http://www.revistahermeneutica.com.br/public/journals/1/cover_issue_6_pt_BR.jpg[8/9/2012 11:29:18 AM] EDITORIAL

O presente número da revista Hermenêutica reúne artigos e resenhas que apresentam uma visão geral da produção científi ca den- tro de sua linha editorial. Atualmente, são encaminhadas à publicação contribuições de biblistas e teólogos das áreas de Teologia Histórica e Sistemática, ressaltando que contribuições de natureza interdisciplinar também são bem-vindas desde que se relacionem com essas áreas. Assim, os trabalhos publicados neste número estão, por assim dizer, distribuídos em dois grupos focais que atendem estas exigências. O primeiro, com três artigos, diz respeito justamente a este caráter interdisciplinar, uma vez que esses artigos discutem alguns fenômenos religiosos sob os olhares atentos de ciências humanas como a Sociologia e a Psicologia, em diálogo com a visão cristã sobre tais fenômenos; o se- gundo grupo é formado por artigos que buscam interpretar textos bíblicos a partir de um exercício exegético, sem prescindir do amparo teológico. O artigo de abertura O preço da alma: conceitos e característi- cas da secularização das instituições de ensino superior confessionais na perspectiva adventista analisa o fenômeno da secularização, discor- rendo sobre como isto ocorre em instituições confessionais. Em seguida, temos um artigo que trata do sincretismo afro-católico, mostrando como a música afro-brasileira se apropria de expressões do catolicismo para usá-las em seu contexto. Encerrando este primeiro grupo focal, o artigo Religião, família e outras instituições nas críticas foucaultianas à ideia de repressão da sexualidade , examina a religião, a família e a repressão sexual sob o olhar crítico de Foucault. Adentrando no campo das ciências bíblicas, o artigo Expository preaching: some questions and observations apresenta os desafi os do sermão expositivo, apontando caminhos para uma boa contextualização da pesquisa exegética à audiência. O artigo Das palavras de Cristo às virtudes cristãs: um diálogo entre Mateus e Tiago oferece os resulta- dos de um estudo em que se buscou perceber a correspondência entre o Evangelho de Mateus e a Carta Universal de Tiago. O artigo Uma breve análise da experiência de Elifaz em Jó 4:12-16 realiza uma exegese do texto bíblico que aparece no título do trabalho, a fi m de verifi car que tipo de experiência é descrita ali pelo persongem Elifaz. O texto seguinte é o primeiro de uma série de dois artigos que tratam do tema central da teologia paulina. O primeiro descreve o debate atual e histórico quanto ao cerne da teologia do apóstolo Paulo: seria a justifi cação pela fé o prin- cipal tema de sua teologia? O artigo mostra que outros temas centrais têm sido propostos e sugere uma resolução dessa tensão. O autor estende sua discussão para um segundo artigo, sob o título O tema central da teologia paulina e a dialética , o qual será publicado no Vol. 11, n. 1. Encerra este segundo grupo focal o artigo Língua etíope (ge’ez): desenvolvimento, características e importância para as ciências bíblicas , o qual chama a atenção para a necessidade de que novos biblistas se interessem pelo estudo do etíope, mais especifi camente o dialeto ge’ez, tendo em vista a quantidade considerável de manuscritos bíblicos neste idioma. Por fi m, o leitor poderá captar pequenos clarões das ideias discuti- das nas obras: A ética protestante e o espírito do capitalismo , de Max Weber e O universo ao lado , de James Sire, através de duas resenhas. Alegremente, portanto, entregamos à comunidade acadêmica mais um número da revista Hermenêutica, esperando que o seu conteúdo redunde numa leitura edifi cante e de grande valor para os amantes da literatura bíblica.

ADENILTON T AVARES DE A GUIAR Professor de Línguas Bíblicas do Seminário Adventista Latino-Americano de Teologia, Cachoeira BA E-mail: [email protected] O PREÇO DA ALMA: CONCEITOS E CARACTERÍSTICAS DA SECULARIZAÇÃO DAS INSTITUIÇÕES DE ENSINO SUPERIOR CONFESSIONAIS NA PERSPECTIVA ADVENTISTA

Cris Silva de Santana 1 Jéssica Renata Ponce de Leon Rodrigues 2 Wellington Gil Rodrigues 3

RESUMO

Este artigo busca discutir o conceito de secularização conforme entendido por alguns dos atores principais da instituição de ensino superior confessional conhecida por Faculdades Adventistas da Bahia. Esses relatos foram confrontados com as teorias correntes sobre o conceito da secularização, Pierucci (2000), Catroga (2006), Júnior (2008) e também com teorias sobre como ocorre esse processo em instituições educacionais confessionais tais como a de Marsden (1994; 1997), Benne (2001), Burtchaell (1998) e outros. A pesquisa para este trabalho adotou uma abordagem qualitativa e teve como principal instrumento de coleta de dados entrevistas semiestruturadas com três sujeitos, cada um representando um setor chave das Faculdades Adventistas: um pastor, um professor e um aluno. Concluímos que o entendimento sobre o conceito de secularização está relacionado a uma dinâmica aproximação/afastamento entre os

1 Pedagoga, Curso de Pedagogia da Faculdade Adventista da Bahia. 2 Estudante de Psicologia, Curso de Psicologia da Faculdade Adventista da Ba- hia. 3 Mestre em Educação (UFMA), Coordenador do Núcleo de Estudos em Ciência e Religião (NECIR) e do Programa de Iniciação Científi ca da Faculdade Adventista de Educação do Nordeste (PIC-FAENE) – [email protected]. 12 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 11-35 pólos divino e humano e que, segundo a percepção dos sujeitos, o processo da secularização acontece hoje no ambiente das Faculdades Adventistas, mas em um grau bem menor do que no passado.

PALAVRAS -C HAVE : Secularização. Instituições Confessionais. Universidade. Faculdades Adventistas da Bahia.

ABSTRACT

This article discusses the concept of secularization as understood by some of the main actors of the institution of higher confessional education known as Northeast College. These reports were compared with current theories about the concept of secularization, Pierucci (2000), Catroga (2006), Júnior (2008) and also how this process occurs in religious educational institutions such as Marsden (1994, 1997), Benne (2001), Burtchaell (1998) and others. The research for this study adopted a qualitative approach and had the main instrument for data collection semi- structured interviews with three individuals each representing a key sector of Adventist Colleges: a pastor, a teacher and a pupil. Concluded that the understanding on the concept of secularization is related to a dynamic approach / distance between the poles divine and human, and that in the perception of the subjects, the process of secularization is happening today in the environment of Colleges Adventists, but at a much lower degree than in the past. KEYWORDS : Secularization. Confessional Institutions. University. Northeast Brazil Colleges. CRIS S ANTANA , J ÉSSICA R ODRIGUES , WELLINGTON R ODRIGUES - O P REÇO DA ... 13 INTRODUÇÃO

O fenômeno da secularização tem preocupado as igrejas, os professores e os pesquisadores ligados às instituições confessionais. É notável como esse processo tem se desenvolvido ao longo dos últimos 300 anos. Podemos ver que a Universidade de Harvard começou como um Colégio Puritano no século XVII, mas no fi nal do século XIX já era muito liberal e se tornou depois grandemente secular. A Universidade de Yale começou no século XVI e continuou com sua ênfase cristã até o início do século XVII. A Universidade de Chicago foi fundada em 1890 como uma escola Batista. Todas essas escolas continuam a existir, no entanto, agora, elas têm muito pouco para mostrar, exceto a escola da divindade e grandes capelas (MARSDEN, 1997). A preocupação das igrejas que mantêm universidades hoje é que esse processo esteja corroendo a identidade religiosa dessas instituições educacionais, e se esse é um processo sem volta ou não, e o que professores e administradores podem fazer para impedir ou reverter esse processo. A secularização é percebida pelos educadores adventistas como uma ameaça, como o revela o título do artigo do professor Renato Stencel (1999) “Ameaças da Secularização sobre a Educação na Virada do Milênio.” Precisamos compreender, portanto, o que se entende sobre secularização, de que forma ela acontece, quais são suas características e porque ela representa uma ameaça para a educação adventista. Estas se constituem as questões-chave de nossa pesquisa. Perseguindo o objetivo geral de analisar como este processo é percebido aqui nas Faculdades Adventistas da Bahia, este trabalho se caracteriza como uma pesquisa que possui uma abordagem qualitativa e que utilizou como principal instrumento entrevistas semiestruturadas e como sujeitos um aluno, um professor e um pastor, três personagens que representam atores-chave no cotidiano das Faculdades Adventistas 14 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 11-35 da Bahia, local escolhido para a pesquisa. Os dados foram submetidos a uma análise de conteúdo que procurou identifi car as principais categorias utilizadas para conceituar e descrever o processo da secularização nas práticas das faculdades. Face à magnitude dessas questões e a modesta produção teórica sobre o assunto no Brasil, torna-se urgente a produção de conhecimentos que possam fornecer uma refl exão crítica, acadêmica e científi ca sobre os pressupostos históricos e fi losófi cos do processo da secularização e como ele está acontecendo aqui nas Faculdades Adventistas da Bahia.

SECULARIZAÇÃO : H ISTÓRICO E C CONCEITOS

Nessa questão sobre o que é secularização, o conceito está entremeado pelo contexto histórico e só podemos entendê-lo quando conhecermos as condições de seu nascimento, o qual está localizado temporalmente nos eventos da saída da idade média e o advento da idade moderna. Para Giacomo Marramao (1994, p.19) apud Junior (2008, p. 61): “[...] os neologismos séculariser (1586) e sécularization (1567) estiveram relacionados ao lento e tormentoso processo de afi rmação de uma jurisdição secular - isto é laica, estatal - sobre amplos setores da vida social até então sob o controle da Igreja.” Precisamos recordar que durante a chamada era escura, a igreja católica dominava praticamente todos os setores da vida política, social e religiosa, normatizando os comportamentos e prescrevendo punições para todos aqueles que pusessem em xeque a leitura e interpretação da igreja sobre a realidade do mundo. Em seguida, ocorrem como eventos de resistência e mudança o Renascimento e a Reforma, ambos apregoando uma volta às fontes originais. O primeiro movimento buscava um retorno aos ideais greco-romanos, entre eles a valorização do homem, o que CRIS S ANTANA , J ÉSSICA R ODRIGUES , WELLINGTON R ODRIGUES - O P REÇO DA ... 15 desembocou no humanismo e antropocentrismo, os quais tinham sido sufocados pelo cristianismo nascente; e o segundo, pregando um retorno a um cristianismo puro, dos primeiros tempos, antes da corrupção do clero e do domínio político da igreja. A essa onda de mudanças juntou-se a formação do Estado moderno e o estabelecimento do absolutismo, onde o Estado se consolidou como o principal poder da sociedade relegando a igreja ao âmbito religioso. Podemos ver que o processo da secularização está localizado historicamente, surge com a modernidade e exprime um projeto civilizacional e cultural, uma concepção de mundo que busca fundar uma ordem social baseada em valores seculares. Portanto, a secularização é um processo “pelo qual setores da sociedade e da cultura são subtraídos à dominação das instituições e símbolos religiosos”. Peter Berger (2003, p.119) apud Junior (2008, p. 61). Para Junior (2008), o conceito de secularização surgiu para tentar explicar o fenômeno do enfraquecimento do controle religioso e da separação entre o Estado e grupos religiosos no contexto da emergência do Estado moderno, e é o resultado do processo de deterioração da infl uência dos valores, símbolos e práticas das instituições religiosas sobre a sociedade. Deve-se notar que atualmente a teoria da secularização vem sendo contestada por vários cientistas sociais, para os quais o que de fato está acontecendo é um retorno ao sagrado, um reencantamento do mundo, e uma infl uência cada vez maior das religiões no espaço público. No entanto, para Ernst Gellner (1994) apud Júnior (2008), a secularização ainda é uma realidade concreta. Para os autores adventistas, a secularização é um fenômeno bem presente e está relacionada ao acordo com os padrões do mundo, ou seja, aceitação dos valores sociais e culturais contemporâneos. Nesse 16 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 11-35 sentido, ela é vista como uma ameaça, pois implica uma possível perda de identidade denominacional. [...] a secularização é um fenômeno cultural onde pensamentos religiosos, instituições e práticas religiosas perdem sua importância em nossa sociedade; ou seja, é um processo gradual que tem como resultante a perda da identidade de uma instituição em relação à sua fi losofi a e crença religiosa. Stencel (1999, p. 37) Como vimos, a secularização é um processo amplo que envolve todo o tecido da vida social; no entanto, o foco principal de nossa pesquisa está direcionado ao ambiente das instituições de ensino superior confessionais e mais especialmente às Faculdades Adventistas, para isso é necessário conhecermos as pesquisas que já vem sendo feitas sobre o assunto, para daí tirarmos as categorias necessárias para analisarmos a situação.

A S ECULARIZAÇÃO DAS I NSTITUIÇÕES DE E NSINO S UPERIOR CONFESSIONAIS

Entre os vários estudos que se ocuparam em investigar o processo de secularização das instituições de ensino superior, um que merece destaque é o de Burtchaell (1998), que tem por título The Dying of the Light: The Disengagement of Colleges and Universities from Their Christian Churches 4. Em 868 páginas, ele descreve o que saiu errado com muitas das universidades americanas que passaram pelo processo de afastamento gradual das suas origens religiosas. O livro contém 16 tristes histórias de importantes escolas denominacionais nas quais a luz se apagou! Burtchaell faz um relato pessimista da situação, opinando que a secularização é praticamente uma viagem sem volta. Na conclusão do seu volumoso livro, ele observa que muitos que já viram essa história acontecer, estão se perguntando se isso não seria o fi m das faculdades e universidades cristãs! No entanto, acreditamos que o jogo não acabou, e que, conhecendo

4 Uma tradução aproximada seria: A Morte da Luz: O Desengajamento das Fac- uldades e Universidades de Suas Igrejas Cristãs. CRIS S ANTANA , J ÉSSICA R ODRIGUES , WELLINGTON R ODRIGUES - O P REÇO DA ... 17 o que saiu errado com essas instituições educacionais, podemos ter ideia do que fazer para manter ou tentar reverter esse processo. Essa é exatamente a ideia de Robert Benne, na obra “Quality With Soul” (2001), na qual o autor se propõe a examinar o sucesso de algumas escolas que conseguiram manter alma e qualidade. Neste trabalho, iremos utilizar Benne como a nossa principal fonte teórica, visto que estamos estudando suas obras nas reuniões de pesquisa do NECIR. Benne (2001) cita a obra de George Marsden “The Soul of the American University: From Protestant Establishment to Established Nonbelief” (1994). Nesta obra, Marsden afi rma que as grandes universidades americanas Harvard, Yale e Princeton foram fundadas por instituições religiosas, mas gradualmente foram se modifi cando. Para Marsden, esse processo começou pela tentativa de se fazer uma educação não-sectária e na busca por uma identifi cação com um cristianismo mais genérico, então se passou para um apelo a ideais espirituais e morais de ordem vagamente religiosas, e fi nalmente aconteceu a exclusão de valores especifi camente cristãos em nome de alegadas qualidades intelectuais, morais e democráticas universais. Para compreendermos porque a secularização representa uma ameaça para as instituições educacionais adventistas, precisamos conhecer as características desse processo e relacioná-las com a perspectiva adventista de educação.

A F ACE DA E SCURIDÃO : C ARACTERÍSTICAS DA S ECULARIZAÇÃO EM INSTITUIÇÕES E DUCACIONAIS

Para Oosterwal (1987) apud Stencel (1999), a secularização apresenta características relacionadas ao declínio da vida religiosa, desconsagração, perda de fé e adesão ao pensamento relativista; mas para os adventistas do sétimo dia, a característica mais determinante desse 18 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 11-35 fenômeno parece ser a conformidade com os padrões seculares, ou seja, uma adesão aos valores e práticas da sociedade contemporânea e não aos da comunidade de fé. Com certeza, a secularização é hoje a mais poderosa força que molda a história da humanidade em direção ao desenvolvimento de uma cultura universal e globalizada, ou seja, pessoas compartilhando a mesma forma de viver, com a mesma mentalidade e os mesmos interesses. (OOSTERWAL apud STENCEL, 1999, p. 37). É obvio que simplesmente o fato de todas as pessoas compartilharem uma visão de mundo não signifi caria uma ameaça à identidade cristã, já que a própria comissão evangélica já comandava “Ide por todo o mundo, pregai o evangelho a todas as criaturas”. O projeto globalizante do cristianismo é bem nítido nessa passagem, então o problema não é com o compartilhamento de uma mesma mentalidade, interesses e forma de viver, mas uma massifi cação das mentalidades, interesses e formas de viver diferentes ou contrárias daquelas apregoadas pelo cristianismo ou pela interpretação do relato bíblico de acordo com as diferentes denominações cristãs. Tendo em vista que formar mentalidades é a obra educativa por excelência, podemos afi rmar que existem aqui dois projetos educativos em competição, cada um deles moldado por cosmovisões bastante diferentes. Um deles tem a seu lado a cultura geral, o meio que nos envolve e nos assedia através das pessoas, dos meios de comunicações de massa, da maioria das instituições sociais, etc.; este é o projeto secularizador, que nasceu caracterizado pela descrença em relatos religiosos e cega confi ança nas conquistas da ciência e da tecnologia, o qual se torna hoje ainda mais complexo ao ser mesclado com um alegado relativismo epistemológico e moral pós-moderno. O outro projeto deve remar contra a corrente, pois visa a uma contrassocialização, ou seja, precisa resistir à pressão da cultura geral e muitas vezes contrapor a esta valores radicalmente diferentes, utilizando- CRIS S ANTANA , J ÉSSICA R ODRIGUES , WELLINGTON R ODRIGUES - O P REÇO DA ... 19 se para isso de mecanismos tais como a família, a igreja e colégios cristãos. Este é o projeto religioso da educação, o qual, para sobreviver, precisa manter e reproduzir a sua herança cristã. Veremos, agora, que na manutenção dessa herança cristã existem alguns componentes básicos que devem ser cultivados. Segundo Benne (2001) existem três componentes da tradição cristã que precisam ser mantidos publicamente relevantes, são eles: a visão, o ethos e as pessoas. Para Benne (2001) a visão consiste em um relato articulado que abarca todos os aspectos da vida, toda a realidade. Ela não alega ter todos os dados e informações necessários à vida neste mundo, mas provê um guarda-chuva de signifi cados sob o qual todos os dados, conhecimentos e informações são organizados, interpretados e criticados. Em outras palavras, a visão corresponde a um paradigma/cosmovisão, a uma lente intelectual que avalia toda a realidade. A fonte do relato cristão sobre o mundo é encontrada na Bíblia. É daqui que se retira a origem e o destino do mundo, a natureza e a história do surgimento da raça humana, seu destino e signifi cado na vida, a necessidade de salvação e de conhecer sobre o originador de todas as coisas. Esse relato ou a interpretação dele também provê um modelo de como fé e razão podem ser relacionadas, e esta é a grande tradição intelectual do cristianismo que está sendo descaracterizada pelo processo secularizador, ou seja, ao separar a esfera religiosa da secular também se separa fé e conhecimento. A infl uência da fi losofi a empírica se revela nesse aspecto, pois de acordo com essa abordagem todo conhecimento real chega através dos sentidos e da experiência verifi cável, portanto utilizar a revelação bíblica como fonte de conhecimento sobre o mundo é considerado um absurdo e apesar do pensamento pós-moderno valorizar as fontes não-científi cas do conhecimento, o mundo da ciência (o qual é também o mundo das universidades) considera que o conhecimento 20 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 11-35 científi co não deve ser contaminado pelo vírus da fé. No entanto, a herança cristã não é só teórica, ela precisa ser corporifi cada em um modo de vida, ou ethos, o qual se caracteriza pelas práticas da comunidade religiosa, tais como: o culto público, leitura da Bíblia, oração, ou seja, todos os atos realizados em resposta à ação de Deus registrados no relato bíblico. No caso adventista, merece, destaque o momento do rito da santa ceia, onde é relembrado o exemplo da humildade de Cristo. No âmbito do colégio, a noção de chamado e vocação é central, ou seja, a noção de que os humanos são chamados por Deus para exercitar seus dons em benefício da humanidade. E esse é um dos principais motivos da existência de escolas cristãs: preparar pastores, administradores, enfermeiros, educadores e outros líderes para levarem avante os ideais e manterem a chama da herança cristã acesa. O ethos também abarca todos os padrões de ação moral, tais como: o comportamento sexual, casamento, vestimentas, cuidados com o corpo e tudo o que tem a ver com comportamento. Esses padrões tradicionais cultivados no seio das instituições denominacionais encontram-se na linha de frente de modifi cações indesejáveis proporcionadas pelo fenômeno da secularização. O terceiro componente da herança cristã é aquele através do qual a visão e o ethos são vividos, isto é, as pessoas . Para Benne (2001), sem o comprometimento das pessoas, uma tradição religiosa não passa de um artefato histórico. Todos esses três componentes da tradição religiosa devem ser publicamente relevantes na vida das faculdades e universidades a fi m de elas serem genuinamente cristãs. A visão deve ser relevante na vida intelectual fornecendo uma guia e uma justifi cativa teórica para o ethos. O ethos da tradição deve de alguma maneira ser uma condição relevante e afetar a vida da faculdade ou universidade. E pessoas que levem a visão e o ethos devem participar infl uentemente na vida da escola. É realmente possível para aqueles que não são participantes na tradição conhecê-la, respeitá-la, e até mesmo mais do que isso, mas CRIS S ANTANA , J ÉSSICA R ODRIGUES , WELLINGTON R ODRIGUES - O P REÇO DA ... 21 parece bastante improvável que eles possam corporifi cá-la do modo como participantes comprometidos o façam. Benne (2001, p. 8). Os principais estudos sobre o processo de secularização no setor educacional apontam que esses componentes da tradição cristã, a visão, o ethos e as pessoas perderam ou estão gradualmente perdendo sua relevância no dia a dia das universidades confessionais. Neste trabalho, procuraremos utilizar esses três componentes para discutir a realidade do processo de secularização no ambiente das Faculdades Adventistas.

M ETODOLOGIA

Este trabalho utiliza uma abordagem qualitativa, a qual se carateriza “pelo fato de não empregar dados estatísticos como centro do processo de análise de um problema.” Oliveira (2001, p. 116). Esta abordagem possibilita a obtenção de dados mediante um contato direto e interativo do pesquisador com os objetos de estudo. Nesta abordagem, é frequente que o pesquisador busque compreender os fenômenos segundo as perspectivas dos participantes da situação estudada e, a partir daí, situa sua interpretação fazendo o cotejamento com a teoria. O tipo de pesquisa utilizada foi primeiramente a bibliográfi ca, pois precisamos nos informar sobre a situação atual do tema abordado através de trabalhos já realizados sobre o tema, o que nos permitiu também estabelecer um marco teórico inicial para a análise do problema. Gil (2006). Em seguida, procedemos a uma pesquisa de campo, na qual o investigador “assume o papel de observador e explorado, coletando diretamente os dados, no local (campo) em que se deram ou surgiram os fenômenos.” Barros e Lehfeld (1990, p. 35). Como não estávamos interessados em produzir dados estatísticos mas sim obter as percepções dos sujeitos sobre o conceito de secularização, selecionamos os três sujeitos de forma que cada um deles representasse atores-chave no cotidiano das Faculdades Adventistas da Bahia: um 22 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 11-35 aluno, um professor e um pastor de forma não aleatória. O principal instrumento de coleta de dados utilizado foram entrevistas semiestruturadas, versando sobre o conceito, características, causas e solução para o processo de secularização. Em face da limitação de tempo e espaço para produzir o artigo, optamos por abordar especifi camente o tema do conceito de secularização conforme percebido pelos sujeitos. Utilizamos um gravador para o registro das entrevistas e em seguida as fi tas foram digitadas para possibilitar a análise das categorias. Para fi ns de apresentação das respostas às entrevistas, os sujeitos foram assim denominados: E1 (Pastor); E2 (Professor); E3 (Aluno). Os dados foram submetidos a uma análise de conteúdo, a qual procurou identifi car as principais categorias utilizadas para conceituar e descrever o processo da secularização nas práticas das faculdades e em seguida confrontados com o marco teórico. O resultado da análise pode ser visto a seguir.

RESULTADOS E D ISCUSSÃO

Para Benne (2001, p. viii), é impressionante que a maioria das próprias instituições pertencentes às denominações cristãs tais como orfanatos, hospitais, universidades, seminários e outras agências de serviço social estejam se secularizando gradualmente, o que para ele signifi ca a remoção gradual da infl uência e do controle religioso dos setores econômico, político, social e cultural. Precisamos compreender então qual o signifi cado que os principais envolvidos no sistema educacional adventista atribuem ao termo secularização. A cada um desses personagens, um pastor, um professor e um aluno, foi feita a seguinte pergunta: “Na sua perspectiva o que é secularização?” Pudemos perceber a partir da análise das respostas sobre o conceito, que elas se estruturavam através de uma dinâmica de Distanciamento/ CRIS S ANTANA , J ÉSSICA R ODRIGUES , WELLINGTON R ODRIGUES - O P REÇO DA ... 23 Aproximação de dois pólos principais: o pólo mundano/secularizado e o pólo divino/religioso. Apresentaremos, agora, o texto das entrevistas seguido de um quadro analítico onde procuramos estruturar os principais itens que caracterizaram as respostas. Quanto à pergunta sobre o conceito de secularização, o entrevistado E1 respondeu: Secularização é você se aproximar mais daquilo que é o que é corrente no seu século, das fi losofi as, dos pensamentos, da forma de viver, o estilo de vida, do que realmente, daquilo que como cristão você deveria viver e se aproximar que é de Deus, dos princípios de Deus, dos princípios bíblicos, então a secularização ela vai se aproximar daquilo que o mundo prega, daquilo que a mídia mostra como sendo verdade, como sendo o costumeiro, como sendo o padrão e se afastar dos padrões de Deus, da ética divina, dos princípios, dos princípios morais de Deus. (grifo acrescentado).

Áreas de Distanciamento/ Pólo Mundano Pólo Divino Aproximação Áreas Teóricas (Visão) Filosofi as Pensamentos

Áreas Práticas (Ethos) Mundo Forma de viver Deus Século Estilo de vida Divino Mídia Padrões Bíblia Princípios Ética Moral Ilustração 1: Quadro de categorias do entrevistado E1 (Pastor) sobre o conceito de secularização.

O entrevistado E1 inicia a defi nição de secularização com um relato de aproximação da pessoa aos pensamentos e fi losofi as mundanos. Essa perspectiva pode ser remontada até o início do Cristianismo quando Paulo advertiu: “Tendo cuidado para que ninguém vos faça presa sua, por meio de [fi losofi a]s e vãs sutilezas, segundo a tradição dos homens, segundo os rudimentos do mundo, e não segundo Cristo.” Cl 2.8. A herança cristã para ser viva precisa ser um relato compreensivo, 24 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 11-35 insuperável e central sobre todos os aspectos da vida. Nesse sentido, a Visão cristã implica uma elaboração teológica da identidade e missão da instituição, bem como uma maneira de estipular como será vista a relação entre fé e conhecimento na universidade, de justifi car o ethos da escola; tudo isso fundamentado na fonte da revelação bíblica. Benne (2001) afi rma que infelizmente esse tem sido o elo mais fraco da cadeia dos componentes da herança cristã, pois historicamente as instituições educacionais cristãs foram de certa forma se envergonhando de sua missão por demais “sectária” ou “denominacional”, de suas doutrinas muito peculiares e estranhas e foram gradualmente assumindo uma perspectiva mais genérica, enfatizando temas como “a paternidade de Deus e a irmandade do homem”, para nós isso soa quase como um “Deus ama a todos, somos todos irmãos”. Ou seja, a visão passou do especifi camente cristão para o geralmente cristão e depois para o geralmente humano. As implicações disso em relações ao Ethos, ou seja, no estilo de vida, foi a diminuição da ênfase em práticas especifi camente denominacionais e a busca da conformidade com os padrões alienígenas do mundo. Benne (2001) nos oferece como exemplo de secularização a questão da prática da frequência à capela. Na primeira fase, a capela era um evento público que defi nia o ritmo da vida na universidade, (no caso dos adventistas do sétimo dia, de um sábado), os mais importantes eventos públicos eram realizados lá. Depois, o conteúdo religioso da capela foi sendo cada vez mais misturado com apresentações seculares. A frequência à capela, que no início das instituições denominacionais era obrigatória, foi se transformando ao longo do tempo, tornando-se voluntária, e com isso sendo deslocada de sua função “pública”. Tornou-se um evento entre outros, ao qual as pessoas poderiam escolher ir ou não, ou seja, o tempo da capela não era mais um tempo “sagrado”, reservado, já que muitas outras atividades CRIS S ANTANA , J ÉSSICA R ODRIGUES , WELLINGTON R ODRIGUES - O P REÇO DA ... 25 concorriam com o período de tempo ocupado pela capela. Em muitas escolas, a frequência, à capela fi nalmente desapareceu como um evento semanal e somente sobrevive como um ornamento para importantes eventos no fi nal do semestre. No dizer próprio de Benne “Nestas práticas atenuadas da capela, a enorme estrutura religiosa [o prédio da igreja] que domina muitas paisagens acadêmicas, tornou-se uma irritante lembrança que as escolas abandonaram os propósitos e as práticas dos seus fundadores.” (2001, p. 11). Na perspectiva do entrevistado E3, não se pode negar que a secularização ocorra aqui no ambiente das Faculdades Adventistas da Bahia, no entanto para ele existem elementos ligados a essa questão da existência de um calendário litúrgico e frequência à capela que são importantes para a manutenção de espaços e tempos sagrados aqui no campus. [...] elementos que ainda compõe [...] a prática da vida religiosa aqui nas Faculdades Adventistas da Bahia, são, ah, o calendário que em diversas partes é regido não apenas, por feriados cívicos ou datas voltadas a questões acadêmicas, mas nós temos um calendário litúrgico, então em determinadas épocas do ano você tem atividades que são exclusivamente voltadas pra vida religiosa. Você tem semanas de ênfase espiritual, ah, diariamente você tem, é, uma prática pelos professores, mesmo os que não são é, que não professam a fé adventista participam do momento da, das meditações. [...] as capelas pra os internos, ah, o culto institucional, é, da sexta à noite, do sábado. Ah, a própria guarda do sábado como um, um, uma instituição de modo que todas as demais atividades paralelas cessam no, no momento da, dos cultos, pelo menos aos sábados é. A obrigatoriedade de presença nos cultos para os que são internos é, também é um fator interessante pra manutenção [...]. Para o entrevistado E2 a secularização é: [...] o distanciamento das questões religiosas em virtude da aproximação das coisas que são mundanas, das coisas que são do mundo, isso se dá, isso se deu, por exemplo, por conta da, da modernização, do capitalismo, da busca pelo, pelo conforto, as pessoas então se distanciaram das coisas que são divinas e se aproximaram mais das coisas que são humanas, das coisas que são é, que se chama secularismo que é do presente século, são coisas voltadas para os interesses do próprio ser humano. 26 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 11-35 Áreas de Distanciamento/ Pólo Mundano Pólo Divino Aproximação Mundano Humano Interesses Religioso Secularismo Divino Presente Século Causas Modernização Capitalismo Busca pelo Conforto Ilustração 2: Quadro de categorias do entrevistado E2 (Professor) sobre o conceito de secularização.

O entrevistado E2 adicionou novos elementos na nossa análise, apontando possíveis causas do processo de secularização. Podemos re- lacionar essas categorias entendendo que o advento da era moderna, in- dustrialização, ênfase no poder da ciência e da tecnologia, busca desen- freada pelo conforto material através da aquisição de bens de consumo, deslocou os interesses das pessoas do pólo divino para o pólo humano. Podemos perceber no quadro quase que o retrato histórico da passagem da idade média para a era moderna na qual o teocentrismo alimentado pela igreja católica foi gradualmente cedendo lugar ao antropocentrismo apoiado pela renascença e pela onda iluminista, gerando fi nalmente a au- tonomização entre a esfera pública e religiosa. No entanto, podemos recuar mais ainda no tempo e perceber que mesmo no início do cristianismo já existia uma tendência a fazer uma dicotomia entre a mensagem do evangelho (cultura cristã) e a cultura dominante na época (cultura greco-romana), e que um dos pontos cen- trais de diferença entre essas duas culturas é a relação do homem com os bens materiais, ou seja, o próprio originador do cristianismo já afi rmava: “Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de odiar a um e amar o outro, ou há de dedicar-se a um e desprezar o outro. Não podeis servir a Deus e às [riquezas].” Mt 6.24. A riqueza aqui é uma metáfora para o próprio mundo. A ideia é que os interesses materiais (pólo mundano) su- CRIS S ANTANA , J ÉSSICA R ODRIGUES , WELLINGTON R ODRIGUES - O P REÇO DA ... 27 focam os interesses espirituais (pólo divino). É o que parece querer dizer a parábola “E o que foi semeado entre os espinhos, este é o que ouve a palavra; mas os cuidados deste mundo e a sedução das [riquezas] sufo- cam a palavra, e ela fi ca infrutífera.” Mt 13.22. Nesse sentido, existem duas poderosas mensagens competindo pe- los corações e mentes das pessoas, cada uma baseada em profundos in- teresses e necessidades dos seres humanos. Pois se fôssemos considerar que os humanos são unicamente conduzidos pelas necessidades básicas materiais, não se encontraria fundamento lógico pelo qual explicar por que muitos preferem abrir mão de seus interesses materiais (doação de dízimos e ofertas, o tempo gasto nos cultos e práticas religiosas, dinheiro gasto na educação dos fi lhos em escolas particulares confessionais, etc) a se afastar da busca pelo espiritual. O entrevistado E3 nos respondeu: Bom, secularização [...] é voltar-se para o mundo né, e pode ser compreendido por um afastamento da sociedade ou de uma instituição, de um grupo daquilo que é a sua, a sua cosmovisão, é um afastamento daquilo que é a cosmovisão mais voltada pra religião e passa a ser então voltada pra as questões do mundo seria uma laicização de, da, duma cosmovisão né, a perda da, da função religiosa passando para a utilização qualquer de um crivo que não seja mais o religioso como o crivo que dirige essa cosmovisão. (grifo acrescentado).

Áreas de Distanciamento/ Pólo Mundano Pólo Divino Aproximação Sociedade Mundo Instituições Religião Grupos Conceitos

Cosmovisão Laicização Ilustração 3: Quadro de categorias do entrevistado E3 (Aluno) sobre o conceito de secularização.

Para E3, a secularização está associada a um movimento de mudança 28 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 11-35 de cosmovisões operado no seio da sociedade, instituições e grupos. Entende-se, geralmente, que a cosmovisão é um sistema fi losófi co que procura explicar como os fatos da realidade se relacionam e se ajustam um ao outro, ou seja, uma cosmovisão fornece uma estrutura interpretativa para entendermos e explicarmos os fatos de nossa experiência. Geisler e Bocchino (2001, p. 47). Benne (2001) afi rma que a Visão enquanto componente da tradição cristã oferece um paradigma pelo qual os dados e conhecimentos são organizados, interpretados e criticados. Nesse sentido, cosmovisão, paradigma e visão se equivalem, são esses elementos que moldam o ethos, o estilo de vida das pessoas aderentes a uma dada tradição religiosa. Segundo Benne (2001) a Visão contém uma teoria sobre como revelação e razão estão relacionadas, ou seja, no ambiente específi co de uma instituição educacional de ensino superior, ela defi ne como fé e conhecimento científi co serão abordados na sala de aula. Existem algumas opções de como ciência e religião podem ser relacionadas, Barbour (2004) apresenta quatro tipos de relações entre essas esferas: Confl ito, Independência, Diálogo e Integração. Uma universidade cristã deve fazer uma opção consciente por uma abordagem coerente com sua cosmovisão cristã. Enquanto o processo secularizador apontar idealmente para uma abordagem de Independência, também chamada de abordagem das duas esferas, a qual afi rma que fé e ciência pertencem a reinos diferentes (diferenças de objetos e de metodologias) e portanto não deveriam ser artifi calmente ligadas, podemos constatar que a grande maioria da comunidade científi ca e acadêmica assume uma postura mais combativa (Confl ito), criticando qualquer tentativa de mesclar conhecimento científi co (objetivo, público, sujeito a crítica) com o conhecimento religioso (subjetivo, particular, dogmático). No caso das Faculdades Adventistas, uma cosmovisão teísta fundamentada na revelação bíblica fez com se optasse por uma abordagem CRIS S ANTANA , J ÉSSICA R ODRIGUES , WELLINGTON R ODRIGUES - O P REÇO DA ... 29 de integração denominada de Integração Fé e Ensino, o qual consiste em Um processo deliberativo e sistemático de aproximação da atividade educacional a uma perspectiva bíblica. Seu alvo é assegurar que o aluno sob a infl uência de professores cristãos deixe a escola já com os valores bíblicos internalizados, que saiam com uma visão de conhecimento, vida e destino cristocêntrica, orientada ao serviço e direcionada ao Reino. Rasi (1999, p. 6) O entrevistado E3 também relaciona secularização com laicização. Frequentemente encontramos esses conceitos entrelaçados, no entanto, para Júnior (2008), os conceitos de secularização e laicização expressam realidades sociais diferentes. A expressão laicidade deriva do termo laico, leigo. Etimologicamente laico se origina do grego primitivo laós, que signifi ca povo ou gente do povo. De Laos deriva a palavra grega laikós de onde surgiu o termo latino laicus. Os termos laico, leigo exprimem uma oposição ao religioso, àquilo que é clerical (CATROGA, 2006 apud JÚNIOR, 2008, p. 63). Para Júnior (2008), a laicidade é antes de tudo um fenômeno político e não um problema religioso. Ela deriva do Estado e não da religião. Pode ser compreendida como a exclusão ou ausência da religião da esfera pública e implica uma neutralidade do Estado em matéria religiosa. Segundo Bréchon (1995), o termo laicidade nasceu com um caráter combativo no contexto das lutas políticas do liberalismo contra a ingerência da igreja em assuntos do Estado. No entanto, hoje ele tende a uma posição de tolerância. Trata-se de uma ideologia, portadora de mobilização, caracterizada pela defesa dos valores da República e de uma luta contra todos os obscurantismos religiosos, notadamente no sistema escolar. Esta versão militante de laicidade, forjada nos combates políticos da metade do século XIX e da metade do século XX, não é a única. A ideologia laica se reduz hoje a uma atitude de tolerância, de abertura a todas as posições fi losófi cas e religiosas, ou por um simples silêncio que impõe nas aulas a ensinamentos concernentes a opções religiosos ou políticas, de maneira a não infl uenciar as crianças (BRÉCHON, 1995 apud JÚNIOR, 2008, p. 65). Apesar do processo de laicização enfatizar a neutralidade, este é 30 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 11-35 um ideal nunca concretizado, visto que “historicamente, concretamente, a laicidade jamais se expressa como uma mera neutralidade, pois se revela também como uma visão de mundo, um conjunto de crenças.” Júnior (2008, p. 67). Ora, já sabemos que uma visão de mundo, ou cosmovisão nunca é neutra, visto que as ideias têm consequências, que as crenças moldam as práticas da sociedade, das instituições e dos grupos. Existem, portanto, diferenças entre esses dois conceitos, pois é perfeitamente possível que um Estado seja secularizado mas não laico ou seja laico mas não secularizado, conforme nos explica Júnior (2008, p. 68), baseando-se na obra de Catroga (2006): [...] observam-se em diversos países europeus, sociedades altamente secularizadas como a Inglaterra e a Dinamarca, onde as práticas, os comportamentos religiosos declinam, mas que, entretanto não são Estados laicos. O historiador português ainda aponta para a existência de uma semi-laicidade em países como Alemanha, Bélgica e Holanda, que são Estados não confessionais, mas que apóiam e subsidiam as religiões, e uma quase laicidade em países como Portugal, Espanha e Itália. Nestes países o Estado é laico juridicamente, mas celebrou diversos tratados concordatários que acabaram por privilegiar o grupo religioso majoritário. Estas últimas são sociedades altamente religiosas, portanto não secularizadas, porém o Estado, do ponto de vista jurídico e constitucional é laico. Podemos perceber portanto que enquanto o conceito de laicização está mais restrito ao âmbito político, a secularização perpassa todos os aspectos da vida social. No entanto, uma arena privilegiada das lutas entre laicização, secularização e religiosidade é encontrada nas instituições educacionais. “[...] o processo laicizador afi rmar-se á, prioritariamente, no terreno da educação e do ensino, sinal inequívoco de que se ele visava separar as Igrejas da Escola e do Estado, também o fazia para socializar e interiorizar idéias, valores e expectativas.” Catroga (2006, p. 265) apud Júnior (2008, p. 67). O sistema educativo foi um dos principais locais das lutas simbólicas entre os poderes políticos emergentes e a igreja católica, a qual nunca aceitou o processo de secularização e de laicização, visto que para ela CRIS S ANTANA , J ÉSSICA R ODRIGUES , WELLINGTON R ODRIGUES - O P REÇO DA ... 31 isso representava perda de prestígio e de poder. Relacionando esses conceitos com o contexto adventista, podemos afi rmar que a separação igreja-estado contida no conceito de laicização é plenamente aceita e bem-vinda já que representa também a liberdade de culto e de expressão religiosa conquistada ao preço de sangue, durante a reforma protestante do século XVI. O conceito de liberdade de consciência e de independência entre política e religião é até mesmo pregado e defendido nos escritos da organização fazendo até mesmo parte da cosmovisão adventista. Não se pode dizer o mesmo quanto ao conceito de secularização, interpretado como um perigo à manutenção da herança cristã e um risco à identidade da organização, visto que a mesma pode ser dissolvida no grande caldo comum da cultura de massa. A própria existência de sistemas educativos particulares e confessionais foi pensada como uma arma contra o mundo secularizado, isso é bem evidente em um item chamado de “Perigos da Educação Mundana” da obra Conselhos aos Pais, Professores e Estudantes da escritora e líder espiritual dos adventistas do sétimo dia, Ellen G. White. Os que procuram a educação que o mundo tem em tão alta estima são gradualmente levados para mais longe dos princípios da verdade, até que se tornam mundanos educados. Por que preço adquiriram sua educação! Separaram-se do Espírito Santo de Deus. Preferiram aceitar o que o mundo chama saber, em lugar das verdades que Deus confi ou aos homens mediante Seus ministros, apóstolos e profetas. White (2007, p. 16). Essa negação do “mundo” permitiu que grandes somas de dinheiro, esforços e tempo fossem despendidos na estruturação de um sistema educativo que hoje se encontra entre os maiores do mundo e demonstra um crescimento rápido e constante até mesmo entre os não adventistas. O perigo da secularização mesmo nas instituições educacionais já era um problema no início do movimento adventista. Ellen G. White faz uma advertência especial sobre a infl uência dos métodos e conteúdos 32 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 11-35 mundanos sobre o sistema educacional adventista, enfatizando a Bíblia como fonte do padrão e dos conteúdos a serem seguidos. E alguns há que, tendo adquirido essa educação mundana, julgam que a possam introduzir em nossas escolas. Há o perigo constante de que aqueles que trabalham em nossas escolas e hospitais alimentem a idéia de que devem acompanhar o mundo, estudar as coisas que o mundo estuda, e familiarizar-se com o que o mundo se familiariza. Cometeremos graves erros se não dermos atenção especial à pesquisa da Palavra. A Bíblia não deveria ser trazida às nossas escolas para ser tolhida entre a incredulidade. A Palavra de Deus deve ser a obra fundamental e o assunto da educação. White (2007, p. 16) Exaltar a Bíblia e sua mensagem é realmente nadar contra a corrente, pois para indivíduos incrédulos, indiferentes à religião e até mesmo alguns religiosos, a mensagem bíblica é datada, bairrista e passível de preconceito, ou seja, totalmente inadequada para um mundo que se gaba de sua tolerância relativista. Acreditamos, no entanto, que todos vivem pela fé, tanto o justo como o injusto, o bárbaro e o judeu, o cientista e o teólogo, pois rejeitar um dado sistema de crenças é igualmente abraçar outro sistema de crenças, seja ele baseado em evidências ou não. Uma vez que a fi losofi a e a sociologia da ciência nos mostram que os dados não falam por si mesmos, o compromisso com uma determinada cosmovisão é que dá sentido aos dados da experiência, e esse compromisso é anterior à experiência. A universidade cristã precisa aceitar o duplo desafi o de não se encerrar em seus muros, mas também de não permitir que concepções alienígenas ditem a sua agenda. Não é uma tarefa simples compreender Darwin, Marx e Jesus, mas por outro lado é impensável que em um ambiente acadêmico não se possa fazê-lo!

CONSIDERAÇÕES F INAIS

Grandes questões emergem dessas discussões, e uma das principais é entender como uma instituição que visa preparar jovens também para o mercado de trabalho, para serem úteis numa sociedade amplamente CRIS S ANTANA , J ÉSSICA R ODRIGUES , WELLINGTON R ODRIGUES - O P REÇO DA ... 33 secularizada vai conseguir manter o equilíbrio entre a excelência acadêmica e a missão evangélica! Para muitos, mesmo entre educadores adventistas, essa questão acaba em um beco sem saída, pois parecem entender que a resposta já esteja escrita na própria história de Harvard, e de Yale, de Princeton, ou seja, que o único caminho para a qualidade acadêmica é o da secularização! No entanto, A verdadeira educação signifi ca mais do que avançar em certo curso de estudos. É muito mais do que a preparação para a vida presente. Visa o ser todo, e todo o período da existência possível ao homem. É o desenvolvimento harmônico das faculdades físicas, intelectuais e espirituais. Prepara o estudante para a satisfação do serviço neste mundo, e para aquela alegria mais elevada por um mais dilatado serviço no mundo vindouro. White (2008, p. 13). Existe ainda a esperança de que conhecendo como esse processo da secularização opera, possamos estancá-lo ou até revertê-lo, fazendo com que a luz ressurja e brilhe novamente, lembrando que é unicamente através de pessoas comprometidas que se pode corporifi car um ethos cristão e que uma cosmovisão cristã precisa levar em conta o contexto histórico e social do mundo contemporâneo. É necessário, portanto, dialogar com o mundo, pois uma recusa em assim fazê-lo signifi ca uma petrifi cação/ engessamento da fé, o que torna a mensagem do evangelho inacessível às novas gerações. No entanto, diálogo não signifi ca comprometimento, isto é, uma negação da cosmovisão. Uma instituição de educação superior confessional deve conhecer, entender e criticar o conhecimento científi co e rearticular seus conceitos a partir do paradigma cristão. Talvez esse seja o grande desafi o e grande contribuição do cristianismo ao conhecimento sobre a realidade, uma visão não reducionista, não materialista do mundo. Dessa forma, a universidade pode ainda hoje ser um lugar que se possa chamar Peniel, pois “Jacó chamou ao lugar Peniel, dizendo: Porque tenho visto Deus [face a face], e a minha vida foi preservada.” Gn 32.30. 34 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 11-35 REFERÊNCIAS BARBOUR, G. Ian. Quando a ciência encontra a religião . Tradução Paulo Salles. São Paulo: Cultrix, 2004. BARROS, Aidil de J. P. de.; LEHFELD, Neide A. de Souza. Projeto de Pesquisa : propostas metodológicas. Petrópolis, RJ: Vozes, 1990. BENNE, Robert. Quality with soul: how six premier colleges and universities keep faith whit their religious traditions. Grand Rapids, Michigan: Wm. B. 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Tania M. L. Torres 1

RESUMO

Este é o segundo de uma série de três artigos que propõem que uma “cultura mística” bastante intensa de origem africana, como expressa na música afro-brasileira, está pouco a pouco subvertendo o elemento católico até hoje predominante no Brasil, assim se tornando um importante veículo para a expressão da religiosidade brasileira. Em seu primeiro artigo, publicado em 2004, a autora descreveu o sincretismo religioso brasileiro e o desenvolvimento da religiosidade afro-brasileira. Desta vez, mostrará como a música afro-brasileira se apropria de expressões do catolicismo para usá-las em seu próprio contexto. Finalmente, no último artigo, ela prestará atenção na forma como a espiritualidade afro-brasileira integra os santos católicos ao panteão dos deuses afro-brasileiros. PALAVRAS -CHAVE : Música Afro-brasileira. Sincretismo Reli- gioso. Catolicismo

ABSTRACT

This is the second article of a series of three articles that will argue that a rather intense “mystical culture” of African origin, as expressed in the lyrics of Afro-Brazilian songs, is little by little

1 Tania M. L. Torres é pós-graduada em Relações Raciais pela UFBA e tem Mes- trado em Estudos Latino-Americanos pela Universidade do Texas (EUA). Além disso, é professora de Educação, Cultura e Sociedade nos cursos de letras e história do Centro Universitário Adventista de São Paulo (UNASP). 38 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 37-52 subverting the Catholic element predominant thus far in Brazil, therefore becoming an important religious vehicle for Brazilian spirituality. In her fi rst article – published in 2004 –, the author described Brazilian religious syncretism and the development of Afro-Brazilian spirituality. This time, she will show how Afro- Brazilian music appropriates expressions from Catholicism, and uses them within its own framework. Finally, in the last article, she will pay attention to the way Afro-Brazilian spirituality integrates Catholics saints into the pantheon of Afro-Brazilian gods. KEYWORDS : Afro-Brazilian Music. Religious Syncretism. Ca- tholicism

Music is a natural means of expression that gives vent to Afro- Brazilian spirituality. Early in Brazil history music played an important role as a means to bring consolation to the colonist who was often distant from his immediate relatives in Portugal and to the slaves bereft of their fatherland. 2 This comforting feature of early colonial music was the result of the interplay of Roman Catholic liturgy and African drums. Mario de Andrade appraised the music of the Jesuits in Brazil, and came to the conclusion that it was because of that music’s soothing effect that it was possible for the colony to do without a police force for so long. 3

AFRO -B RAZILIAN M USIC AND B RAZILIAN S PIRITUALITY

Brazil was from the very beginning a country with too little

2 Cf. VASCONCELOS, Ary. Raízes da música popular brasileira: 1500-1889. São Paulo, SP: Martins, 1977. p.3. Music must also have represented an important com- ponent of Indian culture in Brazil, but, as Neves puts it (p. 13), little is known of Indian music during colonial times. One of the factors that can explain its lack of infl uence upon Brazilian musicality is the nomadic character of Brazilian Indians who, at the time of the discovery, were far less advanced than the Indians of the Andes. 3 ANDRADE, Mario de. Evolución social de la música brasileña. in: GÓMEZ, Zoila García (ed.). Musicologia em latinoamerica. La Habana: Arte y Literatura, 1985. p.141. TANIA M. L. T ORRES - A FRO -B RAZILIAN M USIC AND THE E XPRESSION ... 39 bread and too much circus. And from the very beginning African music was an essential component of the incipient Brazilian musicality. Spiritually and materially were both present in every attempt to produce a Brazilian popular music. 4 At least 25 instruments from Africa are used in mainstream Brazilian music: the atabaque , the adufe , the berimbau , the agogó or agogô , the carimbó , the caxambu , the cucumbi , the chocalho , the fungador , the ganzá or canzá , the gongom , the mulungu , the marimba , the puíta or cuíca , the piano de cuia (also known as balofon in Africa), the pandeiro , the quissangue , the roncador , the pererenga , the socador , the tambor or tambu , the ubatá , the vuvu or vu , the xequerê or xeguedê , and the triângulo .5 There are several personae involved in the context of music making in an Afro-Brazilian religion such as Bahian candomblé , for instance. 6 The cult leader (whether a man: the babalorixá or pai-de-santo , or a woman: the ialorixá or mãe-de-santo ) seems to be the major repository of musical repertories. The master drummer (the alabê ) contributes substantially to the appearance of the trance phenomenon by means of his drumming. The associate leader (the iakekerê and the babakekerê , little mother and little father, respectively), among other functions, has the responsibility of leading and teaching the special canticles of each daily activity, and acts as the organizer of the choral response to the singing. Finally, the initiates 4 For a detailed description of how black music infl uenced the techniques of Bra- zilian music in general, see ALVARENGA, Oneyda. Música popular brasileira . Porto Alegre: Globo, 1950. p.23-4. 5 Cf. GALLET, Luciano. Estudos de folclore. : Carlos Wehrs & Cia., 1934. p. 59. 6 Béhage discusses the most important contexts for musical performance in can- domblé : the “baptism” of drums (that takes place shortly after a new drum has been constructed), the saída de iaôs (the fi rst public appearance of the new initiates), the orunkó (the new-name giving ceremony), the quitanda das iaôs (a rite of transition of the initiates from the sacred to the secular world), the água de Oxalá (a purifi cation rite), the pilão de Oxalá (a communion rite), the axexê (a funeral ceremony), the ogan and alabês (confi rmation rites), and, fi nally, the xirê ceremony (the most generalized public ritual, open to all – even tourists). BÉHAGE, Gerard. Patterns of Candomblé Music Performance: An Afro-Brazilian Religious Setting. in ______(ed.). Performance practice: ethnomusicological perspectives. Westport, Conn.: Greenwood, 1984. p. 228- 49. 40 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 37-52 (iaôs or adoxus ) represent the chief protagonists in most performance contexts. In Brazil, African rituals were more resilient to change than myths. The constraints of the movements of the human body worked as change-limiting factors to rituals. But there were no such limitations for myths, and that made them especially susceptible to change. So, African mythology in Brazil is present mainly in the collective memory of babalaôs , babalorixás and fi lhas-de-santo through their dance movements. In fact, African myths have practically disappeared in Brazil. Bastide enumerates the following reasons for their disappearance: (1) those myths refl ected the structure of African society, but such structure was destroyed by means of enslavement; (2) a reinterpretation of archaic customs has happened in Brazil; (3) the “impoverishment” of African myths was not due to psychological forgetfulness but to the lack of reference points with which to connect their recollection. There has been, however, one single important venue for the preservation of African mythology in Brazil: Afro-Brazilian music. Music has become a depository for expressions and stories derived from ritualistic contexts. Afro-Brazilian music has bloomed and fl ourished in the State of Bahia, in Northeast Brazil. Salvador City, the capital of Bahia, is “the largest black city outside of Africa, and the second largest in the world.” 7 Ninety percent of its more than three million inhabitants are black or mulatto. This feature is well captured in the song “Pega que oh...!” by Rudnei Monteiro and Edmundo Carôso: Bahia, seu coração é todo cor , “Bahia, you’ve got a colored heart.” 8 In fact, Bahia is also a leading market for the Brazilian musical 7 DANTAS, Marcelo. Olodum: de bloco afro a holding cultural. Salvador: Casa de Jorge Amado, 1994. p. 21. 8 For a comprehensive analysis of Salvador’s ethnicity and the cultural mobili- zation of black people in the capital of Bahia, see MORALES, Anamaria. Etnicidade e mobilização cultural negra em salvador. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 1990. See also SANSONE, Livio. Negritude sem Etnicidade. Salvador: EDUFBA, 2004. TANIA M. L. T ORRES - A FRO -B RAZILIAN M USIC AND THE E XPRESSION ... 41 industry, surpassing most other states in music production. This explains why I have chosen to focus on Axé Music , a modality of Afro-Brazilian music mainly cultivated in Bahia. 9 This by no means indicates that African spirituality has no bearing upon the music of other Brazilian states but that it is more easily detected in the music of Bahia. In fact, specialists acknowledge the infl uence of Afro-Brazilian music upon other Brazilian rhythms. McGowan and Pessanha say that “vibrant Afro- Brazilian rhythms energize most Brazilian songs, from samba to baião .” 10 Afro-Brazilian music refl ects the infl uence of the expansion of African spirituality in Brazil. In order to verify how strong this infl uence is in the lyrics of such music, I have selected and examined 27 songs performed by Afro-Brazilian groups and individual artists from Bahia. I selected those 27 songs by browsing the Internet and randomly choosing songs performed by four renowned Axé groups and two individual artists: Olodum, , Timbalada, , Ara Ketu, and Muzenza. Olodum is the most well known and commercially successful of the Afro-Brazilian groups. 11 Several thousand members compose this group, which is headquartered in the Pelourinho, the former site of slave auctions and whippings. Carlinhos Brown is the escalating Bahian songwriter and singer who blended Brazilian Pop Music and Rio Samba with Axé Music and Funk. In fact, Sergio Mendes won a Grammy Award in 1992 with the Brasileiro that includes mostly lyrics that Carlinhos Brown wrote. Timbalada, whose debut album was released in 1993, is an important Axé group that numbers a few hundred musicians. Daniela Mercury is

9 Axé Music is the name for and other recent Afro-Brazilian styles performed by Olodum, Carlinhos Brown, Timbalada, Daniela Mercury, Ara Ketu, Luiz Caldas, and Margareth Menezes, among others. 10 MCGOWAN, Chris; PESSANHA, Ricardo. The brazilian sound: samba, bossa nova and the popular music of Brazil. Philadelphia: Temple University Press, 1998. p. 4. 11 The name of the band derives from Olodumare , the Yoruba supreme deity. For additional information concerning the band, see Dantas. 42 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 37-52 a kinetic performer with a sensual poise and a lively magnetism. She was responsible for taking the national popularity of samba-reggae to a new level. Ara Ketu is an Axé group that celebrates the Yoruba concepts that Afro-Brazilian spirituality values. Muzenza is a very important group because of its associations with the black people from other parts of Latin America. It has a special affi nity with Jamaica. In fact, it uses the green, yellow, and black colors of that country’s fl ag as its particular insignia (those colors roughly coincide with the colors of the Brazilian fl ag). Words of religious connotation present in the different lyrics provide the main criteria for grouping the songs. So, I was able to group the songs in four categories. Group One includes two songs that make use of no words with a religious overtone: “ À primeira vista” ( At First Sight ) and “Todo canto alegre” ( Every Happy Song ). Group Two includes nine songs that refer to Afro-Brazilian elements exclusively: “Carimbolada soul” ( A Soul With Sundry Faces ), “Doce esperança” ( Sweet Hope ), “” ( The City Anthem ), “O mais belo dos belos” ( The Prettiest of the Prettiest ), “Pega que oh!…” ( You Touch It and Oh!… ), “Rosa negra” (Black Rose ), “” ( Color Swing ), “Tá na mulher” ( It’s in a Woman ), and “Toque do timbaleiro” ( A Drummer’s Beat ). Group Three consists of eight songs that contain words somehow related to Catholicism, and that cannot be applied to Afro-Brazilian religion: “Alegria geral” (Everybody’s Happiness ), “Elétrica” ( Electric ), “I Miss Her,” “Lua de São Jorge” ( Saint George’s Moon ), “Rosa” ( Rose ), “Toda menina baiana” (Every Girl from Bahia ), “Vida rudimentar” ( The Bare Necessities of Life ), and “Zona solidão” ( Loneliness Zone ). Finally, Group Forth is comprised of eight songs whose lyrics refer to both Catholicism and Afro-Brazilian spirituality: “Camafeu” ( Cameo ), “Choveu sorvete” ( Ice-cream Rain ), “Convênio com Cristo” ( Covenant with Christ ), “Espada de Xangô” (Xangô’s Sword ), “Se você for” ( If You Go Away ), “Som dos tribais” (Tribal Sounds ), “U-Maracá,” and “Vida ligeira” ( Life Is So Short ). In TANIA M. L. T ORRES - A FRO -B RAZILIAN M USIC AND THE E XPRESSION ... 43 summary, two songs make no reference to religious elements; nine songs include expressions utilized in Afro-Brazilian rituals or common religious practices; eight employ words connected with Catholic practices; and eight others include expressions used by both religions. Our corpus reveals two important aspects of these songs. First, there is a striking balance concerning the references that the 27 songs make to both cults. That is, the same number of songs made at least one reference to either Catholicism or Afro-Brazilian cults, or to both Catholicism and Afro-Brazilian spirituality. And that is – by its own merits – quite surprising since the vast majority of Brazilians profess Catholicism and only a small minority openly identify themselves as practitioners of Afro- Brazilian religions. But as we shall see later, the contexts in which the two different jargons are used is indicative of a much stronger African infl uence. Despite this apparent balance, the corpus suggests that there is a predominance of the African element. In the 27 songs I found 39 reli- gious expressions covering a broad scope. The percentage of references in the selected corpus to each one of the two religions is as follows: 13 references to Catholic expressions, representing 33.3% of the total; and 26 references to African Cults, representing 66.6% of the total number of references. The 26 words that refer to Afro-Brazilian spirituality are, alphabetically: afoxé (a candomblé party-offering), arerê (invocation of an orixá; literally, “o hear me”), axé (divine power), Borocô (one of Nanã’s names), candomblé (primitive type of umbanda ), emba (spell), Iansã (one of Xangô’s wives, the goddess of the thunderstorms), Ijexá (African tribe), ilê (a meeting place for candomblé practices), mãe- de-santo (high priestess; literally, a saint’s mother ), mandinga (spell), muzenza ( priestess), Nanã ( the mother of all orixás ), Obá (wife least loved by Xangô), Ogum (the god of war), ojuobá (Xangô’s priest), 44 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 37-52 Olorum ( supreme god), oraieiê (greeting to Oxum), orixá s ( intermediary gods), Oromilá (the creator god), Oxalá (the governing god, Olorum’s son), Oxóssi (god of the chase and Ogun’s brother), Oxum (Xangô’s beloved wife, the goddess of the rivers), ronda (line to prevent the evil spirits to come down upon a medium), Xangô (the god of thunderstorms and Oxalá’s son), and Zambi (supreme god). The 13 expressions related to Catholicism are, alphabetically: bênção (blessing), Cristo (Christ), Deus (God), fé (faith), irmã (nun), missa (mass), oração (prayer) padre (a Catholic priest; literally, “a father”), Santa Bárbara (Catholic equivalent to Iansã), santo (saint), São Jerônimo (Catholic equivalent to Ogum), São Jorge (Catholic equivalent to Oxóssi), Senhor (Lord) . It is possible to arrange these references in a certain structure, despite their heterogeneity. Words that denote deities and supernatural entities occur 20 times. Words that describe divine attributes and their manifestation occur twice. Expressions that refer to liturgy and rituals (including sacred places, ceremonies and offi ciating ministers, such as mãe de santo , padre and irmã ) occur 14 times. Phrases addressed to the deities occur twice: arerê and oraieiê . One only expression that depicts the condition or the sentiment of the worshipper occurs: fé , “faith.” If we take into consideration that the corpus surveyed includes mostly Catholic words of common use – that is, words that belong to the Portuguese lexicon and might be used with no connection at all to Ca- tholicism, such as “faith,” “prayer,” “sister” and “god” – and that most of the African words in the corpus have no other purpose in the language but to refer to Afro-Brazilian rituals, we can begin to appreciate the power of umbanda in Brazilian everyday life. The contexts in which Catholic expressions appear in Afro- Brazilian songs betray the fact that their connection to Catholicism has been weakened and they are no more a genuine property of Brazilian TANIA M. L. T ORRES - A FRO -B RAZILIAN M USIC AND THE E XPRESSION ... 45 catholicity. A few considerations will suffi ce to prove this statement. In the fi rst place, Afro-Brazilian songwriters appropriate some common expressions utilized by Catholics and consistently utilize them with Afro- Brazilian cults ( candomblé and its modalities). Secondly, the saints that the Church has canonized are merely a smoke screen that but superfi cially conceals Afro-Brazilian deities. The Catholic saints worked as a façade for the African gods, as it will become more evident from my discussion in the third article of this series. This is due to a few similarities between them, which have been emphasized by Afro-Brazilian spiritualists. The orixás were seen as guardian angels or patron saints. Besides, both orixás and saints are said to have once lived on earth, and both orixás and saints are said to have sought an intimate connection with the deity. In fact, one can say that Afro-Brazilian mysticism disguises as an imitation of sacred history.

AFRO -B RAZILIAN M USIC AND THE A PPROPRIATION OF C ATHOLIC NOMENCLATURE

The appropriation of ordinary Catholic nomenclature by Afro- Brazilian songwriters is evident by the consistent usage they make of expressions such as “faith,” “prayer,” and “blessing” and by the way these musicians apply them to Afro-Brazilian cultic circumstances. The word “faith,” formerly employed by Catholics to describe their confi dence in God, is now also used to describe their trust in the African gods, to the point that whenever the religion is not specifi ed, it refers to the faith in the African gods and not faith in the Catholic God. This is the case, for instance, when the word fé (“faith”) appears in “Se você for:”

Vou falar com Zambi I will address Zambi Abraçando a fé I will embrace the faith Já gritei na praça I’ve shouted on the streets Que te amo That I love you 46 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 37-52 Oh rainha linda O my beautiful queen

In the song, the young lover pleads with his beloved so she can stay. He says that if she leaves him, his heart will not bear it. Carnival has just arrived and it is no time for him to be alone. He then makes a religious vow: he will become a convert if his god Zambi will make her stay. It is evident that the word “faith” is not used here with any Christian connotation. It explicitly refers to the faith in the African gods. The occurrence of fé in the song “O canto da cidade” represents additional evidence that, in Bahia, the word is primarily applied to Afro- Brazilian spirituality:

A cor dessa cidade sou eu I am the color of this city O canto dessa cidade é meu The song of this city is mine O gueto, a rua, a fé The ghetto, the street, the faith Eu vou andando a pé I proceed on foot Pela cidade bonita Through the pretty city O toque do afoxé The afoxé is playing E a força, Where does this power de onde vem? come from? Ninguém explica No one knows Ela é bonita It [i.e., the city] is so pretty

Here, the composers connect the attractiveness of Salvador City to many elements: its singing, its people and its faith in the afoxé , the party- offering of the candomblé . Again, there is no reference at all to Catholic practices. The faith of the city is linked solely to the afoxé . Similarly, the song “Camafeu” shows fé against the background of Afro-Brazilian spirituality. Here, the interlocutor vigorously extends an invitation for a dance following the rhythm of the drums. He wants people to see him dancing and he expects them to join him. TANIA M. L. T ORRES - A FRO -B RAZILIAN M USIC AND THE E XPRESSION ... 47 Ai ai vem me ver (bis) Oh oh come see me (twice) Nesse bala fé In this faith-dance Nesse areré In this arerê Baila que baila... Come and dance… Toca timbau, vem parir Play the timbau, come give birth o som to sound Toca timbau no Koriefã Play the timbau in the Koriefã Toca timbau esse toque Play the timbau, this beat vem de longe comes from afar

The playful dancer sees his inventive ballet as an expression of faith. But this is no ordinary dance. It is an arerê , an invocation of the orixás (the in-between gods). Besides, the fact that the beat comes from afar reminds the invitee that it is not a homegrown festival; it is a dance that comes from across the Atlantic. In fact, none of the 27 songs examined in the corpus, uses faith in relation to a specifi c Catholic context. The word appears twice in a trivial context in which it only means trust in something. In “Vida ligeira” it is fé na estrada (“trust the road”), a word play on pé na estrada , the Brazilian idiom for “hit the road.” In “Som dos tribais,” even though fé refers to the confi dence one is supposed to have in the dexterity of a drum-player, it is reinforced by the word axé , a very important word in Afro-Brazilian spirituality that denotes the blessing granted by the gods upon their worshippers – a blend of power and serenity:

Sou timbaleiro I am a drum-player e bote fé and you can trust that Sou timbaleiro I am a drum-player e trago axé and I bring you axé

Therefore, one can say that the word “faith” in Afro-Brazilian music is primarily used to describe the religious confi dence of the people from Bahia in their ancient African gods. The same phenomenon happens when Afro-Brazilian songwriters 48 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 37-52 employ the word oração , “prayer.” It occurs only once in the corpus – in the lyrics of “U-Maracá,” but it is not a Christian prayer. It is a prayer to Oxalá , the governing god, and the son of the supreme deity: 12

Vem de lá a nau Thence comes the ship dos afl itos with the wretched ones Mandinga multiplicação A multiplicity of spells O negão da The strong Negro in the sensala slave quarters, Pisar pisador de pilão A pestle’s pounding stompings Bagaço de cana oração Cane husks, and a prayer Pra Oxalá ê, ê, ê To Oxalá eh, eh, eh

It is obviously a song that describes the slave traffi c to Brazil and therefore it is not altogether surprising that the word appears in an African context. However, it is nonetheless a “pagan” prayer. In fact, we should not expect references to Christian prayers in Afro-Brazilian songs. Similarly, the word bênção is used in a context that has more associations with Afro-Brazilian spirituality than with Catholicism. Bênção occurs in “Alegria geral,” a spirited tribute to Olodum, Brazil’s most famous and celebrated Afro-Brazilian group. The song begins with a description of the ingenuity of the band: Olodum tá hippie, Olodum is hippie, O Olodum tá pop Olodum is pop Olodum tá reggae, Olodum is reggae, O Olodum tá rock (bis) Olodum is rock (twice) Olodum pirou de vez Olodum is completely crazy

The short introductory eulogy is then followed by references to the two times – every week – when the group plays in Pelourinho , the place where the old whipping-post was located and which has now come to represent the city’s African inheritance itself. Olodum is

12 Oxalá is the Afro-Brazilian equivalent to Christ. Cf. RIBEIRO, José. Mágico mundo dos orixás. Rio de Janeiro: Pallas, 1988. p. 81. TANIA M. L. T ORRES - A FRO -B RAZILIAN M USIC AND THE E XPRESSION ... 49 mainly a percussion group and its drum-players rehearse twice a week in Pelourinho thus attracting many local spectators as well as tourists. 13 The Tuesday rehearsal coincides with what is known as the bênção do Senhor (“the Lord’s blessing”), a mixture of capoeira ,14 samba and Afro- Brazilian religious ceremonies:

Todos os domingos e Every Sunday and terças-feiras tuesday Tem samba de roda e We’ve got samba and capoeira capoeira Domingo tem Olodum On Sunday, Olodum is no Pelô in Pelourinho Na terça On Tuesday, Tem a bênção do We’ve got the “bênção do Senhor Senhor” Pelourinho se tranforma There is Carnival in Pelourinho em Carnaval Nesse momento, At that moment, alegria é geral everyone is happy

For the Afro-Brazilian mind-set, the days of the week are important because they mark the sovereignty of the different orixás .15 In Bahia, individual orixás are worshiped on the day ascribed to each deity: Oxalá , on Sunday; Bara , on Monday; Xangô , on Tuesday;

13 Here is a description of one of Olodum’s performances at Pelourinho: “The surdo players begin to generate a solid beat and the caixas add a constant pattern of higher-pitched sixteen notes, accenting the back beats. The repique kicks in a reggae cadence, other instruments like the African kalimba (thumb-piano) join in, and rhythms build and interact. The music is mesmerizing, as samba meets reggae and creates a heavy, dense, ritualistic sound. Women start to dance spontaneously in large groups and athletic young men practice capoeira, throwing spinning kicks to the beat… The thou- sands in the audience are carried off into a state of euphoria by the music and dancing.” McGowan & Pessanha, p. 128. 14 “Afro-Brazilian martial art brought to Brazil by Bantu slaves from Angola, practiced and performed publicly to singing and the playing of berimbaus, pandeiros, and other instruments.” McGowan & Pessanha, p. 208. 15 “It is interesting to note, however, that this temporal ordering of the orixás does not correspond to the sequence they are worshipped during a religious service ( shire ). There they are invoked in a different order: Bara, Ogum, Oia, Xangô, Ode, Xapanã, Oba, Oxum-panda, Boji, Oxum-docô, Iemanjá, Oxalá and Orun-mila.” BASTIDE, Ro- ger. As religiões africanas no Brasil: contribuição a uma sociologia das interpretações de civilizações. São Paulo: Pioneira, 1960. p. 290. 50 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 37-52 Sapata or Xapanã , on Wednesday; Ogum , on Thursday; Iemanjá and her son Ode , on Friday; and Oxum , on Saturday. Thus, when one says that Olodum plays on Tuesday nights at Pelourinho, this is supposed to mean that the group performs under the auspices of Xangô . At the same time, Tuesday is the day the Catholic Church performs charity for the poor. According to Marcelo Dantas, a Catholic brotherhood distributes food for the homeless and performs a mass late in the afternoon under the blessing of the orixás .16 We can see that our corpus includes expressions that are apparently linked to Catholicism but which are, in fact, used in relation to Afro- Brazilian spirituality. After realizing that the words “faith,” “prayer,” and “blessing” – which one would generally assume as having a Catholic connotation – do, in fact, refer to Afro-Brazilian spirituality, our percentages of references must be reviewed. In fact, as far as our corpus is concerned, only 10 occurrences (or 25.6%) of words with a religious overtone refer to Catholicism, whereas 29 occurrences (or 74.4%) refer to the African cults. Thus we see that approximately three out of four allusions in Afro- Brazilian music to spiritual elements refer to the ancient cults in Africa, an astounding fi gure for the most musical state of the largest Catholic nation on earth.

CONCLUSION

The analysis of a corpus of 27 randomly selected song lyrics from the Internet which belong to a style known as Axé Music shows that Afro-Brazilian spirituality is an important component of that type of music. This is not at all surprising since Axé Music has always chosen to express its affi nity with African ancestry and the culture of black people in Brazil. Another aspect that the analysis of the 27 lyrics reveals is the 16 Dantas, p. 89. TANIA M. L. T ORRES - A FRO -B RAZILIAN M USIC AND THE E XPRESSION ... 51 appropriation of common Catholic words or phrases for use in the Afro- Brazilian religions. Again, that should not surprise us since Catholicism and Afro-Brazilian spirituality have coexisted alongside each other for many centuries in Brazil. On the other hand, it surprises us that Axé Music is using more and more Catholic expressions in an Afro-Brazilian context to the point that mainstream Catholicism has in essence vanished from Afro-Brazilian music. When we consider the increasing popularity of Axé Music in Brazil, one is tempted to say that this type of music has now epitomized the way Catholicism is losing ground in Brazil. In Bahia – at least – traditional Catholicism has become a hollow shell that serves only to accommodate Afro-Brazilian spirituality – which has now permeated many aspects of one’s life in that State – without overtly offending the Catholic scruples of those who want to join in.

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Luiz Carlos Lisboa Gondim 1

RESUMO

Este artigo pretende discutir a postura de Foucault em relação à hipótese repressiva, tentando compreender o seu olhar, seu discurso crítico e suas saídas para as ideias das quais emerge uma aparente repressão, e refl etindo sobre o que pode ter constituído sua reação contra o poder repressivo em relação à sexualidade. PALAVRAS -CHAVE : Foucaultianismo. Repressão. Sexualidade

ABSTRACT

This article discusses the Foucault’s position regarding the repressive hypothesis, trying to understand his point of view, his critical discourse and his outputs to the ideas from which emerges an apparent repression, and refl ecting on what might have been his reaction against repressive power regarding sexuality. KEYWORDS : Foucaultian. Repression. Sexuality.

INTRODUÇÃO

Até que ponto a mecânica do poder é observável em nossa sociedade? O discurso crítico dirigido à repressão rompe de fato com ela? Tal repressão

1 Professor no SALT – IAENE – Seminário Adventista Latino-Americano de Teologia, mestre em Família e Sociedade Contemporânea pela UCSA, graduado em Filosofi a, Pedagogia e Teologia e especialista em Docência Universitária pela Unasp. 54 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 53-65 existe realmente? Seus resultados são visíveis ou velados? Até que ponto vai a “ coragem foucaultiana de ser ” em resposta à hipótese repressiva? Através da narrativa inusitada de Foucault, examinaremos estas questões margeando as fronteiras da sua singular rede semântica, suas implicações unas e ao mesmo tempo múltiplas de sexualidade, prazer, uso do corpo, repressões e práticas sexuais.

EXISTE UMA R EPRESSÃO QUE NOS S UBJULGA ?

Foucault simula concordar com a ideia de que nós, como pequenos burgueses, estamos sob o domínio de uma força repressiva que nos inquieta e nos domina: “Parece que, por muito tempo, teríamos suportado um regime vitoriano e a ele nos sujeitaríamos ainda hoje. A pudicícia imperial fi guraria no brasão de nossa sexualidade contida, muda, hipócrita” (FOUCAULT, 1985, p. 9). Há um hábito da sociedade moderna de tratar o sexo como algo que tenha de se manter velado, numa espécie de tabu que domina um sigilo que nem sempre permanece fechado. Mesmo quando se fala da sexualidade, as expressões parecem estar infl uenciadas por um poder que a reprime ou que tenta adestrá-la. Por isso Foucault (1979, p.127) questiona: Como se explica que, em uma sociedade como a nossa, a sexualidade não seja simplesmente aquilo que permita a reprodução da espécie, da família, dos indivíduos? Não seja simplesmente alguma coisa que dê prazer e gozo? Como é possível que ela tenha sido considerada como o lugar privilegiado em que nossa “verdade” profunda é lida, é dita? Pois o essencial é que, a partir do cristianismo, o Ocidente não parou de dizer “Para saber quem és, conheça teu sexo”. O sexo sempre foi o núcleo onde se aloja juntamente com o devir de nossa espécie, a nossa “verdade” de sujeito humano. Essa força repressiva pode ser vista e analisada a partir de um olhar que perceba uma rede trucada de fatores que vão da família burguesa ao dogma eclesiástico. Os retóricos da escola e da academia parecem sentir vergonha da abordagem do tema. Muitos dos oradores religiosos fogem LUIZ C ARLOS L ISBOA G ONDIM - R ELIGIÃO , F AMÍLIA E OUTRAS I NSTITUIÇÕES ... 55 dessa responsabilidade, e os políticos, quando muito, restringem-se às diretrizes quanto ao uso de preservativos ou o controle da natalidade. Mas por trás desse “silêncio”, há outras formas de abordagens coercitivas e estruturais. A questão do poder fi ca empobrecida, quando é colocada unicamente em termos de legislação, de constituição, ou somente em termos de Estado. O poder é mais complicado, muito mais denso e difuso que um conjunto de leis ou um aparelho de Estado. O fato é que há uma nova forma de poder chamada disciplina, com suas hierarquias, seus enquadramentos, suas inspeções, seus exercícios, seus condicionamentos e adestramentos (FOUCAULT, 1979). A sexualidade – no seu dinamismo, constante mudança e contradição – evidencia, na história, situações inusitadas que podem nos parecer cômicas, mas revelam a ideia de domínio, interdito e opressão. Crombie (2000) revela sentenças de casos concretos que inspiraram jurisprudência, as quais não deixam de ser relevantes para este estudo: É ilegal um homem disparar uma arma quando a sua companheira está a ter um orgasmo (Wisconsin, USA); uma mulher só pode ter relações sexuais com o seu marido e, na primeira vez em que tal aconteça, a mãe dela deve estar presente no quarto para testemunhar o ato (Cali, Colômbia); os casais estão autorizados a praticar sexo num veículo estacionado durante a pausa de trabalho para o almoço, desde que o automóvel tenha cortinas corridas para evitar que os intrusos espreitem (New México, USA); é ilegal que um homem e uma mulher pratiquem sexo noutra posição que não seja a posição do missionário (Montana, USA). Nesse background repressivo, até o casamento monogâmico serve aos ditames do poder, pois segundo Guiddens (1993, p.180), a sociedade moderna é patriarcal e sua ênfase no casamento monogâmico serve para desenvolver traços de caráter autoritários, sustentando deste modo, um sistema social explorador. Cabe-nos questionar e repensar a hipótese da 56 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 53-65 dominação masculina como um refl exo do domínio burguês. Fazemos, dizemos ou pensamos o que realmente queremos em relação à sexualidade? Ou nos acomodamos ao rótulo vitoriano? Aos olhos foucaultianos, depois de os jogos e o comércio dos sofi stas terem sido excluídos, depois de, com maior ou menor segurança, terem sido anulados os seus paradoxos, parece que o pensamento ocidental esteve sempre de guarda para que o discurso ocupasse o menor espaço possível entre o pensamento e a palavra (FOUCAULT, 1971). Vemos, aqui, que o interesse de Foucault pela sexualidade diz respeito à sua visão de sujeito; para ele, em redor do sujeito há poderes e saberes que o constitui, que o modifi ca e o determina. Foucault (2003) afi rma que estamos em uma sociedade do “sexo”, ou melhor, da “sexualidade”: os mecanismos do poder se dirigem ao corpo, à vida, ao que a faz proliferar, ao que reforça a espécie, seu vigor, sua capacidade de dominar, ou sua aptidão para ser utilizada; de um pólo a outro da tecnologia do sexo escalona-se toda uma espécie de táticas diversas que combinam, em proporções variadas, o objetivo da disciplina do corpo e o da regulação das populações; as contribuições escritas no mundo inteiro a partir da Revolução Francesa, os Códigos redigidos e reformados, toda uma atividade legislativa permanente e ruidosa não devem iludir-nos: são formas que tornam aceitável um poder essencialmente normatizador. A sexualidade nesse contexto é lida a partir das forças cognocentes que sobre ela se abatem e fazem deparar-nos com uma inquietude provocada por esse “milagre” da ciência, o qual permite que através de determinados apetrechos tecnológicos se possam sondar nossos segredos mais recônditos. Que espécies de saberes estariam implicados nesse aparente poder? Que saberes nos fazem saber de forma tão tímida e tão envergonhada sobre a nossa própria sexualidade? Foucault (1976) revela que nesse contexto há uma grande confi guração do saber que o Ocidente não cessa de organizar em torno do sexo, através de técnicas religiosas, LUIZ C ARLOS L ISBOA G ONDIM - R ELIGIÃO , F AMÍLIA E OUTRAS I NSTITUIÇÕES ... 57 médicas e sociais. O início histórico dessa atitude repressiva ocorre no seio da burguesia. As técnicas mais rigorosas foram formadas e, sobretudo, aplicadas em primeiro lugar com mais intensidade nas classes economicamente privilegiadas e politicamente dirigentes. A direção espiritual, o exame de si mesmo, toda longa elaboração dos pecados da carne, a detecção escrupulosa da concupiscência – são todos processos sutis que praticamente não podiam ser acessíveis senão a grupos restritos. A família burguesa foi o primeiro lugar onde se problematizou a sexualidade e onde surgiu a necessidade de vigiar o sexo e de inventar uma tecnologia racional de correção (FOUCAULT, 2003, p.114). Como se vê, o moderno controle da sexualidade na cultura burguesa era menos uma arma contra as classes inferiores do que uma autoidealização da burguesia (MERQUIOR, 1985, p.188). O sentido do discurso sobre sexualidade aparece como uma espécie de irradiação que emana de achados do arqueólogo “febril” de Paris, que vão do Iluminismo ao Liberalismo do séc. XVIII, da Rainha Vitória aos Vitorianos do séc. XX. Estamos numa sociedade do sexo que fala, mas o que falamos e o que ouvimos? Há tantas produções e propagandas, mas para que se destinam? A caracterização do poder disciplinar implica a análise dos mecanismos da disciplina a fi m de se demonstrar sua pertinência na constituição de um indivíduo com características precisas: o indivíduo moderno (FONSECA, 1995, p.18). Através da economia política da população forma-se toda uma teia de observações sobre o sexo. Surge a análise das condutas sexuais, de suas determinações e efeitos, nos limites entre o biológico e o econômico. Aparecem também as campanhas sistemáticas que, à margem dos meios tradicionais – exortações morais e religiosas, medidas fi scais – tentam fazer do comportamento sexual dos casais uma conduta econômica e política deliberada (FOUCAULT, 2003, p. 29). Surge nesse ponto o 58 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 53-65 dilema da infl ação do juízo ao se pensar que Foucault detona a hipótese repressiva quando parece confi rmá-la, acentuá-la. Suas afi rmações parecem contundentes: Entre o Estado e o indivíduo o sexo tornou-se objeto de disputa pública; toda uma teia de discursos, de saberes, de análise e de injunções o investiram (FOUCAULT, 2003, p.29). Compreender plenamente a ideia foucaultiana de repressão é tarefa complexa, especialmente quando ele mesmo diz ter falado, de maneira obstinadamente confusa, seja da repressão, seja da lei, da interdição ou da censura, bem como ter desconhecido – por birra ou negligência – tudo o que poderia distinguir suas implicações teóricas ou práticas (FOUCAULT, 2003, p.80). Poderíamos então perguntar: teria Foucault objetivado exatamente desconstruir a hipótese repressiva ou mostrar que os seus efeitos não são os de uma repressão típica? Não são raros os casos na história em que formas de repressão deram o tiro pela culatra.

UMA R EPRESSÃO QUE R EFLUI E I NSTIGA

Merquior é um dos críticos mais severos de Foucault. Ele chega a afi rmar que a sexualidade, longe de ser reprimida, tem sido constantemente manifestada (MERQUIOR, 1985). Foucault (2003, p. 96) por outro lado, afi rma seu interesse em buscar as razões pelas quais isto tem acontecido, se, de fato, tem acontecido. É preciso admitir um jogo complexo e instável em que o discurso pode ser, ao mesmo tempo, instrumento e efeito de poder, e também obstáculo, escora, ponto de resistência e de partida de uma estratégia oposta. A repressão parece de fato não reprimir; o que proíbe, libera, e do que condena, participa. As resiliências se desvanecem e a hipocrisia se instala num jogo de aproximação dos “contrários”. Os discursos se confundem e se fundem, os olhares se desviam e se encontram e a ciência sexual parece travestir-se de arte sexual. O sujeito é encontrado com o LUIZ C ARLOS L ISBOA G ONDIM - R ELIGIÃO , F AMÍLIA E OUTRAS I NSTITUIÇÕES ... 59 que pensa e onde pensa. O poder que, assim, toma a seu cargo a sexualidade, assume como deve roçar os corpos; acaricia-os com os olhos; intensifi ca regiões; eletriza superfícies; dramatiza momentos conturbados. Açambarca o corpo sexual. Há, sem dúvida, aumento de efi cácia e extensão de domínio sob controle, mas também sensualização do poder e benefício do prazer. O poder ganha impulso pelo seu próprio exercício; o controle vigilante é recompensado por uma emoção que o reforça; a intensidade da confi ssão relança a curiosidade do questionário; o prazer descoberto refl ui em direção ao poder que o cerca (FOUCAULT, 2003). O estatuto do poder ganha ares surpreendentes na visão aguçada do fi lósofo do sexo: O exame médico, a investigação psiquiátrica, o relatório pedagógico e os controles familiares podem, muito bem, ter como objetivo global e aparente dizer não a todas as sexualidades errantes ou improdutivas, mas, na realidade, funcionam como mecanismo de dupla incitação: prazer e poder. Além disso, sua visão lembra muito mais a lente da complexidade do que a do estruturalismo quando afi rma que o prazer em exercer um poder que questiona, fi scaliza, espreita, espia, instiga, apalpa, revela e que, por outro lado, se abrasa por ter que escapar a esse poder, se deixa invadir pelo prazer que persegue, se afi rma no prazer de mostrar-se, de escandalizar ou de resistir. Pais e fi lhos, adultos e adolescentes, educador e alunos, o médico, o doente, o psiquiatra, não cessaram de desempenhar os papeis de captação e sedução, de confronto e reforço recíprocos, desde o século XIX (FOUCAULT, 2003). A expressão “perversões múltiplas”, usada por Foucault, pode nos levar a imaginações as mais diversas, mas o fato é que a sua implantação não se constitui em uma zombaria da sexualidade, mas vingança contra a imposição de leis, por demais repressivas, oriundas de diversos poderes (FOUCAULT, 2003). No olhar desse controvertido fi lósofo, o crescimento das perversões não é um tema moralizador que tenha obcecado os espíritos 60 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 53-65 escrupulosos dos vitorianos. É o produto real da interferência de um tipo de poder sobre os corpos e seus prazeres. Talvez, diz ele, o Ocidente não tenha sido capaz de inventar novos prazeres e, sem dúvida, não descobriu vícios inéditos, mas defi niu novas diretrizes no jogo dos poderes e dos prazeres: nele se confi gurou a fi sionomia rígida das perversões (FOUCAULT, 2003). Esse efeito “adverso” parece nos dar a ideia não do que Foucault está tentando desconstruir, mas do que está redimensionando, ensinando, mesmo sem querer ensinar. Haveria um fundamento histórico-genealógico que teria forjado a chamada repressão? Ou teriam sido desveladas as suas diversas faces? Seria possível reinventar o sexo mesmo sob o estigma de uma repressão? Seria possível ao homem atingir a construção de si mesmo, ainda que seja constituído pelas imposições extrínsecas dos pais, da língua, religião, família ou sexo? De uma maneira espontânea, quando alguém fala de poder, concebe-o como lei, como interdição, com proibição e repressão; e somos bastante desarmados quando se trata de segui-lo em seus mecanismos e efeitos positivos. Um modelo jurídico pesa sobre as análises do poder, dando um privilégio absoluto à forma da lei. Seria preciso escrever uma história da sexualidade que não fosse ordenada pela ideia de um poder-repressivo, de um poder-censura, mas por uma ideia de um poder-incitação, de um poder-saber. Seria preciso, ainda, desprender o regime de coerção, de prazer e de discurso que não seja inibidor, mas construtivo deste domínio complexo que é a sexualidade (FOUCAULT, 1976). Que relações históricas existiriam entre poder e os discursos sobre o sexo? Que jogo de interesses estaria por trás dos silêncios e das falas, da opressão e da infl ação dos discursos? Não se podia imaginar que tal repressão ao sujeito fosse ambígua e que tivesse atrás de si forças que agiriam em direção oposta. Foucault (1982) esclarece que não se trata de negar a existência da repressão. O problema é mostrar que a repressão se inscreve sempre em uma estratégia política muito mais complexa, que LUIZ C ARLOS L ISBOA G ONDIM - R ELIGIÃO , F AMÍLIA E OUTRAS I NSTITUIÇÕES ... 61 visa à sexualidade. Isso não é simplesmente haver repressão. A maneira pela qual a sexualidade foi reprimida, mas também trazida à luz, analisada através de técnicas como a psicologia e a psiquiatria mostra claramente que não se trata de uma simples questão de repressão. Trata-se, antes, de uma mudança na economia das condutas sexuais de nossa sociedade.

REFLEXÕES PROFUNDAS E SAÍDAS ALIENANTES

Não há de se estranhar que tamanha hipocrisia afl orada de tal repressão nos leve a extremos que possam surpreender a nós mesmos; o sentimento de revolta é natural, mas até que ponto pode ir tamanha indignação? Que respostas Foucault teria dado a si mesmo? Haveria algum sentido axiológico para sua “reação”? Até que ponto foi necessário transgredir? Estudar Foucault é tarefa muito complexa, visto que suas ideias aparecem poucas vezes expostas à vista; às vezes, aparecem apenas na forma de um engano como quem quer conscientemente confundir, ludibriar. Sua narrativa livre, sem amarras, dá-nos também a liberdade de interpretar os seus conceitos e sua vida sem necessariamente dispor do rigor científi co, ainda que sem desprezar as exigências da razão, pois o perfi l de Foucault parece muito mais identifi cado com a plasticidade dos conceitos do que com os seus dogmas. Ele afi rma que jamais se conduz como um profeta, que seus livros não dizem às pessoas o que elas devem fazer. Embora insista na ideia do estudo da sexualidade em discurso, sem conotação profética, seu discurso carrega ares de profecia: Falar contra os poderes, dizer a verdade e prometer o gozo; vincular a iluminação, a liberação e a multiplicação de volúpias; empregar um discurso onde confl uem o ardor do saber, a vontade de mudar a lei e o esperado jardim das delícias – eis o que, sem dúvida, sustenta em nós a obstinação de falar do sexo em termos de repressão (FOUCAULT, 2003, p.13). 62 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 53-65 Reforçando a ideia de discipulado, Merquior (1985, p.246) arremata: “Mas, o manto ‘literário’ mal encobre um imenso dogmatismo”. Suas reações contra fatores extrínsecos que lhe incitavam parecem tomar efeitos de um bumerangue. Merquior (1985, p.238) apresenta Foucault afi rmando que é possível que o contorno geral de uma sociedade seja fornecido pelas recentes experiências com drogas, sexo, comunas e outras formas de consciência e de individualidade. Poder-se-ia dizer que em sua história não havia verdade moral nem hierarquia de valores, contudo Foucault (2004) declara que é necessário lutar para dar espaço aos estilos de vida homossexual, às escolhas de vida em que as relações sexuais com pessoas do mesmo sexo sejam importantes. O fato de fazer amor com alguém do mesmo sexo pode muito naturalmente acarretar toda uma série de escolhas, toda uma série de outros valores e de opções para as quais ainda não há possibilidades reais. Merquior (1985, p.15) chega a afi rmar que, como Nietzsche, Foucault claramente antipatiza com o espírito cristão. Seu par, Reich, de semelhante semântica libertária, afi rma acreditar que a reforma política sem liberação sexual é impossível: liberdade e saúde sexual são a mesma coisa, e que deve ser dado às crianças o direito de desenvolver-se em jogos sexuais com outras crianças e também o direito de se masturbar (GUIDDENS, 1993); devem também ser protegidas do domínio de seus pais; além disso, os adolescentes devem ter a oportunidade de satisfazer as necessidades sexuais sem qualquer controle, para que possam ser os agentes da futura mudança social. As diversas formas de prazer são, de fato, de grande necessidade. Mas, quais os limites? O corpo é a prisão da alma ou a alma é que é a prisão do corpo? Mesmo sem respostas precisas, Foucault (1982) admite sentir difi culdade em ter a experiência do prazer. O prazer, diz ele, parece ser de um controle muito difícil. Ele afi rma ainda que espera morrer de overdose de prazer, qualquer que seja, que tem sempre a impressão de LUIZ C ARLOS L ISBOA G ONDIM - R ELIGIÃO , F AMÍLIA E OUTRAS I NSTITUIÇÕES ... 63 não experimentar o verdadeiro prazer, o prazer completo e total. Ele chega a dizer que o prazer está ligado à morte, uma vez que o gênero de prazer verdadeiro seria tão profundo, tão intenso, que faria com que ele submergisse tanto que não sobreviveria. Ademais, para ele certas drogas eram muito importantes, visto que elas lhe permitiam ter acesso a esses prazeres terrivelmente intensos, os quais não seria capaz de atingir sozinho. Merquior (1985, p.15) apresenta um dito intrigante de Foucault: “A obrigação suprema de um prisioneiro é tentar a fuga”. Essa fuga parece desvanecer-se em uma visão de saber foucaultiana pouco otimista: Sei muito bem – e creio que eu saiba desde minha infância – que o saber é impotente em transformar o mundo. Talvez eu esteja errado. E estou seguro que estou errado de um ponto de vista teórico, pois eu sei muito bem que o saber transformou o mundo. Mas se eu me refi ro à minha própria experiência, tenho o sentimento que o saber não pode nada por nós e que o poder político é capaz de nos destruir. Todo o saber do mundo não pode nada contra isso (FOUCAULT, 1982). A morte prematura de Foucault, em 1984, deixou em suspenso bom número de interrogações e mal-entendidos. O jornalista Pol-Droit (2006, p.20 e 22), em sua obra Foucault – entrevistas , faz um questionamento sobre o sentido nem verdadeiramente escondido nem inteiramente visível se seu trabalho. Esse jornalista apresenta Foucault, em 1948, como estudante da École Normale Supérieure. Lembra sua tentativa de suicídio neste mesmo ano e afi rma que ele perecia estar à beira da loucura. Na perspectiva de Pol-Droit, Foucault era um viajante num templo zen, um conferencista em Berkeley, um experimentador de alucinógenos, um homem que morre de AIDS na salpêtrière , hospital cujo nascimento ele mesmo havia descrito na sua famosa obra história da loucura .

CONSIDERAÇÕES F INAIS

A repressão estará sempre presente e é preciso saber enfrentá-la. A vida, por sua vez, é apenas um lapso de tempo. Como deveríamos 64 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 53-65 vivê-la? Os resultados observados no discurso e vida do pirotécnico Foucault, como ele mesmo se intitula, levam-nos a refl etir sobre posturas de enfretamento ou de alienação . Maior prudência e cautela são valores aparentemente necessários ainda que imersos nas mais diversas formas de repressão operadas na base dos nossos dilemas morais. Até que ponto poderíamos ampliar nosso tempo neste mundo que Deus nos deu e evitar mortes prematuras como a do genial autor da História da sexualidade ? Um gênio como Foucault poderia nos dar, ainda hoje, o privilégio da sua sábia produção literária, caso não houvesse morrido alienado e prematuramente. Que lições e que valores, quanto à repressão à sexualidade, temos aprendido com a vida, as idéeas, as ações e reações e com a morte de Foucault?

REFERÊNCIAS

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Carlos G. Molina 1

RESUMO

Esta variedade de pregação normalmente demanda uma boa dose de pesquisa acadêmica e, por causa disso, representa também um desafi o no momento da apresentação, visto que, em geral, os pregadores precisam adaptar as informações aos ouvintes. Contudo, é recompensador considerar seus benefícios em termos de informação compartilhada, seu conteúdo bíblico, a aplicação contextualizada à audiência. PALAVRAS -C HAVE : Sermão Expositivo. Pesquisa Acadêmica. Conteúdo Bíblico.

ABSTRACT :

This variety of preaching normally demands a good deal on academic research and because of it represents also a delivery challenge for preachers in adapting all the resulting information to the hearers. However, it is rewarding to consider its benefi ts in terms of appropriated imparted information, its bible context in the exegesis process and, probably one of the most diffi cult achievement for any sermon type, specially for the expository: the bullet(s) contextualized application(s) for the audience. KEYWORDS : Expository Preaching. Academic Research. Biblical Content. 1 Doutor em Teologia pela Faculdade de Pretória - África do Sul. Professor de Novo Testamento no Seminário Adventista Latino-Americano de Teologia. Email: cg- [email protected] 68 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 67-72 IT’S O RIGIN AND THE W INDING E LABORATION P ROCESS

Besides the narrative way of sermonizing, expository preaching is perhaps the oldest form that grew up in its outline corpus since the second century AD. According to Perry (1990, p. 19-20), Origins (184-254) was the fi rst expository potter in this kind of sermon making process. The American Treatise on Preaching produced by Eben - Ezer in 1834 was probably the fi rst homiletic manual in including the expository discourse in U.S (op. cit., p. 87-89). Defi ning the expository sermon, Robinson (1980, p. 20) defi nes it as the communication of a biblical truth, derived and transmitted through a historic, grammatical and literary study of a contextualized bible fragment. This biblical portion is applied fi rst by the Holy Spirit to the sermonizer’s experience and then, to the hearers. The previous explanation reminds that expository classifi cation emphasizes more the content of the message than the form in which this preaching is delivered. MacArthur (1992, p. 222) coincides with Robinson that, due to the investigation and content of this sermon, the expository preaching model is exegetic. Therefore, the preacher must follow certain rules for the interpretation of the text. All of the investigation ensures a respectful attitude toward the passage content and its context. This is one reason why some authors call this sermon classifi cation as “contextual preaching” (HORTON, 1963, p. 14). As most of us agree, expository messages are not the only classifi cation to utilize in the pulpit. Other taxonomies are useful and important if they are biblical. Whitsell (1950, p. 39) adds that the biblical sermon is not confi ned just to one method of preaching. Actually, any sermon model, if the message is extracted from the Bible and based on it, is worthy to be called biblical. CARLOS G. M OLINA - E XPOSITORY P REACHING : SOME Q UESTIONS ... 69 QUESTIONS TO DISCUSS

Concerning the preparation of the expository sermon, the amount of collected data can be subjected to some questions that will help to its outline fl uency: before the knowledge recollection is fi nished, is it possible to identify the core or the central theme from the isolated bible section or pericopa ? With a big amount report in the outline, the preacher’s delivery may produce a homiletic indigestion and putting the audience in the “chasing of many concept rabbits in the woods of too much” or inclusive, they might get shock and disconnected. The homiletician will not fulfi ll the mission as an expository messenger if the sermon only transmits mere knowledge. Actually, the proper quantity of content must be like a ladder’s steps in it. Each step should choose and unifying the elaboration process and applying he truth (s) that will serve as a coordinated step up to each phase of the sermon, climaxing its purpose and then step down through the conclusion and appeal. In some cases, on what expository sermon is concern, the chosen pericopa might have the outline-steps to feed and form the sermon-skeleton. The amount of academic savia bottled in the outline, could also indicate that would be necessary to elaborate a second or even a third sermon in order to balance the sermon’s duration and properly procure the congregation learning. White (1885) admonishes on this respects when she suggests in dividing the excessive content through more than one preaching for a better audience’s reception and assimilation. Another question to consider is: How many passages do the chosen pericopa should clasp? This is important because the number of verses in the selected portion might change the nomenclature of the sermon type. Bresee (1997, p. 29-30) indicates that you’re able to distinguish the difference between an expository preaching from one textual simply by the quantity of Bible verses treated. This same author proposes that a textual outline will comprise one section of one or two verses meanwhile 70 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 67-72 an expository presentation will retain three or more. One anti-expository obstacle to defeat by the sermonizer is the considerable amount of time for in the elaboration for this kind of sermon. Any biblical sermon, no matter its type, requires labor and a systematic study in extracting biblical gems and to apply them to the audience. Expository ser mons, however, demand more attention to the erudite resource. Probably, due to this limitative circumstance, Bird (1986, p. 34) declares that this sermon type is a species in danger of extinction. There are good reasons why preachers must be in touch with this classifi cation. There are a good amount of biblical passages requiring an expository approach. The appropriated interpretation for those verses might justify such exegetical tool. On this particular, Broadus (1979, p. 153, 154 – 167) explains that numerous passages of the Bible are not understood and there are biblical teachings that are not applied correctly. For this reason, preaching besides to be persuasive and convincing, must be instructive. To be effective, the expository sermon must thrive in this double challenging arena of instruction and persuasion. This last goal to achieve (persuasion) is related to the application(s) that come out of the central theme(s) for the sermon. The reason for regarding the central theme and application is briefl y analyzed next. The last question to discuss briefl y is: How many central theme(s) and application(s) bullets are going to be in your expository barrel throughout your sermon? As it is comprehensible, the more use of them, the more concise and comprised you got to be for covering every one. Another serious responsibility associated to the previous question is bringing the Bible past to the present. It is a real challenge that demands much study. The biblical yesterday must be brought in today’s world. That requires in adapting historic, grammar and sometimes, archaeological context to actual human needs. The fast pace of this postmodern era requires a biblical explanation with a practical application and invitation for griping CARLOS G. M OLINA - E XPOSITORY P REACHING : SOME Q UESTIONS ... 71 hope. The amount of bullets is a matter of certain debate. Robinson (2001, p. 33) considers the presence of various central theme applications throughout the sermon as birdshot. For Him, this type of homiletic ammunition does not target a specifi c need or problem solution but it spreads out just minor help for the audience. On the other side of the spectrum, Perry (1986. p. 16, 22, 50, 119-149) and Miller ( 1994, p. 56) point that more than one central theme with applications throughout the sermon can also benefi t the hearers. In so many cities and towns of Western society, for instance, life is living like mile a minute and caught usually in the rush of multiple crises. A reasonable number of central themes information through a quantity of application bullets could target different hearts needs. The number will depend in the content extent of the pericopa . Three would be an adequate number to thrive with. In the one bullet sermon, the central theme will make all the application be magnetized to it. On regards the central theme(s) is crucial the content is submitted to the dominant thought(s) of the passage. The homiletic application pursues to make theory become alive. Other aspect that hinders the sermon purpose is that sometimes preachers are too much distracted and entangled discussing the problem(s) in the sermon. The practical and faith positive solution(s) to face and confront adverse circumstances is what congregations want to hear. This is the part that deserves special care and treatment in any sermon classifi cation.

CONCLUSION

The expository preaching provides an important academic develo- pment, because the preacher and his audience will grow deeper in know- ledge, Bible exploration and doctrinal affi rmation. In a world where Bible truth is considered as a relative literature genre with its meaning circu- mscribed to a particular community’s thought, the expository preaching 72 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 67-72 enhances the veracity of Scriptures in an academic way, deploying also contextualizad and practical application(s) for today’s needs.

REFERENCES BIRD, Brian. Biblical Exposition: Becoming a Lost Art. Christianity today . v. 7, n. 18, p. 34, 1986. BRESEE, W. Floyd. Succesful lay preaching. Ministerial Association, General Conference of Seventh-day Adventists, 1997. BROADUS, John A. A treatise on the preparation and delivery of sermons. San Francisco : Harper & Row, 1979. HORTON, Davies. Expository preaching: Charles Haddon spurgeon . Foundations. 1963, jan, p. 14. Encontrado em: http://www.thescripture- alone.com/PrchMay.html. MAC ARTHUR, John. Rediscovering expository preaching . W. Pub- lishing Group, Thomas Nelson, Nashville TN, 1992. MILLER, Calvin. The empowered communicator: 7 keys to unlock- ing an audience . Broadman & Holman: 1994. PERRY, Lloyd M. Biblical preaching for today’s world . Chicago: Moody Press, 1986. PERRY, Floyd M. Biblical preaching for today’s world . Chicago: Moody Press, 1990. ROBINSON, Haddon W. Biblical preaching, the development and de- livery of expository messages grand rapids . Michigan: Baker Aca- demic, 2001. ROBINSON, Haddon. Biblical preaching: the development and deliv- ery of expository sermons . Grand Rapids: Baker, 1980. WHITE, Ellen G. Carta. 1885. WHITESELL, Faris D. The art of biblical preaching. Grand Rapids: Zondervan, 1950. DAS PALAVRAS DE CRISTO ÀS VIRTUDES CRISTÃS: UM DIÁLOGO ENTRE MATEUS E TIAGO

Adenilton Tavares de Aguiar 1

RESUMO

Este artigo apresenta uma análise da carta universal de Tiago e do evangelho de Mateus, estabelecendo um diálogo entre estas duas tradições textuais. Tal diálogo discorre sobre as virtudes cristãs, conforme podem ser apreendidas a partir dos ensinamentos de Jesus. PALAVRAS -CHAVE : Diálogo. Ensinamentos de Jesus. Virtudes Cristãs

ABSTRACT

This paper introduces an analysis of the universal epistle of St. James and the Gospel of Matthew, by establishing a dialogue between these two textual traditions. This dialogue deals with the Christian virtues, as can be learned from the teachings of Jesus. KEYWORDS : Dialogue. Teachings of Jesus. Christian Virtues.

INTRODUÇÃO

A carta universal de Tiago e o evangelho de Mateus apresentam uma intrínseca correspondência no que concerne às alusões a ensinamentos 1 Professor de Línguas Bíblicas e Novo Testamento no SALT-IAENE – Semi- nário Adventista Latino-Americano de Teologia/Instituto Adventista de Ensino, mest- rando em Ciências da Religião pela UNICAP – Universidade Católica de Pernambuco, bacharel em Teologia pelo SALT-IAENE e licenciado em Letras Vernáculas pela UEPB – Universidade Estadual da Paraíba. Seminário Adventista Latino-Americano de Teo- logia, BR 101, KM 197 - Cx. Postal 18 – Capoeiruçu – Cachoeira – BA – Brasil – CEP 44300-000 – Tel. (75) 3425 8318, . 74 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 73-107 ministrados por Jesus durante sua vida na Terra. No caso de Tiago, em alguns momentos as referências a algumas declarações de Jesus são tão próximas da narrativa de Mateus, que seria o caso de dizer que se trata de textos sinônimos; em outros, conquanto não haja uma correspondência direta, observa-se que o princípio defendido é o mesmo. A própria expressão “a palavra em vós enxertada” em Tg 1:21: “Por isso, rejeitando toda a imundícia e superfl uidade de malícia, recebei com mansidão a palavra em vós enxertada, a qual pode salvar as vossas almas” – demonstra que Tiago está falando para uma comunidade eclesial que está familiarizada com os ensinamentos de Jesus 2. Chama-se atenção o fato de que há um percentual elevado de correspondência entre Tiago e a perícope que vai de Mt 5:1 a Mt 7:28-29, uma vez que mais da metade do material de Tiago analisado neste artigo está em correlação com esta seção do evangelho, a qual traz a narrativa do “discurso do monte”, ou “o sermão da montanha 3.” Um trecho muito conhecido desse discurso diz respeito ao relato das bem-aventuranças. É fácil notar que Tiago pretende destacar as virtudes cristãs que se podem aprender a partir desse sermão, os quais foram percebidas por diversos eruditos. 4 Não se pretendeu desenvolver um trabalho exaustivo, de modo que alguns pares de textos (e.g., Mt 12:39/Tg 4:4; Mt 7:7-8/Tg 4:2-3; Mt 4:11/ Tg 4:7), embora tenham apresentado traços de afl uência entre si, foram deixados de lado, tendo em vista a compreensão de que no cerne deles

2 Diversos autores defendem esta posição. Para citar apenas alguns: (ROPES, 1916, p. 172; MARTIN, 2002, p. 49; RICHARDSON, 2001, p. 93). 3 A delimitação da perícope torna-se clara a partir dos seguintes fragmentos:“E JESUS, vendo a multidão, subiu a um monte , e, assentando-se, aproximaram-se dele os seus discípulos” – Mt 5:1; “E aconteceu que, concluindo Jesus este discurso , a multi- dão se admirou da sua doutrina; Porquanto os ensinava como tendo autoridade; e não como os escribas.” Mt 7:28-29. 4 A fi m de verifi car alguns comentários sobre as virtudes cristãs destacadas nesta perícope de Mateus, ver Carter (2000, p. 128-198); Davies & Alisson (2004, p. 442- 467); Sloman, Westcott & Hort (1912, p. 85-94); Gardner (1991, p. 88-141); Hendriksen (1973, p. 256-383). ADENILTON T AVARES DE A GUIAR - D AS P ALAVRAS DE C RISTO ÀS V IRTUDES ... 75 se encontra a discussão de um tema já contemplado por outros pares de textos que serão analisados. Enfi m, serão avaliadas doze virtudes cristãs, com base nas informações encontradas na carta universal de Tiago e no evangelho de Mateus, partindo do pressuposto de que estas duas tradições textuais dialogam entre si, no que diz respeito às referências feitas aos ensinamentos de Jesus.

Mateus 21:22 5 Tiago 1:5 E, tudo o que pedirdes na oração, E, se algum de vós tem falta de crendo, o recebereis. sabedoria, peça-a a Deus, que a todos dá liberalmente, e o não lança em rosto, e ser-lhe-á dada.

A correspondência entre os dois textos é facilmente percebida ao compararmos o que pedirdes na oração a peça-a a Deus; e recebereis a ser-lhe-á dada . Embora Mills (1997), no seu comentário à carta de Tiago, aponte a sabedoria como um dos cinco princípios cristãos identifi cados na perícope 1:2-20, há algo mais profundo no texto: a relação entre a oração e a fé, bem como a indissociabilidade destes dois elementos. Em Tg 1:5, a preocupação do autor consiste apenas em mostrar que a sabedoria é o meio efi caz para enfrentar as provas mencionadas nos versos anteriores. O clímax do verso, no entanto, encontra-se na expressão peça-a a Deus . Uma vez que a conjunção condicional se não implica a possibilidade de haver alguém que não precise de sabedoria – ao contrário, todos precisam –, a sua presença enfatiza a sentença seguinte: peça-a a Deus . Assim, se todos precisam de sabedoria, todos devem pedi-la. E se há uma condição expressa, não é a de sentir falta para pedir, mas de pedir para receber. Esta é a condição colocada por Mateus 21: 22 – “tudo

5 Todas as citações bíblicas neste artigo vêm da Almeida Corrigida Fiel – ACF. Qualquer uso de outra versão ocorrerá somente sob indicação. 76 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 73-107 o que pedirdes na oração [...] recebereis”. O inverso disso é igualmente verdadeiro: “tudo o que não pedirdes na oração não recebereis”. Ambos os autores destacam a ideia de que se por um lado a fé é um bem indispensável, por outro, a dúvida é um mal a ser evitado. Tiago 6 expressa este pensamento a partir da exortação: “Peça-a [sabedoria], porém, com fé, em nada duvidando ; porque o que duvida é semelhante à onda do mar , que é levada pelo vento, e lançada de uma para outra parte.” – Tg 1:6; enquanto Mateus 7 destaca as palavras de Jesus: “Em verdade vos digo que, se tiverdes fé e não duvidardes , não só fareis o que foi feito à fi gueira, mas até se a este monte disserdes: Ergue-te, e precipita-te no mar 8, assim será feito.” Mateus 21:21. Enquanto Tiago salienta a informação de que o que duvida é “semelhante à onda do mar”, Mateus demonstra que o que tem fé diz ao monte: “ergue-te, e precipita- te no mar”. As informações são complementares. As orações adjetivas “que é levada pelo vento” e “lançada de uma para outra parte” (Tg 1:6) as quais qualifi cam a expressão “onda do mar”, vêm, respectivamente, dos particípios avnemizome,nw| e r`ipizome,nw|Å Martin (2002, p. 19) comenta que esses particípios “são aliterativos e rítmicos, sugerindo uma impressionante descrição de uma repentina tempestade no Lago da Galileia”, oferecendo um quadro da “instabilidade humana”. Ao introduzir o elemento "dúvida" Mateus e Tiago enaltecem o elemento "fé", uma vez que, como diria Paul Tounier, "onde já não há qualquer oportunidade de dúvida, também já não há qualquer oportunidade de fé" (apud Yancey, 2004, p.218). Martin aponta, ainda, para a possibilidade de que Tiago esteja se referindo à experiência de Pedro, relatada em Mateus 14:28-32. De fato, em última instância, a narrativa de Mateus apresenta o “naufrágio” de Pedro como resultado do seu ato de duvidar. Assim,

6 O presente artigo não tem por objetivo tecer uma discussão a respeito da auto- ria do livro. De modo que o autor será chamado sempre de Tiago, sem haver necessari- amente uma preocupação quanto a quem seja o Tiago, o autor da carta. 7 O mesmo comentário acima se aplica à autoria do livro de Mateus. 8 Grifos acrescentados. ADENILTON T AVARES DE A GUIAR - D AS P ALAVRAS DE C RISTO ÀS V IRTUDES ... 77 ambas as tradições textuais apelam para o fato de que a fé é uma virtude cristã essencial que pode ser aprimorada a partir da prática da oração, e que, paradoxalmente, só é possível a partir da possibilidade da dúvida.

PACIÊNCIA

Mateus 5:10 Tiago 1:12 Bem-aventurados os que sofrem Bem-aventurado o homem que suporta perseguição por causa da justiça, a tentação; porque, quando for provado, porque deles é o reino dos céus. receberá a coroa da vida, a qual o Senhor tem prometido aos que o amam.

Comentando o texto de Tiago 1:12, Davids (1982, p. 79) observa o uso pleonástico do termo “homem” ( avnh,r ). Conquanto, conforme é mencionado por Davids (op. cit., p. 79), Tiago esteja citando a LXX, ele poderia arbitrar entre utilizar ou não tal termo. As opções disponíveis vão desde a omissão de avnh,r 9 ao uso de outra palavra mais comum como a;nqrwpoj , conforme expressa Moo (2000, p. 70): “este é quase um exemplo no qual Tiago usa a palavra como equivalente de a;nqrwpoj ”. Assim, a ênfase consiste simplesmente no fato de a palavra estar lá, e aponta para a realidade de que o homem é, ao mesmo tempo, sujeito e objeto de sua bem-aventurança, uma vez que ele age ao suportar a tentação bem como recebe um benefício pelo fato de suportá-la. Logicamente, se existe a necessidade de declarar que “o homem que suporta a tentação” é um homem feliz, é porque tal homem poderia ser considerado um desafortunado tanto por si mesmo quanto por outros. Assim, a declaração do autor se apresenta como uma forma de corrigir este ponto de vista.

9 Mesmo omitindo a palavra avnh,r , o texto manteria o mesmo sentido, com a diferença da ausência de ênfase na pessoa que desfruta da felicidade mencionada, em face de “suportar a tentação”. 78 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 73-107 A partir do quadro abaixo, pode-se ver mais claramente a correspondência entre os textos de Tiago e Mateus.

Mateus 5:10 10 Tiago 1:12 Bem-aventurados Bem-aventurado O homem Os que sofrem perseguição Que suporta a tentação quando for provado Porque deles é o reino dos céus Porque receberá a coroa da vida a qual o Senhor tem prometido aos que o amam.

Ropes (1916, p. 150) observa que quando for provado 11 é outra forma de dizer suporta a tentação . Dessa forma, observa-se a perfeita sinonímia entre os pares: “Bem-aventurados” / “bem-aventurado o homem”; “os que sofrem perseguição” / “que suporta a tentação, quando for provado” e “porque deles é o reino dos céus” / “porque receberá a coroa da vida”. Quanto à expressão “a qual o Senhor tem prometido aos que o amam”, nota-se que ela é apenas uma descrição da “coroa da vida”. É pertinente, a esta altura, o comentário de Davies (2004, p. 460) sobre a repetição da promessa “porque deles é o reino dos céus”, a qual aparece na primeira bem- aventurança em Mateus 5:3 – “Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus”. Para Davies, isto indica que todas as promessas das bem-aventuranças são formas diferentes de dizer a mesma coisa: “deles é o reino dos céus”. A palavra grega que Tiago utiliza para o verbo suporta é u`pome,nei , da mesma raiz do substantivo u`pomonh,,, usada por Paulo em Rm 5:3 – “E não somente isto, mas também nos gloriamos nas

10 Doravante, em todas as tabelas demonstrativas de sinonímia, a coluna da es- querda conterá o texto de Mateus e a da direita, o texto de Tiago. Desse modo, apare- cerá, apenas, a indicação de capítulo e versículo(s). 11 Com base em Liddell & Scott (1996, p. 442), “aprovado”, “testado” são pala- vras que traduzem melhor a palavra grega δόκιο̋. ADENILTON T AVARES DE A GUIAR - D AS P ALAVRAS DE C RISTO ÀS V IRTUDES ... 79 tribulações; sabendo que a tribulação produz a paciência ( u`pomonh,).” As palavras de Jesus registradas em Mateus 5:10 remetem a este tipo de experiência e virtude cristãs. Seguindo uma ordem lógica de raciocínio, é possível dizer que a tribulação (nas palavras de Jesus e Tiago, “sofrer perseguição” e “suportar a tentação”) produz a paciência, a qual, por sua vez, produz uma bem-aventurança, ou uma sensação de bem-estar, que nos chega, a despeito de tudo. Uma paciência como esta, nas palavras de Barclay (apud YANCEY, 2004, p. 163) “não é apenas a capacidade de suportar uma coisa difícil, mas de torná-la em glória”.

ALTRUÍSMO

Mateus 7:24,26 Tiago 1:23 Todo aquele, pois, que escuta estas minhas Porque, se alguém é ouvinte palavras, e as pratica , assemelhá-lo-ei da palavra , e não cumpridor , ao homem prudente , que edifi cou a sua é semelhante ao homem que casa sobre a rocha ; 26 E aquele que ouve contempla ao espelho o seu rosto estas minhas palavras, e não as cumpre, natural; compará-lo-ei ao homem insensato, que edifi cou a sua casa sobre a areia;

Mateus 25:36 Tiago 1:27 Estava nu, e vestistes-me; adoeci, e A religião pura e imaculada para visitastes -me; estive na prisão, e fostes com Deus, o Pai, é esta: Visitar ver-me. os órfãos e as viúvas nas suas tribulações, e guardar-se da corrupção do mundo.

Mais uma vez, não é difícil perceber a relação entre Tiago e Mateus; no entanto é possível torná-la ainda mais clara, colocando as palavras lado a lado, no quadro a seguir: Todo aquele – v. 24 Se alguém 12 E aquele – v. 26 Pois – v. 24 Porque

12 A comparação feita aqui é entre Mateus 7:24 e 26 e Tiago 1:23. 80 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 73-107 Escuta estas minhas palavras – v. 24 É ouvinte da palavra Ouve estas minhas palavras – v. 26 Assemelhá-lo-ei – v. 24 É semelhante Compará-lo-ei – v. 26 Ao homem insensato – v. 26 Ao homem Que edifi cou a sua casa sobre a rocha Que contempla ao espelho o seu rosto – v. 26 natural.

Segundo Mills (1997, disponível em Logos Bible Software), a perícope de Tiago 1:23-25 amplia e ilustra o que Tiago vinha falando sobre o “ouvir” e o “cumprir”. Para ele, no coração da seção, está uma espécie de parábola, a qual relembra o estilo das histórias de Jesus encontradas nos evangelhos sinóticos: “o reino dos céus será semelhante a [...]. Mills acrescenta que a linguagem de Tiago é traçada a partir da parábola do semeador, registrada em Mateus 13, em que a semente é a palavra e o solo, os ouvintes. Porém, mais especifi camente, como se pôde ver no quadro acima, a correspondência de Tiago 1:23 se dá com as palavras de Jesus registradas em Mateus 7. No entanto, a intenção do autor, conforme bem percebeu Davids (1982, p. 103), é salientar “dois elementos de verdadeira piedade que ilustram o cumprimento da Palavra. [...] O primeiro é ‘visitar os órfãos e as viúvas’ e o segundo [...] é ‘guardar-se da corrupção do mundo’”. Esses elementos só vão aparecer em 1:27. Temos, aqui, portanto, o clímax da perícope. Tiago demonstra que a verdadeira religião é muito mais que uma mera profi ssão de fé: ela diz respeito a uma vida prática, de utilidade ao próximo. Portanto, cumprir a palavra, no pensamento de Tiago, é cuidar dos interesses e necessidades dos mais frágeis. O verbo traduzido por “visitar”, tanto em Tiago 1:27 quanto em Mateus 25:36, vem de evpiske,ptomai , que possui a mesma raiz do substantivo evpi,skopoj , o qual, no Novo Testamento, signifi ca bispo , podendo signifi car também guardião , protetor , vigia , pastor (FRIBERG ADENILTON T AVARES DE A GUIAR - D AS P ALAVRAS DE C RISTO ÀS V IRTUDES ... 81 et al., 2000, p. 167) . Assim, o verbo visitar indica mais que um movimento em direção à casa de alguém, evpiske,ptesqai é cuidar de . Obviamente, órfãos e viúvas devem ser compreendidos como uma representação dos indivíduos mais carentes da comunidade; nesse caso, a verdadeira religião é ajudar a quem mais precisa. Como se sabe, esta não é uma tarefa que se faz uma vez perdida: é algo que se repete cotidianamente; e isto requer desprendimento, abnegação e interesse pelo próximo, emoções que comumente resumimos na palavra altruísmo . No capítulo 1:25, Tiago acrescenta que o homem que age assim será “bem-aventurado no seu feito”, uma linguagem que relembra mais uma vez as bem-aventuranças. Para Dibelius e Greeven (1976, p. 123), ao escrever o que está registrado em 1:27, Tiago “pode ter sido fortemente infl uenciado pelas declarações de Jesus transmitidas dentro da igreja”. De fato, tais palavras de Tiago estão em consonância com a declaração de Jesus registrada por Mateus: “Estava nu, e vestistes-me; adoeci, e visitastes-me; estive na prisão, e fostes ver-me”. Logicamente, à semelhança dos órfãos e das viúvas em Tiago, o nu, o doente e o preso são apenas uma representação das camadas mais fragilizadas. Para fi nalizar esta seção, resta comentar que Mateus 7:24, 26 não pode ser visto como uma ponte para Mateus 25:36, como acontece com Tiago 1:23 e 1:27. A própria distância entre as duas passagens exclui a possibilidade de que isto seja um fato. O objetivo foi (1) mostrar a correspondência entre Tiago 1:23 e Mateus 7:24, 26; (2) tornar evidente a estratégia de Tiago ao construir o argumento de que ser praticante da palavra é cuidar do órfão e da viúva; (3) ressaltar que o órfão, a viúva (Tiago 1:27), o nu, o doente e o preso (Mateus 25:36) são apenas uma representação daqueles que precisam da nossa máxima atenção, em face de suas necessidades especiais. 82 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 73-107 AMOR

Mateus 22:37-39 Tiago 2:8 E Jesus disse-lhe: Amarás o Senhor teu Todavia, se cumprirdes, conforme Deus de todo o teu coração, e de toda a a Escritura, a lei real: Amarás a tua alma, e de todo o teu pensamento. 38 teu próximo como a ti mesmo, Este é o primeiro e grande mandamento. bem fazeis. 39 E o segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo . Mateus 5:21-22a Tiago 4:2a Ouvistes que foi dito aos antigos: Não Cobiçais, e nada tendes; matais, matarás; mas qualquer que matar será e sois invejosos, e nada podeis réu de juízo . 22 Eu, porém, vos digo alcançar; que qualquer que, sem motivo, se encolerizar contra seu irmão, será réu de juízo ;

Em Tiago 2:5, o autor toca, ainda que indiretamente, na questão do amor a Deus: “Ouvi, meus amados irmãos: Porventura não escolheu Deus aos pobres deste mundo para serem ricos na fé, e herdeiros do reino que prometeu aos que o amam?”. Porém, no verso 8, não poderia ser mais direta a maneira como ele trata do tema do amor ao próximo (PORTER, 2003, p. 31). À exceção de uma breve modifi cação, a citação de Tiago é igual à de Jesus, em Mt 22:39 – “amarás o teu próximo 13 como a ti mesmo”. A diferença reside na expressão sobresselente no texto de Tiago: “bem fazeis”. Tal expressão não deve, entretanto, surpreender o leitor mais atento de Tiago, tendo em vista que ela vai apenas corroborar com a discussão que ele vem desenvolvendo, desde o primeiro capítulo, sobre a necessidade de que seus leitores sejam não apenas ouvintes, mas cumpridores da palavra. O termo “fazeis” é a tradução da forma verbal poiei/te , que tem a mesma raiz da palavra poihth,j (cumpridor, fazedor). Esta palavra aparece em Tg 1:23 – “Porque, se alguém é ouvinte da

13 Hughes (1991, p. 99) comenta que “na parábola do bom samaritano, Jesus expandiu a defi nição de próximo, para signifi car que cada necessidade humana é uma oportunidade de ajudar que Deus nos dá”. Contudo, como essa parábola não está regis- trada em Mateus, torna-se irrelevante para este trabalho. ADENILTON T AVARES DE A GUIAR - D AS P ALAVRAS DE C RISTO ÀS V IRTUDES ... 83 palavra, e não cumpridor , é semelhante ao homem que contempla ao espelho o seu rosto natural”, e em 1:25 – “Aquele, porém, que atenta bem para a lei perfeita da liberdade, e nisso persevera, não sendo ouvinte esquecidiço, mas fazedor 14 da obra, este tal será bem-aventurado no seu feito”. Amar o próximo, portanto, é cumprir a palavra e fazer a obra , daí a razão de Tiago dizer: “fazeis bem”. Algo bastante visível, comentado por diversos eruditos 15 e que tem a ver com a fonte da qual tanto Tiago quanto Jesus 16 tiraram a citação da expressão “amarás a teu próximo como a ti mesmo”, é introduzido por Chouinard (1997, disponível em Logos Bible Software) da seguinte forma: “vinculado ao primeiro mandamento está um mandamento igualmente importante, retirado de Lv 19:18”. Para uma melhor compreensão do signifi cado da expressão “amarás o teu próximo”, faz-se necessário o comentário abaixo: O contexto de Lv 19:11-18 é importante. Ele trata dos mandamentos éticos fundamentais de Deus em relação ao próximo, bem como em relação a quem é socialmente frágil ou a um oponente na corte da lei. Traçando um paralelo com “amarás” estão: Não furtarás, não usarás de falsidade, não mentirás, não jurarás falsamente, não defraudarás, não amaldiçoarás, não farás injustiça no juízo, não difamarás, não odiarás. Lv 19:34 acrescenta: não violarás os direitos do estrangeiro. A história da interpretação judaica aponta na mesma direção. “Amar” signifi ca um comportamento prático e uma solidariedade segundo os mandamentos que Deus deu à comunidade de Israel. (LUZ, 2005, p. 83). Deste modo, como se pode ver a partir do comentário acima, “amar

14 Grifos acrescentados. 15 KEENER, C. S. Matthew . In: OSBORNE. G. R. (Ed). The IVP New Testament Commentary Series. Downers Grove: Intervarsity Press, 1997, disponível em Logos Bible Software; HINDSON, E. E. & KROLL, W. M. (Eds). KJV bible commentary. Nashville : Thomas Nelson, 1997, disponível em Logos Bible Software; BARTON, B. B., et al. Matthew . In: OSBORNE, G. & COMFORT, P. (Eds). Life Application Bible Commentary. Wheaton: Tyndale House Publishers, 1996, p. 443, entre outros. 16 Jesus aparece citando a expressão “amarás o teu próximo” três vezes no livro de Mateus (5:43, 19:19 e 22:39). A razão de se escolher 22:39 diz respeito ao fato de que, nessa passagem, há uma menção à fonte: “Este é o primeiro e grande mandamento. E o segundo, semelhante a este, é [...]” – Lv 19:18. Outro dado interessante, e que pode- ria ser analisado em outro trabalho, em face da delimitação deste, tem a ver com o uso que Paulo faz dessa mesma expressão, em Rm 13:9 e Gl 5:14. 84 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 73-107 o próximo” implica uma série de coisas que não devem ser feitas contra ele. É a partir desta perspectiva que se decidiu incluir nesta seção do artigo as passagens registradas em Tg 4:2a e Mt 5:21-22a. A expressão “matais”, em Tg 4:2a – “Cobiçais, e nada tendes; matais, e sois invejosos, e nada podeis alcançar”, pode parecer uma hipérbole caso não seja comparada a Mt 5:21-22a. Esta passagem esclarece o sentido de “matais”, ao fazermos uma comparação entre duas informações aqui registradas: (1) qualquer que matar será réu de juízo e (2) qualquer que, sem motivo, se encolerizar contra seu irmão, será réu de juízo . Observa-se que qualquer que matar está para qualquer que, sem motivo, se encolerizar . Desse modo, pode- se inferir que, assim como um homem ao olhar para uma mulher com olhar impuro, para usar as palavras de Jesus, “já em seu coração cometeu adultério com ela”, assim, também, quando um homem se encoleriza contra seu irmão, sem motivo, está cometendo homicídio. O ódio é a própria antítese do amor. Para o ódio, o próprio antídoto é o amor. Daí a recomendação: “amarás o teu próximo”, em Levítico, em Tiago e em Mateus.

MISERICÓRDIA

Mateus 5:7 Tiago 2:13 Bem-aventurados os Porque o juízo será sem misericórdia misericordiosos, porque eles sobre aquele que não fez misericórdia; alcançarão misericórdia e a misericórdia triunfa do juízo.

A partir da refl exão de Carter (2000, p. 134) sobre Mt 5, podemos facilmente perceber uma convergência de tema entre Mt 5:7 e Tg 2:13: É prometido aos misericordiosos que eles alcançarão misericórdia. A maioria dos intérpretes acertadamente sugerem que o futuro passivo e os proeminentes cenários escatológicos em 5:3-6 indicam uma promessa de misericórdia no juízo 17 vindouro. Ambos os textos relembram uma máxima da sabedoria popular:

17 Grifo acrescentado. ADENILTON T AVARES DE A GUIAR - D AS P ALAVRAS DE C RISTO ÀS V IRTUDES ... 85 “faça aos outros aquilo que você quer que os outros lhe façam”: ambos pressupõem que todos precisamos de misericórdia. Os misericordiosos só podem demonstrar misericórdia porque há pessoas ao seu redor, diariamente, que precisam dela. Não é preciso ir muito longe a fi m de que encontremos gente carente de atos de bondade. Contudo, ser misericordioso é mais do que simplesmente manifestar atos de bondade: a misericórdia perpassa pela tolerância, pela indulgência, pelo perdão. Assim, ser misericordioso é manifestar bondade a quem, em primeira instância, não a merece. Nesse sentido, misericórdia é favor imérito: misericórdia é graça! Por outro lado, Tiago fala de misericórdia tendo um juízo vindouro em perspectiva. Com base no pensamento acima de Carter, o mesmo se pode dizer de Mateus. Nas entrelinhas, podemos encontrar duas mensagens emergentes: uma de advertência e outra de esperança. A advertência diz respeito ao fato de que se, de acordo com as palavras de Jesus em Mateus, os misericordiosos alcançarão misericórdia, o inverso também é verdadeiro: os não misericordiosos não alcançarão misericórdia. Por sua vez, a fala de Tiago é explícita: “o juízo será sem misericórdia sobre aquele que não fez misericórdia”. A expressão “fez misericórdia” lembra-nos o fato de que misericórdia não é algo que se sente ou se tem ; misericórdia é algo que se faz . Tiago não perderia a oportunidade de enfatizar o caráter prático da religião. Mas a mensagem de esperança é tão alvissareira o quanto a de advertência é nefasta: “a misericórdia triunfa do juízo”, são as palavras de Tiago; porém, ele apenas disse, com outras palavras, aquilo que Jesus já havia dito: “alcançarão misericórdia”. 86 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 73-107 AUTENTICIDADE

Mateus 7:21 Tiago 2:14

Nem todo o que me diz: Senhor, Meus irmãos, que aproveita se Senhor! entrará no reino dos céus, mas alguém disser que tem fé, e não tiver aquele que faz a vontade de meu Pai, as obras? Porventura a fé pode salvá- que está nos céus. lo?

Mateus 5:16 Tiago 2:26 Assim resplandeça a vossa luz diante Porque, assim como o corpo sem o dos homens, para que vejam as vossas espírito está morto, assim também a boas obras e glorifi quem a vosso Pai, fé sem obras é morta. que está nos céus.

Em Tg 2:14, o autor elabora uma questão utilizando uma fórmula retórica. O advérbio mh, em mh. du,natai h` pi,stij sw/sai auvto,nÈ (Porventura a fé pode salvá-lo?) não requer tradução; está aí somente para exigir uma resposta negativa. Portanto, à pergunta: “a fé pode salvá-lo?” a resposta deve ser: “não, não pode!”. Assim, Tiago declara enfaticamente que a fé que não é demonstrada não é uma fé salvadora, e que não há benefício algum em alguém dizer que tem fé se a vida contradiz esta declaração. O autor faz um apelo à necessidade de que se tenha uma vida cristã autêntica, e, para tanto, evoca as palavras de Jesus, registradas em Mt 7:21 – “Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai, que está nos céus”. O centro da questão para Tiago é que se alguém pensa ser religioso e ainda não mostra evidência da vida espiritual, então esta pessoa engana-se a si mesmo, e a sua religião é sem valor, visto que, para ele, uma religião prática não é uma opção na vida de quem diz ter fé, é a prova de que tem. O autor retorna à discussão do capítulo 1:22 – “E sede cumpridores da palavra, e não somente ouvintes, enganando-vos com falsos discursos”, a fi m de ratifi car este princípio. ADENILTON T AVARES DE A GUIAR - D AS P ALAVRAS DE C RISTO ÀS V IRTUDES ... 87 Durante seu ministério, Jesus demonstrou viver o princípio de que as ações falam mais alto que as palavras. Isto é claramente percebido em Lc 7:20-22: 20 E, quando aqueles homens chegaram junto dele, disseram: João o Batista enviou-nos a perguntar-te: És tu aquele que havia de vir, ou esperamos outro? 21 E, na mesma hora, curou muitos de enfermidades, e males, e espíritos maus, e deu vista a muitos cegos. 22 Respondendo, então, Jesus, disse-lhes: Ide, e anunciai a João o que tendes visto e ouvido: que os cegos vêem, os coxos andam, os leprosos são purifi cados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e aos pobres anuncia-se o evangelho. O uso das formas verbais curou e deu vista evidenciam esta praticidade. Em Mt 5:16, ele faz um apelo aos seus ouvintes para que vivam uma vida autêntica; para tanto, utiliza a metáfora da luz, que, nas palavras de Chouinard (1997, disponível em Logos Bible Software) se torna mais clara pela referência a “uma cidade edifi cada sobre o monte” e “a candeia sobre o alqueire” (vv. 14-15). Ambas as ilustrações enfatizam que é natural à lâmpada brilhar e ser vista. É signifi cativo que antes do imperativo (resplandeça a vossa luz), o indicativo (vós sois – vv. 13-14) provê o incentivo às testemunhas: “Os discípulos não estão sendo advertidos a completar a tarefa que os trará a um estado desejado, antes estão sendo advertidos a que sejam o que já são”. Stulac (1993, disponível em Logos Bible Software) vê algo semelhante no texto de Tg 2:26, ao afi rmar que “se fé sem ações é morta como um corpo sem espírito, então fé sem ações não é genuína, não é cristã, não é salvadora”. E, por que não acrescentar: “não é autêntica”? Stulac continua, dizendo que tal fé é “inexpressiva, inútil, impotente, inerte e impostora”. 88 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 73-107 Outra correspondência entre Mateus e Tiago quanto ao tema da autenticidade pode ser vista no quadro abaixo:

Mateus 5:34-37 Tiago 5:12 Eu, porém, vos digo que de maneira Mas, sobretudo, meus irmãos, não nenhuma jureis; nem pelo céu, porque jureis, nem pelo céu, nem pela é o trono de Deus; 35 Nem pela terra, terra, nem façais qualquer outro porque é o escabelo de seus pés; nem por juramento; mas que a vossa palavra Jerusalém, porque é a cidade do grande seja sim, sim, e não, não; para que Rei; 36 Nem jurarás pela tua cabeça, não caiais em condenação. porque não podes tornar um cabelo branco ou preto. 37 Seja , porém, o vosso falar: Sim, sim; Não, não; porque o que passa disto é de procedência maligna. porém – v. 34 Mas de maneira nenhuma jureis – v. 34 sobretudo não jureis nem pelo céu , porque é o trono de Deus Nem pelo céu – v. 34 Nem pela terra , porque é o escabelo de Nem pela terra seus pés – v. 35 Nem por Jerusalém – v. 35 Nem façais qualquer outro Nem pela tua cabeça – v. 36 juramento Porém – v. 37 mas Seja – v. 37 seja O vosso falar – v. 37 A vossa palavra Sim, sim – v. 37 Sim, sim Não, não Não, não Porque o que passa disto é de procedência Para que não caiais em maligna. – v. 37 condenação.

Mateus está citando Tiago ou Tiago está citando Mateus? A resposta a esta pergunta escapa ao objetivo deste trabalho. Holloway (1996, disponível em Logos Bible Software) prefere dizer que “Tiago está citando Jesus”. Por ora, baste, apenas, perceber a estreita relação entre os dois textos, que mais parecem ser o mesmo texto. Dibelius (1976, p. 248) atrai a nossa atenção para algo relacionado a Tiago 5:12. Segundo ele, “este verso não tem relação com a parte ADENILTON T AVARES DE A GUIAR - D AS P ALAVRAS DE C RISTO ÀS V IRTUDES ... 89 anterior nem posterior”. O comentário de Dibelius diz respeito mais especifi camente ao uso da expressão “sobretudo”. Uma vez que o verso está solto na perícope, nós não sabemos, acrescenta ele, se tal palavra se originou a partir de outro contexto ou se o próprio Tiago a inseriu aqui. Talvez, se Dibelius tivesse percebido um pouco mais a correspondência entre Tiago e Mateus – ou, para dizer de uma maneira mais estrita, a maneira como Tiago cita as palavras de Jesus –, ele teria afi rmado que tal palavra se originou de outro contexto sem se preocupar em apresentar a possibilidade de que Tiago simplesmente a tivesse inserido. Se Dibelius está correto 18 , é possível que Tiago tenha introduzido este verso apenas para relembrar um ensinamento de Jesus, o qual seria útil aos leitores do apóstolo. MacArthur (1998, p. 263) comenta que os juramentos se tornaram uma prática comum entre os judeus como uma forma de forçar os indivíduos a serem verdadeiros e a cumprirem suas promessas, porquanto haviam adquirido o hábito de jurar falsamente. Ele acrescenta que “isto se tornou um problema na igreja, particularmente para as congregações predominantemente judaicas para as quais Tiago escreveu” (MacARTHUR, 1998, p. 264), e não deixa de notar o fato de que Jesus também condenou esta prática.

EMPATIA

Mateus 25:42-43 Tiago 2:15-16 Porque tive fome, e não me destes de 15 E, se o irmão ou a irmã estiverem comer; tive sede, e não me destes de beber; nus, e tiverem falta de mantimento 43 Sendo estrangeiro, não me recolhestes; quotidiano, 16 E algum de vós lhes estando nu, não me vestistes; e enfermo, disser: Ide em paz, aquentai-vos, e na prisão, não me visitastes. e fartai-vos; e não lhes derdes as coisas necessárias para o corpo, que proveito virá daí?

18 Certamente, há quem discorde da posição de Dibelius, a exemplo de Lange, Schaff e Mombert (2008, p. 137), ao afi rmarem que “a ideia fundamental que conecta este verso com o v. 11 e o v.13 etc., é a diminuição do fanático excitamento que estava crescendo constantemente entre os judeus e ameaçando, através da infl uência de judai- zantes, despojar as Igrejas cristãs judaicas de sua compostura.” 90 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 73-107 Mills (1997, disponível em Logos Bible Software) comenta que para que alguém aprecie a ilustração que Tiago usa nesses versos, é necessário lembrar que em 2:1-13 ele propõe a questão: “se você pensa estar salvo, a sua vida evidencia o amor que Cristo exige dos crentes?”. Ele acrescenta que algumas pessoas podem ser tentadas a responder esta questão tratando o amor puramente como emoção; mas Tiago, sempre prático, imediatamente descarta tal conceito, visto que a ilustração aponta para o fato de que o verdadeiro amor não se resume na expressão de sentimentos, mas na demonstração através de ações. O primeiro ponto a observar é que a falta de roupa e alimento faz correspondência com Mt 25:35,36,42,43. A razão de se estabelecer uma comparação entre Tg 2:15-16 e Mt 25:42-43 (em detrimento dos versos 35 e 36) deve-se ao fato de que o grupo mencionado nos versos 35 e 36 de Mateus realiza as boas ações representadas pelos atos de alimentar a quem teve fome, dar de beber a quem teve sede, vestir a quem precisou de roupa e visitar os presos e os enfermos. Diferentemente deste, o grupo mencionado nas perícopes apresentadas no quadro acima deixa de fazer tais coisas, e por isso são advertidos, como deixa transparecer o contexto das duas passagens. O grego de Tiago é bastante instrutivo, podendo lançar luz sobre esta discussão. A forma verbal estiverem , no verso 15, não deriva do verbo grego comumente usado para estar (eivmi,), mas de u`pa,rcw , cujo sentido mais profundo é estar à disposição de . Assim, essa passagem ensina que a pobreza e a necessidade do próximo são colocadas à disposição do cristão, e tornam-se uma oportunidade para que ele demonstre a compaixão de Jesus. Mills (1997, disponível em Logos Bible Software) observa que Tiago é irônico ao estabelecer um trocadilho a partir dos verbos u`pa,rcw no v. 15 e u`pa,gw (ir), no v. 16. A ironia consiste no fato de que u`pa,rcw aponta para uma oportunidade que se desdobra diante do cristão, conforme foi explicado acima, mas este, em vez de aproveitar tal ADENILTON T AVARES DE A GUIAR - D AS P ALAVRAS DE C RISTO ÀS V IRTUDES ... 91 oportunidade, simplesmente diz: “Ide ( u`pa,gete 19 ) em paz”. A propósito, esta expressão faz parte de um tríplice imperativo: “ Ide em paz, aquecei - vos, fartai -vos”. Através destes imperativos, Tiago nos faz enxergar o ápice da indiferença: alguém diz ao necessitado que vá em paz, que se aqueça e que se farte. Mas como pode alguém fartar-se se não tem o que comer? E como pode aquecer-se se não tem o que vestir? E como pode ir em paz nessas circunstâncias? Em vez de comida e agasalho, os pobres recebem obras “frias” e palavras “quentes”. Obviamente, o objetivo de Tiago, sobretudo ao evocar mais um ensinamento de Jesus, não é exacerbar a apatia, mas promover empatia. Nas palavras de Ferreira (2001, p. 258) empatia é a “tendência para sentir o que sentiria caso estivesse na situação e circunstâncias experimentadas por outra pessoa”, como se pode perceber na fala abaixo: 37 Então os justos lhe responderão, dizendo: Senhor, quando te vimos com fome, e te demos de comer? ou com sede, e te demos de beber? 38 E quando te vimos estrangeiro, e te hospedamos? ou nu, e te vestimos? 39 E quando te vimos enfermo, ou na prisão, e fomos ver-te? 40 E, respondendo o Rei, lhes dirá: Em verdade vos digo que quando o fi zestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fi zestes. 20 Mateus 25:37-40. A declaração de Jesus, no v. 40, revela que ele se identifi ca com a causa do faminto (v.37), do sedento (v.37), do estrangeiro (v. 38), do nu (v.38), do enfermo (v.39) e do aprisionado (v.39). Mas não apenas isto, os justos (v. 37) também são apresentados como aqueles que simpatizam com a necessidade alheia. Davies e Allison (2004, p. 427) relembram-nos de que o próprio Jesus, em duas ocasiões anteriores, alimentou a multidão (Mt14:13-21; 15:32-39). Assim, foi com ele que os justos aprenderam a se identifi car com as necessidades dos outros. A diferença entre o grupo que demonstra empatia do grupo que se comporta com apatia (Tg 2:15- 16; Mt 25:42-43) é enfatizada a partir da recompensa anunciada no v. 46:

19 u`pa,gete é a segunda pessoa do plural do presente do imperativo ativo do verbo u`pa,gw . 20 Grifos acrescentados. 92 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 73-107 “E irão estes para o tormento eterno, mas os justos para a vida eterna”. Conforme comenta Barton (1996, p. 496), é importante lembrar que “a lista 21 não é exaustiva; antes, representa todo tipo de boas obras. Esta parábola não está ensinando salvação pelas boas obras, mas a evidência da salvação através das boas obras”. Esta é a tese de Tiago.

BOA F É

Mateus 7:1-2 Tiago 4:11-12 NÃO julgueis, para que não sejais 11 Irmãos, não faleis mal uns dos julgados. 2Porque com o juízo com outros. Quem fala mal de um que julgardes sereis julgados, e com irmão, e julga a seu irmão, fala a medida com que tiverdes medido mal da lei, e julga a lei; e, se tu vos hão de medir a vós. julgas a lei, já não és observador da lei, mas juiz. 12 Há só um legislador que pode salvar e destruir. Tu, porém, quem és, que julgas a outrem?

Não se pretende aqui utilizar a expressão boa fé como um termo jurídico, nem tampouco tecer uma diferenciação entre uma boa fé subjetiva e uma boa fé objetiva. Embora Jesus e Tiago estejam usando metáforas do mundo jurídico, o cerne da questão diz respeito ao ato de aceitar as pessoas como elas são, mais do que isto: de recebê-las sem acalentar nenhuma espécie de pré-conceito. A ideia acima é confi rmada por Barton (1996, p. 129) ao salientar que, se por um lado, a ordem de Jesus “não julgueis” não se refere a uma sala onde as intenções de alguém é medida segundo um código de ética, por outro, não isenta os cristãos da necessidade de tecer juízo em algumas situações. Hagner (2002, p. 169) ratifi ca este pensamento ao dizer que “a ordem ὴ κρίνετε , literalmente, ‘não julgueis’, não deveria ser tomada como uma proibição de toda espécie de julgamento ou discernimento entre o certo e o errado”. Jesus,

21 O autor está se referindo à lista de boas obras apresentadas em Mateus 25:35- 36. ADENILTON T AVARES DE A GUIAR - D AS P ALAVRAS DE C RISTO ÀS V IRTUDES ... 93 por exemplo, falando aos discípulos, orienta-os a acautelar-se dos “falsos profetas”, e conclui: “pelos seus frutos os conhecereis” (Mt 7: 15-16). Ninguém consegue fazer isto sem praticar alguma espécie de julgamento. O verbo kri,nw , comumente traduzido como julgar , também signifi ca avaliar , examinar , etc. Portanto, Jesus está advertindo aqueles que se deixam levar pelas aparências, que criam um conceito em relação a uma pessoa antes de avaliar, de examinar, a partir dos frutos. A pessoa de boa fé age diversamente da pessoa preconceituosa. Ela forma um conceito em relação a alguém, somente após criteriosa avaliação. Seria o caso de dizer que a boa fé jamais acalenta pré-conceito, mas sempre nutre, por assim dizer, um pós-conceito, com base em dois princípios que, segundo Barton (1996, p. 129), são as “medidas de Deus”, i.e., amor e justiça. Por outro lado, a boa fé também não faz acepção de pessoas, não é parcial, não é seletiva no sentido de ter predileção por uns em detrimento de outros; a propósito, outra nuança da palavra grega kri,nw , traduzida como julgar , é preferir , e isto nos leva a Tiago 2:1-4: MEUS irmãos, não tenhais a fé de nosso Senhor Jesus Cristo, Senhor da glória, em acepção de pessoas. 2 Porque, se no vosso ajuntamento entrar algum homem com anel de ouro no dedo, com trajes preciosos, e entrar também algum pobre com sórdido traje, 3 E atentardes para o que traz o traje precioso, e lhe disserdes: Assenta-te tu aqui num lugar de honra, e disserdes ao pobre: Tu, fi ca aí em pé, ou assenta-te abaixo do meu estrado, 4 Porventura não fi zestes distinção entre vós mesmos, e não vos fi zestes juízes de maus pensamentos? Com base no texto acima, Mills (1997, disponível em Logos Bible Software) ressalta a necessidade de se evitar a escolha de relacionamentos com base, apenas, nas preferências pessoais. Para ele, a discriminação se apresenta também como uma forma de julgar da qual o cristão deve se esquivar. Possivelmente, esta é a razão de Tiago ter começado a discussão sobre a necessidade de evitar os julgamentos, a partir de uma advertência contra a acepção de pessoas (v.1). Ele toca novamente na questão da lei, para deixar claro que demonstramos agir de acordo com 94 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 73-107 ela, quando tratamos as pessoas indiscriminadamente. Este pensamento se torna evidente com a ilustração proposta em 2:2-4. Nessa ilustração, é-nos apresentado um homem usando um anel de ouro; não obstante, não é o anel que está em foco, mas o homem rico. Ele adentra o recinto trajando uma roupa luxuosa, que muito bem pode ser entendida como uma metonímia para aparência. Obviamente, as pessoas que procuram tal homem, fazem-no por interesse, e tal comportamento contrasta com o que Jesus disse: “buscai primeiro o reino de Deus e todas as outras coisas serão acrescentadas” (Mt 6:33). A ilustração fi naliza com uma questão: “e não vos fi zestes juízes de maus pensamentos ( dιαλογισό̋ )?”, a qual atribui um fechamento apoteótico à perícope: alguns da audiência tornaram-se juízes, usurpando o papel reservado somente a Deus. Este é o conceito expresso em 4:12: “Há um só legislador”. A palavra dιαλογισό̋ carrega a ideia de pensamento ou opinião e poderia também signifi car decisão , como um termo técnico num cenário legal. Segundo Mills (1997, disponível em Logos Bible Software), esta linguagem forense é consistente num contexto de uma igreja em ajuntamento, i.e., para decidir um caso judicial. As personagens da ilustração tornaram-se não apenas juízes, mas juízes de más decisões. No pensamento de Tiago, fazer acepção de pessoas é uma má decisão. Ele quer mostrar a importância de aceitar as pessoas como elas são – de esperar delas coisas boas, de não desenvolver qualquer espécie de preconceito –, visto que a situação do momento era justamente o inverso, conforme se pode observar nas palavras de Hanna (1993, p. 19): “a proibição no presente ὴ κρίνετε [não julgueis] se usa para proibir uma ação que já está ocorrendo: deixem de julgar .” ADENILTON T AVARES DE A GUIAR - D AS P ALAVRAS DE C RISTO ÀS V IRTUDES ... 95 SENSIBILIDADE AO D EVER

Mateus 25:45 Tiago 4:17 Então lhes responderá, dizendo: Em Aquele, pois, que sabe fazer o bem e verdade vos digo que, quando a um não o faz, comete pecado. destes pequeninos o não fi zestes, não o fi zestes a mim.

Há uma intrínseca relação entre Tg 4:17 e Mt 25:45, quanto à denúncia ao pecado da omissão. Tiago está relembrando mais um ensinamento de Jesus patenteado em suas parábolas: o princípio de que falhar em fazer o bem é pecado. Na parábola do Bom Samaritano (Lucas 10), o levita e o sacerdote são reprovados por deixarem de fazer aquilo que eles, talvez mais do que o samaritano, sabiam ser correto; de igual modo, na parábola dos talentos (Mateus 25) é reprovado o servo que não administrou convenientemente os bens a ele confi ados. Nas palavras de seu senhor, vê-se claramente a sua falta: “ mau e negligente servo [...] devias 22 então ter dado o meu dinheiro aos banqueiros e, quando eu viesse, receberia o meu com juros”. Mateus 25:26-27. Embora se possa inferir, a partir dessas parábolas, que Jesus está ensinando o princípio de que deixar de fazer o bem é pecado, é em Mateus 25:45 que ele toca mais diretamente nessa questão. (MILLS, 1997, disponível em Logos Bible Software). A esta altura, é pertinente o comentário de Carro, Poe e Zorzoli (1997, p. 322): “Recordemos que todo o cap. 25 é particular a Mateus e que nos outros evangelhos não existe nada comparável, ou paralelo, com este conjunto de ensinos”. Neste capítulo, Mateus usa as palavras de Jesus com o objetivo de demonstrar que ele se identifi ca com os seus seguidores, e que aqueles que se identifi cam com ele e desfrutam de uma condição mais confortável devem ser sensíveis às necessidades dos pequeninos . Barton (2001, disponível em Logos Bible Software) observa que “o conceito de 22 Grifos acrescentados 96 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 73-107 serviço a Jesus através do serviço aos outros remonta a Pv 19:17". Talvez, Tiago não tivesse este texto em mente ao afi rmar que deixar de praticar o bem é pecado, mas parece estar claro que em Tg 4:17 há uma referência a Mt 25:45. Esta opinião é reforçada pelo comentário de Martin (2002, p. 168) ao afi rmar que “a maioria dos comentaristas concorda que este verso é uma máxima independente”, portanto Tiago está citando um pensamento comum, porém aplicando-o de maneira específi ca a partir das palavras de Jesus. Ou seja, não fazer “a um destes pequeninos” (Mt 25:45), nas palavras de Tiago, é não fazer o bem . Semanticamente falando, o objeto direto do verbo fazer de Mt 25:45 encontra-se no verso anterior: “quando te vimos com fome, ou com sede, ou estrangeiro, ou nu, ou enfermo, ou na prisão, e não te servimos?”. Assim, de maneira mais estrita, fazer o bem é saciar a fome, é mitigar a sede, é vestir o nu, é hospedar o estrangeiro, é visitar o enfermo e o preso. Em toda a sua carta, Tiago está chamando a atenção para a prática da lei: o amor. Isto relembra as palavras do apóstolo João: “Meus fi lhinhos, não amemos de palavra, nem de língua, mas por obra e em verdade” I Jo 3:18. Ninguém duvida de que praticar o bem, nestes termos, seja um consenso universal. Ao dizer: “Aquele, pois, que sabe fazer o bem e não o faz, comete pecado”, Tiago não está admitindo que haja alguém que não saiba ser correto servir o faminto, o sedento, o nu, o estrangeiro, o enfermo e o preso; ao contrário, ele está enfatizando que não é correto deixar de fazer isto. Ao mesmo tempo, apela à sensibilidade social daqueles que sabem o que devem fazer, mas não estão fazendo . ADENILTON T AVARES DE A GUIAR - D AS P ALAVRAS DE C RISTO ÀS V IRTUDES ... 97 VISÃO E SPIRITUAL

Mateus 6:19-21 Tiago 5:2-4 19 Não ajunteis tesouros na terra, onde 2As vossas riquezas estão a traça e a ferrugem tudo consomem, e apodrecidas, e as vossas vestes estão onde os ladrões minam e roubam; 20 Mas comidas de traça. 3O vosso ouro ajuntai tesouros no céu, onde nem a e a vossa prata se enferrujaram; e traça nem a ferrugem consomem, e onde a sua ferrugem dará testemunho os ladrões não minam nem roubam. contra vós, e comerá como fogo 21 Porque onde estiver o vosso tesouro, a vossa carne. Entesourastes para aí estará também o vosso coração. os últimos dias. 4Eis que o jornal dos trabalhadores que ceifaram as vossas terras, e que por vós foi diminuído, clama; e os clamores dos que ceifaram entraram nos ouvidos do Senhor dos exércitos.

Não é necessário muito esforço a fi m de perceber que o texto de Tiago, acima, é uma reminiscência das palavras de Jesus registradas em Mateus 6:19-21: não somente o tema, mas a própria escolha das palavras demonstram que Tiago está relembrando um princípio crucial do cristianismo – princípio este que nos protege do materialismo sórdido, da ambição ignóbil e do apego exacerbado às coisas em detrimento das pessoas. Sempre que este princípio foi infringido, o cristianismo foi mal interpretado, como se pode perceber nas palavras de Nietzche (apud Yancey, 2004, p. 147): “seus discípulos têm de parecer mais salvos para que eu creia em seu salvador”. Por sua vez, Nowen (apud Shaw, 2005, p. 71) nos lembra de que, mesmo dentro do cristianismo, houve pessoas que se apropriaram do nome de Jesus em benefício de uma causa particular: Uma das maiores ironias da história da cristandade é que os líderes sempre cederam à tentação do poder – poder político, poder militar, poder econômico ou moral e poder espiritual –, embora continuassem a falar no nome de Jesus. O princípio mencionado no parágrafo anterior pode muito bem ser explicado a partir das palavras de Lewis (apud Yancey, 2004, p. 265), ao comentar que tudo que vemos na terra representa “somente a fragrância 98 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 73-107 de uma fl or que não encontramos, o eco de uma música que não ouvimos, as notícias de um país que ainda não visitamos”. Em seu dia a dia, Jesus se deparava com pessoas a quem a efemeridade da vida passava despercebida. Uma a quem sempre fazemos referência, quando o assunto é materialismo, é o jovem rico, cuja história é contada em Mateus 19. O clímax do diálogo entre os dois é alcançado no verso 21: “Disse-lhe Jesus: Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens e dá-o aos pobres, e terás um tesouro no céu; e vem, e segue-me”. Mais uma vez aparece a expressão “tesouro no céu”, como em Mt 6:20; no entanto, para o jovem rico, Jesus impõe a condição: “se queres ser perfeito[...], vende tudo”. A condição pode parecer exorbitante, mas as palavras de Mt 6:21 a coloca em seu devido lugar: “Porque onde estiver o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração”. Jesus não está advertindo o rapaz pelo fato de ele ter riquezas, mas pelo fato de as riquezas o terem; não é por ser dono de tantos bens, mas por ser escravo deles. Yancey (op. cit., p. 81) nos lembra de uma frase famosa de Oscar Wilde: “neste mundo existem somente duas tragédias. Uma é não conseguir o que se deseja, e a outra é conseguir”. Parece que esta foi a tragédia do jovem. O relato seguinte nos mostra que ele “retirou-se triste, porque possuía muitas propriedades” (v. 21). Percebe-se um sabor de ironia nestas palavras. Não é comum ver por aí pessoas tristes porque possuem muitas propriedades. Nem é este o caso nesta narrativa. Ele não estava triste porque possuía muitas riquezas, mas porque não estava disposto a alcançar o ideal proposto por Jesus em detrimento delas. Retornando à correspondência entre Mateus e Tiago, observa-se que, enquanto as palavras de Jesus registradas em Mateus assumem a confi guração de uma parênese, com a fórmula: não faça isto, mas isto, por causa disto , as palavras de Tiago se apresentam com certo tom de denúncia. Estes vieses podem ser mais bem visualizados a partir do quadro abaixo: ADENILTON T AVARES DE A GUIAR - D AS P ALAVRAS DE C RISTO ÀS V IRTUDES ... 99 FÓRMULA Mateus 6:19-21 Não faça isto “Não ajunteis tesouros na terra [...]” – v. 19 Mas isto “Mas ajuntai tesouros no céu [...] “ – v. 20 Por causa disto “Porque onde estiver o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração.” – v. 21.

Não é difícil notar que terra (v. 19) e céu (v. 20) estão em oposição, e que, assim, a intenção por trás do uso da palavra onde (v. 21) se torna muito clara. É como se subjacente ao verso 21 houvesse o seguinte questionamento: “Onde está o vosso tesouro, na terra ou no céu?”. Os argumentos de Jesus buscam conduzir a mente dos ouvintes às vantagens das coisas espirituais. Na terra, a traça e a ferrugem tudo consomem, e os ladrões minam e roubam; no céu, nem a traça nem a ferrugem consomem, e os ladrões não minam nem roubam. As quatro palavras de valor negativo – nem, nem, não e nem – demonstram o interesse de enfatizar o quanto são incorruptíveis os tesouros celestiais, e o quanto vale a pena colocar o coração neles. Tiago compartilha este pensamento, mas a sua voz, conforme já foi mencionado, possui um tom de ameaça contra aqueles que fi zeram da riqueza um deus. Cevallos (2006, p. 275) perspicazmente percebe que “o rico interpretou mal o sentido das riquezas: [...] dar de comer ao faminto, dar roupa ao nu, sustentar a vida [...]”. Nesse sentido, o texto de Tiago apresenta uma mordaz inversão de valores: estima-se aquilo que é perecível e rejeita-se aquilo que é perene. Retornando às palavras de Lewis, muitos prescindem do “tesouro no céu” pelo fato de, por ora, ele representar “somente a fragrância de uma fl or que não encontramos, o eco de uma música que não ouvimos, as notícias de um país que ainda não visitamos”; e isto não se vê pelas lentes do materialismo: isto requer visão espiritual. 100 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 73-107 ESPERANÇA

Mateus 24:31-32 Tiago 5:7-9 31 E ele enviará os seus anjos com 7Sede pois, irmãos, pacientes até à vinda rijo clamor de trombeta, os quais do Senhor. Eis que o lavrador espera o ajuntarão os seus escolhidos desde precioso fruto da terra, aguardando-o os quatro ventos, de uma à outra com paciência, até que receba a chuva extremidade dos céus. 32 Aprendei, temporã e serôdia. 8 Sede vós também pois, esta parábola da fi gueira: pacientes, fortalecei os vossos corações; Quando já os seus ramos se tornam porque já a vinda do Senhor está próxima. tenros e brotam folhas, sabeis que 9 Irmãos, não vos queixeis uns contra os está próximo o verão. outros, para que não sejais condenados. Eis que o juiz está à porta.

Mills (1997, disponível em Logos Bible Software) argumenta que os versos anteriores a Tg 5:7 não confi guram necessariamente uma mensagem de advertência aos destinatários da carta, i.e., judeus cristãos (1:1). A advertência é contra aqueles que, ao reter o salário dos trabalhadores (v.3), infl igiram alguma espécie de sofrimento aos cristãos. A linguagem é escatológica e com alusões a uma cena de juízo fi nal, e.g., o v. 3 fala de pessoas cujas carnes serão consumidas pelo fogo e que entesouraram para os últimos dias ; esta parece ser a sentença. Os v. 5 e 6 anunciam o crime cometido por elas: “deliciosamente vivestes sobre a terra, e vos deleitastes; cevastes os vossos corações, como num dia de matança. Condenastes e matastes o justo; ele não vos resistiu.” Portanto, este grupo é acusado de viver somente para o aqui e o agora, passando por cima de qualquer coisa ou pessoa a fi m de alcançar os seus objetivos. A expressão “entesourastes para os últimos dias” se apresenta como uma ironia, visto que relembra “tesouros na terra”. Em outras palavras, acumular tesouros na terra é acumular para os últimos dias. Obviamente, conforme observa Mills, estes juízos não se aplicam aos cristãos. Desse modo, o assunto introduzido no v.7 se apresenta como uma mensagem de esperança destinada aos cristãos. A palavra irmãos (v.7) deixa claro a quem se destina esta seção; e a palavra pois (v.7) conecta ADENILTON T AVARES DE A GUIAR - D AS P ALAVRAS DE C RISTO ÀS V IRTUDES ... 101 o que vai ser dito (v. 7-9) com o que foi dito (v. 1-6). A base para esta esperança se encontra na parusia – a vinda do Senhor (v.7). A fi m de demonstrar a necessidade da espera, Tiago propõe no v.7 uma espécie de parábola cujo personagem se apresenta na fi gura de um lavrador que espera o precioso fruto da terra. Não há nada que o lavrador possa fazer para que o fruto se antecipe; tudo que ele tem a fazer, além de lançar a semente, é esperar. Alguns podem ver a espera não mais do que como um período de extrema ansiedade, outros a veem como “um período de aprendizagem. Quanto mais esperamos, mais ouvimos falar sobre quem estamos esperando.” (NOWEN apud Shaw, 2005, p. 71). É nesse sentido que Tiago apela aos seus leitores: “sede vós também pacientes, fortalecei os vossos corações”, e continua, mostrando que possui uma mensagem eminente sobre um evento iminente: “porque já a vinda do Senhor está próxima” (v. 8). Esta é a razão para a paciência. A propósito, a própria paciência é comum de quem espera. As expressões “porque já a vinda do Senhor está próxima” (Tg 5:8) e “eis que o juiz está à porta” (Tg 5:9) se apresentam em tom de urgência, e estão em consonância com “sabeis que está próximo o verão” (Mt 24:32). Jesus também propôs uma parábola a fi m de explicar a brevidade da parusia , a qual se tornou para os discípulos a fonte de suas mais acalentadas esperanças. Eles viam ao seu redor um estado atual de coisas que lhes causavam grandes perplexidades, mas se mantiveram fi rmes, porque tinham algo por que esperar, ainda que intangível. Não obstante, de outro modo não seria esperança, conforme esclarecem as palavras de Paulo: “Ora a esperança que se vê não é esperança; porque o que alguém vê como o esperará? Mas, se esperamos o que não vemos, com paciência o esperamos”. Rm 8:24-25. 102 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 73-107 AÇÃO E VANGELIZADORA

Mateus 28:19-20 Tiago 5:19-20 19 Portanto ide, fazei discípulos de todas 19 Irmãos, se algum dentre vós se as nações, batizando-os em nome do tem desviado da verdade, e alguém Pai, e do Filho, e do Espírito Santo; o converter, 20 Saiba que aquele 20 Ensinando-os a guardar todas as que fi zer converter do erro do seu coisas que eu vos tenho mandado; e eis caminho um pecador, salvará da que eu estou convosco todos os dias, morte uma alma, e cobrirá uma até a consumação dos séculos. Amém. multidão de pecados.

Tiago termina sua carta da mesma forma como Jesus encerrou seu ministério, de acordo com o relato dos evangelhos sinóticos: com uma convocação para uma ação evangelizadora; assim, mais uma vez Tiago traz à lembrança uma mensagem de Jesus registrada em Mateus, ao evo- car a Grande Comissão. O vocativo irmãos , v. 19, demonstra que Tiago está se dirigindo a um grupo de pessoas que está em comunhão com a igreja, muito embora a sentença condicional “se algum dentre vós se tem desviado da verdade” deixe claro que a sua preocupação se concentra exatamente nos indivídu- os que, eventualmente deixado a igreja. Estes devem ser objeto do zelo evangelístico dos irmãos . Loh & Hatton (1997, p. 196) explicam que “o verbo traduzido por ‘se tem desviado’ não deveria sugerir que distanciar- se da verdade seja algo acidental. Isto é uma metáfora, comparando a vida a uma estrada que o crente segue.” A metáfora se confi rma no v. 20, quando Tiago usa uma nova metáfora: caminho , que é do mesmo campo semântico. A palavra “erro”, v. 20, vem de pla,nhj , e tem a mesma raiz da forma verbal “se tem desviado” ( planhqh/|). Isto confi rma o pensamento de que ao afastar-se, o pecador o fez deliberadamente. Assim, estas me- táforas evidenciam que tipo de atitude Tiago espera ver dos “irmãos”: um interesse profundo mesmo por pessoas que, nas palavras de Loh & Hatton (1997, p. 197), afastaram-se não por “um abandono inconsciente da verdade mas pela rejeição da vontade de Deus”. Mais do que isto, ADENILTON T AVARES DE A GUIAR - D AS P ALAVRAS DE C RISTO ÀS V IRTUDES ... 103 Mills (1997, disponível em Logos Bible Software) comenta que “cobrir pecados” (fi nal do verso 20) é uma expressão judaica frequentemente encontrada no Antigo Testamento, o qual indica perdão. Destarte, a ação evangelizadora que Tiago pretendia ver na comu- nidade eclesial para quem escrevia é a própria antítese do ato de julgar – ato que ele condena veementemente ao longo de sua carta –, conforme expressa Carson (1994, disponível em Logos Bible Software), “em vez de condenação, restauração é o objetivo. Isto é o que Tiago espera que aconteça”. Num sentido mais superfi cial, não há uma correspondência exata entre Tg 5:19-20 e Mt 28:19-20, visto que enquanto Jesus está falando de um discipulado que se estende ao mundo inteiro: “fazei discípulos de todas as nações 23 ”, Tiago está falando de um trabalho local. No entanto, partir dos problemas tratados na carta – acepção de pessoas, ato de jul- gar, intrigas, interesses egoístas, materialismo, falsidade, enfi m, falta de amor recíproco –, não é necessário esforço a fi m de concluir que muito provalvemente havia muitos membros afastados da comunidade, afi nal, é difícil suportar uma atmosfera como esta. Ademais, enquanto Jesus comissionou os discípulos a alcançarem pessoas que não o conheciam, Tiago anima os fi eis a reconquistar os que já conheciam a pregação dos apóstolos (Tg 1:1). Num sentido mais profundo, porém, tanto na Grande Comissão quanto na exortação de Tiago, pode-se identifi car o mesmo princípio: uma ação evangelizadora que olha para o outro com despreten- sioso interesse.

CONSIDERAÇÕES F INAIS

A partir do que foi apresentado no corpo deste trabalho, discutiu-se a relação entre o evangelho de Mateus e a carta universal de Tiago, cujos temas são um campo fértil para debate. Tiago nos lembra constantemente

23 Grifos acrescentados 104 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 73-107 da necessidade de desenvolver as virtudes que nos identifi cam cristãos; exorta-nos a manter um falar simples e modesto, a viver uma vida piedo- sa, a atender as necessidades tanto físicas quanto espirituais nossas e dos que nos cercam, demonstrando preocupação com o bem-estar do outro; enfi m, encoraja-nos à prática das boas obras, como evidência do amor que dirige as nossas intenções. Obviamente, para que isto seja possível, é necessário o desenvolvi- mento de valores como paciência, altruísmo, misericórdia, autenticidade, empatia, credulidade, sensibilidade ao dever, visão espiritual – em oposi- ção ao materialismo – e uma ação evangelizadora. Como pôde perceber o leitor atento, dos valores cristãos discutidos neste trabalho, três não foram mencionados neste parágrafo. Isto foi feito intencionalmente a fi m de destacar aquilo que tão bem expressou o apóstolo Paulo, apontando que todos estes valores podem ser resumidos em três, conforme se pode inferir a partir do comentário: “agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três, mas o maior destes é o amor”. 1 Co 13:8. Aí está o cerne do Evangelho: a fé, a esperança e o Amor. Para concluir, resta dizer que, talvez não seja exagero declarar que, em Tiago, encontramos uma síntese da mensagem dos evangelhos.

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Jônatas Mattos Leal 2

RESUMO

O presente trabalho se propõe a analisar que tipo de experiência é descrita por Elifaz em Jó 4:12-21. Muitos a consideram uma experiência mística, misteriosa e de signifi cado obscuro. Para tanto, será feita uma breve exposição do contexto da perícope, privilegiando as palavras usadas no texto massorético, incluindo a palavra  em Jó 4:15 (para alguns autores,  deve ser interpretada simplesmente como um vento), e por fi m, será realizada uma sucinta comparação com experiências similares, defi nindo assim a natureza do relato de Elifaz, como um relato teofânico, e verifi cando, como Hartley 3 o fez, a fonte divina da mensagem exposta por Elifaz. PALAVRAS -CHAVE : Exegese. Elifaz. Espírito

1 O livro de Jó conta a história de um homem justo e próspero que num momento de sua vida perde tudo. A história do livro de Jó ocorre fora do contexto de Israel, na terra de Uz. E como um livro de sabedoria não está preocupado com as tradições históricas de Israel. Há uma ampla discordância com respeito à data do livro. Isto já fi ca evidente na literatura rabínica. De fato, é difícil determinar uma data com exatidão, mas ao que parece o background histórico remonta a época mais primitiva dos patriarcas. As- sim, trazendo Jó para o período pré-mosaico. Quanto à autoria e composição a discussão é maior ainda. 2 Professor de Línguas Bíblicas e Antigo Testamento no SALT - IAENE - Semi- nário Adventista Latino-Americano de Teologia/Instituto Adventista de Ensino do Nor- deste, mestrando em Ciências da Religião pela UNICAP - Universidade Católica de Pernambuco, bacharel em Teologia pelo SALT - IAENE. Seminário Adventista Latino- Americano de Teologia, BR 101, KM 197 - Cx. Postal 18 – Capoeiruçu – Cachoeira – BA – Brasil – CEP 44300-000 – Tel. (75) 3425 8318, .

3 HARTLEY, John E. The book of Job . Michigan: William B. Eerdemans Plub- lishing Company, 1998. p.111. 110 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 109-124 ABSTRACT

This study aims to examine the kind of experience described by Eliphaz in Job 4:12-21. Many consider it a mystical experience, mysterious and of an obscure meaning. This, it will set out briefl y the context of the passage, the words used in the Masoretic text, including word  in Job 4:15, which for some authors as Driver-Gray and Keil-Delittzsch is nothing but a wind, and fi nally there will be a brief comparison with similar experiences, thus defi ning the nature of the report of Eliphaz, as an theophanic account and fi nding, as Hartley did, the divine source of the message espoused by Eliphaz. PALAVRAS -CHAVE : Exegesis. Eliphaz. Spirit

INTRODUÇÃO

O relato de Elifaz em Jó 4:12-16 faz parte da primeira réplica ao pronunciamento de Jó cap. 3. A resposta de Elifaz claramente começa a traçar o tema das falas de Bildade e Zofar, ou seja, que Jó estava sofrendo como fruto de alguma iniquidade que tenha praticado. Tudo indica que Elifaz tenha vindo de Temam, uma importante idade de Edom (Am 1:12; Ob 9),  reconhecida por sua tradição de sabedoria 4. Sua teologia estava baseada na doutrina da retribuição direta. O ponto central dessa teologia é que o sofrimento é um castigo de Deus

4 Assim, “Elifaz aparece como representante da sabedoria dos edomitas, que, de acordo com Ob 8, Jr 49: 7, e Baruq 3:22, era famosa na antiguidade.” (Disponível em: http:// www.jewishencyclopedia.com). Seu nome aparece também em Gên. 36:4,10,11, sendo o fi lho mais velho de Esaú. Se de fato este é o amigo de Jó não se sabe. Segundo Champlin, outro dado que podemos acrescentar sobre Elifaz é que, dentre os três amigos de Jó, provavelmente ele era o mais idoso, pois foi o primeiro a falar. CHAMPLIN, R.N. O Antigo Testamento interpretado . v. 3. São Paulo: Editora Candeia, 2000. Depois que Jó quebrou o silêncio (2:13-3:1) Elifaz sentiu-se livre para começar seu discurso. Também poderia ser o mais eloquente, pois seus discursos eram sempre os mais longos. Assim, “sua retórica é cheia de ampla variedade de formas, como prové- rbios, analogias, percepções, exortações, ditos sapienciais, hinos e até o relato de uma visão.” HARTLEY, 1998. p. 103,104. JÔNATAS M ATTOS L EAL - U MA B REVE A NÁLISE DA E XPERIÊNCIA DE E LIFAZ ... 111 por alguma falta cometida 5. Por outro lado o bem estar é a recompensa pela obediência humana aos reclamos de Javé. Para apoiar essa teologia sobre a sorte dos justos e dos ímpios a partir da doutrina da retribuição (4:7-11) Elifaz conta o relato de uma revelação: Uma palavra se me disse em segredo; e os meus ouvidos perceberam um sussurro dela. Entre pensamentos de visão noturna, quando profundo sono cai sobre os homens, sobrevieram-me o espanto e o tremor, e todos os meus ossos estremeceram. Então um espírito passou por diante de mim; fez-me arrepiar os cabelos de meu corpo; parou ele, mas não lhe discerni a aparência; um vulto estava diante dos meus olhos; houve silêncio, e ouvi uma voz. (Jó 4:12-16, ARA) Aparentemente, ele estava usando “sua experiência mística para emprestar autoridade a seu dogma” 6. De fato, o propósito de Elifaz (4:12-21) é explicar que o justo nunca pode ser justo perfeitamente, por isso sofre como o ímpio. 7 Ele descreve o que reivindica ser uma revelação divina 8. Embora tal revelação esteja apoiando uma doutrina que no fi m do próprio livro será questionada, o conteúdo da mensagem transmitida na “visão” parece ser coerente não só com o livro de Jó, mas com o contexto geral do pensamento do Antigo Testamento: Deus é santo e justo e o ser humano impuro e injusto naturalmente. A mensagem que ouviu é resu- mida por ele assim: “Seria, porventura, o mortal justo diante de Deus? Seria, acaso, o homem puro diante do seu Criador? Eis que Deus não confi a nos seus servos e aos seus anjos atribui imperfeições; quanto mais àqueles que habitam em casas de barro, cujo fundamento está no pó, e são esmagados como a traça!” (Jó 4:17-19 ARA). 5 Esta teologia estava rigidamente dentro dos limites do período patriarcal (CHAMPLIN, 2000, p.1879) E é a teologia amplamente divulgada na literatura sapien- cial israelita. Este pensamento ainda infl uenciava muitos no período do Novo Testamen- to. No episódio da cura do cego de nascença (Jo. 9) se vê esta doutrina claramente na pergunta dos discípulos “Mestre, quem pecou: este ou seus pais, para que ele nascesse cego?”(v. 2) 6 CHAMPLIN, 2000. p.1879. 7 CLINES, D. J. A. word biblical commentary: Job 1-20 . v.17. Dallas: Word, Incorporated, 2002. p.128. 8 NICHOL, Francis et al. The seventh-day adventist bible commentary . vol. 2. Hagerstown: Review and Herald Publishing Association, 1976. p. 510. 112 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 109-124 Uma vez que a mensagem oriunda dessa experiência mística não é estranha ao Antigo nem ao Novo Testamento, não há motivo para atri- buía-la a um espírito maligno ou demoníaco como alguns propuseram. 9 Cevallos afi rma: Com um belo estilo literário e uma nota mística, Elifaz afi rma a doutri- na da inerente impureza do ser humano e a inclinação para o mal (v. 17; Gn 8:21; Is 59:4; 64:6, 7; Jr 17:9; Sl 143:2; Rm 3:23, etc.). A doutrina da inerente impureza humana era bem conhecida e não merecia tanto alarde como deu Elifaz: sua visão não era uma visão nova. 10 O que Elifaz parece defender, então, é que Jó, com impureza ineren- te não poderia questionar a Deus. Neste caso, se Jó estava sofrendo como resultado de uma punição divina, Deus não poderia estar equivocado. Jó era culpado e precisava reconhecer isso sem questionar a Deus ou bus- car defender sua causa diante dele. Para convencer Jó, Elifaz faz uso da tradição (4:1-7), da lógica (4: 8-11), e fi nalmente de uma revelação mis- teriosa (4:12-21). A propósito, aqui é a única vez em que um dos amigos de Jó reivindica receber revelações divinas. Tendo em vista essa breve introdução à narrativa, voltar-se-á a atenção para o objetivo deste artigo: analisar que tipo de experiência está sendo descrita nos versos 12 a 16. Principalmente no que diz respeito à referência ao “espírito” ( ) no verso 15. Para isto será analisado o vocábulo  e alguns relatos semelhantes a este em outras partes da Bíblia, bem como a passagem como um todo.

ANÁLISE DO R ELATO

É notório que a narrativa da visão (4:12-16) é obscura e misteriosa. O uso de palavras raras no Antigo Testamento e a forma como o relato é descrito deixam muitas dúvidas sobre o modo como a experiência de

9 LANGE, J. P. et al. A commentary on the Holy Scriptures: Job (331). Bell- ingham: Logos Research Systems, 2008. p. 331. 10 CEVALLOS, J. C. Comentario biblico mundo hispano .v.7. El Paso, Texas: Editorial Mundo Hispano, 2005. p. 299. JÔNATAS M ATTOS L EAL - U MA B REVE A NÁLISE DA E XPERIÊNCIA DE E LIFAZ ... 113 Elifaz exatamente aconteceu. É interessante notar que, por sua poesia e linguagem, alguns, têm considerado a sublimidade de Jó 4:12-16 enquanto narrativa. Em seu Tratado sobre o Belo e o Sublime, Burke observa: Há uma passagem no livro de Jó incrivelmente sublime, e esta subli- midade é principalmente devido a incerteza da coisa descrita[....] Pri- meiramente, somos preparados com extrema solenidade para a visão; somos terrifi cados antes de sermos levados à causa obscura de nossa emoção; mas quando esta grandiosa causa de terror torna-se aparente, o que ela é? Não está ela envolta nas sombras de sua própria escuridão incompreensível, mais tremenda, mais notável, mais terrível do que a mais viva, do que a mais clara pintura, poderiam representá-la? 11 Por isso, para elucidação de alguns pontos que podem fi car obscu- ros na leitura da perícope, seguem abaixo algumas observações e comen- tários.

VERSO 12

 E a mim uma palavra veio de surpresa, meu ouvido recebeu um sussurro por causa dela. 12 O uso da preposição com o sufi xo pronominal de primeira pessoa no início da frase, fora da ordem natural (verbo, sujeito, predicado) apon- ta para o caráter extremamente pessoal da experiência a ser descrita a seguir. A frase poderia ser lida: “foi a mim que uma palavra veio de surpresa”. Assim, “as palavras são enfáticas: elas contrastam o que foi revelado a Elifaz pessoalmente (cap. 15:11, 22:22) com o que Jó e ou- tras pessoas poderiam ter aprendido a partir da experiência ordinária” 13 . Como se vê, a palavra foi tão secreta que só pode ser ouvida por ele como um murmúrio ( ). O uso do verbo  (pual) que pode signifi car “vir furtiva-

11 Apud. LANGE, 2008. p. 331. 12 Tradução do autor 13 DRIVER; GRAY, 1986. p. 44. 114 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 109-124 mente” denota a forma repentina e inesperada que a palavra lhe vem. Ademais, Elifaz não é apresentado no texto como um profeta. Desta for- ma, aquela experiência lhe era excepcionalmente nova. O referente do sufi xo pronominal em  parece ser  (palavra). Neste caso, o sussurro não é parte da palavra que lhe sobreveio, mas é causado por ela. Por isso, a preposição  dever ser entendida aqui como causativa e não como partitiva. Assim, a “palavra” que lhe vem de forma inespe- rada é percebida por ele na forma de um sussurro ao ouvido. Destaca-se a posição do vocábulo “palavra” (  ) visto que a partir dele se pode inferir que embora isto fosse uma visão, foi o que Elifaz ouviu que era mais importante”. 14

VERSO 13  Em pensamentos inquietantes de visões noturnas quando cai o sono pro- fundo entre os homens.

De fato, é difícil saber ao certo se o que Elifaz descreve é um sonho ou uma visão. A passagem contém três palavras raras. Carson salienta que “pensamentos inquietantes” não aparece em nenhum outro lugar da Bí- blia, exceto Jó 20:2. Quatro das nove ocorrências desta vocalização para “sonhos” estão em Jó (7:14; 20:8; 33:15). “Sono profundo” está apenas em seis outros lugares, incluindo Jó 33:15 15 . A primeira palavra (  ) deve signifi car “pensamentos inquie- tos produzidos de diversas maneiras” 16 , o que abre espaço para diversas conjecturas: tais pensamentos inquietantes seriam fruto de uma noite de insônia, de pesadelos noturnos, ou de uma visão, de fato? O texto possui

14 HOOKS, S. M. Job . Joplin: College Press, 2006. p.99. 15 CARSON, D.A. Job. In: ALDEN, R. L. New american commentary: Job. v.11. Logos Library System: Broadman & Holman Publishers, 2001. p.87. 16 VANGEMEREN, Willem. New international dictionary of Old Testament theology and exegesis : Zondervan reference software. Grand Rapids: Zondervan, 2001. JÔNATAS M ATTOS L EAL - U MA B REVE A NÁLISE DA E XPERIÊNCIA DE E LIFAZ ... 115 duas indicações que podem esclarecer a questão. Em primeiro lugar, a palavra “visão” ( ) fora de Jó (5x em Zc 13:4 e 2Sm 7:17, por exemplo) sempre está ligada à experiência de um profeta. Por isso, está relacionada a visões proféticas, o que parece se aproximar do que está sendo descrito nos versos 14-16. Em segundo lugar, as expressões “pen- samentos inquietantes” e “visões de noite” estão ligadas pela preposição  , que, se usada aqui com sentido causativo, pode ajudar a esclarecer que os pensamentos inquietantes são consequência das visões noturnas. Se for esse o caso, o texto poderia ser entendido como “em pensamentos inquietantes por causa de visões noturnas”. É verdade que a terceira palavra, “sono profundo” (  ), pode denotar o estado provocado por Javé no contexto de uma visão ou sonho como é o caso de Abraão (Gn 15:12 cf Jó 33:15;1Sm 26:12; Is 29:10). Da mesma forma, O tema em que Deus faz um sono pesado cair sobre uma pes- soa a fi m de que esta receba um sonho é recorrente nas Escritu- ras. Por exemplo, Deus fez um sono pesado cair sobre Abraão durante a cerimônia da aliança (Gn 15:12–21). Isto também ocor- ria com as deidades na Mesopotâmia. Dagan (bíblico Dagon) frequentemente falava aos adoradores do templo em Mari e no nordes- te da Síria por meio de sonhos. Estes adoradores muitas vezes perma- neciam durante a noite para dormir no templo, esperando receber um sonho. 17 Porém, esta não parece ser a situação aqui. Pois o sono profundo não está ou vem sobre Elifaz, antes ele cai “sobre os homens” (  ). Desta forma, a palavra está sendo usada em sua acepção natural de sono genérico que cai sobre os homens no meio da noite. 18 Ademais, o infi niti- vo construto prefi xado com a preposição  (  ) geralmente introduz uma oração temporal. Em outras palavras, os pensamentos inquietantes em decorrência das visões noturnas que lhe acometeram naquela noite, 17 MATTHEWS, V. H.; CHAVALAS, M. W.; WALTON, J. H. The IVP bible background commentary : Old Testament (em Logos Bible Software). Downers Grove: InterVarsity Press, 2000. 18 Clines observa que a palavra também é usada no sentido comum de sono em diversas passagens do AT. Ver CLINES, 2002. p.129-130. 116 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 109-124 aconteceram exatamente no momento mais sombrio da madrugada, quan- do os homens estão em sono profundo. Além de salientar mais uma vez o caráter pessoal do ocorrido, a frase acrescenta um tom de suspense à narrativa. A razão de o autor usar a palavra  para sono em vez de  , pode indicar a intenção do narrador de conectar linguisticamente a experiência de Elifaz a outras experiências teofânicas no AT como no caso de Abraão. Assim, ao que parece, Elifaz não está descrevendo um sonho, mas uma visão que ocorre num momento em que está acordado ou é acorda- do no meio da noite enquanto todos dormem pesadamente. Segundo ele, essa experiência lhe provocou pensamentos “inquietantes”.

VERSO 14  O medo me sobreveio e o tremor, e grande quantidade de meus ossos fez tremer. Junto com o que foi discutido na parte anterior, este verso aponta para um relato de visão mais do que um sonho. O verso aparentemente descreve reações físicas de alguém que está acordado. Naturalmente, “o sonho ou a instigante visão de Elifaz o atemorizou porque estava consciente da presença do sobrenatural”. 19 A reação de espanto e pavor é comum a outras aparições sobrenaturais descritas no Antigo Testamento. Clines afi rma que “este terror na presença do numinoso é frequentemente retratado (e.g., Gn 15:12; Dn 8:17; 10:8, 10), e em ocasiões numerosas encontra a resposta divina ‘não temas!’ (e.g., Gn 15:1; 26:24; Is 40:9; 44:8)”. 20

19 CARSON, D. A. New Bible Commentary: 21st century edition . (dipsonível em Logos Bible Software). Downers Grove: Inter-Varsity Press, 1994. 20 CLINES, 2002.p.129. JÔNATAS M ATTOS L EAL - U MA B REVE A NÁLISE DA E XPERIÊNCIA DE E LIFAZ ... 117 VERSO 15  E um espírito passou sobre a minha face e arrepiou o cabelo de meu cor- po.

VERSO 16  Pôs-se em pé e não reconheci sua aparência, uma forma fi cou parada diante de meus olhos e uma voz eu ouvi: As versões são praticamente unânimes em traduzir  por espí- rito. 21 É sobre a identidade ou signifi cado deste termo que está a maior controvérsia nesta passagem. A palavra vem da raiz  que quer dizer “respirar, soprar”. A ideia básica seria “ar em movimento”. Porém, a pala- vra  assume diversos signifi cados, entre eles: força, valor, ventos, va- cuidade, atividade e vida. 22 Champlin ainda dá mais possibilidades: es- pírito humano desencarnado, demônio, espírito angelical, manifestações patológicas de mente perturbada e alucinação voluntária. 23 Na verdade, a palavra forma um rico campo semântico, aparecendo 378 vezes na Bíblia Hebraica e 31 vezes no livro de Jó. 24 Devido à gama de signifi cados que  pode assumir, a análise do contexto do termo é que determinará o signifi cado mais preciso da palavra. É importante salientar que outra acepção ocorre quando a palavra está conectada com o tetragrama e se refere ao “Espírito do Senhor”.

21 Duas exceções fi cam por conta das versões católicas, a Bíblia de Jerusalém (BJ) em português que traduz o texto por: “Um sopro roçou-me o rosto, e provocou ar- repios por todo o corpo”; e a New Jerusalem Bible (NJB) em inglês que traduz Jó 4:15 por: “A breath slid over my face, the hairs of my body bristled.” 22 HARRIS, R. Laird; ARCHER JR, Glaeson; WALTKE, Bruce K. Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento . São Paulo: Vida Nova, 1998. p.1407- 1409. Outros usos podem incluir: emoções de agressividade, consciência imaterial do homem e, quando associada a YHWH,  pode signifi car também Espírito Santo. 23 CHAMPLIN, 2000. p. 1883. Não é propósito aqui discutir sobre cada uma delas. 24 JENNI, Ernst; WESTERMANN, Claus. Theological lexicon of the Old Tes- tament . Massachusets: Hendrickson Publisher, 1997. p.1202-1220 118 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 109-124 Vangmeren salienta que “a expressão ‘Espírito de Deus’ aparece apenas 11 vezes, ‘Espírito do Senhor’ 25 vezes e ‘Espírito Santo’ 3 vezes ( Sl 51:11 [13]; Is 63:10, 11) 25 . Em diversas outras ocorrências, embora a palavra não apareça conectada a Senhor ou a Deus, a ligação torna-se explícita pelo contexto. Em todas estas passagens “frequentemente o Es- pírito de Deus representa o agente/agência pela qual Deus exerce seu controle soberano sob os indivíduos ”26 . Ademais, teologicamente, no AT o uso mais signifi cativo de  envolve sua representação do metafísico e numinoso 27 . No caso de Jó 4:12-16, em particular, o contexto sugere que a palavra não pode ser traduzida como "vento". É importante notar que há uma sequência de verbos no verso 16 que compreende  (passar),  (arrepiar),  (fi car em pé). O sujeito destes verbos só pode ser a palavra . É verdade que os verbos estão no masculino, mas isso não impede essa conclusão, já que  é um substantivo comum de dois gêneros, podendo gramaticalmente assumir tanto o masculino quanto o feminino 28 . Além disso, o sufi xo de terceira pessoa masculino singular, em  evidencia o uso masculino de , já que o referente deste sufi xo pronominal só pode ser o sujeito dos verbos que o antecedem, neste caso . Por isso, neste contexto,  difi cilmente pode ser entendido como um vento ou qualquer força abstrata ou imaterial. Três são as razões para se considerar  como um ser pessoal ou um tipo de mensageiro dentro da narrativa: (1) ele é o próprio agente das ações verbais, (2) é o referente do sufi xo de terceira masc. e (3) é quem fala com Elifaz no v. 17. Portanto, neste caso,  é a própria personifi cação de um mensageiro celestial, como um anjo ou um espírito pessoal, que vem a Elifaz para trazer uma revelação. Lange está entre os que concordam

25 VANGEMEREN, 2001. 26 Ibidem, 2001. 27 Ibidem, 2001. 28 DICIONÁRIO hebraico-português & aramaico-português. Nelson Kirst et al. 24. ed. São Leopoldo: Sinodal, 2010. p. 224. JÔNATAS M ATTOS L EAL - U MA B REVE A NÁLISE DA E XPERIÊNCIA DE E LIFAZ ... 119 com esta conclusão. Ele afi rma que  “aqui é muito convenientemente usado para descrever a aparição espiritual ou angelical, pois é o verdadei- ro sujeito de  29 . Hooks acrescenta, O espírito misterioso (v. 15) e a forma irreconhecível (v. 16) que passou diante de Elifaz refere-se a alguma manifestação de Deus. Isto é reforçado pelo fato de que Deus é também o sujeito do verbo “passou rapidamente” (  ) em 9:11 e 11:10. Em Salmo 17:15 a ‘forma’ de Deus (  ) está em paralelo com a ‘face’ de Deus (  ). A incapacidade de Elifaz em reconhecer Deus é similar à experiência de muitos outros que viram Deus no Antigo Testamento. 30 Não é preciso concordar com Driver e Gray que “‘espírito’ não ocorre no AT no sentido de uma aparição” 31 . Um uso de  muito parecido com o que ocorre em Jó 4:15 acontece em 1Rs 22: 21-22, 32 onde um espírito se apresenta diante de Deus oferecendo seus serviços a YWYH. Ele é o agente das ações verbais, assim como acontece em Jó 4:15.  sai, apresenta-se, fala, induz e responde. Poderia este ser uma força impessoal ou um vento? Obviamente não. Aqui nota-se um mensageiro celestial enviado por Deus com um objetivo específi co. Além disso, traduzir  como demônio parece um tanto improvável nesta passagem. Por esta razão, por mais que o uso de  como mensageiro ou anjo seja raro não deve ser rejeitado. Portanto, seria mais adequado atribuir à experiência de Elifaz a categoria de teofania. A próxima tarefa será defi nir o termo teofania e sua possível aplicação no caso de Elifaz.

29 LANGE et al, 2008. p. 331. 30 HOOKS, 2006. p.99. 31 DRIVER; GRAY, 1986. p.46. 32 Tradução: v.21 yna rmayw hwhy ynpl dm[yw xwrh acyw Saiu um espírito e apresentou-se diante de Deus, e disse: Eu `hmb wyla hwhy rmayw wntpa lhes induzirei, e lhe disse o Senhor: como? v.22 ypb rqv xwr ytyyhw aca rmayw E respondeu: Sairei e serei um espírito de falsidade na boca `!k-hf[w ac lkwt-~gw htpt rmayw wyaybn-lk de todos os seus profetas 120 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 109-124 ANÁLISE DA E XPERIÊNCIA DE E LIFAZ : UMA P ROPOSTA

A palavra teofania tem origem em dois vocábulos gregos: theos , que signifi ca “Deus” e phaino que signifi ca “dar luz” na voz ativa e “aparecer” ou “ser revelado” na voz passiva. 33 Assim, a palavra teofania em sua etimologia indica uma manifestação de Deus muitas vezes acompanhada de fenômenos extraordinários da natureza 34 (como no Sinai, por exemplo, Êx19). A teofania também pode ser uma manifestação de seres celestiais, não necessariamente o próprio Deus, como os três homens em Gn 18 e o anjo do Senhor em Jz.13. 35 Assim, no Antigo Testamento, “membros do concílio divino, que assistem o Deus soberano, frequentemente aparecem a seres humanos como representantes ou mensageiros divinos.” 36 As imagens naturais (rios, montanhas, árvores) e sociais de aparições divinas são exclusivamente integradas a muitas teofanias. 37 No próprio livro de Jó, encontra-se uma teofania onde Deus lhe fala no meio de uma tempestade. Existem paralelos teofânicos em outras culturas, mas num sentido completamente diferente do israelita que considera suas próprias teofanias em termos de sacramento, sem necromancia, espiritualismo e ocultismo como se dá em outras culturas. 38 A teofania em Israel tinha como propósito assistência, governo e comunicação. 39 A defi nição de teofania pode ser aplicada no caso de Elifaz. No Antigo Testamento, Deus não se limitou a trazer revelações e verdades somente a israelitas. Pessoas de outros povos como Balaão (Nm 22-24) e os magos do oriente (Mt 2) recebem revelações divinas. Não seria este o

33 BROMILEY, Geoffrey W et al. The international standard bible encyclope- dia . vol. 4. Michigan: William B. Eerdemans Plublishing Company, 1988. p. 827. 34 BORN, A. Van Den. Dicionário enciclopédico da bíblia. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 1992. p. 1489 35 Não é nosso propósito discutir a natureza divina do Anjo do Senhor. 36 FREEDMAN, David Noel. Anchor bible dictionary . v. 6. New York: Dou- bleday, 1992. p. 510 37 Ibid. , 505 38 BROMILEY, 1988. p.827 39 FREEDMAN,1992. p. 510 JÔNATAS M ATTOS L EAL - U MA B REVE A NÁLISE DA E XPERIÊNCIA DE E LIFAZ ... 121 caso de Elifaz, o temanita? A mensagem em si não pode ser considerada um erro teológico, embora sua aplicação seja inadequada. Em síntese, a mensagem diz que “Deus é tão puro e perfeito que pela comparação nenhuma criatura está sem culpa.” 40 Além disso, a análise de outras teofanias mostra algumas semelhanças. O medo parece ser algo comum a aparições celestiais. Em Dn 10:7, enquanto Daniel recebia uma visão, os homens que estavam com ele fugiam apavorados. Além disso, Dn 10:11 expressa a reação física de Daniel ao encontrar-se com um ser angelical, assim como acontece em Jó 4:14, onde o medo faz os ossos de Elifaz estremecerem. Nota-se que essa reação de medo também ocorre no Novo Testamento; por exemplo, o encontro de Zacarias com o mensageiro celestial no templo (Lc 1:12) e a conversão de Paulo na estrada de Damasco (At 8:1-7). Ademais, quanto o humano se depara com o divino, em numerosos casos, a expressão “não temas” está presente (Gn.15:1; 26:24; Is.40:9; 44:8). 41 A palavra  aparece muitas vezes nas teofanias do AT, como é o caso de Elias em 1Rs.19:11. Mas, o signifi cado mais comum nestas ocasiões é “vento”, principalmente pelo fato de as teofanias serem acompanhadas de fenômenos naturais (e.g. tempestades e redemoinhos de vento). Entretanto, conforme já foi comentado, esse signifi cado não se coaduna com o contexto de Jó 4:15. Tendo em vista o que foi discutido, pode-se concluir que Jó 4:12- 16 deve ser defi nido como um relato de teofania, o qual, de acordo com Elifaz, trata-se de uma mensagem celeste, proferida por um personagem misterioso. 42 De fato, esta seção relembra uma teofania, particularmente a manifestação divina a Elias na caverna do Monte Horebe (1 Re 19:11–18) e a Abraão em Gn 15:12–17. 43 Por isso, “não há dúvida de que sua experiência 40 HARTLEY,1998. p. 113 41 CLINES,1989. p. 129 42 Ver nota da Bíblia de Jerusalém na p. 886 comentando o v.12. 43 BARTON, J.; MUDDIMAN, J. Oxford Bible Commentary (ed. eletrônica). New York: Oxford University Press, 2001 122 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 109-124 foi terrifi cante, porém mais do que descrever um vento misterioso, parece mais provável que Elifaz está descrevendo uma teofania”. 44

C ONCLUSÃO

A análise do contexto e das palavras hebraicas, no que diz respeito à sua ocorrência em outros lugares do AT e também sua estrutura e organização, sugere que Elifaz narra uma teofania, na qual um ser celestial, não necessariamente Javé, aparece a Elifaz trazendo uma mensagem. Por isso, a palavra  não deve ser entendida como "vento" nesta perícope, antes como um ser celestial que, de acordo com Elifaz, veio lhe transmitir uma mensagem. Por mais que esta apoiasse sua teologia incompleta e inaplicável ao caso de Jó, que não havia cometido alguma falta específi ca para receber tal castigo, não era uma mensagem falsa com respeito ao caráter de Deus. Ela é amplamente divulgada na literatura sapiencial do Antigo Testamento. A ocorrência de uma teofania nas condições apresentadas pelo livro de Jó em 4:12-16 não é o único caso no Antigo Testamento. Deus sempre mostrou interesse em comunicar- se com seus fi lhos e nunca fez acepção de pessoas em suas revelações, desde que sua providência o indicasse.

REFERÊNCIA ALDEN, R. L. New american commentary: Job. v.11. Logos Library System: Broadman & Holman Publishers, 2001. ANDERSEN, Francis. Jó: introdução e comentário . São Paulo: Edições Vida Nova, 1989. A BIBLIA de Jerusalém. 9. ed. revisada. São Paulo: Paulus, 2001. BORN, A. Van Den. Dicionário enciclopédico da bíblia. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 1992. BROMILEY, Geoffrey W et al. The international standard bible Encyclopedia . vol. 4. Michigan: William B. Eerdemans Plublishing Company, 1988. p, 827 44 CLINES, 2002. p.130. JÔNATAS M ATTOS L EAL - U MA B REVE A NÁLISE DA E XPERIÊNCIA DE E LIFAZ ... 123 CARSON, D. A. New bible commentary: 21st century edition . (ed. eletrônica). Downers Grove: Inter-Varsity Press, 1994. CEVALLOS, J. C. Comentario biblico mundo hispano .v.7. El Paso, Texas: Editorial Mundo Hispano, 2005. CHAMPLIN, R.N. O Antigo Testamento interpretado . v. 3. São Paulo: Editora Candeia, 2000. CLARK, Adam. A commemtary and critical notes: Old testament . v.3. New York: Abingdon Press. CLINES, David J.A. Word biblical commentary . v.17. Dallas: Words Books, Publisher, 1989 DICIONÁRIO hebraico-português & aramaico-português. Nelson Kirst et al. 24. ed. São Leopoldo: Sinodal, 2010. DRIVER, Samuel; GRAY, George. The critical and exegetical commmentary on the book of Job. Edinburgh: T & T Clark,1986. FREEDMAN, David Noel. Anchor bible dictionary . v. 6. New York: Doubleday, 1992. p, 510 HARRIS, R. Laird; ARCHER JUNYOR, Glaeson; WALTKE, Bruce K. Dicionário internacional de teologia da Antigo Testamento . São Paulo: Vida Nova.1998. HARTLEY, John E. The book of Job . Michigan: William B. Eerdemans Plublishing Company, 1998. HOOKS, S. M. Job . Joplin: College Press, 2006. JAMIESON, Robert; FAUSSET, A.R.; BROWN, David. Jamieson- Fausset—Brown bible comentary. Vol.2. Massachusetts: Hendrickson Publishers, Inc, 1997. JENNI, Ernst; WESTERMANN, Claus. Theological lexicon of the Old Testament . Massachusets: Hendrickson Publisher, 1997. JÓ. Jewish Encyclopedia. Disponível em: . Acesso em: 10 abril de 2011. LANGE, J. P. et al. A commentary on the Holy Scriptures: Job (331). Bellingham: Logos Research Systems, 2008. MATTHEWS, V. H.; CHAVALAS, M. W.; WALTON, J. H. The IVP bible background commentary : Old Testament (ed. eletrônica ). Downers Grove: InterVarsity Press, 2000. KEIL, C.F.; DELITZSCH F. Commentary on the Old Testament . Michigan: William B. Eerdemans Plublishing Company, 1991. 124 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 109-124 KIRST,Nelson. Dicionário hebraico – português . São Leopoldo: Sinodal, 2004. NICHOL, Francis et al. The seven day adventist bible commentary . v. 2. Hagerstown: Review and Herald Publishing Association, 1976. VANGEMEREN, Willem. New international dictionary of Old Testament theology and exegesis : Zondervan reference software. Grand Rapids: Zondervan, 2001. O CENTRO DA TEOLOGIA PAULINA PRIMEIRA PARTE

Patrick Ferreira 1

RESUMO

Por muitos anos, considerou-se a justifi cação pela fé como o tema central da teologia paulina tanto em Romanos como nas demais cartas. Essa posição tem sido contestada, entretanto, em discussões recentes. Este primeiro artigo de uma série de dois descreve o debate corrente e estabelece o pano de fundo contra o qual será proposta uma resolução dessa tensão. PALAVRAS -CHAVE : Romanos; Justifi cação pela fé; Participação em Cristo.

ABSTRACT

For many years righteousness by faith was considered Paul’s central theme as well as the raison d’être of Romans and his other epistles. This view has received increasing opposition, however, in recent debates. This fi rst article -- in a series of two -- describes the current debate and sets the background against which a solution for this tension will be sought.

KEY -WORDS : Romans; Righteousness by faith; Participation in Christ.

1 Patrick Ferreira é bacharel em teologia pelo SALT-IAENE e graduado em ped- agogia pelas Faculdades Adventistas da Bahia. Atualmente trabalha como coordenador de capelania escolar na Associação Paulista Leste da Igreja Adventista do Sétimo Dia. Agradecimentos ao Dr. Milton L. Torres, do Centro Universitário Adventista de São Paulo, por ter lido o manuscrito e ter feito valiosas sugestões para sua melhora. 126 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 125-145 INTRODUÇÃO

Um dos mais acalorados debates nos estudos do NT é a indagação a respeito do seu tema central e da sua unidade (HASEL, 1988, p. 110). Essa questão envolve, em muitos aspectos, o próprio âmago do debate atual sobre a natureza da teologia de Paulo. A apresentação de uma teologia com base num único ou múltiplos centros, não importando como ele é defi nido, tem fomentado muitos comentários e investigações a esse respeito. Pouco se sabe sobre o contexto social e histórico da igreja cristã de Roma na época em que Paulo lhe escreveu uma carta. Por essa razão, o antigo documento paulino tem sido diversamente entendido como polêmico, conciliatório, apologético ou, no mínimo, profi lático (LENSKI, 1945, p. 11). Por muitos anos, a justifi cação pela fé tinha sido considerada como o tema central de Paulo tanto em Romanos como nas suas demais cartas conhecidas. Essa posição tem sido contestada, entretanto, em debates recentes (MCRAY, 2000) e requer uma contribuição que possibilite a resolução da tensão agora existente entre os teólogos que propõem esse tema e aqueles que a ele objetam. O cerne da teologia paulina passou a ser questionado, quando esses estudiosos começaram a realizar pesquisas sobre o farisaísmo judaico do primeiro século, e avaliar que a interpretação, comumente aceita, de que eles eram legalistas estava equivocada. Como resultado, surge um vasto número de propostas a respeito da coerência da teologia de Paulo e do conceito principal pelo qual o apóstolo estruturara toda a sua teologia e principalmente sua epístola aos Romanos. Nasce, então, a era da “nova perspectiva sobre Paulo”, que considera, dentre outras coisas, a justifi cação pela fé como um tema secundário na teologia paulina. Dentre os especialistas, Albert Schweitzer foi um dos mais PATRICK F ERREIRA - O C ENTRO DA T EOLOGIA P AULINA - P RIMEIRA P ARTE 127 infl uentes a afi rmar que o tema da “participação em Cristo” era o conceito principal da teologia paulina. Os debates subsequentes sobre a validade da “nova perspectiva” como um todo e em suas partes continuam a engajar estudiosos e a produzir diferentes leituras do texto. Este estudo tem como objetivo analisar a teologia paulina em Ro- manos a fi m de se propor uma estrutura unifi cadora e redutora da tensão ali existente entre a justifi cação pela fé e a participação em Cristo. Para isso, neste primeiro artigo, é feita uma análise da infl uência da interpreta- ção da teologia paulina e seu desenvolvimento histórico. Em um próximo artigo, será feita uma análise da estrutura argumentativa dialética, consi- derando sua origem e sua utilização no decorrer da história, e sua infl u- ência no pensamento paulino. Pretende-se apresentar, então, a estrutura dialética utilizada por Paulo como solucionadora da tensão entre os dois temas confl itantes: o modelo judicial e o participacionista. Espera-se que isso contribua para fornecer um entendimento mais adequado a respeito da teologia paulina e da sua unidade, propondo, as- sim, uma solução para a tensão entre a justifi cação e a participação em Cristo. Apesar de a questão da unidade e centralidade da teologia paulina ser amplamente questionada em relação a todas as suas epístolas (BORG, 2001, p. 245-263; WILES, 2000; SCROGGS, 1977), este artigo se limita a tratar este tema apenas em conexão com a Epístola aos Romanos.

O D ESENVOLVIMENTO DA T EOLOGIA P AULINA

Descobrir um tema unifi cador que auxilie na estruturação, organização e formulação de uma teologia é uma tarefa árdua e, no que diz respeito ao todo do Novo Testamento, isso parece ser ainda mais desafi ador. Entretanto, de forma mais específi ca, a epístola de Paulo aos Romanos tem sido objeto de um desses debates. A forma como se lê Romanos refl ete diferentes entendimentos da teologia de Paulo e de seu 128 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 125-145 lugar como um dos fundadores do cristianismo. Isso se reveste de maior importância porque Paulo foi um dos grandes responsáveis pela mudança teológica do judaísmo para o cristianismo. Ao longo dos anos, tem-se questionado a autoria de algumas das epístolas paulinas (SCHELKLE, 1977, p. 117-123; PALEY, 2002, p. 9-47, 245-269). No entanto, uma das epístolas cuja autoria paulina permaneceu sem ser questionada foi Romanos, que fi cou conhecida, dentre outras coisas, como umas das “cartas principais” (LOPES, 2000, p. 4).

Trata-se de um documento muito importante, talvez o teologicamente mais rico e substancioso do Novo Testamento, objeto de estudos a partir da Patrística e da Idade Média, com interpretações às vezes confl itantes, em particular na época da Reforma (CASALEGNO, 2001, p. 109).

Paulo era considerado como um antinomista, oposto à Lei de Moisés, um sério oponente do judaísmo do primeiro século. Ele foi visto como aquele que teve o principal papel na separação entre o cristianismo e o judaísmo em seus dias (MCRAY, 2000). Assim, a teologia da Reforma considerou, em termos gerais, que o tema central da teologia de Paulo e consequentemente da epístola aos Romanos era a pregação paulina da justifi cação pela fé. As expressões jurídicas encontradas na epístola foram de fundamental importância na intensa luta contra o legalismo católico romano. Isso foi explorado, de forma mais intensa, por Lutero, quando, em sua maturidade (GONZÁLEZ, 1995, p. 65), sistematizou sua visão teológica em três afi rmações: sola Scriptura , sola gratia e justifi catio sola fi de (MARTINA; MOREIRA, 1997, p. 126-130).

O T EMA C ENTRAL DA T EOLOGIA P AULINA DE A CORDO COM OS REFORMADORES

Por ser atormentado por uma consciência culpada, Lutero buscava salvação nas obras meritórias do catolicismo de sua época, até que PATRICK F ERREIRA - O C ENTRO DA T EOLOGIA P AULINA - P RIMEIRA P ARTE 129 compreendeu a doutrina paulina da justifi cação pela fé mediante a graça, sem as obras da lei, por sua interpretação da teologia paulina se dar, principalmente, a partir do livro de Romanos (JEDIN, 1986, p. 74-78). Ele chegou a entender que a justifi cação pela fé não somente era o Mitte da teologia paulina, mas também de todo o restante do Novo Testamento, “o artigo pelo qual a igreja se mantém ou cai” (LOPES, 2000, p. 10; GEORGE, 1993, p. 64; SCHAFF, 1998, p. 216). Para Calvino (2001 [1540], p. 23), a justifi cação pela fé era o “assunto principal de toda a Epístola”. Assim, na tradição calvinista, essa doutrina teve também um signifi cado dominante na divergência com Roma. Sua grande realização foi justamente tomar os conceitos clássicos da Reforma e dar-lhes uma exposição clara e sistemática. Calvino a considerou como a chave para a compreensão do evangelho em sua totalidade (BERKOUWER, 1954, p. 97). Ridderbos (1979, p. 23) acrescenta que o evangelho da justifi cação somente através da fé, sem as obras da lei, resultou ser novamente o único e poderoso meio para libertar a consciência escravizada e emancipar o espírito da escravidão legal pela segurança da reconciliação e adoção como fi lhos de Deus. Devido a uma divergência tão patente, Ridderbos (1979, p. 23) sugere que não devamos estranhar que Paulo tenha sido a consciência da fé reformada e que toda a sua teologia tenha sido considerada desse ponto de vista. Por causa dessa ênfase dada pelo Movimento da Reforma, contra a doutrina católica da justifi cação pelas obras, acredita-se (SCHWEITZER, 2006 [1931], p. 290; DAVIES, 1965, p. 122) que a interpretação da teologia de Paulo foi posta em risco, e que os que pregavam essa teoria podem ter tido uma trágica experiência, pois depois disso sua teologia foi vista como fundamentada na doutrina da justifi cação pela fé, simplesmente para fazer dela um ponto-chave da apologia contra o catolicismo romano. Essa forma de compreender a teologia paulina tem um caráter nitidamente antinomista e avesso ao legalismo: 130 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 125-145 Infl uenciada pela experiência espiritual de Matinho Lutero, uma interpretação Protestante tradicional vê Paulo reagindo contra um judaísmo que era uma religião de obras em vez de fé, de fazer ao invés de confi ar. A luta de Lutero para obter paz com Deus foi resolvida quando ele começou a interpretar Paulo ensinando uma maneira fundamentalmente diferente, de relacionar-se com Deus em contraste com a maneira do judaísmo. Lutero levou a descrição de Paulo e dos judeus e da religião do Antigo Testamento através das lentes de sua própria experiência com o Catolicismo Romano Medieval que enfatizava a importância das obras de penitência (sem mencionar a venda de indulgências) para ajudar a garantir a salvação própria. No entendimento de Lutero a justifi cação pela fé, sem as obras, se converteu para ele e seus seguidores na verdade decisiva em Cristo, e o centro da teologia de Paulo (THOMPSON, 2002, p. 3). Howell (1994, p. 50) diz que os teólogos reformadores tomaram as ocorrências das expressões do grupo de termos ligado ao ato de “tornar justo” ( δικαιόω ) como a “força integrante na articulação do Evangelho cristão”, são elas: o verbo δικαιόω (“justifi car, tornar justo”), o substantivo δικαιοσύνη (“justifi cação”) e o adjetivo δίκαιο̋ (“justo”). Respectivamente as três expressões ocorrem no escritos paulinos, 27 vezes (69% das 39 ocorrências no NT); 58 vezes (63% das 92 ocorrências no NT); e 17 vezes (22% das 79 ocorrências neotestamentárias). Além disso, quatro cognatos desse grupo de palavras ocorrem 11 vezes em Paulo, isso constitui 61% das ocorrências do NT. Esses sete termos judiciais aparecem num total de 113 vezes, ocupando 49% das 228 vezes em que ocorrem no NT. Isso, segundo ele, pode ter infl uenciado a visão dos teólogos reformadores (HOWELL, 1994, p. 50 e 51). Como dito anteriormente, Lutero fundamentou sua teologia, na sua experiência de conversão quando estudava o livro de Romanos. Já que 57%, i.e. 64 das ocorrências do grupo δικαιόω , no Novo Testamento, encontram-se na Epístola aos Romanos, seria natural que Lutero e seus sucessores tomassem como base a justifi cação pela fé como tema principal da teologia paulina (SCHAFF, 1998, p. 230), especialmente diante da situação histórica em que viviam. Após a Reforma, no entanto, o centro deslocou-se do aspecto forense e legal (justifi cação) da história PATRICK F ERREIRA - O C ENTRO DA T EOLOGIA P AULINA - P RIMEIRA P ARTE 131 da salvação para uma abordagem de ordem salvífi ca, relacionada com a apropriação pessoal da redenção. Sob a infl uência do pietismo, do misticismo e do moralismo, a ênfase partiu para a apropriação individual da salvação dada em Cristo e seu efeito espiritual e moral na vida dos crentes (RIDDERBOS, 1979, p. 24). Essa nova situação histórica, caracterizada por ...uma reação à ortodoxia “morta”, enfatizou mais aspectos práticos e “espirituais” da pregação de Paulo. A mensagem do apóstolo passou a ser entendida mais em termos do seu ensinamento sobre o Espírito Santo e conduta ética. O contraste “espírito” e “carne”, tão frequente em Paulo, era entendido mais em termos éticos, “espírito” como sendo Espírito Santo ou a natureza regenerada do homem e “carne” referindo- se à natureza decaída do homem (LOPES, 2000, p. 10). Käsemann (2003, p. 116) afi rma que o posicionamento quanto ao colocar a mensagem da justifi cação pela fé como uma abordagem secundária da teologia, separa defi nitivamente o protestantismo moderno da interpretação de Paulo, posição dada anteriormente pela Reforma, e que essa ruptura parecia ser inevitável, principalmente porque “a Escritura não é mais, rigorosamente falando, o fundamento e o juiz da igreja, mas o documento de sua tradição e edifi cação” (KÄSEMANN, 2003, p. 104). Uma nova situação histórica levou à mudança da visão sobre a teologia de Paulo. Sua posição quanto a isso é, no entanto, que a centralidade da teologia paulina está na justifi cação pela fé. Apresenta-a, portanto, como uma faceta da categoria mais abrangente da “justiça de Deus”, que ele interpreta, porém, como intervenção de Deus na história para reivindicar para si sua criação e para trazer salvação para seu povo (KÄSEMANN, 2003, p. 121-131). Segundo ele, sem a perspectiva histórico-salvífi ca, “não é possível compreender a Bíblia em geral e Paulo em particular”. Apesar das críticas que são feitas ao seu posicionamento e quanto às suas considerações relativas à “história da salvação”, ele diz que a discussão sobre se Paulo desenvolve ou não uma teologia baseada nesse tema, não é um problema de teologia, mas uma situação exegética 132 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 125-145 comum, relacionada a preconceitos sistemáticos (KÄSEMANN, 2003, p. 108). Para ele, não se deve considerar a antropologia como um tema central em Paulo. Pensar dentro da categoria da “história da salvação”, é dividir a “história do mundo em épocas de Adão, de Abraão, de Moisés e de Cristo”, também é ver a criação se dirigindo em direção ao juízo fi nal, passando pela queda e pela redenção (KÄSEMANN, 2003, p. 107-108). Käsemann (2003, p. 117) não nega que a imagem da doutrina da justifi cação pela fé seja uma “doutrina antijudaica”, mas ele questiona se pelo simples fato de ela ter sido uma doutrina de “luta”, condicionada pela época, deve ser ela considerada superada (KÄSEMANN, 2003, p. 118). Ele conclui, portanto, que a justifi cação pela fé é dominante em toda a carta de Paulo aos Romanos, elevando o tema da história da salvação e funcionando, a partir de então, como norma superior em toda a Escritura (KÄSEMANN, 2003, p. 124-125). Carson (2000, p. 89) declara que alguns (MAIER, 1977, p. 40; KUNG, 1970, p. 175-204) interpretam os argumentos de Käsemann como pretensiosos, afi rmando que ele não só põe a “justiça de Deus” como o centro da teologia de Paulo, mas como o tema que domina todo o seu pensamento, transformando-o na única fórmula que unifi ca o histórico e o apocalíptico, o existencial e o escatológico. Ao fazer isso, Käsemann pode ter ido longe demais, porque ele “baniu linhas importantes e pensamentos básicos da Escritura”, e utilizou dessa premissa para formar um cânon dentro do cânon, utilizando a justifi cação pela fé como critério pelo qual outras doutrinas deveriam ser julgadas (CARSON, 2000, p. 89; CARSON, 2001, p. 16).

O T EMA C ENTRAL DA T EOLOGIA P AULINA DE A CORDO COM OS TEÓLOGOS DO S ÉCULO XX E XXI

Com o passar do tempo, as tendências fi losófi cas têm afetado direta ou indiretamente o estudo da teologia bíblica. Schelkle (1977, p. 18- PATRICK F ERREIRA - O C ENTRO DA T EOLOGIA P AULINA - P RIMEIRA P ARTE 133 20), ao comentar sobre a problemática atual na interpretação da teologia do Novo Testamento, apresenta essas tendências divididas em quatro correntes: a interpretação fundada na história das religiões, que sugere uma exegese considerando as concepções religiosas como infl uentes na formação do Novo Testamento; a interpretação escatológica, que focaliza sua exegese na eminente vinda de Cristo e a necessidade de sua atitude escatológica como decisiva para a explicação do texto bíblico; a interpretação da história das formas, que valoriza a formação e a origem da forma dos textos neotestamentários; e a interpretação existencial, que, segundo ele (1977, p. 19), se tornou um movimento importante na fi losofi a atual, e “estuda os textos a interpretar sob o aspecto de como os homens se entenderam a si mesmos no mundo ou perante Deus”. Essas tendências podem estar infl uenciando a interpretação da teologia paulina nos debates deste século. Elas acabam, às vezes, por se confundir uma às outras (SCHELKLE, 1977, p. 18-20). No início do século passado, Albert Schweitzer (2006 [1931], p. 283- 291), teólogo liberal, defendeu que a justifi cação pela fé não passava de uma doutrina de “combate” que Paulo teria utilizado contra os judaizantes (WRIGHT, 2002, 19) e a qual, posteriormente, pela mesma razão, Lutero e os teólogos reformadores teriam superenfatizado para combater o catolicismo romano. Segundo ele, o verdadeiro tema de Romanos acha- se no trecho de Rm 6-8, no qual é esboçada a união com Cristo e a obra do Espírito de Deus (SCHWEITZER, 2006 [1931], p. 283). Schweitzer, como o “mais radical” representante da escola da história das religiões (HÄGGLUND, 1973, p. 342), foi o principal teólogo a estabelecer uma distinção clara entre judaísmo palestino e helenístico (MCRAY, 2000). Ele dividiu o judaísmo palestino em rabínico e apocalíptico, colocando Paulo em uma categoria posterior ao que comumente o colocavam, porque, segundo ele (apud MCRAY, 2000), os judeus contemporâneos de Paulo não estavam preocupados 134 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 125-145 com as indagações sobre a lei, o que era tomado como uma característica rabínica, mas inquietos quanto aos acontecimentos futuros. Fazendo isso, ele dá uma abordagem essencialmente escatológica a sua teologia. Schweitzer (2006 [1931], p. 289) argumenta que o “estar em Cristo” é um conceito primário ou mais abrangente em Paulo, ao passo que “ser justifi cado” é secundário ou menos abrangente: “Uma cratera auxiliar, que foi formada dentro da cratera principal – a doutrina mística da redenção através do ‘estar em Cristo’” (SCHWEITZER, 2006 [1931], p. 289; LEENHARDT, 1969, p. 21). Isso parece se confi rmar pela abrangência do uso de “em Cristo”. “Estar em Cristo”, em suas diferentes formulações, como “nele”, “no Senhor”, etc., aparece mais de 160 vezes nas epístolas de Paulo, mas a doutrina da justifi cação aparece, com destaque, apenas em Gl, Rm e em Fl. Se esse for o caso, então Paulo pensa mais em termos de uma incorporação em Cristo do que em termos de justifi cação. Com a sua apresentação, Schweitzer contribuiu para a teologia moderna, pois, segundo Wright, ele deixou quatro perguntas que sempre são feitas sobre Paulo e as quais os estudos paulinos geralmente tentam responder:

1. Onde colocamos Paulo na história da religião do primeiro século? 2. Como entendemos sua teologia, e a base e o centro de seu pensamento? 3. Como interpretamos as cartas, extraindo o que Paulo escreveu em cada uma delas (os especialistas a chamam “exegese”, diferenciando de “eisegese”, que quer dizer dar uma nova interpretação diferente à intenção real de Paulo)? 4. Qual é o benefício, o resultado, para nossa própria vida e obra atualmente? (WRIGHT, 2002, p. 20). Sanders, o precursor da chamada “Nova Perspectiva sobre Paulo”, que atualmente domina os estudos paulinos (ABBOTT, 2004, p. 1), concorda com os argumentos de Schweitzer (CARSON, 2000, p. 95) e apresenta a justifi cação pela fé como sendo apenas uma terminologia jurídica de importância inferior na teologia de Paulo. Para Sanders (1990, PATRICK F ERREIRA - O C ENTRO DA T EOLOGIA P AULINA - P RIMEIRA P ARTE 135 p. 17), existem outras convicções centrais expostas por Paulo que são identifi cáveis, tais como: Que Deus enviou Jesus Cristo para a salvação de todos; que a salvação é, assim, posta ao alcance de todos, seja judeus, gregos, na mesma base (“fé em Cristo”, “morrer com Cristo”); que o Senhor voltará em breve; que ele, Paulo, foi chamado por Deus para ser apóstolo dos gentios; que os cristãos devem viver de acordo com a vontade de Deus (SANDERS, 1990, p. 17). Segundo Sanders (1990, p. 17), existe “diferença considerável entre o centro do pensamento e a terminologia central pela qual Paulo analisa a passagem do estado de não-salvo para o estado de salvo”, i.e. da justifi cação pela fé. Para ele, a justifi cação pela fé e a participação em Cristo são dois termos que apontam para a mesma realidade. Porém, para ele, a expressão “participação em cristo” diz mais sobre como Paulo pensava. Ele apresenta a religião de Paulo como sendo mais propriamente caracterizada como participacionista escatológica, uma vez que considera que o judaísmo palestino pode ser descrito como concerto legal (AAGESON, 2000, p. 250). Sanders “causou profundo impacto nos estudos paulinos” (CARSON, 2000, p. 95). Sanders (1977) se propõe a um estudo comparativo entre o sistema de salvação do Judaísmo da Palestina no século I e aquele proposto por Paulo. Ele se utilizou da literatura produzida a partir do século III pelos fariseus para concluir que o judaísmo da Palestina não era uma religião que buscava acumular méritos diante de Deus e nem os fariseus eram pessoas cheias de justiça própria (SANDERS, 1977, p. 239; LOPES, 2000, p. 17). Sanders (1977, p. 259) declara que a opinião tradicional de que São Paulo se opôs ao legalismo rabínico resulta de uma leitura equivocada do Judaísmo e do pensamento do apóstolo, e que os cristãos, inclusive Lutero e os teólogos da Reforma, consistentemente interpretaram mal tanto o Judaísmo do primeiro século como também o relacionamento de Paulo com ele (ANDERSON, 2008, p. 7; LOPES, 2000, p. 17). Ele 136 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 125-145 propõe que se releia Paulo, não como alguém que era contra o legalismo ou as obras da lei, ou contra o Judaísmo, mas como alguém que está simplesmente preocupado em ter seus convertidos dentro da igreja sem as obras da lei, i.e. que os gentios convertidos, não pratiquem mecanicamente as ordenanças judaicas, mas que busquem a essência de sua recente fé (SANDERS, 1977, p. 280). Ele também argumenta que a ênfase que o Protestantismo deu sobre a justifi cação, entendida como o ato de Deus declarar o homem como portador de um novo status , ou seja, como perdoado, passa por alto o tema marcado pela ativa “participação em Cristo” nas cartas de Paulo (THOMPSON, 2002, p. 8; SAYÃO, 2007; HOWELL, 1994, p. 51). O posicionamento de Sanders quanto a sua forma de compreender a teologia judaica e a visão que Paulo tinha dela pode ter sido tendenciosa: Há quem argumente que a descrição que Paulo faz das ideias farisaicas sobre o tema não se ajusta a sua realidade. Muito do interesse nesse tipo de revisão se centraliza na possibilidade de melhorar as relações entre o protestantismo evangélico e a sinagoga, reinterpretando o Novo Testamento de modo que resulte menos ofensivo a esta última (CAIRUS, 1993, p. 32-33). Além disso, Lopes (2000, p. 18; 2006, p. 85-86) apresenta várias fraquezas que têm sido apontadas na teoria de Sanders: 1. A distinção que faz entre “ser justifi cado diante de Deus” (que, para ele, não era a preocupação nem de Paulo nem dos judeus no século I) e “entrar no povo de Deus” permanece sem uma justifi cativa ou explicação clara. 2. Existem alegações de que Sanders tenha manipulado as informações recolhidas das fontes rabínicas, pois omitiu evidências de que o Judaísmo palestino era, de fato, legalista. Exemplo dessas omissões incluem as passagens nas fontes midráshicas antigas e do rabinismo antigo, dos Tannaim e Talmud. A respeito disso, Cairus comenta que: PATRICK F ERREIRA - O C ENTRO DA T EOLOGIA P AULINA - P RIMEIRA P ARTE 137 É claro que surgem problemas quando pretendemos fechar alguns documentos rabínicos em particular, ou ao interpretar certas expressões teológicas contidas neles. Mediante um estudo mais amplo do sistema de ideias e de sua distribuição em uma variedade de documentos, podemos formar uma ideia clara do mesmo e da época em que adquiriu vigência. Esse tipo de estudo das obras rabínicas antigas mostra, com segurança, que as concepções da salvação que Paulo afi rma que eram correntes no farisaísmo correspondem à realidade de sua época (CAIRUS, 1993, p. 51). 3. Sanders também presume que o Judaísmo da Palestina era uma religião cujos ramos e variantes tinham a mesma opinião sobre fé, obras e o pacto, algo que simplesmente não pode ser provado. Lopes afi rma que havia muitas e diversas “denominações” dentro do Judaísmo do século I, como farisaísmo, saduceísmo, zelotismo, apocalipticismo, etc. 4. A tese de Sanders acaba por assumir que ele sabe mais sobre o Judaísmo do século I do que Jesus e Paulo. Se Sanders está certo, então Jesus e Paulo estão errados, pois ambos se referiram aos judeus da sua época como procurando justifi car-se diante de Deus arrogantemente mediante as obras da Lei. 5. As fontes usadas por Sanders para reconstruir o sistema de salvação judaico no século I datam de pelo menos 200 anos após Paulo ter escrito suas cartas. Muito embora os judeus sejam conhecidos pela fi delidade em transmitir a tradição oral, fi ca difícil aceitar que, após a destruição do templo em 70 d.C. e o exílio e dispersão dos judeus em 125 d.C., o Judaísmo tenha permanecido o mesmo. As fontes de Sanders refl etem, com certeza, o Judaísmo do século III em diante, mas ainda precisa ser demonstrado se refl etem acuradamente o Judaísmo do século I. Thompson (2002, p. 7-8), Carson (2000, p. 97) e Stott (2000, p. 26) também criticam Sanders como sendo seletivo no uso de seus dados, impondo um padrão que não surge naturalmente dos textos judaicos. Por isso, consideram que ele foi aparentemente arbitrário. Apesar das 138 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 125-145 críticas feitas ao pensamento de Sanders, Bassler (2007, p. 25) participa de sua opinião de que “Paulo teve uma vista mais pessimista da natureza humana do que a maioria de seus contemporâneos judeus, enfatizando uma imagem mais poderosa da graça divina”. Desde a Reforma, prevalecia a ideia de que Paulo, durante toda sua vida, sempre teve problemas com a Lei de Deus, antes e depois da sua conversão (LOPES, 2000, p.16). Essa interpretação tradicional foi seriamente questionada por Stendahl (1963), teólogo que já era conhecido por discussões a respeito da hermenêutica bíblica (ADAM, 1995, p. 76- 86). A questão central, para Stendahl, era se os temas principais que Lutero promovia eram realmente aqueles que estavam sendo arguidos nos escritos de Paulo. Stendahl (1963, p. 204-205) arrazoava que aquilo que continuava a ocupar a atenção dos teólogos ocidentais nos estudos paulinos, a saber, a doutrina da justifi cação pela fé, era, para o apóstolo, somente periférico, e o que lhe era central é como os gentios são admitidos no Corpo de Cristo bem como o papel dos judeus e gentios dentro da história da salvação (STENDAHL, 1963, p. 199-215). Stendahl (1963, p. 200) não apresenta Paulo como um fariseu em confl ito interior com o pecado, alegando que essa ideia foi disseminada posteriormente por Agostinho quando teria feito com que a justifi cação fosse enfatizada. Para Stendahl (1976, p. 20-28), “o clímax de Romanos encontra-se nos capítulos 9 a 11, nas refl exões que faz sobre a relação da igreja, sinagoga e o povo judeu”. Stott (2000, p. 20) declara que Stendahl fez uma correção necessária, pois, segundo ele, a justifi cação pela fé realmente não é a única preocupação de Paulo na carta. Contudo, objeta que Stendahl fez uma “antítese desnecessariamente nítida”, pois não se pode colocar os capítulos iniciais de Romanos como apenas um “prefácio”, já que o apóstolo trata nos capítulos 1-8 de temas tão importantes quanto os demais. Além disso, Stott (2000, p. 21) contesta seu posicionamento PATRICK F ERREIRA - O C ENTRO DA T EOLOGIA P AULINA - P RIMEIRA P ARTE 139 de que a ênfase nesse tema seja devida à consciência mórbida da igreja ocidental. Stott alega que é o próprio Paulo e não Agostinho ou Lutero que estabelece a culpa humana em termos universais e indesculpáveis em Romanos 1:8-3:20 e demais textos (STOTT, 2000, p. 21). Mais recentemente, Ladd (1975, p. 443), não se preocupando em apresentar um tema principal nos escritos de Paulo, sugeriu que ambos os temas: justifi cação pela fé e participação em Cristo, são unifi cados na abordagem feita por Paulo da nova era em Cristo. Com isso, sugeriu que a justifi cação, por ter seu aspecto declarativo (forense), participa dos eventos escatológicos. Afi rma ainda que “tanto a justifi cação, a absolvição através do juízo vindouro, como a dádiva do Espírito Santo pertencem ao Século Vindouro, mas tornaram-se objetos de experiência presente para o homem em Cristo” (LADD, 1975, p. 443). Apesar da aceitação frequente do posicionamento de Ladd quanto às questões do Novo Testamento, Carson comenta: ...apesar de tratar admiravelmente a vastíssima literatura disponível e habilmente delinear os temas principais em cada obra que faz parte do NT, Ladd sequer tenta apresentar a prometida unifi cação dos resultados de sua teologia (CARSON, 2001, p. 18). Aparentemente, como Ladd, Morris (2003, p. 29) não tenta unifi car os temas da justifi cação e participacionismo, mas apresenta a teologia do apóstolo Paulo na carta aos Romanos centrada na doutrina de Deus. Para isso, ele utiliza como argumento o fato de Paulo ser o autor neotestamentário que se refere a Deus com “frequência surpreendente”. Segundo ele (2003, p. 29), Paulo é o responsável por mais de 40 por cento de todas as referências a Deus no Novo Testamento. Das 1314 referências, 548 se encontram nos escritos paulinos, e no que diz respeito à carta de Romanos, “ele usa a palavra Deus 153 vezes, em média uma vez a cada 46 palavras.” Quanto à frequência das demais palavras ele comenta:

Em Romanos, as únicas palavras que Paulo usa com mais frequência do que “Deus” são o artigo defi nido, καί (“e”), ἐν (“em”) e αὐτο̋ (“ele”). 140 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 125-145 Mesmo palavras muito comuns com δέ (“mas” ou “e”) e o verbo “ser” são usadas com menos frequência. Dos conceitos teológicos importantes nesta carta, o próximo mais frequente é a “lei” com 72 ocorrências, bem mais atrás. Depois vêm “Cristo” (65 vezes), “pecado” (48), “Senhor” (43) e “fé” (40). As estatísticas não signifi cam tudo, mas devemos estar cientes de que Paulo usa a palavra “Deus” com frequência incomum (MORRIS, 1970, p. 251). Para Morris (2003, p. 30), Paulo era um “monoteísta rígido”, dominado pelo pensamento acerca de Deus no qual se baseava ao tratar de todos os assuntos abordados em suas cartas e epístolas. De acordo com sua apresentação, a concentração de “Deus” em Romanos é notável. Em nenhum livro das Escrituras, Deus é centralizado de tal maneira como neste; “fundamentalmente Romanos é um livro sobre Deus” (MORRIS, 1970, p. 252). Sua exposição sobre a teologia de Paulo fundamentada em “Deus” é descrita nos subtemas: a natureza de Deus, a salvação realizada por Deus pelo homem, revelação de Deus, a punição e Deus, a justiça e o julgamento divino, Deus atuando na resposta humana e Deus como o centro da vida (MORRIS, 1970, p. 252-262). Sua abordagem não isenta os demais temas descritos nos escritos paulinos, mas Morris diz que “Romanos é um livro acerca de Deus, e nós devemos carregar esse fato na mente, sempre que formos interpretar o que Paulo diz. Se não corremos o risco de desconsiderar algumas das coisas maravilhosas que ele diz” (MORRIS, 1970, p. 263). Existem, ainda, discussões sugerindo centros tão diversos para a teologia paulina quanto: a universalidade da graça (RICHARDSON, 1992, p. 109), a necessidade da fé ou da reconciliação, a morte e ressurreição de Cristo (SANDERS, 1991, p. 66; STOTT, 1994, p. 36), as questões básicas de eleição e a lei (WEISS, 2005, p. 15-17; FURNISH, 1994, p. 17), a unidade de Deus, o evangelho e possivelmente outros (CARSON, 2000, p. 89; WENHAM et al., 2000, p. 5; LADD, 1975, p. 443; HAMILTON, 2006, p.11; TENNEY, 1972, p. 286). PATRICK F ERREIRA - O C ENTRO DA T EOLOGIA P AULINA - P RIMEIRA P ARTE 141 CONCLUSÃO

É possível até que a teologia paulina não possua um centro único, que o máximo que pode ser feito seja assinalar temas recorrentes dentro de diversos temas distintos, que por vezes acabam entrando em tensão (ver CARSON, 2001, p. 68-69). Em um seminário internacional, a Society of Biblical Literature tentou unifi car a teologia de Paulo, de forma que seus participantes pudessem chegar a um consenso, mas a tentativa foi sem sucesso. Declarou-se que o resultado da iniciativa em descobrir o centro da teologia de Paulo, depende da metodologia utilizada (MCRAY, 2000). Um resumo da teologia paulina acaba invariavelmente sendo uma sistematização do pensamento do apóstolo numa forma em que ele mesmo não o apresentou (SCHREINER, 1998, p. 642). Se tal sistematização forçasse seu [de Paulo] pensamento na direção de outras categorias, ou se procurasse simplesmente alinhar argumentos comprovantes em favor de um sistema teológico, de inspiração diferente, seria de pouco valor. Uma síntese do pensamento de Paulo deve respeitar suas categorias tanto quanto possível, dando margem à intensidade variada de suas afi rmações e à diversidade de contextos em que ele as formulou (FITZMYER, 1970, p. 14). Não importa que tipo de resumo se dê à teologia de Paulo, nem mesmo que respostas se deem às perguntas formuladas por Schweitzer, ele não só pretenderá determinar o que Paulo queria dizer quando escrevia aos cristãos, mas também pretenderá avaliar o que sua teologia signifi ca para os cristãos de hoje (WRIGHT, 2002, p. 20). Diante disso, deve-se sempre levar em conta a possibilidade de Paulo ter escrito sua epístola com múltiplos temas, os quais a fazia gravitar em torno de um eixo fl exível. 142 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 125-145 REFERÊNCIAS AAGESON, James W. Paul and judaism: the apostle in the context of recent interpretation. St. Paul, MN: Word & World, Luther Seminary, 2007. Disponível em: . Acesso em: 05 out. 2007. ABBOTT, Marcos. ¿Se equivocó Lutero? 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Clacir Virmes Junior 1

RESUMO

Este artigo tem por objetivo traçar o desenvolvimento da língua etíope, mais especifi camente o dialeto ge‘ez , no qual a Igreja Ortodoxa Etíope preservou seus manuscritos bíblicos, tanto do Antigo quanto do Novo Testamento, além de outras obras teológicas. Relatam-se seus primórdios, seu desenvolvimento durante o Império Aksumita e durante o período de cristianização da Etiópia. Também se busca apresentar as principais características da língua em comparação com as línguas bíblicas. Por fi m, elencam-se as principais contribuições que a língua etíope tem para as ciências bíblicas, especialmente nas áreas de linguística comparada, crítica textual e lexicografi a do Antigo Testamento. PALAVRAS -CHAVE : Língua Etíope. Ge ‘ez. História da Língua Etíope. Ciências Bíblicas. ABSTRACT

This article aims to trace the development of the Ethiopic language, specifi cally the ge ‘ez dialect, in which the Ethiopian Orthodox Church has preserved his biblical manuscripts of the Old as well as the New Testament, and of other theological works. 1 Bacharel em Sistemas de Informação pela UNOESC – Universidade do Oeste de Santa Catarina, bacharel em Teologia pelo SALT-IAENE – Seminário Adventista Latino-Americano de Teologia/Instituto Adventista de Ensino. Seminário Adventista Latino-Americano de Teologia, BR 101, KM 197 - Cx. Postal 18 – Capoeiruçu – Ca- choeira – BA – Brasil – CEP 44300-000 – Tel. (75) 3425 8008, . 148 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 147-163 It describes its origins, its development during the Aksumite Empire and during the Christianization period of Ethiopia. It presents also the main features of the language, comparing it to other biblical languages. At the end, it lists the main contributions that the Ethiopic language has to the biblical sciences, specially the compared linguistics, textual criticism and the lexicography of the Old Testament. Keywords: Ethiopic Language. Ge ‘ez. History of the Ethiopic Language. Biblical Sciences

INTRODUÇÃO

Ao longo do desenvolvimento dos estudos orientais, alguns estudiosos se dedicaram à pesquisa dos manuscritos bíblicos na língua etíope. Tentativas foram feitas no sentido de se produzirem edições críticas de tais textos. Uma das maiores obras nessa área é o Biblia veteris testamenti Aethiopica , de August Dillmann (1853; 1861; 1894 ), infelizmente inacabada. Os volumes 3 e 4 nunca foram publicados. A obra contempla apenas os livros do Pentateuco, os livros históricos (com exceção de Neemias) e os livros apócrifos (como Baruque, Tobias e Judite), não contemplando os livros poéticos e os livros proféticos em etíope. Os desenvolvimentos no estudo da língua e manuscritos etíopes constituem-se ferramentas importantes para as áreas da linguística comparada, crítica textual e lexicografi a do Antigo Testamento, dado que o etíope é uma língua correlata do hebraico e do aramaico. Em nosso país, poucos conhecem a existência de manuscritos bíblicos em etíope e, assim sendo, praticamente nenhuma pesquisa brasileira tem sido levada a efeito com base nestes manuscritos. O autor deste artigo conhece apenas uma pesquisa nesta área, iniciada em 2002. O objetivo era o desenvolvimento de uma edição crítica do livro CLACIR V IRMES J UNIOR - L ÍNGUA E TÍOPE (GE‘EZ): D ESENVOLVIMENTO ... 149 de Eclesiastes na língua etíope. Infelizmente, por motivos diversos, tal pesquisa não pôde desenvolver-se (AZEVEDO NETO, 2002). Neste artigo, procuramos fazer um panorama geral da importância da língua etíope para as ciências bíblicas. Nosso desejo é que o contato com estas informações desperte pesquisadores de todos os níveis de formação para o estudo desta língua e da contribuição que o cristianismo etíope fez para a preservação do texto bíblico. Para isso, dividimos este artigo em três partes: a primeira discorrerá brevemente sobre o desenvolvimento da língua etíope, especialmente o dialeto ge ‘ez ; a segunda abordará as principais características da língua, em comparação com outras línguas bíblicas correlatas; por fi m, a terceira parte citará e discorrerá brevemente sobre as principais contribuições da língua etíope para as ciências bíblicas nas áreas de linguística comparada, crítica textual e lexicografi a do Antigo Testamento.

O D ESENVOLVIMENTO DA L ÍNGUA E TÍOPE ( GE ‘EZ )

Todos os dialetos etíopes são oriundos de uma única língua, o proto- etíope, falado há mais de 2.500 anos. Ele teve sua origem na linguagem comum do primeiro milênio a. C, chamada “Epigráfi ca Sul-Arábica”. O protoetíope emprestou muitas palavras da língua nativa dos planaltos do norte da Etiópia (EHRET, 2010). Apesar de o relacionamento entre as duas ser evidente, a história exata do relacionamento tem sido difícil de traçar devido à escassez de evidência textual da Epigráfi ca Sul-Arábica (GRAGG, 2008). O ge ‘ez , também chamado de etíope clássico, é um dos dialetos pertencentes ao grupo das línguas semíticas do sul. Ela é aparentada, por exemplo, com as línguas árabes (especialmente o árabe clássico, no qual foi escrito o Alcorão), o hebraico e o aramaico (que pertencem ao grupo das línguas semíticas do norte). Ela está intimamente relacionada com o amárico, sua língua irmã e língua ofi cial da Etiópia (FERENC, 2010). 150 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 147-163 O N OME GE‘EZ

Para Gragg (2008) o vocábulo ge ‘ez é etimologicamente incerto. Segundo Ferenc (2010), nome ge ‘ez tem origem no povo Agazay, que, perto do primeiro milênio a. C., cruzou o Mar Vermelho e se estabeleceu na região norte da Etiópia. Perto do primeiro século a. C., eles se tornaram independentes da Arábia do Sul, de onde eram oriundos, mas sua escrita e cultura mantiveram-se muito próximas por um bom tempo. Para Isenberg (2003), ge ‘ez signifi ca “original”. Gramaticalmente se refere à forma primária de um caractere no silabário. Assim, para ele em algum momento, a palavra, foi aplicada a toda a língua. Para Dilmann e Bezold (2005), porém, o nome ge ‘ez deriva do vocábulo ግዕዝ , ge ‘ez , que literalmente signifi ca “andante”, no sentido de “livre”. Assim, ልሳነ፡ ግዕዝ , lesana ge ‘ez , para ele, signifi ca “a língua dos livres”.

AS O RIGENS DO GE‘EZ

Existem dois monumentos muito antigos escritos em etíope, cuja inscrição utiliza-se de caracteres sabeus, reforçando o vínculo entre os primeiros habitantes do país e os povos sul-arábicos. Foram eles que deram ao país sua cultura dominante. Os caracteres utilizados na escrita etíope, tanto em ge ‘ez quanto em amárico, têm sua origem no sabeu (MERCER, 2007). Foi no território desse povo falante do ge ‘ez , que migrara para o “Chifre da África”, que surgiu o primeiro Estado etíope, cuja capital era Aksum (FERENC, 2010). O desenvolvimento do ge ‘ez está inextricavelmente ligado ao desenvolvimento do império aksumita.

O I MPÉRIO A KSUMITA E O GE‘EZ

Aksum não se desenvolveu como centro urbano até o início do primeiro século d. C. A história do império Aksumita pode ser dividida CLACIR V IRMES J UNIOR - L ÍNGUA E TÍOPE (GE‘EZ): D ESENVOLVIMENTO ... 151 em três fases: proto (ou pré) -aksumita (600-1 a. C.), pré-cristã (1-350 d. C.) e cristã (350-900 d. C.) (HENZE, 2000). A primeira referência conhecida sobre Aksum é numa obra anônima do século I d. C., o Periplus Maris Erytraei , que conta sobre as viagens e o comércio no Oceano Índico. Provavelmente, o autor era um ofi cial romano de origem egípcia que conhecia a língua grega (YOUNGBLOOD, 1982; COQUERY- VIDROVITCH, 2005). Mesmo tornando-se uma cidade desenvolvida, seus arredores eram férteis e bem irrigados, o que mais tarde facilitou a construção de poços, reservatórios e diques (CARRILET, 2009). A civilização pré-aksumita se desenvolveu nos planaltos da Eritréia e da região do Tigré. Os governadores dessa civilização se autointitulavam mukarribs de Di’amat e Sabá. Segundo Munro-Hay (2003), ao que parece, eles formavam uma federação de tribos, dirigida por uma tribo proeminente, ligadas por uma aliança. Porém, segundo Pankhurst (2001) e Carrilet (2009), apesar de infl uenciada, a civilização pré-aksumita desenvolveu-se por seus próprios esforços e iniciativas, não como uma mistura de povos. Logo após esse período, os planaltos etíopes foram o palco de uma das maiores civilizações antigas de toda a África. As pessoas eram conhecidas como aksumitas, mas outras designações surgiram com o tempo. As antigas inscrições sul-arábicas, e outras em ge ‘ez , referem-se à parte da população como habashat . Dessa palavra surgiu a designação árabe geral para os etíopes, habash , e o antigo nome usado na Europa para se referir ao país, Abissínia. Perto do século IV d. C., o termo “Etiópia” surge de uma expressão grega que signifi ca “faces queimadas”, etimologicamente oriunda dos vocábulos αι θω (queimar) e ο ψ (face) (LIDDELL e SCOTT, 1996). Este termo era usado para referir-se ao reino de Cuxe e à população africana negra em geral, e começou a ser empregada pelos reis aksumitas em suas inscrições gregas em referência ao seu próprio país. Tanto o termo Etiópia quanto o termo habashat são 152 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 147-163 paralelos numa inscrição trilíngue de Ezana, rei que se converteu ao cristianismo entre 333 e 340 d. C. (MUNRO-HAY, 2003). O comércio foi crucial para o desenvolvimento de Aksum. Na verdade, foi o fator chave para a evolução da cidade para capital do império. Com o comércio no Mediterrâneo em crescimento, a crescente demanda de mercadorias africanas e o aumento pela procura de marfi m, Aksum se tornou o eixo pelo qual toda a rota comercial etíope passava (HENZE, 2000). O comércio trouxe a riqueza que permitiu o surgimento de elites que assumiram honras e títulos. Os quinhentos anos anteriores à era cristã testemunharam guerras cada vez maiores. O vencedor foi o estado de Aksum. O surgimento e a hegemonia de Aksum sobre a costa até o interior de Tigré e mesmo sua subseqüente expansão dentro e fora da Etiópia parecem estar ligadas ao estímulo dado pelo comércio com o Egito durante a era dos ptolomeus (330-320 a. C.) e depois pela economia mundial romana (MARCUS, 1994). Tanto o início da cunhagem de moeda quanto a introdução do cristianismo no país foram consequências das crescentes interrelações de Aksum com o mundo Mediterrâneo. A cunhagem de moedas se iniciou com o imperador Endubis, em 270 d. C. Aphilas, Wazeba e Ousanas, os três próximos imperadores etíopes, continuaram a cunhagem de moedas em ouro, prata e bronze. Neste período pré-cristão, as moedas continham a fi gura do crescente e do disco, símbolos da religião sul-arábica (HENZE, 2000). Estava pronto o cenário para a introdução do cristianismo no país.

O C RISTIANISMO E O GE‘EZ

Segundo Marcus (1994), a partir do século III d. C., ou mesmo antes, as elites helenizadas de Aksum aprenderam sobre a nova fé dos comerciantes cristãos. No quarto século d. C., o cristianismo era a CLACIR V IRMES J UNIOR - L ÍNGUA E TÍOPE (GE‘EZ): D ESENVOLVIMENTO ... 153 religião do império romano e foi só uma questão de tempo para penetrar em Aksum. O cristianismo infl uenciou completamente a arte religiosa, a música e a literatura etíopes. De acordo com Zuehlke (2005), a conversão foi lenta e ocorreu primeiro em cidades e ao longo das principais rotas comerciais. Henze (2000, p. 38) comenta que O cristianismo era provavelmente conhecido na Etiópia, trazido por judeus e gregos, antes mesmo da adoção de Frumêncio e Edésio pelo imperador Ezana. Contudo, nenhuma evidência de comunidades cristãs organizadas ou edifícios construídos para adoração foram en- contrados antes da data ofi cial da conversão de Ezana. Após essa data, é dito que muitos cristãos do império romano ajudaram a espalhar o evangelho. Eles entraram para a tradição etíope como os Tsadkan , os Justos, mas muito pouco é conhecido sobre eles. O mais importante desenvolvimento para o crescimento do cristianismo no país foi a che- gada dos Nove Santos na última metade do V século d. C.

Contudo, a versão mais conhecida para entrada do cristianismo na Etiópia é a contada por Rufi no de Aquileia (345-410 d. C.). De acordo com a tradição da Igreja Ortodoxa Etíope, dois garotos sírios, Edésio e Frumêncio, trouxeram o cristianismo para a Etiópia. Vítimas de um naufrágio, foram trazidos como escravos para a corte do rei Ella Amida. Através dos anos, sua piedade, confi abilidade e, especialmente, a sagacidade de Frumêncio e sua sabedoria como secretário e tesoureiro real ganharam a gratidão real, e eles foram alforriados. A rainha viúva, como regente, pediu que eles permanecessem no palácio para aconselhar a ela e a seu fi lho, Ezanas, até que ele estivesse pronto para o trono. Enquanto ocupado com estas tarefas, Frumêncio buscou mercadores cristãos e instou com eles para que estabelecessem igrejas, e cooperou completamente com eles para espalhar o evangelho (MARCUS, 1994). Ousanas deve ter sido o mesmo rei cujo nome de trono era Ella Amida, que, de acordo com a tradição, foi pai de Ezana, o imperador que adotou o cristianismo na terceira década do quarto século d. C. Ezana deixou muitas inscrições que proveem boa informação sobre seu longo 154 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 147-163 reinado. Suas moedas e suas inscrições confi rmam seu abandono do título de “fi lho do deus da guerra, Mahrem ” e a adoção do cristianismo. No início, suas moedas traziam os símbolos do crescente e do disco, mas as últimas moedas traziam a cruz ou várias cruzes gravadas (HENZE, 2000; PANKHURST, 2001). Quando o jovem rei tomou o poder (303 d. C.), Frumêncio foi a Alexandria e instou com o patriarca para designar um bispo para a Etiópia para acelerar o processo de conversão. Ele mesmo foi ordenado ao sacerdócio e designado 2 para voltar a Etiópia e dar continuidade ao trabalho de evangelização. Retornou em 305 d. C., trazendo o rei Ezanas de suas antigas crenças (MARCUS, 1994). A mudança foi anunciada quando, subitamente, cruzes começaram a aparecer nas moedas 3 e os monumentos imperiais passaram a ser prefaciados com palavras cristãs. O cristianismo infl uenciou não apenas a vida espiritual e intelectual da Etiópia como a vida social e cultural, sua arte e literatura. Mais da metade da população hoje pertence a Igreja Ortodoxa Etíope (CARRILET, 2009). A civilização cristã etíope, que se espalhou do norte até o centro do país, foi o que diferenciou a Etiópia de seus vizinhos africanos. Apenas poucos estados da Núbia compartilharam a fé cristã etíope até sua submersão na cultura islâmica durante a Idade Média (MUNRO-HAY, 2003). O reino aksumita manteve sua hegemonia entre os séculos I e VII d. C. Até o século XI d. C. o ge ‘ez foi a língua ofi cial do estado aksumita, mas após seu colapso foi substituída pelo amárico. O ge ‘ez foi preservado apenas pela Igreja Ortodoxa Etíope e em documentos históricos (FERENC, 2010). 2 Isto instituiu a tradição, que entrou na lei eclesiástica e perdurou até a década de 1950, em que os patriarcas alexandrinos deveriam indicar os bispos das cidades etíopes, normalmente egípcios (MUNRO-HAY, 2003). 3 Segundo Carillet (2009), essa é a primeira vez que a cruz foi usada na cunha- gem de moedas. Além disso, a numismática etíope é importante porque muitas de suas moedas trazem não somente os nomes, mas as roupas e coroas dos reis, muitas vezes cuidadosamente desenhadas (PANKHURST, 2001). CLACIR V IRMES J UNIOR - L ÍNGUA E TÍOPE (GE‘EZ): D ESENVOLVIMENTO ... 155 A L ITERATURA EM GE‘EZ

Pode-se dividir a literatura em ge ‘ez em três grupos, segundo Gragg (2008): inscrições monumentais, textos cristãos primitivos e literatura geral. Existem cerca de 160 inscrições monumentais em ge ‘ez que remontam o período pré-aksumita e o apogeu do império aksumita. A maior parte dos textos são inscrições reais. Seis das inscrições são escritas em caracteres sul-arábicos antigos. Três grandes inscrições existem em três versões: grego, ge ‘ez em caracteres sabeus e ge ‘ez em caracteres etíopes. Os textos cristãos primitivos datam, majoritariamente, do século XII d. C., em diante. Esses textos serviram para a propagação do cristianismo no país. São traduções do Antigo e do Novo Testamento e de vários livros apócrifos para o ge ‘ez . Esse processo se iniciou no século V d. C. Além disso, há outros textos litúrgicos, vidas de santos e fragmentos patrísticos que foram preservados. Entre todos esses escritos, destaca-se o livro de Enoque, que foi preservado apenas em ge ‘ez (MYERS, 1987), e que é de grande importância para a literatura apocalíptica e para o entendimento do livro de Judas. A literatura geral é formada principalmente por obras literárias que foram produzidas em ge ‘ez depois do declínio do império aksumita. Há muitas obras teológicas, escritas pela Igreja Ortodoxa Etíope, sobre vários assuntos, principalmente sobre Maria. O maior símbolo dessa categoria é o Kebra Nagast , que conta a visita da rainha de Sabá a Salomão em Jerusalém. Segundo Marcus (1994), Kebra Negast (a glória dos reis) é um retalho de contos míticos desenvolvido no século XIV d. C., por seis escribas de Tigré. Yishak, o compilador chefe, declarou que ele e seus colegas apenas estavam traduzindo um documento em árabe, traduzido 156 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 147-163 para o copta e daí para o ge ‘ez . Na verdade, o que sua equipe fez foi juntar tradições orais locais e regionais, além de copiar o estilo dos escritos do Antigo e do Novo Testamento, vários textos apócrifos, comentários judaicos e islâmicos, e escritos patrísticos

AS C ARACTERÍSTICAS DA L ÍNGUA E TÍOPE (G E‘EZ )

Gostaríamos de destacar aqui algumas características específi cas do etíope clássico que o diferenciam de outras línguas bíblicas correlatas. Esta lista, longe de ser exaustiva, tem o propósito de mostrar alguns mecanismos característicos da língua. Silabário : ao contrário das outras línguas semíticas, e mesmo do grego e do copta, o ge ‘ez não possui um alfabeto propriamente dito, mas um silabário. Inicialmente, o ge ‘ez era uma língua consonantal como todo o tronco semítico. A modifi cação das formas originais das consoantes para o desenvolvimento de um silabário deve ter ocorrido entre os séculos VI e VII d. C. Doze inscrições encontradas em 1830 demonstram que, por algum tempo, tanto o silabário quanto o sistema consonantal foram utilizados paralelamente. As formas originais das consoantes foram vocalizadas para facilitar o aprendizado daqueles que tiveram de aprender o ge ‘ez como segunda língua (AMHA, 2010). A Tabela 1 mostra a parte principal deste silabário. Na primeira coluna estão os fonemas básicos; na primeira linha, a letra “C” representa o fonema básico, ou a consoante, e ao lado aparece a vogal com a qual a consoante deve ser pronunciada. Sinais de pontuação e separação de palavras : o principal sinal de pontuação em ge ‘ez é o ነጥብ (na ‘eb ), pingo ou ponto: ። . Juntamente com ፤, ፨ e ።=። , são chamados de ምዕራፍ ( me ‘erāf ), pausa. Nos manuscritos, o emprego destas marcas não é respeitado, sendo que os sinais são utilizados intercambiavelmente (DILLMANN e BEZOLD, 2005). As palavras são CLACIR V IRMES J UNIOR - L ÍNGUA E TÍOPE (GE‘EZ): D ESENVOLVIMENTO ... 157 separadas entre si por este sinal: ፡ (CHAINE, 1907). Nenhum destes recursos está presente em outras línguas semíticas. Escrita da esquerda para direita : Dillmann e Bezold (2005) defendem que o contato com os gregos, mesmo antes da introdução do cristianismo no país, infl uenciou gradualmente a direção da escrita. Lulat (2005) vai mais longe, declarando que foi por ordem do rei Ezana que a escrita etíope passou a ser da esquerda para a direita. Seja como for, essa é uma grande diferença entre o ge ‘ez e as línguas semíticas correlatas, todas escritas da direita para a esquerda. Subjuntivo : diferentemente do hebraico, por exemplo, que expressa a noção do subjuntivo através do jussivo, que se utiliza das mesmas formas verbais que o imperfeito, e do coortativo, que adiciona um sufi xo às formas do imperfeito (KELLEY, 1998), o ge ‘ez desenvolveu em seu sistema verbal o modo subjuntivo. Ele é uma modifi cação do imperfeito e dele se deriva o modo imperativo (DILLMANN e BEZOLD, 2005).

TABELA 1 – O A LFABETO E TÍOPE – G E’EZ

Ca Cu Ci Cā Cē C, Ce Co h ሀ ሁ ሂ ሃ ሄ ህ ሆ l ለ ሉ ሊ ላ ሌ ል ሎ H ሐ ሑ ሒ ሓ ሔ ሕ ሖ m መ ሙ ሚ ማ ሜ ም ሞ š ሠ ሡ ሢ ሣ ሤ ሥ ሦ r ረ ሩ ሪ ራ ሬ ር ሮ s ሰ ሱ ሲ ሳ ሴ ስ ሶ q ቀ ቁ ቂ ቃ ቄ ቅ ቆ B በ ቡ ቢ ባ ቤ ብ ቦ T ተ ቱ ቲ ታ ቴ ት ቶ 158 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 147-163 x ኀ ኁ ኂ ኃ ኄ ኅ ኆ n ነ ኑ ኒ ና ኔ ን ኖ ´ አ ኡ ኢ ኣ ኤ እ ኦ K ከ ኩ ኪ ካ ኬ ክ ኮ w ወ ዉ ዊ ዋ ዌ ው ዎ ` ዐ ዑ ዒ ዓ ዔ ዕ ዖ z ዘ ዙ ዚ ዛ ዜ ዝ ዞ y የ ዩ ዪ ያ ዬ ይ ዮ D ደ ዱ ዲ ዳ ዴ ድ ዶ G ገ ጉ ጊ ጋ ጌ ግ ጎ t ጠ ጡ ጢ ጣ ጤ ጥ ጦ P ጰ ጱ ጲ ጳ ጴ ጵ ጶ c ጸ ጹ ጺ ጻ ጼ ጽ ጾ d ፀ ፁ ፂ ፃ ፄ ፅ ፆ f ፈ ፉ ፊ ፋ ፌ ፍ ፎ p ፐ ፑ ፒ ፓ ፔ ፕ ፖ Fonte: baseado em Chaine (1907), Lambdin (1978) e Dillmann e Bezold (2005).

O subjuntivo é utilizado com a força do jussivo e coortativo hebraicos quando o verbo é o principal na oração. Em orações subordinativas, o subjuntivo expressa propósito ou o próprio resultado da ação (LAMBDIN, 1978).

A I MPORTÂNCIA DA L ÍNGUA E TÍOPE (G E‘EZ ) P ARA AS C IÊNCIAS BÍBLICAS

Só o fato de possuirmos manuscritos bíblicos na língua etíope já deveria chamar a atenção dos estudiosos bíblicos brasileiros para seu CLACIR V IRMES J UNIOR - L ÍNGUA E TÍOPE (GE‘EZ): D ESENVOLVIMENTO ... 159 estudo. Não se pode deixar de lado o fato, porém, de que os manuscritos etíopes são muito posteriores aos autógrafos bíblicos, tanto do Antigo como do Novo Testamento. Mesmo tendo um lugar secundário, seu estudo pode render grandes dividendos nas áreas de linguística comparada, crítica textual e lexicografi a. A maior prova, talvez, da importância da língua etíope para a linguística comparada seja o Enhanced BrownDriverBriggs Hebrew and English Lexicon . Segundo os autores, os desenvolvimentos nos estudos das línguas semíticas, inclusive a língua etíope, “resultou em novos tesouros” (BROWN, DRIVER e BRIGGS, 1906; 2000, p. v). Cerca de 604 de suas entradas fazem referência à língua etíope (2010). Wolf Leslau publicou, em 1987, um dicionário ge ‘ez /inglês, com base em uma série de outras obras, inclusive léxicos etíopes nativos. Seu dicionário trazia comparações entre o ge ‘ez , as línguas semíticas e outras línguas afroasiáticas, além da etimologia dos vocábulos. Apesar do foco na língua etíope, sua obra mostrou as afi nidades do ge ‘ez com o hebraico e com árabe. Dois anos depois, ele desenvolveu um dicionário menor, sem as comparações e etimologias, para ser usado na tradução de textos etíopes (1989). As versões etíopes dos livros bíblicos não foram feitas de uma só vez. Por isso, a qualidade da tradução varia de livro para livro. Muitas vezes, para a tradução de uma porção bíblica do Antigo Testamento, os escribas etíopes se utilizavam de vários manuscritos em outras línguas tais como o grego (Septuaginta - LXX), o hebraico e o árabe (WÜRTHWEIN, 1988). Por exemplo, em sua edição crítica do livro de Eclesiastes, Mercer (1931) declara que para a tradução do livro, e suas posteriores revisões na língua etíope, os escribas tiveram entre si diferentes versões da LXX, da Siríaca, da Árabe e do Texto Massorético. O mesmo ocorre com a versão etíope do Novo Testamento. Segundo Aland e Aland (1995, p. 209, tradução nossa) 160 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 147-163 O caráter da versão etíope é [...] controversa. Ainda não foi de- terminado se os Evangelhos foram traduzidos do grego ou do siríaco. A tradução de Atos parece ter sido feita do grego. As epístolas univer- sais foram com mais certeza traduzidas do grego, para o Apocalipse é possível não apenas estar certo sobre a língua da qual ele foi traduzido, mas identifi car a fonte mais precisamente: ela representa o texto do tipo A e C, com subsequente infl uência das versões Copta e Árabe. Apesar destas difi culdades, segundo Francisco (2008), “a versão Etíope [do Antigo Testamento] também é importante por ser uma das mais antigas versões bíblicas surgidas durante os primeiros séculos de existência do cristianismo.” Isso mostra a importância dos testemunhos etíopes para a crítica textual do Antigo Testamento. Seu valor é um pouco menor para a crítica textual do Novo Testamento, mas os manuscritos etíopes também estão presentes nas edições críticas do texto neotestamentário (PAROSCHI, 2008). No campo da lexicografi a, Ullendorf (1968) demonstrou as inúmeras contribuições da língua etíope para o melhor entendimento do vocabulário hebraico. Ele ainda cita o Lexicon linguae Aethiopicae , de Dillmann (1855), que contém as etimologias comparadas de vários vocábulos etíopes, hebraicos e árabes. Assim, outros desenvolvimentos no estudo dos manuscritos etíopes contribuem para o enriquecimento de nosso conhecimento da história do desenvolvimento textual de ambos os testamentos, além de contribuir para nosso melhor entendimento do vocabulário veterotestamentário.

CONCLUSÃO

Neste artigo buscamos introduzir o leitor brasileiro às bases para o estudo da língua etíope clássica, o ge ‘ez . Mostramos brevemente a história da Etiópia, principalmente os desenvolvimentos que contribuíram para a emergência do ge ‘ez sobre outros dialetos. Demonstramos brevemente as principais características da língua e por fi m enunciamos as principais contribuições desta língua para as ciências bíblicas. Esperamos que estas CLACIR V IRMES J UNIOR - L ÍNGUA E TÍOPE (GE‘EZ): D ESENVOLVIMENTO ... 161 informações sejam um primeiro passo para o fomento do estudo desta língua em solo tupiniquim.

REFERÊNCIAS

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Augustus Dillmann : Veteris testamenti Aethiopici 162 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 147-163 tomus quintus, quo continentur Libri Apocryphi, Baruch, Epistola Jeremiae, Tobith, Judith, Ecclesiasticus, Sapientia, Esdrae Apocalypsis, Esdrae Graecus. Lipsae: Vogel, 1894. 221 p. ______. Lexicon linguae Aethiopicae cum indice Latino . Lipsae: T. O. Weigel, 1855. 1522 p. ______; BEZOLD, Carl. Ethiopic grammar . 2. ed. Eugene: Wipf e Stock Publishers, 2005. 581 p. EHRET, Christopher. Linguistic testimony and migration histories. In: LUCASSEN, Jan; LUCASSEN, Leo; MANNING, Patrick (Eds.). Migration history in world history : multidisciplinary approaches. Leiden: Brill, 2010. p. 113-154. FERENC, Aleksander. Writing and literature in classical Ethiopic (Giiz). In: ANDRZEJEWSKI, B. W.; PILASZEWICZ, S.; TYLOCH, W. (Eds.). Literatures in African languages : theoretical issues and sample surveys. reedição. Cambridge: Cambridge University Press, 2010. p. 255-297. FRANCISCO, Edson de Faria. 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WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. Companhia das Letras, São Paulo, 2004.

Vinícius Mendes de Oliveira 1

INTRODUÇÃO

A ética protestante e o espírito do capitalismo fi gura entre as mais importantes obras da literatura mundial. Nesse livro, Max Weber explica o surgimento do capitalismo à luz da teologia protestante que impôs uma ascese que gerou o espírito capitalista, segundo seu ponto de vista. É seu propósito apresentar uma interpretação cultural para o fenômeno do capitalismo, indicando que na base das ações econômicas capitalistas encontra-se um “espírito” gerador, refutando o materialismo histórico de Kal Marx como única explicação para o sistema capitalista. Weber inicia o livro estabelecendo que as diferenças sócio- econômicas entre católicos e protestantes são produto das cosmovisões religiosas que cada grupo detém. Na sequência, o autor passa a explicar o conceito de “espírito” do capitalismo, propondo, de forma mais clara, sua tese. Weber ainda faz uma diferença entre o conceito de vocação em Lutero e Calvino e explica o objeto de sua pesquisa. Na segunda parte do livro, Weber apresenta como o protestantismo calvinista inseriu-se no mundo, estabelecendo o “espírito” do capitalismo. Finalmente, Weber mostra como a ascese protestante determinou o “espírito” do capitalismo. Portanto, pretende-se, neste texto, refl etir, sucintamente, sobre cada

1 Mestrando em Ciências Sociais na UFRB, Professor de Língua Portuguesa no IAENE, Aluno do 7º período do SALT – IAENE. E-mail: [email protected] 168 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 167 -179 um desses tópicos desenvolvidos por Weber, observando a sequência da pesquisa do autor em suas formulações sobre a base religiosa que está no embrião do capitalismo, o qual fi nal e defi nitivamente, segundo Weber, desprendeu-se de seu arrimo religioso.

PROTESTANTISMO X C ATOLICISMO

No capítulo Confi ssão religiosa e estratifi cação social , Max Weber mostra a marcada diferença de posição social que ocupam protestantes e católicos. Segundo a pesquisa que fez na Alemanha, Weber diz que os protestantes ocupavam as mais elevadas posições no mundo dos negócios, fi gurando como empresários e compondo as mais qualifi cadas zonas de mão de obra. Na visão de Weber, esse fenômeno se deve a, pelo menos, dois fatores: posse de capital e forte ênfase em educação. Na verdade, por conta, especifi camente dessa segunda característica, o Protestantismo desenvolveu em seus adeptos um senso de incômodo com o tradicionalismo religioso, que os levou a questionar “verdades absolutas” e dogmas. Ele diz, literalmente: ... a Reforma signifi cou não tanto a eliminação da dominação eclesiástica sobre a vida de modo geral, quanto a substituição de sua forma vigente por outra. E substituição de uma dominação extremamente cômoda, que na época mal se fazia sentir na prática, quase só formal muitas vezes, por uma regulamentação levada a sério e infi nitamente incômoda da conduta de vida como um todo, que penetrava todas as esferas da vida doméstica e pública até os limites do concebível.” (WEBER, 2004, p.30) A citação acima indica claramente o caráter revolucionário que a Reforma assumiu, rompendo com a dominação católica. Fica evidente que, para Weber, o estilo de vida que a moral católica impunha era cômodo, no sentido de relegar quase que exclusivamente ao transcendente as questões importantes da vida. A respeito do Catolicismo, Weber diz: “A dominação da Igreja católica – ‘que pune os hereges, mas é VINÍCIUS M ENDES DE O LIVEIRA - A É TICA P ROTESTANTE E O "E SPÍRITO "... 169 indulgente com os pecadores’, no passado mais ainda que hoje – é suportada no presente até mesmo por povos de fi sionomia econômica plenamente moderna [e assim também a aguentaram as regiões mais ricas e economicamente mais desenvolvidas que a terra conhecia na virada do século XV]. (IDEM, p. 31) Essa defi nição do catolicismo dada por Weber ajuda a explicar o motivo da diferença entre católicos e protestantes no que diz respeito à economia. O catolicismo foca sua abordagem em questões menos práticas tais como credo e dogmas, relegando a segundo plano questões práticas como ética e moral. Naturalmente, ética e moral, especialmente a partir do ponto de vista do protestantismo, também – e principalmente- estão ligadas às questões como trabalho e economia. Segundo Weber, o catolicismo sustenta um modo de vida que estimula seu fi el a um contentamento com aquilo que lhe garanta a subsistência e o desfrute do que se tem. Por outro lado, a ascese protestante, de forma geral, focada em questões práticas e morais – dando liberdade de consciência aos fi eis no que diz respeito a doutrinas – interpreta o ócio como pecado e estimula o acumulo – não desfrutado – como prática moral digna. Weber cita Offenbacher sobre o tema acima: O católico [...] é mais sossegado; dotado de menor impulso aquisitivo, prefere um traçado de vida o mais possível seguro, mesmo que com rendimentos menores, a uma vida arriscada e agitada que eventualmente lhe trouxesse honras e riquezas. Diz por gracejo a voz do povo: ‘bem comer ou bem dormir, há que escolher’. No presente caso, o protestante prefere comer bem, enquanto o católico quer dormir sossegado (Offenbacher, apud Weber, p. 34). A citação acima é precisa para expressar o que Weber quer transmitir no primeiro capítulo do livro. O sociólogo pretende diferenciar o ponto de vista católico da ascese protestante, deixando claro que a primeiro preocupa-se pouco com os problemas práticos da vida, especifi camente aqueles que dizem respeito à vida econômica, isto é, o católico prefere “dormir sossegado”. Com base nisso, percebe-se que Weber quer ensinar que o católico opta pelo ócio e que utiliza o trabalho apenas para lhe 170 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 167 -179 garantir isso. Por outro lado, Weber pinta o protestante como diligente, preocupado em “comer bem”, signifi cando essa expressão todo o trabalho que esse ato pressupõe.

O “E SPÍRITO ” DO C APITALISMO

A discussão do capítulo O Espírito do Capitalismo gira em torno de se defi nir, pelo menos de maneira introdutória, o que vem a ser o tal “espírito” do capitalismo. Mas Weber, portanto, recorre a um texto de Benjamin Franklin, que “[... simultaneamente oferece antes de mais nada a vantagem de ser isento de toda relação direta com a religião e por conseguinte – para nosso tema – ‘isento de pressupostos’].(IDEM, p. 42) A intenção de Weber é defi nir o “espírito” do capitalismo. Weber utiliza a palavra espírito porque quer ensinar que o capitalismo nasce de uma base religiosa, mas à medida que a modernidade avança esse capitalismo vai se desprendendo desse arrimo e assumindo suas próprias características. Muitas delas negando sua própria origem religiosa. Assim, Weber quer destacar que há no capitalismo um “espírito” protestante remanescente, que é produto de uma ascese, originalmente religiosa, mas que se laicizou com a modernidade e a racionalidade. Por isso, em busca de isenção de pressuposições religiosas, pelo menos diretas, – como prudentemente ele menciona- Weber utiliza o texto de Benjamin Franklin. O texto inicia-se com a célebre frase “Lembra-te que tempo é dinheiro.” Com essa frase, Franklin ensina o valor de se utilizar sabiamente do tempo, não o desperdiçando com ócio ou coisas sem valor laboral. O texto é encadeado com uma série de exortações a respeito do dinheiro, geralmente introduzidas por expressões como “Lembra-te” e outras de tom exortativo. Naturalmente, esse modo de encadear o texto é uma notável referência, mesmo que sutil, às exortações bíblicas de onde o VINÍCIUS M ENDES DE O LIVEIRA - A É TICA P ROTESTANTE E O "E SPÍRITO "... 171 Protestantismo tirou a base para sua moralidade. Todos ditos encontrados nessa referência estimulam o leitor ao trabalho e ao acúmulo. Weber comenta o texto de Franklin, deixando claro que características essenciais do capitalismo estão presentes no pensamento de Franklin: No fundo, todas as advertências morais de Franklin são de cunho utilitário: a honestidade é útil porque traz crédito, e o mesmo se diga da pontualidade, da presteza, da frugalidade também, e é por isso que são virtudes: donde se conclui, por exemplo, entre outras coisas, que se a aparência de honestidade faz o mesmo serviço, é o quanto basta, e um excesso desnecessário de virtude haveria de parecer, aos olhos de Franklin, um desperdício improdutivo condenável. (IDEM, p. 45 e 46) Com base na citação acima é possível inferir que o capitalismo desvincula-se de sua base religiosa na medida em que opta pelo utilitarismo, pressupondo, assim egoísmo e hipocrisia, revelada na questão de se manterem utilitariamente as aparências, o que vai de encontro com o ponto de vista bíblico a respeito do que deve ser a verdadeira motivação para as ações. Nesse capítulo, Weber pretendeu revelar não apenas de onde se origina esse espírito capitalista, mas sobretudo explicar a natureza simbólico-cultural que está na base do capitalismo. A verdade é que Max Weber propõe uma explicação culturalista para o fenômeno. Para ele, portanto, o materialismo capitalista é produto de uma cultura que se impregnou na modernidade, oriunda da Reforma, segunda a qual o lucro não é pecaminoso e que o trabalho na busca do acúmulo “dignifi ca o homem”. Fazendo uma direta crítica à interpretação marxista da realidade do capitalismo, Weber diz: Só alhures teremos ocasião de tratar no pormenor daquela concepção do materialismo histórico ingênuo segundo a qual ‘ideias’ como essas são geradas como ‘refl exo’ ou ‘superestrutura’de situações econômicas.” Por ora, é sufi ciente para nosso propósito indicar: que na terra natal de Benjamin Franklin (o Massachutts) o ‘espírito do capitalismo’ (no sentido por nós adotado) existiu incontestavelmente antes do desenvolvimento do capitalismo.’ [(já em 1632 na Nova Inglaterra, havia queixas quanto ao emprego do cálculo na busca de lucro, em contraste com outras 172 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 167 -179 regiões da América)]; e que esse ‘espírito capitalista’ permaneceu muito menos desenvolvido, por exemplo, nas colônias vizinhas – os futuros estados sulistas da União – muito embora estas últimas tivessem sido criadas por grandes capitalistas com fi nalidades mercantis, ao passo que as colônias da Nova Inglaterra tinham sido fundadas por razões religiosas por pregadores e intelectuais em associação com pequenos- burqueses, artesãos e yeomen (IDEM, p. 48 e 49) O trecho acima torna claro que Weber pretende explicar a origem do capitalismo de forma inversa à de Marx. Enquanto este entende a ideia capitalista como derivada de uma base econômica; aquele entende a economia capitalista como produto da cultura – “espírito”- que a cria. Para justifi car esse pensamento, ele usa o exemplo citado acima, em que apresenta esse “espírito” capitalista existindo antes do próprio capitalismo, refutando, assim, o pensamento marxista.

O C ONCEITO DE V OCAÇÃO L UTERO

Nesse capítulo, Weber apresenta as bases do pensamento de Lutero sobre vocação. O sociólogo analisa a semântica da palavra alemã Beruf , relacionando-a com a expressão inglesa calling como também termos equivalentes em outras línguas e percebe o valor religioso que essas palavras assumem. Weber justifi ca isso, especialmente pela intervenção dos reformadores que traduziram a Bíblia para seus idiomas, transplantando o signifi cado de vocação religiosa para a palavra trabalho. Weber observa que na teologia de Lutero esse processo é gradativo, considerando que ele foi o precursor da Reforma, o que lhe colocava em ambiente medieval, extremamente infl uenciado pela visão católica de trabalho. Mas à medida que a ideia de sola fi de se lhe torna mais clara em suas conseqüências e vai fi cando cada vez mais aguçada sua consequente oposição aos ‘conselhos evangélicos’ do monacato católico enquanto conselhos ‘ditados pelo diabo’, aumenta a signifi cação da vocação numa profi ssão. (IDEM, p. 73) O ponto de vista de Lutero, portanto, evolui para a concepção de que VINÍCIUS M ENDES DE O LIVEIRA - A É TICA P ROTESTANTE E O "E SPÍRITO "... 173 o trabalho é uma vocação divina, a qual foi dada a cada ser humano como instrumento de demonstração de amor ao próximo, no sentido de que, cumprindo a vocação, a pessoa humana serve a seu semelhante. Nesse sentido, observa-se o tom moral que o pensamento de Lutero agrega à questão do trabalho. No entanto, Weber destaca que, em Lutero, o conceito de vocação aparece baseado no ponto de vista tradicionalista. Weber destaca ainda que, na teologia de Lutero sobre o trabalho, não aparece o tal “espírito” do capitalismo. “Antes de tudo, é escusado lembrar que não tem cabimento atribuir a Lutero parentesco íntimo com o ‘espírito do capitalista’, seja no sentido que até agora associamos a essa expressão ou de resto em qualquer outro sentido”.(IDEM, p. 74) Weber quer esclarecer com essa observação que a preocupação de Lutero é focada em questões teológicas que envolvam o trabalho e não e em uma superênfase no trabalho, como ocorre em Calvino. Além disso, a posição de Lutero, como já dito, é tradicionalista. Isso signifi ca dizer que o reformador alemão entendia as questões sócio-econômicas do ponto de vista estamental, visão esta que deriva em seu pensamento em virtude do contexto medieval em que ele existiu, do qual não se libertou completamente. Lutero foi um profundo estudioso das cartas do apóstolo Paulo. Foi nesse autor bíblico que encontrou o conceito de justifi cação pela fé. Foi esse conceito, em linhas gerais, que o levou à Reforma. Portanto, aplicou, ao pé da letra, textos paulinos como o de I Coríntios 7: 20, que diz: “Cada um fi que na vocação em que foi chamado”. Naturalmente, Lutero lia textos assim à luz de seu estado de espírito e de acordo com o foco de seu ministério. Ele não pretendia ser um reformador social, mas sim um reformador religioso. Isso não lhe permitiu ver que os textos paulinos também não legislavam em favor do tradicionalismo econômico ou por qualquer outro tipo de visão econômica. O fato é que, Lutero, embebido de 174 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 167 -179 uma leitura estritamente escatológica da Bíblia – especialmente dos textos paulinos – traduziu o conceito de vocação de uma forma tradicionalista. Assim a simples ideia de ‘vocação numa profi ssão’ no sentido luterano – e é só isso que nos interessa registrar aqui – tem, tanto quanto pudemos ver até agora, um alcance problemático para aquilo que nós buscamos. Com isso não se está dizendo, em absoluto que a forma luterana de reorganização da vida religiosa não tenha tido uma signifi cação prática para o objeto de nossa pesquisa. Muito pelo contrário. É que ela, evidentemente, não pode ser derivada imediatamente da posição de Lutero e sua Igreja quanto à profi ssão mundana, e não é tão fácil aprendê-la como talvez o seja no caso de outras manifestações do protestantismo. (IDEM, p. 78) A questão que Weber levanta aqui é que o conceito de vocação de Lutero não é adequado para explicar o espírito do capitalismo devido ao caráter tradicionalista e monástico que predominou na interpretação luterana sobre vocação profi ssional. Lutero relacionava a ascese intramundana com justifi cação pelas obras, algo contra o qual ele veementemente se levantou em sua reforma. Dessa maneira, Weber encaminha sua pesquisa para o estudo a respeito do calvinismo e afi ns para, a partir daí, explicar de onde veio, efetivamente, o espírito do capitalismo.

A A SCESE I NTRAMUNDANA

Weber dá especial destaque para o calvinismo, também chamado de puritanismo (embora no capítulo em que discorre sobre essa religião também fala sobre o pietismo, metodismo e anabatismo), porque no seio desse movimento religioso pode-se observar, com maior força, os infl uxos do espírito do capitalismo. A doutrina mais característica do calvinismo é a predestinação. Segundo essa crença, os salvos são eleitos na onisciência de Deus, antes da fundação do mundo, o que determina uma arbitrária separação entre salvos e perdidos por parte de Deus, sem permitir a esses perdidos o direito de redenção. A questão é que, inicialmente, nem salvos nem perdidos têm VINÍCIUS M ENDES DE O LIVEIRA - A É TICA P ROTESTANTE E O "E SPÍRITO "... 175 consciência de seu estado e a obra de santifi cação evidenciará ou não o estado salvífi co do indivíduo. Ora, em sua desumanidade patética, essa doutrina não podia ter outro efeito sobre o estado de espírito de uma geração que se rendeu à sua formidável coerência, senão este, antes de mais nada: um sentimento de inaudita solidão interior do indivíduo . No assunto mais decisivo da vida nos tempos da Reforma – a bem-aventurança eterna – o ser humano se via relegado a traçar sozinho sua estrada ao encontro do destino fi xado desde toda a eternidade. Ninguém podia ajudá-lo. (IDEM, p. 95) Weber refl ete sobre as consequências do calvinismo nos termos acima, indicando que nenhuma instituição humana poderia ajudar o penitente na busca de sua salvação, tampouco Deus, uma vez que o destino do indivíduo já estava traçado. Esse processo desvinculador da religião dos sacramentos salvífi cos como também do conteúdo sensorial e imagético, em busca de uma racionalidade, vai desembocar no que Weber chama de desencantamento do mundo. A religião calvinista impõe uma forte ênfase na racionalidade como também na transcendência do divino em relação ao humano. Nesse sentido, o calvinismo distancia-se largamente do luteranismo, na medida em que este mantém o valor dos sacramentos no papel de auxiliar na salvação como também propõe uma religiosidade imanente, no sentido de aproximar o divino para perto, ou dentro do indivíduo através das interações emocionais no culto e na comunhão. O calvinismo, por sua vez, estabelece uma religiosidade racional, que coloca o indivíduo sozinho, consigo mesmo, na sua caminhada espiritual. Como associar essa tendência do indivíduo a se soltar interiormente dos laços mais estreitos com que o mundo o abraça à incontestável superioridade do calvinismo na organização social, à primeira vista parece um enigma. É que, por estranho que possa parecer de início, tal superioridade é simplesmente resultado daquela conotação específi ca que o ‘amor ao próximo’ cristão deve ter assumido sob a pressão do isolamento interior do indivíduo exercida pela fé calvinista. [A princípio ela é de fundo dogmático.] O mundo está destinado a isto [e apenas a isto]: a servir à autoglorifi cação de Deus; o cristão [eleito] existe para isto [e apenas para isto]: para fazer crescer no mundo a glória de Deus, cumprindo, de sua parte, os mandamentos Dele. Mas Deus quer 176 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 167 -179 do cristão uma obra social porque quer que a conformação social da vida se faça conforme seus mandamentos e seja endireitada da forma a corresponder a esse fi m. (IDEM, pp. 98-99) Com o conceito de glorifi cação a Deus, Weber explica o aparente paradoxo que se estabelece entre o individualismo sustentado pela doutrina da predestinação e o nível de organização social visto no calvinismo. Na verdade, o exercício dessa sociabilidade que se traduzia na divisão social do trabalho é, de alguma forma, prenúncio para o espírito do capitalismo, sustentado por Weber. Mais do que isso outro tema emerge como decorrência da doutrina da predestinação: a possibilidade da dúvida com respeito à salvação e a necessidade de um antídoto, por assim dizer, para curar essa dúvida. De um lado, torna-se pura e simplesmente um dever considerar- se eleito e repudiar toda e qualquer dúvida como tentação do diabo, pois a falta de convicção, afi nal, resultaria de uma fé insufi ciente de graça. A exortação do apóstolo a ‘se segurar’ no chamado recebido é interpretada aqui, portanto, como dever de conquistar na luta do dia a dia a certeza subjetiva da própria eleição e justifi cação. Em lugar dos pecadores humildes a quem Lutero promete a graça quando em fé penitente recorrem a Deus, disciplinam-se dessa forma aqueles ‘santos’ autoconfi antes com os quais nos toparemos outra vez na fi gura dos comerciantes puritanos da época heróica do capitalismo, rijos como aço, e em alguns exemplares do presente. (IDEM, pp.101-102) A isso se acrescenta o que está defi nitivamente na base do espírito capitalista, proveniente do puritanismo: trabalho incessante.“E de outro lado, distingue-se o trabalho profi ssional sem descanso como meio mais saliente para se conseguir essa autoconfi ança. Ele, e somente ele, dissiparia a dúvida religiosa e daria certeza do estado de graça.” (IDEM, p. 102) Dessa forma, restava ao indivíduo, na angústia que a pergunta “salvo ou perdido?” impunha, determinar a certeza de sua salvação e evidenciá-la por meio de obras que glorifi cassem o nome de Deus, tanto no aspecto moral quanto social. Embora a premissa calvinista fosse de que as boas obras não são VINÍCIUS M ENDES DE O LIVEIRA - A É TICA P ROTESTANTE E O "E SPÍRITO "... 177 meritórias, segundo Weber, o luteranismo acusou o puritanismo disso. “Pois talvez jamais haja existido forma mais intensa de valorização religiosa do que aquela produzida pelo calvinismo em seus adeptos.” (IDEM, p.105) Para Weber, essa ascese calvinista foi determinante para o capitalismo. Isso porque essa compreensão da doutrina da salvação faz com que os indivíduos, não somente usufruam dos benefícios da graça imputada de Deus, como também devam permitir o desenvolvimento da graça comunicada, ou seja, a santifi cação sistemática em busca da perfeição contínua e linear em seu caráter. Weber compara assim o ponto de vista calvinista (predestinação) e luterano: No seio do protestantismo, as conseqüências que essa doutrina necessariamente acarretou na conformação ascética da conduta de vida dos seus primeiros adeptos constituíram a antítese [mais] fundamental da impotência moral (relativa) do luteranismo. A gratia amissibilis luterana, que a todo instante podia ser recuperada com o arrependimento e penitência não continha em si, obviamente, nenhum estímulo àquilo que aqui nos importa como produto do protestantismo ascético: uma sistemática conformação racional da vida ética em seu conjunto. (IDEM, p. 115) Weber, com essa diferenciação, quer deixar claro que onde houve predomínio da teologia calvinista, houve maior sistematização da vida prática e que essa ascese contaminou a sociedade do ponto de vista econômico. Por outro lado, o luteranismo, com sua forte ênfase na salvação pela fé, descartou o papel das obras na evidenciação da salvação o que se traduziu em uma libertinagem moral e social, segundo o ponto de vista weberiano.

A A SCESE E O C APITALISMO

Nesse capítulo, Weber conclui seu estudo relacionando toda a análise teológica que faz das principais vertentes do protestantismo com o tema, de fato, de sua pesquisa: o espírito capitalista. 178 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 167 -179 Weber ensina que a ascese protestante insurge-se contra qualquer tipo de coisa que tenda a afastar o indivíduo do foco central de sua vida: glorifi car a Deus. Nesse sentido, Weber menciona a aversão dos puritanos aos esportes, especialmente quando vistos apenas no aspecto da fruição, como também dos bens culturais, entendidos como ostentação. Na verdade, o entendimento calvinista leva à crença do indivíduo ser um fi el mordomo que administra fi elmente os bens que Deus lhe confi ou. A ideia da obrigação do ser humano com a propriedade que lhe foi confi ada, à qual se sujeita como prestimoso administrador ou mesmo como ‘máquina de fazer dinheiro’, estende-se por sobre a vida feito uma crosta de gelo. Quanto mais posses, tanto mais cresce – se a disposição ascética resistir a essa prova – o peso do sentimento da responsabilidade não só de conservá-la na íntegra, mas ainda de multiplicá-las para glória de Deus através do trabalho sem descanso. Mesmo a gênese desse estilo de vida remonta em algumas de suas raízes à Idade Média como aliás tantos outros elementos do espírito do capitalismo [moderno], mas foi só na ética do protestantismo ascético que ele encontrou um fundamento ético consequente. Sua signifi cação para o desenvolvimento do capitalismo é palpável. (IDEM, p. 155 ) O pensamento de Weber segue para observar a dissociação ocorrida no capitalismo em relação a sua base religiosa. No que a ascese se pôs a transformar o mundo e a produzir no mundo os seus efeitos, os bens exteriores deste mundo ganharam poder crescente e por fi m irresistível sobre os seres humanos como nunca antes na história. Hoje seu espírito – quem sabe defi nitivamente? – safou-se dessa crosta. O capitalismo vitorioso, em todo caso, desde quando se apoia em bases mecânicas não precisa mais desse arrimo. (IDEM, p. 165) Dessa forma, Weber apresenta o desprendimento do capitalismo de sua base religiosa embrionária, sob sua perspectiva, observando que o capitalismo de seu tempo e, sobretudo o hodierno, de alguma forma apresenta-se como uma antítese dos aspectos morais da religiosidade que o originou, embora seja uma característica inerente ao puritanismo a busca incansável por mais capital. VINÍCIUS M ENDES DE O LIVEIRA - A É TICA P ROTESTANTE E O "E SPÍRITO "... 179 CONCLUSÃO

A ética protestante e o espírito do capitalismo é a obra magna de Max Weber na qual ele interpreta o fenômeno do capitalismo à luz de uma perspectiva cultural. Weber vai buscar na infl uência da ascese intramundana do protestantismo a explicação para a natureza de acúmulo de capital própria do capitalismo. Com base em uma profunda pesquisa histórica e teológica, o autor fundamenta sua tese, observando que, antes que o capitalismo estabelece-se de fato, seu espírito já estava ativo nos Estados Unidos. Com isso quer deixar evidente que, ao contrário do que postulou Marx, o que está na base não é o materialismo histórico, mas o “espírito” do capitalismo. Entretanto, de forma elegante, politicamente correta e prudente, do ponto de vista acadêmico, encerra seu ensaio observando que sua tese não é a resposta absoluta para a explicação do fenômeno do capitalismo e assume também a importância da interpretação marxista sobre o tema. No entanto, diz que nenhuma, nem outra devem ser vistas de forma absoluta ou unilateral sob pena de se desqualifi carem na apresentação da verdade histórica. “Ambas são igualmente possíveis.” (IDEM, p. 167), diz ele. Embora não pretendendo entrar “no terreno dos juízos de valor e juízos de fé” (IDEM, p. 166) sua conclusão deixa transparecer uma séria advertência ao mundo capitalista, desprendido inevitavelmente de seu arrimo religioso, através de uma declaração: “Então, para os ‘últimos homens’ desse desenvolvimento cultural, bem poderiam tornar-se verdade as palavras: ‘Especialistas sem espírito, gozadores sem coração: esse nada imagina ter chegado a um grau de humanidade nunca antes alcançado’.” (IDEM, p. 166) O UNIVERSO AO LADO

SIRE, James W. O universo ao lado . 4. ed. São Paulo: Hagnos, 2009, 380 p.

Iva Cristiane Leal de Aguiar 1 Charles Fabian da Costa Fernandes 2

James W. Sire é autor de vários livros, incluindo Hábitos da Mente , Scripture Twisting e Why Should Anyone Believe Anything at All? . O Universo ao Lado foi publicado originalmente em língua inglesa, sob o título The Universe Next Door , em 2004. A obra está dividida em dez capítulos, nos quais o autor faz uma apresentação das bases que compõem o Teísmo Cristão, o Deísmo, o Naturalismo, o Niilismo, o Existencialismo, o Monismo Panteísta oriental, a Nova Era e, por fi m, o Pós-modernismo. No capítulo de abertura, sob o título “Toda a diferença do mundo”, o autor faz uma introdução geral às cosmovisões que serão apresentadas no decorrer da obra. O autor defende que seria possível afi rmar que cada pessoa possui um modo diferente de enxergar a vida e o universo. Nesse sentido, seria inviável a tentativa de precisar quantas cosmovisões coexistem; no entanto, uma vez que pessoas que compartilham interesses em comum tendem a compartilhar o mesmo modo de conceber o universo, é possível sistematizar um grupo de crenças e representá-la sob um nome: teísmo, deísmo, etc. Cada um desses grupos de crenças é o que chamamos de cosmovisão, que, segundo afi rma o autor, nada mais é do que uma proposição, a tentativa de explicar a ordem das coisas, de responder perguntas primordiais: “o que é o ser humano?”; “o que acontece a uma

1 Acadêmica de Pedagogia pela Faculdade Adventista da Bahia. Email: ivacris. [email protected] 2 Pós-graduado em Missiologia. Professor de Teologia Aplicada no SALT- IAENE – Seminário Adventista Latino-Americano de Teologia. Email: Charles_fabi- [email protected] 182 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 181 -185 pessoa quando ela morre?”; como sabemos o que é certo ou errado?”; “qual o signifi cado da história humana?”. No capítulo em que trará a respeito do Teísmo Cristão, a obra mostra que esta cosmovisão busca responder às perguntas primordiais, afi rmando que o Universo está permeado da grandeza de Deus, que é o ser-total e o fi m-total da existência. Assim, o Teísmo Cristão crê que Deus é infi nito, pessoal (trino), transcendente e imanente, onisciente, soberano e bom. Deus criou o cosmos ex-nihilo para operar com uma uniformidade de causa e efeito, em um sistema aberto. Portanto, os seres humanos foram criados por Deus, à sua imagem e semelhança, com personalidade, inteligência, moralidade e criatividade. Estas faculdades permitem que os seres humanos conheçam a si próprios e o próprio Deus, sob a crença de que foram criados bons, no entanto, devido à queda, a imagem foi desfi gurada, mas não de um modo que não pudesse ser restaurada através da obra de Cristo. De acordo com esta visão, a história é linear, levando ao cumprimento dos propósitos de Deus para a humanidade. Em seguida, o autor apresenta os fundamentos do Deísmo, o qual concebe a ideia de um Deus transcendente, mas não imanente, não pessoal. Ele é a primeira causa. Criou o universo como uma uniformidade de causa e efeito, porém o deixou funcionar por conta própria, em um sistema fechado, diferentemente do Teísmo. O cosmos é compreendido como estando em seu estado normal, não decaído; e pelo fato de o universo ser normal, é ele quem revela o que é certo. Nesse sentido, não há distinção entre o bem e o mal. A ética desaparece. A história também é linear, pois o curso do cosmo foi determinado na criação. O Deísmo abriu espaço para o surgimento de uma nova cosmovisão chamada Naturalismo, a qual defende que a matéria existe eternamente e é tudo o que há. Para o Naturalismo, Deus não existe. Os seres humanos são vistos como “máquinas” complexas. A morte é a extinção da personalidade e da individualidade. A história é linear, porém sem uma IVA C RISTIANE A GUIAR , C HARLES F ABIAN - O U NIVERSO AO L ADO 183 proposta abrangente, não há uma primeira causa, Deus ou algo diferente. Mais forte, em relação ao Deísmo, o naturalismo apresenta um grande poder de permanência. O Niilismo, por sua vez, é apresentado não como uma fi losofi a, mas como a negação dela, ou a negação de todas as coisas. O autor mostra que a primeira e mais básica razão para o Niilismo pode ser encontrada nas implicações diretas e lógicas das proposições primárias do Naturalismo. Porém, os fi os do Niilismo formam uma corda longa e forte o sufi ciente para envolver toda uma cultura. O nome dessa corda é perda de signifi cado. Nada possui signifi cado. Quanto ao Existencialismo, sob o viés da obra, a essência de seu objetivo mais importante pode ser resumida em uma frase: transcender o Niilismo. O autor analisa que o Existencialismo assume duas formas básicas – o Existencialismo Ateísta, cujas concepções derivam do Naturalismo e o Existencialismo Teísta, cujas concepções derivam do Teísmo –, o que demonstra que o Existencialismo não é uma cosmovisão totalmente amadurecida. Nos dois capítulos seguintes, o autor conduz a discussão para o curso do pensamento ocidental. Ele afi rma que chegamos a um impasse. O Ocidente acaba em um labirinto de contradições em face de tanta efervescência de ideias. Surge uma questão: existe um caminho melhor? A mudança ao pensamento oriental desde os anos sessenta é uma fuga do pensamento ocidental. Por cerca de um século, o pensamento oriental vem fl uindo para o ocidente. O conhecimento oriental passa a ser de fácil obtenção: mais e mais, sua visão de realidade torna-se uma opção de vida no Ocidente. O livro apresenta o Monismo Panteísta como a cosmovisão de origem oriental mais popular no ocidente. Segundo esta visão, a alma de cada um e de todo ser humano é a alma do cosmo. Não existem caminhos certos e caminhos errados, o que existe é uma direção certa 184 HERMENÊUTICA , V OLUME 10, N.2, 181 -185 em cada caminho. O cosmo é perfeito em todo momento. A morte é o fi m da existência pessoal, individual, mas não altera nada de essencial na natureza do indivíduo. O tempo é irreal e a história é cíclica. No entanto, embora proponha uma saída para as pessoas ocidentais aprisionadas no dilema niilista do Naturalismo, o misticismo do oriente, assegura o autor, é estrangeiro. Há um caminho menos doloroso e custoso para se alcançar propósito e signifi cado: uma nova consciência dentro de linhas mais ocidentais, a Nova Era. Esta é uma cosmovisão altamente sincrética e eclética, que toma emprestado de todas as principais cosmovisões. Por fi m, o autor refl ete sobre as bases do pós-modernismo, observando que esta é uma perspectiva tão penetrante que tem infl uenciado inúmeras cosmovisões, mais notadamente o Naturalismo. Na verdade, a melhor forma de pensar sobre grande parte do pós-modernismo é vê-lo como a fase mais recente do “moderno”, e, ao mesmo tempo, a forma mais recente do Naturalismo. Não obstante, levanta-se uma questão: se o pós-modernismo não nos levou além do Naturalismo, mas, ao invés disso, enredou-nos em uma teia de incerteza completa, por que deveríamos pensar que ele nos descreve realmente como somos? O autor conclui a obra retornando à ideia inicial: uma ponderação do quanto é subjetivo tentar estabelecer um número de visões sobre as origens, sobre quem nós somos, sobre para onde vamos, uma vez que a maneira como o universo é percebido muda, na medida em que mudam os grupos sociais, a época, a etnia, as pessoas. Nesse sentido, não é possível exagerar o signifi cado do dito popular: “cada cabeça, um mundo”. A obra já vendeu mais de 250 mil cópias, o que demonstra sua aceitabilidade. De fato, O universo ao lado é considerada nos círculos cristãos como a principal obra sobre cosmovisões, em face de uma linguagem simples, acessível e uma estruturação interna, bem topicalizada, que facilita muito a compreensão, sem prescindir da riqueza de informações. Leitura indicada para professores e alunos de Ciência IVA C RISTIANE A GUIAR , C HARLES F ABIAN - O U NIVERSO AO L ADO 185 e Religião, Cosmovisões, Filosofi a, etc., bem como para todo estudante, todo docente, todo cristão que tenha consciência de que vive num ambiente acadêmico e num mundo cada vez mais pluralistas, o que torna urgente a capacidade de compreender e avaliar as várias cosmovisões.