’.

99 Os anos 60 terminam com Brando abandonando a figura do “jovem rebelde”, assumindo plenamente personagens ligados a figura do “padrinho”. Em “Sangue em Sonora” (1966) há uma cena simbólica dessa transição. No filme, ambientado no meio oeste americano no fim do século XIX, Brando interpreta o vaqueiro Matt Fletcher. Depois de uma longa viagem, ele retorna para a casa onde cresceu e hoje vive seu irmão, para encontrar a paz e montar um rancho de cavalos. Logo no começo do filme, o cavalo que dará início ao rancho é roubado e é a saga de Matt para recuperar o animal que o filme contará. Assim, antes de partir novamente em viagem, ele pega uma jaqueta de couro antiga, usada por seu pai e quando Brando veste a jaqueta que tantos de seus personagens utilizaram nos anos 50, ela não lhe serve. Matt Fletcher a veste, se senta, percebe que aquela peça do vestuário está pequena, a retira e segue em uma jornada que confirma seu amadurecimento. Ele recupera seu cavalo e retorna para o rancho, onde poderá, depois de uma vida na guerra, se aposentar.

Fotos 31 e 32: Retirar a jaqueta: o símbolo de sua juventude não lhe serve mais.

Fonte: Print screen de “Sangue em Sonora” (1966).

A ideia da jaqueta que não serve mais funciona como fator que evidencia o processo pelo qual Brando passa nos anos 60. Se na década anterior, seus personagens eram marcados por essa indumentária, ela não lhe servir mais representa

100 um abandono das características que compunham esses personagens, ou seja, a figura do “jovem rebelde”. Adler diz que “A ação e o vestuário seguem juntos. [...]. O vestuário é de fato o único meio que pode ajudar o ator a criar uma individualidade do personagem” (2002, p.100-101). Se analisarmos essa fala a partir da dimensão do ator de cinema como uma estrela e da repetição de suas “figuras essenciais”, o vestuário também pode criar uma individualidade da persona do ator. Isso está, evidentemente ligado à ideia citada de sua filmografia ser como uma biografia. A cena da jaqueta, ignorando o restante das obras de Brando, passaria despercebida aos olhos do espectador. Somada a seus filmes anterirores, ela é um elemento simbólico, ou seja, ela funciona para além do filme na qual está inserida e reforça a ideia de assinatura, ou seja de autoria por parte de Brando.

A partir de “Sangue em Sonora” (1966), Brando não voltará a aparecer em personagens jovens, com exceção de “A Noite do Dia Seguinte” (Hubert Cornfield, 1968) no qual ele interpreta Bud, um jovem especialista em bombas, que, junto com seu grupo, sequestra uma garota. No filme Bud é o caçula do grupo, mas, mesmo com roupas apertadas, um porte atlético e uma peruca, Brando parece não se encaixar no personagem. Sob a ótica realista do cinema, ao envelhecer, Brando deixa de ser verossímil como um jovem e isso pede que ele assuma outro padrão, uma outra figura essencial, o “padrinho”.

Foto 33: O envelhecimento: Em 1968, os personagens jovens não cabem mais a Brando.

Fonte: Print screen de “A Noite do Dia Seguinte” (1968).

101 4.1 Don Vito Corleone – Brando como pai de todos

A denominação “jovem rebelde” surge a partir da análise, principalmente, dos seguintes filmes: “Espíritos Indômitos” (1950), “Uma Rua Chamada Pecado” (1951), “O Selvagem” (1953) e “Sindicato de Ladrões” (1954). Somados à persona criada por Brando na década de 50, eles determinaram o sistema de aparecimento do ator ao longo dos anos 50 e 60. Ao passo que a denominação “padrinho” é consolidada pela atuação de Brando em majoritariamente dois filmes: “O Poderoso Chefão” (1972) e “Apocalipse Now” (1979), ambos dirigidos por Francis Ford Coppola.

Esses dois filmes tem muito em comum na utilização de Brando em seu elenco. Don Vito Corleone e o coronel Walter E. Kurtz são homens mais velhos e que não protagonizam a história. Ambos servem de “mentor”, de figura para qual o protagonista se volta e que “assume” o seu posto após a morte dele. Há, nesse aspecto, a ideia de sucessão, como ocorre com Brando em “Júlio César” (1953), mas, agora, é ele o homem mais velho que passará o cargo adiante. Don Vito e Kurtz também são líderes de algo marginal: Don Corleone é chefe de um grupo mafioso em Nova York nos anos 40 e o coronel lidera uma “comunidade primitiva” de desertores do exército americano e nativos cambojanos na guerra do Vietnã.

Tais aspectos de líder e “centro de gravidade” (AUGUSTO, 1994) do filme também aparecem no plano parafílmico, ou seja, Brando também era uma inspiração que servia como líder para o jovem elenco de “O Poderoso Chefão” (1972). Coppola queria Brando para o papel de Don Vito Corleone porque “a mística que Brando tinha como ator sobre os outros atores inspiraria precisamente o tipo de reverência em trabalhar com o lendário Brando e seria traduzida no filme em reverência ao poderoso padrinho.” (apud COLOMBANI, 2013, p.125, tradução nossa) 71. A relação de “apadrinhamento” do elenco também ocorre porque nos anos 70 Brando era referência

71 The mystique Brando had as na actor amongst other actors would inspire precisely the kind of awe in working with the legendary Brando and would translate on film into awe for the powerful godfather.

102 para os atores de uma nova geração como Al Pacino, John Cazale, James Caan e Robert Duvall, que interpretam seus filhos em “O Poderoso Chefão” (1972). Da mesma forma, Brando foi inspiração, nos anos 90 e 00 para atores que trabalharam com ele nesse período, como Johnny Depp e Edward Norton. Todos esses atores cresceram assistindo aos filmes de Brando, tendo a sua persona como modelo de ator. Segundo Martin Sheen, o protagonista de Apocalipse Now (1979):

Marlon não era nem um pouco difícil. Nunca. O único problema é que ele tinha A Imagem, sua presença, mas ele simplesmente dispensava isso. Ele tratava a todos do mesmo modo – Francis, eu, os meninos da equipe. E também, dentre todos nós, eu acho que ele foi o que passou mais tempo no Terceiro Mundo. Então, ele tinha maior consciência do fato de que o mundo não é feito de serviços de primeira classe e pessoas super privilegiadas. Eu estava em estado de reverência, porque para minha geração de atores havia apenas dois caras, Marlon e [James] Dean. E para Dean havia apenas um – Marlon. (SHEEN, 2001, tradução nossa72).

Esse poder que um ator tem em determinar e influenciar o restante do elenco é um dos fatores que McGuiligan (1975) elenca como um determinante das características de um ator autor. Brando não só inspirava os outros atores a utilizarem suas técnicas de atuação (COLOMBANI, 2013) como também interpelou nas negociações de elenco em favor de Al Pacino para viver seu filho Michael. Se Don Corleone aparece como um grande rei das tragédias de Shakespeare (COLOMBANI, 2013), que tem em suas mãos juízes, políticos e imprensa, Brando também pode ser comparado a esse rei, que teve todo o elenco como a sua corte, com poder de alterar o roteiro, opinar na iluminação, na maquiagem, em funções muito além daquelas geralmente ligadas ao ator.

72 Marlon wasn’t difficult at all. Never. The only problem we had was the image, his presence, but he’d just dismiss it. He treated everyone the same – Francis, me, the guys on the crew. Also, out of all of us, I think he’d spent the most time in the third world. So he was more aware of the fact that the world’s not made up of first-class ser vice and over privileged people. I was in awe, because for my generation of actors there were only two guys, Marlon and [James] Dean. And for Dean was only one – Marlon.

103 No que diz respeito à composição visual, a maquiagem foi um dos elementos utilizados para a construção de Vito Corleone. Mesmo com toda a aura que Brando possuía sobre o elenco, o personagem era um homem bem mais velho que o ator e boa parte de seu poder advinha dessa idade avançada. Desse modo, para envelhecer o ator, que na época tinha 42 anos, até a idade de 65 do Don, e deixá-lo convincente, os maquiadores se utilizaram de próteses nos maxilares – para que ele se parecesse com um buldogue como queria Brando – e látex para fazer as rugas, além de branquearem e pentearem o cabelo de Brando para trás para que a calvície do ator ganhasse destaque. Como outros elementos de composição, foram adicionados enchimentos e uma barriga falsa. (MANSO, 1999) Esse efeito de maquiagem não teria êxito se não fosse a iluminação proposta pelo diretor de fotografia, Gordon Willis. Segundo ele, a preocupação de Brando era:

...que com toda aquela maquiagem de envelhecimento, ele teria que ser iluminado da maneira correta ou ela ficaria uma merda. Eu sabia que se eu simplesmente colocasse a luz na frente dele, o efeito da maquiagem seria neutralizado. Então, eu tive que utilizar o tipo de iluminação que não ficaria boa somente nele, mas também no restante do filme. Eu expliquei isso e ele entendeu imediatamente. Ele parecia ter uma compreensão do que tinha que fazer tecnicamente e como funcionar com essas limitações. [...] Ele tinha consciência da necessidade de determinarmos o quão grande ou pequeno seria o enquadramento e ele ajustava seus movimentos de acordo com isso. No primeiro teste de luz e maquiagem, eu já vi que ele tinha um senso muito afinado de contenção visual (WILLIS apud MANSO, 1999, p. 713, tradução nossa) 73.

Foto 34: O ator antes e depois da maquiagem de Don Corleone. Como também acontece em “Apocalipse Now” (1979), a composição visual do personagem é uma proposição de Brando.

73 That with all that age makeup on, he had to be lighted properly or it would look like shit. I knew that if I simply put light directly in front of him, the effect of the makeup would be neutralized. So I had to come up with the kind of lighting that would not only be righ for him, but also righ for the rest of the movie. I explained this and he immediately understood. He seemed to have na intuitive grasp of what had to be done technically and how to funcion within those limitations. [...] He was aware of having to determine how big or small the field size of the screen would be, and he adjusted his movements accordingly. From that first makeup and linghting test, I saw that he had a very attuned sense of visual containment.

104

Fonte: Website do Reddit 74.

“O Poderoso Chefão” (1972) conta a história do fim do “reino” de Don Vito Corleone a frente dos negócios de sua família e a ascensão de seu filho caçula, Michael Corleone (Al Pacino) como chefe da família. O filme começa com a festa de casamento da única filha mulher do Don, Connie (Talia Shire) e, ao longo da festa, os principais personagens são apresentados. Santino, ou Sonny (James Caan) é o filho mais velho, aquele que deverá assumir os negócios após a morte do Don. Tom Hagen (Robert Duvall) é filho adotivo e advogado da família, Fredo (John Cazale) é o filho do meio, um pouco perdido em seu lugar nos negócios, e Michael, o mais distante dos negócios da família, é o herói que lutou na Segunda Guerra, para quem o pai planejou ser um governador ou senador. Enquanto ocorre a festa, o Don atende a pedidos e ordena serviços a seus capangas, mostrando o funcionamento de seu trabalho.

A estrutura dos negócios da família é quebrada quando surge em Nova York o traficante de drogas Sollozzo (Al Lettieri), que propõe a ela a formação de uma sociedade, o que é negado por Don Corleone. O que se segue é a tentativa de assassinato do Don, a vingança desse ato por parte de Michael que é, em seguida, mandado para o exílio na Itália, a ascensão de Sonny como chefe da família e o

74 Disponível em: goo.gl/W1jgG8

105 subsequente assassinato deste, o retorno de Michael à Nova York e a ascensão dele como chefe da família após a morte do Don. Essa estrutura, com ares de tragédia, é resumida por Coppola da seguinte maneira: “eu sempre pensei em “O Poderoso Chefão” como a história de um grande rei com três filhos.” (apud COLOMBANI, 2013, p. 128, tradução nossa) 75·. Coppola aponta consientemente para a ideia de sucesão neste que será o primeiro filme em que isso acontecerá com Brando. Ao fim do filme, é Michael quem receberá o título de “Don Corleone” e será chamado de “padrinho” por seus subordinados.

No que tange ao trabalho de Brando, para a construção de Don Vito Corleone, dois elementos foram de suma importância: a caracterização visual e a construção de um repertório de ações. O Don fala pouco sobre si e são raros os momentos nos quais sabemos o que ele está pensando; tais momentos só ocorrem com seus filhos. Na maior parte do tempo, o espectador é convidado a conhecer o Don por seus feitos. Assim como no coronel Kurtz, de “Apocalipse Now” (1979), a mente do Don é pouco sondável. Contudo, nós sabemos o que ele está fazendo e suas ações ou ordens, mostradas na tela ou narradas por outros personagens, criam a aura de respeito e medo em torno do Don. Isso se dá porque ele ordena assassinatos extremamente violentos e porque sabemos pouco do que se passa em seu interior. Há uma imprevisibilidade nas suas ações. Em cena, Brando não precisa fazer esforço algum para transmitir esse respeito ou parecer perigoso, o que ele faz é justamente o contrário. Ele fala mansamente, sua gestualidade é delicada, como quando cheira a flor em sua lapela antes de voltar à festa de casamento da filha, ou quando acaricia o gato em seu colo. Ao mesmo tempo em que ele mostra que pode ser amoroso com os mais frágeis, o gato se encontra dominado em suas mãos. Além disso, o gato resgata a ideia de “selvagem” que Brando representou nos anos 50; sua selvageria está ali, domada no seu colo.

75 I aways thought of The Godfather as the story of a great king with three sons...

106 Fotos 35 e 36: Gestos delicados do chefe da máfia.

Fonte: Print screen de “O Poderoso Chefão” (1972).

Como acontece em outros filmes, a apresentação do Don é construída aos poucos; seu aparecimento é adiado. Embora ele já esteja desde a cena inical, o primeiro a aparecer é seu interlocutor, o agente funerário Bonasera, que vem até o Don para pedir vingança contra dois homens que violentaram sua filha e foram absolvidos no tribunal76: “Eu acredito na América...”, Bonasera diz, “A América fez a minha fortuna. E eu criei minha filha no modo americano. Eu a dei liberdade, mas a ensinei a nunca

76 Minutagem do filme como referência para esta cena: “O Poderoso Chefão” (1972): de 00’45’’ a 07’00’’.

107 desrespeitar sua família...” O Don escuta pacientemente o longo relato até que a primeira coisa a surgir é o perfil de seu rosto nas sombras (COLOMBANI, 2013). Em seguida, ele, com sua voz mansa, diz: “Por que você foi à polícia? Porque não veio a mim antes?” Com sua fala, o Don se mostra ofendido e indica saber que Bonasera tem medo de se envolver com a máfia, “o que eu fiz para que você me tratasse de maneira tão desrespeitosa?” Durante toda essa fala, ele se impõe diante de Bonasera sem elevar o tom da voz. Segundo Coppola, “pessoas poderosas não precisam gritar” (apud Colombani, 2013, p.128, tradução nossa) 77. Era desejo do diretor criar essa figura que precisa fazer pouco, mas que o poder de suas ações é imenso. Um ator que construiu uma trajetória na qual “faz pouco em cena”, mas possuia um grande poder de expressão e influência, era Brando. Ao longo dos anos 60 o ator já era conhecido por seus personagens introspectivos como Robert Crain de “Morituri” (1965) e o major Penderton de “O Pecado de Todos Nós” (1967). Em “O Poderoso Chefão” (1972), com uma simples ordem do Don “dê isso a Clemenza”, os homens que abusaram a filha de Bonasera provavelmente estarão desfigurados, como fizeram com a garota.

Foto 37: A primeira imagem de Don Vito Corleone no canto esquerdo, de costas e nas sombras.

Fonte: Print screen de O “Poderoso Chefão” (1972).

77 Powerful people don’t need to shout.

108

A análise da cena de abertura do filme também revela outra vertente importante de Brando como autor; o ator colocava-se também como participante ativo na construção do filme de maneira subterrânea, ou seja, sem dialogar diretamente com o roteirista ou com o diretor, mas improvisando e alterando suas falas em cena. Essa alteração ia além de dizer algo semelhante ao roteiro, mas aprofundava aspectos do personagem, como podemos verificar no seguinte trecho:

Roteiro: “Então, tome a justiça do juiz, o amargo e o doce disso, Bonasera. Mas se você vier a mim com a sua amizade, sua lealdade, então seus inimigos se tornarão meus inimigos, e então, acredite em mim, eles terão medo de você...”. Filme: “Bonasera... Bonasera... O que foi que fiz para que você me tratasse de maneira tão desrespeitosa? Se você viesse a mim em amizade, então essa escória que desgraçou sua filha estaria sofrendo hoje mesmo. E, se pelo acaso, um homem honesto como você viesse a fazer inimigos, então eles se tornariam meus inimigos. E eles temeriam você.” (O PODEROSO CHEFÃO, 1972, apud COLOMBANI, 2013, p. 129, tradução nossa) 78.

O que essa fala evidencia são pequenas informações que Brando coloca no discurso do Don e que auxiliam, já na primeira cena, na construção do poder de sua figura ao longo do filme. Primeiramente, ele adiciona a decepção do Don com o homem. Os dois não são próximos; em determinado momento, o Don diz: “Eu não consigo me lembrar da última vez que você me convidou à sua casa para uma xícara de café.”, no entanto ele trata Bonasera quase como faz um pai que está chateado com o filho. Tal atitude desarma o homem e o faz se sentir culpado por estar ali pedindo ajuda.

78 Screenplay: “Then take the justice from the judge, the bitter from the sweet, Bonasera. But if you come to me with your friendship, your loyalty, then your enemies become my enemies, and then, belive me, they would fear you...”. Film: “Bonasera... Bonasera... What have ever I done to make you treat me so disrespectfully? Had you come to me in friendship, then this scum that ruined your daughter would be suffering this very day. And if by chance an honest man like yourself should make enemies, then they would become my enemies. And they would fear you.”.

109 Há, também, uma mudança no tempo verbal: no roteiro, o Don diz “se você vier a mim com sua amizade” (“If you come to me with your friendship”), no filme ele fala “se você tivesse vindo a mim em amizade” (“had you come to me in friendship”). Se no roteiro o Don indica uma possibilidade futura “se você vier”, no filme ele é fatalista, “se você tivesse vindo...”, ou seja, não há mais o que fazer, Bonasera não conseguirá nada, porque não veio em amizade. Caso o Don resolva ajudá-lo (como, de fato, faz), é porque é capaz de perdoar alguém que o “ofendeu”. Além da mudança de tempo verbal, a troca de “com sua amizade” por “em amizade” faz com que todos estejam envolvidos na amizade, ela passa a ser de todos e não algo que Bonasera trará consigo, ela será um estado com o qual Bonasera se apresentará ao Don. Na sequência, é adicionada a fala “e se, pelo acaso, um homem honesto como você viesse a fazer inimigos...” (“and if by chance an honest man like yourself should make enemies...”). Com ela, o Don joga com a percepção de Bonasera, ele dá uma bronca como um pai e depois elogia o homem, diz que ele é um homem honesto que não faria inimigos. Essa estratégia mostra o modo de intimidação que o Don utiliza para se impor diante daqueles ao seu redor, o que leva Bonasera a terminar a cena beijando a mão do Don e o chamando de padrinho (godfather). Diante do agradecimento de Bonasera, o Don conclui:

Roteiro: Algum dia, e esse dia pode nunca chegar, eu irei te chamar para que me faça um serviço em retorno. Filme: Algum dia, e esse dia pode nunca chegar, Eu irei te chamar para fazer um serviço para mim. Mas até este dia - aceite essa justiça como um presente no dia de casamento da minha filha. (ibid 79).

Com sua fala final, o Don continua na lógica de tratar Bonasera não como um desconhecido, mas como alguém que faz parte da família e que, portanto, deve respeito a ele. Na versão do roteiro, o Don diz que pode pedir algo em troca ao homem,

79 Screenplay: “Some day, and that day may never come, I would like to call upon you to do me a service in return.”. Film: “Some say, and that day may never come, I’ll call upon you to do a service for me. But until that Day – accept this justice as a gift on my daughter’s wedding day.”.

110 já no filme, ele concede o pedido do homem como um presente do dia do casamento de sua filha. Indo além, ele acrescenta a palavra “justiça”, ou seja, ele fará a justiça que o tribunal não fez, porque ele tem o poder para isso.

Os únicos momentos nos quais é dada ao espectador a possibilidade de se aproximar de aspectos íntimos do Don são no âmbito familiar. Ali, podemos ver que Don Corleone, como muitos personagens de Brando, apresenta duas posturas. Ele é o mafioso que ordena mortes, mas também um doce chefe de família. Nesse espaço também é o único lugar onde o Don se excede emocionalmente, chorando ou gritando. Quando seu afilhado, o cantor Johnny Fontane (Al Martino), vem, durante a festa de casamento, pedir que o Don o ajude a conseguir um papel em um filme que pode recuperar sua carreira, Fontane começa a chorar e diz que não sabe como agir nessa situação. O Don, que escutava tranquilo em sua cadeira, levanta em um rompante e grita com Johnny “Você pode agir como um homem!”. Por fim, o conjunto de cenas no casamento, ajuda a construir as diversas maneiras que o Don trata os seus próximos. Com Bonasera, ele se mostrou um pai decepcionado, já com Johnny, ele é como um pai que briga com seu filho.

Fotos 38 e 39: O gesto inesperado: Escuta e reação à fala.

Fonte: Print screen de “O Poderoso Chefão” (1972).

111 Já as lágrimas e a doçura aparecem com os filhos Sonny, Tom, Fredo e Michael. Duas cenas importantes que revelam suas fraquezas e sentimentos são as que mostram a sua descoberta da morte de Sonny80. A cena começa com o Don, que se recupera em casa de seu atentado, indo até a sala onde Tom Hagen está e dizendo: “Minha esposa está chorando lá em cima. Eu ouvi carros chegando à casa. Meu consiglieri, eu acho que você tem que contar ao seu Don o que todos parecem já saber”. Tom Hagen conta sobre a morte de Sonny e a reação do Don é a seguinte: ele volta seu rosto para fora da luz e chora brevemente. Em seguida, retorna ao seu centro, voltando o rosto para a luz e ordena com a voz firme: “Eu não quero investigações. Eu não quero atos de vingança. Marque uma reunião com as cinco famílias. Essa guerra acaba agora”. Então ele se levanta e vai consolar o filho adotivo ao mesmo tempo em que derrama mais algumas lágrimas por um breve período até retornar assertivo: “Ligue para Bonasera. Nós precisamos dele agora.” Na sequência seguinte, já na agência funerária, o Don ordena firme a Bonasera enquanto aponta para o cadáver do filho: “eu quero que você utilize todos os seus poderes e habilidades. Eu não quero que a mãe dele o veja desse jeito”. Em seguida, ele tira o cobertor que esconde o corpo do filho e seu rosto é o de um pai torturado: “vejam o que fizeram com o meu filho”. A relação familiar é o ponto humano, é a fraqueza do grande mafioso e é evidenciado não só nessas sequências nas quais ele chora, mas também quando ele interrompe a fotografia familiar no casamento da filha para esperar a chegada de Michael. É também para o caçula que o Don se abre, no fim do filme, mostrando sua frustração em relação ao destino do filho81:

Eu sabia que Santino teria que passar por tudo isso. E Fredo, bem... Fredo era... bem. Mas eu nunca... Eu nunca quis isso pra você. Eu trabalhei a minha vida toda (eu não estou me desculpando) para tomar conta da minha família. E eu me recusei a ser um tolo dançando nas cordas controladas por todos

80 Minutagem do filme como referência para esta cena: “O Poderoso Chefão” (1972) de 118’24’’ a 122’46’’. 81 Minutagem do filme como referência para esta cena: “O Poderoso Chefão” (1972) de 146’10’’ a 149’56’’.

112 aqueles homens importantes. Eu não estou me desculpando, essa é a minha vida, mas eu pensei que... Que quando fosse a sua vez que... Que você fosse aquele a segurar as cordas. Senador Corleone, Governador Corleone. (O PODEROSO CHEFÃO, 1972).

Diferente da relação com Bonasera ou Johnny Fontane, com seus filhos, Vito Corleone se mostra verdadeiramente decepcionado, suas ações não são feitas para criar respeito ou intimidação, são relatos sinceros de um chefe de família. Depois dessa sequência de afeto, o Don volta a aconselhar seu filho de maneira sistemática “Agora escute, aquele que vier a você propor essa reunião com o Barzini, ele é o traidor, não se esqueça disso.” É como se o Don se despedisse, passasse ao filho o cargo de chefe da família, mas não sem antes se abrir com ele. Em seguida, em sua última cena, a da sua morte, Vito mostra seu lado brincalhão ao assustar o neto com uma dentadura de monstro feita com uma casca de laranja82. Don Vito Corleone, o grande mafioso, não morre assassinado nas ruas de Nova York, como um bandido, mas em casa, brincando com o neto em sua horta, mostrando mais uma vez a dualidade dessa figura e perpetuando a imagem do homem que é, antes de mais nada, o chefe de uma família.

Foto 40: Don Corleone, um homem de família.

82 Minutagem do filme como referência para esta cena: “O Poderoso Chefão” (1972) de 149’56’’ a 152’32’’.

113 Fonte: Print screen de “O Poderoso Chefão” (1972).

Foto 41: Lágrimas para o filho morto.

Fonte: Print screen de “O Poderoso Chefão” (1972).

Foto 42: Pensamentos revelados somente aos filhos

Fonte: Print screen de “O Poderoso Chefão” (1972)..

114

Foto 43: Intimidade familiar.

Fonte: Print screen de “O Poderoso Chefão” (1972).

Essa escolha no modo de agir que Brando se utiliza para construir o Don, essa tranquilidade e serenidade no trato com a família, enquanto dá ordens precisas para assassinatos e negócios escusos, será mimetizada pelo ator Robert De Niro quando ele interpreta Vito Corleone em sua juventude em “O Poderoso Chefão – Parte II” (Francis Ford Coppola, 1974). Para Colombani, na construção do jovem Vito, De Niro, que também foi aluno de Adler, ou seja, teve na sua formação princípios da construção de um personagem por meio da observação, da imaginação e das ações, se utiliza do repertório gestual construído por Brando para compor o mesmo personagem:

Para aqueles que têm curiosidade sobre o legado de Brando, “O Poderoso Chefão Parte II” oferece um estudo de caso fascinante. Aqui nós vemos um Robert De Niro de trinta anos nas roupas de Don Corleone. “[...] O rosto de De Niro me lembrava o de Vitor Corleone” disse Francis Ford Coppola. “Não o de Brando, mas do personagem que ele interpretou, com o maxilar acentuado, o tipo de sorriso engraçado. De Niro é certamente crível como sendo alguém da

115 família Corleone, e possível pai de Al, quando jovem.” Não era uma questão de interpretar o mesmo personagem, mas de ao invés disso, o mesmo homem. Ao invés de fazer uma imitação – o que seria arriscado porque os dois atores não se pareciam nem um pouco – De Niro teve a inteligência de buscar os gestos e expressões do repertório do velho Vito: “Eu o assisti e disse, ‘Isso é um gesto interessante. Quando ele começou a fazer isso?” É meu trabalho como ator encontrar coisas que eu possa fazer conexões. "Eu devo achar coisas [em O Poderosos Chefão] e descobrir como eu posso utilizá-las, em quais cenas eu posso usá-las para sugerir o homem mais velho que ele virá a ser.” E, de fato, De Niro reproduz os gestos de Brando – ele toca sua face, mantém seu silêncio, permanece impassível. E compartilha momentos de inesperável ternura: como quando o pequeno Fredo está doente e Vito o faz ninar. (COLOMBANI, 2013, p.137, tradução nossa) 83.

83 For anyone who wonders about Marlon Brando’s legacy, The Godfather Part II offers a fascinating case study. Here we see a thirty-year-old Robert De Niro in Don Corleone’s shoes. “[...] De Niro’s face reminded me of Vito Corleone”, Said Francis Ford Coppola. “Not of Brando but of the character he played whith the accentuated jaw, the kind of funny smile. De Niro certainly is belivable as being someone in the Corleone family and possibly Al’s father, as young man”. It was actually a matter of playing the same character, but rather the same man, only younger, instead of trying to do an imitation – which would have been risky since the two men are nothing alike – De Niro had the intelligence to draw upon the old Vito’s repertoire of gestures and expressions. “I watch him and say, ‘That’s an interesting gesture. When could he have started to do that?’ It’s my job as an actor to find things I can make connections with. I must find things [in The Godfather] and figure out how can I use them, in what scenes I can use them to suggest what the older man will be like.” And, indeed, De Niro reproduces Brando’s gestures – He touches his face, keeps his silence, remains impassive. And he shares moments of unexpected tenderness: as when little baby Fredo is sick na Vito soothes him.

116 Fotos 44, 45, 46 e 47: A repetição de gestos como composição de um personagem.

Fonte: Print screen de “O Poderoso Chefão” (1972) – fotos 45 e 47 e de O Poderoso Chefão – Parte II” (1974) – fotos 44 e 46.

117 Desse modo, Marlon Brando acaba por reaparecer em um filme que não participa, invocado pela gestualidade de De Niro, como em “A Condessa de Hong Kong” (1967) Chaplin aparece evocado pela gestualidade de Brando. Essa é mais uma evidência do poder da assinatura de Brando. Da mesma forma que seu Stanley Kowalski é um “molde definitivo” (ROONEY, 2009), sua interpretação de Don Vito Corleone também o é. O que De Niro fez, com extrema excelência, foi adaptar-se a esse molde. Outro indício desse poder de autoria é a evocação de sua figura mesmo com seu não aparecimento e independetemente da participação de De Niro. Ao final de “O Poderoso Chefão – Parte II” (1974), há um flashback no qual vemos o jovem Michael Corleone e seus irmãos preparando uma festa surpresa para o Don na sala de jantar84. Quando o chefe entra na casa, na sala principal, seu corpo não é mostrado. A câmera permanece imóvel na sala de jantar, seus filhos correm com o bolo para o outro cômodo, Michael fica sozinho na sala, numa imagem “premonitória” do seu destino. Enquanto isso, fora de quadro, os outros personagens comemoram o aniversário do Don que, embora não apareça, não poderia ser outra figura que não a eternizada por Marlon Brando (COLOMBANI 2013).

Também em “O Poderoso Chefão” (1972), a estrutura da família Corleone e o modo como o seu chefe é construído, não como um bandido malvado, mas como um negociante carinhoso e preocupado com os filhos, foi tão forte que foi ponto de mudança para como a máfia era retratada no cinema. Se antes os mafiosos apareciam como sujeitos “deslocados, cínicos e pessimistas” (SILVA, 2008), em “O Poderoso Chefão” (1972) eles aparecem como uma rede familiar de afetos. No filme, a máfia não é uma instituição criminosa, um desvio social absurdo, mas uma parte da sociedade que atua em conjunto com as estruturas legais dos EUA. Segundo o próprio Brando:

84 Minutagem do filme como referência para esta cena: “O Poderoso Chefão Parte II” (1974) de 191’30’’ a 195’50’’.

118 Achei que, talvez, pela primeira vez na história do cinema, seria interessante fazer o papel de um gângster diferente daqueles sujeitos maus que Edward G. Robinson representava e pensei em fazer uma espécie de herói, um homem a ser respeitado. E como ele tinha tanto poder e uma autoridade indiscutível, achei que seria um contraste interessante fazer dele um homem delicado, o oposto de Al Capone, que batia nos outros com um bastão de beisebol. Eu tinha uma boa dose de respeito por Don Corleone e via nele um homem consistente, tradicional, digno, refinado, um homem com um instinto certeiro que por acaso vivia num mundo violento e tinha de se proteger e proteger a família contra aquele ambiente. (BRANDO, 1994, p.326).

Desse modo, os mafiosos não são os “vilões da história”; são, na verdade, membros uma empresa que cuida do lado sujo dos negócios do mundo e, mais importante, são uma família. Michael Corleone se desvia do seu destino de se tornar alguém fora do mundo do crime e assume sua posição como Don justamente porque quer proteger o pai e seus entes e não por uma ambição dentro da máfia. Além disso, o filme retrata a instituição criminosa como um elemento ligado às bases formadoras da sociedade norte-americana. O filme começa com a frase de Bonasera “Eu acredito na América” e narra justamente a desconstrução dessa crença (COLOMBANI, 2013), tanto na cena – Bonasera acredita na América, mas vem à máfia pedir por justiça já que os tribunais foram corrompidos – quanto na estrutura de todo o filme, a qual nos mostra que políticos, juízes, policiais e mafiosos são apenas mais uma parte de um grande esquema de negócios. Tais aspectos escusos da formação histórica dos Estados Unidos interessavam a Brando:

O filme foi feito no início da década de 70 e naquela época havia muitas coisas que era possível dizer da Máfia, mas não de outros elementos existentes nos Estados Unidos. Havia muita diferença entre os crimes praticados pelas gangues e a Operação Phoenix, aquele programa de homicídio perpetrado pela CIA no Vietnã? Aquilo foi como a Máfia: apenas negócios, nada pessoal. Certamente na Máfia havia imoralidade e muita violência, mas no fundo era um negócio; de certa forma a Máfia não funcionava de maneira muito diferente de certas empresas multinacionais que andam despejando venenos químicos conscientemente por onde passaram. [...] De certa forma, quem está na Máfia, vive de acordo com um código mais severo do que muitos presidentes e políticos...(BRANDO, 1994, p. 328).

119 Mais uma vez, um caso político era fator motivador de Brando para um projeto de cinema. Como não se podia falar diretamente das instituições americanas, como mais tarde foi possível em filmes como “Serpico” (Sidney Lumet, 1973) e “Todos os homens do Presidente” (Alan J. Pakula, 1976), a máfia aparecia como protagonista de um sistema corrompido, ao mesmo tempo que mostrava outras partes desse sistema, como a corrupção policial e jurídica.

Por fim, a figura do Don de Marlon Brando foi tão forte que várias outras mídias fizeram homenagens ao padrinho da família Corleone como nos filmes “Máfia” (Jim Abrahams, 1998), “A Máfia no Divã” (Harold Ramis, 1999), “O Espanta Tubarões” (2004), no episódio 04 da primeira temporada da série animada “Animanics” - o GodPigeon85 - e na HQ “Batman – O Longo Dia das Bruxas” (LOEB e SALE, 2008), como também pelo próprio Brando em “Um novato na Máfia” (Andrew Bergman, 1990). Nesse filme, Brando interpreta Carmine Sabatini, um chefe da máfia italiana que contrata o protagonista do filme, o jovem Clark Kellogg (Matthew Broderick), para trabalhar para ele como entregador de animais selvagens para um restaurante clandestino de pratos exóticos. Na tela, vemos Brando com 66 anos, com traços bem próximos ao de Vito Corleone, realizando a mesma gestualidade do Don para uma comédia. Na primeira cena que Carimne Sabatini aparece, Clark, que será apresentado a ele por seu sobrinho, Victor Ray (Bruno Kirby), olha para Carmine estupefato. Percebendo isso, Victor diz: “Sei que você está pensando na semelhança, certo? Ele é a coisa verdadeira, o original. Quando eles o viram, basearam o filme nele.[...] Que rosto, não?”. E logo que está frente a frente com Carmine, Clark diz: “Sabe, a sua semelhança com o poderoso...”. Ele é interrompido por Victor, mas, nesse momento a referência já está evidente86. A cena segue e termina com um corte para uma projeção

8585 “Godfather” em tradução literal, seria “pai de deus”, ou seja, o pai que estaria ligado ao afilhado por um vínculo divino, o pardinho. “Godpigeon” seria, dessa forma, o “pai dos pombos”. 86 Minutagem do filme como referência para esta cena: “Um Novato na Máfia” (1990) de 118’24’’ a 122’46’’.

120 intradiegética de “O Poderoso Chefão – Parte II” (1974) reforçando ainda mais a homenagem aos filmes que narram a saga da familia Corleone.

Foto 48: Marlon Brando faz paródia de si mesmo.

Fonte: Print screen de “Um novato na máfia” (1990).

Fotos 49 e 50: Homenagens a Don Vito Corleone: Godpigeon, na série “Animaniacs” e o Falconi, o mafioso de “Batman – O Longo Dia das Bruxas”.

Fonte: Print screen de Animaniacs, ep. 4, 1ª temp. Fonte: LOEB; SALE, 2008, p.4.

121 4.2 Coronel Kurtz – Brando imaterial

Hey mac... you don’t talk to the colonel... well, you listen to him.87 (APOCALIPSE NOW, 1979)

“Apocalipse Now” (1979) é uma adaptação não creditada do livro O Coração das Trevas (1899) de Joseph Conrad, que conta a jornada do narrador e protagonista Charles Marlow para localizar e trazer de volta à civilização Kurtz, um mercador de marfim que desaparecera na selva do Congo Belga, possivelmente após perder sua sanidade. No filme, a trama é transportada para a o Vietnã em guerra e é o capitão Willard (Martin Sheen) quem narra sua história ocorrida no coração da selva asiática para encontrar e matar o coronel Kurtz, desertor que, segundo seus superiores, enlouquecera e representava uma ameaça ao exército americano. Segundo o capitão, sua missão é percorrer, “semanas afora, centenas de milhas em um rio que serpenteia por meio da guerra como um circuito de cabos... plugados diretamente em Kurtz.”. (APOCALIPSE NOW, 1979). Ele deve se embrenhar na selva, subindo um rio sinuoso que desemboca na fronteira do Vietnã com o Camboja. A imagem do rio, evocada por Willard como um circuito de cabos plugados em Kurtz, tenta ilustrar a relação do coronel com o ambiente, ele funciona como um “gerador de energia” para a missão e para o desenvolvimento do filme.

A narrativa se desenvolve mostrando o percurso do capitão em um barco com outros três subordinados: o capitão do navio, Phillips (Albert Hall) e os soldados Jay “Chef” Hicks (Frederic Forest), Tyrone “Clean” Miller (Laurence Fishburne) e Lance B. Johnson (Sam Bottons). Ao longo do filme, eles sobem o rio parando em poucos momentos. Em um deles, se encontram com um grupo da cavalaria aérea do exército americano (helicópteros) comandado pelo tenente coronel Bill Kilgore (Robert Duvall) e

87 Em tradução livre: “Ei cara... Você não fala com o coronel... Bem, você escuta ele.”

122 presenciam o massacre a um vilarejo. Em outro, passam por um posto avançado para descanso dos soldados e abastecimento que, no mesmo momento recebe um show das coelhinhas da revista Playboy. Depois de muitos dias no rio, eles finalmente chegam à fronteira com o Camboja, em um templo onde Kurtz se refugiou com seus asseclas. Enquanto sobe o rio, Willard lê os documentos sobre Kurtz que lhe foram dados e compartilha com o espectador sua crescente ansiedade e fascínio em relação à figura do coronel. Quando Willard chega a seu destino é como se ele e o coronel Kurtz se conhecessem há muito tempo e soubessem que seus destinos estavam ligados. Willard vai matar Kurtz e com esse processo cumprir o rito sacrifical que eternizará a imagem do coronel.

A imagem dada por Willard de seu percurso pelo rio como um circuito cuja fonte de energia é Kurtz, mostra que o filme se volta e se afunila em direção ao coronel. O mesmo acontece com os personagens de “O Poderoso Chefão” (1972): eles se voltam em direção a Don Corleone. Em suma, os filmes estão em função dos personagens de Brando. Os dois funcionam como centro de gravidade da narrativa, embora de maneira distintas. O “padrinho”, em “Apocalipse Now” (1979), é a figura que o filme tem como “plugue final”, que gera a energia motriz do filme. Brando aparece pouco e somente no fim, mas sua presença é sentida o tempo todo. Já em “O Poderoso Chefão” (1972), Don Corleone aparece muito mais e atua como uma das figuras que o filme acompanha. O personagem é dado e construído pelo ator em cena, já o coronel Kurtz é construído pelo relato de Willard e pela força que a imagem pré-concebida de Brando tinha sobre o espectador.

Se considerarmos os filmes anteriores a “Apocalipse Now” (1979), o coronel Kurtz é o personagem de Brando que mais demora a aparecer e se utiliza do recurso do adiamento de maneira mais radical. Na versão original do filme – que teve uma segunda versão lançada intitulada “Apocalipse Now Redux” (2001) – Brando leva uma hora e cinquenta e quatro minutos para surgir em tela. O que temos previamente é apenas uma foto e sua voz aos treze minutos de filme. Dessa forma, antes de aparecer na tela, ele já está na mente do espectador. Esse evento é mostrado na sequência na

123 qual o capitão Willard recebe de seus superiores a missão de matar o coronel88. Em uma reunião acompanhada de um almoço onde são servidos camarão e rosbife, elementos que, diante da câmera, filmados em close, dão um tom freak para a refeição, Willard recebe uma foto do coronel quando jovem – que o espectador pode identificar como uma foto do Major Weldon Penderton de “O Pecado de Todos Nós” (1967). Enquanto o almoço é servido, uma das gravações do coronel é colocada no aparelho de som:

Eu vi um caracol rastejando ao longo do fio de uma navalha. Esse é o meu sonho. Esse é o meu pesadelo. Rastejando, deslizando ao longo do fio de uma navalha. E sobrevivendo [...] Mas nós devemos matá-los. Nós devemos incinerá-los. Porco por porco, vaca por vaca, vila por vila, exército por exército. E eles me chamam de assassino. Como você diz quando os assassinos acusam o assassino? Eles mentem. Eles mentem e nós não temos que ser misericordiosos com aqueles que mentem. Esses pomposos. Eu os odeio. Eu realmente odeio eles. (APOCALIPSE NOW, 1979).

Segundo a análise de Colombani (2013), o aparecimento da voz de Brando é chave na criação do personagem, já que ele gera a expectativa em relação ao coronel no campo da narrativa ficcional e também em relação ao ator no campo parafílmico; para ela “aquela famosa voz, tão anasalada e inarticulada quanto você gostar, não pode fazer nada que não acordar a memória do espectador. A partir de agora, esperar por Kurtz está ligado a esperar por Brando” (p.161-164, tradução nossa) 89. Além disso, essa sequência apresenta a visão de mundo do coronel, que inicia seu discurso com uma imagem surreal, um caracol rastejando ao longo de uma navalha e termina com a declaração de ódio de Kurtz contra a humanidade “nós devemos matá-los, nós devemos incinerá-los”. Essa apresentação revela aspectos do caráter do coronel, de sua suposta loucura, de uma figura que se rebelou e que matará não só os vietnamitas, mas também os “pomposos” oficiais do exército americano.

88 Minutagem do filme como referência para esta cena: “Apocalipse Now” (1979) de 09’30’’ a 18’56’’. 89 That famous voice, as nasal and inarticulated as you like, can’t help but awaken the viewer’s memory. From then on, waiting for Kurtz is bound to become waiting for Brando...

124 Após completo o percurso de Willard pelo coração da selva, temos seu primeiro encontro com Kurtz, que é também o primeiro do espectador com o coronel90. Quando Willard é colocado diante dele, amarrado e de joelhos, dentro do templo, a câmera filma apenas as costas do capitão, de longe. Conforme a câmera se aproxima, ouvimos a voz de Kurtz “De onde você é, Willard?”. O coronel segue indagando sobre a origem do capitão, suas falas são lentas e espaçadas, a câmera passa a filmá-lo, ele está deitado, mas ainda não é possível distinguir o corpo de Kurtz na escuridão. Então, ele para de falar e se senta, passando a lavar a nuca com uma vasilha de barro. E o diálogo muda completamente: “Você já pensou alguma vez, na verdadeira liberdade? Liberdade da opinião alheia, até mesmo da sua própria opinião? Eles te disseram Willard... Por que eles querem exterminar o meu comando?” O primeiro vislumbre de Kurtz mostra apenas parte de sua cabeça, como uma bola dourada que surge da escuridão. Aos poucos, conforme a sequência se desenvolve, podemos distinguir partes do corpo, os braços, o topo da cabeça, tudo sempre iluminado pela luz dourada. Apenas uma vez seus olhos ameaçam aparecer. É como se o tempo todo, Willard conversasse com um ser imaterial, que, algumas vezes, revela a ele o topo de sua cabeça dourada que é tocado por uma mão também dourada. A gestualidade “tocar a cabeça” é recorrente ao longo da filmografia de Brando. Esse é, juntamente com olhar para fora do plano, um dos gestos mais repetidos ao longo dos filmes do ator. Para Colombani,

...desde a era antiga de “Uma Rua Chamada Pecado”, tocar sua cabeça fazia parte do repertório gestual de Brando. Ele usa isso para mostrar o quão contemplativo é Kurtz: sua voz sozinha faz com que ela seja escutada, seu corpo sozinho faz com que sua presença seja sentida. Sua existência não depende de outros, ao invés disso ele é um mundo em si, ao redor do qual orbita uma multidão sem rosto. (2013, p.164, tradução nossa) 91.

90 Minutagem do filme como referência para esta cena: “Apocalipse Now” (1979) de 114’01’’ a 119’01’’. 91 ...ever since the long-ago era of A Streetcar Named Desire, touching his face has been part of Brando’s repertoire of gestures. He uses it to show how comtemplative Kurtz is: his voice alone makes itself heard; his body alone makes his presence felt. His existence does not depend on others; rather he is a world unto himself, around which orbits a feceless throng.

125 O diálogo segue e Kurtz pergunta a Willard: “Você é um assassino?” Ele responde: “Eu sou um soldado.” Então, finalmente temos um vislumbre da face de Kurtz. O rosto de Brando surge sob a luz dourada e o coronel afirma categórico, mas com uma voz mansa: “Você não é nem uma coisa nem outra. Você é um garoto de recados enviado pelos funcionários do armazém... para cobrar a conta.”. Com essa fala, Kurtz impõe sobre Willard sua figura, o rebaixa a um garoto de recados, desdenha de sua patente de capitão e também inicia a série de provocações que fará a ele e que intensificarão a transformação de Willard iniciada no começo de sua jornada. Ele não sairá incólume de sua missão.

Da parte do coronel, Kurtz já sabe que Willard está ali para matá-lo e não se mostra nem um pouco abalado por isso. É como se ele esperasse por esse momento, como se essa hora fizesse parte de um grande ritual de sacrifício do seu corpo e perpetuação da sua imagem através de Willard. O próprio capitão diz isso ao longo do filme “Não existe maneira de contar a história dele sem contar a minha. E se a história dele é realmente uma confissão, a minha também é”. Kurtz e Willard estão ligados desde que o capitão recebe sua missão e escuta a voz do coronel na gravação.

Durante a cena do encontro de Willard com Kurtz, Brando determina como o coronel será visto durante o restante do filme. Sua figura se assemelha a imagem de um Buda (COLOMBANI, 2013), com um corpo grande, gordo e com a cabeça raspada. O coronel aparecerá sempre quase como uma estátua, seus movimentos são contidos, lentos, formando quase uma pose. Nas poucas vezes que aparece em quadro, seu corpo nunca aparecerá completamente iluminado ou dentro do plano. É como se o espectador pudesse apenas captar partes do coronel e completasse a figura em sua imaginação a partir desses poucos elementos dados. Segundo Brando, ele disse a Coppola que:

No livro O coração das trevas, Conrad usa esse sujeito, Kurtz, quase como uma figura mitológica, um homem superior à realidade. Não faça mau uso dele no filme. Deixe-o misterioso, distante e invisível na maior parte do filme, a não ser

126 em nossa mente. O que torna a história de Conrad forte é o fato de todo mundo falar de Kurtz durante páginas e os leitores ficarem imaginando como ele é. Nunca o veem, mas ele faz parte do ambiente. É uma odisseia e ele é a essência de O coração das trevas. Quanto mais isso perdura, mais ele ocupa a mente dos leitores da maneira que eles o imaginam. [...] Se nós nos restringíssemos à descrição de Kurtz feita no roteiro original, eu disse, seria impossível focalizar o mistério daquele homem, que, aliás, era um mistério sinistro, porque tudo que é sinistro deve ficar invisível. (BRANDO, 1994, p. 342).

Um dos fatores importantes desse conceito chave sobre Kurtz é que ele foi uma proposta do próprio ator, que não só compôs o visual do coronel, como foi determinante ativo na definição de sua figura no filme:

Sem comunicar à Francis, eu raspei a cabeça, arranjei uma roupa preta e pedi ao cameraman e ao pessoal da equipe de iluminação que me fotografassem sob uma luz exótica enquanto eu falava no escuro com voz fantasmagórica. Mostrei os testes à Francis e disse a ele que na primeira vez que a plateia ouvisse Kurtz falar, a voz dele deveria surgir na escuridão. Passado um momento prolongado, ele faria uma entrada em que só a calva ficaria à vista; depois, um pouco do rosto seria iluminado, e em seguida ele voltaria para a sombra. De certa forma esse processo está transcorrendo na mente de Kurtz: ele está no escuro, nas trevas, levado de lá pra cá no mundo dos mortos que criou para si mesmo na selva; já não tem mais nenhuma estrutura de referência moral naquele mundo sobrenatural que é uma parábola perfeita da Guerra do Vietnã. (BRANDO, 1994, p.342).

Para o cineasta Frank Borzage, citado por Moullet, a “escuridão diminui a realidade física dos corpos em favor da expressão dos sentimentos” (1973, p.31, tradução nossa) 92, e, no caso do coronel Kurtz, a escuridão cria um ambiente que valoriza a mitificação do personagem, o aproxima de uma figura etérea e intocável. O “padrinho” aqui é quase imaterial, alguém das sombras e de quem não nos aproximamos muito. Thomas vê esse aspecto intangível, de uma figura iluminada, também no patriarca de “O Poderoso Chefão” (1972): “Don Corleone é um patriarca incontestável e, como ele é interpretado por Brando, ele é quase um líder religioso.”

92 L’obscurité permettait de diminuer La réalité physique du corps au profit de l’expression des sentiments.

127 (1973, p. 230-234, tradução nossa) 93. Em “Apocalipse Now” (1979) Brando é o “padrinho deus pagão”, que evoca a figura de um Buda, em fusão com as estátuas das deidades ao seu redor. Brando se amalgama com o espaço, sua presença está em todo canto escuro e em cada parte do templo em ruínas. “Aquele corpo massivo poderia ter sido um obstáculo para a visão espiritual do personagem; mas, ao contrário, ele se torna uma ferramenta. Deitado ou tomando seu banho de purificação, Kurtz sempre se parece com uma estátua. Apenas a voz permanece, uma voz macia, insistente.” (COLOMBANI, p.164, tradução nossa) 94. A voz é uma marca importante, que vai para além do coronel e aparece também em filmes como “Superman” (Richard Donner, 1978) e “Cristóvão Colombo – A Aventura do Descobrimento” (John Glen, 1992) e configura uma característica importante do “padrinho”. Essa especificidade de voz e movimento é característica de Brando nos anos 70 em diante. Brando fará uma interpretação contida, de personagens que se movimentam pouco e se expressam muito através da pose, concentrando a energia em seu olhar.

93 Don Corleone is na undisputed patriarch, and, as played by Brando He hás almost the manner of a religious leader. 94 That massive body could have been an obstacle to the spiritual vision of the character, it becomes, to the contrary, a tool. Lying down or making his ablutions, Kurtz aways looks like a statue. Only the voice remains, a soft, insistent voice.

128 Fotos 51 e 52: O coronel Kutz como estátua.

Fonte: Print screen de “Apocalipse Now” (1979).

Foto 53: Uma das imagens do templo onde vive Kurtz. Semelhanças com o rosto de Brando.

Fonte: Print screen de “Apocalipse Now” (1979).

129 A voz macia e insistente do coronel só se altera em um momento do filme, quando, pouco antes de morrer pelas mãos de Willard, Kurtz grava um de seus áudios contra os militares95. “Nós treinamos jovens para atirar fogo sobre as pessoas. Mas seus comandantes não permitem que eles escrevam ‘foda-se’ em seus aviões porque isso é obsceno!”. Antes disso, é como se Willard já assumisse a imagem daquele que irá executar. Ele surge das águas, como que renascido, com a mesma camuflagem que Kurtz apareceu para ele em um dos seus encontros. Essa é a última imagem do rosto de Willard completamente iluminado. A música tema do filme, “This is the end” do The Doors, a mesma que tocou no início do filme, na primeira cena do capitão, é retomada anunciando o fim do ciclo. A partir de agora, Willard só aparecerá nas trevas, assim como o coronel. No confronto final de ambos, Willard mata Kurtz a golpes de uma foice. A execução é intercalada com a imolação de um búfalo nas mediações do templo, em uma espécie de ritual pagão; dessa forma, a execução de Kurtz é também um ritual de sacrifício. O filme termina com o rosto de Willard fundido ao rosto de uma estátua do templo com a voz de Kurtz ressoando “O Horror”, ou seja, Willard agora tomou o lugar o coronel, não necessariamente entre seus subordinados, mas de uma maneira interna, quase espiritual. Colombani resume essa sequência assim:

“This is the end”, canta Jim Morrison, “[...] Of everything that stands the end”. Kurtz cai mais uma vez, Seu rosto, de perfil, é finalmente iluminado por completo. “O horror... o horror...”, ele pronuncia, seus olhos e boca abertos, enquanto Willard – que parece nesse instante ter se transformado em Kurtz – deita sua cabeça entre as mãos. (COLOMBANI, 2013, p.169-171, tradução nossa) 96.

95 Minutagem do filme como referência para esta cena: “Apocalipse Now” (1979) de 136’55’’ a 140’26’’.

96 “This is the end”, sings Jim Morrison, “[...] Of everything that stands, the end.” Kurtz falls once more. His face, in profile, is finally fully lit. “The horror... the horror...”, he utters, his eyes and mouth open, while Willard – Who seems in this instant to have transformed into Kurtz – drops his head in his hands.

130 Foto 54: A morte de Kurtz encarando a escuridão. A última imagem de Brando no filme.

Fonte: Print screen de Apocalipse Now (1979).

Essa imagem final da morte de Kurtz se assemelha apenas a outras duas na filmografia do ator, a de “O Grande Motim” (1962) e “Duelo de Gigantes” (Arthur Penn, 1976) nos quais temos a câmera em close no rosto de Brando enquanto o seu personagem morre encarando a escuridão. Dos dez filmes nos quais Brando morre em cena, em sete o seu corpo é ignorado, quase descartado de cena. Quase sempre retorcido, como em “O Último Tango em Paris” (1972), o corpo morto de Brando é filmado de longe jogado no meio da rua – “Queimada!” (1969) – na lama – “Os Deuses Vencidos” (1958) -, é alvejado por muitos tiros – “Viva Zapata!” (1952) -, ou por flechas – “Os que chegam com a noite” (1971). Apenas em “O Poderoso Chefão” (1972) a morte ocorre por causas naturais e, ainda assim, a câmera se mantém distante do corpo de Brando. Tal recorrência está ligada diretamente à repetição de imolações, sacrifícios, violência e tortura sobre o corpo de Brando. Seus personagens traçam uma vida torturada que acaba sempre de maneira trágica.

131 Foto 55: As mortes de Brando: Emiliano Zapata.

Fonte: Print screen de “Viva Zapata!” (1952).

Foto 56: As mortes de Brando: Christian Diestl.

Fonte: Print screen de “Os Deuses vencidos” (1958).

Foto 57: As mortes de Brando: Val Xavier.

Fonte: Print screen de “Vidas em Fuga” (1959).

132 Foto 58: As mortes de Brando: Sir. William Walker.

Fonte: Print screen de “Queimada!” (1969).

Foto 60: As mortes de Brando: Peter Quint.

Fonte: Print screen de “Os que Chegam Com a Noite” (1971).

Foto 61: As mortes de Brando; Atentado contra Don Corleone.

Fonte: Print screen de “O Poderoso Chefão” (1972)

133

Foto 62: As mortes de Brando: Don Corleone.

Fonte: Print screen de “O Poderoso Chefão” (1972).

Foto 63: As mortes de Brando: Paul.

Fonte: Print screen de “O Último Tango em Paris” (1972).

Para essa pesquisa, consideramos “Apocalipse Now” (1979) como o último filme de Brando sobre o qual faríamos uma análise aprofundada, como também foi feito com “Uma Rua Chamada Pecado” (1951), “Sindicato de Ladrões” (1954), “O Grande Motim” (1962), “A Face Oculta” (1961), e “O Poderoso Chefão” (1972). Nesses processos,

134 filmes como “Viva Zapata!” (1952), “Vidas em Fuga” (1959) e “O Pecado de Todos Nós” (1967) foram utilizados como “satélites” a fim de destacar determinadas características do sistema de aparecimento de Brando.

Destaca-se também o hiato de nove anos (1980-1989) que Brando passou sem atuar em nenhum filme. Segundo o próprio ator, ele só retornou para o cinema porque achou que a história de “Assassinato Sob Custódia” (1989) “seria eficaz, não só porque mostrava como os negros eram tratados no sistema Apartheid, como pelo fato de dar aos espectadores brancos a oportunidade de ver, com os olhos de um sul africano branco, como aquela política era desumana.” (BRANDO, 1994, p.348), ou seja, por um fator político que lhe era caro. Depois disso, ele fez apenas participações muito pequenas nos filmes “Um Novato na Máfia” (1990) “Cristovão Colombo – A Aventura do Descobrimento” (1992), “Don Juan DeMarco” (Jeremy Leven, 1994), “A Ilha do Dr. Moreau” (John Frankenheimer, 1996), “O Bravo” (Johnny Depp, 1997), “Loucos Por Dinheiro” (Yves Simoneau, 1998) e “A Cartada Final” (Frank Oz, 2001). Nesses filmes, em geral, a figura que Brando representa se aproxima do que definimos aqui como “padrinho”. São figuras não centrais, mas tem alguma função de conselheiro, líder, ou chefe dos protagonistas. Segundo Colombani:

A gloriosa execução do coronel Kurtz é também o fim de Marlon Brando. É claro que a estrela – carregada de problemas financeiros – continuou a fazer filmes até sua morte em 2004. Agradáveis distrações como Superman (Richard Donner, 1978), no qual ele interpreta Jor-El por doze dias de filmagem e por um cachê recorde de $3.700,00; os filmes altamente kitschs, Don Juan DeMarco (Jeremy Leven, 1994) e A Ilha do Dr. Monreau (John Frankenheimer, 1996), dois filmes nos quais ele nem finge atuar; e outro, um filme mais respeitável, Assassinato Sob Custódia (Euzhan Palcy, 1989), no qual ele concordou fazer por causa de sua mensagem contra o Apartheid. Mas é em Apocalipse Now que o último flash de seu gênio incandescente brilha, e aquela engasgada final - “o horror... o horror...” – soa como um declaração filosófica, a conclusão de uma jornada privada dolorosa, e a prova final de sua habilidade excepcional de atuação. (COLOMBANI, 2013, p. 171 tradução nossa) 97.

97 The glorious execution of Colonel Kurtz is also the end of Marlon Brando. Of course, the star – overbounded with money problems – continued to make movies until his death in 2004. Pleasant distractions like Superman (Richard Donner, 1978), in which he played Jor-El for twelve days of shooting and for a record sum of $3.700.000; those high-water marks of kitsh, Don Juan De Marco (Jeremy Leven, 1994) and The Island of Dr. Moreau (John Frankenheimer, 1996), two films in which he doesn’t even

135 Por fim, podemos evocar a fala de Brando na qual ele diz que parar de atuar é um sinal de maturidade e interpretá-la de duas maneiras. A primeira é a sua aposentadoria e a sua opção por pequenas participações após 1989. Poderíamos supor que Brando finalmente amadureceu e deixou a profissão de ator. A segunda, e mais interessante, é perceber que, conforme Brando amadurece, ele vai aparentemente deixando de atuar, cada vez mais optando por simplesmente estar em cena; ele apenas se deixar filmar. Ao longo dessa dissertação, acompanhamos um jovem ator muito ligado a metodologias de criação de sua formação como ator. É interessante como encontramos uma quantidade muito maior de informações a respeito das técnicas de interpretação de Brando nos escritos e declarações sobre seus primeiros trabalhos. Também é notável como, em seus primeiros filmes, os personagens de Brando se expressam muito mais por meio de muitas ações, muitas falas, movimentos e como isso vai diminuindo ao longo da sua carreira.

Esse “deixar de atuar” é apenas aparente porque estar parado em cena, fazer pouco, é também uma técnica de atuação e, no caso de Brando, muito ligada a uma especificidade do cinema, e mais ainda do cinema industrial de Hollywood e do star system: ao longo da filmografia de um ator, o espectador passa a criar um vínculo com aquela figura, ela não precisa mais se apresentar a ele. Dessa forma, a qualidade da performance de um ator de cinema em um filme específico está ligada também a seus outros filmes e essa é uma característica importante de um ator autor.

pretend to act; and another, more respectable film, A Dry White Season (Euzhan Palcy, 1989), which he agreed to do because of its antiapartheid message. But it is in Apocalipse Now that the last flash of his incandescent genius shines, and that final gasp – “the horror... the horror...” sounds like a philosophical declaration, the conclusion of a painful private journey, and the ultimate proof of his exeptional acting hability.

136 CONCLUSÃO – EU VOU ESTAR MARLONBRANDO

Você "malumbra" o meu coração/ E eu fico "marlumbrada" por você./ Vocês podem até não parecer/ Assim fisicamente,/ nem espiritualmente,/ nem em nenhum outro aspecto que eu me lembre/ Mas pra mim/ Você tá sempre marlonbrando. (FALCÃO, 2012).

Ao fim dessa pesquisa definimos que Marlon Brando aparece ao longo de sua filmografia basicamente em duas figuras essenciais, o “jovem rebelde” e o “padrinho”. O primeiro tem as seguintes características principais: Afronta o sistema vigente; é líder ou figura central de algo marginal; não consegue lidar com seus sentimentos; utiliza-se da violência em sua relação com o mundo; é através do amor que encontra o seu amadurecimento; apresenta características sensíveis e seus traços físicos têm aspectos andróginos. O “jovem rebelde” aparece nos seguintes filmes: “Espíritos Indômitos” (1950), “Uma Rua Chamada Pecado” (1951), “O Selvagem” (1953), “Sindicato de Ladrões” (1954), “Sayonara” (1957), “Vidas em Fuga” (1959) e “A Noite do Dia Seguinte” (1968), totalizando sete filmes.

Por sua vez, a figura do “padrinho” é, em geral, alguém acima de quarenta anos de idade, desvinculado da relação com uma mulher, muitas vezes não é o protagonista do filme, mas serve como mentor daquele que é, funciona como centro de gravidade no campo fílmico e parafílmico. Ela aparece em: “Caçada Humana” (1966), “O Pecado de Todos Nós” (1967), “Candy” (Christian Marquand, 1968), “Queimada!” (1969), “Os Que Chegam Com a Noite” (1971), “O Poderoso Chefão” (1972), “O Último Tango em Paris” (1972), “Duelo de Gigantes” (1976), “Superman” (1978), “Apocalipse Now” (1979), “A Fórmula” (John G. Avildsen, 1980), “Assassinato Sob Custódia” (1989), “Um Novato Na Máfia” (1990), “Cristóvão Colombo – A Aventura do Descobrimento” (1992), “Don Juan DeMarco” (1994), “A Ilha do Dr. Moreau” (1996), “O Bravo” (1997), “Loucos Por Dinheiro” (1998) e “A Cartada Final” (2001), somando dezenove filmes.

137 Já as figuras que transitam e possuem características do “jovem rebelde” e do “padrinho” aparecem em: “Viva Zapata!” (1952), “Júlio César” (1953), “Désirée” (1954), “Os Deuses Vencidos” (1958), “A Face Oculta” (1961), “O Grande Motim” (1962), “Quando Os Irmãos se Defrontam” (1963), “Morituri” (1965) e “Sangue em Sonora” (1966), no total de nove filmes. Por fim, como figuras de exceção, temos seus personagens em: “Eles e Elas”, (1955), “A Casa de Chá ao Luar de Agosto” (1956), “Dois Farristas Irresistíveis” (1964) e “A Condessa de Hong Kong” (1967).

Também percebemos que as gestualidades de maior recorrência na obra do ator são o toque na cabeça e o olhar para fora do quadro, este último ligado a duas marcas fortes, a busca de Brando por uma naturalidade na fala do personagem e a busca pela própria fala, colada em cartões espalhados fora do campo de enquadramento. Essas figuras e gestualidades seriam elementos formadores da autoria de Brando no cinema. Segundo Colombani:

Nós podemos considerar um ator como um autor? [...] é difícil não dizer sim depois de seguir a carreira de Marlon Brando: assistir ele construindo seu caminho no roteiro de Uma Rua Chamada Pecado ao ponto de se tornar inseparável do personagem Stanley; o ver se transformar de forma tão natural em diretor em A Face Oculta; e ouvi-lo improvisar os momentos mais tristes em O Último Tango em Paris. Nós devemos também olhar os atores que vieram depois dele: De Niro, Pacino, Penn, Depp, DiCaprio – tantos talentos únicos que descobriram, eles mesmos, a verdade de um personagem em algum lugar entre o silêncio e os urros, o lirismo e a violência. (COLOMBANI, 2013, p.173, tradução nossa).

A análise da filmografia de Brando nos permitiu lançarmos luz para dois aspectos da construção da cena: seus elementos técnicos, objetivos e seus elementos “pessoais”, íntimos, subjetivos. A ideia de estrela, apresentada por Morin, tenta dar conta de fundir esses dois elementos. Brando não foi considerado um grande ator somente por seus aspectos técnicos, mas por ser também uma pessoa interessante, um artista criativo e inquieto, que soube se utilizar de seus “demônios pessoais”, chegando ao ponto de uma fala sua na época das filmagens de “Apocalipse Now”

138 (1979) contradizer o que o próprio ator colocara sobre a construção de seus primeiros personagens: “Eu ganhei muita experiência ao longo dos anos e não preciso da mesma preparação que um ator novato precisa – Eu uso a minha ira, meu catálogo todo de emoções humanas.” (apud MANSO, 1999, p.845, tradução nossa) 98. Brando cita uma construção de cena de dentro para fora de si.

Essa fala pode revelar o uso da memória emotiva por parte de Brando na construção de suas cenas, mas, acreditamos que o que Brando evidencia nessa sentença é o caráter da figura humana e de suas emoções, dores e alegrias, luzes e sombras que uma filmagem consegue registrar. A construção de uma cena a partir de elementos externos, as ações, o figurino, a ligação histórica não é algo mecânico, mas um disparador de emoções e pulsões da sensibilidade de um artista. O que a câmera faz é registrar essas fagulhas de vida. Segundo Maciel Guimarães:

Dos aforismos de Jean-Luc Godard na época da Nouvelle Vague, um relaciona diretamente o trabalho do ator à impressão de realidade que supostamente deveria brotar de uma obra cinematográfica de ficção. Para Godard, “um filme é, antes de tudo, um documentário sobre seus atores”. Em outras palavras, fazer um documentário sobre o ator, mesmo num filme dito ficcional, significa encarar o corpo do e a personalidade do personagem não como uma realidade material e abstrata já construída, mas em construção dentro de uma situação precisa e codificada (a filmagem). (MACIEL GUIMARÃES, s/d)99

Dessa forma, fica evidente a relação estabelecida pelo registro do corpo do ator em cena. Ele é, antes de uma instância ficcional, um ser documentado, uma revelação de seu corpo filmado. Ao acompanharmos a filmografia de Brando, percebemos que ela pode configurar um documentário, ou uma biografia da vida desse artista. Ali estão suas relações com o diretor, que geram as cenas, com o espectador, por meio de sua persona, e com seus personagens, sendo estes os veículos principais que Brando

98 I’ve gained a lot of experience over the years and I don’t need the same kind of coaching a newcomer does – I use my rage, my entire catalog of human emotions. 99 Texto inédito “O ator ao lado do personagem: os intérpretes de Manoel de Oliveira” obtido diretamente com o autor.

139 lança mão para construir sua obra de arte. Bergala, em sua análise feita também sobre a Nouvelle Vague se alinha a essa ideia e ressalta a filmagem como um registro das paixões humanas:

O discurso do teórico sempre se recusou a levar em conta, na análise do filme, as relações que o cinema trava durante a fabricação do filme com suas criaturas, como se isso fosse uma fútil impureza das biografias ou uma curiosidade doentia digna da imprensa das celebridades. [...] O limite do conceito de enunciação é sua inocência – o criador como abstração intelectual, sem corpo e sem sentimentos – e uma crença patética no postulado segundo o qual somente poderia ser decriptada como instância de dominação. Uma instância de anunciação nunca se apaixonou pela sua atriz, nunca teve ciúme de seu personagem masculino da ficção, nunca teve a tentação de raptar a atriz durante o filme nem de recusar ao espectador a visão dos seios da mulher desejada (BERGALA, 2005).

Bergala tem o diretor como foco de sua análise. Se aplicarmos essa lógica ao ator, ou seja, aquele que se coloca a ser registrado, documentado pela câmera, é quase impossível a sua abstração a uma instância intelectual na feitura do filme. Brando se envolveu sexualmente com diversas atrizes com quem dividiu a cena, como Vivien Leigh, Anna Magnani, Tarita, Pina Pellicer e Rita Moreno. Podemos afirmar que essas relações estão registradas em cena, nas cenas dos filmes. Enquanto vemos Fletcher se apaixonando por Maimiti em “O Grande Motim” (1972), também vemos Brando se apaixonado por Tarita. Essa relação não está somente no seu caráter sexual; Brando também colocou no elenco de diversos filmes sua irmã, Jocelyn Brando. Quando foi buscar um co-protagonista para “A Face Oculta” (1961), chamou seu amigo e parceiro de filmes anteriores Karl Malden. Uma obra de arte, um filme, não nasce somente de instâncias técnicas, mas de diversas paixões e impulsos íntimos de seus criadores.

Todos os padrões e figuras apresentados ao longo da cinematografia de Brando compõem sua assinatura, sua marca autoral que será utilizada por diversos diretores e com quem o público terá uma identificação imediata. Como característica de ator autor, somamos a influência de Brando sobre outros aspectos da produção do filme conforme

140 ele se consolida como uma estrela conhecida e também ao passo que constrói parcerias artísticas, como as que teve com Kazan e Coppola. Tal influência se dá de maneira direta, como alterar o roteiro, dirigir algumas cenas, dialogar sobre iluminação ou enquadramento, compor aspectos visuais do personagem, e também ocorre de maneira subterrânea, como alterar diálogos ou ações no momento da cena, ou influenciar o restante do elenco com o poder de sua persona.

Esse trabalho teve como seu título inicial “Eu vou Estar Marlonbrando”, nome que tentava evocar um mergulho prático nas técnicas que seriam levantadas a partir da análise de Brando. Contudo, ao longo desses dois anos e meio percebemos que não era possível colocar em prática tais elementos sem que fizéssemos o processo de um filme que se aproximasse, o mínimo que fosse, de uma estrutura semelhante a dos filmes de Brando, com um roteirista, um diretor, um aparato de maquiagem. Outro elemento que nos faltou foi a presença de uma estrela, de uma persona conhecida que pudesse provocar as mesmas expectativas no espectador que uma figura como Marlon Brando poderia provocar. Tais “obstáculos técnicos” nos fizeram voltar para a análise teórica do sistema de aparecimento de Brando nos filmes para, feito esse primeiro movimento, nos debruçarmos sobre uma investigação prática a respeito do ator no cinema em uma pesquisa futura.

Como então é possível “marlonbrandear”? Como é possível investigar aspectos práticos do trabalho do ator no cinema? Percebemos que, ao estudar a filmografia de Brando, o modo como ele construía as ações em cena, era algo possível de se mimetizar, assim como fizeram De Niro e também Al Pacino (DAMOUR, 2009). Os aspectos técnicos relativos à “ação física”, “imaginação” e “observação” são elementos construídos de fora para dentro, observa-se o mundo ao redor, estimula-se sua imaginação com ele e o reproduz copiando suas ações. Para o cinema, esses procedimentos podem ser boias, apoios para o ator se manter focado em um ambiente de filmagem, no qual, muitas vezes, ele não é o centro das atenções. Enquanto uma equipe técnica prepara a iluminação para um novo plano, é impossível para o ator se manter com a mesma emoção; esse processo pode durar horas. Desse modo,

141 acreditamos que as ações podem ser disparadoras de uma construção de cena com a finalidade de se atingir a emoção necessária para sua realização. Além disso, a emoção deve ser passada ao espectador, o ator não precisa estar necessariamente emocionado para que isso ocorra.

Ao longo desses dois anos, participamos de um longa-metragem e de diversos curtas não ligados diretamente a essa pesquisa, mas notamos que era possível estabelecer os mesmos procedimentos de Brando na construção de uma cena. Estávamos recorrendo as “ações” propostas por Stanislavski e que foram base da técnica de Adler. Outro aspecto que nos saltou aos olhos nessas experiências práticas foi como a relação com o diretor pode ser potente para o trabalho do ator, como este pode buscar dialogar com o diretor sobre aspectos que não são necessariamente de sua alçada, como a iluminação e roteiro, como fez Brando com seus diretores parceiros e como fazem muitos atores no teatro. Por último, concluímos que um personagem no cinema quase nunca é um personagem puro do ponto de vista da recepção do espectador, principalmente em um filme inserido no sistema de produção industrial dos estúdios. O personagem, dessa forma, é quase sempre a amálgama dele com a persona do ator e o produto final que chega ao espectador será uma mistura do que ele já espera do ator com o enredo do filme. Ao nos depararmos com os aspectos aqui apresentados, percebemos que chegamos ao fim dessa pesquisa com elementos para dar continuidade ao trabalho para além dessa dissertação de mestrado e, quem sabe, desenvolver uma tese a respeito dessas descobertas. A partir de agora “eu vou estar marlonbrando.”.

142 FILMOGRAFIA

GRANDE MOTIM, O. Direção: Frank Lloyd. EUA, 1935. 102min. ESPÍRITOS Indômitos. Direção: Fred Zinnermann. EUA, 1950. 85 min. UMA RUA CHAMADA PECADO. Direção: Elia Kazan, EUA, 1951. 125min. VIVA Zapata!. Direção Elia Kazan, EUA. 1952. 112min. JÚLIO CÉSAR. Direção, Joseph L. Mankiewicz, EUA, 1953. 123min. SELVAGEM, O. Direção, Laslo Benedek EUA, 1953. 79min. SINDICATO de Ladrões. Direção, Elia Kazan, EUA, 1954 108min. DÉSIRÉE. Direção: Henry Koster, EUA, 1954 110min. JUVENTUDE TRANSVIADA. Direção:Nicholas Ray. EUA, 1955. 111min. ELES e elas. Direção: Joseph L. Mankiewicz, EUA, 1955. 149min. CASA de chá ao luar de agosto, A. Direção: Daniel Mann. EUA, 1956. 123min. SAYONARA. Direção: Joshua Logan. EUA, 1957, 140min. DEUSES vencidos, Os. Direção: Edward Dmytryk. EUA, 1958, 167min. VIDAS em fuga. Direção: Sidney Lumet. EUA, 1959, 119min. FACE oculta, A. Direção: Marlon Brando. EUA, 1961, 141min. GRANDE MOTIM, O. Direção: Fred Zinnerman. EUA, 1962. 102min. QUANDO os irmãos de defrontam. Direção: George Englund. EUA, 1963, 120min. DOIS farristas irresistíveis. Direção: Ralph Levy. EUA, 1964, 99min. MORITURI. Direção: Bernhard Wicki. EUA, 1965, 123min. CAÇADA humana. Direção: Arthur Penn. EUA, 1966, 135min. SANGUE em sonora. Direção: Sidney J. Furie. EUA, 1966, 98min. CONDESSA de Hong Kong, A. Direção: Charlie Chaplin. EUA, 1967, 120min. PECADO de todos nós, O. Direção: John Ford. EUA, 1967, 108min. CANDY. Direção: Christian Marquand. EUA, 1968, 115min. NOITE do dia seguinte, A. Direção: Hubert Cornfield. EUA, 1968, 93min. QUEIMADA!. Direção: Gillo Pontecorvo. EUA, 1969, 132min. QUE chegam com a noite. Os Direção: Michael Winner. EUA, 1971, 96min. PODEROSO chefão, O. Direção: Francis Ford Coppola. EUA, 1972, 172min.

143 ÚLTIMO tango em Paris, O. Direção: Bernardo Bertolucci. França – Itália, 1972, 129min. SÉRPICO. Direção: Sidney Lumet. EUA, 1973, 130min. PODEROSO chefão – Parte II, O. Direção: Francis Ford Coppola. EUA, 1974, 200min. DUELO de gigantes. Direção: Arthur Penn. EUA, 1976, 126min. TODOS os homens do presidente. Direção: Alan J. Pakula. EUA, 1976, 138min. SUPERMAN. Direção: Richard Donner. EUA, 1978, 143min. MANHATTAN. Direção: Woody Allen. EUA, 1979, 96min. APOCALIPSE NOW. Direção: Francis Ford Coppola. EUA, 1979, 153min. FÓRMULA, A. Direção: John G. Avildsen. EUA, 1980, 117min. ASSASSINATO sob custódia. Direção: Euzhan Palcy. EUA, 1989, 97min. NOVATO na máfia, Um. Direção: Andrew Bergman. EUA, 1980, 102min. CRISTÓVÃO Colombo – a aventura do descobrimento. Direção: John Glen. EUA, 1992, 120min. DON Juan DeMarco. Direção: Jeremy Leven. EUA, 1994, 97min. ILHA do doutor Moreau, A. Direção: John Frankenheimer. EUA, 1996, 96min. BRAVO, O. Direção: Johnny Depp. EUA, 1994, 123min. LOUCOS por dinheiro. Direção: Yves Simoneau. EUA, 1998, 91min. MÁFIA!. Direção: Jim Abrahams. EUA, 1998, 84 mim. MÁFIA no divã. Harold Ramis. EUA, 1999, 103 min. CARTADA final, A. Direção: Frank Oz. EUA, 2001, 124min. ESPANTA Tubarões, O. Direção: Bibo Bergenson, Vicki Jenson, Rob Letterman. EUA, 90min. ANIMANIACS. Youtube, 3 de. 2010. Disponível em: . Acesso em 13 set. 2014.

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150 ANEXO

DVD contendo os filmes: “Uma Rua Chamada Pecado” (1951), “Sindicado de Ladrões” (1954), “O Poderoso Chefão” (1972) e “Apocalipse Now” (1979). Para a visualização no computador, recomenda-se a utilização do Programa VLC player.

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